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AS AVENTURAS DE PI: Uma interpretação gnóstica Carlos A. P. Campani (Ir.'. Ibrahim) Gostei do filme. As imagens são impressionantes. Ang Lee soube explorar os reflexos do céu no mar, em cenas deslumbrantes. O tigre Richard Parker, produzido por computação gráfica, é perfeito - torna-se um ator como qualquer outro no filme. Mas não escrevi este artigo para falar que gostei do filme e porque gostei dele. Meu propósito é tentar explicar o significado que captei ao assisti-lo, defender uma tese e comparar o filme com outra história, esta outra uma história clássica: Moby Dick. Devo advertir o leitor que este artigo contém spoilers do filme, e que seria melhor que o leitor primeiro assistisse ao filme para, então, ler este artigo. Minha tese é que o filme tem inspiração gnóstica, como a história de Moby Dick, de Melville. No livro de Melville, as referências a diversas religiões e ao gnosticismo são bem conhecidas. Da mesma forma, em As Aventuras de Pi, Pi envolve-se com um inusitado encontro da religiosidade ocidental e a religião de seu país, a Índia, e não é, de nenhuma maneira, uma coincidência o surgimento de imenso cetáceo em cena crucial para o entendimento do filme. Em Moby Dick, um pescador, de nome Ahab, encontra-se sozinho e perdido no meio da imensidão do mar, lutando contra uma baleia. Ahab acredita que o mundo material de água é malévolo, e conspira para impedi-lo de encontrar a luz purificadora. Esta imagem ecoa o conceito gnóstico de “deus como adversário”. Para os gnósticos, a divindade Yaldabaoth, o Demiurgo, é o adversário que desafia o Homem para a existência sensível, sua grande prova no caminho para a libertação. Yaldabaoth é o carcereiro que condena a humanidade a vagar por este mundo material e inferior, o qual, na visão gnóstica, não é o lugar do Homem, cuja natureza verdadeira é espiritual. Na história de Moby Dick, Ahab representa o Homem vagando por um mundo onde ele é um estranho, e no qual deve enfrentar Deus, que lhe impõe o desafio da existência. De forma semelhante, no filme de Ang Lee, Pi vagueia perdido no mar em um pequeno barco, enfrentando um tigre, de nome Richard Parker. Na verdade, outra obra já havia explorado paralelos com a história de Melville, O Tigre, de Blake. Segundo Richard Smith em A Relevância Moderna do Gnosticismo, Biblioteca de Nag Hammadi, ambas as bestas representam a natureza, que é morte. A natureza, segundo Melville, é pintada como uma meretriz, “a grandiosa, sincera e laureada Natureza de Deus”. A natureza é apenas a maquiagem onde esconde-se a morte, como se o grande cetáceo albino representasse alvo sudário para o Homem. O mundo sensível é a grande barreira entre o Homem e sua própria libertação. Deixando que fale o próprio Melville, em Moby Dick, para preencher com cores minhas afirmações: “Há pouca razão para dúvida, então, que desde aquele encontro quase fatal, Ahab tivesse nutrido um sentimento de vingança feroz contra a baleia, e mais tenha sentido, em sua frenética morbidez, ele veio finalmente a identificar-se com ela, não só todos os seus males corporais, mas todos as suas exasperações intelectuais e espirituais. A Baleia Branca nadou perante ele como uma incarnação monomaníaca de todos estes agentes maliciosos os quais alguns homens profundos sentem comendo-os, até que eles ficam vivendo com metade de um coração e metade de um pulmão. A intangível malignidade a qual foi desde o princípio”. Para o gnosticismo, o mundo é reflexo da psique humana, e em As Aventuras de Pi, Ang Lee explora o reflexo do céu no mar para sugerir isso. Desta forma, para o gnosticismo, a natureza humana espelha a dualidade encontrada o mundo: em parte feita pelo falso deus criador, Yaldabaoth, e em parte consistindo da luz do Deus Verdadeiro, ABRAXAS. Se o mundo é reflexo do Homem, o estudo da psique humana e a contemplação sobre a luz que habita no Homem deve ser o meio para compreender todo o Universo. Isso reflete a máxima das antigas Escolas de Mistério: “Conhece-te a ti mesmo”. De um modo geral, as religiões tentam explicar o sentido da vida. No entanto, para os antigos gnósticos, a vida, sendo transitória e ilusória, é ausente de sentido. O mundo não tem um

As Aventuras de Pi: uma interpretação gnóstica

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Uma interpretação esotérica e gnóstica do filme As Aventuras de Pi

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AS AVENTURAS DE PI: Uma interpretação gnóstica

Carlos A. P. Campani (Ir.'. Ibrahim)

Gostei do filme. As imagens são impressionantes. Ang Lee soube explorar os reflexos do céu no mar, em cenas deslumbrantes. O tigre Richard Parker, produzido por computação gráfica, é perfeito - torna-se um ator como qualquer outro no filme.

Mas não escrevi este artigo para falar que gostei do filme e porque gostei dele. Meu propósito é tentar explicar o significado que captei ao assisti-lo, defender uma tese e comparar o filme com outra história, esta outra uma história clássica: Moby Dick.

Devo advertir o leitor que este artigo contém spoilers do filme, e que seria melhor que o leitor primeiro assistisse ao filme para, então, ler este artigo.

Minha tese é que o filme tem inspiração gnóstica, como a história de Moby Dick, de Melville. No livro de Melville, as referências a diversas religiões e ao gnosticismo são bem conhecidas. Da mesma forma, em As Aventuras de Pi, Pi envolve-se com um inusitado encontro da religiosidade ocidental e a religião de seu país, a Índia, e não é, de nenhuma maneira, uma coincidência o surgimento de imenso cetáceo em cena crucial para o entendimento do filme.

Em Moby Dick, um pescador, de nome Ahab, encontra-se sozinho e perdido no meio da imensidão do mar, lutando contra uma baleia. Ahab acredita que o mundo material de água é malévolo, e conspira para impedi-lo de encontrar a luz purificadora.

Esta imagem ecoa o conceito gnóstico de “deus como adversário”. Para os gnósticos, a divindade Yaldabaoth, o Demiurgo, é o adversário que desafia o Homem para a existência sensível, sua grande prova no caminho para a libertação. Yaldabaoth é o carcereiro que condena a humanidade a vagar por este mundo material e inferior, o qual, na visão gnóstica, não é o lugar do Homem, cuja natureza verdadeira é espiritual.

Na história de Moby Dick, Ahab representa o Homem vagando por um mundo onde ele é um estranho, e no qual deve enfrentar Deus, que lhe impõe o desafio da existência. De forma semelhante, no filme de Ang Lee, Pi vagueia perdido no mar em um pequeno barco, enfrentando um tigre, de nome Richard Parker. Na verdade, outra obra já havia explorado paralelos com a história de Melville, O Tigre, de Blake. Segundo Richard Smith em A Relevância Moderna do Gnosticismo, Biblioteca de Nag Hammadi, ambas as bestas representam a natureza, que é morte. A natureza, segundo Melville, é pintada como uma meretriz, “a grandiosa, sincera e laureada Natureza de Deus”. A natureza é apenas a maquiagem onde esconde-se a morte, como se o grande cetáceo albino representasse alvo sudário para o Homem. O mundo sensível é a grande barreira entre o Homem e sua própria libertação.

Deixando que fale o próprio Melville, em Moby Dick, para preencher com cores minhas afirmações: “Há pouca razão para dúvida, então, que desde aquele encontro quase fatal, Ahab tivesse nutrido um sentimento de vingança feroz contra a baleia, e mais tenha sentido, em sua frenética morbidez, ele veio finalmente a identificar-se com ela, não só todos os seus males corporais, mas todos as suas exasperações intelectuais e espirituais. A Baleia Branca nadou perante ele como uma incarnação monomaníaca de todos estes agentes maliciosos os quais alguns homens profundos sentem comendo-os, até que eles ficam vivendo com metade de um coração e metade de um pulmão. A intangível malignidade a qual foi desde o princípio”.

Para o gnosticismo, o mundo é reflexo da psique humana, e em As Aventuras de Pi, Ang Lee explora o reflexo do céu no mar para sugerir isso. Desta forma, para o gnosticismo, a natureza humana espelha a dualidade encontrada o mundo: em parte feita pelo falso deus criador, Yaldabaoth, e em parte consistindo da luz do Deus Verdadeiro, ABRAXAS. Se o mundo é reflexo do Homem, o estudo da psique humana e a contemplação sobre a luz que habita no Homem deve ser o meio para compreender todo o Universo. Isso reflete a máxima das antigas Escolas de Mistério: “Conhece-te a ti mesmo”.

De um modo geral, as religiões tentam explicar o sentido da vida. No entanto, para os antigos gnósticos, a vida, sendo transitória e ilusória, é ausente de sentido. O mundo não tem um

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sentido objetivo, é completamente ilusório. A única coisa que possui existência real é o que está além do mundo sensível.

No filme, isso está expresso no episódio em que o pai de Pi convence Pi que Richard Parker não tem uma alma, e a partir daí Pi passa a ter uma vida bem mais tediosa, sem a explicação soteriológica que é fornecida pelas religiões. No barco, durante a luta contra o tigre, Pi descobre que pode controlar os instintos de Richard Parker usando treinamento baseado nos reflexos do animal. O comportamento de Richard Parker no barco só vem a confirmar a inexistência de sentido para a vida humana e a incapacidade da religião de resolver este problema.

Para o gnosticismo, o mundo foi feito com um “defeito”, pois é obra do deus inferior, o Demiurgo. Este bug no software da criação não é uma casualidade, mas possui intencionalidade. O mito gnóstico de Sophia nos dá alguma luz sobre este tema.

Segundo o mito, de um princípio desconhecido emanaram, em sucessão, seres divinos, chamados de Aeons, que constituem uma hierarquia divina denominada Pleroma, que representa a natureza divina. No princípio, o Pleroma estava em paz e ordem. No entanto, cada emanação distanciava-se cada vez mais da fonte primordial, até que surgiu Sophia, associada à sabedoria e ao aspecto feminino da divindade. Sophia, o Aeon mais distante da fonte primordial, deseja conhecer o princípio de onde tudo emanou. Seu desejo era impossível de ser realizado, e sua tentativa acabou provocando o surgimento de um reflexo imperfeito do seu desejo, uma hipostalização deste desejo, na figura de um ser chamado de Demiurgo. A ação de Sophia provocou uma instabilidade no Pleroma, pois sua ação não tinha a autorização da hierarquia. Usurpando o poder criador de Sophia, o Demiurgo, desconhecendo a existência dos Aeons e da Raiz Desconhecida de onde tudo emanou, criou o mundo material e o homem. Ao final, o Deus Superior liberta Sophia e coloca ordem novamente no Pleroma. Esta é a luz purificadora de Ahab e o porto seguro de Pi.

Falando sobre este Deus Superior, Carl Jung, escrevendo sob o pseudônimo de Basílides, citado em A Relevância Moderna do Gnosticismo, diz: “Deus não está morto. Agora ele vive mais do que nunca. Este é um deus que tu não conheces, pois a humanidade se esqueceu. Nós o chamamos pelo nome ABRAXAS. Abraxas está acima do sol e do mal. É uma probabilidade improvável, realidade irreal.”

A cena da ilha carnívora é outra referência que deve ser analisada com cuidado. Percebe-se ai novamente uma referência ao mundo material malévolo e estranho ao Homem. No entanto, nesta ilha Pi teve a oportunidade de matar sua fome. Não vejo melhor metáfora para esta ilha malévola, mas que durante o dia alimenta seus habitantes, do que o culto à deusa hindu Kali, deusa da vida e da morte, que ostenta em seu pescoço colar de crânios humanos. Ela, como deusa feminina, é um símbolo da Natureza. A ilha é símbolo e metáfora deste mundo ilusório, mas que fornece os elementos, a arena, para a iluminação.

Finalmente, ao citar duas possíveis versões para a história do ocorrido na viagem pelo mar, Pi acaba dizendo que escolheu a que contou porque esta era melhor. Ora, isso só pode ser interpretado esotericamente como uma indicação que não são os fatos concretos que contam, mas a nossa interpretação deles, pois o mundo não tem existência real, sendo apenas um reflexo do Homem, uma ilusão criada por nossa Mente.

No filme, a supervalorização do mar e seus reflexos são uma dica bem clara da intenção de Ang Lee. Além disto, a cena do cetáceo é mais uma referência que liga o filme ao clássico de Melville. A vinculação do filme ao gnosticismo não é tão explícita como em Moby Dick, mas pode ser entendida ao assistir com atenção as dicas dadas pelo próprio enredo e as imagens deslumbrantes.