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CONJUNTO UNIVERSITÁRIO CÂNDIDO MENDES
INSTITUTO DE PESQUISAS SOCIOPEDAGÓGICAS
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
MORTE E FAMÍLIA
Apresentação de monografia ao Conjunto
Universitário Cândido Mendes como con-
dição prévia para a conclusão do curso
de pós-graduação “lato sensu” em Tera-
pia de Família.
Por Wania Lima Barroso Ferraz
Orientadora: Profa Maria Esther de Araújo Oliveira
Rio de Janeiro
Julho/2002
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RESUMO
O estudo que trata do assunto “morte e família” visa
buscar caminhos diversos de entendimento e compreensão do tema, apresentan-
do os aspectos gerais sob o ponto de vista cultural, ético, religioso, filosófico, his-
tórico e familiar. A reflexão sobre a morte enfoca como lidar com o medo e como
ela nos força a viver, nos relacionarmos, procriarmos, criarmos, construirmos coi-
sas que nos transcendam, tornando-a mais familiar e, portanto, menos ameaça-
dora. Outro ponto importante é a abordagem sobre a tanatologia (estudo da mor-
te), referindo-se a vários tipos de morte, até mesmo as pequenas mortes que ro-
deiam nosso cotidiano, pois vivemos perdas todos os dias. O diagnóstico da mor-
te é retratado neste estudo segundo seus estados: morte cerebral, dor da morte,
envelhecimento... O ponto de vista filosófico e religioso engloba as crenças religi-
osas e metafísicas materialistas.
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SUMÁRIO
RESUMO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULOS
1 – MEDO DA MORTE............................................................................................6
2 – TANATOLOGIA................................................................................................10
2.1 – Diagnóstico da morte..............................................................................11
2.2 – Morte cerebral.........................................................................................12
2.3 – Dor da morte...........................................................................................13
2.4 – A difícil arte de envelhecer.....................................................................15
3 – MORTE SEGUNDO A FILOSOFIA E A RELIGIÃO..................................... ...18
3.1 – A morte não é nada para nós.................................................................18
3.2 – Morte: separação da alma e do corpo....................................................19
3.3 – A eutanásia na visão das grandes religiões...........................................20
3.4 – Outras correntes filosóficas e religiosas.................................................21
4 – MEDICINA PALIATIVA....................................................................................24
CONCLUSÃO........................................................................................................26
BIBLIOGRAFIA......................................................................................................27
4
INTRODUÇÃO
É objetivo deste trabalho apresentar aspectos gerais
sobre a questão da morte, tanto sob olhares culturais, éticos e religiosos, como
filosóficos, históricos e familiares. Deste modo, pretende-se buscar conceitos,
caminhos e algumas respostas para um dos fatos mais comuns e certos da vida:
a morte.
Este trabalho nasceu do meu desejo de entrar mais
em contato com o tema “morte”. O que é a morte? Para onde vamos? Por que
sentimos a morte de uma maneira tão difícil e sofrida? Por que a família não acei-
ta esta perda?
Daí por diante, relatará sobre o estudo da morte,
também falando acerca da dor da morte pela Tanatologia, estudo da morte (den-
tro da Psicologia).
A dor da morte entra na questão da dor psíquica,
aquela dor para a qual não há remédio para o alívio imediato, que muitas vezes
pode ser também geradora de dor física. Nesse caso, a morte passa a ser viven-
ciada dentro de uma dinâmica incompreensível para quem não a elabora.
Esse espaço de tempo entre o velório e a “nova vi-
da” de quem fica e vive o luto pode se definir “como um lento e penoso processo
de desamor em relação ao desaparecido, para amá-lo de outra forma”, como cita
Juan David Nasio.
Em 1985, quando aos 11 anos sofria pela possibili-
dade de “perder” a avó materna, a quem muito amava e tinha um vínculo afetivo
forte, passei a refletir sobre a questão da morte, temendo-a. Esta seria a única
forma pela qual poderia perdê-la, me separar definitivamente. Não podia sequer
pensar nesta possibilidade, pois gerava-me pânico, insegurança, desconforto e
angústia. Choramingava pelos cantos da casa, sem que ninguém percebesse,
imaginando sua morte nos mínimos detalhes — que, na verdade, só fora aconte-
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cer agora em 2002. Tal sofrimento foi em vão? Sem saber, ainda teria 17 anos de
convivência com ela pela frente.
Em 1991 morre, de uma hora para outra (problemas
com cigarro), a avó paterna, a quem tinha um carinho imenso e muitos momentos
de alegria e descontração, como as viagens de férias escolares.
Em 1992 morre o futuro sogro. Também de forma
fulminante (dois tiros enquanto aguardava o sinal de trânsito abrir). O sofrimento
de meu marido, na época namorado, e algumas dificuldades no aspecto afetivo e
psicossocial fizeram-me chorar várias vezes sua ausência.
Em 1998 morre o futuro cunhado. Novamente de
forma inesperada (acidente de carro). Jovem, alegre, começando a vida com seus
sonhos e projetos, teve que adiá-los aqui na Terra, ou concretizá-los em outra
dimensão. De lá para cá, foram tantos velórios, choros, tristezas, saudades... Tia
Alice, Tia Céu, Tia Norma, Sônia...
A partir deste momento, a reflexão sobre a morte, ou
talvez sobre a vida, sobre nossas relações com o outro, sobre como encaramos a
morte, como ela é vivida em nossa sociedade, cultura, como a dor da morte influi
na vida dos que ficam — enfim, tudo isto gerou um profundo interesse por ques-
tões como: o que pensam os espiritualistas, religiosos, filósofos e historiadores;
como todos esses fatores interferem em nossa educação, na elaboração que fa-
remos quando a morte chegar, seja a nossa ou de um ente querido; o que ensi-
namos para nossas criancinhas sobre a morte; como encaramos a vivência do
luto. O objetivo é que tais questões sejam respondidas por análises teóricas e
práticas.
6
1 – MEDO DA MORTE
“Há muito tempo, no Tibete, uma mulher viu seu filho, ainda bebê, adoecer e morrer em seus braços, sem que ela nada pudesse fa-zer. Desesperada, saiu pelas ruas imploran-do que alguém a ajudasse a encontrar um remédio que pudesse curar a morte do filho. Como ninguém podia ajudá-la, a mulher pro-curou um mestre budista, colocou o corpo da criança a seus pés e falou sobre a profunda tristeza que a estava abatendo. O mestre, então, respondeu que havia, sim, uma solu-ção para a sua dor. Ela deveria voltar à ci-dade e trazer para ele uma semente de mos-tarda nascida em uma casa onde nunca ti-vesse ocorrido uma perda. A mulher partiu, exultante, em busca da semente. Foi de ca-sa em casa. Sempre ouvindo as mesmas respostas. ‘Muita gente já morreu nessa ca-sa’; ‘Desculpe, já houve morte em nossa fa-mília’; ‘Aqui nós já perdemos um bebê tam-bém.’ Depois de vencer a cidade inteira sem conseguir a semente de mostarda pedida pelo mestre, a mulher compreendeu a lição. Voltou a ele e disse: ‘O sofrimento me cegou a ponto de eu imaginar que era a única pes-soa que sofria nas mãos da morte’.” (BEC-KER, E. 1980. p 26) A morte pode ser vista como um mistério incompre-
ensível. Ou como um absurdo inaceitável. A morte pode até ser tratada como um
tabu, assunto do qual a maioria das pessoas não gostam de falar. Mas, seja como
for, a morte é um fato, uma realidade inexorável. E que vem para todos nós. Por
mais que queiramos nos esconder dela, deixar de existir é uma coisa tão natural
quanto existir. Na verdade, a morte é provavelmente a única coisa certa em nossa
existência – e também na de nossos pais, filhos, ídolos e inimigos, de todas as
7
pessoas que amamos e mesmo daqueles que jamais chegaremos a conhecer: é
certo que todos vamos morrer um dia. E esse dia pode acontecer amanhã ou da-
qui a 60 anos.
A morte faz parte da vida. Todos começamos a mor-
rer exatamente no dia em que nascemos. A morte, portanto, é uma etapa da nos-
sa existência com a qual temos que conviver melhor ou pior. Mas não se pode
evitá-la. Pode-se aceitar a sua inevitabilidade e olhá-la de frente. Ou pode-se ne-
gá-la, fugir dela, imaginar que não pensar na morte possa fazer com que ela deixe
de acontecer com você ou com a sua família. Mas o fato é que todos nós estamos
programados para nascer, crescer e morrer – uma obviedade esquecida por boa
parte da sociedade ocidental contemporânea, que teima em ver a morte como um
evento artificial, inesperado e injusto. Sobretudo, costumamos vê-la como um e-
vento exclusivo, pessoal, que isola quem sofre uma perda, por meio da dor, do
resto do mundo. Quando, ao contrário, não há nada menos exclusivo do que mor-
rer. Nem nada que perpasse mais a humanidade do que o sofrimento de uma
perda. Como está expresso na fábula tibetana, a morte não é privilégio nem des-
graça particular de ninguém. Ela chega para todos, sem exceção.
Mas, afinal, se a morte é tão comum e corriqueira,
por que ela nos causa tanto medo? Talvez porque o maior desejo do homem seja
a imortalidade. Por isso, muitas vezes a morte é considerada uma inimiga. E uma
adversária, que poderia ser vencida pelos avanços científico-tecnológicos do sé-
culo XX, que aumentaram indiscutivelmente a eficiência dos diagnósticos, dos
medicamentos, das técnicas cirúrgicas etc. O sonho da permanência ganhou um
reforço com as melhorias trazidas pela medicina, com o aumento da expectativa
de vida, com a possibilidade de haver cura para todas as doenças, mesmo o cân-
cer ou a Aids. Enfim, soa como perda de tempo falar de morte a quem tem as
descobertas da ciência a seu favor. Afinal (segundo WEIL, P. 1989. p. 102), “se
existem meios de prolongar a vida útil do ser humano, de manter-se jovem, de
atrasar o envelhecimento, de viver mais de 100 anos, por que pensar na finitu-
de?”.
O mundo ocidental transformou a morte em tabu: ela
costuma ser ocultada das crianças e banida das conversas cotidianas. Tudo aqui-
lo que possa lembrá-la – a enfermidade, a velhice, a decrepitude – é escamotea-
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do. Os doentes morrem no hospital, longe dos olhos – e, não raro, do coração –
de seus amigos e parentes. E os rituais de luto são cada vez mais rápidos e
pragmáticos. O medo natural que todo ser humano sente diante da própria finitu-
de vira pânico. E mesmo a morte natural – não causada, por exemplo, pela tre-
menda violência que a cada dia assola os cidadãos no Brasil – acaba virando si-
nônimo de aniquilamento sumário, de abreviamento. O que, no mais das vezes,
não corresponde à realidade por se tratar apenas de uma vida que chegou natu-
ralmente ao fim, de uma existência que simplesmente expirou.
Partimos de idéias preconcebidas sobre a morte,
formadas a partir da nossa personalidade, da educação familiar e do ambiente
sociocultural e religioso em que vivemos. Tais imagens são rótulos que muitas ve-
zes não correspondem à experiência humana e que acabam alimentando fantasias
amedrontadoras. Refletir sobre a morte pode torná-la mais familiar e, portanto,
menos ameçadora.
O primeiro passo para conviver melhor com a idéia
da morte é esquecer aquela imagem medieval de um esqueleto coberto com uma
capa preta carregando uma foice afiada na mão.
“Talvez uma imagem melhor para a morte seja imaginá-la como o fim de uma festa muito bacana: você já sabia que ela acabari-a, que ela teria que acabar, em algum mo-mento. E, pensando bem, talvez não seja de todo mal que a festa termine. Você agüenta-ria dançar na pista para sempre? Por melhor que seja a música, tem uma hora que seu corpo e sua mente pedem descanso. E aí, talvez, seja o momento mesmo de sair da pista, serenamente, sem traumas, e dar lugar a quem está chegando à festa cheio de gás.” (HENNEZEL, Y. et. alii. 1999. p. 67) O medo da morte é um sentimento inerente ao pro-
cesso de desenvolvimento humano. Aparece na infância, a partir das primeiras
experiências de perda. E tem várias facetas: trata-se de um medo do desconheci-
9
do, somado ao medo da própria extinção, da ruptura da teia afetiva, da solidão e
do sofrimento. Esse medo funciona como pivô e como motor de todas as civiliza-
ções. A partir do desejo de perenidade, se desenvolvem as instituições, as cren-
ças, as ciências, as artes, as técnicas e mesmo as organizações políticas e eco-
nômicas.
Esse é o lado, digamos, vital da morte. O medo da
morte nos força a viver – a nos relacionarmos, a procriarmos, a criarmos, a cons-
truirmos coisas que nos transcendam. Na ilusão da imortalidade, o ser humano
acredita que suas obras sejam permanentes e garantam que ele não seja esque-
cido. Cada um adapta, à sua própria maneira, a máxima “plantar uma árvore, es-
crever um livro e fazer um filho”. Isso ocorre porque, para o inconsciente, a morte
nunca é possível nem admissível quando se trata de nós mesmos. A idéia da não-
existência provoca tal desconforto que a mente humana acaba criando alguns
mecanismos de defesa para fugir dessa realidade. A negação e a repressão da
idéia de morte são exemplos desses artifícios.
Nada disso é novidade. Desde os tempos mais re-
motos, os homens já enxergavam a morte como elemento antagônico à vida – e
não como parte integrante e inseparável dela. Talvez fosse mais fácil aceitá-la
como fato natural quando ela acontecia desenfreadamente, quando a expectativa
de vida das pessoas era de 35 anos. Mas o estranhamento e o terror sempre e-
xistiram. As pinturas encontradas nas paredes de cavernas como Lascaux e
Chauvert, na França, revelam o incômodo que a morte provocava no homem de
30.000 anos atrás. Os episódios alegres, como as caçadas, eram retratados em
cores vivas, usando óxido de ferro (alaranjado) ou calcário amarelo. As imagens
fúnebres, por sua vez, eram pintadas com cores escuras, com carvão.
10
2 – TANATOLOGIA
De acordo com o Grupo de Tanatologia de Passos
(www.tanatologia.com.br), Tanatos (morte) + logia (estudo). De uma maneira sim-
plista, isto é o estudo da morte. No entanto, ela se refere a todo tipo de morte,
inclusive às pequenas mortes que rodeiam nosso dia-a-dia.
Vivemos pequenas perdas todos os dias. Uma sepa-
ração, uma demissão, a morte de um amigo, a notícia de uma doença incurável.
Essas experiências cotidianas de morte nos ajudam a entender que nada dura
para sempre. Inclusive nós, em nossa natureza normal.
Uma história antiga, citada por BECKER (1980. p.
39), ajuda a entender melhor esse processo de pequenas aprendizagens – e co-
mo muitos de nós o ignoram:
“Um dia, há muito tempo, um homem resol-veu fazer um trato com a Morte. Prometeu a ela que não oferecia resistência quando sua hora chegasse. Mas pediu, em troca, que fosse avisado com antecedência porque queria ter tempo suficiente para terminar to-das as suas tarefas. O acordo foi feito. Tem-pos depois, houve um acidente grave na ci-dade e muitos amigos do homem morreram. Anos mais tarde, um vizinho próximo fale-ceu. Em seguida, foi a vez de um tio. Até que o homem ficou doente e, em alguns me-ses, encontrou-se com a Morte. Ela tinha vindo buscá-lo. Revoltado, reclamou: ‘Eu pedi que você me avisasse quando viria e não recebi um sinal!’ Ao que a Morte res-pondeu: ‘A morte dos seus amigos, do seu vizinho, do seu tio não bastaram?’”.
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Cada um de nós mantém dentro de si um jogo cons-
tante entre Eros, o deus grego do amor, e Tanatos, o deus da morte, segundo
Sigmund Freud, fundador da psicanálise. As forças da vida, representadas por
Eros, estimulariam o crescimento, a integração, a autoproteção e a sobrevivência.
As forças da morte, representadas por Tanatos, alimentariam os instintos destruti-
vos e as atitudes de auto-sabotagem, por exemplo. Da conciliação dessas forças
contraditórias, surgiria o equilíbrio e o vigor emocional necessários para viver.
Desde o nascer do homem, com sua consciência de
perda do paraíso ela se impôs como uma passagem necessária ao processo de
volta à casa. E sempre foi usada como forma de manter o poder, eis que somos,
por natureza, místicos e demasiadamente amarrados a preconceitos, a depen-
dências que nos impõem as mais ardilosas limitações. E não há poder maior que
aquele sobre a vida.
Somente quando nos libertarmos de tais posturas
que nos parecem mais cômodas seremos capazes de tê-la como aliada e não
como inimiga. E para tal precisamos estudá-la, entendê-la a fundo. Só assim per-
deremos o medo. E redescobriremos que, para nascer, precisamos ter morrido
para a vida intra-uterina de "conforto" (pelo menos não precisávamos nos esforçar
praticamente para nada e tínhamos nossa mãe, pelo menos materialmente, por
nossa conta compulsória 24h por dia). E ainda inocentes, não violentados pela
cultura materialista da disputa insana pela subsistência, ansiamos pela outra mor-
te, aquela que nos levará, seguramente, ao lugar de onde viemos. Mas nunca
admitimos isto, quando somos capazes de verbalizar tal situação, porque já aí
estamos contaminados pelas coisas do mundo, suas mazelas. Nunca achamos
que está na hora, daí nunca aprendemos, nunca nos preparamos, nunca nos fa-
miliarizamos.
2.1 – Diagnóstico da morte
A morte não é um momento, mas um verdadeiro
processo. Por isto o diagnóstico da morte pode depender do momento que é feito
o exame. E quanto mais próximo, mais difícil é de se realizar. Na prática coloca-
se como morte o momento em que cessam a respiração e a circulação definitiva-
mente.
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Para o diagnóstico de morte é necessário que se es-
tude os fenômenos cadavéricos. Segundo PITTA, A. (1978. p. 48), os mesmos se
dividem em avitais ou vitais negativos, que podem ser:
- Imediatos
§ perda da consciência
§ insensibilidade (à dor, por ex.)
§ face imóvel e sem tônus
§ cessação da respiração (colocar uma vela em
frente ao nariz e observar a mobilidade da chama)
§ cessação da circulação (parada nos batimentos
cardíacos, ausência de pulso nas grandes artérias)
- Consecutivos ou tardios
§ evaporação tegumentar (perda de água pela pele)
§ achatamento ocular
§ resfriamento do corpo
§ hipostase (o sangue obedece à lei de gravidade
deixando as regiões anteriores com cor de cera – brancas como cadáver, e as
posteriores escuras por baixo)
§ rigidez cadavérica
2.2 – Morte cerebral
Ainda conforme PITTA (op. cit.), diagnóstico de mor-
te cerebral é igual ao diagnóstico de morte legal. A importância está no sentido do
potencial deste ser humano poder realizar a doação de seus órgãos e/ou a inter-
rupção na terapêutica de sustentação do funcionamento de seus outros órgãos.
Para isto existem critérios legais para diagnóstico de morte encefálica.
Preenchendo estes critérios não há possibilidade de
retorno da vida. Os critérios são clínicos e complementares:
- Clínicos
§ coma que não reage a estímulos dolorosos
13
§ apnéia (teste feito com paciente 8 minutos sem
assistência respiratória)
§ ausência de reflexos de tronco cerebral (oculo-
cefálico, pupilar, corneano etc.)
Para realização deste diagnóstico, o paciente tem
que estar com temperatura acima de 34o C, pressão arterial sistêmica acima de
90mmhg, tem que ter uma lesão cerebral estrutural e não ter ingerido drogas ou
álcool antes de 6h da realização do exame.
Repetir todos exames clínicos com 12h de evolução
para paciente com idade acima de 7 anos e com 24h abaixo de 7 anos. É neces-
sário todo o conjunto acima para se firmar o diagnóstico de morte encefálica, a-
crescido de um dos exames complementares.
- Exames complementares
§ arteriografia cerebral (se não há circulação cere-
bral não há possibilidade de atividade cerebral)
§ eletroencefalograma isoelétrico por 30 minutos
2.3 – Dor da morte
Ao longo da vida experimentamos dores. Por vezes,
são dores bem definidas, dores físicas, que se intensificam ou se abrandam, do-
res que falam, ou berram, e logo corremos a socorrê-las e, comumente, encon-
tramos um paliativo ou uma solução para elas.
Mas existe aquela dor para a qual não há remédio
para um pronto alívio. Trata-se da dor psíquica, movida por sentimentos de triste-
za, medo, abandono, fragilidade e insegurança. Para se dissipar, necessita ser
dita, vivida, sentida, refletida, elaborada. Nunca negada.
“Ao tratarmos de morte, da iminência da nossa pró-
pria ou de um ser querido, somos tomados por sentimentos confusos e dolorosos,
pois somos então, também, impelidos à constatação da nossa própria mortalida-
de” (KASTENBAUM, R. 1983. p. 27). A possibilidade de morte nos remete à idéia
14
de perda, visto que em nossas relações afetivas investimos amor, amizade, segu-
rança, esperança e a separação traz a dor psíquica de tristeza, de solidão, de
medo e insegurança. Ficam impedidas as trocas afetivas que eram prazerosas.
A dor psíquica na vivência da experiência com a
morte pode ser dividida, conforme KASTENBAUM, em cinco estágios:
- Negação e isolamento
São defesas temporárias à dor psíquica frente à
morte. Em geral, a negação e o isolamento não persistem e sua intensidade vai
depender de como as pessoas ao redor são capazes de acolher a dor daquele
que sofre.
- Raiva
Nessa fase, os relacionamentos tornam-se confliti-
vos. Todo o ambiente é atingindo pela revolta de quem sofre. A dor psíquica pela
necessidade de enfrentamento da morte aparece em atitudes agressivas. É im-
portante nesse momento haver compreensão da dificuldade que representa ter
interrompidas as atividades de vida pela doença ou pela morte.
- Barganha
A maioria das barganhas são feitas com Deus e
mantidas em segredo. Por exemplo, promessa de uma vida dedicada à igreja em
troca de maior tempo de vida. Na realidade, a barganha é uma tentativa de adia-
mento.
- Depressão
Quando a pessoa já expressou sua raiva e revolta,
quando percebe que não resolve fazer barganhas, surge então um sentimento de
grande perda. É o sofrimento psíquico de quem percebe a realidade como ela
realmente se apresenta, com todas as perdas e dificuldades inerentes aos mo-
mentos de separação.
- Aceitação
Alcançar o estágio de aceitação em paz e com dig-
nidade significa que o processo até a morte pôde ser experimentado em clima de
compreensão e resignação.
15
A dor psíquica é inerente à experiência com a morte,
mas a sua intensidade e a sua resolução vão depender, muito provavelmente, de
como a pessoa experimenta a vida. O momento de enfrentamento da morte reme-
te o indivíduo a profundas reflexões sobre a própria vida. Se lhe foi possível fazer
uma trajetória de vida facilitadora do próprio desenvolvimento emocional, se o
indivíduo pôde criar vínculos afetivos fortes e permanentes, se ele pôde também
prestar auxílio a outros seres, é possível que o momento de sua morte, apesar de
doloroso, poderá ser um momento importante do fechamento de sua vida.
2.4 – A difícil arte de envelhecer
Para ARIES P. (1977. p. 77), o Ocidente, em seu es-
forço por não admitir a morte, está obcecado pela idéia do jovem como metáfora
de vida saudável. O envelhecimento, que também pode ser saudável, é visto
sempre como decrepitude. Há uma negação muito clara da finitude. Sobretudo
porque os valores da sociedade de massa e de consumo são antagônicos à idéia
de morte: o fetichismo da juventude eterna, os ideais de progresso, a acumulação de
bens, a busca da imortalidade. A sociedade ocidental vive um presente perpétuo,
imediato. Não há nem a visão de um futuro nem a evocação de um passado. Por
isso, a morte não é admitida como uma experiência humana aceitável. O resulta-
do é uma sociedade atormentada, que busca inutilmente a serenidade e a felici-
dade não no autoconhecimento, mas em fugas da realidade indiscutível de que
um dia iremos deixar de existir.
Segundo ARIES, as pessoas, hipnotizadas por fal-
sas necessidades, não têm uma vida emocional rica. E morre-se de modo ainda
pior. Muitas vezes, morre-se sozinho, na assepsia gelada dos hospitais, experi-
mentando um dos medos mais primitivos do ser humano: a solidão. Até o luto é
suprimido – uma exigência implícita para que a dor seja contida, pois os sinais de
morte não podem transparecer aos que ficaram.
Gastamos nossos dias tentando aproveitar a vida e
chegamos ao momento da morte totalmente desesperados. Se você não disse o
que queria dizer, não amou o quanto poderia amar, não tentou aquilo que deseja-
va tentar, logicamente morrerá angustiado, com a sensação de que a vida se foi e
tudo ficou pela metade.
16
Mesmo no mundo ocidental, no entanto, sobrevivem
tradições que, ao festejar a morte, celebram a vida. O “Dia dos M
ortos”, no México, é um exemplo disso. Ainda existem aldeias que desenterram os
mortos nesse dia. Trata-se de um costume indígena milenar. As refeições são
feitas no cemitério e as crianças ganham doces e bombons em forma de caveiras.
No interior do país, sobrevive a prática de conversar com os mortos para colocá-
los a par do que acontece durante o ano. As famílias preparam altares para seus
falecidos e neles colocam os objetos de predileção do parente morto: livros, cigar-
ros, comidas, fotografias.
A atitude de festejar a morte também está presente
na cultura japonesa. “Povoado do Moinho”, o último episódio do filme Sonhos
(1992), do diretor japonês Akira Kurosawa, exibe o confronto entre a antiga con-
cepção de morte, expressa nos ritos funerários do vilarejo, e a nova, ocidentaliza-
da, representada por um forasteiro que assiste à cerimônia. O cortejo segue, ale-
gre, pelas ruas do povoado. Crianças, jovens e adultos cantam e dançam durante
todo o trajeto do enterro. Eles celebram a morte de uma das mulheres mais ve-
lhas da aldeia. O clima de festa surpreende o forasteiro, acostumado à atmosfera
sombria de boa parte da liturgia funerária ocidental. Um velhinho centenário, en-
tão, explica ao rapaz que é uma honra encontrar a morte depois de uma existên-
cia tão plena como a daquela mulher. Por isso, tal fato merece comemoração. A
história mostra como o fato de morrer pode ser encarado com serenidade e satisfa-
ção, como uma homenagem à própria vida que terminou ali.
A morte já foi vista de modo mais familiar pelo Oci-
dente. E não faz tanto tempo assim. Até meados do século passado, era costume
morrer em casa, cercado por parentes. A família reunia-se em volta do leito para
ouvir a última palavra daquele que estava morrendo. Era um momento de despe-
dida. Não se ocultava das crianças a morte como se faz atualmente. O velório
também era, na maioria das vezes, realizado em casa – tradição que ainda so-
brevive em algumas cidades do interior do Brasil. Existiam comidas típicas para a
ocasião. Os parentes preparavam alguns pratos para receber os conhecidos que
participavam do enterro. Havia, inclusive, cânticos e orações especiais para o
momento.
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Com a morte tendo sido transferida para a impes-
soalidade dos hospitais, perdemos a noção da importância dos rituais funerários,
que conferem um sentido ao sofrimento e à morte. A expulsão da morte da nossa
intimidade, privando aquele que está prestes a morrer da nossa ternura e da nos-
sa solidariedade nos momentos finais, é uma metáfora da negação da finitude
que operamos em nossas próprias vidas. Os rituais de morte estão presentes em
todas as sociedades do planeta. Servem para a compreensão ‘social’ do fenôme-
no: ajudam a digerir o impacto provocado pela perda do outro e funcionam como
fator de agregação daquela sociedade.
“Os rituais seculares foram esvaziados de sentimen-
tos e significado”, escreveu o sociólogo alemão Nobert Elias, em sua análise da
experiência de morte nos dias de hoje, presente em A Solidão dos Moribundos
(1993. p. 32). E ainda destaca:
“O crescente tabu da civilização em relação à expressão de sen-timentos espontâneos e fortes trava suas línguas e mãos. E os viven-tes podem, de maneira semi-consciente, sentir que a morte é contagiosa e ameaça-dora; afas-tam-se involuntariamente dos mo-ribundos. Mas, para os íntimos que se vão, um gesto de afeição é talvez a maior ajuda, ao lado do alívio da dor física, que os que fi-cam podem proporcionar.” (op. cit. p. 33)
O temor do “contágio” pela morte explica a solidão e
a frieza das unidades de terapia intensiva, onde, muitas vezes, os doentes termi-
nais morrem sem a possibilidade de dizer uma última palavra aos que amam e
sem ninguém que lhe ofereça conforto espiritual. Claro que morrer assim dá muito
medo. Estabelece-se aí um círculo vicioso: temos pânico da morte porque ela nos
parece horrível e a tornamos muito mais horrível do que poderia ser porque nos
afastamos dela – e de quem morre.
18
3 – MORTE SEGUNDO A FILOSOFIA E A RELIGIÃO
3.1 – A morte não é nada para nós
A metafísica materialista, corrente filosófica exposta
em KUBLER-ROSS, E. (1975), pretende livrar a humanidade de um de seus mai-
ores temores: o medo da morte. Os homens têm realmente medo da morte e fa-
zem de tudo para evitá-la. Mas o que temem nela? É precisamente o salto no ab-
solutamente desconhecido. Não sabem o que os espera e receiam confusamente
que terríveis sofrimentos lhes sejam infligidos, talvez em punição de seus atos
terrestres.
Os cristãos, por exemplo, imaginam que qualquer
um que tenha agido mal e não obteve o perdão de Deus irá assar nas chamas do
inferno. O medo da morte está relacionado com as superstições religiosas de que
a metafísica materialista pretende nos libertar. Ademais, se tudo no universo é
feito apenas de matéria, se nós, como todos os seres vivos, somos apenas nos-
sos átomos que se separam, que se desagregam, é apenas nosso corpo que se
decompõe, primeiro num ponto (o que está ferido ou doente), depois em todos.
Por conseguinte, nada de nosso ser sobrevive, não há nada depois da morte, a
morte não é nada para nós.
Aqueles que pensam que a vida do corpo, o pensa-
mento, a sensação, o movimento vêm da alma e que essa alma poderia sobrevi-
ver após a morte do corpo, eles estariam errados, segundo a metafísica materia-
lista. Pois a própria alma é feita de matéria, por certo mais sutil, quase invisível;
mas se ela não passa de uma agregação de átomos, ela também se decompõe
quando sobrevém a morte, e até, de acordo com a experiência mais comum, de-
ve-se pensar que é a primeira a decompor-se pois que a morte se mostra imedia-
tamente privada de vida, de sensação, de pensamento e de movimento, enquanto
o resto do corpo ainda parece quase intato e levará alguns dias antes de começar
19
a decompor-se. Falam-lhe, tocam-no, beliscam-no e ele não tem nenhuma rea-
ção, não manifesta nenhum sentimento...
A morte se caracteriza bem, em primeiro lugar, pela
ausência de sensação. Epicuro escreveu: “Habitua-te com o pensamento de que
a morte não é nada para nós, uma vez que só há bem e mal na sensação, e a
morte é ausência de sensação” (KUBLER-ROSS, E. 1975. p. 186).
De fato as sensações que temos de nosso corpo e,
através dele, das coisas do mundo são a fonte de todo conhecimento, e também
de todo o prazer e de toda dor, portanto o verdadeiro lugar de todo bem e de todo
mal, já que o bem real é apenas o prazer e o mal, a dor. Podemos denominar o
prazer de Epicuro como um sensualismo que fundamenta toda a vida interior na
sensação. Como a morte é o desaparecimento das sensações, não pode haver
nenhum sofrimento na morte, nem sobretudo depois da morte. Tampouco pode
haver sobrevivência da consciência, do pensamento individual.
Epicuro tem ainda esta outra frase: “Assim, o mal
que mais assusta, a morte, não é nada para nós, pois, quando existimos, a morte
não está presente, e, quando a morte está presente, deixamos de existir” (op. cit.
p. 197).
Em conseqüência, podemos viver, agir e aproveitar
os prazeres da vida sem temer nenhuma punição depois, sem estragar nossa vi-
da angustiando-nos com a idéia do que nos espera. Nossa felicidade na vida é
um caso sério que não agüenta nenhuma espera. Tal é o ensinamento da sabe-
doria materialista.
3.2 – Morte: separação da alma e do corpo
Segundo Descartes e Platão (in SIMONTON, O.
1987. p. 65), é precisamente isso que se passaria por ocasião da morte: a alma
deixa o corpo e pára de proporcionar-lhe a vida. Mas ela mesma continua sua
própria existência, daí em diante puramente espiritual.
Essa concepção recentemente recebeu confirmações
inesperadas, na forma de depoimentos referentes a experiências individuais, pa-
radoxalmente tornadas possíveis graças aos progressos da medicina, que permi-
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tem trazer de volta à vida pessoas quase mortas. É verdade que esse retorno pa-
rece às vezes milagroso, nos casos em que a morte foi clinicamente constatada.
Ora, de modo perturbador, esses sobreviventes nar-
ram todos praticamente a mesma coisa: viram o próprio corpo à distância, e os
médicos se afobarem em volta dele, como se o espírito deles flutuasse na sala,
como se fosse capaz de ver um modo diferente do que pelos olhos do corpo. Ou-
viam as conversas dos médicos, mas em compensação não sentiam dor corporal.
A alma deles vivia portanto separada do corpo, exatamente igual ao que afirma a
maior parte das religiões.
3.3 – A eutanásia na visão das grandes religiões
Considerando o budismo, o islamismo, o judaísmo e
o cristianismo como as quatro grandes religiões mundiais, pode-se partir de al-
guns conceitos fundamentais (RINPOCHE, T. 1987), tais como vida humana, mor-
te, sofrimento, ser humano e direitos humanos, entre outros, com as matizações
específicas dadas pelo patrimônio de valores e crenças de cada religião.
Com exceção do budismo, que vê a vida como pre-
ciosa, mas não divina, pois não existe um deus criador nesta religião, em todas as
outras a vida é considerada sagrada, dom de um ser transcendente, confiado ao
ser humano para torná-la plena. Recusá-la ou cortá-la é uma grande ofensa con-
tra os "céus" ("Não matarás").
Uma tensão crescente surge em relação às verda-
des tradicionais e às novas realidades trazidas pelas ciências da vida e da saúde
(conceito de morte encefálica, transplantes e doação de órgãos, entre outras no-
vidades), provocando os pensadores religiosos a ousarem criativamente na inter-
pretação e resgate do "espírito da lei".
Existe um sim fundamental pela preservação da vida
até o seu final natural, manifestado no cuidado dos moribundos, procurando pro-
porcionar dignidade no adeus à vida, evitando-se o prolongamento artificial e pe-
noso do processo do morrer.
Abalizados pensadores na área da bioética dizem
que, assim como o aborto foi o tema do século XX, com liberalização em muitos
países do globo, a eutanásia certamente será a grande questão do século XXI.
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3.4 – Outras correntes filosóficas e religiosas
As reflexões finais do filósofo grego Sócrates (in
WEIL, P. 1989. p. 34) – condenado a tomar cicuta, um veneno letal –, realizadas
no século V a.C., representaram um excelente exercício de aceitação:
“Porque morrer é uma ou outra destas duas coisas. Ou o morrer não tem absolutamente nenhuma existência, nenhuma consciência do que quer que seja. Ou, como se diz, a morte é precisamente uma mudança de exis-tência e, para a alma, uma migração deste lugar para outro”, afirmou Sócrates.
Em outras palavras: para quem não acredita na con-
tinuação da vida, a morte é o nada, é a ausência completa de angústia e deses-
peros, é o fim das aflições. E para que acredita na continuação da vida, a morte é
a passagem desta existência para outra melhor. De qualquer modo, a dor estaria
na vida e não na morte. Quando chegou o momento de beber o veneno, Sócrates
disse a seus discípulos, numa última lição: “Mas já é hora de irmos: eu para a
morte e vocês para viverem. Mas quem vai para melhor sorte é segredo, exceto
para Deus.”
A morte é um assunto tão complexo que sequer há
uma concordância entre os cientistas quanto sua definição. No campo filosófico,
essa discussão fica ainda mais sinuosa. Apesar de considerarmos a morte como
um evento biologicamente irreversível, ela não pode ser determinada exclusiva-
mente pelo critério biológico, pois envolve também questões ontológicas e filosófi-
cas. Alma e consciência são sinônimos? Existe uma alma imortal? Se sim, para
onde ela vai quando morremos? Sem respostas definitivas da ciência, o homem
busca, nas crenças religiosas, explicações para o fenômeno da morte. Para uns,
trata-se de uma passagem, uma transição desta vida para outra, mais plena e
mais feliz. Para outros, é o momento máximo de iluminação, uma forma de liber-
tação do sofrimento. Há ainda aqueles para quem morrer é simplesmente deixar
22
de existir – como se fôssemos uma lâmpada que se apaga, sem qualquer possibi-
lidade de transcedência.
Pesquisas demonstram que pessoas com forte grau
de envolvimento religioso, independente da crença, geralmente têm menos medo
da morte. A fé ajudaria a superar a ansiedade em relação à idéia de finitude.
Se há uma outra vida que se segue à morte, existiria
então uma continuidade da mente ou do espírito. Viver em função dessa continui-
dade nos torna mais responsáveis pelas conseqüências dos nossos atos. O fruto
apodrece, cai no chão, mas deixa a semente que dará vida a outro fruto. Assim
também conosco. A visão espiritual da morte implica desapego. Afinal, é também
por meio da aceitação da impermanência humana que a religião ajuda a suavizar
o sofrimento causado pela finitude. Por outro lado, a idéia de transcendência, do
indivíduo que vence a morte, paradoxalmente embute uma aspiração à perenida-
de, ao não admitir que o sujeito chegue a um fim e ao propor que ele perdure em
algum outro lugar, existindo de alguma outra maneira.
Em oposição à visão espiritualista da morte, há a
tradição materialista ocidental, que surgiu na Antigüidade e depois foi retomada
pelos filósofos do Iluminismo, a partir do século XVIII (KUBLER-ROSS. 1975. p.
195), para a qual a morte é o fim total e absoluto. Nada mais do que a interrupção
de um processo neurofisiológico, de um mero evento biológico. Essa concepção,
mais tarde lapidada pelos existencialistas, como o francês Jean-Paul Sartre, fun-
da muito da nossa visão de que morrer é um fracasso, um escândalo, uma idéia
inconcebível com a qual é impossível lidar e inútil tentar conviver. “Morrer é um
absurdo”, escreveu o filósofo existencialista Arthur Schpenhauer (1788 – 1860). A
morte não cabe na idéia cartesiana de vida – para a qual tudo poderia ser medido,
compreendido, planejado. A finitude quebra a ilusão iluminista e antropocêntrica
de que o homem poderia controlar tudo por meio da sua razão. A possibilidade de
não estar mais aqui amanhã não cabe nesse jeito de entender o mundo.
O medo de morrer pode gerar um apego desmedido
a elementos cotidianos e um conseqüente desespero diante da possibilidade de
vir a “perder tudo” com a morte – a companhia dos amigos, o carro novo, os imó-
veis, o status social, os projetos não realizados. No budismo, assim como na tra-
dição cristã, o desapego é condição essencial para uma “boa morte”. Na morte,
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não podemos levar nada conosco. Nem bens, nem diplomas, nem o sucesso. Eis
aqui outro paradoxo: para viver bem, sem o terror e o tormento da idéia do fim, é
preciso cultivar um certo desapego em relação à vida. Em outras palavras: para
experimentar a “boa morte” e morrer serenamente – em oposição a viver ataran-
tado pela iminência da “cadavérica” a assim morrer sofrendo – é preciso absorver
a idéia de que, como quase tudo neste mundo, também nós somos impermanen-
tes.
A vida é como um contrato que estabelece a própria
vigência em uma das cláusulas. Ou seja, basta estar vivo para estar sujeito às leis
da existência, que determinam o seu próprio término. Lutar contra esse fato inelu-
tável é garantia de dor. Ao contrário, aceitar a transitoriedade da condição huma-
na ajuda a aliviar o sofrimento que a idéia da morte costuma trazer. Você não po-
de mudar o fato de que vai acabar um dia. Mas você pode mudar o modo como
se relaciona com esse fato. Em certas ordens religiosas católicas, os monges, ao
se encontrarem nos corredores do mosteiro, costumam dizer uns aos outros:
“Memento mori”, uma expressão latina que significa “lembre-se de que vai mor-
rer”. A saudação – que é o contraponto de “Carpe diem” (“aproveite o dia”) – fun-
ciona como um exercício espiritual de aceitação gradual e diária da morte, vendo-
a como uma conseqüência da própria vida e também de preparação para o mo-
mento em que ela acontecer.
O contrário disso é o culto ao ego, ao “pequeno eu”
que há dentro de cada um de nós, manifestado na não-aceitação do curso natural
dos acontecimentos, quando ele não ocorre como gostaríamos. E que está pre-
sente no indivíduo que tenta se colocar sempre acima do todo a que pertence. Ao
não conseguir fazê-lo, esse “eu” sofre exagerada e desnecessariamente para a-
ceitar a parte que lhe cabe. Na vida, quanto mais você está centrado em si mes-
mo, sem compartilhar suas frustrações com os outros, mais você sofre com a au-
sência de solidariedade, com o isolamento que impõe a si mesmo, com a falsa
idéia de que está desamparado. Na morte, acontece a mesma coisa. Quanto me-
nos você compartilha a sua dor – e o sofrimento é um dos elos fundamentais da
humanidade –, mais insuportável ela se torna.
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4 – MEDICINA PALIATIVA
No início dos anos 70, iniciou-se um movimento de
humanização da medicina, principalmente no campo do atendimento aos pacien-
tes terminais, que veio a se contrapor à frieza ainda dominante dos hospitais mo-
dernos. Segundo PITTA (1978. p. 53), a enfermeira britânica Cicely Saunders ino-
vou ao propor um atendimento multiprofissional aos pacientes portadores de cân-
cer avançado, em locais chamados hospices. Nesses abrigos, o doente conta
com os cuidados médicos e com a proximidade da família. Da equipe multiprofis-
sional fazem parte também psicólogos e sacerdotes de diferentes religiões, pron-
tos a oferecer assistência psicológica e espiritual. O “movimento hospice” incenti-
vou a criação das unidades de cuidados paliativos, que funcionam ligadas aos
hospitais, e do homecare, o atendimento domiciliar a pacientes terminais. A idéia
é simples: tão fundamental quanto ter uma boa vida é gozar de uma morte mais
humana, mais envolta em serenidade e ternura. Eis o conceito, ainda tímido no
meio médico mas bastante pertinente, de ortotanásia – a morte digna, sem abrevi-
ações desnecessárias e sem sofrimentos adicionais.
No Brasil, o pioneiro na divulgação dos cuidados pa-
liativos foi o médico Marco Tullio de Assis Figueiredo, professor da Universidade
Federal de São Paulo, antiga Escola Paulista de Medicina (in Grupo de Tanatolo-
gia de Passos). Além de ter criado dois cursos voltados aos estudantes da área
de saúde – um sobre Tanatologia (o estudo da morte) e outro sobre Cuidados
Paliativos –, Marco Tullio implantou uma Unidade de Cuidados Paliativos no Hos-
pital São Paulo. Segundo ele, os estudantes de Medicina, em geral, nada apren-
dem em seus cursos sobre a morte e a dimensão do processo de morrer. Ele é
contra médicos tentando manter a vida do paciente a qualquer preço, mesmo que
isso implique em mais sofrimento para o doente. Tal prática é conhecida como
distanásia, conceito que significa o prolongamento da agonia na tentativa de adiar
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a morte e de conseguir uma sobrevida sem qualquer qualidade – em oposição à
ortotanásia.
A equipe multiprofissional de Marco Tullio também
prevê o atendimento domiciliar, uma tentativa de resgatar as noções de humani-
dade e dignidade na morte que a medicina contemporânea perdeu. Outras unida-
des de cuidados paliativos estão sendo criadas em diversas regiões do Brasil,
mas ainda existe resistência, mesmo entre os médicos, em falar de morte.
Na filosofia oriental, existem práticas específicas de
preparação para a morte. A principal delas, de acordo com DROUOT, P. (1996. p.
57), é a meditação, “que tem o objetivo de domar a mente, a ansiedade e as e-
moções negativas sempre – mas especialmente no momento em que a pessoa se
aproxima da morte”. A maior tranqüilidade dos orientais em relação à finitude se
expressa também no maior respeito em relação aos velhos. As pessoas que se
encaminham para o final da vida são respeitadas. E, não raro, têm suas existên-
cias festejadas. Não são tornadas invisíveis e indesejáveis, como ocorre com fre-
qüência no mundo ocidental.
Uma das imagens utilizadas na meditação para ca-
racterizar os instantes finais da existência é a de uma bela atriz sentada em frente
ao espelho. O último espetáculo está prestes a começar. Ela retoca a maquiagem
e repassa a sua fala antes de pisar no palco pela última vez. Está preparada para
a apresentação derradeira. Esse é o objetivo da meditação: adquirir a capacidade
de manter a mente tranqüila e o espírito sereno no momento da morte, indepen-
dente de quando e de como ela aconteça.
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CONCLUSÃO
Nós todos vamos morrer. E, acreditemos ou não,
esse é um evento tão natural quanto nascer, crescer ou ter filhos. Daí a importân-
cia de nos reconciliarmos com a morte. Não por morbidez, não para nos esque-
cermos de viver, não porque seja bom deixar de existir. Mas simplesmente porque
ela vai acontecer com todos os que andaram, andam ou venham a andar sobre a
Terra.
Portanto, resta apenas aprender a conviver com ela.
Encará-la de frente, compreendê-la, admiti-la. Em vez de escamoteá-la, negá-la,
escondê-la. E, quem sabe, assim, sofrer menos com a visita que ela nos fará um
dia e com os eventuais sinais da sua presença que ela já tenha plantado ao nosso
redor.
Quanto à morte na família — núcleo de relações em
que, geralmente, somos mais ligados — cabe ressaltar que a dificuldade de assi-
milar a perda para quem fica é bem maior. E, por esta razão, devemos buscar
equilíbrio para suportarmos este tipo de prova, seja a morte de um ente querido
inesperada e abrupta ou vagarosa e inevitável.
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BIBLIOGRAFIA
ARIES, P. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
BECKER, E. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 1980.
DROUOT, P. Cura espiritual e imortalidade. Rio de Janeiro: Record, 1996.
ELIAS, N. A solidão dos moribundos. São Paulo: Mc-Graw Hill, 1993.
GRUPO de Tanatologia de Passos. www.tanatologia.com.br.
HENNEZEL, Y. A arte de morrer. Petrópolis: Vozes, 1999.
KASTENBAUM, R. Psicologia da morte. São Paulo: Novos Um brais, 1983.
KUBLER-ROSS, E. Morte, estágio final da evolução. Rio de Janeiro: Vozes, 1975.
PITTA, Ana. Hospital: dor e morte como ofício. Hucitec, 1978.
RINPOCHE, T. Vida e morte nas grandes religiões. São Paulo: Paramita, 1987.
SIMONTON, O. Com a vida de novo. São Paulo: Summus, 1987.
SIMONTON, S. A família e a cura. São Paulo: Summus, 1990.
WEIL, P. As fronteiras da evolução e da morte. Petrópolis: Vozes, 1989.
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