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Toma lá Poesia Folhetos de Promoção do Concurso Literário Prof.ª Conceição Ludovino 16 2 A 20 2 09

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Page 1: Toma lá Poesia Folhetos de Promoção do Concurso Literário   Prof.ª Conceição Ludovino   16 2 A 20 2 09

Man Ray

POEMA EM LINHA RECTA Nunca conheci quem tivesse levado porrada.Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,Indesculpavelmente sujo,Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,Que tenho sofrido enxovalhos e calado,Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachadoPara fora da possibilidade do soco;Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.Toda a gente que eu conheço e que fala comigoNunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida…Quem me dera ouvir de alguém a voz humanaQue confessasse não um pecado, mas uma infâmia;Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?Ó príncipes, meus irmãos,Arre, estou farto de semideuses!Onde é que há gente no mundo?Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, (1888-1935)

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POVO QUE LAVAS NO RIO(excerto)

Povo que lavas no rio, Que vais às feiras e à tenda, Que talhas com teu machado As tábuas do meu caixão, Pode haver quem te defenda, Quem turve o teu ar sadio, Quem compre o teu chão sagrado, Mas a tua vida, não! (…)

Fui ter à mesa redonda, Bebendo em malga que esconda O beijo, de mão em mão... Água pura, fruto agreste, Fora o vinho que me deste, Mas a tua vida, não! (…)

Aromas de urze e de lama! Dormi com eles na cama... Tive a mesma condição. Bruxas e lobas, estrelas! Tive o dom de conhecê-las... Mas a tua vida, não! Pedro Homem de Mello (1904-1984)

ESPARSA AO DESCONCERTO DO MUNDOOs bons vi sempre passarNo mundo graves tormentos;E para mais me espantar,Os maus vi sempre nadarEm mar de contentamentos.Cuidando alcançar assimO bem tão mal ordenado,Fui mau, mas fui castigado:Assim que só para mim GraffitiAnda o mundo concertado.

Luís Vaz de Camões (c. 1524/5-1580)

DESLUMBRANTE

Deslumbrante,Um jardim no meio de chamas!

O meu coração conhece todas as formas:Um prado para as gazelas,Um mosteiro para os monges,Para dos ídolos chão sagrado,Ka'ba para o peregrino circular,As tábuas da Tora,Os pergaminhos do Corão.

Eu creio no amor;Seja onde for que a sua caravana vira no caminho,Esta é a minha certeza,A minha fé. Ibn Arabi (1165-1240)

ELEGIA

Abandonai-me aqui, meus fiéis companheiros!Deixai-me ao pé do precipício, entre o pântano e o musgo;Segui o vosso caminho! Olhai o mundo aberto.A imensa terra, o céu sublime e grande;Observai, procurai, coleccionai os factos,Balbuciai o mistério da Natureza.

Para mim perdeu-se o Todo, eu mesmo me perdi,Eu, que há bem pouco fui o preferido dos deuses;À prova me puseram, deram-me Pandora,De bens tão rica, mais rica ainda de perigos;Impeliram-me para a boca dadivosa,Separaram-me dela, e assim me aniquilam. Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)

Fot. de Dorothea Lange, Migrant Mother