42
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5 a REGIÃO EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) JUIZ(ÍZA) RELATOR(A) E DEMAIS MEMBROS DA 1 a TURMA DO EGRÉGIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5 a REGIÃO. Parecer n o : 2.033/2009 (Par/PRR5/WS/1.264/2009) Apelação criminal n o : 6.725-PE (processo n o 2006.83.00.004979-9) Processo originário: ação penal pública n o 2006.83.00.004979-9 13 a Vara da Seção Judiciária de Pernambuco Órgão julgador: 1 a Turma Relator: Juiz FRANCISCO DE QUEIROZ BEZERRA CAVALCANTI Apelantes: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL e GUSTAVO COSTA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO Apelados: OS MESMOS PENAL. OMISSÃO DE RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA (ART. 168-A, § 1 o , I, DO CÓDIGO PENAL). ALEGAÇÃO DE DIFICULDADES ECONÔMICAS (INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA). NECESSIDADE DE PROVA DOCUMENTAL ROBUSTA. ÔNUS DO RÉU (CPP, ART. 156). AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA (NECESSIDADE DE DOLO ESPECÍFICO). CRIME QUE SE CONSUMA COM DOLO GENÉRICO. DOSIMETRIA DA PENA. CONSEQUÊNCIAS DOS CRIMES E AUMENTO POR CONTINUIDADE DELITIVA. O conjunto probatório demonstra que o acusado foi o responsável pela sonegação de repasse das contribuições previdenciárias devidas pela empresa investigada. O crime do art. 168-A do Código Penal não exige dolo específico. É delito omissivo próprio, e basta, para sua configuração, que o agente deixe de recolher, na época legalmente prevista, as contribuições devidas à previdência social. Entendimento pacificado no Superior Tribunal de Justiça. R. Frei Matias Teves, 65, Paissandu – 50070-450 Recife (PE) Tel.: (081) 3081-9913 / 9914 – Fax: 3081-9994 – E-mail: [email protected]

Íntegra da manifestação da PRR-5

Embed Size (px)

DESCRIPTION

 

Citation preview

Page 1: Íntegra da manifestação da PRR-5

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5a REGIÃO

EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) JUIZ(ÍZA) RELATOR(A) E DEMAIS MEMBROS DA 1a TURMA DO EGRÉGIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5a REGIÃO.

Parecer no: 2.033/2009 (Par/PRR5/WS/1.264/2009)

Apelação criminal no: 6.725-PE (processo no 2006.83.00.004979-9)Processo originário: ação penal pública no 2006.83.00.004979-9

13a Vara da Seção Judiciária de PernambucoÓrgão julgador: 1a Turma Relator: Juiz FRANCISCO DE QUEIROZ BEZERRA CAVALCANTI

Apelantes: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL e GUSTAVO COSTA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO

Apelados: OS MESMOS

PENAL. OMISSÃO DE RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA (ART. 168-A, § 1o, I, DO CÓDIGO PENAL). ALEGAÇÃO DE DIFICULDADES ECONÔMICAS (INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA). NECESSIDADE DE PROVA DOCUMENTAL ROBUSTA. ÔNUS DO RÉU (CPP, ART. 156). AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA (NECESSIDADE DE DOLO ESPECÍFICO). CRIME QUE SE CONSUMA COM DOLO GENÉRICO. DOSIMETRIA DA PENA. CONSEQUÊNCIAS DOS CRIMES E AUMENTO POR CONTINUIDADE DELITIVA.

O conjunto probatório demonstra que o acusado foi o responsável pela sonegação de repasse das contribuições previdenciárias devidas pela empresa investigada.

O crime do art. 168-A do Código Penal não exige dolo específico. É delito omissivo próprio, e basta, para sua configuração, que o agente deixe de recolher, na época legalmente prevista, as contribuições devidas à previdência social. Entendimento pacificado no Superior Tribunal de Justiça.

A alegação de dificuldades econômicas da empresa, como fundamento para justificar o não-recolhimento da contribuição previdenciária deduzida do trabalhador, deve ser objeto de prova robusta, cujo ônus é do réu (art. 156, primeira parte, do CPP).

Os elementos dos autos emprestam plena consistência à pleiteada reforma parcial da sentença, para agravar as penas imputadas em

R. Frei Matias Teves, 65, Paissandu – 50070-450 Recife (PE)Tel.: (081) 3081-9913 / 9914 – Fax: 3081-9994 – E-mail: [email protected]

Page 2: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

face da elevada culpabilidade do acusado e das graves consequências dos delitos.

Se o réu praticou quase duas dezenas de condutas criminosas, o acréscimo à pena-base do art. 71, caput, do Código Penal, deve ser o máximo. Precedentes.

Parecer pelo provimento do recurso da acusação e pelo não-provimento da apelação da defesa.

I. RELATÓRIO

1. Cuidam os autos de duas apelações criminais contra a sentença de folhas 325-336, volume 2. Esta julgou procedente a denúncia de fls. 3-4 (vol. 1) e condenou o réu, GUSTAVO COSTA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO, pela prática do delito previsto no art. 168-A, § 1o, inciso I, do Código Penal (CP), em continuidade, à pena de quatro anos de reclusão, cumulada com o pagamento de 180 dias-multa, cada um à base de um salário mínimo vigente na época do último crime da cadeia continuada. Nos termos do art. 44 do CP, substituiu a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, consistentes na prestação de serviços a entidade pública, à razão de uma hora por dia de condenação, e em prestação pecuniária de 20 salários mínimos em favor de entidade pública ou privada de destinação social.

2. A Procuradoria da República em Pernambuco (PRPE) apelou (vol. 2, fls. 338-347) para reformar parcialmente a sentença e majorar a pena-base, o acréscimo da continuidade delitiva e o valor da prestação pecuniária. O réu apresentou contrarrazões (vol. 2, fls. 357-365).

3. A apelação do réu negou a autoria, alegou ausência de dolo, inexigibilidade de conduta diversa em face de dificuldades econômicas da empresa INTERIORANA SERVIÇOS E CONSTRUÇÕES LTDA. e pleiteou a reforma da sentença a fim de ser absolvido ou ter a pena diminuída (vol. 2, fls. 352 e 379-408). O MPF contra-arrazoou nas fls. 418-437, vol. 2.

4. As apelações foram recebidas em seus efeitos regulares (vol. 2, fl. 353).

5. Após a remessa dos autos a esse Tribunal, vieram para manifestação do Ministério Público Federal.

II. DISCUSSÃO

II.1. REQUISITOS DOS RECURSOS

6. Preliminarmente, o recurso da PRPE é tempestivo. Em se tratando de recurso interposto pelo Ministério Público Federal, como se

ACr 6.725-PE 2

Page 3: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

sabe, a intimação deve ser pessoal e mediante a remessa dos autos, na forma do art. 18, II, h, da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar no 75, de 20 de maio de 1993), segundo correto entendimento do Plenário do Supremo Tribunal Federal.1 A intimação ocorreu em 3 de fevereiro de 2009 (vol. 2, fl. 337). O recurso foi interposto em 4 de janeiro (fl. 338, vol. 2). Obedeceu ao prazo de cinco dias do art. 593 do Código de Processo Penal (CPP).

7. Também o recurso do réu é tempestivo. A intimação ocorreu, por publicação, em 10 de fevereiro de 2009 (vol. 2, fl. 348). O apelo foi interposto no mesmo dia (vol. 2, fl. 352). As razões, apresentadas em 9 de junho de 2009 (fl. 379), no prazo de oito dias do art. 600, caput, do CPP (certidão de fl. 377). Houve sucumbência, os recorrentes são partes legítimas, os recursos são legalmente adequados e não há fato impeditivo do direito de recorrer. Em se tratando de apelação contra sentença condenatória, a adequação do recurso do acusado decorre do art. 593, I, do CPP.

II.2. MÉRITO: APELAÇÃO DO RÉU

8. Nos crimes previdenciários, a persecução penal baseia-se na representação fiscal formulada pelo Instituto Nacional do Seguro Social. É com base nos documentos originados da fiscalização da autarquia previdenciária – os quais se revestem de presunção juris tantum de legitimidade e veracidade –, que o MP forma sua opinião e o Judiciário, o seu convencimento inicial acerca dos indícios da autoria e da materialidade, que propiciarão o recebimento da denúncia. No decorrer da instrução, cabe ao(s) denunciado(s) produzir a prova contrária, por força do art. 156 do Código de Processo Penal.

9. No caso, a denúncia tomou por base a representação fiscal de fls. 5-144 (anexo) e a notificação fiscal de lançamento de débito (NFLD) n o

35.694.217-1, que demonstram a prática do crime descrito no art. 168-A do CP (fl. 8 do anexo).

10. Consoante explicita a denúncia, não obstante o apelante haja descontado da remuneração de seus empregados valores destinados à Previdência Social, não repassou a quantia aos cofres do INSS, o que configura o não-recolhimento da contribuição previdenciária. A ação fiscal do INSS apurou rigorosamente a supressão dos tributos que o recorrente efetuou. Os valores sonegados mês a mês encontram-se discriminados no discriminativo analítico de débito (DAD) nas fls. 11-14 do anexo. Portanto, é patente a presença de provas efetivas de supressão ou ausência de repasse de tributos.

11. A conduta delituosa autoriza o INSS a apurar os valores devidos a título de contribuição previdenciária por meios diretos ou indiretos, tais como a análise contábil, a análise comparativa de mercado, 1 Supremo Tribunal Federal. Plenário. Habeas corpus no 83.255/SP. Relator: Ministro Marco Aurélio. 5 nov. 2003, maioria. Diário da Justiça, seção 1, 12 mar. 2004, p. 38.

ACr 6.725-PE 3

Page 4: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

a prova testemunhal etc. Dessa forma, a contribuição foi lançada e, consequentemente, resultou a constatação da efetiva supressão ou redução dos valores, em detrimento da Previdência. A sentença não merece reforma, porquanto, da conduta do recorrente, resultou benefício à pessoa jurídica administrada por ele, em detrimento da seguridade social.

12. A autoria também foi objeto de irrefutável prova. Embora o acusado negue o exercício de poder de gerência no período investigado, os documentos de fls. 37-64 do anexo demonstram que ele era efetivamente, ao lado do sócio falecido (certidão de óbito na fl. 149 do apenso), responsável pela administração da sociedade. Nesse sentido, convém citar os judiciosos argumentos contidos nas contrarrazões ministeriais, in verbis (fls. 421-422, vol. 2):

[...] as atribuições desempenhadas pelo acusado na ALCO (Associação Brasileira da Indústria do Álcool), como bem reconheceu o juízo a quo à fl. 328, não eram incompatíveis, em absoluto, com a manutenção da gestão da Interiorana Serviços e Construções Ltda. Ao revés, o desempenho das duas funções, concomitantemente, colocava o apelante em posição privilegiada ao auferir-lhe conhecimentos a respeito da situação das indústrias do setor. Assim, a alegação trazida pela defesa no sentido de que o réu havia se afastado da empresa para trabalhar na ALCO não subsiste.

Observe-se que os documentos de fls. 37/64, acostados no volume anexo (verde), evidenciam que o apelante, em nenhum momento, no período de dezembro de 2002 a abril de 2005, se afastou da condição de sócio-gerente da empresa em questão.

Em relação à afirmação do acusado de que teria residido na Itália a partir de 2003 com o intuito de abrir o mercado para as empresas sucro-alcooleiras nacionais, mantendo-se, assim, afastado da gerência da empresa em comento, ressalta-se, mais uma vez, que, ainda que considerando a juntada das novas cópias do passaporte do apelante às fls. 410/417, apenas se evidencia que ele esteve no exterior por diversas vezes entre os anos de 2003 a 2007, bem como possuía um visto de residência eletiva pelo breve período de 08/06/2003 a 12/02/2004, que não abrange nem a metade do tempo de sonegação previdenciária tratado na peça acusatória inicial.

[...]

No tocante à colheita da prova testemunhal arrolada pela defesa, o apelante afirma equivocadamente que o Órgão Ministerial distorceu o sentido da mesma. Ao contrário do alegado, verifica-se a forma evasiva e a contradição que caracterizou os depoimentos prestados pelas testemunhas Joel de Holanda Santana e Roberto Cézar de Holanda Cavalcanti. Através desses depoimentos não se pode concluir, com segurança, o efetivo afastamento do recorrente da administração da empresa no transcorrer do período de 1995 até o final de 2004.

No entanto, o depoimento prestado pela testemunha Gabriel Ribeiro de Castro Filho, às fls. 197/198, apesar de rechaçado intempestivamente pelo réu sob o argumento de existência de erro de digitação na ata da audiência, ao registrar o ano de 2000 ao invés de 2004, constitui um

ACr 6.725-PE 4

Page 5: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

importante meio de prova apto a inferir que a empresa estava, de fato, sob a administração do réu a partir do ano de 2000.

[...]

Desse modo, ao contrário do que alega a defesa, não se vislumbra erro material na assentada da testemunha em referência, tendo em vista a consonância do que foi por ela afirmado. Ademais, estava presente ao ato o próprio advogado [constituído] de defesa, que assinou o termo de audiência deprecada, sem qualquer registro ou protesto.

Assim, ante os arrazoamentos acima expostos, conclui-se que a alegação do réu de que não participou da conduta delituosa em tela, pois, à época das apropriações indébitas previdenciárias, se encontrava afastado da empresa, não merece credibilidade.

13. Aliás, a própria testemunha ROBERTO CEZAR DE HOLANDA CAVALCANTI FILHO, sucessor do acusado à frente da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA DE ÁLCOOL (ALCO), esclareceu que o réu foi presidente dela de 1996 a 2002 (vol. 1, fl. 156), ao passo que o período do não-recolhimento objeto da denúncia vai de abril de 2003 a novembro de 2004. E, de qualquer modo, como já se apontou, nada prova que a presidência da entidade fosse incompatível com a direção da usina.

14. De forma semelhante, a testemunha GABRIEL RIBEIRO DE CASTRO FILHO, fornecedor da USINA ESTRELIANA havia 25 anos, esclareceu não só o período de afastamento do réu como a superação das alegadas dificuldades econômicas na época do não-recolhimento, um e outras anteriores ao intervalo que interessa a este processo, ao dizer (vol. 1, fls. 197-198, sic):

[...] Que essa crise [econômica] se arrastou a mais ou menos até o ano 2000, sendo que nesse período o acusado GUSTAVO MARANHÃO permanecia afastado da Usina. [...] que o acusado GUSTAVO desligou-se da ALCO e retornou as suas atividades junto à Usina a partir do ano 2000, aproximadamente, sendo que o pior da crise há havia passado, de modo que não mais houve atraso no pagamento dos fornecedores e dos empregados. [...]

15. Esses depoimentos, nesses pontos, ao ver desta Procuradoria Regional da República, são mais confiáveis e devem ser acatados em lugar das informações ofertadas por outras testemunhas, que transmitem a percepção de pretender beneficiar o acusado.

16. Os fatos, portanto, bem como a manutenção do poder de mando do réu sobre a empresa sonegadora, estão vastamente comprovados.

17. Outro fundamento do recurso é o de que estaria ausente o elemento subjetivo necessário à materialização do delito, isto é, o dolo específico. Consoante a alegação, para configurar-se o crime, seria necessária a prova do dolo específico do agente de apropriar-se dos valores não-recolhidos ao INSS.

18. Antes da entrada em vigor da legislação atual, condutas como a descrita na denúncia eram punidas pelo art. 95, letra d, §§ 1o e 3o, da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, cuja pena, por força do § 1o do mesmo

ACr 6.725-PE 5

Page 6: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

dispositivo, era a do art. 5o da Lei no 7.492, de 16 de junho de 1986 (Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), isto é, dois a seis anos de reclusão.

19. Adveio então a Lei no 9.983, de 14 de julho de 2000, que alterou o Código Penal e introduziu-lhe o art. 168-A, com a seguinte redação:

Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

§ 1o. Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;

II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;

III – pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.

§ 2o. É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.

§ 3o. É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que:

I – tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou

II – o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.

20. A nova definição jurídica do crime é, na essência, exatamente a mesma da lei anterior, ou seja, não repassar (= não recolher) à previdência social (que integra a seguridade social) contribuição recolhida (= arrecadada) do contribuinte (= segurado ou público). A diferença relevante entre a lei atual e a pretérita é somente a apenação, que foi reduzida de dois a seis anos de reclusão para dois a cinco. A novel legislação é mais favorável ao réu.

21. O crime do art. 95, d, consistia no simples não-recolhimento da contribuição descontada de empregados, prestadores de serviço etc. Dizer que se trata de espécie de apropriação indébita, data venia, configura antigo erro de muitos intérpretes dessa figura penal. Basta ver a formulação estrutural do tipo penal na lei. Veja-se o art. 168, caput, do Código Penal – que é a verdadeira apropriação indébita, em sua forma básica:

Art. 168. Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:

ACr 6.725-PE 6

Page 7: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

22. Para agravar a confusão, em 17 de julho de 2000 foi publicada no Diário Oficial a já citada Lei no 9.983/2000, que procurou sistematizar alguns dos crimes contra a seguridade social, mas inseriu no Código Penal a equivocada rubrica “apropriação indébita previdenciária”, logo após o art. 168.

23. Não obstante a Lei no 9.983/2000 haja decidido nomear o delito de “apropriação indébita previdenciária”, é indispensável não olvidar que o regime jurídico de cada tipo penal não decorre do nome que a lei lhe dá, mas do tratamento estrutural que a lei lhe haja dispensado, em especial dos elementos objetivos e subjetivos que o legislador reuniu para estabelecer a proteção de determinado bem jurídico. O título, isto é, o simples nomen juris que o legislador haja escolhido para identificar o crime, é absolutamente secundário. O título que a lei dá a alguns tipos penais, aliás, não é de modo algum imprescindível, pois muitas figuras penais nem têm denominação específica. Se o legislador, em um rompante de desvario, passar a denominar os crimes de roubo como furto qualificado, isso, por si só, de modo algum bastará a modificar o tratamento jurídico desses delitos, desde que não haja mudanças em seus elementos estruturais.

24. Da mesma forma, se o legislador, por má técnica legislativa ou penal, denomina como apropriação indébita previdenciária um crime omissivo cuja estrutura típica difere ontologicamente do delito de apropriação indébita propriamente dita, o mero título não pode prevalecer sobre a estrutura do tipo penal. Esta é que deve ser levada em consideração na interpretação–aplicação da lei.

25. Com efeito, deve-se concluir que a denominação do novo art. 168-A como apropriação indébita previdenciária não é bastante a alterar a estrutura do tipo penal e a transmutá-lo em uma apropriação indébita, nos moldes do art. 168 do Código. De fato, várias diferenças separam um e outro crimes: (I) em primeiro lugar – e esta é diferença essencial –, a apropriação indébita é crime comissivo (“apropriar-se de coisa alheia”), ao passo que a figura do art. 168-A, caput (exatamente como era a do pretérito art. 95, d) constitui crime omissivo (“deixar de recolher”, “deixar de repassar”); (II) como decorrência dessa distinta natureza, o dolo que se exige na apropriação indébita é, realmente, o de assenhorear-se da coisa, o de tê-la como dono (o animus rem sibi habendi), enquanto que no não-recolhimento de contribuição arrecadada, a vontade livre e consciente do agente dirige-se simplesmente ao descumprimento do dever legal de recolher a contribuição no prazo; (III) não cabe falar em inversão de posse no delito de não-recolhimento, pois essa circunstância não está, de modo algum, prevista no tipo penal, seja explícita, seja implicitamente; ( IV) o crime previdenciário é omissivo próprio, pois se contenta a lei com descrever a omissão, e de mera conduta, pois não exige a produção de resultado naturalístico, ao passo que a apropriação indébita pressupõe um tal resultado, ou seja, a apropriação, a inversão do ânimo da posse ou detenção, a destinação da coisa de maneira incompatível com a precariedade da posse ou detenção.

ACr 6.725-PE 7

Page 8: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

26. Na verdade, se a conduta em questão, a que se refere a denúncia, fosse uma simples apropriação indébita, já seria punida pelo art. 168 do Código Penal, e, portanto, sequer haveria razão para existir apenação autônoma, como havia na Lei no 8.212/91, e existe, agora, no art. 168-A. Bastaria o próprio art. 168 do CP, em sua forma básica. E, como se sabe, em princípio não se deve interpretar a lei como contendo termos inúteis.

27. A interpretação histórica do Direito Penal ampara a assertiva do parágrafo anterior, pois o art. 168 integra a Parte Especial do Código Penal desde 1940 (o CP vigente foi promulgado por meio do Decreto-lei no

2.848, de 7 de dezembro de 1940). Para demonstrar que a sonegação de contribuição previdenciária não é simplesmente uma forma de apropriação indébita, basta ver que o legislador sempre a tipificou em normas especiais, desde pelo menos o ano de 1937. Com efeito, o art. 5o do Decreto-lei no 65, de 14 de dezembro de 1937, já dispunha:2

Art. 5o. O empregador que retiver as contribuições recolhidas de seus empregados e não as recolher na época própria incorrerá nas penas do art. 331, no 2, da Consolidação das Leis Penais, sem prejuízo das demais sanções estabelecidas neste decreto-lei.

28. Por outro lado, para o crime do art. 168-A, o dolo não é o de assenhorear-se de coisa alheia, mas o simples dolo dito genérico, consistente na intenção de descontar da remuneração dos trabalhadores as quantias legalmente destinadas à previdência e de simplesmente deixar de repassá-las à autarquia federal.

29. O Procurador Regional da República AMIR JOSÉ FINOCCHIARO SARTI, em interessante trabalho publicado na Revista da Procuradoria-Geral da República acerca do tema, sustenta, com integral razão, acerca do elemento subjetivo do delito, o seguinte:

[...] Certo, a ausência de dolo – elemento subjetivo do tipo, segundo a teoria finalista da ação, atualmente prestigiada entre os que cultivam a ciência penal – afastando a tipicidade, exclui o crime. Mas, na medida que o mesmo dolo se caracteriza pela consciência (representação) e pela vontade de realizar a conduta típica, abstraindo-se qualquer elemento valorativo da atuação do agente, parece muito difícil, senão impossível, sustentar, pelo menos na generalidade dos casos, que não é dolosa, no sentido finalístico, e portanto não é típica, a omissão de quem, devendo fazê-lo, deixa de recolher, no prazo legal, tributo ou contribuição que cobrou e que deveria recolher aos cofres públicos. [...]

30. Por conseguinte, como dito, o crime de que estes autos tratam é omissivo próprio; basta para a configuração dele que o agente deixe de recolher, na época legalmente prevista, as contribuições devidas à previdência social; pouco importa se pretendia ou não apropriar-se dos valores dessas contribuições.

2 Nesse sentido, reconhecendo a existência da legislação especial, cf. FRANCO, Alberto Silva e STOCO, Rui (coords.). Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. vol. 2 (Parte Especial), p. 2.776, nota de doutrina ao art. 168-A.

ACr 6.725-PE 8

Page 9: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

31. Não é outro o entendimento encontrável em acórdãos dos egrégios Tribunais Regionais Federais, há mais de uma década, como se vê a seguir (ressaltando-se que as referências ao art. 95, d, da Lei no

8.212/91, são integralmente aplicáveis ao atual art. 168-A do CP, pois, como se demonstrou, os dois tipos são estruturalmente equivalentes):

PENAL. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL. NÃO RECOLHIMENTO. CRIME. LEI No 8.212, DE 24.07.1991, ART. 95, LETRA D. ESTADO DE NECESSIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. DOLO.

1. Constitui crime deixar de recolher, na época própria, contribuição devida à Seguridade Social e arrecadada do segurado – Lei no 8.212, de 1991, art. 95, letra d. O dolo, na hipótese, está na vontade consciente de não proceder [a]o recolhimento da contribuição, descontada do empregado.

2. Não se pode considerar em estado de necessidade quem alega apenas dificuldades econômicas e por um período longo. Estado de necessidade não é estado de precisão.3

PENAL. OMISSÃO DE RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS. DESCONTO. DIFICULDADES FINANCEIRAS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA. PARCELAMENTO.

I. Pelo sentido da lei, a empresa-contribuinte não pode pagar salários sem que deles desconte o valor relativo às contribuições previdenciárias, eis que não pagando o valor total prefere o pagamento parcial que sacrifica a Previdência.

II. Não se aplica a justificadora de dificuldades financeiras da empresa se não há a sua efetiva comprovação, em situações especialíssimas, através de documentos contábeis pertinentes e da época da omissão de recolhimentos.

III. O crime em questão se perfaz com o dolo genérico consistente na vontade livre e consciente de descontar e deixar de recolher as contribuições, não dependendo do animus de apropriar-se.

IV. O art. 34 da Lei no 9.249/95 não incide sobre parcelamento rescindido por falta de pagamento.4

Penal. Falta de recolhimento de contribuições previdenciárias.

1. A conduta contida no art. 95, d, da Lei no 8.212/91 é daquelas contidas no tipo dos crimes omissivos próprios, centrada no verbo nuclear “deixar de recolher”. O dolo é o genérico e está configurado na vontade livre e consciente de descontar dos salários dos empregados os valores correspondentes às contribuições previdenciárias e deixar de recolhê-las à Previdência Social.

2. Autoria e materialidade comprovadas. Sentença condenatória confirmada.5

PROCESSO PENAL. PENAL. APELO EM LIBERDADE. RESPONSABILIDADE PENAL. PREPONDERÂNCIA DO REAL SOBRE O FORMAL. QUITAÇÃO DO DÉBITO APÓS A DENÚNCIA.

3 TRF-1a Região. 3a T. ACr no 95.01.14422-4-BA. Rel.: Juiz Tourinho Neto. 28 ago. 1995, maioria. DJ 2, 9 out. 1995, p. 68.239.4 TRF-4a Região. 1a T. ACr no 96.04.52181-0-PR. Rel.: Juiz Gilson Dipp. 29 abr. 1997, un. DJ 2, 11 jun. 1997, p. 42.837.5 TRF-4a Região. 2a T. ACr no 96.04.12305-0-SC. Rel.: Juíza Tânia Escobar. Un. DJ 2, 8 out. 1997, p. 83.303.

ACr 6.725-PE 9

Page 10: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

DOLO. DIFICULDADES FINANCEIRAS. DESNECESSIDADE DE LEI COMPLEMENTAR. PRISÃO POR DÍVIDA CIVIL. NÃO-CONFIGURAÇÃO. PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA.

I. Tendo os réus respondido a todo o processo em liberdade e não havendo fato novo a ensejar a custódia preventiva, mantém-se a permissão para que apelem soltos.

II. A responsabilização penal decorre do real poder de decisão e direcionamento dos negócios, tornando particularmente irrelevante a sua não-emersão do contrato social e fazendo preponderar o real sobre o formal.

III. A quitação do débito posteriormente ao recebimento da denúncia só pode ser considerada para fins de dosimetria da pena, não ensejando a aplicação do art. 34, da Lei no 9.249/95.

IV. O dolo independe da intenção específica de auferir proveito, pois o que se tutela não é a apropriação das importâncias, mas o seu regular recolhimento.

V. O contribuinte só se exime do recolhimento das contribuições de lei em prejuízo da receita pública em casos excepcionalíssimos, quando a prova documental é incontestável e amplamente demonstrativa das dificuldades financeiras da empresa.

VI. A Lei no 8.212/91 fundamenta-se no art. 5o, inc. XXXIX, da CF, e não no seu art. 146, inc. III, sendo descabida, portanto, a alegação de necessidade de lei complementar.

VII. A eleição da sonegação fiscal como ilícito penal, pelo legislador, não afronta o Pacto de São José, pois este proíbe prisão por dívida civil, o que não se cogita na conduta omissiva típica em questão.6

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. FALTA DE RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.

1. Não é inepta a denúncia que enseja o exercício do contraditório e da defesa plena, não padecendo de vício aquela peça por não ter incluído os demais sócios da empresa, como autores, quando os autos evidenciam que o acusado sempre participou da administração social.

2. O inquérito policial pode ser dispensado, a critério do Ministério Público Federal, especialmente porque, nos delitos à semelhança do presente, a denúncia pode ter por base o procedimento administrativo-fiscal.

3. Na infração descrita no art. 95, alínea d, da Lei no 8.212/91, sendo típica dos crimes omissivos próprios, não se exigindo qualquer resultado naturalístico, o dolo é o genérico e está configurado na vontade livre e consciente de descontar dos salários dos empregados os valores correspondentes à contribuição previdenciária e deixar de recolhê-las à Previdência Social, sendo desnecessário demonstrar a inversão da posse ou o animus rem sibi habendi, já que não são elementos subjetivos do tipo. Não se há de falar, portanto, em responsabilidade objetiva dos sócios da empresa denunciados.

5. A via estreita do habeas corpus não se presta ao aprofundamento da matéria de mérito atinente à autoria ou a culpabilidade dos pacientes.

6 TRF-4a Região. 1a T. ACr no 96.04.53489-0-SC. Rel.: Juiz Gilson Dipp. Un. DJ 15 out. 1997, p. 85.690.

ACr 6.725-PE 10

Page 11: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

6. Denegada a ordem, por maioria.7

PENAL. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL. NÃO RECOLHIMENTO. CRIME. LEI No 8.212, DE 24.07.1991, ART. 95, LETRA D. ESTADO DE NECESSIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. DOLO.

1. Constitui crime deixar de recolher, na época própria, contribuição devida à Seguridade Social e arrecadada do segurado – Lei no 8.212, de 1991, art. 95, letra d. O dolo, na hipótese, está na vontade consciente de não proceder [a]o recolhimento da contribuição, descontada do empregado.

2. Não se pode considerar em estado de necessidade quem alega apenas dificuldades econômicas e por um período longo. Estado de necessidade não é estado de precisão.8

Penal. Omissão de recolhimento de contribuições sociais. Desconto. Dificuldades financeiras. Apropriação indébita. Parcelamento.

I. Pelo sentido da lei, a empresa-contribuinte não pode pagar salários sem que deles desconte o valor relativo às contribuições previdenciárias, eis que não pagando o valor total prefere o pagamento parcial que sacrifica a Previdência.

II. Não se aplica a justificadora de dificuldades financeiras da empresa se não há a sua efetiva comprovação, em situações especialíssimas, através de documentos contábeis pertinentes e da época da omissão de recolhimentos.

III. O crime em questão se perfaz com o dolo genérico consistente na vontade livre e consciente de descontar e deixar de recolher as contribuições, não dependendo do animus de apropriar-se.

IV. O art. 34 da Lei no 9.249/95 não incide sobre parcelamento rescindido por falta de pagamento.9

32. No mesmo sentido é o entendimento predominante no egrégio Superior Tribunal de Justiça, consoante se demonstra pelos julgados a seguir:

PROCESSUAL PENAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADA. SÚMULA No 284 DO STF. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INOCORRÊNCIA. REQUISITOS DO ART. 41, DO CPP, PREENCHIDOS. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.

[...]

2. Não há se falar em inépcia da denúncia, quando esta descreve, de forma satisfatória e objetiva, os elementos necessários à instauração da ação penal, nos termos do disposto no art. 41, do CPP.

3. Ademais, nos crimes societários é dispensável a descrição minuciosa e individualizada da conduta de cada acusado, bastando, para tanto, que ela narre a conduta delituosa de forma a possibilitar o exercício da ampla defesa. Precedentes desta Corte.

7 TRF-4a Região. 2a T. HC no 95.04.17232-6-RS. Rel.: Juíza Tânia Terezinha Cardoso Escobar. 8 jun. 1995, maioria. DJ 2, 28 jun. 1995, p. 41.131.8 TRF-1a Região. 3a T. ACr no 95.01.14422-4-BA. Rel.: Juiz Tourinho Neto. Maioria. DJ 2 9 out. 1995, p. 68.239.9 TRF-4a Região. 1a T. ACr no 96.04.52181-0-PR. Rel.: Juiz Gilson Dipp. Un. DJ 2 11 jun. 1997, p. 42.837.

ACr 6.725-PE 11

Page 12: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

4. O dolo do crime de apropriação indébita previdenciária, conforme entendimento manifestado pela Quinta Turma deste Superior Tribunal de Justiça, é a vontade de não repassar à Previdência as contribuições recolhidas, dentro do prazo e da forma legal, sendo, portanto, descabida a exigência de se demonstrar o dolo de fraudar como requisito essencial ao recebimento da peça acusatória.

5. Recurso especial desprovido.10

PENAL E PROCESSUAL PENAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. DESCABIMENTO. DEMONSTRAÇÃO DO ESPECIAL FIM DE AGIR. DESNECESSIDADE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. A denúncia deve ser considerada peça idônea, consoante o art. 41, do CPP, quando a narração objetiva dos fatos praticados pelo indiciado subsumem-se à descrição abstrata da lei penal.

2. É entendimento pacificado na 5a Turma, do Superior Tribunal de Justiça que o crime previsto no art. 95, alínea d, da Lei no 8.212/91, se consuma com o simples não recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas dos empregados no prazo legal, ressalvados os casos de extinção de punibilidade.

3. Em consonância com esse posicionamento, considera-se que o dolo do crime de apropriação indébita previdenciária é a vontade de não repassar à previdência as contribuições recolhidas, dentro do prazo e da forma legal, não se exigindo o animus rem sibi habendi, sendo, portanto, descabida a exigência de se demonstrar o dolo de fraudar como requisito essencial ao recebimento da peça acusatória.

4. Recurso especial provido.11

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. TIPO SUBJETIVO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL.

[...]

II – O tipo subjetivo no injusto do art. 95, alínea d da Lei no 8.212/91 que teve continuidade de incidência no art. 168-A, § 1o, inciso I do CP (Lei no

9983/00), se esgota no dolo, sendo despiciendo qualquer outro elemento subjetivo diverso, mormente a intenção de fraudar porquanto de estelionato não se trata (Precedentes do STJ e do Pretório Excelso).

[...]

Recurso não conhecido.12

PROCESSUAL PENAL. REFIS. OMISSÃO NO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. ART 95, D, DA LEI 8.212/91. REVOGAÇÃO PELA LEI 9.983/00. ABOLITIO CRIMINIS. NÃO OCORRÊNCIA. ANIMUS REM SIBI HABENDI. COMPROVAÇÃO DESNECESSÁRIA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE. INOCORRÊNCIA.

10 STJ. 5a T. REsp no 412.886-RS. Rel.: Min. Laurita Vaz. 12 ago. 2003, un. DJ 1, 15 set. 2003, p. 348, sem destaque no original.11 STJ. 5a T. REsp no 495.818-CE. Rel.: Min. Laurita Vaz. 24 jun. 2003, un. DJ 1 4 ago. 2003, p. 393, sem destaque no original.12 STJ. 5a T. REsp no 457.035-RS. Rel.: Min. Felix Fischer. 23 jun. 2004, un. DJ 1 16 ago. 2004, p. 277.

ACr 6.725-PE 12

Page 13: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

A simples conduta de deixar de recolher as contribuições devidas aos cofres públicos já é o suficiente para a caracterização do delito previsto no art. 95, d, da Lei 8.212/91.

Não há necessidade em se demonstrar o animus rem sibi habendi, uma vez que o tipo subjetivo se esgota no dolo.

“Inocorrência da alegada abolitio criminis, uma vez que a novatio legis (art. 168-A, § 1o, do Código Penal, acrescentado pela Lei no 9.983/00), conquanto tenha revogado o disposto no art. 95 da Lei no 8.212/91, manteve a figura típica anterior no seu aspecto substancial, não fazendo desaparecer o delito em questão.” (Precedente).

A não aplicação do art. 15 da Lei n.o 9.964/00 não configura ofensa ao princípio da retroatividade da Lei Penal mais benéfica, já que o benefício ali estabelecido é condicionado àqueles que tenham ingressado no REFIS antes do recebimento da denúncia.

Recurso especial desprovido.13

33. Merece destaque o julgamento dos embargos de divergência no REsp no 331.982-CE, da relatoria do eminente Ministro Gilson Dipp, o qual firmou a orientação do egrégio STJ em relação à matéria:

CRIMINAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. CARACTERIZAÇÃO DO DELITO DE OMISSÃO DE RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. RECURSO ESPECIAL “NÃO-CONHECIDO”. APRECIAÇÃO DO MÉRITO. DIVERGÊNCIA CONFIGURADA. DOLO GENÉRICO. ANIMUS REM SIBI HABENDI. COMPROVAÇÃO DESNECESSÁRIA. EMBARGOS ACOLHIDOS.

I – A Sexta Turma desta Corte, ao não conhecer do recurso especial, não deixou de apreciar a questão de fundo relativa à configuração do delito de omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias, tanto que explicitou o posicionamento da Turma no sentido da necessidade de comprovação do dolo específico de fraudar a Previdência Social, não conhecendo do apelo raro, diante da impossibilidade de revisão, em sede de recurso especial, da presença ou não desse elemento subjetivo para a caracterização do delito.

II – Configurada a divergência nos moldes do Regimento Interno desta Corte se verificado que, a despeito de não ter conhecido do recurso, a Eg. Sexta Turma adentrou na análise da questão de fundo.

III – A conduta descrita no tipo penal do art. 95, d, da Lei 8.212/95 é centrada no verbo “deixar de recolher”, sendo desnecessária, para a configuração do delito, a comprovação do fim específico de apropriar-se dos valores destinados à Previdência Social. Precedentes do STJ e do STF.

IV – Embargos acolhidos.14

34. Veja Vossa Excelência os seguintes trechos do voto condutor do julgado (extraídos da Revista Eletrônica da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, acima citada; destaques no original):

13 STJ. 5a T. REsp no 598.285-PR. Rel.: Min. José Arnaldo da Fonseca. 1o abr. 2004, un. DJ 1 3 maio 2004, p. 210.14 STJ. 3a Seção. Embargos de divergência no REsp no 331.982-CE. Rel.: Min. Gilson Dipp. 12 nov. 2003, un. DJ 1, 15 dez. 2003, p. 179, sem destaque no original.

ACr 6.725-PE 13

Page 14: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

In casu, tratou-se de recurso especial contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 5a Região que, dando provimento ao recurso de apelação interposto em favor de PAULO MARIA DE FREITAS, o absolveu, por entender não comprovado o dolo específico em sua conduta, restando, portanto, não caracterizado o delito do art. 95, d, da Lei 8.212/91.

O il. Relator do Apelo Especial, Min. Vicente Leal entendeu que, para a caracterização do delito em tela, é indispensável a verificação do dolo, consubstanciada na vontade de fraudar a Previdência Social, deixando de conhecer do recurso, na verdade, diante da impossibilidade de revisão da presença ou não desse elemento subjetivo em sede de recurso especial.

Deste modo, verifica-se que, a despeito de não ter conhecido do recurso, a Eg. Sexta Turma adentrou na análise da questão de fundo, relativa à necessidade ou não de comprovação do dolo específico para a caracterização do delito descrito no art. 95, d, da Lei 8.212/91, restando configurada a divergência nos moldes do art. 266 do RISTJ.

[...]

Passando à análise do cerne da questão, relativa à caracterização do delito de apropriação indébita de contribuições previdenciárias, o entendimento atual e predominante na 5a Turma desta Corte orienta-se no sentido de que a conduta descrita no tipo penal do art. 95, d, da Lei 8.212/95 é centrada no verbo “deixar de recolher”, sendo desnecessária, para a configuração do crime, a comprovação do fim específico de apropriar-se dos valores destinados à Previdência Social, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal.

Transcrevo, a propósito, o seguinte trecho do voto condutor do acórdão proferido nos autos do Habeas Corpus 80.559/DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 22/03/2002:

“O crime pelo qual o paciente foi denunciado é o do artigo 95, d, da Lei 8.212/91 (“deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do público”), e abarca períodos anteriores e posteriores à admissão da concordata preventiva. Para que haja dolo nesse delito, que é autônomo, basta que o agente, conscientemente, não tenha recolhido os valores descontados da Previdência Social.”

O il. Ministro Marco Aurélio, por igual, no julgamento do Habeas Corpus 76.978/RS, assim se manifestou, remetendo-se ao pronunciamento feito em outro julgado daquela Corte:

“Por outra perspectiva, e rememorando pronunciamento nosso nos autos do Inquérito no 1.028, aqui já referido (item 12, deste parecer), a infração penal de que se cogita constitui-se em delito omissivo puro, infração de simples conduta, assim de natureza inconciliável com a apropriação indébita, que é crime de resultado. De se ler, o que então disse, verbis:

“21. Quanto a dizer-se de que não se demonstre tenha o infrator beneficiado-se do não recolhimento, isso nada tem a ver com a consumação do fato. Esta põe-se no ato omissivo de deixar de recolher no prazo legal.

22. Se com o descumprir tal dever, o autor do evento logrou, ou não proveito, tal condiz com o exaurimento da conduta, então já bastante reconhecida na pura omissão.

ACr 6.725-PE 14

Page 15: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

23. Por isso, plenas de sentido as ponderações do saudoso doutrinador Heleno Fragoso, a propósito, e como transcritas no pronunciamento de fls. 78, verbis:

“O atraso no recolhimento das contribuições não se equipara à apropriação indébita. A contribuição devida pelos empregados não é 'arrecadada' pelo empregador, que paga sempre aos empregados o valor líquido dos salários. Por outro lado, a apropriação indébita é crime contra a propriedade e pressupõe, portanto, que o agente vise efetivamente à apropriação, ou seja, tornar sua a coisa, dela dispondo como dono (uti dominus), com o animus rem sibi habendi.”.”

No âmbito desta Corte, cumpre registrar as elucidativas conclusões do Exmo. Ministro Felix Fischer a esse respeito, proferidas no julgamento do REsp. 410.054/PR, publicado no DJ de 03/02/2003:

“Vale dizer, a polêmica alinhada nos presentes autos cinge-se à natureza do injusto previsto no art. 95, letra d da Lei no 8.712/91. A conduta ali descrita é omissiva, consistindo em “deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à Seguridade Social e arrecada dos segurados ou do público”. Ao contrário dos tipos ativos, nos quais a conduta descrita é a que se proíbe, nos omissivos determina-se o que o sujeito deve realizar em determinada situação. A proibição, portanto, abrange todas as demais ações distintas daquela determinada no tipo. A punição recai sobre o agente em virtude da prática de conduta que se afasta do devido, segundo a teoria do aliud agere.

O dolo, nos crimes omissivos, possui algumas peculiaridades importantes. O sujeito ativo não age diretamente na produção do resultado. O ordenamento impõe a ele a prática de uma conduta (recolher as contribuições) a fim de evitar um resultado lesivo. A atuação do sujeito, nesses casos, é indispensável para interromper o curso causal em desenvolvimento, e assim evitar o resultado. Se o agente se propõe a qualquer outra finalidade que não aquela determinada pelo ordenamento, pratica a conduta proibida (diversa da imposta pela norma).

Daí a razão pela qual não há necessidade de se demonstrar o animus rem sibi habendi para a caracterização do delito. O tipo subjetivo se esgota no dolo, não havendo necessidade de se provar o especial fim de agir. É o que a doutrina hodierna denominada de tipo congruente (Maurach-Zipf, Jakobs, S. Mir Puig, entre outros) ou de tipo congruente simétrico (E. R. Zaffaroni).

Nesse sentido já decidiu o Pretório Excelso:

“Habeas-corpus. Crime contra a ordem tributária praticado em continuidade delitiva: não recolhimento de contribuição previdenciária descontada de empregados. Alegações de: exclusão da ilicitude por inexistência de dolo; extinção da punibilidade pelo parcelamento do débito; inexistência de mora por vício na notificação administrativa, porque dirigida à pessoa jurídica; atipicidade do crime de apropriação indébita; e de aplicação da lex gravior em detrimento da lex mitior: ultra-atividade da lei penal quando, após o início de crime continuado, sobrevém lei mais severa.

ACr 6.725-PE 15

Page 16: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

1. Dolo genérico caracterizado: alegação de inexistência de recursos financeiros não comprovada suficientemente no processo-crime.

2. A punibilidade é extinta quando o agente promove o pagamento integral do débito antes do recebimento da denúncia, o que não ocorre enquanto não solvida a última prestação de pagamento parcelado, possibilitando, neste período, o recebimento da denúncia. Precedentes.

3. Improcedência da alegação de irregularidade da notificação expedida em nome da pessoa jurídica: há comprovação de que a correspondência foi entregue e de que o paciente dela teve ciência, sendo, assim, constituído em mora.

4. Alegação improcedente de atipicidade do delito de apropriação indébita (crime de resultado), porque o paciente foi condenado por crime contra a ordem tributária: não recolhimento de contribuição previdenciária descontada de empregados, que é crime omissivo puro, infração de simples conduta, cujo comportamento não traduz simples lesão patrimonial, mas quebra do dever global imposto constitucionalmente a toda a sociedade; o tipo penal tutela a subsistência financeira da previdência social. Inexistência de responsabilidade objetiva.

5. Direito intertemporal: ultra-atividade da lei penal quando, após o início do crime continuado, sobrevém lei mais severa.

5.1. Crime continuado (CP, artigo 71, caput): delitos praticados entre março de 1991 e dezembro de 1992, de forma que estas 22 (vinte e duas) condutas devem ser consideradas, por ficção do legislador, como um único crime, iniciado, portanto, na vigência de lex mitior (artigo 2o, II, da Lei no 8.137, de 27.12.90) e findo na vigência de lex gravior (artigo 95, d e § 1o, da Lei no 8.212, de 24.07.91).

5.2. Conflito de leis no tempo que se resolve mediante opção por uma de duas expectativas possíveis: retroatividade da lex gravior ou ultra-atividade da lex mitior, vez que não se pode cogitar da aplicação de duas penas diferentes, uma para cada período em que um mesmo e único crime foi praticado.

Orientação jurisprudencial do Tribunal no sentido da aplicação da lex gravior.

Ressalva do ponto de vista do Relator, segundo o qual, para o caso de crime praticado em continuidade delitiva, em cujo lapso temporal sobreveio lei mais severa, deveria ser aplicada a lei anterior – lex mitior – reconhecendo-se a sua ultra-atividade por uma singela razão: a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (Constituição, artigo 5o, XL).

6. Habeas-corpus conhecido, mas indeferido.” (HC 76.978-RS/STF, 2a

Turma, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJU de 19.02.99).

Mas, ainda assim, ad argumentandum tantum, fosse o tipo considerado incongruente (ou como preferem outros, congruente assimétrico), o apelo especial não poderia, in casu, ter acolhida. Em outras palavras, ex hypothesis, se fosse exigido o elemento subjetivo diverso do dolo (para alguns, remontando ao causalismo, o dolo específico, este não poderia jamais ser o animus de fraudar (exigência totalmente extra legis). Ainda que, repetindo, não fosse o

ACr 6.725-PE 16

Page 17: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

delito omissivo puro mas forma peculiar de apropriação indébita ele não se equipararia, tecnicamente, ao estelionato. Na argumentação indébita, propriamente dita (art. 168 do CP), aqueles que entendem o tipo como incongruente, mostram que o tipo subjetivo, além do dolo, exige a intenção de obter um proveito injusto (cf. L. Regis Prado in “Curso de Direito Penal Brasileiro”, volume 2, p. 478, RT, 2002), ou, então, a vontade de não restituição. Nunca, sublinho, o dolo e o animus de fraudar. No feito em tela, desde a imputação insculpida na prefacial acusatória até o contido nos atos decisórios o não recolhimento (“deixar de recolher”) evidentemente restou delineado como sendo para benefício da empresa.”.

Diante do exposto, acolho os presentes embargos para que prevaleça o entendimento adotado no acórdão paradigma.

É como voto.

35. O tipo penal em questão aperfeiçoa-se a partir de situação real: o empregador já descontou do salário do empregado ou trabalhador (lato sensu) o valor dirigido ao custeio da seguridade social – que se reserva, constitucionalmente, para “assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência, e à assistência social” (art. 194, caput, da Constituição da República) – e deixa de dar-lhe a destinação legal, ao abster-se de recolhê-la aos cofres públicos.

36. Esse comportamento não traduz apenas lesão patrimonial à Previdência Social, mas, como bem esclareceu o STF certa feita, a quebra do dever global imposto constitucionalmente a toda a sociedade e, sob a ótica do empregador, representa ainda a marca da infidelidade, porque depositário da contribuição também exigida do próprio trabalhador, para de pronto repassá-la aos cofres públicos.

37. Quanto ao propalado julgamento do inquérito no 2.537/GO, no STF, também não procede a assertiva de que o Pretório Excelso teria reconhecido a necessidade de dolo específico para tipificar o não-recolhimento de contribuição previdenciária. Douglas Fischer, Procurador Regional da República na 4a Região e mestre em Direito, examina o precedente em artigo que merece transcrição:15

Com chancela (por ora, espera-se) de parcas decisões jurisprudenciais, alguns nobres advogados que militam na área do Direito Penal têm propagado a idéia de que o Supremo Tribunal Federal (STF) teria mudado seu entendimento acerca de como se consumaria o delito denominado de “apropriação indébita previdenciária”, previsto no art. 168-A, § 1o, I do Código Penal. A (suposta) alteração na jurisprudência da Corte Suprema teria sido promovida durante o julgamento do Inquérito no 2.537, que, segundo alguns, teria definido que, para que o crime reste consumado, seria necessária a demonstração de que o agente também teria se apropriado dos valores que descontou e não repassou aos cofres públicos. Com todas as vênias, há um manifesto equívoco, pois tais doutrinadores têm-se limitado a ler – e propagar – somente a ementa da decisão do Supremo Tribunal, auxiliando na difusão de uma nova forma de

15 FISCHER, Douglas. O STF não mudou nada quanto ao crime de apropriação indébita previdenciária. Caderno Constituição & Democracia, Brasília, ano III, n. 31, p. 22, abr. 2009.

ACr 6.725-PE 17

Page 18: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

interpretação jurídica, que denominamos há algum tempo de “hermentismo” (termo inexistente no dicionário, é verdade, mas que para nós significa a “hermenêutica das ementas”).

No referido acórdão, efetivamente constou na ementa (por equívoco, certamente) que para se consumar o crime seria necessária a demonstração de que o agente teria se apropriado dos valores que descontou e não repassou aos cofres públicos.

Não necessita se apropriar. Nem poderia o STF dizer o contrário. O crime se consuma unicamente com a retenção e o não-repasse dos valores no prazo legal aos cofres públicos. Não se exige a chamada “apropriação indébita” (a inversão da posse), denominada em expressão jurídica clássica como animus rem sibi habendi.

No julgamento do Inquérito 2.537 (para quem tiver o “trabalho” de ler todo teor do julgamento, não apenas a ementa), fácil verificar que somente o relator foi quem defendeu a (com a devida vênia) esdrúxula idéia de que o crime necessitaria, para sua consumação, que o autor do crime também se apropriasse dos valores. Pior que isso foi já se ver alguns julgados aplicando o “precedente”. Quer dizer: aplicando a “ementa”. É assim que se têm “formado” certos entendimentos jurisprudenciais. [...]

No limitado espaço que se tem, algumas rápidas observações.

Primeira: no julgamento referido estavam presentes apenas 7 (sete) dos 11 (onze) ministros do STF. Destes sete presentes, apenas um defendeu tal ponto de vista, o Ministro Marco Aurélio (que, aliás, já admitiu publicamente ter uma verdadeira sina de divergir). Sua Excelência certamente incorreu em erro, pensamos nós, porque a Corte Colegiada (mesmo que pela composição mínima exigida para seu funcionamento) não acolheu referida tese.

Segunda: o eminente Procurador-Geral da República apresentou embargos de declaração ao julgado, alertando para omissões e contradições do julgado, mas deu-se verdadeira “penada” nos aclaratórios sob o pretexto de que estaria pretendendo reanalisar a matéria. [...]

Se analisado o inteiro teor do aresto, ao menos é assim que lemos, fácil verificar que o Ministro Cezar Peluso foi enfático acerca da total improcedência da tese trazida pelo relator (como, inclusive, há muito vem dizendo – acertadamente – o STF).

Na seqüência, os debates tomaram outro rumo, e o Tribunal acabou entendendo que efetivamente era caso de arquivamento do inquérito. Mas não pelos fundamentos declinados pelo eminente Relator. Isso é muito claro. Ler os argumentos e o que decidido é essencial!

Consoante se vê da norma que interessa ao caso (art. 168-A, § 1o, I, CP), “nas mesmas penas incorre quem deixar de recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público”. Já no crime do artigo 168, CP (o verdadeiro delito de apropriação indébita), é indispensável a apropriação da coisa mediante a inversão da posse, sendo necessária a demonstração (exatamente por isso) do chamado animus rem sibi habendi. Contudo, no delito de “apropriação indébita previdenciária” (outro brutal erro do nome do crime) não há exigência, na norma penal, da apropriação. O crime se consuma

ACr 6.725-PE 18

Page 19: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

mediante duas condutas: a primeira comissiva (descontar), a segunda omissiva (deixar de repassar no prazo legal). Inclusive foi o que constou expressamente de argumento do Ministro Cezar Peluso ao rebater, pronta e eficazmente, a pretendida tese desenvolvida no êxodo da discussão pelo ilustre relator, Ministro Marco Aurélio: “[...] este caso de apropriação indébita previdenciária não pode ser equiparado ao dos delitos materiais de débito tributário, porque aqui o núcleo do tipo, sobretudo no caso, que é o 168, ‘a’, inciso I, se compõe de dois verbos. As ações são duplas: primeiro, descontar; segundo, deixar de recolher”.

Resta bastante claro que não subsiste a argumentação de que o crime em tela exigiria também a demonstração do animus rem sibi habendi. Esperamos que os magistrados e demais operadores do Direito atentem para o que foi efetivamente decidido e não incorram no “hermentismo”. Ao menos até agora, o STF não mudou absolutamente nada. Mais: nem poderá. Se quiser, compete ao Legislativo fazê-lo.

38. Do exposto, não resta dúvida de que o delito em exame se materializa com a simples presença do dolo genérico de não recolher a contribuição, sendo desnecessária a efetiva demonstração do animus rem sibi habendi como requisito essencial ao reconhecimento da modalidade delitiva. Prevalece, portanto, a jurisprudência consolidada do STJ nesse sentido.

39. Outro argumento da defesa foram supostas dificuldades econômicas da empresa. Contudo, não comprovou a alegação, como corretamente constatou o juízo a quo. Veja-se trecho da sentença (fl. 332, vol. 2, sic):

No presente caso, os documentos, a exemplo das execuções fiscais juntadas aos autos, são, em sua maioria, referentes a período anterior ou posterior ao ano dos fatos (2003/2004).

Por outro lado, não restou comprovado que o acusado tenha sofrido restrição no seu patrimônio pessoal, a patentear o esgotamento dos meios para saldar as dívidas previdenciárias da empresa.

Sendo assim, não restou demonstrado que o acusado se viu compelido a agir da forma que agiu, deixando de repassar aos cofres públicos os valores devidos.

Neste ponto é relevante destacar que o acusado continua a desenvolver atividade empresarial, conforme suas próprias declarações (f. 125/126).

Logo, inaplicável ao caso a tese da inexigibilidade de conduta diversa.

É que, repito, para que se possa falar em inexigibilidade de conduta diversa, como causa excludente de culpabilidade, deve restar indubitável não apenas a existência de crise financeira, mas a seriedade inconteste desta a ponto de afastar totalmente do acusado a possibilidade de anuir com seus compromissos.

40. A sentença considerou que a autoria e a materialidade dos fatos encontram-se suficientemente demonstradas pelo conjunto probatório. O não-recolhimento das contribuições foi cabalmente comprovado pela acusação por meio dos documentos acostados ao processo. Essas provas jamais foram infirmadas pelo réu, de modo que foram acatadas como válidas e eficazes pelo juízo.

ACr 6.725-PE 19

Page 20: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

41. O desamparo probatório da tese do réu leva à conclusão de que ele não merece absolvição. O acusado deixou de provar que durante todo o tempo no qual não repassou as contribuições previdenciárias houve contundentes oscilações do mercado ou outros fatores relevantes que tenham impedido o repasse à previdência social. De qualquer modo, se isso houvesse de fato ocorrido, caberia ao réu, como administrador da pessoa jurídica, gerir os recursos entrantes e os valores a pagar de maneira a cumprir seus deveres legais.

42. Admitir que flutuações do faturamento, verificadas ao longo desse período, seriam desculpa para não pagar à previdência social significaria absolver qualquer mau administrador, que não tivesse competência gerencial para conduzir sua empresa ou organização dentro da lei. O Direito Penal e as excludentes de ilicitude não servem para exculpar maus gestores privados.

43. O não-recolhimento, portanto, mostra, na verdade, que a omissão delituosa não derivou de supostas agruras econômicas da empresa gerida pelo réu, mas, bem diferentemente, de deliberada estratégia gerencial de simplesmente não recolher ao INSS os valores que pertenciam à autarquia.

44. Em outras palavras, o réu, à frente da pessoa jurídica, simplesmente decidiu que não deveria recolher os valores devidos à seguridade social, certamente por estar seguro de que jamais sua omissão seria descoberta ou punida pelos órgãos estatais. Admitir tal estratégia seria atentatório contra a lei penal e contra o dever de solidariedade que inspira as obrigações previdenciárias, pois se estaria facultando ao réu um diferencial de custos suportado por seus semelhantes.

45. Para admitir a tese defensiva, seria mister que o acusado houvesse trazido prova hábil a desconstituir os documentos colhidos pelo Ministério Público Federal. A jurisprudência concorda com esse escólio:

PENAL E PROCESSO PENAL. REVISÃO CRIMINAL. DOCUMENTOS NOVOS. DIFICULDADES FINANCEIRAS. PROVA. [...] 3. Não basta alegar dificuldades financeiras para afastar a ilicitude da conduta do crime previsto no artigo 2o, II, da Lei no

8137/90, mas efetiva impossibilidade de saldar não apenas as contribuições previdenciárias, mas todos os demais compromissos da empresa, a caracterizar um estado de insolvência.16

PENAL – CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA – NÃO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS – ESTADO DE NECESSIDADE NÃO COMPROVADO – PRESCRIÇÃO PELA PENA APLICADA. 1 – Conquanto o estado de necessidade possa ser invocado para afastar a ocorrência de crime contra a ordem tributária, consistente no não recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas de terceiros, indispensável a prova absoluta das dificuldades financeiras do contribuinte, para o que seria fundamental perícia nos livros da empresa. 2 – Apelação provida para julgar procedente a denúncia, decretando-se, entretanto, a prescrição retroativa em favor do denunciado.17

16 TRF-4a Região. 1a Seção. ACr no 95.04.52302-1. Rel.: Juiz Jardim de Camargo. 14 ago. 1996. DJ 2, 18 set. 1996, p. 69.722.17 TRF-1a Região. 3a T. ACr no 94.01.14929-1. Rel.: Juiz Osmar Tognolo. 24 maio 1995. DJ 2, 12 jun. 1995, p. 36.567.

ACr 6.725-PE 20

Page 21: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

PENAL – APROPRIAÇÃO INDÉBITA – CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS – ART. 95, D, DA LEI 8.212/91 – DIFICULDADES FINANCEIRAS NÃO COMPROVADAS – PROCEDÊNCIA DA DENÚNCIA. 1 – Dificuldades financeiras, alegadas para o não recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas dos empregados, devem ser efetivamente comprovadas nos autos, não bastando simples alegação, sob pena de restar caracterizado o crime tipificado no art. 95, letra d, da Lei 8.212/91. 2 – Apelação provida, julgando-se procedente a denúncia.18

PENAL. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. OMISSÃO. DIFICULDADES FINANCEIRAS. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. 1. O crime consistente na falta de recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas dos salários dos empregados caracteriza-se como omissivo, consumando-se com o não-recolhimento no prazo previsto em lei. 2. No caso em exame, o presidente e tesoureiro eram os responsáveis pelo pagamento das contribuições. 3. A dificuldade financeira deve ser provada. 4. Para que caracterizasse a extinção prevista no artigo 14 da Lei no 8.137/90, os réus deveriam comprovar o pagamento das contribuições antes do recebimento da denúncia ou que estavam cumprindo parcelamento do débito.19

CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. NÃO-RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ART. 95, ALÍNEA d, DA LEI No 8212, DE 1991. O responsável por empresa que não recolhe as contribuições previdenciárias descontadas dos salários de seus empregados infringe o disposto no art. 95, alínea d, da Lei 8212, de 1991, não lhe socorrendo a alegação de dificuldades financeiras, porque se trata de crime formal omissivo, que se consuma com o omissão ou retardamento no recolhimento da contribuição. ABSOLVIÇÃO COM FUNDAMENTO NA JUSTIÇA SOCIAL. FATOS EXTRALEGAIS E EXTRA-AUTOS. Ao juiz é vedado absolver o acusado com fulcro na chamada “Justiça Social”, considerando fatos, escândalos ocorridos no País para justificar a impunidade do denunciado. A sociedade necessita de um mínimo de segurança jurídica e de confiabilidade no Poder Judiciário, o qual aplica a lei ao caso concreto.20

CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. NÃO-RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ART. 95, ALÍNEA d, DA LEI 8.212, DE 1991. O responsável por empresa que não recolhe as contribuições previdenciárias descontadas dos salários de seus empregados infringe o disposto no art. 95, alínea d, da Lei 8.212, de 1991, não lhe socorrendo a alegação de dificuldades financeiras, porque se trata de crime formal omissivo, que se consuma com a omissão ou retardamento no recolhimento da contribuição. LEI 8.866/94. DEPOSITÁRIO DA FAZENDA PÚBLICA. A Lei 8.866, de 1994, que instituiu a figura do depositário infiel, com prisão civil, pelo não-pagamento de tributos ou contribuições previdenciárias, não derrogou a Lei 8.212, de 1991. Sua incidência é na área civil e não penal. CRIME CONTINUADO. NÃO-CAPITULAÇÃO NA DENÚNCIA. Não é causa de nulidade da sentença a condenação do réu por crime continuado mesmo não capitulado na denúncia, mas descrita na peça acusatória a cadeia delituosa, de acordo com o art. 71 do Código Penal. CRIME CONTINUADO.

18 TRF-1a Região. 3a T. ACr no 94.01.28498-9. Rel.: Juiz Osmar Tognolo. 12 jun. 1995. DJ 2, 21 ago. 1995, p. 52.731.19 TRF-4a Região. 4a T. ACr no 94.04.29501-9. Rel.: Juiz Luiz Jardim de Camargo. 5 out. 1995. DJ 2, 22 nov. 1995, p. 80.913.20 TRF-4a Região. ACr no 95.04.52414-1. Rel.: Juiz Vilson Darós. 11 jun. 1996. DJ 2, 11 set. 1996, p. 67.334.

ACr 6.725-PE 21

Page 22: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

ÚLTIMO CRIME DA CADEIA DELITIVA COM INCIDÊNCIA DA LEI MAIS GRAVOSA. Aplica-se a lei vigente à data da consumação do último crime da cadeia delitiva, ainda que mais gravosa. CRIME CONTINUADO. ACRÉSCIMO LEGAL. Tendo ocorrido a prática de dez crimes em continuidade delitiva, é inaplicável a redução do acréscimo daí decorrente para 1/6. Correta a majoração em 1/3. CRIME DE NÃO-RECOLHIMENTO DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS DESCONTADAS DOS EMPREGADOS. MOMENTO DA CONSUMAÇÃO. Na vigência da Lei 8.212/91, o prazo para recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas dos empregados esgota-se no quinto dia útil do mês subseqüente ao de desconto, considerando-se consumado o crime de não-recolhimento de tais parcelas no dia seguinte ao término do prazo legal para satisfação da obrigação. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PEDIDO DE PARCELAMENTO. ART. 14 DA LEI 8.137/90. Pedido de parcelamento após o recebimento da denúncia não extingue a punibilidade. Inaplicável, na espécie, o art. 14 da Lei 8.137/90.21

46. Não basta alegar as famosas e convenientes “dificuldades econômicas”, pois elas dependem de prova consistente, mormente de caráter pericial, para ter o condão de eximir dirigentes privados do ônus imposto a todos de recolher contribuição previdenciária. Afinal de contas, trata-se do não-recolhimento de contribuições em detrimento de toda a sociedade brasileira.

47. Todavia, quando os elementos probatórios se mostram amplamente desfavoráveis à tese exculpante, como no caso dos autos, eventual perícia judicial seria decerto desprovida de utilidade, pois, consoante os fundamentos da decisão de fls. 250-251 (vol. 2), os documentos juntados no processo delineiam situação fática inconteste, qual seja, a completa ausência de provas de insuperáveis dificuldades econômicas no período investigado.

48. Por outro lado, o elemento subjetivo do crime omissivo de não-recolhimento das contribuições está plenamente presente, uma vez que o réu tinha conhecimento do dever legal e da possibilidade de cumpri-lo, mas, deliberadamente, não o fez.

49. A suposta dificuldade econômica arguida pelo réu não afasta o juízo de reprovabilidade. A culpabilidade somente deixaria de incidir se restasse comprovado que o acusado não podia haver agido de outro modo que não perpetrando a conduta a ele atribuída na denúncia. E essa prova, como se disse, não veio aos autos.

50. A inexigibilidade de conduta diversa, acaso comprovada, afastaria a culpabilidade do agente e não a tipicidade da conduta. O instituto encontra-se previsto no art. 22 do Código Penal, que abrange a coação moral irresistível como hipótese para o seu reconhecimento (art. 22, primeira parte, do CP). No caso não se verifica essa hipótese. Ainda que fosse considerada a coação psicológica decorrente de dificuldades financeiras, tratar-se-ia de coação moral resistível.

51. Outrossim, consoante o art. 24 do Código Penal, a ilicitude da conduta é excluída quando o agente, em situação de perigo atual, lesa

21 TRF-4a Região. ACr no 95.04.16786-1. Rel.: Juiz Vilson Darós. 25 jul. 1996. DJ 2, 14 ago. 1996, p. 57.597.

ACr 6.725-PE 22

Page 23: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

bem de outrem para não sacrificar direito seu ou alheio, cujo sacrifício não podia ser razoavelmente exigido. No caso do réu, não há prova de que enfrentasse perigo atual, requisito indispensável para incidência da excludente de ilicitude. O risco iminente, remoto ou incerto de a entidade ser dissolvida, por exemplo, não lhe poderia justificar a conduta ilícita. Nesse sentido já se manifestou a jurisprudência: “É necessário que o perigo seja atual, não bastando o risco iminente, remoto ou incerto.”22

52. Para traçar paralelo entre duas condutas apenadas pelo Direito brasileiro, pode-se tomar o exemplo do delito de furto, cuja potencialidade ofensiva, de acordo com o sistema penal pátrio, é menor do que a do crime continuamente perpetrado pelo acusado. Para esse delito, a jurisprudência não aceita a alegação de estado de necessidade por dificuldades financeiras quaisquer:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. FURTO QUALIFICADO. ART. 155, § 4o, II, DO CP. VIGILANTE DA DATAPREV. NULIDADE DA SENTENÇA. INOCORRÊNCIA. ART. 13 DA LEI 9.807/99. INAPLICABILIDADE. CONSUMAÇÃO DO DELITO. ABUSO DE CONFIANÇA CONFIGURADO. DIFICULDADES FINANCEIRAS NÃO COMPROVADAS. AUSÊNCIA DE EXCLUDENTES. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. MODIFICAÇÃO.

1. O fato da sentença mencionar o prejuízo sofrido pelo terceiro comprador da res furtiva não configura qualquer nulidade, pois trata-se de mero desdobramento do delito, inexistindo nova definição jurídica, não havendo falar em ofensa ao princípio da correlação ou mesmo em aplicação da regra do art. 384 do CPP.

[...]

7. Doutrina e jurisprudência tratam o furto famélico como a subtração de objetos destinados a saciar a fome nas situações mais extremadas, o que não é o caso dos autos.

8. Seria possível deduzir que o apelante pretende o reconhecimento do estado de necessidade, em função das dificuldades financeiras, e inexigibilidade de conduta diversa, o que não restou demonstrado de qualquer forma.

9. As dificuldades financeiras, além de constituírem ônus probatório exclusivo do réu, nos termos do art. 156 do CPP, devem estar amplamente demonstradas, uma vez que serão analisadas a partir de elementos objetivos constantes nos autos.

10. No caso, o réu não logrou trazer qualquer elemento que comprovasse sua alegação, tornando inviável o reconhecimento das excludentes.

11. Além disso, ressalta-se que os elementos colhidos durante a instrução desmentem a tese defensiva.

[...]

14. Afastamento da substitutiva referida para impor, em conjunto com os serviços à comunidade, prestação pecuniária, restritiva de direitos que melhor se amolda ao caso. Precedentes.23

22 Tribunal de Justiça de São Paulo, apud RT 597/287.23 TRF-4a Região. 7a T. ACr no 200370000002048-PR. Rel.: Juiz Tadaaqui Hirose. 8 ago. 2006, un. DJ 2, 23 ago. 2006, p. 1.389.

ACr 6.725-PE 23

Page 24: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

53. Por que então tratar diferentemente situações nesse ponto análogas? Se o indivíduo não pode subtrair de outrem bens para solucionar seus dramas pessoais, por que admitir que o empresário ou administrador deixe de recolher à seguridade social valores que descontou da remuneração de seus trabalhadores? Como não admitir a lesão a um patrimônio individual, no caso do furto, e aceitar, de forma condescendente, a lesão ao patrimônio de toda a sociedade brasileira, no caso do não-recolhimento das contribuições previdenciárias? Pode-se tolerar a subtração, por assim dizer, do patrimônio social? Como admitir, ainda mais, que esse alegado estado de necessidade não seja sequer provado de maneira cabal, tolerando a absolvição daqueles que lesaram toda a sociedade, com base em simples alegações padronizadas de sagazes advogados criminalistas?

54. É absolutamente indispensável não esquecer a gravidade da conduta do réu. O dano à autarquia previdenciária é expressivo e atinge justamente a parcela mais pobre da população, destinatária da seguridade social. Condutas como a que gerou este processo concorrem para a dilapidação dos cofres da previdência social, com reflexos sobre toda a massa de trabalhadores brasileiros. Se é plausível que, em situações limítrofes, realmente extremas, o Poder Judiciário possa absolver alguém pelo não-recolhimento dos valores devidos à autarquia previdenciária, não menos certo é que esse julgamento deve realizar-se de maneira extremamente rigorosa, pois estão em jogo a credibilidade do sistema de cobrança dessas contribuições, a eficácia da legislação previdenciária e penal, o dever geral e constitucional de solidariedade para o amparo da classe trabalhadora, a igualdade entre os agentes econômicos e a própria confiabilidade do Poder Judiciário, o qual não pode, em absoluto, ser leniente com condutas de tamanha gravidade.

55. A disponibilidade econômica do acusado deve ser presumida até prova em contrário, mesmo porque os valores não repassados ao INSS não lhe pertenciam: ele apenas devia remeter o dinheiro dos trabalhadores aos cofres da previdência.

56. Não há dúvida da importância da classe empresarial para o desenvolvimento econômico e social de qualquer país. No entanto, não se lhes pode permitir o descumprimento da lei nem facilidades imorais. Aceitar que os administradores privados retenham recursos públicos, destinados à previdência do trabalhador, para financiar sua atividade particular é rigorosamente inadmissível. A Previdência Social não se destina a financiar a atividade econômica privada. Aliás, nesse sentido, vale apontar interessantes acórdãos do egrégio Tribunal Regional Federal da 4a Região:

CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS DESCONTADAS DOS SALÁRIOS E NÃO RECOLHIDAS À PREVIDÊNCIA SOCIAL.

Quem deixa de recolher contribuições previdenciárias descontadas dos salários de seus empregados está aproveitando recursos públicos para finalidades particulares; não lhes servem de escusa dificuldades financeiras, que são remediadas por empréstimos sempre onerosos,

ACr 6.725-PE 24

Page 25: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

nunca pelo expediente fácil de transformar recursos públicos em recursos privados.24

OMISSÃO NO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES. LEI 8.137/90, ART. 2o, II. Comprovada a falta do recolhimento das contribuições previdenciárias, devidamente descontadas do empregado, impõe-se a condenação do denunciado.25

57. Ademais, como se viu, é assente na jurisprudência o entendimento de que a mera alegação de dificuldade financeira, demonstrada inadequadamente, como neste caso, não é suficiente para provar estado de necessidade. Nesse sentido, entre outros, o seguinte acórdão:

PENAL. NÃO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. AUSÊNCIA DE DOLO. FALTA DE RECURSOS FINANCEIROS.

1. Comprovado que houve o pagamento dos salários com desconto da contribuição previdenciária, configurado está o crime previsto no artigo 2o, II, da Lei 8.137/90.

2. A lei não exclui da incidência do crime o fato de encontrar-se a empresa em dificuldades financeiras, ainda mais porque as referidas contribuições destinam-se ao atendimento da coletividade.

3. Apelo improvido.26

58. Desse modo, não há como admitir que a suposta inexistência de recursos seja suficiente para eximir de culpa o réu, ou tornar atípica sua conduta, ao desviar recursos públicos destinados às necessidades dos trabalhadores brasileiros para finalidades privadas.

59. Dificuldades econômicas inserem-se no risco de qualquer atividade, mormente em um país de economia sempre tumultuada por sucessivos planos econômicos, abundante corrupção e seguidos desgovernos. Tais dificuldades não se podem reputar como circunstâncias anômalas. Por isso, é inadmissível que – salvo em situações efetivamente excepcionais e que hajam sido objeto de prova cabal e indiscutível (caso que não é o destes autos) –, diante da singela alegação de dificuldades financeiras, opte o agente pela solução mais fácil, a de lançar mão de recursos que não lhe pertencem e que possuem destinação da mais alta relevância social, como é o caso dos valores correspondentes às contribuições previdenciárias descontadas da remuneração dos empregados.

60. Por tudo isso, esta Procuradoria Regional da República considera que não se pode absolver o réu com base no fundamento de dificuldades econômicas, uma vez que os autos não contêm prova dessa possível justificativa para a conduta do acusado, como exige o art. 156, primeira parte, do CPP.

24 TRF-4a Região. ACr no 94.01.21134-5/4. Rel.: Juiz Fernando Gonçalves. DJ 2, 10 nov. 1994, p. 64.144.25 TRF-4a Região. ACr no 42.04025775-0. Rel.: Juiz Vladimir Freitas. RTJE 132/196.26 TRF-4a Região. Revisão criminal no 92.04.42775-RS. Rel.: Juiz Jardim de Camargo.

ACr 6.725-PE 25

Page 26: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

61. No que se refere à dosimetria da pena, a insurgência defensiva falece de amparo jurídico. Não há documento algum que, no que se refere à pena de multa, indique situação de penúria do apelante ou que, no tocante à privação da liberdade, lhe diminua a culpabilidade. Na verdade, a avaliação da situação do réu adotada pelo juiz a quo merece até ser exasperada, conforme se salienta no exame do apelo ministerial, a seguir.

62. Diante disso, vê-se que o réu busca sem razão a reforma da sentença.

II.3. MÉRITO: APELAÇÃO DA PROCURADORIA DA REPÚBLICA

63. O recurso da acusação ataca a dosimetria da pena. De fato, a sentença não se encontra em total harmonia com a legislação penal, pois o magistrado deixou de observar adequadamente as diretrizes do art. 59 da lei penal, bem como não atentou de forma detida para o acréscimo decorrente da continuidade delitiva e para o valor apropriado da prestação pecuniária.

64. O juízo de primeiro grau não analisou corretamente as circunstâncias judiciais, tais como a personalidade do réu voltada ao engodo do poder público e, em especial, a elevada culpabilidade e a magnitude da lesão imposta à vítima, ou seja, à Previdência Social (em última análise, toda a sociedade brasileira, que a mantém). A lesão acarretada pelo crime atinge valores em torno de R$ 600 mil, os quais deveriam servir para atendimento das necessidades do sistema nacional de seguridade social, nas áreas de saúde, assistência e previdência social. Todos esses fatores se apresentam desfavoráveis ao réu.

65. O juízo fundamentou de forma precária a pena-base e não considerou o enorme prejuízo causado pela conduta do réu, que teve como principal vítima a sociedade, precisamente a camada mais necessitada da população, que mais carece do sistema de seguridade social. Desobedeceu, dessa forma, aos parâmetros estabelecidos no art. 59 do CP, razão pela qual há necessidade de exasperação da pena-base muito acima do mínimo legal.

66. Os elementos dos autos emprestam plena consistência à reforma parcial da sentença, para agravar a pena-base em face da elevada culpabilidade do acusado. Nesse sentido, é eloquente a jurisprudência:

Se a pena é aplicada acima do mínimo previsto na lei tendo em vista apenas a culpabilidade do réu – que inclui o conceito de intensidade do dolo do art. 42 da anterior redação do Código – não há nulidade a declarar (STF – RHC – Rel. Carlos Madeira – RT 628/370).27

27 FRANCO, Alberto Silva et alii. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed., rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 671, nota ao art. 59, sub item 2.01, a.

ACr 6.725-PE 26

Page 27: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

Os motivos, as circunstâncias e as conseqüências dos estúpidos homicídios agravam o teor de reprovabilidade dos atos criminosos, autorizando que se lembre o alto magistério de Nélson Hungria, no estudo que se encontra no final do vol. V, 1942, dos Comentários ao Código Penal: ‘A quantidade do crime e a qualidade do criminoso, o mal extremo e o mal interno completam-se, integram-se, fundem-se numa unidade orgânica, para apreciação do juiz. Todos os fatores e elementos circunstânciais [sic] do crime imputado, no seu duplo aspecto subjetivo e objetivo, podem ser levados em conta pelo juiz, desde que lhe pareçam ponderáveis, dentro do quadro do art. 42’ (ob. cit., p. 424).

Obviamente, esse magistério ajusta-se aos ditames do art. 59 da Lei 7.209/84 (TJSP – Ap. 70.757-3 – Rel. Jarbas Mazzoni).28

Estupro – Dosimetria de pena – Ausência de antecedentes, mas revelada a crueza da ação praticada contra menor de 10 anos de idade – Pena aplicada no grau máximo, se, em verdade, corresponde ao extremo rigor, não ultrapassa os limites que a lei penal confere à discriminação do Magistrado (STF – RHC – Rel. Décio Miranda – DJU 23.4.82, p. 3.669).29

Na fixação da pena pode-se aplicá-la no máximo cominado, com base apenas nas circunstâncias judiciais do art. 59 do CP (TACRIM-SP – AC – Rel. Nogueira Filho – BMJ 81/10).30

Criminal. HC. Roubo qualificado. Dosimetria. Circunstâncias judiciais negativamente valoradas. Exasperação motivada. [...] Ordem denegada.

I. Não há ilegalidade na dosimetria se a majoração da pena-base se deu de maneira devidamente fundamentada, com base na valoração negativa das circunstâncias judiciais.

II. Hipótese em que o Julgador de 1o grau utilizou, como fundamento para a elevação da pena base acima do mínimo legal, a culpabilidade, a personalidade, a periculosidade do agente, as circunstâncias e conseqüências do crime, destacando, ainda, o objetivo de lucro fácil.

III. Havendo suficiente fundamentação quanto às circunstâncias que levaram à exasperação da reprimenda, mantém-se a dosimetria aplicada na condenação, tornando-se descabida a análise mais acurada dos motivos utilizados para tanto, se não evidenciada flagrante ilegalidade, como in casu, tendo em vista a impropriedade do meio eleito.

IV. As circunstâncias consideradas na fixação do quantum da pena, mormente por decorrerem do mesmo fato concreto, devem repercutir também sobre a escolha do regime prisional inicial.

V. A lei permite ao juiz, desde que fundamentadamente, fixar regime mais rigoroso, conforme seja recomendável por alguma das circunstâncias judiciais previstas no Estatuto Punitivo.

VI. Se a sentença condenatória procedeu à devida motivação da pena, no que diz respeito a eventuais circunstâncias judiciais desfavoráveis ao paciente – tais como a culpabilidade, a periculosidade, a personalidade voltada para a prática criminosa, bem como as circunstâncias e

28 Franco et alii 1995:682, nota ao art. 59, sub item 2.06.29 Franco et alii 1995:687, nota ao art. 59, sub item 4.01, sem negrito no original.30 Franco et alii 1995:687, nota ao art. 59, sub item 4.01.

ACr 6.725-PE 27

Page 28: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

conseqüências do crime –, tanto é que a pena-base não foi fixada no mínimo, não há que se falar em constrangimento ilegal em decorrência da imposição do regime mais gravoso para o início do cumprimento da reprimenda.

[...]

X. Ordem parcialmente conhecida e denegada.31

67. Foi mesmo insuficientemente fixada a pena-base. A gravidade do delito, do ponto de vista da lesão à vítima, ou seja, à previdência social, precisa ser tomada em conta para elevar a pena-base. Lesão que hoje monta a mais de R$ 600 mil, em detrimento de toda a sociedade, deve ser apenada muito mais severamente do que o patamar fixado na lei como pena mínima. Ainda que os demais fatores do art. 59 do Código Penal fossem favoráveis ao acusado, a gravidade desse aspecto (a magnitude da lesão à vítima) já seria suficiente para elevar a reprimenda criminal a níveis mais severos, como requereu corretamente o órgão de acusação.

68. O recurso do Ministério Público Federal também requereu que sejam majorados a causa de aumento de pena da continuidade delitiva e, alternativamente, o valor da prestação pecuniária substitutiva da pena privativa de liberdade. Veja-se o trecho do apelo (fls. 345-346, vol. 2, sic):

Necessário acentuar que as apropriações se deram em abril de 2003 a novembro de 2004, totalizando a quantidade de dezenove delitos. Logo, definitivamente, não é razoável que se aplique o acréscimo da continuidade delitiva que não seja o máximo possível.

Nada obstante, a sentença de primeiro grau, embora tenha admitido a continuidade delitiva entre os crimes passados em abril de 2003 a novembro de 2004, aplicou apenas a fração de 1/3 como acréscimo de continuidade delitiva.

Além disso, nítida restou a insuficiência da pena de prestação pecuniária. Realmente, os valores sonegados superam em valores históricos a barreira de meio milhão de reais.

A seu turno, a pena de prestação pecuniária se fixou em irrisórios vinte salários mínimos, menos de dez mil reais em valores atuais, que ainda podem ser parcelados pelo período de cumprimento da pena privativa de liberdade, isto é, em aproximadamente quatro anos! Dentro de uma lógica empresarial, o crime realmente compensou.

[...]

Por isso, razoável a fixação do valor máximo legal da pena de prestação pecuniária, de trezentos e sessenta salários-mínimos.

69. Nos autos se verifica que o réu, na qualidade de administrador da empresa INTERIORANA SERVIÇOS E CONSTRUÇÕES LTDA., mais conhecida como Usina Estreliana, recolheu dos segurados empregados e contribuintes individuais, e não repassou à Previdência Social, as parcelas das contribuições previdenciárias referentes ao período de abril/2003 a 31 STJ. 5a T. HC no 4.1617/PR. Rel.: Min. Gilson Dipp. 17 maio 2005, un. DJ 1, 6 jun. 2005, p. 357.

ACr 6.725-PE 28

Page 29: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

novembro/2004, conforme a representação fiscal para fins penais de fls. 5-7 do apenso.

70. Merece reparo a sentença no que diz respeito à aplicação insuficiente do acréscimo previsto no artigo 71 do Código Penal, que cuida dos crimes continuados. Na decisão, o juízo singular aplicou como acréscimo apenas um terço da pena-base.

71. O correto, todavia, é que se aplique acréscimo bem superior ao mínimo, em virtude do reconhecimento da continuidade delitiva nestes autos. O não-recolhimento das contribuições previdenciárias atribuível ao réu prolongou-se por um ano e meio, ou seja, dezoito meses, no período entre abril de 2003 e novembro de 2004, conforme apontou a denúncia. Logo, não se pode apená-lo com apenas um terço sobre a pena aplicável, mas, sim, com o acréscimo máximo de dois terços ou, ao menos, acréscimo próximo disso, consoante a mais autorizada jurisprudência acerca da correta e justa interpretação do art. 71, caput, da lei penal.

72. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal e outros tribunais assim têm decidido há muitos anos. Apenas se tiver havido poucas repetições da conduta ilícita o aumento poderá ser o mínimo. Esse entendimento se pode confirmar, entre outros, nos seguintes arestos:

PENAL. CRIME CONTINUADO. PENA. COLISÃO DE DEFESA: INOCORRÊNCIA. Cód. Penal, art. 71.I. — Crime continuado: Cód. Penal, art. 71. Aumento de um sexto a dois terços: o aumento varia de acordo com o numero de crimes. No caso, tendo ocorrido dois crimes, o acréscimo será de um sexto.[...]III. — H.C. deferido, em parte.32

Sentença condenatória: crime continuado: anulação parcial, em habeas corpus anterior, para determinar [que] se renovasse a fixação da pena, com abstração de dois crimes — dos onze pelos quais fora inicialmente condenado o paciente — reputados da competência da Justiça Federal: fiel cumprimento pela nova decisão do Tribunal de Justiça do habeas corpus anteriormente concedido pelo STF, mediante redução, de dois terços para a metade, da exacerbação da pena base por força da continuidade.33

[...]PENA — DOSIMETRIA— CRIME CONTINUADO — DETERMINAÇÃO DO AUMENTO. Tanto quanto possível, a fixação do aumento deve decorrer do critério objetivo referente ao numero de infrações, evitando-se, com isto, o risco de incidência em verdadeiro bis in idem, ou seja, o de levar-se em conta circunstâncias já consideradas anteriormente no cálculo da pena base.

32 STF. 2a T. HC no 69.437-PR. Rel.: Min. Carlos Velloso. 1o dez. 1992, un. DJ 18 dez. 1992, p. 24.376, e RTJ 143(1)/215. No mesmo sentido: STF. 1a T. HC no

76.534-SP. DJ 1 16 abr. 1999, p. 3.33 STF. 1a T. HC no 76.505-MS. Rel.: Min. Sepúlveda Pertence. 10 mar. 1998, un. DJ 3 abr. 1998, p. 6.

ACr 6.725-PE 29

Page 30: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

Tratando-se de procedimento repetido uma única vez, tudo recomenda a aplicação do percentual mínimo de aumento.34

73. Ao contrário, se tiver sido grande o número de condutas repetitivas, o aumento deverá ser proporcionalmente elevado e chegar até o máximo:

HABEAS-CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA PRATICADO EM CONTINUIDADE DELITIVA: NÃO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA DESCONTADA DE EMPREGADOS. ALEGAÇÕES DE: EXCLUSÃO DA ILICITUDE POR INEXISTÊNCIA DE DOLO; EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELO PARCELAMENTO DO DÉBITO; INEXISTÊNCIA DE MORA POR VÍCIO NA NOTIFICAÇÃO ADMINISTRATIVA, PORQUE DIRIGIDA À PESSOA JURÍDICA; ATIPICIDADE DO CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA; E DE APLICAÇÃO DA LEX GRAVIOR EM DETRIMENTO DA LEX MITIOR: ULTRA-ATIVIDADE DA LEI PENAL QUANDO, APÓS O INÍCIO DE CRIME CONTINUADO, SOBREVÉM LEI MAIS SEVERA.1. Dolo genérico caracterizado: alegação de inexistência de recursos financeiros não comprovada suficientemente no processo-crime.2. A punibilidade é extinta quando o agente promove o pagamento integral do débito antes do recebimento da denúncia, o que não ocorre enquanto não solvida a última prestação de pagamento parcelado, possibilitando, neste período, o recebimento da denúncia. Precedentes.3. Improcedência da alegação de irregularidade da notificação expedida em nome da pessoa jurídica: há comprovação de que a correspondência foi entregue e de que o paciente dela teve ciência, sendo, assim, constituído em mora.4. Alegação improcedente de atipicidade do delito de apropriação indébita (crime de resultado), porque o paciente foi condenado por crime contra a ordem tributária: não recolhimento de contribuição previdenciária descontada de empregados, que é crime omissivo puro, infração de simples conduta, cujo comportamento não traduz simples lesão patrimonial, mas quebra do dever global imposto constitucionalmente a toda a sociedade; o tipo penal tutela a subsistência financeira da previdência social. Inexistência de responsabilidade objetiva.5. Direito intertemporal: ultra-atividade da lei penal quando, após o início do crime continuado, sobrevém lei mais severa.5.1 Crime continuado (CP, artigo 71, caput): delitos praticados entre março de 1991 e dezembro de 1992, de forma que estas 22 (vinte e duas) condutas devem ser consideradas, por ficção do legislador, como um único crime, iniciado, portanto, na vigência de lex mitior (artigo 2o, II, da Lei no 8.137, de 27.12.90) e findo na vigência de lex gravior (artigo 95, d e § 1o, da Lei no 8.212, de 24.07.91).5.2 Conflito de leis no tempo que se resolve mediante opção por uma de duas expectativas possíveis: retroatividade da lex gravior ou ultra-atividade da lex mitior, vez que não se pode cogitar da aplicação de duas penas diferentes, uma para cada período em que um mesmo e único crime foi praticado.Orientação jurisprudencial do Tribunal no sentido da aplicação da lex gravior.Ressalva do ponto de vista do Relator, segundo o qual, para o caso de crime praticado em continuidade delitiva, em cujo lapso temporal

34 STF. 2a T. HC no 69.033-SP. Rel.: Min. Marco Aurélio. 17 dez. 1991, un. DJ 13 mar. 1992, p. 2.925, e RTJ 139(1)/229.

ACr 6.725-PE 30

Page 31: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

sobreveio lei mais severa, deveria ser aplicada a lei anterior — lex mitior — reconhecendo-se a sua ultra-atividade por uma singela razão: a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (Constituição, artigo 5o, XL).6. Habeas-corpus conhecido, mas indeferido.35

COMPETÊNCIA - HABEAS-CORPUS - [...] SENTENÇA - PENA-BASE - FUNDAMENTAÇÃO – CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. Mostra-se razoável a sentença que, à mercê da culpabilidade, da personalidade do agente, das circunstâncias e conseqüências do crime, implique fixação da pena-base acima do mínimo legal e em patamar intermediário. Isso ocorre estando em jogo estelionato, por manuseio de contas-correntes e desvio de numerário, quando, entre o mínimo de um ano e o máximo de cinco, previstos para o tipo, restou estabelecida a pena-base em três anos.CONTINUIDADE DELITIVA - MAJORAÇÃO DA PENA - PERCENTAGEM. A eleição do percentual de acréscimo - de um sexto a dois terços - há de fazer-se considerado o numero de delitos. Exsurge inidônea à modificação do percentual máximo de dois terços o fato de, em relação a sete dos quarenta e cinco perpetrados, haver sido reconhecida a prescrição da pretensão punitiva do Estado.Razoabilidade da manutenção dos dois terços.36

“O elevado número de infrações cujas penas são unificadas autoriza a adoção de percentagem máxima decorrente da continuidade delinqüencial” (TACRIM-SP — Rec. — Rel. Valentim Silva — JUTACRIM 57/398).37

74. Desse modo, deve haver o provimento do recurso da Procuradoria da República também para aumentar em dois terços a pena-base, como acréscimo decorrente da continuidade delitiva.

75. Em conclusão, a pena-base do acusado deve ser fixada levando em consideração sua elevada culpabilidade e as graves consequências dos delitos, diante do valor global do dano causado ao INSS. Como o art. 168-A comina pena entre dois e cinco anos de reclusão, esta Procuradoria Regional da República entende que a pena-base deveria ser fixada em pelo menos quatro anos de reclusão. Levando em consideração o grande número de repetições da conduta delituosa, o acréscimo do art. 71 do CP deve ser feito no patamar máximo, segundo autoriza a jurisprudência predominante. Ao final, restará impossibilitada a substituição da pena na forma preconizada pelo art. 44 do CP. Ademais, em face da situação econômica do acusado, a pena de multa merece ser fixada no patamar máximo.

35 STF. 2a T. HC no 76.978-RS. Rel.: Min. Maurício Corrêa. 29 set. 1998, maioria. DJ 1 19 fev. 1999, p. 27. No mesmo sentido: STF. 2a T. HC 79.542-SP. DJ 1 25 fev. 2000, p. 53.36 STF. 2a T. HC no 73.446-SP. Rel.: Min. Marco Aurélio. 19 mar. 1996, un. DJ 3 maio 1996, p. 13.903. No mesmo sentido: STF. Plenário. HC no 79.758-RJ. Un. DJ 25 ago. 2000, p. 60.37 FRANCO, Alberto Silva et alii. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed., rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 905, nota ao art. 71, item 17.06 (“Pena unificada — Dosimetria”).

ACr 6.725-PE 31

Page 32: Íntegra da manifestação da PRR-5

.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 5.a REGIÃO

III. CONCLUSÃO

76. Ante o exposto, o Ministério Público Federal opina pelo provimento da apelação da Procuradoria da República em Pernambuco, na forma acima exposta, e pelo não-provimento do recurso do réu.

77. Nos termos do Provimento no 1, de 29 de novembro de 2000, da Corregedoria da Justiça Federal da 5a Região, o Ministério Público Federal requer que Vossa Excelência determine a abertura de novo volume para este processo, uma vez que este possui mais de 230 folhas, já é de manuseio difícil e causará desgaste acelerado dos autos.

Recife (PE), 30 de julho de 2009.

WELLINGTON CABRAL SARAIVA

Procurador Regional da RepúblicaWS/FJS

ACr 6.725-PE 32