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Aspectos Da Acao Episcopal de D Jose Botelho de Matos
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
ASPECTOS DA AO EPISCOPAL DE D. JOS BOTELHO DE
MATOS SOB A LUZ DAS RELAES IGREJA-ESTADO (BAHIA,
1741-1759)
REBECA C. DE SOUZA VIVAS
Salvador BA 2011
REBECA C. DE SOUZA VIVAS
ASPECTOS DA AO EPISCOPAL DE D. JOS BOTELHO DE MATOS SOB A
LUZ DAS RELAES IGREJA-ESTADO (BAHIA,1741-1759)
Dissertao de Mestrado apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em Histria da
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas,
Na Universidade Federal da Bahia, como
requisito parcial para a obteno do Grau de
Mestre em Histria.
Orientador:
Prof. Dr. Evergton Sales Souza.
Salvador BA 2011
______________________________________________________________________
Vivas, Rebeca C. de Souza
V856 Aspectos da ao episcopal de D. Jos Botelho de Matos sob a luz das relaes
Igreja-Estado (Bahia, 1741-1759) / Rebeca C. de Souza Vivas. Salvador, 2011. 144f.
Orientador: Prof. Dr. George Evergton Sales Souza
Dissertao (mestrado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2011.
1. Episcopado. 2. Igreja e Estado Bahia Histria 1741-1759. I. Souza, George Evergton Sales. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e
Cincias Humanas. III. Ttulo.
CDD 261.7
REBECA C. DE SOUZA VIVAS
ASPECTOS DA AO EPISCOPAL DE D. JOS BOTELHO DE MATOS SOB A
LUZ DAS RELAES IGREJA-ESTADO (BAHIA, 1741-1759)
Dissertao de Mestrado apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em Histria da
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas,
Na Universidade Federal da Bahia, como
requisito parcial para a obteno do Grau de
Mestre em Histria.
Orientador:
Prof. Dr. Evergton Sales Souza.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Prof. Dr. Evergton Sales Souza Orientador Universidade Federal da Bahia
_________________________________________________________
Prof. Dr. Jos Pedro Paiva
Universidade de Coimbra
_________________________________________________________
Prof. Dr. Cndido da Costa e Silva
Universidade Catlica do Salvador
Aprovado em
29/07/2011
5
AGRADECIMENTOS
Engana-se quem pensa que o ofcio de historiador nos reduz ao isolamento, onde nos
tornamos condenados contemplao solitria dos nossos documentos e nossas
interpretaes. Quando decidi aventurar-me pelas veredas da Histria, h alguns anos atrs,
trouxe comigo pessoas e convices e encontrei muitas outras pelo caminho. Mas assim como
as convices, as pessoas vem e vo. Algumas felizmente ficam, assim como as lies e os
outros captulos por escrever. Gostaria de agradecer a todas elas, por tudo que me ensinaram.
Ao professor Evergton Sales Souza pela grande oportunidade de trabalho. Adentrar o
universo da pesquisa histrica sua inteira responsabilidade me abriu os olhos para a
Amrica Portuguesa e para o prprio D. Jos Botelho de Matos, sem falar na coragem
necessria para persistir nesse caminho que realmente cheio de pedras. Ademais, nestes
tempos de intelectuais proletrios que me impediram de fazer viagens ao exterior, o
professor Evergton Sales Souza sempre facilitou o acesso a documentos raros dos Arquivos
do Vaticano e Torre do Tombo, alm de livros no publicados no Brasil e, com enorme
generosidade, fez da sua biblioteca pessoal setor de emprstimo para todos os seus
orientandos. Pelos trs anos de dedicada orientao na iniciao cientfica e pelos dois anos da
orientao de mestrado, meus reiterados agradecimentos.
Ao professor Jos Pedro Paiva, por ter acompanhado de maneira muito atenciosa esta
pesquisa, desde o tempo em que eu era bolsista PIBIC, fazendo sugestes que aprimoraram a
interpretao das fontes e os argumentos desta dissertao de mestrado. Ademais, pelo
privilgio de poder contar com a presena do maior especialista em episcopado em Portugal e
seu Imprio na banca examinadora. Pela solicitude costumeira e pesquisador rigoroso que
inspira a todos ns que estamos apenas comeando, meus sinceros agradecimentos.
Ao grande maestro Cndido da Costa e Silva, que no obstante ter-me permitido
participar das reunies com os amigos do LEV num momento crucial da pesquisa, sempre foi
a minha maior referncia de integridade e sabedoria, com sua polidez e solicitude
extraordinrias. Pela sua grandeza de esprito, meus devotos agradecimentos.
professora Lgia Bellini, que no s corrigiu o meu primeiro artigo na Universidade
fornecendo sugestes preciosas, como assumiu com muito boa vontade alguns meses de
orientao no mestrado, contribuindo enormemente com as balizas metodolgicas e
6
abordagens deste trabalho. Alm disso, ministrou uma disciplina no mestrado que ampliou o
meu interesse nas prticas socais e representaes culturais na Histria da humanidade. Pela
sua simpatia costumeira e ateno dispensadas a mim, meus emocionados agradecimentos.
Ediana Mendes, por ter dividido comigo os primeiros momentos e desafios na
iniciao cientfica e Camila Amaral, por ter fornecido um flego a mais quando juntou-se
ns nas pesquisas sobre So Francisco Xavier, meus sinceros agradecimentos. Ademais, a
Cndido Domingues, Carlos Francisco, David Barbuda, Maria Ferraz e amigos do grupo de
Estudos de Histria Colonial pelas angstias compartilhadas, convices sucumbidas e por
sempre darem o melhor de si, meus humildes agradecimentos.
A Urano Andrade, pela sua amizade, enorme generosidade e ateno costumeiras.
Aos funcionrios e funcionrias do Arquivo Pblico da Bahia, especialmente do setor
de microfilmagem, Dona Marlene, Dona Jacira e Dona Valda que com dedicao, respeito e
disponibilidade apoiaram-me na coleta de dados, meus sinceros agradecimentos.
Aos funcionrios e funcionrias do Laboratrio Eugnio da Veiga, a exemplo de
Renata, pela dedicao com que buscaram nos raros documentos do sculo XVIII ainda
disponveis, gua para minha sede. professora Ventia Rios, que com imensa boa vontade
tornou os Estatutos da S totalmente acessveis numa hora em que t-los tornou-se decisivo
para esta dissertao. Meus sinceros agradecimentos.
Aos funcionrios e funcionrias das bibliotecas do Mosteiro de So Bento e da
Universidade Catlica do Salvador, pelas consultas nos seus preciosos acervos sobre Histria
da Igreja.
Aos funcionrios e funcionrias da Fundao Clemente Mariani por autorizar a
reproduo de livros do seu acervo.
Prof. Dr. Adriana Alves, para quem trabalhei nos ltimos trs anos, por toda
compreenso nos tempos em que, para me dedicar minha pesquisa, tive de interromper
temporariamente a sua, meus sinceros agradecimentos.
Irm Arista, uma graciosa ursulina de quase noventa anos e professora apaixonada,
pela generosidade de compartilhar comigo informaes de sua pesquisa pessoal sobre o
Convento da Soledade e pela confiana depositada no meu trabalho, meus encantados
agradecimentos.
A Maximiliano S. Ruas, devotado paroquiano de Nossa Senhora da Penha de Frana,
por ter me apresentado memria de D. Jos Botelho de Matos na parquia e local em que
escolheu viver j no fim de sua vida. Pela fotografia que me fez conhecer o rosto daquele que
eu apenas conhecia a grafia, meus insuficientes agradecimentos.
7
Aos professores doutores Antonio Luigi Negro e Maria Hilda Baqueiro Paraso, pelas
disciplinas com que tanto aprendi no mestrado: com o professor Gino, a tratar o objeto de
pesquisa de maneira crtica, alm de perseguir os ideais de objetividade e de pontualidade;
com a professora Maria Hilda, a dedicar parte do nosso tempo de especialistas em Histria
Moderna a perceber a influncia e importncia do contedo antropolgico na sensibilidade
cultural dos historiadores, especialmente os que se interessam pela teoria da histria, como eu.
professora Gabriela Sampaio, no s por ter ministrado a aula em que meu projeto
de pesquisa foi avaliado pela turma e por ter me aceitado como sua assistente no tirocnio
docente, mas tambm por todo respeito e confiana que sempre demonstrou ter pelo meu
trabalho, os meus sinceros agradecimentos.
Aos meus amigos de graduao, especialmente s queridas Lazarentas, por tornarem a
Universidade um lugar mais aconchegante: Llian Antonino, Kleidiane Santiago, Gabriela
Harrison, Emily Laurentino, Carolina Mendona e a sempre doce e eterna companheira
Andra Souza.
A Leonardo Coutinho, nosso querido Lazarento, cuja inteligncia e carter continuam
admirveis.
minhas queridas amigas Iane Cunha e Las Viena, por sempre terem estado do meu
lado, sem jamais duvidar da honestidade do meu trabalho, me apoiando nas horas difceis e
semeando uma amizade sem a qual esta vida no valeria a pena. Meus eternos
agradecimentos.
Ao meu Tiago Medeiros, cujas extraordinrias argcia e inteligncia provocaram
inquietaes que aprimoraram a fundamentao crtica deste trabalho. Ademais, pelo amor,
dedicao e companheirismo sem os quais hoje eu no me sentiria to completa. Com o amor
de sempre, meus agradecimentos.
Enquanto muitos cruzam os braos e se contentam com as limitaes que a vida lhes
impe, Jos Carlos Vivas e Mariete Vivas, meus pais, arregaaram as mangas e decidiram que
mudariam a histria deles. Com um enorme investimento afetivo e alguns sacrifcios de
ordem material, mudaram a minha histria tambm, desde que descobri que ter trs geraes
diferentes em casa me tornaria muito sensvel ao que as mudanas histricas representam.
Adquiri valores que me definem, alguns livros legados de si e de outrem e os primeiros
culos. E o destino se ocupou do resto. Tenho sempre muito orgulho de lembrar que toda a
minha famlia investiu na minha formao meus pais e tambm minhas irms Micheline e
Cristiane Vivas , me permitindo enxergar alm das possibilidades. Por isso, o meu grande
muito obrigado sempre ser deles. Vive ut Vivas!
8
Esta pesquisa no seria possvel sem o financiamento integral do Conselho Nacional
de Pesquisa Cientfica (CNPq).
9
Era o seu destino, sua peculiaridade, independentemente do
seu desejo, deixar-se estar assim, numa lngua de terra que o
mar devora lentamente e l permanecer, como uma ave
marinha desolada, sozinha. Era seu poder, seu dom, verter de
uma vez todas as superfluidades, at retrair-se e diminuir-se
de modo que parecia mais escasso e frugal fisicamente ,
ainda que sem perder nada da intensidade de seu esprito, ele
permanece, pois, naquela diminuta orla, encarando a
escurido da ignorncia humana, o pouco que conhecemos
enquanto o mar devora o solo onde permanecemos de p: este
era seu destino, este era o seu dom.
Ao Farol Virginia Woolf (traduo livre)
10
RESUMO
A presente dissertao se prope a analisar aspectos da ao episcopal de D. Jos
Botelho de Matos na Bahia entre 1741 e 1759, projetando sobre ela a situao coeva das
relaes Igreja-Estado. Considerando que aqueles eram tempos de profunda interferncia do
Estado na administrao da Igreja local, partiremos em busca de como D. Jos Botelho de
Matos comps sua ao episcopal, quais foram as suas prioridades, qual a natureza de seus
requerimentos e como lidou com as dificuldades oriundas do constrangimento da jurisdio
eclesistica e das presses promovidas pelos rgos da Coroa.
Palavras-Chave: Episcopado Relaes Igreja-Estado Padroado Rgio
SUMMARY
This work intends to analyze the role played by D. Jos Botelho de Matos as
archbishop of Bahia in between 1741 and 1759, focusing on State-Church relations. Regarded
deep interventions by the State, we seek to understand how could the archbishop build this
episcopacy, what were his priorities and how he dealt politically with the challenges raised
from restraint of religious jurisdiction and strengthening of Crowns power.
Keywords: Episcopacy State-Church relations Royal Patronato
SUMRIO
AGRADECIMENTOS ........................................................................................................................ . 5
INTRODUO: DE PERSONAGEM MITO A PERSDONAGEM MTODO. ........................................12
CAPTULO 1: REQUERER E PERSUADIR: OS COMPROMISSOS DE UMA COROA CATLICA ...............................................................................................................................26
CAPTULO 2: VISITAS PASTORAIS: A CONSOLIDAO DO ZELO APOSTLICO COMO ELEMEN-TO DE DISCURSO POLTICO IN LOCO ................................................................................................38
CAPTULO 3: RECUO ESTRATGICO OU CONSTRANGIMENTO? D. JOS BOTELHO DE MATOS E A SITUAO DO CONVENTO DA SOLEDADE ....................................................................................53
O recolhimento do Corao de Jesus e a Alada Eclesistica: aspectos de um problema jurdico...................................................................................................................................60
CAPTULO 4: UM ARCEBISPO ENTRE DOIS DISCURSOS: O PRAGMATISMO DA ADMINISTRAO DAS FINANAS E A AMPLIAO DAS INSTITUIES DE RECLUSO FEMININA ..............................................................................................................................................79
Discurso Pragmtico na Economia .....................................................................................84
Rendimentos conventuais sob a alada da Fazenda Real ................................................ 86
O arcebispo e os herdeiros de Santo Incio: relaes estreitas ......................................103
CAPTULO 5: ENTRE ZELOSOS COADJUTORES, INIMIGOS DO ESTADO: D. JOS BOTELHO DE MATOS E A PROFISSO RELIGIOSA MASCULINA (1741-1759) ............................................................... 107
Zelosos coadjutores rejeitados pela Coroa [trocar Estado por Coroa]: dilemas pr-ticos dos ltimos momentos da ao episcopal de D. Jos Botelho de Matos................125
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................................128
FONTES MANUSCRITAS ...............................................................................................................132
FONTES IMPRESSAS ......................................................................................................................136
OBRAS DE CONSULTA ...................................................................................................................138
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................................................139
12
INTRODUO
DE PERSONAGEM-MITO A PERSONAGEM-MTODO
Jos Botelho de Matos nasceu na freguesia de So Sebastio da Pedreira, em Lisboa, e
foi batizado em 5 de novembro de 1678. Junto com seus pais, Manuel Botelho e Maria Josefa,
oriundos da comarca de Santarm, logo se transferiu para a freguesia de Duas Igrejas, diocese
de Miranda, onde recebeu o sacramento da crisma pelo bispo diocesano no ano de 1691. Em
1703, Botelho de Matos foi ordenado sacerdote e logo em seguida deu continuidade aos seus
estudos na Universidade de Coimbra, lugar em que obteve grau de bacharel em Filosofia e
depois em Cnones. Sua carreira eclesistica seria marcada pela ocupao de muitos cargos
importantes no bispado de Miranda: em 1706, ano em que concluiu sua formao acadmica,
foi nomeado vigrio geral; em 1713, aos 35 anos, foi confirmado cnego doutoral do Cabido.
No ano de 1715, D. Joo Franco de Oliveira, o governador da diocese, teve de se afastar do
cargo por motivos de sade e foi Botelho de Matos que, indicado, assumiu seu lugar. Devido
ao desempenho que apresentou na assuno deste e de diversos outros compromissos no
bispado, dentre eles professor de Teologia Moral do Seminrio diocesano de So Jos de
Miranda, visitador diocesano e vigrio-capitular, construiu o currculo que lhe permitiu
assumir responsabilidades cada vez maiores e mais desafiadoras. Assim, foi confirmado pelo
pontfice Bento XIV como oitavo arcebispo da Bahia, recebendo ordenao episcopal em
Lisboa a 05 de fevereiro de 1741, assistido pelo seu predecessor, D. Fr. Jos Fialho. Contando
j 63 anos de idade, chegou arquidiocese de So Salvador da Bahia no dia 3 de maio de
1741, onde tomaria posse dois dias depois, iniciando um dos episcopados mais longos da
histria da Igreja na Amrica Portuguesa1.
Quando o arcebispo D. Jos Botelho de Matos entrou para a histria, no entanto, a sua
vigorosa carreira eclesistica parecia menos importante do que as circunstncias em que viria
a abrir mo dela. A perseguio e expulso dos jesutas2 fizeram com que o perodo
1 Os dados de que dispomos para fornecer alguma perspectiva biogrfica do arcebispo dada as limitaes
prticas que me impediram de consultar arquivos portugueses foram coletadas na obra do Padre Arlindo Rubert, cuja confiabilidade para muitos questionvel. Ficamos, ento, com o compromisso de futuramente
confirmar tais dados nos arquivos de Lisboa e Miranda. De qualquer forma, para constatar a fonte: RUBERT,
Mons. Arlindo, A Igreja no Brasil: expanso territorial e absolutismo estatal (1700-1822), Vol. III, Santa Maria,
Palotti, 1982, p. 26-34 e tambm RUBERT, Mons. Arlindo. D. Jos Botelho de Matos (1678-1767), 8 arcebispo da Bahia (no tricentenrio de seu nascimento), RIHGB, n. 87, 1978, pp. 105-123. 2 Embora naquele tempo houvesse uma espcie de sentimento geral de cumplicidade com a deciso de D. Jos I
fato corroborado pela prpria extino da ordem pelo papa Clemente XIV anos depois historicamente, a expulso da Companhia de Jesus de todos os domnios portugueses, determinada em 1758 por D. Jos I, tem
13
pombalino passasse a inspirar hostilidade para muitos estudiosos sculos depois. Por meio de
discursos inflamados, alguns historiadores sensibilizados com a causa ultramontana, tanto no
sculo XIX quanto no sculo XX, passaram a supervalorizar personagens em quem viam
resistncia chamada tirania pombalina3. O Marqus de Pombal tornou-se smbolo dos
mais marcantes da interferncia do Estado nos assuntos da Igreja4.
Em razo da construo de um discurso histrico, a diocese da Bahia teria um heri
da resistncia eleito pelos intelectuais de tempos ulteriores: era o arcebispo D. Jos Botelho
de Matos. Sua memria passou a ser celebrada por boa parte dos historiadores que escreveram
sobre a conjuntura da reforma dos jesutas. Do mesmo modo, a sua renncia do referido cargo
em 1760 passou a ser frequentemente associada a possveis perseguies por parte do
Marqus de Pombal:
Nesta dramtica emergncia, a atitude da Baa ttulo honroso para ela. [...]
O grande Arcebispo, D. Jos Botelho de Matos, teve a coragem de sustentar
os seus Religiosos, e foi obrigado a resignar por ordem de El-Rei sacristo e do seu aclito, leigos, que pela mentalidade tartufa da poca se
intrometiam a pontificar nos assuntos de hierarquia eclesistica, que no
lhes competia na Igreja de Deus, por aquilo que a Cesar o que de Csar e a Deus o que de Deus... Acompanhou o seu prelado, nas demonstraes de pesar, qusi toda a cidade, com as suas foras vivas e organizaes
religiosas.5
Nesta passagem, o historiador jesuta Serafim Leite retoma, com revolta, os eventos
que sucederam o decreto de D. Jos na arquidiocese da Bahia6. importante notar o tom
heroico usado para se referir resistncia de D. Jos Botelho de Matos na dada conjuntura,
dividido opinies, por conta da importncia que sua atividade missionria teve no prolongamento das fronteiras
do imprio cristo portugus e mesmo na formao do clero secular. De acordo com Serafim Leite, durante dois
sculos, quase todo o clero secular do Brasil formou-se no Colgio da Companhia de Jesus. Ver LEITE,
Serafim, Histria da Companhia de Jesus no Brasil: da Baa ao Nordeste, estabelecimentos e assuntos locais,
sculos XVII e XVIII, Tomo V, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1945, p. 151. 3 Ver FALCON, Francisco J. C., A poca Pombalina: Poltica Econmica e Monarquia Ilustrada, So Paulo,
tica, 1982, pp. 213-222. A expresso retirada deste estudo, no qual Falcon rene em seis grupos as anlises
histricas que tomaram por objeto o Marqus de Pombal: 1) os contemporneos; 2) os admiradores e crticos
imediatos; 3) os liberais e o mito do liberalismo pombalino; 4) os conservadores e o mito da tirania pombalina;
5) as vises da primeira metade do sculo XX; 6) as anlises recentes (ps 1945). O quarto grupo, portanto,
aparece como portador deste discurso. Embora no insira os eclesisticos em nenhum deles, especificamente,
interessante observar como a postura tirnica comumente associada a Pombal pelos membros da Igreja que se
opuseram s suas reformas, bem como por aqueles que no deixaram dar seu parecer ao escrever a respeito. O
prprio Serafim Leite, em Histria da Companhia de Jesus no Brasil, reporta-se ao ministro de D. Jos como tal:
E alguns mostraram-se opostos, arrostando-se s iras do tirano. Tomo V, p. 103. 4 Sobre o assunto ver tambm FRANCO, Jos Eduardo, O Mito dos Jesutas em Portugal, no Brasil e no
Oriente (sculos XVI a XX), Lisboa, Gradiva, 2007, 2 vols. 5 Cf. LEITE, Serafim, op. cit, pp 103-104.
6 Sobre Serafim Leite e sua obra fundamental ver a dissertao de Lvia C. Pedro, Histria da Companhia de
Jesus no Brasil: biografia de uma obra - dissertao de mestrado, Salvador, UFBa, 2008.
14
bem como o apelo ao apoio popular. Ao citar a famosa passagem bblica7, ele no deixa de
esboar uma crtica ao regalismo pombalino8, revelando um parecer bastante negativo acerca
da interferncia do Estado nos assuntos da Igreja. No o nico, todavia, a enxergar uma
clara associao entre a expulso dos jesutas e a resignao do arcebispo. Fortunato de
Almeida, autor da no menos monumental Histria da Igreja em Portugal, publicada pela
primeira vez em 1910, dedica algumas poucas linhas do captulo sobre os bispos de alm-mar
para dizer que a Santa S recusava-se a confirmar o sucessor do governador da diocese baiana
em 1760 por falta de ttulo justificativo da demisso de D. Jos Botelho de Matos, que
resignara cedendo s perseguies do Marqus de Pombal. Diz ainda que Pombal
reclamou nos arrogantes termos que lhe eram peculiares9, e que, uma vez rompidas as
relaes com a Santa S, somente em 1771 D. Frei Manuel de Santa Ins iria assumir a
arquidiocese como sucessor de Botelho de Matos. preciso observar com ateno a maneira
como os personagens envolvidos na querela dos jesutas so dispostos nestas narrativas: de
um lado, est D. Jos Botelho de Matos, heroico e injustiado; do outro est Pombal,
arbitrrio e tirnico.
Arlindo Rubert foi outro importante historiador da Igreja que reclamou a memria de
Botelho de Matos na dada conjuntura. Mas diferentemente dos autores anteriormente citados,
na sua verso, a suposta recusa de cumprir as disposies acerca da expulso dos jesutas,
ainda que tivesse provocado a resignao do arcebispo, tem importncia reduzida frente ao
que representou, de maneira geral, a ao episcopal de D. Jos Botelho de Matos. digna de
nota a ateno dedicada ao seu episcopado em A Igreja no Brasil. O apreo de Rubert pelos
chamados bispos militantes resulta num rico relato histrico sobre o arcebispo. Mas no
apenas a generosidade das informaes que surpreende. o trato extremamente rigoroso da
pesquisa histrica sobre a ao episcopal de Botelho de Matos que aparece nas pginas que
7 Cf. Mt., 22, 21.
8 Os anseios por um Estado se impe diante da autoridade pontifcia, que busca em Deus a sua legitimidade mas
entende que os poderes dos reis e dos pontfices tem funes e deveres prprios estiveram manifestos na
literatura defensora do regalismo. O auge de difuso destas ideias atribudo ao perodo pombalino, sobretudo
atravs de Antonio Pereira de Figueiredo. Para Evergton Sales Souza, porm, h um literatura com fortes anseios
regalistas ainda no sculo XVII, revelando as profundas razes de uma eclesiologia ibrica que no ficou restrita
s influncias do galicanismo francs. Um exemplo deste regalismo ibrico estaria na obra de Gabriel Pereira de
Castro, o Tractatus de manu Regia, publicada nos tempos da Unio Ibrica. Cf. SOUZA, Evergton Sales.
Jansenismo e reforma da Igreja Portuguesa In: Actas do Congresso Internacional Espao Atlntico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Lisboa: 2 a 5 de novembro de 2005. Acessvel em http://cvc.instituto-camoes.pt/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=76&Itemid=69. ltimo acesso: 20/06/2011, s
15h34. Sobre a fundamentao poltico-filosfica do regalismo ver DIAS, Sebastio da Silva, Pombalismo e Teoria Poltica, In: Cultura Histria e Filosofia, vol. I, Lisboa, Instituto Nacional de Investigao Cientfica, 1982, pp. 45-70. 9 Cf. ALMEIDA, Fortunato de, Histria da Igreja em Portugal, Porto, Portucalense Editora, 4 vol., 1967-1971,
p. 604.
15
lhe foram dedicadas: biografia, aspectos principais da execuo do seu ofcio, e o
enfrentamento do absolutismo de Pombal10. A grandeza dos feitos de D. Jos Botelho de
Matos so tamanhos, tal como os imaginava Rubert, que o fato da renncia chega a parecer
incoerente11
.
Estas trs grandes obras da histria da Igreja Catlica conferem uma aura
indiscutivelmente heroica a D. Jos Botelho de Matos. Outorgam a ele um papel corajoso e
obstinado, que era estrategicamente til a uma Igreja que custou a recuperar-se dos efeitos da
laicizao do Estado em seu espao de influncia ideolgica. A militncia foi um aspecto
bastante valorizado no perfil dos clrigos por esta historiografia, pouco preocupada em
esconder o incmodo diante de crises provocadas pelo absolutismo estatal e pelas indbitas
intromisses do poder secular na esfera espiritual12. Por isso, compreensvel a maneira
como cada um deles vociferava contra aqueles que tentaram solapar as bases da Igreja a
partir do sculo XVIII, fosse Pombal, a maonaria ou a prpria filosofia liberal.
Por haver uma tendncia clara postura defensiva por parte de cada um dos autores,
h, consequentemente, certa m vontade em reconhecer que este tambm foi um perodo de
renovao, em que os eclesisticos se dividiam em suas opinies. preciso recordar que
poca pombalina, a Igreja estava repleta de dissidncias internas, e muitos dos seus prprios
bispos invocavam a condio de ilustrados. Se por um lado, alguns destes bispos tentaram
garantir suas redes de influncia poltica e defender suas posies eclesiolgicas, abrigando-se
sob as asas de Pombal, por outro lado, houve os que optaram pela fidelidade ao Pontfice, mas
mesmo assim, no viraram as costas para o movimento reformador..13
Os ecos da resistncia de D. Jos Botelho de Matos chegaram ainda com fora
gerao posterior quela do auge da defensiva ultramontana. Jos Pedro Paiva, por exemplo,
corrobora a verso de Samuel Miller14
na qual o arcebispo teria se recusado a executar a
reforma dos jesutas, por ach-la injustificvel, razo pela qual acabou sendo punido com a
demisso do cargo15
. Aps a sada de D. Jos Botelho de Matos, que coincidiu com o
10
Cf. RUBERT, Mons. Arlindo, A Igreja no Brasil: expanso territorial e absolutismo estatal (1700-1822), Vol.
III, Santa Maria, Palotti, 1982, p. 26-34. 11
Cf. RUBERT, Mons. Arlindo. D. Jos Botelho de Matos (1678-1767), 8 arcebispo da Bahia (no tricentenrio de seu nascimento), RIHGB, n. 87, 1978, pp. 105-123. 12
Rubert faz questo de expor que entende a postura poltica de Carvalho e Melo por absolutista. Ver RUBERT, Mons. Arlindo, op. cit., p. 19. 13
Cf. CAEIRO, Jos, Jesutas do Brasil e da ndia na perseguio do Marqus de Pombal, Salvador, Escola
Tipogrfica Salesiana, 1936, p. 39. 14
Cf. MILLER, Samuel J., Portugal and Rome c. 1748-1830: An Aspect of The Catholic Enlightenment, Roma,
Universit Gregoriana Editrice, 1978, p. 99. 15
Cf. PAIVA, Jos Pedro, Os Bispos de Portugal e do Imprio (1495 1777), Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, pp. 211, 506, 547.
16
rompimento das relaes entre Portugal e a Santa S, no houve confirmao de novo bispo
at 1770, quando a diocese da Bahia finalmente deu boas vindas ao seu novo prelado
diocesano, D. Frei Manuel de Santa Ins.
Evergton Sales Souza tambm demonstrou grande interesse pela construo heroica
em torno de D. Jos Botelho de Matos. Partindo da correspondncia entre o arcebispo e o
reino, ele percebeu alguns detalhes desta construo histrica que mereciam ser revistos.
Atravs de um levantamento exaustivo de referncias crise no arcebispado na Bahia, desde
Rocha Pombo at a recente dissertao de Fabrcio Lyrio Santos16
o nmero de aluses j
dimensiona a relevncia do tema o historiador aponta a fragilidade de alguns pontos
nevrlgicos da hiptese, a saber, a recusa em executar a reforma, a perseguio obstinada por
parte de Pombal e a suspenso do pagamento das cngruas aps a renncia. Confrontadas
com a documentao do Arquivo Histrico Ultramarino e, entre elas, as prprias declaraes
do arcebispo sobre as condies da sua frgil sade, a elaborao do fato perde algo da
consistncia17
.
D. Jos Botelho de Matos chegou Bahia em trs de maio de 1741 e demitiu-se do
cargo em 1759, por razes que ainda causam polmica. A associao recorrente ao episdio
da expulso dos jesutas o transformou em vulto clebre da Histria da Igreja, mas tambm
fez com que seu episcopado, relativamente longo e repleto de atuaes nas mais diversas
frentes, acabasse ficando em segundo plano. Que sabemos do contedo da ao pastoral de D.
Jos Botelho de Matos? A importncia de sua atuao, que durou quase duas dcadas, no se
resume, evidentemente, aos dois anos compreendidos entre a reforma e a expulso da
Companhia de Jesus e a renncia do cargo.
Julgando, de tal sorte, que a histria do episcopado de D. Jos Botelho de Matos no
pode definir-se apenas pelo seu controverso desfecho, tampouco pela sua participao na
querela dos jesutas com o Marqus de Pombal, acreditamos na importncia de partir para
uma investigao mais detida acerca de alguns dos seus projetos para a diocese da Bahia,
tomando por base a correspondncia frequente que o arcebispo manteve com o reino. A
abundncia de documentos acerca do perodo sem dvida um convite a explor-lo em todo o
seu potencial, e mesmo com a realizao de alguns estudos prvios, nossas pesquisas
16
Cf. SANTOS, Fabricio Lyrio, Te Deum Laudamus. A expulso dos jesutas da Bahia (1758-1763) dissertao de mestrado, Salvador, UFBA, 2002, pp. 96-100. 17
Cf. SOUZA, Evergton Sales, D. Jos Botelho de Matos, arcebispo da Bahia, e a expulso dos jesutas (1758-1760), Belo Horizonte, Varia Histria, vol. 24, n 40, p. 729-746, jul/dez 2008.
17
anteriores apenas trataram de uma pequena parte dessas informaes18
. De modo geral, j
supomos que para o estudo da influncia das relaes Igreja-Estado sobre a ao episcopal na
Amrica portuguesa, talvez poucas circunstncias seriam to oportunas quanto aquelas em
que D. Jos Botelho de Matos atuou na Bahia. Pelas razes a seguir, consideramos tanto o
personagem quanto o contexto uma significativa oportunidade historiogrfica.
de se notar que o referido episcopado se faz dividir por uma curiosa simetria: D.
Jos Botelho de Matos pde testemunhar, em apenas dezoito anos, os nove ltimos anos do
reinado de D. Joo V e os nove primeiros do reinado de D. Jos I, incluindo, nestes nove,
quatro anos de consulado pombalino. Coincidentemente, entre os anos 1740 e 1760, temos um
perodo particularmente delicado das relaes Igreja-Estado em Portugal e suas possesses
ultramarinas. Segundo Samuel Miller19
, o perodo compreendido entre 1740 e 1758
corresponde gnese da ruptura diplomtica entre Portugal e Roma, que ocorreu finalmente
em 1760. Aps o processo de expulso dos jesutas na Amrica portuguesa, os prelados
diocesanos encontravam-se em um delicado momento poltico, e embora no se conhecesse o
fim ao qual os meios iam levar, nas vsperas do rompimento das relaes com a Santa S,
certamente havia vestgios de tenses entre o papado e a Coroa que no passavam
despercebidos. No que toca o processo de provimento dos cargos episcopais, por exemplo,
muitos dos bispos nomeados nos tempos de D. Joo V veriam seus cargos em risco quando
Sebastio Jos de Carvalho e Melo reformou alguns dos critrios de escolha destes bispos20
.
Para Jos Pedro Paiva, no entanto, a definio da frmula de nomeao dos prelados em 1740,
ainda no reinado joanino, pode ser considerada um dos fatos inauguradores do ciclo de
eventos que se estendeu at 1759 e culminou com a j referida expulso da Companhia de
18
Em virtude das pesquisas realizadas como bolsista PIBIC, no projeto intitulado Histria de uma devoo
impopular: So Francisco Xavier, padroeiro de Salvador, percebemos o arcebispo enquanto personagem
fundamental na tentativa de popularizar o culto ao santo missionrio. Ao notar que a impopularidade dava-se
muito em funo de que a populao imaginava ser Jesus Cristo o padroeiro da cidade, Botelho de Matos
informou a Diogo Corte Real, Secretrio de Estado de Ultramar, a resoluo de fabricar uma Pastoral, publicada
em agosto de 1754, a fim de resolver a dvida (AHU, Projeto Resgate, Castro e Almeida, Cx. 08, Doc. 1428).
Aps veredicto do Pontfice Bento XIV, a Pastoral foi fixada nas portas da Catedral da S, em 3 de agosto de
1754. O Santssimo Salvador era confirmado Titular da Cidade da Bahia e da sua Igreja Catedral, e como tal,
Lhe era devida toda a reverncia. So Francisco Xavier, outrossim, era ratificado como padroeiro principal da
cidade, cannica e legitimamente eleito, a quem se prestaria, da mesma maneira, o culto que lhe era devido. Cf.
VIVAS, Rebeca C. de Souza,A ao episcopal de D. Jos Botelho de Matos (1741-1759), artigo apresentado em forma de comunicao no I Colquio de Histria da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife,
2007. 19
Cf. MILLER, Samuel J., Portugal and Rome c. 1748-1830: An Aspect of The Catholic Enlightenment, Roma,
Universit Gregoriana Editrice, 1978, p. 28. 20
Cf. PAIVA, Jos Pedro , Os novos prelados diocesanos nomeados no consulado pombalino, Penlope, n. 25, 2001, p. 45.
18
Jesus21
. No obstante, temos que o perodo tambm corresponde ao exato tempo em que a
Igreja de Roma esteve sob regncia de Bento XIV (1740-1758), cujo pontificado teria sido
marcado pela sensibilidade s interferncias externas e para muitos, at mesmo flexvel s
pretenses dos governos temporais22
. Alm do mais, o referido pontfice teria buscado dirigir-
se preferencialmente aos bispos, exortando-lhes a trabalhar para a reforma do clero.
No h como no julgar de extremo interesse o fato de que as condicionantes das
relaes Igreja-Estado nas dcadas de 1740 e 1750, quando dirigidas ao espao que nos
interessa o arcebispado da Bahia convirjam precisamente para a ao episcopal de D. Jos
Botelho de Matos. Um nico episcopado pode parecer insuficiente para permitir um estudo do
qual esperssemos uma cobertura satisfatria das mudanas que constituem, por excelncia, o
processo histrico, mas, por outro lado, diante de situaes como reinados em transio ou de
grandes reformas polticas, poderia ser suficiente para esclarecer porque os projetos de um
bispo para uma diocese foram efetivados ou rejeitados, revelando muito do tipo de relao
que este indivduo manteve com o sistema poltico no qual atuou. Do organismo complexo
nascido da chamada interpenetrao entre Igreja e Estado23
, procuramos fazer uma espcie de
bipsia, mostrando em que reas deste organismo os interesses da Igreja vo ao encontro
daqueles do Estado e quando vo de encontro a eles.
Bispo poltico, portanto, uma categoria de anlise central neste trabalho. Os
estudos de Jos Pedro Paiva sobre o processo de provimento episcopal em Portugal e seu
imprio, durante a poca moderna24
, trazem referncias imprescindveis na interpretao das
opes de D. Jos Botelho de Matos. Este perfil de bispo, que desponta no sculo XVII,
representa uma Igreja que defende o seu territrio jurisdicional, pois j bastante sensvel
viragem operada na interpenetrao entre Igreja e Estado25
. Deixando, aos poucos, de ser o
nico referencial jurdico, moral e espiritual diante da laicizao progressiva das
mentalidades, a Igreja enfrenta ataques ao seu poder de influncia e sua jurisdio universal.
Uma batalha diplomtica j tinha comeado quando, no sculo XVIII, os bispos
21
Cf. PAIVA, Jos Pedro, A Igreja e o Poder In: AZEVEDO, Carlos Moreira de (dir.), Histria Religiosa de Portugal, vol. II, Coimbra, Crculo de Leitores, 2000, pp. 164. 22
A opinio de Carlos Castiglioni, afinal, de que este juzo parece discutvel para um pontfice de
extraordinria erudio como Prospero Lambertini, sagrado Bento XIV. Opinio que no deve ser isenta de certa parcialidade ultramontana, sobretudo quando combina certos comentrios (des)qualificao de D. Jos I
como dbil e voluptuoso. Ver CASTIGLIONI, Carlos, El Iluminismo y el racionalismo contra la Iglesia In: Historia de Los Papas, Tomo II: Desde Bonifacio VIII at Pio XII (com um estudo do R.do P.e Bernardino
Llorca, S. J.), Barcelona, Editorial Labor, 1948, pp. 488-499. 23
Ver PAIVA, Jos Pedro, El Estado en la Iglesia y la Iglesia en el Estado: Contaminaciones, dependencias y disidencia entre la monarqua y la Iglesia del reino de Portugal (1495-1640), Manuscrits, n 25, 2007, pp.45-57. 24
Cf. PAIVA, Jos Pedro, Os Bispos de Portugal e do Imprio (1495-1777), Imprensa da Universidade de
Coimbra, 2006, pp. 147-154. 25
Cf. PAIVA, Jos Pedro, El Estado en la Iglesia..., pp.45-57
19
especialmente interessados em questes polticas comearam a multiplicar-se, fosse porque
precisavam defender os interesses da Igreja segundo o vocabulrio secular vigente, fosse
porque estavam demasiado entranhados na mquina pblica para conseguirem separar o
sacerdcio da poltica. Jogavam um jogo ambguo: submetiam-se, por um lado, s normas de
convivncia estabelecidas pelo Estado, mas subvertiam, por outro, as tendncias laicizantes
em ascenso. No que seja fcil definir com preciso o que vinha afinal a ser um bispo
poltico, tampouco reduzir a nico os vrios perfis que estes prelados apresentavam na dada
conjuntura setecentista26
. Mas sua existncia sublinha o momento histrico em que a Igreja
tem na poltica uma via sem retorno para o universo das coisas terrenas.
Ademais, trata-se do bispo poltico de uma arquidiocese ultramarina, e a localizao
na zona perifrica do imprio sem dvida um fator a ser levado em considerao. A prpria
historiografia da Igreja e do episcopado no imprio portugus j estabeleceu o espao
ultramarino como um recorte analtico relevante. No processo de provimento episcopal das
dioceses ultramarinas, por exemplo, Jos Pedro Paiva tem mostrado que os critrios tornaram-
se especficos do contexto, tendo D. Jos Botelho de Matos sido eleito de acordo com estes
critrios27
. O crescimento fsico do imprio, explica Paiva, forou subdivises e alteraes na
dinmica de organizao das dioceses portuguesas28
. Assim, nos sculos XVI e XVII, alm de
uma nova provncia eclesistica em Goa, surgiram dioceses sufragneas provncia
eclesistica de Lisboa, como Funchal, Angra, Cabo Verde, So Tom, Congo e at a Bahia.
No sculo XVII, esta ltima foi elevada condio de arcebispado, da qual tambm passaram
a ser subordinadas as dioceses de Olinda, Congo, So Tom, Angola, e todas as outras que
surgiram na Amrica portuguesa29
. Alm disso, a consolidao da importncia da arquidiocese
da Bahia transformou-a num referencial de ascenso nas carreiras de muitos candidatos a
assumir a sua Mitra30
. Todo o esforo de cobertura da territorializao da Igreja portuguesa
atravs das relaes Igreja-Estado necessita, portanto, de uma complementao a altura para
os espaos no continentais.
26
Cf. PAIVA, Jos Pedro, Os Bispos... pp. 111-170. 27
Alm de explicitar os critrios que levaram escolha dos arcebispos da Bahia e demais bispos da Amrica
portuguesa entre 1701 e 1750, Jos Pedro Paiva mostra os diferentes ciclos e tendncias deste processo. Cf.
PAIVA, Jos Pedro, D. Sebastio Monteiro da Vide e o episcopado do Brasil em tempo de renovao (1701-1750) In: FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales, A Igreja no Brasil: Normas e Prticas durante a Vigncia das Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, So Paulo, Unifesp, 2011, pp. 29-59. 28
Cf. PAIVA, Jos Pedro, Dioceses e organizao eclesistica In: AZEVEDO, Carlos Moreira de (dir.), Histria Religiosa de Portugal, vol. II, Coimbra, Crculo de Leitores, 2000, pp. 187-199. 29
Cf. PAIVA, Jos Pedro, Dioceses e organizao eclesistica, pp. 188-189. 30
Cf. FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales, Estudo Introdutrio In: DA VIDE, D. Sebastio Monteiro, Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, So Paulo, Editora da Universidade de So Paulo,
2010, p. 10.
20
O governo civil e sua projeo social, nas suas mais diversas instituies e hierarquias,
(a exemplo dos poderes executivo, legislativo e judicirio) so fatores cruciais no
entendimento de como o poder episcopal atuava afinal, na Amrica portuguesa, no s pela
cooperao em prol da manuteno da ordem pblica e nos rituais de poder que reafirmavam
a presena e majestade do monarca, mas tambm atravs disputas oriundas dos conflitos de
jurisdio, em vista do alargamento da jurisdio civil sobre a eclesistica31
. Por este motivo,
a publicao das Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia em 1707 o ponto de
apoio no estudo da projeo de aes episcopais sobre as relaes Igreja-Estado e a realidade
jurdico-poltico-administrativa da Amrica portuguesa.
Observando os estudos sobre aes episcopais em outras dioceses brasileiras,
percebemos que as mudanas e permanncias na ao pastoral dos bispos na segunda metade
do sculo XVIII, so atribudas a uma grande influncia das resolues do Conclio de Trento
junto com as Constituies Primeiras nas prticas pastorais de muitos arcebispos. Foi o caso
da diocese de Mariana, no episcopado de Frei Manuel da Cruz (1748-1764) e Frei Domingos
da Encarnao Pontevel (1780-1793). Considerando que a Igreja Catlica exercia uma funo
clara no estabelecimento da ordem na regio, Alcilene Oliveira defendeu que o apoio do
Estado Igreja favoreceu a implantao do programa salvfico de Trento32 Segundo a
31
A opinio de que o caos administrativo era uma marca da colonizao portuguesa na Amrica recorrente na
historiografia brasileira, tendo comeado, segundo Maria Fernanda Bicalho, com os estudos de Caio Prado Jr.,
passando por Raymundo Faoro e Srgio Buarque de Holanda. Todavia, a ideia de que este caos administrativo
era regulado e/ou alimentado em ltima instncia pela Coroa, que funcionava como rbitro da superposio de
jurisdies, , segundo Bicalho, fruto de uma nova perspectiva historiogrfica, oriunda de uma parceria entre
estudiosos lusitanos e brasileiros, inaugurando um contraponto s opinies de Faoro e Prado Jr. Para conhecer o
denso debate historiogrfico de que a historiadora d conta ver BICALHO, Maria Fernanda, Centro e Periferia: pacto e negociao poltica na administrao do Brasil colonial, In: Revista da Biblioteca Nacional, Lisboa, n 6, abril-outubro de 2000, pp. 17-39. Atualmente, porm, podemos dizer que h duas grandes correntes
relativamente opostas em suas perspectivas sobre a maior ou menor autonomia da dinmica administrativa da
Amrica portuguesa com relao metrpole. Digo relativamente, pois a oposio entre ambas no se apresenta
de maneira mais clara no que diz respeito ideia, do que se apresenta diante de suas opes terico-
metodolgicas. Uma delas, por parte do historiador portugus Antnio Manuel Hespanha, toma, em linhas gerais
a estrutura administrativa da Amrica portuguesa pelo seu carter descerebrado. Em outras palavras, relaciona a centralidade do direito reduo das funes da Coroa a uma administrao que soa passiva, afinal. Para Hespanha, as causas do enfraquecimento do poder central portugus residem numa confuso jurisdicional do
Antigo Regime (teoria da estrutura polissinodal), o que poderia justificar o alargamento da sombra do rei na sombra de seus funcionrios, cobrindo e dando legitimidade prtica a toda a sorte de iniciativas e ousadias. Segundo a outra perspectiva, porm, fornecida por Laura de Mello e Souza, ocorre, por parte de Hespanha uma
relativizao generalizada da presena do Estado e no caso portugus e seria difcil aplicar sua anlise para alm
do sculo XVIII, levando em conta a atuao de personagens polticos marcantes como o Marqus de Pombal.
Para ela, a supervalorizao dos textos jurdicos, do esquema polissinodal e da microfsica do poder teria
denunciado um estudo negligente das especificidades em cada parte do Imprio e enfraquecido excessivamente o
papel do Estado. Cf. HESPANHA, Antnio Manuel. Depois do Leviathan, Almanack Braziliense, N 05, 05/2007, pp. 55-66 e SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a Sombra: poltica e administrao na Amrica
portuguesa do sc. XVIII, So Paulo, Companhia das Letras, 2006, pp. 27-77. 32
OLIVEIRA, Alcilene Cavalcante de, A ao pastoral dos bispos da Diocese de Mariana: mudanas e
permanncias (1748-1793) - dissertao de mestrado, Campinas, UNICAMP, 2001, p. 210.
21
autora, a feio corporativista das relaes Igreja-Estado teria produzido um eficiente
mecanismo de disciplinamento social que dirigiu com rigor a conduta do clero e de uma
populao mineira que at ento, apresentava elevados ndices de concubinato, heterodoxias
devocionais, prostituio e filhos ilegtimos. Havia tambm uma grande preocupao com a
organizao do sistema de parquias e com o fortalecimento da hierarquia da Igreja, garantido
pela exigncia de licenas eclesisticas por parte dos procos e sacerdotes, que por sua vez,
deviam expurgar os desvios comportamentais e doutrinrios atravs da insero do quadro
devocional do iluminismo catlico.33
As visitas pastorais, atividade mais importante,
constituam a base de apoio de toda esta atuao.
A ao pastoral dos bispos paulistas, a partir da criao da diocese de So Paulo em
1745, tambm sugere que os esforos da Igreja Catlica na colnia dirigiam-se na tentativa de
fazer implementar os pressupostos tridentinos, cujo sinal manifestava-se j na elaborao das
Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia34
. O incremento da atividade mineradora
era fator de influncia na deciso de efetivar um disciplinamento social nas capitanias do
sudeste, para o qual a ao dos bispos estava voltada e cujas prioridades eram a criao de
parquias e a reforma moral e intelectual do clero. A afirmao do poder hierrquico do bispo
mostrou-se fundamental para que se pudesse garantir o zelo por parte dos vigrios e procos
das Constituies do Arcebispado da Bahia. O dever da desobriga quaresmal o aspecto com
maior destaque na ao pastoral dos bispos em So Paulo e refora a ideia tridentina de que a
via sacramental era a melhor forma de prevenir abusos e desvios de conduta por parte dos
fieis. De acordo com Dalila Zanon, como consequncia, via-se uma piedade extremamente
exteriorizada, sintomtica dos limites do programa tridentino em uma populao crescente35
.
A difuso das indulgncias pelo estmulo crena do purgatrio e mesmo uma economia das
indulgncias eram, para Zanon, traos marcantes das aes pastorais dos bispos paulistas.
O termo programa salvfico, recorrente em ambos os estudos sobre as aes
episcopais no sudeste36
, sugere certo consenso a respeito da ideia de que o modelo tridentino
estava em plena fase de implantao, ainda no sculo XVIII na Amrica portuguesa. As
relaes Igreja-Estado teriam servido para impulsionar o disciplinamento social na colnia e,
embora insistissem na postura reformadora dos bispos, conclui-se, em geral, que a
complexidade da sociedade colonial, incitada pela distncia do reino e verificada nos
33
Idem, p. 214-217. 34
ZANON, Dalila, A ao dos bispos e a orientao tridentina em So Paulo (1745-1796) - dissertao de
mestrado, Campinas, UNICAMP, 1999, p. 222-223. 35
Idem, p. 235. 36 Ver OLIVEIRA, Alcilene Cavalcante de, A ao pastoral dos bispos da Diocese de Mariana..., p. 210 e ver
tambm ZANON, Dalila, A ao dos bispos...p. 242.
22
frequentes desvios de conduta de clero e da populao, eram um grande obstculo para a
consolidao deste modelo tridentino de Igreja. Estes dois estudos sugerem uma tendncia a
evitar a oposio absoluta entre o cotidiano religioso da colnia e a reforma com base
tridentina, apontando para uma terceira via que so as adaptaes do corpo eclesistico (e o
uso do termo adaptao no deixa de ser feito com bastante cuidado) s condies estruturais
e materiais da Igreja catlica na Amrica portuguesa. Para que estas adaptaes fossem
possveis, o arcebispo precisava ter um conhecimento concreto da diocese. No por acaso,
desde Trento, a realizao de visitas pastorais est entre as atribuies obrigatrias dos
prelados diocesanos.
As pesquisas de Dalila Zanon e Alcilene Cavalcante mostram que, graas
documentao pastoral disponvel possvel ir fundo nos questionamentos que tentam
entender a ligao destes episcopados com o Conclio de Trento, e mostram como os bispos
vieram quelas dioceses imbudos da necessidade de disciplinar o clero e os fiis. Esta tica
disciplinadora sublinhada por ambas as historiadoras tambm fruto de um interesse
constante em entender como a Igreja colaborou com a atitude repressiva da Coroa na
conjuntura da minerao. Porm, a interpretao da Igreja como instituio unida ao Estado
para reforar prticas de disciplinamento social pode falhar quando toma por certa a
existncia de uma total harmonia de interesses neste sculo de tantas tenses entre Portugal e
Santa S. preciso considerar, outrossim, a Igreja como instituio composta de vrios
grupos diferentes, com interesses s vezes pouco harmnicos. As tenses entre Portugal e a
Santa S tendiam a evidenciar uma Igreja Catlica que se dividia. Alguns destes grupos
eclesisticos, veremos, encontravam-se por vezes mais prximos dos interesses dos fiis do
que da prpria Coroa. Por isso, atribuir ao alinhamento perfeito da Igreja local com o poder
poltico colonial o valor de axioma pode significar uma opo arriscada. sempre vlido
observar o comportamento dos grupos e indivduos ligados Igreja para observarmos de
outro ngulo como a atuao da instituio na sociedade colonial ainda mais complexa.
No raro encontrar eclesisticos, mesmo arcebispos, que denunciam as contradies
e problemas da sociedade colonial. Os estudos sobre as circunstncias de elaborao das
Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia37
mostraram que a demora em realizar um
snodo diocesano na arquidiocese foi um sinal claro da dificuldade de implantao das normas
de Trento em regies perifricas como a Amrica portuguesa, dificuldades que foram
37
Cf. FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales, Estudo Introdutrio In: DA VIDE, D. Sebastio Monteiro, Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, So Paulo, Editora da Universidade de So Paulo,
2010.
23
denunciadas pelo prprio arcebispo, D. Sebastio Monteiro da Vide. Para Bruno Feitler e
Evergton Sales Souza, no caso da Bahia, a extenso da diocese teve grande influncia sobre a
insuficincia das visitas pastorais, dificultando at o diagnstico dos problemas concretos da
diocese. A dedicao de D. Sebastio de Monteiro da Vide, que fez quatro visitas pastorais
entre 1702 e 1718, veio mudar este quadro, deixando bastante evidente que, em qualquer ao
episcopal na Amrica portuguesa e em qualquer outro espao perifrico, seja em relao a
Roma ou ao prprio imprio, a maior ou menor capacidade dos bispos de conhecer com
profundidade a diocese sob sua responsabilidade determinante da execuo de seus projetos
pastorais.
Estudos detalhados a partir das visitas pastorais seriam de fundamental importncia
para a arquidiocese da Bahia. Porm, o nmero de registros nos arquivos da Cria
Metropolitana de Salvador no permite, para o sculo XVIII, uma abordagem nos nveis das
que foram feitas para Minas Gerais e So Paulo, que contam com uma documentao
significativa acerca de pastorais, registros paroquiais e informaes sobre visitas diocesanas.
Atualmente, o Arquivo Histrico Ultramarino tem suprido a falta de registros de natureza
pastoral alm de permitir enfatizar vrios aspectos das relaes Igreja-Estado, dado ao fato de
que sua composio inclui majoritariamente cartas entre os arcebispos da Bahia e o Conselho
Ultramarino. Por isso, decidimos suprir a falta de documentos de natureza pastoral com a
demanda por um estudo de ao episcopal mais criticamente vinculado s vicissitudes das
relaes Igreja-Estado, aproveitando a abundncia de documentos que favorecem esta
observao.
Fundamentalmente, partimos dos manuscritos do Arquivo Histrico Ultramarino,
digitalizados por ocasio do Projeto Resgate para realizar este estudo sobre a ao episcopal
de D. Jos Botelho de Matos. Apesar de o arcebispo ter-se revelado uma voz contestadora de
muitas medidas tomadas pela Coroa o que por si j diferencia sua tica governativa
tambm perseguimos o ideal de ineditismo atravs da metodologia, ou seja, o enfoque na
correspondncia entre o arcebispo e a Coroa que no prescindiu, por sua vez, do cruzamento
com informaes obtidas nos requerimentos de diferentes grupos sociais, representando os
mais variados conjuntos de interesses. Os fiis, os clrigos, os regulares, as religiosas, as
irmandades, os membros do governo civil, enfim, todos estes grupos que se apropriaram de
aspectos circunstanciais das relaes Igreja-Estado, participando ativamente deste cotidiano
poltico e religioso no qual desejavam fazer valer tambm os seus interesses mais imediatos e
acabaram redefinindo a ao de D. Jos Botelho de Matos.
24
Muitos, portanto, foram os indivduos e instituies da vida religiosa e leiga na Bahia
com os quais o arcebispo D. Jos Botelho de Matos lidou e mediante os quais tentou
empreender uma ao pastoral. De modo a conferir viabilidade a uma anlise mais coesa do
seu episcopado, todavia, decidimos dar destaque a apenas alguns campos de sua atuao, no
s para respeitar as limitaes que o formato de uma dissertao de mestrado nos impe, mas
tambm porque a prpria escassez documental a nvel pastoral no nos permitiu ir mais fundo
nos detalhes da natureza de seu governo arquidiocesano. Teremos, consequentemente, muito
mais de um discurso produzido pela prtica poltica do episcopado do que de suas vises
teolgicas ou vinculaes eclesiolgicas.
No primeiro captulo, tentaremos mostrar como o elogio ao pio zelo da Coroa era
utilizado como elemento de discurso para penetrar sistema poltico metropolitano e como D.
Jos Botelho de Matos utilizou este elemento de discurso para navegar na emaranhada
burocracia do reino, alm de tentar afrouxar a rigidez da Fazenda Real, obtendo suporte
financeiro para as diversas intervenes que pretendia realizar. No segundo captulo, o
objetivo mostrar como a realizao de quatro visitas pastorais contribuiu no s para a
elaborao das estratgias de requerimento do arcebispo, com um discurso bastante
convincente, mas tambm o auxiliou a selecionar os pontos cruciais de sua ao pastoral, que
adquiriu carter mais incisivo. O terceiro captulo tratar do interesse de D. Jos Botelho de
Matos pela profisso religiosa feminina, dos pontos de vista religioso, moral e social,
considerando a existncia de um mercado matrimonial necessrio ao aumento das
conquistas, razo porque a Coroa portuguesa reforou uma poltica de controle destas
vocaes. H bastante nfase nos conflitos de jurisdio, que fizeram o arcebispo recuar
temporariamente, uma vez que suas iniciativas acabaram suplantadas por prioridades
determinadas pelo Estado.
O quarto captulo comea mostrando um perodo delicado de atuao poltica do
arcebispo, ainda sensvel ao desgaste poltico do exaustivo processo em torno do recolhimento
e posteriormente convento da Soledade. Como se no bastasse a fragilidade poltica, a
obteno e circulao de breves apostlicos revelou-se uma manobra comum entre leigos e
religiosos para subverter as leis da Coroa que afetavam suas isenes tributrias e
jurisdicionais. Tais manobras tornaram-se extremamente embaraosas para o arcebispo, que
neste contexto veio a ter bastante apoio de dois missionrios jesutas.
O quinto captulo traz a culminncia desta tenso entre as iniciativas de D. Jos
Botelho de Matos e as barreiras impostas pelas circunstncias jurdicas, polticas e
ideolgicas, quando a Coroa assumiu com rigor o discurso de defesa da integridade do
25
Estado, viso que, alis, antecede (e muito) as chamadas reformas pombalinas. A poltica de
ordenao do clero reproduzia e refletia uma srie de problemas que, em ltima anlise, eram
da prpria constituio eclesistica da Amrica portuguesa no Brasil.
Afinal, este trabalho tem profundo interesse em desenhar os traos da personalidade
poltica de D. Jos Botelho de Matos, colhendo suas contribuies positivas no trato cotidiano
com as dificuldades impostas pelo ritmo da burocracia transatlntica e pelo nvel em que se
encontravam as relaes Igreja-Estado.
26
CAPTULO 1
REQUERER E PERSUADIR:
OS COMPROMISSOS DE UMA COROA CATLICA
A Bula Super Specula criou a diocese de So Salvador da Bahia em vinte e cinco de
fevereiro de 1551, desmembrando-a da diocese de Funchal, na Ilha da Madeira. Celebrando
um pacto poltico, a criao da diocese atravs da referida bula era a manifestao territorial
de um acordo que visava beneficiar dois imprios em expanso, sacramentando o
compromisso que pontfice e rei assumiam um com o outro, em prol da expanso da f
catlica. Atravs da concesso do direito de padroado, D. Joo III, que j detinha a jurisdio
temporal e espiritual das longnquas ilhas e conquistas asiticas38
, passava a ter os mesmos
privilgios sobre as novas pores americanas, uma vez Gro-Mestre da Ordem de Cristo.
Ostentava o pomposo ttulo de rei de Portugal e dos Algarves, daqum e dalm-mar, em
frica, era Senhor de Guin e da Conquista, Navegao e Comrcio de Etipia, Arbia, Prsia
e ndia39
. E tudo isso, naturalmente, precedido da graa de Deus.
A evoluo do controle estatal sobre o processo de territorializao da Igreja nos d a
impresso de que gozar do direito de padroado rgio tornou-se um benefcio unilateral da
Coroa portuguesa. Entretanto, este privilgio monrquico no deixava de ter uma
contrapartida, nem de criar um dbito. Por requerer a divina graa, transcrita nos termos das
bulas apostlicas, o alcance dos predicativos rgios de conquista e comrcio fez com que os
monarcas portugueses adquirissem uma dvida sagrada com os representantes da Igreja de
Roma. Assim, desde que D. Pero Fernandes Sardinha (1551-1556) foi nomeado primeiro
bispo de So Salvador da Bahia por D. Joo III, estava subentendido que a ao episcopal
38
SILVA, Cndido da Costa e, Notcia do Arcebispado de So Salvador da Bahia, Salvador, Fundao Gregrio
de Matos, 2001, p. 34. 39
ngela Barreto Xavier destacou a importncia que os ttulos invocados tinham com a relao de poder
exercida sobre os territrios ultramarinos: Ora, a permanncia do ditado dos ttulos ostentados pelos monarcas portugueses desde finais do sculo XV (assumido como uma importante representao do poder imperial,
manifesto pblico da relao que a monarquia estabelecia entre os espaos que dominava e o tipo de poder que
sobre eles exercia) parece desmentir a hiptese de que tenha existido uma alterao jurdico-poltica estabelecida
entre a coroa portuguesa e os territrios asiticos [...] eram reis das cidades conquistadas no Norte de frica,
senhores da Guin e, no que respeitava a Etipia, Arbia, Prsia e ndia, ambicionavam ser senhores da
conquista, navegao e comrcio. Ou seja, na maior parte dos territrios que constituam o imprio portugus
[...] os reis de Portugal exerciam apenas este ltimo direito... Cf. XAVIER, ngela Barreto, A Inveno de Goa: Poder Imperial e Converses Culturais nos Sculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa de Cincias Sociais,
2008, pp.64-65. Na defesa desta dissertao, Jos Pedro Paiva no deixou de salientar um aspecto tambm muito
interessante acerca destes predicativos rgios: a ausncia de meno explcita ao Brasil nestes ditados, no
obstante a Amrica portuguesa ter sido uma poro imperial de grande relevncia nos sculos XVII e XVIII.
Paiva explica que esta ausncia entende-se pelo fato de que a certa altura, a designao adquire uma meno da
tradio e j no se altera, nem mesmo para aludir a cada um dos domnios especificamente.
27
daquele bispo e dos seus sucessores iria requerer constantemente o compromisso rgio de
zelar pelo aumento da f crist.
Na expanso ultramarina, poderamos considerar o estabelecimento de misses, e
posteriormente, de uma Igreja diocesana, como um procedimento poltico-administrativo
padro, condicionante da ocupao efetiva dos territrios de conquista das monarquias
ibricas. Sem o processo de converso cultural40 e a absoro das estruturas poltico-
administrativas herdadas deste processo (primeiro misses e parquias e s ento vilas e
cidades) como imaginar a efetivao da conquista? Neste contexto, ao reconhecerem a
importncia dos seus deveres nas conquistas, as representaes eclesisticas locais esperavam
que, naturalmente, as suas demandas constassem da lista de prioridades administrativas da
Coroa.
A julgar, contudo, pela limitada infraestrutura administrativa da arquidiocese de So
Salvador j no incio do sculo XVIII, mais de um sculo aps a publicao da bula que
garantia a criao do arcebispado, ficava cada vez mais evidente a necessidade de relembrar
aquela dvida sagrada que a Coroa mantinha com a Igreja. Ao redigir suas Notcias sobre o
arcebispado da Bahia no ano de 171241
e dar incio a uma descrio exaustiva das
necessidades da diocese, D. Sebastio Monteiro da Vide (1702-1722) mostrava que a agora
arquidiocese42
permanecia carente, entre outras coisas, de procos que pudessem realizar a
cura de almas de maneira adequada. Cura de almas, alis, que costumava ser o ponto
nevrlgico da ao pastoral de todo e qualquer prelado diocesano em conformidade com as
diretrizes tridentinas43
. Mas apesar da nova amplitude jurisdicional conferida mitra de So
Salvador da Bahia que colocava os bispados de Pernambuco e do Rio de Janeiro, alm do de
Angola e do de So Tom, sob sua jurisdio ordinria a precariedade da estrutura
40
Atravs do uso da categoria converso cultural, ngela Barreto Xavier mostrou de modo preciso como a narrativa dominante dos agentes imperiais era lentamente absorvida e reproduzida pelas diversos grupos sociais
do espao ultramarino. A apropriao e os usos daquele discurso eram determinantes da maneira como esses
grupos interagiam socialmente e construam uma dinmica local para o poder poltico e para a sociedade na
periferia do imprio. Embora no descartasse a relao entre violncia e absoro do referido discurso, quando
se reportou Igreja, levou em conta a adoo de um tipo de violncia mais suave, atravs da educao e da assistncia, mas nem por isso, menos eficaz. Cf. XAVIER, ngela Barreto, A Inveno de Goa: Poder Imperial
e Converses Culturais nos Sculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa de Cincias Sociais, 2008, pp. 26 e 27. 41
Esta data atribuda por Cndido da Costa e Silva, pelo fato das Notcias encontrarem-se incompletas. Uma
vez que o arcebispo Monteiro da Vide refere-se aos dez anos que tinha frente do arcebispado, deduziu-se tratar-
se do ano de 1712. Arlindo Rubert refere-se a um perodo anterior a 1713, o que no desmente a suposio. Ver.
RUBERT, Mons. Arlindo, A Igreja no Brasil: expanso territorial e absolutismo estatal (1700-1822), Vol. III,
Santa Maria, Palotti, 1982, p. 30. 42
Desde 1676. RUBERT, Mons. Arlindo, A Igreja no Brasil: expanso missionria e hierrquica (sculo XVII),
Vol. II, Santa Maria, Palotti, 1982, p. 197 e ss. 43
RLO, Fr. Raul de Almeida (O.P.), Lvque de la Reforme Tridentine: Sa Mission Pastorale daprs le vnrable Barthelmy des Martyres (Traduit du Portugais par le R. P. Ceslas Salmon, O.P.) Lisboa, Centro de
Estudos Histricos Ultramarinos, 1965, pp. 218-228.
28
eclesistica secular fazia com que a herclea tarefa de administrar os sacramentos numa
diocese vastssima precedesse de prticas heterodoxas, pouco ou nada condizentes com o que
as recm-promulgadas Constituies do arcebispado e o prprio Conclio Tridentino
preconizavam.
No obstante ter celebrado o snodo diocesano que resultou na elaborao das
Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia em 1707 e feito um esforo incomum de
realizar quatro visitas pastorais a fim de conhecer os problemas da diocese44
, D. Sebastio
Monteiro da Vide continuava escandalizado com a quantidade de crianas batizadas muito
aps os oito dias ordinariamente concedidos aos pais para faz-lo; espantou-se com o nmero
de fiis que comungavam fora das suas parquias alm daqueles que nem mesmo chegavam
a buscar o sacramento da eucaristia; com a realizao de matrimnios que ignoravam
impedimentos entre os noivos; com o soberbo desinteresse pela catequizao dos escravos e
com o fato de que a dcima parte dos fregueses no frequentava a missa dominical,
culminando no desconhecimento de uma srie de pecados pblicos por parte dos procos45
.
O arcebispo sabia que as relaxaes eram resultado da incapacidade dos clrigos para
vencer dificuldades estruturais enfrentadas h dcadas pela arquidiocese. As grandes
distncias, a vastido, a amplitude territorial da diocese da Bahia, quando relacionadas ao
nmero insuficiente de ministros tornava a ao pastoral um verdadeiro desafio, quando no
um grande desengano. Por isso, Monteiro da Vide precisava sublinhar o valor do
compromisso sagrado que os Prncipes deveriam ter com a Igreja no por acaso
legitimadora do poder poltico dos reis e provedora da unidade confessional dos imprios
catlicos. Insistia no quanto estes to nobilssimos fins como so o da honra de Deus, e
salvao das Almas sempre tiveram bom acolhimento nos Prncipes e Monarcas soberanos46.
Convicto de que a maior certeza da durao e firmeza dos imprios devia-se ao
estabelecimento, conservao e aumento do culto do verdadeiro Deus e a F e Religio
Crist, recomendava que era muito prprio das Majestades e monarcas soberanos
anteporem o servio de Deus47.
No que tamanho compromisso tornasse mais fcil a tarefa de ser arcebispo-primaz do
Brasil. A dimenso territorial da arquidiocese era um obstculo que nem todos os bispos
44
FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales Estudo introdutrio In: Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia/ Sebastio Monteiro da Vide. So Paulo, Editora da Universidade de So Paulo, 2010,
p.14. 45
SILVA, Cndido da Costa e, Notcia do Arcebispado de So Salvador da Bahia, Salvador, Fundao Gregrio
de Matos, 2001, p. 40-42. 46
Idem, p. 36. 47
Idem ibidem, pp. 26, 33, 34,66.
29
tiveram condies de vencer. Por outro lado, aos que tiveram como enfrent-lo, como foi o
caso de D. Sebastio Monteiro, restou uma reputao memorvel. Alis, no sculo XVIII, o
cargo de prelado diocesano da Bahia havia se tornado uma dignidade mpar, concedida apenas
aos candidatos melhor preparados (e/ou melhor relacionados48
) do reino, alm de garantir para
muitos deles, o ponto alto de uma carreira eclesistica no ultramar49
. A relevncia adquirida
pelo Brasil naqueles tempos, devido principalmente ao fato de que a poro americana do
imprio continuava fortalecendo os predicativos rgios da conquista e, mais ainda do
comrcio, havia mudado o significado de assumir como residncia a S primacial da Amrica
portuguesa.
a que se encontra uma contradio fundamental, pois apesar da fama, em termos de
infraestrutura, o arcebispado de So Salvador da Bahia demandava vigorosas intervenes.
Justia seja feita, as Constituies Primeiras representaram um enorme divisor de guas na
organizao da Igreja na Amrica portuguesa, mas a dificuldade de penetrar nos sertes, a
penria financeira dos vigrios e procos das regies mais afastadas, a quantidade de donzelas
pobres em situao de risco, alm do desequilbrio cada vez maior entre clero secular e
regular em atuao permaneciam alarmantes. O efetivo de missionrios jesutas, franciscanos,
capuchinhos, carmelitas, entre outros, que se dirigiam tanto converso das populaes
indgenas quanto evangelizao das populaes de colonos residentes, no se comparava ao
da Igreja secular. Nas Notcias de Monteiro da Vide, havia um forte apelo para que se
ampliasse o quadro de religiosos do Hbito de So Pedro nas mais diversas regies do
arcebispado, especialmente as mais remotas. Havia, em consequncia, a necessidade de mais
igrejas paroquiais para organizar esta cura de almas e prover os registros, alm de uma
cngrua que garantisse a subsistncia destes procos com decncia.
Monteiro da Vide j havia percebido que a necessidade de mais procos e mais igrejas
no seria possvel sem canalizar mais rendas para a arquidiocese. E, para que estas rendas
fossem reajustadas, seria preciso ampliar a poro dos dzimos destinada s despesas
diocesanas, o que, por sua vez, exigiria da Fazenda Real lastro financeiro proporcional
amplitude das intervenes. Assim, o arcebispo elaborou uma splica na qual a expectativa
era de que a obrigao moral da Coroa a fizesse inclinar-se na viabilizao do processo, j
que, a partir da Super Specula, os monarcas portugueses como Gro Mestres das Ordens
Militares, adquiriam direito e autoridade sobre coisas espirituais e temporais, a exemplo de
48
As redes clientelares em torno do processo de provimento episcopal so elucidadas em PAIVA, Jos Pedro, Os
Bispos de Portugal e do Imprio (1495-1777), Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, pp. 171-288. 49
FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales, Op. cit., p. 10.
30
frutos, emolumentos e dzimos50. Esperava-se do ento soberano D. Joo V em 1712 a
sano de uma reforma da malha paroquial baseada nas prerrogativas que a Igreja havia dado
aos reis, afinal, o acrescentamento das rendas era um nobilssimo ato de zelo com religio
crist. Munido de trs relatrios ad limina51
, no havia como no ser convincente. Afinal,
conseguiu obter junto a D. Joo V em 1718, vinte52
novas parquias na diocese sob sua
jurisdio, que era um feito considervel, mas ainda insuficiente diante da situao global da
arquidiocese.
As Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia representaram um enorme
esforo neste sentido, por ter significado uma interveno sem precedentes do ponto de vista
jurdico-institucional. Mas obter uma melhor subdiviso da rede de parquias era, portanto,
consolidar o referencial das Constituies atravs de uma ao empreendida em nvel
espacial, distribuindo os procos e vigrios de modo mais estratgico. O valor desta reforma
era reconhecido pelas vrias solicitaes feitas no s pelos arcebispos e vigrios, mas pelos
fiis e at pelos prprios membros da administrao secular. No preciso dizer o quanto o
governo local e a prpria Coroa tambm se beneficiavam do conhecimento concreto do
contingente populacional e consolidao dos limites territoriais da capitania. Por isso, no ano
de 1732, o Provedor Mor da Fazenda Real do Estado do Brasil chegou a redigir uma carta ao
rei para que ele socorresse as obras da igreja de Nossa Senhora das Brotas, j que os
paroquianos no tinham condies53
. No ano imediatamente posterior, o arcebispo da Bahia,
D. Lus lvares de Figueiredo (1725-1735), divulgaria a sua enorme dificuldade para levantar
com detalhes o nmero de habitantes das parquias54
, reforando a persistncia dos obstculos
prticos de uma ao episcopal na Bahia.
O elogio ao pio zelo da Coroa como meio de comov-la na sua obrigao moral para
com a vida religiosa era o recurso fundamental de qualquer ao episcopal no mbito do
discurso. Tanto que at os fiis recorriam a ele, pois mesmo sendo muitas vezes os
responsveis pela fundao e patrocnio de muitas reformas em suas parquias, ainda
necessitavam da autorizao rgia para faz-lo. Por isso mesmo no deixavam de cobrar o
50
SILVA, Cndido da Costa e, Op. Cit., p.34. 51
As relaes ad limina, que os bispos devem enviar a Roma com regularidade, foram enviados por D. Sebastio
Monteiro da Vide pelo menos trs vezes, em 1702, 1711 e em 1721. Cf. RUBERT, Mons. Arlindo, A Igreja no
Brasil: expanso territorial e absolutismo estatal (1700-1822), Vol. III, Santa Maria, Palotti, 1982, pp. 22-23. 52
Estes nmeros geralmente variam. Segundo Rubert, as parquias foram 18. J para Evergton Sales Souza e
Bruno Feitler, foram vinte. E, segundo Lus de Vilhena, eram vinte. RUBERT, Mons. Arlindo, Op.Cit.,, p. 23;
FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales Op. Cit., p. 16; VILHENA, Luis dos Santos, A Bahia no sculo
XVIII, Itapo, Salvador, 1969, vol. II, p. 441. 53
Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 44, Doc. 3890 (22/09/1732). 54
Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 45, Doc. 3996 (25/01/1733).
31
retorno financeiro representado pelos dzimos pagos. Em junho de 1734, os fiis da igreja
matriz de Nossa Senhora da Ajuda da vila de Jaguaripe solicitaram ajuda de custo ao rei para
continuar as obras55
. Neste requerimento, os paroquianos reclamavam os mesmos privilgios
das outras matrizes do Recncavo que estavam recebendo ajuda de custo em suas respectivas
obras, no deixando de lembrar a Coroa da finalidade dos dzimos arrecadados:
...E porq os dizimos daquele Estado se areccado p.la Faz.da Real de V. Mag.e por isso costuma a sua grandeza e pio zello mandar assistir com a despeza
necessria p.a as obras das Igr.
as Parrochiaes do d.
o Estado. E na d.
a Cid.
e da
B.a o tem praticado c a S, e com a Parrochia de S. P.
o extremuros; e p.
la
com.ca
dela com a de S. Ber.meu
de Maragogipe, a da S.ta Vera Cruz de
Itaparica, a de N. Sr.a da Ajuda de Porto Seguro, a de So Domingos da
Saubara, e outras muitas. E sendo a Freg.a de Jaguarippe a q mais necessita,
ou das mais necessitadas, he to bem das mais dignas do auxillio e grandeza
de V. Mag.e 56
.
A splica dos paroquianos evidencia o nmero significativo de obras nas Igrejas
paroquiais em curso. Porm, em 1739, a Coroa decidiria suspender a continuidade das obras
nas Igrejas paroquiais do arcebispado57
.
D. Joo, por graa de DEUS, Rei de Portugal, e dos Algarves[...]Fao saber a
vos Conde das Galvas[...] que para se evitar a desordem com que
regularmente se impreendem as obras das Igrejas Parochiaes deste Estado.
Fuy servido determinar por rezoluo e dous de Maro deste prezente anno
em consulta do meu Concelho Ultramarino que os freguezes se no
intrometo a reedificar, ou ampliar as ditas Igrejas Parochiaes sem primeiro
darem conta ao Governador, e Provedor da Fazenda...58
Como quaisquer outras demandas que envolviam as finanas estatais e que dependiam,
em alto grau, do exerccio da diplomacia e da anlise de prioridades, sem falar na burocracia,
a expanso da malha paroquial seria indissocivel das questes de contexto poltico e
econmico. Mesmo diante de tantos clamores da populao local, o Conselho Ultramarino e a
Fazenda Real apareciam frequentemente para dissuadi-los diante do risco da desordem. E a
salvaguarda da ordem pblica reaparecia, figurando permanentemente no discurso estatal. A
mudana de postura do Estado em relao ao padroado e presena da Igreja faria com que as
necessidades apontadas pelos arcebispos tivessem de ser submetidas aos critrios de um
Estado cada vez mais forte e centralizado, que estabelecia como entidades prioritrias a
55
Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 48, Doc. 4242 (anterior a 08/06/1734). 56
Idem ibidem. 57
Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 65, Doc. 5530 (03/08/1739). Cf. AHU,
Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 65, Doc. 5563 (17/09/1739) A Proviso incluza q V. Ex. foi servido remeterme p.
a a mandar fazer prez.
te nas freguesias desta com.
a p.
a os moradores delas p.
a q seno
intrometo a fazer obras nas Igr.as
seno na forma insinuada nella logo a fis publicar na forma q consta da certido junta, q com ella remeto na Thesouraria da Ordem de V. Ex.a, q D.s G.de B. 17 de 7br. de 1739. 58
Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 65, Doc. 5568 (19/09/1739)
32
Repblica e o bem comum, impondo um novo vocabulrio poltico-filosfico a
instituies e indivduos, incluindo a Igreja, sob cujas invocaes conduziam a rdeas curtas o
cotidiano dos sditos.
Com as mudanas a todo vapor e as finanas sob intenso controle, vemos portanto que
a capacidade dos prelados para dominar as regras do jogo da persuaso na segunda metade do
sculo XVIII foi crucial para as conquistas de suas aes episcopais. E veremos ao longo
deste trabalho como D. Jos Botelho de Matos conseguiu aprimorara este requerer constante,
enriquecendo as estratgias de splica Coroa com a polidez costumeira no tratamento entre
figuras nobres, mas tambm lanando mo de aspectos que persuadem porque soam lgicos e
bem fundamentados. O arcebispo percebeu com o tempo que a conciliao de objetivos entre
Igreja e Estado, por exemplo, passaria a ser uma das estratgias mais teis e passaria a tomar
parte de questes de sade pblica, de instruo pblica e, claro, de ordem pblica,
demarcando a presena da Igreja nesse espao de interao entre Estado e sociedade civil.
O governo de uma diocese sempre foi, essencialmente, um ato poltico. Garantir, entre
outras coisas, o suporte financeiro da Fazenda Real era decisivo numa conjuntura crtica para
a autonomia da Igreja Catlica no imprio portugus. Em meados do sculo XVIII, as
habilidades polticas e jurdicas de um arcebispo se tornariam to cruciais quanto o contedo
pastoral de seu episcopado59
.
Desejo concluir este primeiro e tmido captulo, portanto, intuindo que a virtude mais
importante daquele que ocupasse a maior entre as dignidades eclesisticas locais o
arcebispo-primaz precisaria revelar-se antes mesmo da execuo das primeiras medidas de
sua ao episcopal: atravs da extensa e ramificada rede de relaes que tecida em torno do
smbolo que a dvida mtua entre Estado e Igreja de que falamos no incio do captulo,
preciso decodificar o sistema poltico, descobrindo quais so os pontos desta rede que
reverberam da periferia ao centro do poder temporal, garantindo acesso aos olhos e ouvidos
do rei. Tudo isto envolvido por uma sutileza incrvel, em que h um esforo gigantesco para
no alterar o equilbrio destas relaes em um perodo em que as relaes Igreja-Estado j
entram numa dinmica de tenso suficientemente arriscada.
59
Parece lcito tomar, mais uma vez, o bispo poltico conceito aprimorado por Jos Pedro Paiva como sendo o representante emblemtico de uma Igreja que defende o seu territrio jurisdicional. Cf. PAIVA, Jos Pedro, Os
Bispos de Portugal e do Imprio (1495-1777), Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, pp. 147-154. Pouco
a pouco, as relaes Igreja-Estado vo se reduzindo ao territrio jurisdicional, exigindo das foras envolvidas o
conhecimento tcnico e a lapidao das virtudes polticas. So tambm interessantes as reflexes de
ALBERIGO, Giuseppe, A Igreja na Histria. So Paulo, Paulinas, 1999, p. 240 e PRODI, Paolo, Uma Histria
da Justia, Lisboa, Editorial Estampa, 2002, pp. 291-292.
33
Assim, a insistncia no pio zelo apostlico da Coroa, a identificao da grandeza do
imprio com este zelo apostlico, o apelo ao sentimento de fiel catlico no interior do
soberano absoluto, entre outras estratgias do exerccio cotidiano do jogo da persuaso,
mostram que a caracterstica fundamental do bispo poltico no era apenas tentar atrair a
disputada ateno da Coroa atravs de simples splicas ou requerimentos. Havia certa dose de
humildade e mesmo de bajulao, sim, mas havia, essencialmente, uma boa dose de
persistncia, quase teimosia, temperada com recuos estratgicos. Era preciso, portanto, mais
do que apenas requerer: era preciso persuadir tambm.
Antes mesmo de partir de Lisboa, D. Jos Botelho de Matos fez um requerimento
Coroa que j o colocaria diante da resistncia da Fazenda Real. Tendo vivido e atuado boa
parte de sua vida no bispado de Miranda, era a primeira vez que ele deixaria o reino para
ocupar uma dignidade no imprio ultramarino. Por isso, tratou de antecipar o pedido de uma
ajuda de custo. Era ainda o ms de fevereiro de 1741 quando ele, argumentando ter feito
muitas despesas na ida Corte (residia em Miranda h mais de duas dcadas) solicitava uma
um conto de ris para cobrir a despesa de levar consigo a famlia para nova diocese de
residncia60
. O oitavo arcebispo de So Salvador da Bahia somente pisaria no solo da
arquidiocese em trs de maio daquele ano.
O Conselho Ultramarino assentou na ajuda de custo, acrescentando que esta tinha sido
a mesma quantia fornecida a D. Lus lvares de Figueiredo61
. D. Joo V deferiu o
requerimento, mas o tesoureiro (da Fazenda Real) Ambrsio da Silva alegava no haver
dinheiro suficiente para a referida despesa. D. Jos Botelho de Matos decidiu insistir,
amparando-se no fato de que o rei j havia expedido a ordem que autorizava a liberao da
ajuda de custo. Por isso, chegou a solicitar que outro tesoureiro de Sua Majestade avaliasse o
requerimento. E o fez com certo tom de pressa, pois j estava de partida para a Bahia. A
insistncia do arcebispo eleito pareceu surtir efeito, pois mesmo diante do fato de que
supostamente no havia dinheiro para cobrir a despesa, em sete de maro de 1741, o pedido
foi afinal deferido62
.
O arcebispo, ento, partiu para um segundo requerimento, cujo valor em ris
correspondia ao dobro do que havia solicitado na ajuda de custo. Ainda no ms de fevereiro
de 1741, Botelho de Matos fez chegar s mos de D. Joo V a solicitao do aumento de sua
60
Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 70, Doc. 5911 (11/02/1741). 61
Cf. AHU, Castro e Almeida, Cx. 3, Docs. 348-350 (7,8,10/07/1738) 62
Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 70, Doc. 5911.
34
cngrua pessoal63
. Jos Botelho de Matos argumentava que a cngrua de quatro mil cruzados,
valor recebido pelo seu imediato antecessor D. Frei Jos Fialho (1739-1741) j no
correspondia ao custo de vida na arquidiocese baiana. Fazendo meno s demais dificuldades
enfrentadas por seus predecessores, inclusive D. Sebastio Monteiro da Vide, os quais,
impedidos de recorrer s lutuosas dos eclesisticos, penso da capela de msica e aos
aougues (pois uma sentena do Tribunal da Relao os havia inibido ainda nos tempos de
Monteiro da Vide64), tiveram de enfrentar a gravidade dos gastos e tenuidade das rendas
daquele arcebispado65. Como de costume, fez um apelo estratgico a pia proteo e
grandeza de Sua Majestade, para que ela deferisse o requerimento e aumentasse o valor da
cngrua de 4.000 cruzados para 6.000 cruzados66
. Em 27 de fevereiro, o Conselho
Ultramarino deu parecer positivo no acrscimo no valor da cngrua pessoal, a qual, em ris,
chegaria a dois contos e quatrocentos mil ris (2:400$000), alm da ajuda de custo de um
conto de ris (1:000$00067
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