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Crítica da cultura da convergência: participação ou cooptação? Alex Primo 1 PRIMO, Alex . Crítica da cultura da convergência: participação ou cooptação. In: Elizabeth Bastos Duarte, Maria Lília Dias de Castro. (Org.). Convergências Midiáticas: produção ficcional - RBS TV. Convergências Midiáticas: produção ficcional - RBS TV. Porto Alegre: Sulina, 2010, p. 21-32. Diferentes convergências A ideia de convergência ainda é frequentemente ilustrada por uma TV conectada na internet e com um controle remoto que faculta decisões sobre a programação transmitida por cabo. É assim que muitos ainda definem o que é convergência na mídia. Por outro lado, ver YouTube na televisão e votar na matéria preferida para o programa Fantástico da semana que vem soa como uma utopia já alcançada, um ponto de chegada. Ainda na década de 90, diversos investimentos foram dedicados ao desenvolvimento da chamada WebTV. Muitos modelos de set top boxes, teclados sem fio e browsers adaptados à tela da TV foram colocados no mercado, mas sem sucesso comercial. Hoje, quando se vê o anúncio de uma TV LCD que pode ser conectada na internet via rede wireless, o recurso já não parece novidade. Apesar do alto volume de vendas, alguns preferem apontar a TV como uma tecnologia já morta (quantas vezes o rádio já escutou tal sentença?). Netbooks, smartphones e tablets seriam as melhores tecnologias convergentes para a navegação na rede e assistência de programação audiovisual. Esses pequenos computadores seriam máquinas nativas de produtividade e navegação na rede, diferentemente da televisão, cujos acessórios para tal fim pecam em ergonomia e funcionalidades. Este debate patina em duas frentes: a) parte da premissa que outros meios desaparecerão em benefício de apenas um, “convergente”; b) consider a a questão da convergência apenas em termos tecnicistas. 1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Infomação da UFRGS. Bolsista Produtividade do CNPq.

Crítica da cultura da convergência: participação ou cooptação?

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Page 1: Crítica da cultura da convergência: participação ou cooptação?

Crítica da cultura da convergência:

participação ou cooptação?

Alex Primo1

PRIMO, Alex . Crítica da cultura da convergência: participação ou cooptação. In: Elizabeth Bastos

Duarte, Maria Lília Dias de Castro. (Org.). Convergências Midiáticas: produção ficcional - RBS

TV. Convergências Midiáticas: produção ficcional - RBS TV. Porto Alegre: Sulina, 2010, p. 21-32.

Diferentes convergências

A ideia de convergência ainda é frequentemente ilustrada por uma TV

conectada na internet e com um controle remoto que faculta decisões sobre a

programação transmitida por cabo. É assim que muitos ainda definem o que é

convergência na mídia. Por outro lado, ver YouTube na televisão e votar na matéria

preferida para o programa Fantástico da semana que vem soa como uma utopia já

alcançada, um ponto de chegada.

Ainda na década de 90, diversos investimentos foram dedicados ao

desenvolvimento da chamada WebTV. Muitos modelos de set top boxes, teclados sem

fio e browsers adaptados à tela da TV foram colocados no mercado, mas sem sucesso

comercial. Hoje, quando se vê o anúncio de uma TV LCD que pode ser conectada na

internet via rede wireless, o recurso já não parece novidade.

Apesar do alto volume de vendas, alguns preferem apontar a TV como uma

tecnologia já morta (quantas vezes o rádio já escutou tal sentença?). Netbooks,

smartphones e tablets seriam as melhores tecnologias convergentes para a navegação

na rede e assistência de programação audiovisual. Esses pequenos computadores

seriam máquinas nativas de produtividade e navegação na rede, diferentemente da

televisão, cujos acessórios para tal fim pecam em ergonomia e funcionalidades. Este

debate patina em duas frentes: a) parte da premissa que outros meios desaparecerão

em benefício de apenas um, “convergente”; b) considera a questão da convergência

apenas em termos tecnicistas.

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Infomação da UFRGS. Bolsista Produtividade do

CNPq.

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Com relação ao desaparecimento de outros meios diante de um único “faz

tudo”, capaz e completo — a descrição desse possível fenômeno poderia ser encarado

como um “darwinismo midiático”! —, essa perspectiva não leva em conta a

especificidade de cada meio e as necessidades que cada um supre. Ora, experiências

diferentes são mediadas por tecnologias distintas. É neste sentido que o prazer de

assistir-se a um filme em um grande cinema não pode ser reproduzido em uma sala de

televisão, mesmo que se apague as luzes e se aumente o som. No debate sobre a

possível morte do livro em virtude da chegada dos e-books tampouco se considera

que a interface do livro oferece certas sensações e usos (como manusear páginas,

fazer anotações com maior liberdade e rapidez) que são diferentes dos “similares”

digitais. Finalmente, dispositivos móveis, como tablets (iPad, por exemplo) e

smartphones, conseguem combinar múltiplas funções, próprias de outros artefatos

individuais. Mesmo assim, ainda é melhor ver novelas em uma grande TV e digitar

textos em um computador. Enfim, mesmo que os meios digitais estejam aglutinando

recursos de outros dispositivos, cada um destes ainda mantém superioridade nas

especialidades para os quais foram desenvolvidos. Isso não quer dizer que jornais e

revistas, por exemplo, sairão ilesos da competição. Talvez uma interface digital

consiga proporcionar um uso mais agradável e sofisticado. Mesmo assim, insiste-se

aqui que a ideia de uma interface única e completa não parece resistir ao teste da

realidade.

Como a indústria liderou o debate sobre convergência em termos de

combinação de múltiplas funções de processamento, transmissão e recepção de dados

em um único aparato, o debate sobre convergência logo ganhou um direcionamento

tecnicista. Contudo, na Comunicação e em áreas afins tal enfoque mostra seus limites

ao desconsiderar o que há para além da técnica. De um ponto de vista expressivo e

retórico, no que toca as linguagens e gramáticas midiáticas, deve-se lembrar que uma

inter-relação entre os meios de comunicação já havia sido bem identificada por

McLunhan. Para ele, o “conteúdo” da televisão, por exemplo, é devedor do cinema e

do teatro. É como se os meios andassem “aos pares”. Bolter e Grusin (1999) ampliam

tal discussão através de seu conceito de remediação. Bolter (2001) resume que a

remediação é um processo de homenagem e rivalidade entre tecnologias de

comunicação, tendo em vista que o novo meio incorpora características de seus

antecessores, mas também contribui para a atualização destes últimos. Em outras

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palavras, não apenas as novas mídias são devedoras dos meios que os antecederam,

mas estes também transformam-se em virtude da popularização daqueles.

Ao verificarmos hoje na diagramação de revistas e jornais a inclusão de

elementos gráficos que lembram botões e links da web reconhecemos a pertinência do

conceito de remediação. Da mesma forma, a edição frenética e os planos mais

fechados de filmes das últimas décadas revelam a influência da televisão justamente

no meio que a antecedeu e a inspirou. Bolter (2001) acrescenta que o uso intensivo de

recursos digitais faz a TV muitas vezes parecer-se com páginas da Web. Estes

exemplos de remediação nos mostram que a convergência em termos estéticos e

retóricos, mesmo que ganhando agora nova intensidade, é um fenômeno nativo do

cenário midiático.

É justamente na contramão do viés tecnicisa que o livro “Cultura da

Convergência”, de Jenkins (2009) tornou-se referencial tanto na academia quanto no

mercado. Mais do que a combinação de diversas funções midiáticas, insiste o autor, a

convergência deve ser pensada em termos culturais.

Meu argumento aqui será contra a ideia de que a convergência deve ser

compreendida principalmente como um processo tecnológico que une

múltiplas funções dentro dos mesmos aparelhos. Em vez disso, a

convergência representa uma transformação cultural à medida que

consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer

conexões em meio a conteúdos de mídia dispersos. (Jenkins, 2009, p. 29-

30)

O autor compreende a convergência como o fluxo de conteúdos através de

diferentes plataformas. Além disso, o conceito refere-se também “à cooperação entre

múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos

meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de

entretenimento que desejam” (p. 29).

A convergência também já foi pensada como um diálogo inspirador entre a

teoria do discurso e da literatura com a tecnologia. Landow (1997) observa que as

propostas de teóricos como Derrida, Foucault, Barthes, Bakhtin, entre outros,

concretizam-se no desenvolvimento do hipertexto digital. Ao mesmo tempo que

explicam o borramento das fronteiras entre leitura e escrita, os conceitos e discussões

daqueles autores atuaram como fermento para experiências tecnológicas que

sedimentaram-se como a própria linguagem do hipertexto. É justamente a

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aproximação entre produção e recepção/consumo — uma das questões principais de

Landow — que Jenkins enfoca em seus estudos sobre cultura da convergência.

Nesse contexto, é importante colocar-se em discussão porque o debate sobre

convergência emerge justamente no seio da cibercultura. Uma explicação tecnicista

também parece ser a resposta óbvia para a questão. Contudo, é preciso discutir quais

são as condições socioculturais que justificam a emergência da atenção para o

problema da convergência agora e não antes.

Convergência como fenômeno da cibercultura

A cultura de fãs e suas intervenções na indústria de entretenimento, que

converte-se em uma relação simbiótica —tema central em Jenkins—, é um fenômeno

típico da cibercultura. Mas por que defender tal vinculação se o processo de

convergência não ocorre apenas na internet? Filmes (Guerra nas Estrelas, Matrix),

seriados de televisão (Survivor, Lost, American Idol) e livros populares (Harry Potter)

não são os principais exemplos citados nesse debate? Ou seja, a cultura da

convergência não poderia prescindir dos computadores? Para que se possa responder

a essas questões, é preciso questionar: por que a cultura da convergência acontece e é

reconhecível agora e não antes? Que características epocais estão na base de sua

constituição?

De fato, a cultura da convergência tem demandado que a mídia massiva

tradicional tenha que se reinventar. Por outro lado, essas pressões vêm de um público

acostumado a interagir ativamente, intervir no conteúdo e conversar com seus pares

na rede. Além disso, cria colaborativamente, distribui informações e se engaja em

movimentos coletivos. A rigor, a organização da ação em rede e a produção

cooperada não é invenção da internet. Contudo, é no contexto da cibercultura que

tamanha movimentação ganha fôlego e força. Mesmo que boicotes à programação

televisiva ou a um periódico impresso, por exemplo, ocorressem antes da

popularização da informática, é a conexão global, instantânea e ponto a ponto que faz

emergir novas formas de interação com as mídias e através delas. Já se disse que a

liberdade de expressão existia apenas para os donos de jornais. Com a expansão de

blogs, microblogs (Twitter), podcasts e de serviços digitais para a administração

coletiva da produção e circulação de notícias, pessoas desvinculadas de grandes

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instituições midiáticas ganharam espaço para expressão pública e força de pressão

coletiva.

Jenkins (2009) reconhece a inspiração do conceito de inteligência coletiva de

Lévy e da expressão cultura participativa em sua discussão sobre convergência. Lévy

(1998, p. 28) entende inteligência coletiva como “uma inteligência distribuída por

toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em

uma mobilização efetiva das competências.” (Lévy, 1998, p. 28). O mesmo conceito

também está na base da delimitação da chamada Web 2.0 (O’Reilly, 2005), marcada

pela transição do foco na publicação (a primeira geração da web) para a participação

coletiva. Um grande número de novos serviços online soube aproveitar o ímpeto

produtivo dessa cultura de cooperação na internet, montando negócios a partir de

“conteúdo gerado pelo consumidor” (user-generated content). E é assim que sites

como Digg.com oferecem como principal atrativo — a interagentes e anunciantes —

informações reunidas e/ou criadas por seu público. Com essa estratégia, a técnica de

Crowdsourcing (Howe, 2008) visa oferecer produtos criados e eleitos pelos próprios

consumidores. A sabedoria das multidões (Surowiecki, 2006) está também por trás da

seleção e publicação colaborativa de notícias—processo chamado de gatewatching

(Bruns, 2003) — e do jornalismo participativo (Gillmor, 2005).

A “arquitetura de participação” (O’Reilly, 2005) da Web 2.0, os fóruns de

discussão e os sites de produção colaborativa de fãs (onde circulam fan fictions,

legendas de filmes, traduções de livros, etc.) conferiram maior visibilidade e poder à

já existente cultura de fãs. Antes vistos simplesmente como público fiel e ávidos

consumidores de subprodutos da indústria de entretenimento, os fãs hoje são

reconhecidos como virtuais parceiros dos grandes produtores culturais.

A expressão cultura participativa contrasta com noções mais antigas sobre

a passividade dos espectadores dos meios de comunicação. Em vez de falar

sobre produtores e consumidores de mídia como ocupantes de papéis

separados, podemos agora considerá-los como participantes interagindo de

acordo com um novo conjunto de regras, que nenhum de nós entende por

completo. (Jenkins, 2009, p. 30)

Convicto da força das audiências, Jenkins (2009, p.30) sentencia: “A

inteligência coletiva pode ser vista como uma fonte alternativa de poder midiático”.

Algumas das condições sociotécnicas listadas anteriormente, justificam a

emergência da cultura da convergência nestes tempos. De toda forma, quer-se aqui

alertar que não é simplesmente a popularização da internet que “gera” cultura

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participativa e convergente. Tal relação de causa e efeito aproximar-se-ia de uma

perspectiva de determinismo tecnológico. É também o espírito de época, os

relacionamentos da pós-modernidade, o histórico de atritos com a hegemonia da

indústria cultural, as utopias hippies e acadêmicas presentes na criação da internet,

entres outros aspectos sociais e políticos que fomentam a consolidação dos processos

antes listados. Trata-se, na verdade, de uma relação recursiva. As mídias digitais

foram criadas a partir de demandas sociais e fomentam o fortalecimento dos mesmos

movimentos coletivos. Em outras palavras, a internet criou tanto a cultura

participativa quanto foi criada por ela.

Até o momento buscou-se aqui demonstrar a vinculação da cultura da

convergência à cibercultura e seu caráter indissociável. A partir disso, pretende-se

debater como a estrutura midiática contemporânea se rearticula quando a separação

entre produtores e público é borrada e este último conquista o potencial de livre

expressão de alcance global e em rede (não apenas na rede).

Convergência ou cooptação?

A discussão de Jenkins sobre Cultura da Convergência detalha como as

audiências segmentadas hoje colaboram com a criação e circulação de produtos

culturais da indústria de entretenimento. Mesmo atos “subversivos”, como a

publicação de spoilers2 da série Survivor, contribuíram para o sucesso de suas

diversas temporadas. O estudo do autor sobre as práticas de transmídia em filmes da

trilogia Matrix e das lovemarks3, em seu capítulo sobre o programa American Idol,

mostram claramente como a indústria soube apropriar-se do ideário da participação na

internet.

As utopias libertárias da cibercultura anunciavam que a livre publicação de

conteúdos na rede nos livraria das imposições da grande mídia. Produções

independentes esvaziariam as audiências de programas televisivos “enlatados”. Por

outro lado, produtos culturais industrializados de alcance global (como Lost,

Simpsons, Big Bang Theory) não são necessariamente vistos por todos blogueiros e

tuiteiros como nocivos e um alvo a ser destruído. Eles próprios contribuem com a

2 Informações privilegiadas sobre próximos episódios de seriados ou filmes que são disseminadas na rede e que revelam o desenrolar de uma história ou que participantes serão eliminados em reality shows pré-gravados. 3 Marcas que conseguem conquistar um alto envolvimento emocional de seu público fiel.

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divulgação e até mesmo com o desenvolvimento de tais séries, debatendo seus

enredos na internet, votando em candidatos dos programas e até criando paródias.

É preciso, no entanto, colocar em discussão justamente o que os estudos de

Jenkins preferem ignorar. A saber, as estratégias de poder do grande capital midiático

e suas formas de cooptação das utopias libertárias da cibercultura. Enquanto o tom de

Jenkins soa como uma celebração, deve-se também avaliar como grupos de fãs são

utilizados na reinvenção da produção lucrativa daquelas indústrias. Além disso, cabe

também observar como as coletividades podem resistir e subverter movimentos tão

sutis e efetivos.

Ao ocupar-se da inserção lucrativa dos fãs no processo midiático industrial,

Jenkins deixa de empreender um aprofundamento crítico em como estas novas

estratégias sofisticam o poder do grande capital no contexto midiático. O sucesso do

livro do autor na indústria, suas caras palestras para diversos setores do mercado e sua

consultoria sobre práticas de transmídia revelam seu engajamento e compromisso

com as estratégias mercadológicas da mídia. Enfim, o caráter festivo do trabalho de

Jenkins sobre o que chama de cultura da convergência minimiza a análise crítica dos

aspectos políticos envolvidos.

Não se quer aqui, todavia, abordar a cultura da convergência como mera

imposição daqueles que exercem o controle sobre interagentes supostamente ingênuos

e indefesos. Pelo contrário, as audiências e consumidores sentem prazer em serem

“incluídos” no processo, compreendendo que podem não apenas receber melhores

produtos e serviços como também colaborar para a criação de conteúdos mais

divertidos e focados em seus interesses. Além disso, essa inter-relação oferece uma

promessa de lucros para blogueiros e tuiteiros em sistemas de parceria. Diante de tal

complexidade, a defesa de que vivemos hoje uma sociedade “pós-massiva” não

parece precisa. O grande capital midiático não está minguando, a mídia de massa não

se tornou mero coadjuvante. É verdade que houve uma distensão da produção

midiática, com o ingresso de criadores independentes de blogs, podcasts, vídeos e

músicas alternativas, etc. Por outro lado, esta nova produção que ocorre longe da

mídia de referência não pode ser entendida como mídia radical (Downing, 2004) em

sua totalidade. Mesmo que independentes, uma importante parcela da criação e

conversação na rede colabora com o fortalecimento do grande capital. Logo, não se

pode apenas celebrar a incorporação do fã na indústria de entretenimento, mas

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também avaliar o que há de estratégia persuasiva e como se dá a resistência e

subversão nesse processo.

A participação das audiências na disseminação de spoilers, fan fiction4,

fanzines, fan art5, fansubbing

6 e traduções colaborativas de livros

7 é vista por muitos

como uma forma contemporânea de resistência. A rigor, os processos criativos

espontâneos recém citados são peças ilegais, já que fazem uso de personagens e

histórias protegidas por copyright. As intervenções dos fãs teriam se convertido, pois,

em um ataque à indústria de entretenimento, que cobra caro por seus produtos e não

reconhece a dedicação e fidelidade dos fãs de seus produtos.

Para outros, não se pode falar em resistência quando os fãs estão trabalhando de

graça para a ampliação do alcance dos produtos midiáticos da grande indústria. O

conceito de resistência esvaziou-se, perdeu sua vertente política. Mesmo que as

instituições midiáticas empreendam esforços para proteger seus direitos reservados,

elas cinicamente observam a cultura da convergência, assim como descrita por

Jenkins, como nova forma de lucro. Mesmo que tardiamente, a indústria aprendeu a

aproveitar-se da força de trabalho dos fãs e do mercado ávido por produtos

transmidiáticos. Logo, trata-se de resistência ou cooptação?

Freire Filho (2007, p. 19) resume bem tais críticas:

Tradicionalmente associada a protestos organizados ou insurreições

coletivas de larga-escala contra instituições e ideologias opressivas, a noção de resistência passou a ser freqüentemente relacionada, desde os

anos 1980, com ações mais prosaicas e sutis, gestos menos tipicamente

heróicos da vida cotidiana, não vinculados a derrubadas de regimes

políticos ou mesmo a discursos emancipatórios.

Nesse contexto, o fã passa a ser interpretado como consumidor ativo, “herói do

admirável mundo novo da convergência midiática” (Freire Filho, 2007, p. 98). Por um

lado, a cultura de fãs nos enche de exemplos para o sepultamento definitivo (se é que

ainda não estavam mortas) das perspectivas que viam passividade nos receptores de

produtos culturais massivos. Cada produção do fandom é uma reinterpretação, uma

reinvenção, uma apropriação criativa da mídia.

4 Histórias produzidas por fãs com personagens de seus livros, filmes e seriados prediletos. 5 Ilustrações e outras formas artísticas que tem com tema personagens e cenas de produtos culturais admirados

pelos fãs. 6 Legendas criadas e disseminadas por fãs para filmes sem distribuição nacional. 7 Para uma discussão detalhada desses processos, veja a dissertação de mestrado de Stefanie Silveira, “A cultura da convergência e os fãs de Star Wars: um estudo sobre o Conselho Jedi RS”, defendida no PPGCOM/UFRGS em

março de 2010.

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Por outro lado, ao se juntar ao sistema de produção e promoção, o fã se torna

um parceiro da indústria.

Ninguém ignora, obviamente, a utilidade comercial das redes

transnacionais de fãs para as estruturas corporativas de marketing e

publicidade. As comunidades de entusiastas funcionam como fontes privilegiadas para pesquisas de opinião, exuberantes nichos de mercado e

criadoras de sites e blogs assiduamente visitados, como notícias, resenhas,

discussões e trailers de seriados e filmes já lançados comercialmente ou

ainda em fase de produção. (Freire Filho, 2007, p. 105).

Mas é isso que se deve entender hoje por resistência? Em última instância,

convergência se refere ao discurso do empresário e não do cidadão? Consumer-

generated content é sinônimo de exploração de trabalho não-remunerado?

Como se vê, o tema não é fácil. Se antes conclusões dicotômicas podiam fazer

sentido, a atual estrutura midiática complexificou-se de tal forma que não é possível

apontar mocinhos e bandidos. Com o borramento da fronteira entre produção e

consumo, com a liberdade de expressão e circulação de informações na rede, com a

simplificação das ferramentas de produção e com a popularização dos sites de redes

sociais pode-se reconhecer um empoderamento das pessoas desvinculadas de

instituições midiáticas.

Em outros tempos, a relação da grande mídia com seus públicos foi descrita

através de estratégias de controle e alienação. Na cibercultura, não apenas os meios de

consumo de produtos culturais multiplicaram-se, mas também os sistemas de troca

entre indústria e audiências transformaram-se.

A retórica da revolução digital deduzia que a nova mídia iria destronar a

antiga, mas o YouTube exemplifica uma cultura da convergência (...) com

suas interações complexas e colaborações entre a mídia corporativa e o

público (Burgess e Green, 2009, p. 148)

Em um cenário interdependente, o público não apenas consome produtos

culturais da indústria, mas pode também lucrar com eles. Blogs independentes sobre

cultura geek, por exemplo, podem render dividendos aos seus produtores através de

anúncios do Google Adsense e sistemas de parcerias com lojas online. A produção de

fan fictions e fan films pode divulgar as habilidades criativas dos fãs e viabilizar

futuras contratações. A participação espontânea pode simplesmente render prazer ou

acesso a áreas restritas dos sites de grandes estúdios de cinema. Para este público, este

é um pagamento suficiente.

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De um ponto de vista crítico, contudo, esses tipos de colaboração não

apresentam nada de revolucionário, já que apenas reafirmam o poder e protagonismo

do grande capital. A incorporação de fãs, por exemplo, no processo de promoção de

filmes, livros e seriados fortalece a distribuição de produtos culturais e viabiliza a

venda de subprodutos midiáticos. Segundo as utopias da cibercultura, a produção

independente enfraqueceria o interesse por produtos globais à medida que a demanda

por criações locais e segmentadas ganharia primazia. De fato, os mercados de nicho

desenvolveram-se de forma surpreendente8, mas a grande mídia ainda mostra-se

hegemônica. Curiosamente, mesmo blogs e sites de jornalismo participativo

dependem de sites noticiosos de corporações de mídia tradicionais. O que se vê,

portanto, é uma maior interdependência mas não um jogo de soma zero, onde apenas

um lado pode ganhar.

Quer-se evidentemente reconhecer o poder heurístico das pesquisas de Jenkins.

Por outro lado, entende-se que novos estudos são necessários para compreender-se a

complexidade da estrutura midiática contemporânea, suas contradições e tensões. Não

basta analisar apenas os movimentos que fazem convergir interesses da indústria e o

prazer das audiências. Como Jenkins foca seus esforços de pesquisa no estudo da

cultura de fãs, não surpreende que ele acompanhe as estratégias da grande mídia. Mas

outras investigações precisam observar como coletivos fazem uso de redes sociais na

internet para reagir, resistir, minar e subverter os empreendimentos do capital

midiático. Movimentos de software livre e pirataria e o uso de blogs e Twitter em

regimes ditatoriais são alguns exemplos de resistência política de notoriedade na

cibercultura9.

Enfim, este capítulo buscou mostrar os problemas que emergem a partir do

reconhecimento de uma cultura de convergência. Não pretendia-se aqui elencar

respostas, mas demonstrar a complexidade da questão. De toda forma, a intenção

deste texto foi de alertar que o debate não pode resumir-se à celebração da

convergência dos interesses da grande mídia com os desejos de consumo de fãs. Esse

relacionamento — relevante e inovador, não há dúvida — deve ser visto como apenas

um entre tantos fenômenos da cibercultura e não como aquele que descreve e resume

nosso tempo.

8 Ver a discussão de Chris Anderson (2006) sobre o poder da “cauda longa”. 9 Muito dessas disputas de poder no contexto da cibercultura é discutido por Hardt e Negri (2004) em seus estudos

sobre o conceito de multidão.

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