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Caro leitor, pare de ler isto, agora.
Livre-se desta obra. Antes fosse, mas não é
nenhuma piada. E, se fosse mesmo uma, seria de
muito mal gosto. Por favor, entenda, eu não sou o
responsável por isso. Pode parecer loucura, mas é
verdadeiro e é real, você acreditando em mim ou
não. Eu estou preso aqui. Isso não é um conto ou
história qualquer para se passar o tempo. Aqui é
outro mundo, outro lugar além de sua compreensão
e, pelo que parece, sem saída. A autora desta obra
diz que sou o personagem perfeito que faltava em
sua criação. Ela diz muitas coisas – algumas até sem
nexo algum. Inclusive, eu não devia estar quebrando
barreiras para avisar-lhe de que não deve continuar.
Não vire a página, por favor. Mesmo em atos
ingênuos, sofremos consequências irreparáveis e
este é o meu caso. Não prossiga, não duvide, não
desafie. Este é o tipo de obra que deve ficar longe do
alcance de crianças e de qualquer ser existente neste
e em outros planetas.
Então, por favor, guarde este livro em um
lugar seguro sem que ninguém e nem você mesmo
possa alcançar. Não o destrua, eu imploro. Isso seria
horrível. Apenas o guarde em um lugar isolado, sem
que ninguém mexa. Faça isso antes que seja tarde
para você, também.
*Agradecimentos especiais ao George Cambeiro
pelas fotografias recortadas e montadas para as
ilustrações desta obra*
CAPÍTULO 1: “Jardim de Filhotes”
Caminhava, andava, peregrinava e não
chegava a lugar algum. Uma longa e cansativa trilha
de terra por entre um campo florido, colorido e bem
tratado. Eram de verdade, mas o material parecia
plástico e elas também brilhavam belissimamente
naquela escuridão azulada de um céu estrelado. Era
tudo, como poderia dizer, “fantasioso e fabricado”.
Uma mistura de algo místico com artificial, uma coisa
natural e falsa, ao mesmo tempo. Quanto ao céu, de
vista admirável, também haviam estrelas cadentes
seguindo para vários lados diferentes. Entre tantas
luzes reluzentes riscando o céu, voou um corvo para
além da direção que eu seguia.
Poderia dizer que estava sonhando. Não
costumo ter sonhos lúcidos, então, não pensei nessa
hipótese na hora. Eu apenas estava ali. Não me
recordo do que aconteceu. Na verdade, eu só lembro
de ter-me mudado para uma nova casa e ter
encontrado um livro abandonado neste lugar. O
título era: “Devaneios de Pesadelo”. Comecei a
folhear algumas páginas só para saber melhor do que
se tratava. A julgar pela capa, que continha uma
grande árvore roxa de folhas coloridas e estranhos
casulos brancos, parecia tratar-se de um livro de
contos de fada ou, simplesmente, fantasia. O antigo
dono o esqueceu na casa? Eu estava tão cansado
com o dia corrido da mudança que só o fiz guardá-lo
comigo e fui dormir. Desde então, me encontrei
neste estranho sonho. E, andando por aquela trilha
sem motivo algum, também desconhecia meu
destino.
Não sei dizer se já estava ali antes ou se
apareceu um tempo depois feito uma ilusão.
Confesso que não tinha prestado tanta atenção,
embora eu ache que, sim, já estava ali. Uma humilde
casa de madeira de colorização roxa. Dois andares.
Não havia mais nada por perto a não ser aquela casa.
O corvo que citei antes, inclusive, pousou em uma
das laterais do telhado e, ali, ficou, quase como se
estivesse me guiando até lá e esperando por mim. De
qualquer forma, decidi pedir por informações. Uma
senhorinha corcunda vestida de vermelho atendeu-
-me na porta após algumas batidas.
- Pois não, estranho?
- Com licença, mas é que estou um pouco perdido.
Poderia me dar alguma informação, por favor?
- Você é humano?
- Sim...? – Não compreendi a pergunta.
- Oh, claro. Mas antes, não gostaria de entrar? – Ela
abriu mais a porta para que eu pudesse passar.
- Não, senhora. Eu só...
- Será um longo caminho e já está tarde. – Ela me
interrompeu. – E, além disso, também está frio. Eu
vou preparar um chá quente!
Mais uma vez, eu recusei. Não queria
incomodar ninguém. Ela insistiu de novo e, só por
educação, resolvi deixar-me ser bem-vindo àquela
casa. Era bem enfeitada e, graças à luz das velas,
tudo ali ganhara um tom alaranjado-dourado.
A simpática senhora me trouxe um cobertor,
convidou-me para sentar à mesa de sua sala de estar
e adentrou à cozinha de sua casa. Perguntei se
precisava de ajuda e ela recusou. Dali da sala, eu
podia ouvi-la cantarolar músicas de vogais soltas que
não faziam sentido algum. Ela parecia bastante feliz e
satisfeita com a vida que levava naquela casa...
Isolada. Raios, eu só queria saber onde estava, para
onde iria e como fui parar em meio àquelas flores
estranhas e chamativas.
Não sou de procurar saber da vida dos outros,
mas enquanto esperava o chá – ou, melhor dizendo,
alguma informação, como era meu plano desde o
início –, estranhei que não haviam quaisquer quadros
de família em nenhum lugar. Nem nas paredes, nem
em prateleiras ou estantes. Nada. O que você mais
encontra na casa de uma senhora de idade são
retratos dos pais, marido, filhos, netos e, também, de
si mesma quando mais jovem. Fotografias cinzas ou
meio amareladas, sempre há. Não era o caso ali.
Realmente, não havia nada que indicasse que ela
tinha uma família.
Isso me fez um pouco triste. Me fez lembrar
também de minha família que, até então, eu não
tinha. Minha mãe faleceu há alguns meses atrás
devido a uma doença e eu nunca conheci meu pai.
Mamãe dizia que ele tinha viajado em uma
importante missão militar e nunca mais voltou.
Sequer respondeu nossas cartas. Não tinha irmãos e
meus tios e primos eram muito distantes. Além disso,
mamãe nunca foi de falar muito sobre sua família,
então, eu também não conheci ninguém. Daí, eu me
perguntei se, idoso, também moraria sozinho em
uma casa sem retrato algum...
A não ser o de minha mãe.
- Aqui está, meu jovem. – Voltando da cozinha, ela
ofereceu-me uma xícara de chá.
- Obrigado, senhora. Eu realmente não quero causar
nenhum incômodo...
- Deixe disso. Eu adoro receber visitas!
- Eu só estou perdido, mesmo. Esse lugar é um pouco
excêntrico, não?
- Como assim?
- Não falo de sua casa. Ela é bonita e agradável. Estou
falando do céu, das flores lá fora... Parece algo tão
irreal.
- Oh, pobrezinho. Deve estar adoecendo, também...
Mesmo curioso, resolvi me aquietar antes que
ela pensasse que eu era algum bêbado maluco e me
expulsasse de sua casa sem dar informação alguma.
- Apenas sabe me dizer onde estou?
- Bom, você está em minha casa, em meu jardim de
flores biônicas.
- Aquelas flores são suas?
- Elas já estavam aqui antes mesmo de mim e de
minha casa. E eu te aconselho a ignorar a estradinha
de terra e virar para o leste. Lá, você encontrará uma
pequena aldeia que te guiará melhor mais para
frente.
- Certo. Obrigado.
- Não vai beber seu chá, querido? Vai esfriar!
Eu estava tão confuso sobre onde estava e
para onde iria que eu acabei me esquecendo do chá
preparado com tanto amor e carinho por aquela
senhora acolhedora. Confesso, não me senti muito
instigado a beber o chá no momento, mas o fiz
mesmo assim só pela educação. Até porque, não me
faria mal. Certo? Errado.
A este ponto, eu estava mais perdido e
atordoado que antes. Só me lembro de ter bebido
uns cinco ou seis goles e de ter apagado de repente.
Eis que despertei sentindo um aperto nos braços e
nas pernas enquanto uma voz infantil, que soava
vinda do meu lado, pedia-me para acordar de uma
vez. Eu levei um susto. Estava amarrado dentro de
um caldeirão que fervia ao fogo, pouco a pouco. A
pobre criança ao meu lado, também amarrada,
estava se afogando com o caldo.
- Fique quieto, filhote de árvore! – Exclamou a
velhinha enquanto derramava um tipo de erva
alimentícia ao caldeirão.
- O que é isso? – Eu tentei, em vão, levantar. – O que
está acontecendo!?
- Você é muito bobo de confiar em estranhos,
rapazinho. Você e esse filhote me darão um ótimo
jantar por eras!
Àquele ponto, finalmente, eu tinha entendido
o porquê dela não ter uma família. Ou ela devorou
todo mundo, ou queriam-na longe deles! Tentei me
levantar mais uma vez e voltei a escorregar. Foi difícil
agir quando meus braços e pernas estavam
amarrados em meio à um caldeirão que, logo, logo,
ferveria feito o inferno.
Ela colocou mais alguns ingredientes
estranhos – alguns até nojentos, como pele pútrida
de algum animal que eu desconhecia a espécie –,
fechou o caldeirão com uma pesada tampa de ferro e
foi aí que meu desespero aumentou. A criança, que
tentava manter-se com o nariz e boca o mais
emergido possível, gritava por ajuda.
Não sabia qual era a da velha canibal, mas
parado eu não pude ficar. Tratei logo de me sacudir
ali dentro, de um lado para o outro, até tomar
controle da força daquele caldo que nos cercava e,
em certo momento, consegui derrubar o caldeirão ao
chão no impulso! Sua tampa caiu e eu logo saí de lá
de dentro, rastejando-me. Não demorou muito para
a desgraçada voltar para a cozinha e ter se deparado
com a bagunça que fiz. Ela começou a me chutar com
força. Mesmo recebendo os golpes na barriga, o que
realmente me impressionou naquele momento
foram suas pernas por baixo do vestido vermelho.
Ela tinha oito pernas aracnídeas.
- Bem que dizem que não é fácil cozinhar um humano
adulto e vivo, mesmo amarrado! – Quanto mais ela
me chutava, mais eu rolava prestes a encostar no
fogo ao lado do caldeirão caído. – Ah, que seja. Você
pode morrer. A carne fresca e macia do filhote
compensará!
É preciso pensar rápido numa situação dessas.
Confesso, nunca foi meu forte. Eu sou do tipo que é
necessário passar por uma situação à risca para
encará-la. Rolei no chão perto do fogo o suficiente
para queimar parte da corda e libertei-me. Ainda
queimei um pouco meus braços, mas nada tão grave.
E, como eu não podia desamarrar com minhas
próprias mãos a corda que tanto apertava minhas
pernas – pois estava ocupado demais tentando
segurar os chutes daquela aberração –, tive que usar
a mesma tática do fogo.
Sucesso! Eu estava liberto. Pude me levantar
e, finalmente, ter uma briga justa contra aquele
monstro. Diga-se “justa”, entre aspas, pois eu sou um
jovem adulto contra uma senhora de idade metade
aranha que tentou me cozinhar vivo e, ainda assim,
ela parecia mais forte que eu. Era uma força sobre-
-humana. Não conseguia sequer empurrá-la para
trás, mesmo eu tentando tudo de mim.
Nossa briga por medir forças só não seguiu
adiante graças a um grande lobo de pelagem negra
que invadiu o lugar ao quebrar uma das janelas. Nos
afastamos um do outro preocupados cada um com
sua própria vida e, assim, o lobo feroz que rosnava
faminto teve que escolher um de nós dois para
atacar primeiro. Por sorte a minha – e azar da velha
–, ele a preferiu e começou a cercá-la naquele
pequeno espaço. Tempo o suficiente para que eu
pudesse fugir dali sem virar janta de nenhum dos
dois.
- Moço, me ajuda! Por favor!
Não pude deixar a criança amarrada para trás,
também. Peguei-a em meu colo e corri o máximo que
pude para longe daquela casa isolada. Corri o quão
longe pude alcançar até olhar para trás e não
enxergar mais aquela maldita casa roxa. Também
não ouvi mais os gritos de ajuda da senhora e nem
mesmo os rosnados agressivos do lobo que surgiu
repentinamente e que, por acaso, foi o que me
salvou. Pude sossegar um pouco em meio a altas e
belas árvores para poder desamarrar com calma a
pequena criança que fugira junto comigo.
- Muito obrigado, moço. Você salvou minha vida!
- Não foi nada. Afinal, eu também iria virar sopa... Eu
acho. – E libertei a criança das cordas apertadas.
- Muito obrigado, mesmo! Se não fosse por você, ela
ia me cozinhar igual fez com meus irmãos. – Aquele
corpo miúdo inclinou-se diante de mim como uma
saudação oriental. – Como eu posso retribuir?
- Não precisa disso. Se bem que... Você sabe me dizer
onde estou?
- Você não é daqui?
- Não.
- De onde você é?
- Eu não sei explicar muito bem. Eu mudei de casa e...
A paisagem ao meu redor me interrompeu, calou-me
e me fez ficar perplexo.
As árvores ao nosso redor. Eu já as tinha visto
antes, em algum lugar. Árvores grandes, formosas e
de coloração roxa. As folhas seguiam as cores do
arco-íris. Enormes e gosmentos casulos permaneciam
dependurados em alguns galhos e poucos estavam
caídos no chão, já murchos. O que quer que
houvesse dentro deles, já tinha ido embora. E uma
sensação ruim veio-me à tona...
Onde mais eu havia visto aquelas árvores tão
excêntricas? A capa do livro que parei para analisar
eram aquelas árvores! As folhas coloridas, os
casulos... Não teria como aquilo ser possível, eu não
uso nenhum tipo de droga e nem bebo nenhum tipo
de álcool. Naquela hora, demorou para a ficha cair,
mas era real: Inexplicavelmente, eu estava dentro do
livro.
- Moço, você tá bem? – A criança cutucou-me na
perna.
- Eu... O quê? – Eu realmente fiquei incrédulo,
cheguei até a gaguejar. – Eu estou dentro do livro?
Como!? Árvores tem caule marrom e folhas verdes,
certo? E aquela senhora tinha... Oito pernas
aracnídeas?? E o que é você!?
Afinal, a criança que estava diante de mim era
outra coisa estranha. Poderia dizer que estava
fantasiada para alguma festa, mas não. Eu sequer sei
dizer se era uma menina ou menino. De qualquer
forma, durante a narração inteira, irei citá-lo no
feminino – afinal, não existe “o criança”.
- Você não sabe? Eu sou que nem eles ali, ó! – A
criança apontou para os casulos presos aos galhos. –
Quando a casca cai, nós saímos de dentro delas. E,
quando ficamos velhinhos até dormir, a terra nos
absorve e nos transforma nessas árvores grandonas!
Fiquei perplexo e sem reação alguma. Acho
que nunca havia me sentido tão abobado assim em
toda a minha vida. Sim, eu estava dentro do livro. O
que aconteceu para resultar nisso? Não sei. Aquilo
não fazia o menor sentido. Nada ali fazia sentido.
Tive uma crise existencial ao mesmo tempo em que
pensava no que estava acontecendo. Eu fiquei
desesperado! “Se estou dentro do livro, como
voltarei?”, me perguntei dezenas de vezes. Notei a
criança olhando-me preocupada como se eu fosse
algum maluco. Procurei me acalmar. Respirar fundo,
contar até dez e respirar fundo de novo é uma tática
que funciona, ao menos, comigo.
- Certo. Vamos por partes. Primeiro: Qual o seu
nome?
- Noah. – Respondeu-me aquela “criança flor”.
- Belo nome. Me chamo Gabrielli, prazer. Segundo:
Eu estou dentro de um livro. Correto?
- É? – Noah olhou-me confusa.
- Terceiro: Como saio daqui?
- Eu não entendi direito o que você quer. Mas
podemos pedir ajuda à Pesadelo!
- Pesadelo? Isso é o nome de alguém?
- Ela é muito poderosa e com certeza pode te ajudar.
Ela muda tudo! Ela pode fazer e desfazer qualquer
coisa de qualquer jeito! Ela não é legal?
- Entendo. É uma espécie de bruxa, entidade ou algo
assim...
- Eu queria ser que nem ela pra poder mostrar à
essas aranhas quem é que manda!
Depois do que aconteceu, não dei tanta
confiança ao caminho indicado por aquele monstro.
No entanto, ironicamente, eu já estava ali. Estava
fora da estrada de terra e em meio a árvores
surreais, a capa do livro. Talvez... Eu tivesse que
seguir com a história para poder sair? Eu também
temi acabar preso para sempre nessa mesma
possibilidade. Bom, se essa tal “Pesadelo” podia me
ajudar, então, minha preocupação naquele momento
era procurá-la o mais rápido possível. Eu esperava
que, se fosse um sonho estranho, que eu despertasse
logo. Para minha infelicidade, não era um sonho.
- Gabrielli...
- Sim?
- Onde você vai?
- Procurar por essa Pesadelo.
- Eu posso ir com você?
Não vi porquê não.
CAPÍTULO 2: “Deserto das Lamúrias”
Não sabia como o dia funcionava no mundo do
livro. Aquela noite perdurou como se não acabasse
mais. O céu continuou azul e constelado, também,
com estrelas cadentes a irem para lá e para cá. Era
uma bela visão. Mas, para quem estava,
supostamente, preso em um livro sem saber se
poderia voltar para casa ou não, aquilo também foi
inquietante. Se eu ficasse preso para sempre, teria
que me acostumar a viver dentro dele. Bom, eu
escapei de ser cozido vivo por uma criatura bizarra,
certo? Talvez não fosse tão difícil. Eu queria, mais
que tudo, sair deste mundo para ficar em paz na
minha nova casa. Quanto ao livro, será que Noah e
todo este lugar deixariam de existir? Não gostei da
ideia de ser a razão para um apocalipse. Talvez eu
apenas o guardasse em um lugar muito bem isolado
e nunca na minha vida ousaria chegar perto dele de
novo. Sequer olharia para ele.
Nossa caminhada resultou em uma desolada
aldeia fantasma. As pequenas e humildes casas,
todas caindo aos pedaços. Duvido que ali houvesse
alguém vivo. Talvez, um mendigo ou sem teto. Afinal,
mesmo correndo o risco de ficar soterrado com os
destroços do próprio abrigo, é melhor do que estar
em meio ao nada com frio e sem proteção alguma.
Francamente, eu não sei. E, naquele momento que
pensei sobre isso, eu estava tão perdido que nada
mais fazia sentido em meus pensamentos. Eu só
queria voltar para casa e fim. Não queria me tornar
um mendigo, sem teto ou, ainda, um peregrino neste
mundo ilógico e fora da minha compreensão.
- Estamos indo no caminho certo? – Perguntei,
perdido.
- Eu não sei. – Respondeu-me Noah. – Eu só tô te
seguindo.
- Isso está errado. Eu pensei que você estivesse me
levando até a Pesadelo...
- Mas eu não sei o caminho! Como faria isso?
- Tudo bem. Sem problemas, eu acho. – Suspirei
fundo, desmotivado. – Vamos apenas continuar
procurando...
Mais adiante, encontramos alguns pontinhos
luminosos em meio à escuridão azulada da noite,
próximos do chão. As luzes provinham de um
pequeno e fino caule de árvore. Quando parei para
analisar melhor, ele possuía uma porta e janelas.
“E agora, gnomos e fadas?”, pensei na hora, confuso
com o surrealismo abstrato do mundo deste livro.
Quando Noah se abaixou para olhar melhor –
afirmando que achou a árvore “fofa” –, uma pequena
criaturinha, de corpo semelhante ao de uma mulher
humana, saiu dali de dentro. O ser possuía feições
lamentáveis, como quem estivesse frequentemente
assustada e aterrorizada com algo.
- Quem são vocês?? – Perguntou-nos, aos berros. – O
que querem aqui!?
- Calma! Nós não viemos fazer mal. – Tentei explicar.
– Nós apenas...
- Vão embora e nos deixem em paz, miseráveis!
- Rep, tenha calma! – Outro deles saiu da árvore para
conter a ira de sua amiga. – Quem sabe, eles sejam
nossos amigos?
- Não me venha com essa, Neg!
- O que está acontecendo? – Outro saiu. – Quem são
eles?? São perigosos!?
- Poxa vida. – E outro. – Não se pode nem mais
procrastinar em paz por aqui?
- Boa noite, todo mundo! – E mais uma. – O céu está
lindo hoje, não acham?
Eram cinco deles! Cada um com seu próprio
jeito de brigar – ou apartar a briga. Eram tantas vozes
mínimas que eu nem pude acompanhar a discussão
muito bem. Houve até agressão por parte da
pequena mulher que gritou conosco! Deu um belo de
um empurrão em um deles que, coitado, recuou feito
um covarde e se escondeu atrás de outro, trêmulo de
medo, enquanto a menor de todos sorria com certo
acanho. Me agachei para contê-los.
- Ei, ei, parem de brigar! – Chamei a atenção deles. –
Pra que tudo isso?
- Liga não. – Respondeu o mais cabisbaixo de todos. –
É assim todo dia...
- Vocês são tão bonitinhos! – Comentou Noah,
também agachada. – Quem são vocês?
- Nós somos os minimidos e eu me chamo Leg.
Prazer! – Apresentou-se a mais contente.
- Eu sou Neg. – Apresentou-se com postura.
- Eu sou Dep. – Apresentou-se o mais deprimido.
- E-eu sou Rej! – Apresentou-se o mais medroso.
- Eu sou Rep! – Apresentou-se a mais raivosa.
Confesso que levei bastante tempo para
decorar o nome de cada um. Os nomes eram muito
parecidos, ficava difícil olhar para cada um deles e
saber quem se chamava quem. Apesar das
personalidades serem totalmente distintas, dava
para se confundir facilmente – ainda bem que eram
só cinco. Se fossem uns dez ou quinze, eu já teria
enlouquecido...
- E vocês, estranhos? Quem são e por que nos
perturbam!? – Perguntou-nos Rep, grosseira.
- Eu sou Noah!
- Eu sou Gabrielli, prazer. E, bem, nós estamos
procurando por Pesadelo.
- Pesadelo!? – Rej arrepiou-se. – Ah, não!
O homenzinho medroso entrou em desespero
e escondeu-se atrás de Neg, trêmulo e pálido, tal
como se tivesse visto um fantasma. Imagino eu que
ele temia tudo – literalmente, tudo –, até mesmo a
própria sombra ou reflexo no espelho.
- Qual o problema? – Perguntei.
- Bem, até onde sabemos, ela é onisciente e
onipresente. – Explicou Neg. – É por isso que o Rej
tem tanto medo dela.
- Ela é tão poderosa assim? – Até eu estava
começando a temê-la, também.
- De qualquer forma, fisicamente falando, ela se
encontra em algum lugar. Só não sabemos onde...
- Eu já estava procurando-a, mesmo... Onde estamos
no momento?
- Vocês estão em nosso Deserto das Lamúrias! –
Respondeu Leg, gentilmente.
- E nós estávamos quase dormindo, até vocês
chegarem! – Reclamou Rep.
- E eu estava quase me matando. – Resmungou Dep.
- Cala a boca, seu suicida idiota!
- Pessoal, menos! – Leg pediu a atenção de todos. –
Eles só estão perdidos. São gigantes do bem e
precisam da nossa ajuda!
- E, se ajudarmos eles, eles também poderão nos
ajudar. – Concluiu Neg. – Correto?
- Do que vocês precisam?
Após minha dúvida – que não foi respondida
de imediato –, todos os cinco minimidos se
acanharam, cada um ao seu modo e personalidade.
Olharam para os lados, apreensivos e cuidadosos,
como se não quisessem chamar muita atenção.
Olhei, também, esperando que algo acontecesse.
“Não tô vendo nada”, comentou Noah, curiosa.
Aquele silêncio mórbido e constrangedor durou por
alguns segundos até que, enfim, Rej se desesperou e
correu até mim, ajoelhando-se diante de minha
pessoa – para ele, enorme – como se eu fosse
alguma divindade. Ele até debruçou-se em meu
sapato quando, na verdade, parecia querer me
segurar pela gola da roupa.
- Por favor, senhor gigante, leve-me embora daqui!
Eu não aguento mais esse lugar! Quanto mais eu fico
aqui, mais eu sinto que ele vai me envenenar e
devorar meus sonhos!
- Espera, do que está falando? – Perguntei, confuso.
- Não sabe do Eckraneon? Ele é um monstro que
envenena partes do corpo com seu olhar e absorve
sonhos. – Respondeu-me Dep. – Para nosso azar, ele
se estabeleceu aqui.
Caro leitor: Entenda “veneno” como uma
espécie de tumor e “sonho” como “sanidade”. Ou
seja: O azarado que estivesse doente, à medida que
se aproximasse da morte, enlouqueceria, esvaindo
cada vez mais sua sanidade da mente ao estômago
de tal monstro que o prejudicara. Acredite, eu
demorei muito para entender que era isso que os
minimidos queriam me dizer naquele momento.
Como você já deve ter percebido, este é um mundo
fantástico, estranho e surreal. Para ser sincero, há
coisas até hoje que não consigo compreender. Então,
vamos apenas voltar para a história. É disso que um
livro precisa, e não de desabafos melancólicos de
quem gostaria de ter sua pacata vida de volta.
- Ele é grande. Bem maior que vocês dois juntos! –
Completou Leg enquanto estendia suas
pequeníssimas mãos para os lados.
- Aquele desgraçado acabou com toda a nossa
floresta e família! – Prosseguiu Rep. – Eu o odeio,
muito!
- E temos medo de sair daqui por sermos muito
pequenos em comparação à ele. Aquela criatura iria
acabar nos vendo e nos matando, sem pensar duas
vezes, assim como fez com os outros que tentaram
fugir. – Completou Neg. – Vocês são grandes e
correm mais rápido. Podem nos tirar daqui, não
podem?
- Bem, eu suponho que sim... – Fiquei em dúvida. –
Mas agora?
- AGORA!
Todos os cinco correram até mim e
começaram a escalar minhas pernas. Senti-los
agarrarem em minha roupa e subirem por meu corpo
me deu uma leve sensação de cócegas e nervoso.
Eles se acomodaram em bolsos da minha calça,
ombros e até na cabeça!
- Esperem, assim não dá! – Eu realmente me
incomodei com todos eles amontoados em mim. –
Pra onde querem que eu vá?
- Pra qualquer lugar! – Respondeu Neg. – Desde que
seja bem longe daqui!
- E rápido! – Exclamou Rep. – Antes que aquele bicho
feio venha!
De repente, um barulho estranho,
desconhecido e agudo como uma flauta –
assemelhando-se mais ao som que provém de
baleias – ressoou por todo o local deserto. O som,
cada vez mais, aproximava-se de onde estávamos. Eu
descobriria, em instantes, que aquele era o som da
morte.
- É ele! – Gritou Rej, apavorado. – Corram!
“Ele é grande. Bem maior que vocês dois
juntos”. Leg tinha razão. Por volta de três metros de
altura, mais ou menos. Não precisava de asas para
poder voar. Presas e olhos aracnídeos. Chifres de
touro. Tromba semelhante ao de um elefante, cuja
pele era escamosa. Corpo comprido e bem articulado
como o de uma cobra, com alguns ossos para fora
das costas – pareciam costelas. Suas patas eram
numerosos braços humanos com afiadíssimas garras
em cada dedo. Sua nojenta baba esverdeada, ao cair
no chão, desintegrava a terra tal como se fosse ácido
sulfúrico. Intimidador, aterrorizante, combustível
para pesadelos. Não me lembro de já ter visto algo
como aquilo antes, mesmo em filmes de ficção. Ver
aquela aberração vindo em minha direção, gritando
ao som de uma baleia, me deixou perplexo por
milésimos de segundos. Com todos os minimidos
gritando pelo meu corpo, apanhei Noah – que estava
tão paralisada quanto eu – em meus braços e corri
como nunca. As minúsculas criaturinhas imploravam
para que não encarássemos o Eckraneon olho-a-olho,
ou iríamos nos envenenar. Eu também não podia
parar de correr. Afinal, se não fosse para ser
envenenado, eu poderia morrer de diferentes formas
possíveis graças à força daquele monstro contra meu
mero corpo humano. Eu me transformaria em
pedaços de carne em instantes.
Não sabia onde estava e, muito menos, para
onde iria. Eu apenas corri. Corri sem rumo,
esperando que aquela criatura grotesca se cansasse
de nós. Sequer conseguíamos nos esconder atrás das
poucas árvores que haviam ao redor, pois o
gigantesco ser vinha e destruía tudo com facilidade.
Nós apenas continuamos a fugir. A nossa sorte é que
aquela coisa não voava e nem corria tão rápido como
imaginei que fosse – talvez ele fosse veloz demais na
perspectiva dos minimidos, e por isso tinham tanto
medo de sair do Deserto das Lamúrias usando suas
pequeníssimas pernas para correr. Imagino quantos
já morreram ao tentar fazer isso.
Carreguei Noah firmemente em meu colo
durante toda a correria. Em meio a isso, devido ao
pânico e instinto de sobrevivência, quase tropecei
algumas vezes em meus próprios passos. No céu
estrelado, sem parar de me seguir, o Eckraneon se
preparava para me atacar assim que me alcançasse.
Eu pude ver, por milésimos de segundos, um
pequeno vulto negro jogar-se contra o que seria a
boca do ser. Ele pareceu ter se engasgado, além de
retorcer-se como se estivesse sofrendo com alguma
convulsão. De lá de cima, ele caiu e fez um barulho
estrondoso no impacto, levantando uma alta fumaça
de terra ao seu redor. Ainda estava vivo! E
continuava se retorcendo. O vulto negro, ou o que
quer que tivesse ido parar dentro dele, movia-se de
um lado para o outro, sem pausa. Sei disto pois pude
perceber pequenas ondulações manifestarem-se por
seu corpo, como um feto chutando a barriga de sua
mãe. Naquele caso, era bem mais violento, intenso e
doloroso. O que era o vulto? Em breve, eu
descobriria.
Apenas agradeci pela sorte e voltei a correr,
carregando Noah comigo nos braços. Corri para
muito longe, tão longe que algumas árvores
começaram a aparecer aos poucos. Cheguei a um
ponto que me cansei de correr, me ajoelhei na terra
fofa e úmida e coloquei Noah de pé no chão – ela
estava chorando, assustada. Os minimidos, cada um
ao seu ritmo, desceram meu corpo e se encontraram
no solo. Parecia começar a amanhecer. Uma cor
amarela tomava conta do azul da noite e, mesmo
assim, ainda era possível enxergar algumas estrelas.
Eis o brilho do dourado celeste.
- Estou exausto. Mal sinto minhas pernas. – Suspirei,
ofegante e cansado. – Noah, por favor, não chore...
- Desculpa. – Ela limpava suas lágrimas. – Eu fiquei
com tanto medo!
- Eu sei. Eu também. Mas está tudo bem agora,
então, fique calma...
- Ei, o que é isso?
Rej apontou para o peito da criança. Havia
uma pequena e estranha mancha acinzentada ali.
Vinha de dentro, por baixo da pele. Ainda assim, eu
tentei limpar, como se fosse uma sujeira de nada,
mas não era.
- Que isso? – Ela perguntou, confusa.
- Isso significa que seu coração está envenenado. –
Respondeu Dep.
- Envenenado!? – Fiquei tenso.
- Você encarou o Eckraneon nos olhos? – Noah
abanou sua cabeça positivamente para Neg. – Mas
nós avisamos para não encarar!
- Desculpa... – Ela ficou acanhada, tal como uma
criança que fez o que não devia por pura inocência.
- Certo. Não dá para voltar atrás. – Preocupado,
tentei manter a calma. – O que fazemos agora?
- Deixe morrer. – Disse Dep, frio e insensível. – Não
há o que possa ser feito.
- Não diga uma coisa dessas, Dep! – Leg o
repreendeu. – Temos que ser otimistas. Vai ficar tudo
bem!
- Sua idiota, ele está envenenado! – Retrucou Rep. –
Não tem como sobreviver. Nunca alguém sobreviveu
ao veneno daquele monstro!
- Essa sensação deve ser horrível! – O pequeno corpo
de Rej tremia só dele imaginar.
- Pessoal, eles nos ajudaram a fugir do Eckraneon.
Temos que ajudá-los, também! – Neg mobilizou
todos os quatro. – Veja bem, Noah: Ao que parece,
felizmente, a parte do seu corpo que foi envenenada
foi o coração. Quando nosso Deserto das Lamúrias
ainda era a Floresta da Fortuna e muitos gigantes
moravam e passeavam por lá, ouvimos falar de um
tal... Como era mesmo o nome? – Ele perguntou aos
seus colegas. – Ele trabalhava com brinquedos...
- O Fabricante de Brinquedos? – Sugeriu Rej.
- Sim. Mas qual era o nome dele?
- E alguém lá sabe o nome daquele sujeito esquisito?
– Disse Rep.
- Tanto faz. Isso não importa. – Neg voltou sua
concentração. – O que quero dizer é que ele pode
fabricar um coração novo para Noah, substituindo o
envenenado!
- Mas ele faz brinquedos. O coração que ele fizer não
será de verdade! – Retrucou Rep.
- Mas pode funcionar em perfeito estado! – Replicou
Leg, animada com a ideia.
- Eu não acho. – Dep tinha dúvidas. – Ele dá vida a
coisas inanimadas. Não quer dizer que ele ressuscite
alguém, por exemplo...
- Eu não tô entendendo... – A voz de Noah soou
meiga, mas penosa. – Vocês estão dizendo que meu
coração vai ser um brinquedo?
- Mais ou menos isso. Agora, ouçam: – Virei minha
atenção para os minimidos. – Esse Fabricante de
Brinquedos pode fazer Noah melhorar, não pode?
- Pode. Mas eu sugiro que você peça com jeito. –
Aconselhou-me Neg. – Como não é para um
brinquedo ou coisa do tipo, é capaz que ele recuse...
- E onde podemos encontrá-lo?
- Ah, eu lembro! Falaram que a loja dele ficava à
cento e sessenta e cinco quilômetros daqui!
- Tudo isso!? – Abismei. – Eu não tenho como ir pra
lá!
- Claro que tem! Você pode pegar carona na barca
que atravessa o Rio Cor de Rosa todos os dias. –
Sugeriu Leg. – Para locais mais distantes, eles
conhecem atalhos para vários lugares. É o que já
ouvimos falar da boca de vários gigantes como você!
- Barca do Rio Cor de Rosa. Entendi... – Memorizei o
nome.
- Que nome engraçado! – Noah riu. Mesmo doente,
estava tão contente!
- Verdade. E onde podemos encontrá-lo?
- O rio fica pra lá. – Todos os cinco minimidos
apontaram para a direita. – Basta seguir reto e
encontrará o rio.
- Certo. Obrigado, pessoal, de verdade! Vamos, Noah.
Nos aprontamos. Os minimidos passaram a
morar naquele pequeno bosque. Afinal, com o
Deserto das Lamúrias do jeito que estava, ficava
impossível continuar vivendo dificultosamente, ainda
mais para seres tão minúsculos como eles.
Apesar de supostamente envenenada e com
aquela estranha mancha no peito, Noah não
demonstrava fraqueza ou debilitação. Do contrário,
parecia tão bem e cheia de energia! Mas eu estava
preocupado, mesmo assim. É bem melhor remediar
antes que seja tarde demais. Não gosto nem de
imaginar o que poderia ter acontecido a Noah caso
sua doença evoluísse para algo pior. Se ela morresse,
será que o veneno permitiria que uma árvore
crescesse de seu corpo? E, se sim, então, a árvore
estaria envenenada, e geraria outros bebês doentes
que, provavelmente, morreriam antes mesmo de
nascerem? Isso é horrível de pensar. Noah é preciosa
demais para perdê-la assim, de uma vez, sem mais
nem menos. Sei do que falo pois, afinal, eu perdi
minha querida mãe e não queria ter que passar por
isso de novo. A doença dela não tinha cura, mas no
caso de Noah, ainda havia uma segunda chance para
a vida. O que eu não pude fazer por minha mãe, quis
fazer por esta criança.
- Gabrielli, eu tô com medo... – Ela desabafou.
- Não fique com medo. Você ficará bem. Prometo!
- Obrigado. Você é um humano muito bonzinho!
Apesar de nem eu mesmo ter tido tanta
certeza assim de minhas próprias palavras, por Noah,
eu tinha que ser forte para tranquilizá-la e protegê-
-la. Ela foi o maior motivo para que eu me
mantivesse calmo, racional e instigado a continuar.
Por mais que a morte seja algo natural e inevitável –
e eu aceito esse fato –, é sempre bom passar mais
um tempo com quem você ama, para aproveitar
bastante do que a vida tem a lhe oferecer, mesmo
que existam alguns beliscos aqui e acolá.
Principalmente para uma criança como Noah, tão
jovem e com toda uma vida pela frente. Não havia
pressa alguma em se tornar árvore para gerar outras
vidas se ela tinha a chance e o direito de ter a sua.
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