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6ª ENCONTRO ABRI
25 A 28 DE JULHO DE 2017, BELO HORIZONTE – MG, BRASIL
Área Temática: Segurança Internacional, Estudos Estratégicos e Política De Defesa
A GEOPOLÍTICA ENERGÉTICA RUSSA NA ERA VLADIMIR PUTIN
Autor: José Késsio Floro Lemos
(Universidade Federal de Pernambuco - UFPE)
Belo Horizonte
2017
2
RESUMO
Publicado em 2003, o documento oficial intitulado Energy Strategy of the Russian
Federation up to 2020, insta o Estado russo a estar profundamente envolvido no setor de
energia para proteger o país de ameaças internas e externas. Além disso, a estratégia oficial
observa que "a segurança energética é o elemento mais importante na segurança nacional
da Rússia". Esta pesquisa tentará identificar as complexas relações entre a política energética
e a política externa da Rússia. É vasta a literatura que destaca a importância dos recursos
energéticos no processo de recuperação do protagonismo da Rússia na política internacional.
Durante a década de 90, o país esteve enfraquecido e debilitado. Afinal, o fim da Guerra Fria
e o colapso da União Soviética em 1991, transformou um Estado independente com mais de
1000 anos de tradição imperialista em um país fragmentado, marcado pelos vácuos
identitário, ideológico e político. Todavia, a chegada do presidente Vladimir Putin ao poder
gerou importantes mudanças nas diretrizes de política externa da Rússia. Neste contexto, a
proposta deste trabalho consiste em identificar os mecanismos causais que poderão
responder a seguinte pergunta de pesquisa: o que motivou Vladimir Putin a reestruturar o
setor energético da Rússia? Quais são as causas e a função para a estratégia internacional
da Rússia no início dos anos 2000? Os mecanismos causais estão divididos em dois níveis
de análise: 1- nível regional/internacional; 2-nível doméstico. O projeto que propomos baseia-
se na hipótese de que o enfraquecimento da posição relativa da russa na distribuição de poder
internacional gerou incentivos para a reestruturação do setor energético do país. Ou seja, a
energia passou a ser vista como um fator chave na construção do poder político e econômico
do país e na formação do comportamento do Kremlin nas relações internacionais.
PALAVRAS-CHAVE: RUSSIA, GEOPOLÍTICA, ENERGIA, PUTIN.
3
INTRODUÇÃO
A Rússia está de volta ao tabuleiro da geopolítica internacional. Passados um pouco
mais de vinte e cinco anos desde dissolução da URSS, o ensejo de entender e investigar a
Rússia não se esvaeceu. Continua bem vivo e mantém-se vivo pelo fato de que ainda há mais
perguntas do que respostas a respeito do objetivo, do caminho e do modelo da evolução da
Rússia desde 1991. Uma falta de clareza, quanto ao lugar que a Rússia ocupa e pretende
ocupar no mundo contemporâneo leva a comunidade acadêmica a buscar respostas a
respeito. Sendo assim, sob esse pretexto está ancorada esta pesquisa.
É notória a importância dos recursos energéticos no processo de recuperação do
protagonismo da Rússia na política internacional. Durante a década de 90, o país esteve
enfraquecido e debilitado. Afinal, o fim da Guerra Fria e o colapso da União Soviética em 1991,
transformou um Estado independente com mais de 1000 anos de tradição imperialista em um
país fragmentado, marcado pelos vácuos identitário, ideológico e político. No entanto, a
chegada do presidente Putin ao poder gerou importantes mudanças nas diretrizes de política
externa da Rússia.
Publicado em 2003, o documento oficial intitulado Energy Strategy of the Russian
Federation up to 2020, instou o Estado russo a estar profundamente envolvido no setor de
energia para proteger o país de ameaças internas e externas. Além disso, a estratégia oficial
observa que "a segurança energética é o elemento mais importante na segurança nacional
da Rússia". Deste modo, esta pesquisa tentará identificar as complexas relações entre a
política energética e a política externa da Rússia.
A energia impacta várias manifestações de poder, como o poder político, militar,
econômico e tecnológico (FUSER, 2013) A elite governante da Rússia considera a energia
como o motor do crescimento econômico e a base para a afirmação do país como uma
superpotência na política internacional (MANESS; VALERIANO, 2015). Ao contrário do que
muitos sugerem, a Rússia ainda não é uma "superpotência energética”. Em comparação com
as principais economias da Europa Ocidental, o país ainda é uma potência relativamente
fraca, com um produto interno bruto per capita seis vezes menor do que o dos EUA (WORLD
BANK, 2017c). No entanto, a importância do país como o principal exportador da Eurásia,
combinada com o seu assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e com o seu
enorme arsenal de armas nucleares, tornam-no um jogador regional chave com ambições e
estratégias globais. Enquanto a Rússia vê novas oportunidades de abertura nos mercados
internacionais devido ao seu potencial energético, o mundo exterior está observando o
crescimento do protagonismo de Moscou com grande preocupação.
4
Em documentos oficiais, a Rússia declara como grande objetivo preservar e fortalecer
a sua soberania e integridade territorial, alcançando uma posição firme e de prestígio na
comunidade mundial, totalmente consistente com os interesses da Rússia como grande
potência (RUSSIA, 2017). Além disso, o país se autodeclara um dos centros mais influentes
do mundo moderno. Por essa razão, para o governo russo, o país precisava se reerguer.
As mudanças no contexto internacional e as dificuldades financeiras do Kremlin
fizeram com que apenas o seu arsenal nuclear e o assento permanente no CS da ONU fossem
pouco relevante no início dos anos 2000. Sendo assim, Moscou decidiu usar outros
instrumentos de política externa disponível afim de recuperar o seu estatuto de superpotência.
O novo governo logo passou a se ocupar com a difícil tarefa de moldar novas
identidades políticas nacionais e estrangeiras. Inicialmente, Moscou decidiu abandonar
importantes instrumentos de política externa, tais como o hardpower1 político e ideológico da
era soviética. Assim, o país passou utilizar outros métodos para fortalecer sua posição na
arena internacional e consolidar sua influência dentro da área da antiga União Soviética - que
durante a década de 90 foi alvo de intensas investidas diplomáticas dos EUA (GHALEB,
2011). Um dos principais instrumentos escolhidos foi o a energia (MANESS; VALERIANO,
2015).
No que concerne a capacidade energética da Rússia, atualmente o país é o segundo
maior produtor de gás natural do mundo e o terceiro maior produtor de petróleo
(INTERNATIONAL ENERGY AGENCY, 2016). Os recursos energéticos da Rússia passaram
a ser a principal prioridade econômica e política no início da Era Putin. As principais
orientações da política energética russa foram elaboradas pela Administração Presidencial no
contexto da gestão dos recursos minerais russos e, em contraste com a posição do Kremlin
no setor da energia durante os anos 90, implicaram o estabelecimento de níveis mais firmes
de controlo estatal sobre os recursos energéticos.
A poderosa capacidade de suas reservas fez o país emergir como um player cada vez
mais importante nos mercados globais de energia - devido à sua posição como um importante
fornecedor de petróleo e gás natural, particularmente para a Europa. Além disso, as
exportações de energia da Rússia desempenharam um papel central na recuperação da
economia da Rússia após a crise financeira de 1998 (BOCHKAREV, 2006; DELLECK, 2011).
No entanto, até início do século XX a capacidade do Estado russo de gerenciamento
dos seus recursos energéticos era bastante limitada. As mudanças ocorridas após o fim da
URSS descentralizaram as decisões no setor, fazendo o Estado perder o controle sobre as
1 Conceito usado pela vertente realista das relações internacionais e designa a capacidade de um corpo político (geralmente, um Estado) de influenciar ou exercer poder sobre o comportamento de outro, mediante o emprego de recursos militares e econômicos.
5
decisões políticas do setor energético e também sobre os recursos provindos das
exportações.
Nesse sentido, o principal objetivo desta pesquisa é explicar o que levou a Rússia a
reestruturar o setor energético do país. Investigaremos as causas dessa decisão e a sua
função para a estratégia internacional da Rússia no início dos anos 2000. Essa proposta de
explicação passa pela elucidação das condições, dos antecedentes, dos fatores causais e da
motivação para a ação. De uma maneira mais ampla, o nosso problema consiste em explicar
uma decisão de política interna com evidentes motivações e objetivos de política externa.
Importante salientar que a presente pesquisa é apenas um fragmento de um projeto
de dissertação em andamento. Os resultados apresentados são parciais. Em suma, iremos
abordar aqui apenas uma dimensão de análise em relação a proposta original do projeto, que
é uma visão sobre o espectro sistêmico da discussão. Fatores domésticos serão analisados
com mais profundidade no âmbito global do projeto.
A RÚSSIA NA ORDEM INTERNACIONAL
Historicamente, a Rússia sempre é lembrada como um importante player na política
internacional. A influência do país no exterior não se limita a seus suprimentos de energia -
como é para a Arábia Saudita, mas se estende do seu status de potência nuclear para a
participação no BRICS, sem mencionar seu assento permanente no Conselho de segurança
da ONU.
No entanto, a dissolução da União Soviética (URSS) no início da década de 1990 e o
enfraquecimento de seu maior pilar – a própria Rússia, representou uma alteração na ordem
internacional. O nível alarmante do declínio russo é percebido pelo fato de que o país foi a
“única potência no século XX, cujo padrão de vida e a expectativa caíram a níveis de
subdesenvolvimento” (HAGE, 2013, pp. 23). Seu Produto Interno Bruto (PIB) despencou pela
metade. Ou seja, a Rússia havia sucumbido em meio a uma guerra fria.
Aproveitando-se de sua fragilidade, os Estados Unidos da América começaram a
estender sua influência em direção da área ex-URSS. Em 1996, o então presidente Bill Clinton
(1993-2001) os EUA se recusaram a ratificar o Tratado de Proibição Total de Testes, bem
como as mudanças que no SALT 2 (Strategic Arms Limitation Talks) 2, estabelecia um maior
controle sobre armas estratégicas. Já durante o mandato de George W. Bush (2001-2009),
os EUA deixaram o Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM), que havia sido celebrado em
2 As Conversações sobre Limites para Armas Estratégicas (mais conhecidas em inglês como Strategic Arms Limitation Talks ou SALT) são duas rodadas de negociações bilaterais e consequentes tratados internacionais entre a União Soviética e os Estados Unidos, as superpotências da Guerra Fria, acerca do tema do controle de armas nucleares. Houve duas rodadas de acordos: SALT I e SALT-II.
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1972 com então URSS (BANDEIRA,2013). Além disso, a Casa Branca decidiu empenhar-se
no estabelecimento de um sistema de defesa antimísseis na Polônia e República Tcheca.
Todos esses acontecimentos foram minando as frágeis garantias de segurança que a
Rússia havia recebido ao final da Guerra Fria. A maior dessas garantias era o compromisso
do EUA de que a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte)3 não se expandiria para
áreas adjacentes ao espaço pós-soviético. No entanto, ainda na administração do presidente
Clinton, ficou evidente que os EUA agiriam de outra forma. Em meados da década de 1990 a
expansão da OTAN começou a ser consolidada. O primeiro alargamento da organização
trouxe a sua esfera a República Tcheca, Hungria e Polônia. O segundo ocorrei em 2004, e
incluiu a Bulgária, Estônia, Lituânia, Letônia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia
(MEARSHIMER, 2014).
A expansão da OTAN é vista pelos líderes de Moscou como uma continuação da
Guerra Fria e uma tentativa de cercar e isolar a Rússia. Por diversas vezes o então presidente
Boris Yeltsin (1991-1999) demostrou grande insatisfação da Rússia ante o engajamento da
organização em no “quintal” russo. Todavia, durante a década de 1990 a Rússia estava
enfraquecida demais para reagir. Ademais, durante o mandato de George W Bush (2001-
2009) os EUA invadiram o Iraque, uma iniciativa unilateral que desrespeitou o Conselho de
Segurança da ONU. Desta forma, Bush acabou enfraquecendo todos os “fundamentos da
ordem internacional e, consequentemente, da paz possibilitada pelo fim da Guerra Fria”
(BANDEIRA, 2013, p. 111).
O INICIO DA ERA VLADIMIR PUTIN
O período de 2000-2008 corresponde aos anos da primeira “era Vladimir Putin” como
Presidente da Federação Russa. Em meados do primeiro ano de seu mandato, mais
precisamente no dia 28 de junho, um documento intitulado The Foreign Policy Concept of the
Russian Federation foi aprovado pelo novo presidente russo. Neste documento havia
recomendações explicitas quanto aos objetivos da política externa de Moscou. Entre esses
objetivos, destacam-se os seguintes: “preservar e fortalecer a soberania e integridade
territorial [da Rússia], alcançar uma posição firme e de prestígio na comunidade mundial,
totalmente consistente com os interesses da Rússia como grande potência, um dos centros
mais influentes do mundo moderno, e que são necessários para o crescimento do seu
3 Organização do Tratado do Atlântico Norte: aliança militar intergovernamental baseada no Tratado
do Atlântico Norte, que foi assinado em 4 de abril de 1949. A organização constitui um sistema de defesa coletiva através do qual seus Estados-membros concordam com a defesa mútua em resposta a um ataque por qualquer entidade externa à organização.
7
potencial político, econômico, intelectual e espiritual” (THE FOREIGN POLICY CONCEPT OF
THE RUSSIAN FEDERATION, 2000).
Desde o início de seu mandato, Putin pretendia restaurar a economia russa usando a
indústria de energia como uma alavanca. Em 1997, o então futuro presidente submeteu uma
tese à Universidade de São Petersburgo sobre o papel dos recursos naturais no
desenvolvimento econômico. De acordo com sua peça, publicada em 2000 (mas indisponível),
o desenvolvimento da Rússia exigia a exploração das reservas de energia do país para
alavancar o Estado (DELLECK; GOMART, 2011). O cálculo era simples: a fim de acompanhar
as economias mais avançadas do G7, a Rússia precisava atingir uma taxa de crescimento
anual de quatro a seis por cento anuais. Este programa, que Putin implementou após a adesão
à presidência, parece ter dado fruto, já que o crescimento anual da Rússia entre 2000 e 2008
foi de cerca de seis por cento. Para alcançar tais resultados, Putin precisou liderar uma grande
reestruturação no setor energético do país.
Figura 1- Produto Interno Bruto da Rússia
Fonte: Banco Mundial, 2017
As recomendações elencadas pelo documento colaboram com o que John J.
Mearsheimer afirma em um artigo publicado na revista Foreign Affairs (MEARSHIMER, 2014).
Nele, o teórico americano defende a hipótese que o engajamento político dos EUA no
chamado “espaço pós-soviético”4 e a expansão da OTAN em direção às regiões adjacentes
à Rússia, iniciada na década de 1990, despertou no Kremlin um grande desconforto e
apreensão. Pois, ao fim da Guerra Fria os líderes russos deixaram claro que não queriam a
4 Países que faziam parte da URSS (extinta em 1991).
8
expansão da organização e a intromissão dos EUA e da Europa no seu entorno estratégico.
Em 2007, Vladimir Putin alertou que “os Estados Unidos haviam ultrapassado suas fronteiras
nacionais em todos os setores”, o que era “muito perigoso”, e mostrou-se totalmente contrário
à expansão da OTAN, o que ele chamou de “uma organização político-militar que reforça sua
presença em nossas fronteiras” (PUTIN apud BANDEIRA, 2013, p. 111).
O descumprimento dos acordos por parte do Ocidente trouxe à tona uma percepção
de fragilidade na consciência dos policymakers russos. Afinal, a OTAN representava uma
instituição inimiga da antiga URSS. Não obstante, o saudosismo de uma época em que a
Rússia era uma superpotência mundial perseguia o imaginário de muitos no país. Este cenário
tornou-se um terreno fértil para o surgimento de uma onda nacionalista que favoreceu o
fortalecimento político de grupos que defendiam a necessidade do Estado russo reagir e se
reerguer. Nesse contexto, Vladimir Putin chegou ao poder.
MUDANÇAS INTERNAS
A reestruturação do setor energético russo
Ao assumir a presidência em 2000, Vladimir Putin encontrou um governo que não
detinha um expressivo controle do setor de petróleo e gás do país. O dinheiro do petróleo
muitas vezes contornava o orçamento do Estado, tornando difícil para o governo planejar e
controlar o seu fluxo financeiro (DELLECK; GOMART, 2011). Além disso, os novos barões do
petróleo tornaram-se mais envolvidos na política. Como um meio de isolar seus negócios da
burocracia russa, estes vendiam suas ações para empresas estrangeiras. Ao mesmo tempo,
os preços mundiais do petróleo e do gás começaram a subir. Diante dessa realidade, a
administração do novo governo logo decidiu tomar medidas com o objetivo de controlar o setor
energético e canalizar as crescentes receitas da energia a favor do Kremlin.
No primeiro ano do governo Putin houve uma grande reestruturação no Ministério de
Combustíveis e Energia - que passou a ser chamado Ministério da Energia. Nessa
reestruturação, o ministério perdeu muitas das suas responsabilidades para com outras
instituições estatais (HENDERSON; FERGUSON, 2014). A responsabilidade pela alocação
de quotas foi transferida para uma comissão especial controlada pelo vice-primeiro-ministro.
Em março de 2004, todas as antigas estruturas ministeriais haviam sido alteradas e divididas.
Todos os ministérios federais agora estavam sob a jurisdição direta do presidente. Além disso,
nove ministérios federais também foram colocados sob a jurisdição do primeiro-ministro,
incluindo o novo Ministério da Energia (BOCHKAREV, 2006).
9
A reestruturação da Gazprom
A partir de 2005, a Gazprom se tornou a principal empresa responsável pelo controle
do setor energético da Rússia. Em 2000, o Kremlin buscou maior controle sobre a empresa,
que era majoritariamente privada (DELLECK; GOMART, 2011). Um novo presidente do
conselho de administração da empresa foi eleito, e Chernomyrdin foi substituído por Dmitry
Medvedev como vice-chefe da administração presidencial. Rem Vyakhirev e a sua equipa de
gestão, que controlara a empresa por 10 anos, foram substituídos por uma nova equipe de
St. Petersburg, liderada por Aleksei Miller Vyakhirev. Vyakhirev perdeu o direito de administrar
a participação do estado na Gazprom. Todos os postos financeiros chave foram dados à
equipe de St. Petersburg. Até maio de 2005, apenas três dos dezanoves membros do Comité
de Gestão anterior permaneceram (BOCHKAREV, 2006).
As mudanças de propriedade no setor energético russo, ocorridas entre 2004-2005,
envolveram a troca dos oligarcas do petróleo e dos ex-burocratas soviéticos por aliados do
Kremlin. Após a reestruturação, os novos atores do petróleo – chamados de "St. Petersburg
", passou a controlar quase 60% da produção de petróleo e quase toda a produção de gás na
Rússia. A reestruturação foi acompanhada por uma "fusão mania" (ROSNER, 2006). Ou seja,
o Kremlin procurou assumir o controle de outras empresas do setor, como Surgutneftegas,
Slavneft, pelo menos metade da TNK-BP, e os restos de Yukos, usando os gigantes estaduais
Rosneft e Gazprom como veículos de consolidação. Um benefício adicional da perspectiva do
Kremlin era que poderia controlar mais facilmente duas empresas de petróleo e gás
consolidadas do que muitas empresas regionais e privadas.
Depois de tomar Gazprom sob o controle do Estado, Vladimir Putin assinou emendas
à Lei Federal "Sobre o fornecimento de gás na Federação Russa", permitindo que o governo
tenha uma participação majoritária no monopólio de gás (ROSNER, 2006). No entanto, a
liberalização das ações não significou que o governo estivesse pronto para liberalizar a própria
indústria do gás. O objetivo era estabelecer disciplina no processo orçamentário da empresa
e tornar as transações financeiras mais transparentes para atrair investimentos estrangeiros
(BOCHKAREV, 2006).
É interessante observar que o nível de ambições internacionais da Rússia parece ter
aumentado proporcionalmente aos preços da energia e da reestruturação do setor de energia.
Quando foi eleito presidente em março de 2000, Putin enfrentou um considerável desafio de
política externa. Putin tinha que encontrar uma espécie de terceira via entre o vínculo entre a
política externa e interna ocidentalizante dos últimos anos de Gorbachov e os primeiros anos
de Yeltsin e a política externa anacrónica e geopolítica da segunda metade e do século
passado.
10
A RÚSSIA SOB O PRISMA TEÓRICO
Para a teoria realista neoclássica das Relações Internacionais a variável independente
com a qual a política externa é explicada é a preocupação dos Estados pela posição relativa
que ocupam na distribuição de poder internacional (LOBELL, RIPSMAN E TALIAFERRO,
2009). Ao mesmo tempo, o realismo neoclássico (re)introduz de maneira sistemática os
fatores domésticos em suas explicações de política externa: recursos (no nosso caso recursos
energéticos), capacidade de mobilização, influência dos atores sociais domésticos e grupos
de interesse, nível de coesão das elites, etc. Esses fatores não são considerados os
determinantes principais das políticas externas, mas sim variáveis intervenientes, presentes
em modelos que dão prioridade explicativa aos fatores sistêmicos. Sendo assim, o realismo
neoclássico pode oferecer as melhores explicações para o nosso problema de pesquisa.
Ou seja, o enfraquecimento da Rússia no sistema internacional, segunda tal teoria,
seria um fator de influência na política externa do Kremlin. Apesar das multidimensões de
análise existentes no estudo das Relações Internacionais, focaremos aqui no realismo
neoclássico, haja vista parecer oferecer explicações mais fundamentadas com as pretensões
dos governantes russos.
Não obstante, em uma clássica produção dos estudos internacionais na década de
1970, Jeffrey Hart publicou um artigo intitulado Three Approaches to the Measurement of
Power in International Relations, nele o autor defende a hipótese de que o poder do Estado
pode ser concebido em três níveis: (1) recursos ou capacidades, (2) conversão de
capacidades através de processos nacionais; (3) e o poder dos resultados. O ponto de partida
para pensar e o desenvolvimento de métricas para o poder nacional é ver os Estados como
"contêineres de capacidade". No entanto, essas capacidades - demográficas, econômicas,
tecnológicas e de recursos naturais - apenas se manifestam através de um processo de
conversão. Os Estados precisam converter recursos materiais em instrumentos mais
utilizáveis, como a habilidade de combate. No final, no entanto, eles se preocupam com o
poder nos resultados (HART, 1976).
A Teoria Geopolítica (política aplicada sobre os espações geográficos) tem na variável
energia um componente central na sua formulação. O Excedente de poder gerado pelo
domínio do espaço geográfico, que falam Ratzel, Mackinder, Haushofer, Spykman e outros,
tem na capacidade de geração de energia um elemento fundamental. Segundo estes autores,
o controle das fontes de energia é elemento central de poder e de riqueza e, também, central
no jogo das relações internacionais. Afinal, a energia é um elemento fundamental para o
funcionamento de todos os setores de um país, como comunicação, transporte,
desenvolvimento social, qualidade de vida e operacionalização de forças militares. Assim, “a
11
segurança energética se insere no processo de securitização das nações”. (MONIÉ;
BINSZTOK, 2012, p. 20).
De volta ao jogo
No que concerne ao poder de obter resultados desejados, a Rússia se destaca como
o principal fornecedor de energia da União Europeia (UE), que importa quase um terço do seu
petróleo e quase metade do seu gás natural da Rússia - embora o nível de dependência difere
muito entre os Estados membros da UE (PEROVIC, 2009). Essa aguda dependência que a
EU tem dos suprimentos energéticos russos potencializa a capacidade de exercer pressão
política sobre o continente, que vale salientar, é a região onde se concentra a maioria dos
membros da OTAN.
Sendo assim, “há como afirmar que a energia para a Rússia é instrumento de política
que deve ser usado para “disciplinar” vizinhos que eventualmente perdem o acato de Moscou”
(HAGE, 2013). Assim foi feito durante as “revoluções coloridas”. Na Ucrânia, por exemplo,
eleições que escolheram para a presidência candidatos com linhas independentes, que
preferiram diminuir relações com a Rússia foram duramente retaliados. Em 2008 houve uma
clara manifestação disso. “O corte no envio de gás no período de inverno e a subida no preço
do metro cúbico exportado são elementos de pressão que os dirigentes russos podem fazer
em sinal de descontentamento (HAGE, 2013, p. 208).
Nesse sentido, o nacionalismo energético russo pode ser entendido como um esforço
objetivando a conversão da imensa capacidade energética da Rússia em poder e influência
na ordem internacional. Esse processo é apontado como motor do ressurgimento russo nos
últimos anos (BOCHKAREV, 2006; DELLECK, 2011). O aumento do protagonismo da Rússia
nas relações internacionais é considerado um resultante da estratégia de instrumentalizar o
controle sobre sua capacidade energética para alavancar sua economia e usar a exportação
de gás e petróleo como arma política no plano internacional. O “petróleo e o gás natural são
meio para se chegar a outro patamar, o de reforçar as bases para que o país tenha condições
de exercer uma política exterior de maior envergadura” (HAGE, 2013, p. 209).
QUADRO 1
Posição relativa de um Estado no sistema internacional
Fatores domésticos
Política Externa
Fonte: Elaborado pelo autor
12
Vale salientar que o crescimento russo nesse século foi alimentado por uma
considerável alta nos preços do petróleo e gás. Esse aumento turbinou as receitas de Moscou,
financiou o aumento de sua força militar, aumentando seu poder de atuação no tabuleiro da
geopolítica internacional.
Figura 2 – Orçamento Militar Russo (% do PIB)
Fonte: Banco Mundial, 2017b
Deste modo, a energia tem sido um fator chave na formação das relações externas da
Rússia, tanto no contexto eurasiano como global. Este desenvolvimento levanta uma série de
perguntas para a Rússia e o Ocidente: como a Rússia usará o poder que ela ganha com sua
riqueza energética e como o Ocidente deve reagir ao novo peso político da Rússia?
As respostas para tais perguntas passam pela compreensão dos momentos iniciais
desse turning point na dinâmica entre a política energética e externa do Estado russo. Assim
sendo, essa pesquisa buscou contribuir para essas questões.
Assim, a proposta dessa pesquisa buscou explicar quais mecanismos, afinal,
estiveram por trás da proposta russa para a reestruturação do setor energético do país, a sua
motivação e o sentido estratégico. Posto isto, a pergunta de nossa pesquisa é a seguinte:
O que motivou Vladimir Putin a reestruturar o setor energético da Rússia? Quais são as
causas dessa decisão e qual a sua função para a estratégia internacional da Rússia no
início dos anos 2000?
13
A resposta para essa pergunta pode ser observada no quadro abaixo:
FIGURA 3 - Mecanismo causal entre Y e X.
1) Nível Regional/Internacional
• Aproximação política dos EUA sobre que países vizinhos (ex -repúblicas soviéticas)
• Expansão da OTAN
• Deterioração das condições de segurança
• Percepção de vulnerabilidade
• Aumento nos preços mundiais da energia
2) Nível Doméstico
• Descentralização no controle dos recursos energéticos
• Recursos provindos da exportação de energia contornavam o orçamento do governo
• Fragilidade política e econômica do Estado ante as ameaças externas
Fonte: Baseado em (TEIXEIRA JUNIOR, 2013)
Esses fatores se ligam ao projeto de Política Externa do mandato do governo Vladimir
Putin, o qual buscou instrumentalizar a capacidade energética russa com uma ferramenta
para a realização dos interesses nacionais. Ou seja, a energia passou a ser vista como um
fator chave na construção do poder político e econômico no país e na formação do
comportamento do Kremlin nas relações internacionais
CONSIDERAÇÃO FINAIS
A energia transformou a economia da Rússia após o seu declínio durante a década de
1990. A riqueza gerada pelas exportações de petróleo e gás proporcionou recuperação
econômica e estabilização política, além de ter contribuído significativamente para a
assertividade da Rússia como uma grande potência. A energia tem sido um fator chave na
formação das relações externas da Rússia, tanto no contexto eurasiano como global
(GHALEB, 2011). A União Europeia e países vizinhos - como Ucrânia e Geórgia - dependem
substancialmente do fornecimento de gás natural da Rússia, que pode moldar as relações
Condições necessárias e Suficientes
Mecanismos Causais (Y)
Resultado (X). Iniciativa da Rússia
de reestruturar seu
setor energético
14
com tais países utilizando a energia como arma política. Ou seja, oferecendo suprimentos
energéticos mais baratos para países aliados e/ou onerando os preços e até mesmo
interrompendo o fornecimento de gás e/ou petróleo para países hostis aos interesses de
Moscou.
O papel da Rússia como grande produtor de petróleo e gás fortaleceu o Estado russo
em relação à sociedade civil nacional, minou a democratização e as reformas de mercado e
encorajou a Rússia a buscar uma política externa mais ativa e agressiva. Afinal, o monopólio
sobre a maior parte do fornecimento de energia europeu concede a Moscou um poder político
considerável sobre grande parte dos países membros da OTAN - fato que é visto com muita
desconfiança pelo Ocidente.
Sendo assim, defendemos a hipótese de que a iniciativa russa de nacionalizar o setor
energético do país resulta da priorização da política energética para os objetivos de Política
Externa: ampliação da posição relativa do país na distribuição de poder internacional. Através
do controle da máquina energética do país, o Estado russo passou a ter maiores receitas e
maior poder político sobre os países importadores de suas fontes energéticas. Ou seja, a
importância da reestruturação do setor energético da Rússia foi crucial para essa maior
assertividade. Afinal, antes da Era Putin o Estado russo tinha pouco controle sobre as
decisões do setor e pouca participação nas receitas, fato que criava um imenso vácuo entre
as capacidades de poder da Rússia e o processo de conversão destes como instrumentos de
maximização de influência e poder.
15
REFERÊNCIAS
BANDEIRA, Luiz Alberto M. A Segunda Guerra Fria: geopolítica e dimensão estratégica
dos Estados Unidos -Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
BOCHKAREV, Danila. Russian Energy Policy During President Putin’s Tenure: Trends
and Strategies. London: GMB, 2006.
DELLECK, Adrian; GOMART, Thomas. Russian energy security and foreign policy. New
York: Routledge, 2011.
FUSER, Igor. Energia e Relações Internacionais. São Paulo: Saraiva, 2013.
GHALEB, Alexander. Natural Gas as an instrument of Russian State. Carlisle: SSI, 2011.
HART, Jeffrey. Three Approaches to the Measurement of Power in International
Relations. International Organization Journal, Wisconsin, V. 30, N. 2, pp. 289-305, Spring,
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HENDERSON, James; FERGUSON, Alastair. International Partnership in Russia:
Conclusions from the Oil and Gas Industry. Palgrave: New York, 2014.
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