CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault, Verbete 'Soberania

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    CASTRO, Edgardo. Vocabulrio de Foucault

    Soberania

    (Souverainet). Foucault ope e deixa de lado dois sistemas de anlise do poder: opoder como represso e o poder como soberania. Este ltimo sistema, que encontramos

    nos filsofos do s!culo "#$$$, se articula em torno do poder concebido como um direito

    ori%inrio que se cede e do contrato como fonte do poder pol&tico ($'S, ). * aula de

    + de aneiro de - do cursoIl faut dfendre la societ($'S, /01) %ira em torno da

    questo de o conceito da %uerra ! adequado para a anlise das rela2es de poder. 3este

    contexto, Foucault estabelece as diferen2as entre uma anlise do poder em termos de

    confronto e de lutas, em termos de %uerra, e uma anlise em termos ur&dicos, de direito.

    3esta discusso Foucault ope o conceito de soberania (cate%oria ur&dica central da

    filosofia pol&tica moderna) ao conceito de domina2o (mas no no sentido marxista de

    explora2o, mas como luta). 4ara Foucault, desde a $dade 5!dia a elabora2o dopensamento ur&dico ocidental sempre te6e como eixo a fi%ura do rei. 3o ocidente o

    direito ! direito real. 7s direitos le%&timos da soberania e sua contraparte 8 a obri%a2o

    le%al da obedi9ncia 8 ser6iram para dissol6er as formas de domina2o (as formas de um

    exerc&cio do poder ile%&timo desde o ponto de 6ista ur&dico). Foucault prope in6erter a

    marca. 4ara tanto estabelece cinco precau2es metodol%icas: ) 3o se ocupar das

    rela2es de soberania, mas das rela2es de domina2o. ;rata0se de no entender esta

    ltima como um fato massi6o, %lobal, do dom&nio de um %rupo sobre outro, mas em

    suas formas mltiplas, nas rela2es rec&procas entre sueitos ($'S, /+0/). ;rata0se de

    estudar o poder em suas extremidades, em suas formas capilares. 4or exemplo, em lu%ar

    de per%untar pelo fundamento do direito de casti%ar, de6e0se estudar as t!cnicasconcretas, istricas e efeti6as com que se casti%a. * ideia ! situar0se no ponto de 6ista

    dos procedimentos de suei2o (assuettissement). /) Estudar o poder em sua face

    externa, no no sueito que o det!m ou em suas inten2es. * questo no !, como em

    . 1) 7 poder funciona em rede: o indi6&duo no !

    simplesmente o que est frente ao poder, nunca ! um al6o?obeti6o inerte. 7s indi6&duos

    sempre se encontram na posi2o de sofrer e exercer o poder. So, em realidade,

    receptores0emissores (rela@). +) Ae6ar a cabo uma anlise ascendente do poder, no umadescendente. 'e no6o, no se trata de faBer uma dedu2o do poder partindo desde cima

    e desde seu centro, mas exatamente do contrrioC trata0se de faBer uma anlise

    ascendente de como tecnolo%ias e mecanismos de poder locais, com sua prpria

    istria, so coloniBados por mecanismos mais %erais. Foucault discute bre6emente aqui

    o uso que se faB da no2o de =bur%uesia>. 'a ideia de =domina2o da classe bur%uesa>

    se pode deduBir qualquer coisaC por exemplo, o encarceramento dos loucos, os controles

    sobre a sexualidade infantil e o contrrio dele. 7nde realmente se localiBa o interesse da

    bur%uesa !, melor, no benef&cio econDmico dos mecanismos de excluso e controle.

    5ais que excluir ou controlar, o que importa ! a t!cnica, o procedimento de excluso e

    controle. Se trata, neste sentido, de uma =micromecnica do poder>. ) 7 que se formana base dos micromecanismos do poder no ! a ideolo%ia, mas instrumentos efeti6os de

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    acumula2o do saber, m!todos de obser6a2o, re%istros, procedimentos de in6esti%a2o,

    de busca, de 6erifica2o ($'S, /01G).

    H

    * teoria da soberania exerceu quatro papeis fundamentais na constitui2o pol&tica das

    sociedades ocidentais: ) ser6iu para o estabelecimento do sistema feudalC /) ser6iu para

    a constitui2o das monarquias administrati6asC 1) ser6iu como instrumento da luta

    pol&tica nos s!culos "#$ e "#$$C +) ser6iu para a forma2o das monarquias

    parlamentares ($'S, 1G01).

    H

    Sem embar%o, a partir dos s!culos "#$$ e "#$$$ sur%iu uma no6a forma de poder: a

    disciplina. Se a teoria da soberania sobre6i6eu nesta reor%aniBa2o do poder, ! porque

    permitiu o desen6ol6imento das disciplinas como mecanismos de domina2o e permitiu

    ocultar o exerc&cio efeti6o do poder. Iontudo, apesar de a teoria da soberania ter ser6ido

    para a forma2o istrica do poder disciplinar, ! claro que se trata de duas formas

    diferentes de poder que podemos opor da se%uinte maneira. * soberania ! uma forma de

    poder que se exerce sobre os bens, a terra e seus produtos. Seus obetos fundamentais

    so o territrio e as riqueBas. Se exerce de maneira descont&nua (por exemplo, a

    arrecada2o de impostos). Se trata, em definiti6o, de uma obri%a2o ur&dica. Supe a

    exist9ncia de um soberano: o corpo do rei. * disciplina, por outro lado, se orienta aos

    corpos e ao que faBem: seu obeti6o ! extrair deles tempo e trabalo. Se exerce de

    maneira cont&nua mediante a 6i%ilncia. Exi%e uma =reticulacin> precisa de coer2es

    materiais ($'S, 1/011).

    H

    Em Le pouvoir psychiatrique(44, +J0-), Foucault desen6ol6e mais extensamente a

    contraposi2o entre as rela2es de soberania e as rela2es disciplinares. 3esta

    contraposi2o se d particular importncia K rela2o entre poder e corpo. ) Em primeiro

    lu%ar, Foucault obser6a que a rela2o de soberania ! uma rela2o assim!trica. 3ela, o

    soberano se apossa dos frutos da terra, dos obetos fabricados, das armas, da cora%em,

    do tempo de seus sditos. 5as tamb!m %asta suas riqueBas para celebrar, por exemplo,

    as festas ou os ser6i2os reli%iosos. 5as, entre entradas e sa&das, existe uma dissimetria

    fundamental. 7s %astos que o soberano realiBa para seus sditos so menores que a

    riqueBa extra&da deles. 7 dispositi6o disciplinar, em troca, no ! uma apropria2o

    parcial dos produtos da terra, do tempo dos sditos, de seus ser6i2osC mas uma

    apropria2o total e completa. * respeito do indi6&duo, o dispositi6o disciplinar ! =(...)

    uma ocupa2o de seu corpo, de sua 6ida e de seu tempo> (44, +-). /) *nterioridade

    fundadora. * rela2o de soberania se fundamenta em al%um acontecimento anterior: o

    direito di6ino, a conquista, a 6itria. Este acontecimento fundador e pertencente ao

    passado necessita ser reatualiBado mediante o relato dessas conquistas ou 6itrias, ou

    durante a celebra2o das festas e compet9ncias. 3este sentido, a rela2o de soberania !

    intan%&6el e fr%ilC pode romper0se, cair em desuso. Ela requer, por parte do soberano,

    um suplemento de amea2a, de 6iol9ncia. 7 dispositi6o disciplinar est orientado a um

    estado timo, ao resultado. *qui, no nos encontramos com refer9ncia a um

    acontecimento passado ou a um direito ori%inrio, mas com um dispositi6o orientado aofuturo. 1) 3o0isotopia. *s rela2es de soberania do lu%ar a diferencia2es, mas no a

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    uma classifica2o exausti6a e planificada. Elas se entrela2am umas com as outras, sem

    que exista entre elas uma medida comum. *qui no nos encontramos com um sistema

    nico. *demais, os elementos de uma rela2o de soberania no so necessariamente

    equi6alentes aos de outraC pode tratar0se de multiplicidades umanas (uma fam&lia, uma

    coleti6idade), da terra, de um camino, de um instrumento de produ2o etc. $sotopia. 7s

    dispositi6os disciplinares t9m?tendem K isotopia. $sto si%nifica 6rias coisas: a) cadaelemento, cada indi6&duo tem seu lu%ar bem determinado, em sua classe, em seu

    =ran%o>, na ierarquia dos 6alores e 9xitos. b) 7s deslocamentos no podem acontecer

    por descontinuidade (lit&%io, %uerra, fa6ores), mas por um mo6imento re%ulado (exame,

    concurso, anti%uidade). c) 3o entre os diferentes sistemas conflito ou

    incompatibilidade. 7s diferentes sistemas se articulam entre si (a escola, o trabalo

    etc.). d) 7 sistema de classifica2o exausti6a produB, ademais e sobretudo, o

    inclassific6el, a anomia (o desertor, o d!bil mental, o delinquente). +) Sueito mltiplo.

    7 elemento0sueito da rela2o de soberania no ! um corpo indi6idual, ou, se%undo

    outra expresso de Foucault que s a6ia aparecido uma nica 6eB at! a%ora em seus

    escritos (*3, -/), uma sin%ularidade somtica (singularit somatique). 3as rela2esde soberania, a fun2o0sueito se desloca ou por cima ou por baixo da sin%ularidade

    somtica. 3o caso dos sditos, as rela2es de soberania concernem a seus corpos de

    maneira descont&nua (nas cerimDnias, por exemplo), atra6!s de marcas (por um si%no,

    por um %esto), do supl&cio. 5as, o corpo marcado ou o corpo supliciado ! um corpo

    fra%mentado. 3o coincid9ncia entre o =sueito> de uma rela2o de soberania e a

    sin%ularidade somtica. 3este sentido, as rela2es de soberania no le6am a cabo uma

    indi6idualiBa2o da base, dos sueitos aos quais se aplicaC marca os corpos, suplicia0os,

    mas no os con6erte em indi6&duos. Eles, com efeito, no tem uma identidade

    indi6idual. * indi6idualidade alcan2a seu maior %rau, em troca, em rela2o ao corpo do

    soberanoC este de6e ser perfeitamente 6is&6el e identific6el. $ndi6idualiBa2o. *finalidade dos dispositi6os disciplinares ! a indi6idualiBa2o dos =sueitos>, =(...) o

    indi6&duo no ! outra coisa que o corpo sueitado> (44, +). 7 mecanismo de disciplina

    =abotoa> (pingle) a fun2o0sueito K sin%ularidade somtica (44, ).

    H

    'uas raBes explicam a 6i%9ncia da teoria ur&dica da soberania. Em primeiro lu%ar, esta

    exerceu um papel cr&tico contra a monarquia e contra todos os obstculos que poderiam

    se opor ao estabelecimento da sociedade disciplinar. Em se%undo lu%ar, permitiu a

    forma2o de um sistema ur&dico que oculta a implanta2o do poder disciplinar.

    *ssistimos a uma democratiBa2o da soberania (um direito pblico articulado nasoberania coleti6a), mas carre%ada de mecanismos disciplinares.

    H

    Foucault atribui K teoria da soberania uma tripla =primiti6idad>, ou tr9s ciclos: )

    =4rimiti6idad> ou ciclo do sueito: se prope mostrar como um sueito (um indi6&duo)

    dotado de direitos e de capacidades se con6erte em sueito de uma rela2o de poder

    (sueito no sentido pol&tico do termo). /) =4rimiti6idad> ou ciclo da unidade do poder:

    se prope mostrar como mltiplos poderes, enquanto capacidades, podem adquirir um

    carter pol&tico em rela2o com a unidade fundamental do poder. 1) =4rimiti6idad> ou

    ciclo da le%itimidade: se prope mostrar como pode se constituir um poder sobre a basede uma lei fundamental, sobre uma le%itimidade de base. Lma anlise em termos de

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    rela2es de domina2o, ao contrrio: ) no considera o indi6&duo como al%o dado

    desde onde partir, mas se interro%a acerca de como as rela2es efeti6as de poder

    fabricam os indi6&duosC /) quer mostrar a multiplicidade das rela2es de poder em suas

    diferen2as e especificidades, como se apoiam e remetem umas Ks outrasC 1) quer traBer K

    luB os instrumentos t!cnicos que permitem o funcionamento das rela2es de domina2o

    ($'S, 10+G). Em poucas pala6ras, em lu%ar de estudar a %9nese do soberano (que foi afinalidade perse%uida pela teoria da soberania), a %enealo%ia se ocupa da fabrica2o dos

    sueitos.

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