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Diário de
Paulo Annes Gonçalves
(Epoca Acadêmica)
Circa 1923/1927
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Diário de Paulo Annes Gonçalves
Escrito por Paulo Annes Gonçalves, quando residia na estância TARUMÃ, localidade de Palomas, município
de Sant’Anna do Livramento. Estância arrendada por ele e seus irmãos Carlos e Raul e por seu pai Raphael. Cada um
com partes iguais (25%). Paulo tinha 19 anos, Carlos 18 e Raul 17. Corria o ano de 1926. Raphael tinha 43 anos.
O Devon
9-9-1928
Origem
É bastante obscura, dada a sua antiguidade, a origem dessa excellente raça. O “sanson” o dá como uma
variedade fixa da raça Irlandeza (Bos Taurus Hibernicus,), cujo berço foi a Inglaterra, o Noroeste do França a as ilhas
da Mancha, regiões estas unidas, visto que a Gran-Bretanha estaria então, ligada ao continente.
Um pouco mais recente, uma nova corrente filia o Devon à raça dos Países Baixos, cujo tronco originário é o
Bos Longhorns, espécie independente, no dizer de alguns paleontologistas, enquanto que a opinião de outros a faz
uma variação do Bos Primigenius, o antepassado das raças bovinas actuaes. Com uma origem tão remota, o Devon
não podia deixar de ter as suas lendas. Verídica ou não; pois é ainda assumpto de controvérsia, destaca-se como a
mais interessante, a que faz o Devon descender de um gado hespanhol desembarcado na Inglaterra, em consequência
de um naufrágio soffrido por um navio de pesca vindo da península ibérica.
Patenteia-se assim que os Rubios já em épocas antigas eram explorados pelo homem.
Area Geográphica
Habita esta raça o sudoeste da Inglaterra, povoando a península limitada pelo canal de Bristol e a Mancha. É
uma zona de terras altas, a uns 600 m de altitude, mais occupada por pastagens do que por culturas; a parte sul é
mais plana. Embora seja esta região assas pequena, cerca de 60 léguas, nella vivem as duas sub-raças em que se
desdobra a Devon, a do Norte e a Sul, apresentando caracteres fixos diversos e mesmo, aptidões differentes.
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Histórico
A antiguidade do Devon é indiscutível e não há raça bovina que lhe despeite esta primazia, uma robusta prova
do fixidez de um gado. Documentos, datando de 55 a.C relatam a existência de um gado, cujos característicos estão
bem de occordo com o actual typo de Devon.
O seu melhoramento foi iniciado há mais de dois séculos. Já em 1.776, A. Young, com o intento de tomar
informações sabre esta raça, percorreu a Devonshire.
Como melhorador dos “colorados” salientou-se F. Quarty. Este criador usando só a seleção, sem contudo
attingir a consangüinidade, deu ao Devon notável impulso no que toca a perfeição de formas e rendimento. Critério
idêntico foi seguido por seus inúmeros aperfeiçoadores. E hoje em dia, o Devon, posto por suas qualidades ao lado das
mais operfeiçoadas raças bovinas de corte, fornece à Zootecnia o melhor exemplo do valor da selecão pura, sem
sangue estranho e sem chegar aos males da consangüinidade, no melhoramento de uma raça.
As exportacões de reprodutores Devon para diversos pontos do globo attestam o cosmopolitismo da raça. A
América, Norte e Sul, a Austrália, a Nova Zelândia, e a África mantém em exploração excellentes rebanhos vencendo
os mais duros climas e pastagens. Os Estados Unidos desde 1800, tem importado o Devon, havendo notícias
comprobatórias de haverem 1.623, chegado às costas do Nova Inglaterra o primeiro gado Devon, trazido por colonos.
No Uruguay a importação de Devon foi iniciada em 1.875, enquanto que aqui no Rio Grande, tempos depois Assis
Brasil introduziu-os organizando um bello núcleo. Espalharam-se os Devon por todo o Estado e, embora haja enorme
escassez de reprodutores, hoje os Rubis são encontrados desde Itaquy a P. Alegre e da Vacaria a Pelotas, numa
eloqüente affirmação de seu maleável poder de adaptação a todas as postagens, boas ou más, de serra ou de coxilhas.
A Argentina possue adeantados criadores deste gado, bem como uma regular exportação para o Paraguay,
onde tem o Devon uma franca acceitação.
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Ano de 1928
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Janeiro
Janeiro, 24. 1928
A Mancenilha
O coronel Sinhô tem uma bella filha a encher de prazer o seu coração de pae. Melindroza e bastante estimada
na sociedade alta de sua terrinha natal, onde é “fino ornamento” no dizer dos chronicos sociaes, a Fifina está sempre
sob a vigilância do Coronel, orgulhoso de tal descendência. E si é activo no vigiar, elle torna-se capaz de tudo quando
necessário afastar qualquer perigo, tendente a toldar o futuro da menina. Uma demonstração do quanto pode o
coração desse pae estremoso, temo-la no facto seguinte, ainda vivo na memória dos seus conterrâneos.
Obedecendo aos naturaes instintos do seu coração de moça, a Fifina, como as suas companheiras da mesma
idade, escolheu um namorado. Até aqui nada de anormal.
O rapaz era filho de boa família e não desmentira as tradições dos antecessores; bom comportamento e bem
colocado no commercio. Tudo corria bem até que o velho, (todos os velhos sempre são os últimos a virem a saber da
escolha das filhas ), soube do namoro. Cautelozo, sahiu a campo, a procura de informações sobre o pretendente a
posse do seu tezouro. E foi às nuvens logo que as conseguiu. Não, o rapaz não convinha de modo algum; era pobre.
O barulho em casa foi trágico. Gênio violento e acostumado nas últimas revoluções a não suffocá-lo, o coronel
soltou impropérios, ameaçou, fez o diabo enfim.
A Fifina chorova sem achar argumentos que defendessem o namorado, das injúrias paternas.
A esposa do coronel quis fazer valer as qualidades moraes do rapaz. Foi peor; não podendo negá-las o Cel.
Sinhô redobrou a colera. Era o que faltava! Um pé rachado que não tem onde cahir morto. Ser criada com tanto mimo
para cahir nos bracos daquelle “procupto”.
Agarrou do chapéo e sahiu pisando forte. Ia agir, essas cabecinhas tontas fazem do amor algo d’outro mundo,
impossível de ser submettido ao menor raciocínio; perdem o juízo, são capazes de qualquer loucura.
Por todo o dia o Cel. Sinhô confabulou, ora com um ora com outro amigo, e a tarde recolhia-se satisfeito. E
no dia seguinte a Fifina verteu sentidas lágrimas: o namorado, sob ameaça de perder a pelle, embarcára para
longíngua cidade com o emprego transferido.
Até onde vae o poder desses déspotas em miniatura que a política creou no nosso meio ainda incul to.
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Janeiro, 25
O diálogo seguinte confirma a narrativa feita atráz. No Internacional tomávamos algo que abrandasse o
calor excessivo. A um terceiro que chegou indaga o Sidney:
- A Fifina já arrumou outro namoro?
- Já. Um castelhano.
- E..?
- Assim, assim;... com pouco enthusiasmo.
- Tomára que firme duma vez, só assim virá o nosso centro-forward.
Nota: O rapaz em questão é optimo jogador; fazia parte do 14, dahi o empenho dessas pessoas,
quatorzianas ao extremo.
Nota: O “14” referido acima é o time de futebol 14 de julho, no qual jogaram Carlos e Raul.
A Safra
A safra de 1927-1928 foi uma confirmação plena das mil e uma esperanças que a precederam.
As declarações de alguns xarqueadores e fazendeiros, o brilhantismo do congresso dos criadores em P.
Alegre e fértil em medidas tendentes a resolver as muitas difficuldades que embaraçam ainda os interesses dos
setancieiros, tudo isso concorreu para fazer nascer e desenvolver-se uma grande esperança de melhores dias.
150$000 pagos por novilho no Rosário, pareceu a muitos uma arriscada, tal era a baixa do gado e
desânimo dos criadores.
E que lucros darão hoje estes boisinhos!
Os preços são altos e aconselham por si uma venda forte, de tudo o que quizer sahir.
Pois são mesmo tentadores: Para novilhos, de $630 na Swift a $650 e $700 em Sant’Anna e até $730 em
Bagé. Vacas: $530 na Swift e de $550 a $580 em Sant’Anna . Alguns com base outros sem ella. Dahi os altos preços
verificados. Em Bagé uma tropa deu 460$ (Record deste ano); vacas já perfiguram a bellíssima cifra de 280$.
A procura é grande mas para gado em condições de ser apartado já a Swift abriu durante 3 dias comprou
6.000 cabeças e... fechou.
Dir-se-ia estarem as xarqueadas receosas de abarrotarem o mercado, forçando uma baixa do produto.
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E no entanto, telegramas nos mostram que nunca os stocks nesta data, foram tão reduzidos; de .100.000
baixaram a 15.000.
30 de janeiro de 1928
O mandrião do poceiro que há mais duma semana nos anda embromando com a perfuração do poço, o que
elle justifica allegando a falta dum bom ajudante, tem observações curiosas. Fui ve-o trabalhar.
-Que tal vai a causa “seu” poceiro?
-Lindo, patrão. A “vermelha” já apontou,e no mais vem a “tosca” que é a companheira da terra vermelha. E
depois é um instante. Já tenho feito um mundo de poços, é sempre assim.
- Eu lê quero ver é na pedra, no duro.
- Ahi que senhor vae vê... No princípio, no que ella apparece, a tosca é solta; tenho reparado que está virando
terra. A veia pode ser bem dura, mas uma parte vai ficando molle até se combinar bem com a terra. Neste mundo
tudo cresce, mesmo a pedra, pega augmentar, subir... ,Acho, no meu pensar, que o chão em que pisámos foi feito
assim. Não será, patrão?
“O Borges deixou o poder”. disse eu no galpão.
- “Como não estranhou. Há tanto tempo, já devia estar aquerenciado”. comenta o Pitóca.
- “O novo presidente é do agrado de todos, o povo anda satifeito. Chama-se Getúlio Vargas.
- “Uhm! Daqui um mez elle já pega a mostrar os dentes”, murmura sceptico, o Pacheco, traduzindo bem a
opinião que tem o povo da fronteira de todo o que ocupa altos cargos na vida política administrativa do
Estado: um tyrano a enriquecer a custa do povo.
Fevereiro
Fevereiro, 3. Sexta
Commentávamos no galpão, o progresso da Villa Silveira e as possibilidades de manter-se a Villa uma vez
deapparecidas as granjas de arroz, alli numerosas. O Xirú Poceiro, dono de um sítio naquela florescente povoação,
acrescentou, a um que affirmava a necessidade de virem uns “gringos” firmarem e estabelecerem o futuro povo, a
observação seguinte, confissão de um gaúcho que sente em si a falta de ambição que caracteriza a sua raça: “Só
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mesmo vindo uns gringos danados, que o gaúcho só quer estar de barriga cheia, ensilhar um bom cavallo e, atirando
o pala, chegar nos ranchos pra prosear com as moças”.
Oiga moço lindo ! Pena ser pião.
Fevereiro, 11. Sexta
A Repressão do Contrabando
As actuaes medidas destinadas a por ponto final ao contrabando de gado, effectuado regularmente nas
nossas fronteiras, deixam muito a desejar. São tão inefficazes que lembram, ante os incommodos que inutilmente,
acarretam ao fazendeiro, a estinção das mesmas, até que outras, elaboradas sob planos diversos, sejam suggeridas e
applicadas pelo fisco.
A sua inutilidade não deixa dúvidas a um que conhece a fronteira. Todo o gado necessário aos
estabelecimentos saladeros fronteiristas, passa na linha com a regularidade e numero requeridos. Isso é domínio de
todos e dahi a observação judiciada de que na fronteira não ha contrabando de gado: toda a tropa atravessa a linha
sob as vistas da lei e de accordo com ella.
Embóra inúteis, as exigências alfandegárias trazem ao vendedor riograndense, criador ou invernador,
alguns inconvenientes que, apezar de pequenos, poderiam ser eliminados, ao menos a titulo de uma maior facilidade
nos negócios pastoris. A baixa do gado nos livros de registro, a manutenção dos livros “vendas à vista” e “Registro de
estampilhas”, o transporte do confererente ao “saladeiro” e a própria ida do propietario à cidade, muitas vezes
justificada só pelas exigências acima, bem poderia não existir, notadamente hoje em que todos os negócios devem
repousar sobre a máxima simplicidade possível.
A imposicão de taes medidas, depois dos resultados infructiveros dados, visto que o gado continua a passar
como d’antes - é uma incoherencia como a do médico teimando em receitar ao doente, uma poção de reconhecida
improficuidade. É ser mais teimoso que carneiro preto.
Constatada a inutilidade de taes remédios só resta aos interessados em sanear essa shaga do organismo
fiscal, o recurso lógico de pol-os de lado... e procurar outros.
Teimar em mante-los enquanto não é descoberta outra droga capaz de cicatrizá-la é confessar, com os
propios factos, o pouco caso do governo federal em auxiliar o criador gaúcho, removendo essas exigências actuaes,
especie de praga acrescentada as já numerosas que atacam os interesses do fazendeiro. São-nos prejudiciaes e inutil
aos cofres publicos eceptos aos funcionários dela encarregados que tem assim uma boa fonte de propinas.
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Decorre dahi que, a proposta de tornar sem valor os systemas repressivos actuaes, não pé de lesa a pátria,
bem ao contrário, pois dispensa alguns funcionários públicos ao mesmo tempo que não desvia dinheiro do erario
publicovisto que, com ou sem a vigente organização fiscal, as tropas são introduzidas do mesmo modo.
Pontaço - Há poucos dias uma tropa de 800 novilhos atravessou a linha com destino a um dos
estabelecimentos saladeiros santannenses. Era do Cel. Chico Flores. Passou... e a Alfandega não soube. Na “venda”
commentava-se a qualidade, a gordura da tropa e o bom preço que daria, quando um gaúcho, vagarosamente, falou
malicioso:
“Em 23 elle, o intendente Chico Flores tinha uma só estância e que estava hypothecada. Hoje tem 2 ou 3 e ainda por
cima traz boi do Uruguay. O Nepomuceno tambem estava nas mesmas condições e no entanto já comprou outra
estancia aqui no Brasil. Bem dizia o nosso comandante, que a Revolução só resultava para os de posto de capitão para
cima”.
Note-se que este gaúcho servira no corpo provisorio.
Apelidos...
O Cel. Sinhô já como sub-intendente, já como sub-chefe de policia, tinha por habito mandar raspar a cabeça
de todo o vivente, homem ou mulher, que lhe cahisse no desagrado. Era o fraco do coronel. Por qualquer crime: coco
pellado. E o povo que, mal grado o respeito que lhe infundia o vigor de tal autoridade, não deixa de fazer observações,
notou logo a facilidade e o prazer com que executava, o coronel, tal castigo. E ironico, baptisou-o: “Cel. Rapa Coco”. O
apelido pegou. Há ainda quem ponha em duvida a habilidade do povo em julgar e castigar os que lhe fazem mal?
13 de Fevereiro de 1928
Concluída a guerra e, com ella, o temor do povo às inumeras autoridades creadas, a revelia, pela revolução,
começou a surgir as violencias commetidas por aquelles, que repentinamente, sem terem habilitações para tal, se
viram investidos de algum poder.
E há tanta barbaridade feita nesse periodo de 1923 a 1926!
Tanta que, por mais extensa que vá charla e por mais vezes que tal assumpto seja focado, nunca o mesmo
caso é repetido. Tudo é novo. Hoje, chegados do rodeio, os peões tomavam matte, fazendo horas para a “boia” quando
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a conversa foi aos (poucos?) ladeando-se para aquellas arbitrariedades, num justo derrame de indignação, contido
tanto tempo pelo terror infundido pelos chefetes, tão ignorantes, quanto presumidos...
O Pacheco fala: “A comadre Joanna, que foi piôa de um dos Pachecos do Rosário, sabia de muitos caus os,
que elles, uma vez junctos, contavam uns aos outros rindo-se das façanhas que lhes pareciam mais engenhosas, mais
cheias de graça.
O cap. Pacheco conversava com uma moça, assisista (assim eram chamados os partidários de Assis Brasil,
bem como “maragatos”) e que valendo-se talvez de qualquer relação que tivesse com aquelle official, atreveu-se a
censurar certos actos commettidos pelos “chimangos” (assim eram chamados os partidários de Borges de Medeiros).
Incomodado, o capitão aproximando-se da moça:
- Com licença, minha senhóra.
- E ante o susto da pequena, elle, deitando mão do cabeção colorado do seu vestido, começou,
vagarosamente, saboreando assim a seca vinganca, a puxar, a puxar, até desprende-lo todo do vestido.
Numa escaramuça perto do Guará falleceu o Antoninho Pacheco. Uma mulher, china ao que pareca, dando
vasa ao seu entranhado odio aos picapaus (outra forma com que eram chamados os chimangos), affirmou que o luto
que ella deitaria pelo morto, seria um vestido encarnado.
E se assim fallou, melhor o executou apresentando - se toda de colorado.
Um dos irmãos, talvez o Ataliba, chamou um negro, pagou-o para rasgar o vestido daquella mulher’, a
dente no mais.
E o negro lançou-se com tal furia, que em pouco tempo tinha cumprido a sua missão, deixando a mulher só
com a roupa de baixo.
Fevereiro, 23
Ninguem é propheta em sua terra. Tive boa opportunidade de verificar a grande razão de existir, sempre
applicado, o adagio acima.
Sentados no Internacional, tomavamos gelados. A noite era quente, obrigando muita gente a deixar a casa
em procura de refrescos no café mais concorrido de Sant’Anna. Perto de nós, moças em grupos, conversavam alegres
em torno das mesinhas postas na calçada.
- Quem é aquela menina, Sady?
- Aquella?, fez elle olhando na direção, indicada,... ah! aquillo é coisinha mui mimosa, é de P.Alegre.
- Não, é esta; olha ali, numa mesa de fora, a esquerda.
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- Bôa,... é aqui de Sant‘Anna.
Por mais estravagante que alguem fosse, em materia de belleza feminina, não vacilaria em dar o premio a
conterranea do meu companheiro, tão amigo das forasteiras.
O que é de casa não tem valor...
A Safra
Continua de vento em pôpa, enchendo de alegria os fazendeiros, a safra actual, rica em bons preços e em
vendas numerosas.
Com o intento de limparem as invernadas, aproveitando a alta, muitos estancieiros tem vendido os seus
terneiros de 40$ a 50$, no rodeio, ou a $500 na balança. E o gado de cria subiu e muito. De 135$ a 150$, para quem
quizer. Vacas de invernar nos foram offerecidas a 170$.
O couro parece ter descido um pouco da casa dos 5 mil, no que se mantivera até então, ao lado do cabello.
Receiam alguns, uma forte crise para o proximo anno, consequencia logica do abarrotamento dos
mercados. Outros, talvez mais optimistas, prevêm uma elevação de preços, dada a uma diminuição geral nos gados,
que as numerosas vendas actuaes occasionarão.
Parece-me, entretanto que os preços manter-se-ão no proxima safra, precedendo a uma pequena crise, por
identica razão a ds primeira hypothese acima.
Vejamos.
Tarumã, 26-2-28
Março
Estancia Tarumã
3-3-28
Ensilhávamos os cavallos pára uma volteada. Na estrada, que divide o potreiro das casas em dois, cruzam
dois escoteiros. Um delles, o do mouro, se aparta, rumo à Estancia.
- Bom dia. Dá licença?
- Bom dia. Apeie...
O homem atou o cavallo numa das argollas pendentes do velho cinnamomo de casca enrugada e 1imosa.
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- Aqui tem banco. Sente-se. Passeando?
- Qual! Pobre não passeia, seu Paulo. Isso é p’ra os ricos.
- O seu companheiro não quis chegar...
- Elle ia apurado. Ia tomar o trem p’ra os lados de St. Antonio, buscar um pouco dagua pr’um filhinho doente.
- Que é que tem o pequeno?
- Eu inté não sei. Diz que foi ao...Mas o Ananias não poude curar. Está mal.
- O Ananias dá remédio. Tem fama como curador...
A charla seguiu sobre as propriedades milagrosas da fonte que o italiano del fabro conseguiu impor como santa às
crendices ingenuas do povo.
O nosso homen despediu-se. Ia pegar um bagual no campo dos Picadas.
O pessoal matteava, tirando o amargor da boca deixado pela sésta . A cachorrada latiu forte, avisando
um visitante.
- Já deitar! Apeie-se.
Era Xirú acompanhado por um filho. Inha buscar licença e uma pá para abrir uma sepultura no cemitério.
- Quem morreu, Xirú?
- Foi um filho do João Manuel...
- Quem é esse vivente?
- É um morador ali do outro lado. Um que cruzou hoje pra Sta.Rita. Ia a Julio de Castilhos buscar agua
santa p’ro doentinho.
Vai o pobre (gastando o que não tem) levado pela esperança falsa que creou em sua imaginação toda religiosa e
simples, a exploração gananciosa de um gringo, e o filho expira, talvez na mesma hora em que o pae tomava o trem,
rumo a fonte que lhe poria o pequeno curado e forte.
A vida é esta. Enriquecem os especuladores a custa dos minguados nickeis e da boa fé dessa gente simples e
de crenças ainda mais simples.
As Andorinhas
Março, 8
- “Nós nem demos falta das andorinhas”.
- É mesmo. Foi com o frio destes últimos dias que elas mandaram roda.
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Bastaram algumas noites meio frias, duns 15 dias p’ra cá para que as nossas veranistas se fossem em procura de
logares de temperaturas amenas, onde continuassem o seu veraneio ininterrupto. Foram-se como mensageiras do
inverno - estamos ainda em Março - e voltarão como precursora da Primavera.
Não se vê uma só destas avezinhas; nem as do campo, tão amigas de acompanhar o viajante chilreando,
fazendo voltejos rápidos, apertando nelles o cavallo, já indifferente a esse passar rápido.
O povo do rincão do Tarumã
Esta zona toda, corn seus campos bons e grossos, é povoada pelo verdadeiro typo do gaúcho: fatalista e
incapaz de fazer um grande emprehendimento.
São trabalhadores não há duvida, mas o seu trabalho é rotineiro; desconhecem por completo o que é
conseguir um augmento de lucro nos seus negocios. Uma quadra dá-lhes o mesmissimo numero de novilhos que há
cem annos atrás. Conservam os estabelecimentos a mesma face com que surgiram no século passado. Nem mesmo um
arvoredo novo põe um sorriso de melhoramento, de conforme no semblante das estancias, todas semelhantes entre si.
E não é só ao progresso que o espirito dessa gente é rebelde; ao conforto pessoal tambem. Poucos são os que têm poço;
a maioria, donos de estabelecimentos velhos, mantem ainda a pipa d’agua, symbolo do atraso.
E este indifferentismo ao progresso e ao bem estar da família não é preestabelecida. Não, como o verdadeiro
gaúcho, é rotineiro nato. Elle nunca vae atráz dum aperfeiçoamento para o que é seu. Mas, em chegando o
melhoramento aos seus pagos, elle o olha .... e caeita-o si estiver ao seu alcance.
Dahi o emprego disseminado dos touros finos e dos calções de montaria, postos-lhes à porta pelos
vendedores de animais e bulicheiros, respectivamente.
A nova geração
16-3-28
A última geração que o século XX viu nascer nessa redondeza foi fertilissima em cabeças vazias, sem visão
commercial alguma e algibeiras furadas sempre pronptas a esbanjar o que os seus antecessores conseguiram com o boi. São
innumeras as grandes estancias, prosperas em outros tempos, que hoje se encontram pela incapacidade dos herdeiros,
sobrecarregadas de hypothecas. Umas já estão retalhadas, não em granjas activas e productivas, mas em estanciolas pobres,
quase taperas.. Em outras, ainda inteiras, vegeta a ponta de filhos, já homens feitos, mas que 30 ou 40 annos de habito faz
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comque o povo ainda os chame de “meninos” “rapazes” etc..., numa inação única, esteril. Si trabalham, é só com os braços,
desmentindo as tradições desses cerebros intelligentes e fecundos que povoaram e enriqueceram a campanha do R. Grande,
em época em que o transporte rapido era ainda um mytho, tudo era distante, bem longe. E é interessante, e triste tambem
que, esta “moçada” tem uma perfeita noção da incompetência - curiosa negação às leis da hereditariedade - como o prova a
pergunta seguinte, feita por um dos seus mais lidimos representantes.
-“E o senhor, seu Carlinhos, com esta idade (19 anos) não tem medo de botar tudo isto fora?”
Esta admiração dirigida a quem éra, pelas funçcões que desempenhava, mais capataz que sócio-propietário,
retrata bem essa gente, bem capaz de, aos 25 annos, sob as vistas paternas, ter o arrojo de plantar 3 bolsas de milho sob sua
responsabilidade e risco, ou então de lavrar umas quadrinhas de terra em sociedade... mas, sem botar as mãos no arado.
Provam, de sobejo, esta asserção, os estabelecimentos vizinhos dos fze. Fulgencio, José Silveira, João Gregorio
e dos finados Taltibio e Issac...
Março, 21
Agitam-se as granjas do arroz com aproximação da época das colheitas. Devido a maturação desparelha, os
Marques desde o dia 12 que estão cortando; manchas aqui, acolá. Os Vasconcellos deviam ter começado a 19 Dico e
Antoninho concluiram os galpões. O do primeiro, 50 palmos por 20, é de chão, paredes de táboa e coberto de capins.
Tem uma porta corrediça e uma só janela. Achei-o muito abafado. Parece-me que a porta ficaria melhor correndo por
fora do galpão. O do velho Antonio, ainda não o vi.
A tarde cae triste, pondo tons rosa no horizonte. Chimangos cruzam em vô lento, rumo aos mattos. Vêm das
coxilhas altas onde passaram o dia caçando gafanhotos crioulos.
O gado manso, postando, se approxima vagaroso, das casas. A melancolia parece obrigá-los a procurar no
homem, o ser que pensa, a meditação.
E eu “pego” a pensar na minha vida.O que foi? Um nada igual a todos que se achavam em condições
identicas às minhas, a despeito de muitas idéias que povoaram o meu cerebro e que não vingaram devido a
serem muito ousadas, extravagantes, indo além da 1iberdade que ao indivíduo, comede a sociedade. Já está
escuro... aumento o lampeão.
O que é?
Uma expectativa repleta de esperanças. Um pensar ininterrupto no projecto em breve a ser executado, e que
concretizará o meu sonho de ser rico por um trabalho produtivo, útil a humanidade. Dentro de poucos mezes
cavalgando idéas novas para a região, emprehenderei um plano ainda mais arrojado que as própias idéas, e que eu
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oculto a todos na certeza de que não me comprehenderão, lançando-me a conta de louco. E no entanto, ambiciono tão
pouco! Um viver abastado como resultado de um melhor aproveitamento de energias junctamente com o emprego dos
racionaes methodos de explorar a terra. Methodos esses nascidos da sciencia e firmados na pratica adeantada de outros.
A riqueza de um homem deve ser relativa aos seus benefícios prestados aos seus semelhantes. Só assim sera ella a
expressão da felicidade terrena. É este o único modo de conseguir alguem a admiração e a estima da coletividade.
Produzindo bens de consumo e dando trabalho aos que não tem capital, é o ideal a ser sonhado por todos e é o meu.
Entretanto nunca li teoria que advogasse tal proposito. Será elle exequivel? Conseguirá passar através dos que o
egoísta pessoal e a ambição humana, semeiam, na lucta pela vida?
Faltam-me meios para entrar, já, na realização do meu projecto. Terei de ir aos poucos, por longe... Tambem
ambiciono um lar, uma coxilha em que ponha com o riso franco de um viver feliz, a marca elegante e confortável da
minha estadia naquelle torrão. Havia de povoá-lo com gosto, sempre dentro do meu projecto, pois em “tudo” eu já
pensei... Mas é sempre isso, o destino nos dá o que não apreciamos e nega-nos o que julgamos indispensavel. Único
meio, talvez, de lançar o homem a lucta continua, encontrando descanso só na morte.
Oh! Mas irei em busca do que preciso para o meu sonho. Quero, aqui curva-se o homem ao mysterio do
senhor que dispôe de tudo, que o “premio” que eu almejo não seja conquistado por outro.
Tivesse essa certeza, não temeria em esperar muito. O que será ?
Uma esperanca que não baqueou, uma actividade que só a morte faz cessar...
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Março, 24
Agita-se a classe criadora, mais pela propaganda da imprensa que pela importancia vital do assumpto, com
o próximo Congresso de Criadores a effetivar na Capital nos dias 25 a 29 de abril. É esta a 2° vez que se reunem em
assembléa os fazendeiros gaúchos depois da extinção da mallograda União dos Criadores.
O primeiro Congresso, realizado o ano passado, foi a despeito da ação puramente de espectativa de alguns
congressistas, motivada pelo tolhimento proprio à “primeira vez” em que enfrenta qualquer cousa, bastante fértil em
medida salvadoras para a classe. As resoluções em geral, foram boas. Reflectiam, em tons praticos, as necessidades do
momento. Mas como dependessem dos governos, Federal e Estadual, nenhuma dellas conseguiu passar do papel para
o terreno concreto. As mais adiantadas ainda estão em via de execução.
Esperemos... lançando mão, a guiza de consolo do adagio: de vagar se vai ao longe. Admiravel a sabedoria
desses rifões populares, que tudo resolvem e justificam: a dor e o prazer; a neglicencia e a atividade.
E o 2° Congresso?...
Parece que terá fins identico. O assumpto para as theses a serem estudadas, já foram publicados. Todos, em
sua maioria, exigem a intervenção direta dos poderes publicos. O apoio moral, foi conseguir-se, fallar pouco custa ...,
mas o material indispensavel à consecução das vantagens decorrente dos problemas solucionados, requer mais que
boa vontade, por parte dos nossos dirigentes, requer dinheiro e abnegação, coisas de que a politica nossa é avara, uma
vez que seja para o povo, para as classes conservadoras.
Abril
Abril, 1°
Birutas da Revolução
O Quirino, o preto direito no dizer dos que o conhecem, contou-nos o facto seguinte numa tarde de chuva
em que enfardavamos palha de amendoim.
“Na canneleira, perto de Sant’Anna, quando nós estavamos acampados, troxeram a relação p’ra o
pagamento do soldo.
O Pedrinho Cunha agarrando a lista disse; Mas aqui tem soldado que Já morreu há mais de 10 annos !”
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-“Dá isto aqui!” - exclamou o Cel. Sinhô, voltando-se ligeiro.
- “Tu és um bôbo, não sabes nada!”
E dobrando o papel, o Coronel, metteu-o no bolso.
BENZEDURAS
O velho Honório Balsemão, gaúcho dos bons tempos, posto à margem dos “modernismos” com os seus
hábitos e crenças peculiares a esse nosso povo da campanha, acredita piamente nas sympathias destinadas a curar a
todo e qualquer mal. Atacado continuamente por uma azia impertinente, grita elle pela afilhada: “Pôe-te ahi,: filha e
benze-me esta azia”. A rapariga, alarife, para uns minutos atrás da cadeira do velho, finge dizer alguma cousa e corre
aos brinquedos. Dahi a pouco, cofiando as longas barbas brancas, chega-se o Honório p’ra cozinha.
“Que bôa benzedura, comadre; faz um tempinho que a Chininha me benzeu, e eu já estou bom. Qual, não
há como uma benzedura bem feita!”
Quinta. 5 de Abril de 1928
A ociosidade é cousa chata, chatíssima... Passo os dias a vaguear em volta das casas a olhar a toa, matando o
tempo que nunca morre, sempre o mesmo, impassível, quer nos momentos em que o vemos passar com pezar, quer
nas horas aborrecidas, fastidiosas.
Segunda começam os serviços da triha do arroz. Uns 20 dias de trabalho e, o que é pior, de incommodo.
Mas passarão, é só ter paciência.
Depois irei trabalhar só, romper terra até agosto, si Deus quizer!
É só o tractor funcionar regularmente, e eu farei o maior cercado do Estado. O Rei do milho.
Abril, 21. Sabbado
Tiradentes! Por coincidencia li há dias, as Razões da Inconfidência de Antonio Torres. Que acusação forte e
triste contra os parentes d’além mar. E o pior, é que a gente fica, terminada a leitura, com um recibo de verdade, dura
e esmagadora. Si o livro não passa de um amontoado de calumnias, porque não sae a campo, em defesa da raça
offendida, um luxo, dos mllhões que habitam este Brasil? Este silencio ante uma obra de tal gênero, devida à penna
de Antonio Torres, bem pode tornar-se a melhor prova de que tudo ali é verídico, tristemente histórico...
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A vida do campo é triste para o celibatário. Tem-se a convicção de estarmos incompletos. Há um vácuo na
vida. Este vazio só apparece quando não se trabalha, quando o espírito vagueia sollito no corpo molle. Num “Para
Todos” vi, em um retrato, traços que lembravam...
Pensei em manda-la ao Telmo. Queria ver si de facto ha via uma semelhança ou era apenas impressão
minha. A revista, porém, voltou a dona: a Odith…
As Carreiras 22-4-28
Um domingo brabo de sol, anunmciando chuva breve. Há três dias que venta norte. Sahimos a meia hora
rumo às Porteirinhas com o fito de ainda chegar a tempo de assistir a carreira entre o vermelho dos Silveira e
douradilho, cria da Da. Florência.
Duas léguas e meia! E que sol! Ao passarmos a bella vivenda do Dr. Vidal, aos
Abril, 29
- Cheguei hoje de Sant’Anna saturado de foot-ball. Mas já passou o meu tempo de desportista. Estive com o
Chico e o Taltíbio. Como é bom evocar os velhos tempos... reviver as aventuras tão normais à existência acadêmica e
que gravou fundo em nosso cérebro, recordações immorredouras. Recordar é viver... Estampam os jornaes nomes de
collegas de estudos que se inscreveram no actual congresso de criadores.
Congressos... a mania da época.... de médicos, de commerciantes, de intendentes, etc... Breve teremos dos
“bicheiros” bem como o dos esmolares. Havia de ser lindo vendo estes últimos votando e aprovando uma moção
tendente a augmentar ainda mais a caridade proverbial do nosso gaúcho. Serão prohibidas as esmolas pequenas…
Discutiram a questão do trigo, o capricho do Getúlio. Aconselhou-se ao Estado a creação de uma estação
experimental, para os estudos das espécies mais resistentes á ferrugem e fornecimento de sementes aos agricultores,
no município de Pinheiro Macha do. Bagé reclamou para si este privilégio, bem como Uruguaiana. Que as suas terras
são as melhores do Rio Grande, affirma Saulo Victoria. Vence a primeira indicação, tinha o apoio de agrônomos
presentes. Será este facto motivo de regozijo para a classe? A matança de terneiros vae também ser discutida. O
presidente do Estado pediu leis restrictivas... mas não as terá pois que seria uma incoherencia, revogar a lei
reguladora da matança das vacas e crear uma para a dos terneiros, as vacas de amanhã.
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Cheguei assim tão saudoso, que só vivo abichornado; mesmo que negro velho que o tempo deixa de lado.
Mas ensilho o Pensamento, deixo o banco e a cinza quente, e num trote chasquero, sigo sonhando, para frente.
Sei que é longe a capital, a minha nova querencia, mas hei de soltar o mouro só na tua querencia.
22/8/1930
No dia 12 de outubro vindouro será organizada em Porto Alegre uma exposição-feira. A primeira vista
parecerá esta resolução merecedora dos aplausos de toda a classe criadora, mas si attentarmos para a data em que
ella deve ser inaugurada, veremos ser precisamente o dia em que se realiza regularmente a grande exposição de Bagé
Com tantos dias no anno escolher logo aquella data que Associação Rural de Bagé consagrára, pelo brilho
de seus vários certamens, como sua, opportunando a mais bela festa pastoril do Brasil inteiro, quer nos parecer uma
escolha pouco acertada, fructo talvez de uma falta de attenção.
Dizer-se que o Rio Grande basta e sobra para duas exposições não é o mesmo que esperara uma boa
concorrência a ambas as feiras, porquanto é bem sabido o descaso ainda existente entre nós para realizações de tal
natureza, descaso este que muito poucos dos nossos municípios conseguiram vencer, embora de modo imperfeito,
conseguindo exposições todos os annos.
A manter-se a determinação acima, resultariam duas desvantagens, ambas importantes e que por si sós
bastariam para aconselhar a escolha de outro dia. Uma, o fracasso da exposição da capital, que contoria apenas com o
gado leiteiro do littoral que apezar de sua qualidade e número não é sufficiente para uma demonstração do que é a
pecuária gaúcha. Fosse a exposição projetada só para gado leiteiro, desappareceria a inconveniência acima; teriam os
seus organizadores motivos para andar esperançados. Devendo ser porém agropastoril, daria o certamen péssima
idéia aos forasteiros e a nós mesmos, ainda ignorantes das conquistas a que chegou o fazendeiro gaúcho com todo o
abondono da pecuária riograndense, a pioneira do Brasil criador.
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A outra desvantagem seria affastar parte da concorrência publica da exposição bageense, attrahida pelos
encantos e progressos da Capital do Estado, além de desviar o concurso de Pelotas, forte centro de bons gados
leiteiros. Deixando de lado todo o prejuízo, moral ao menos, a soffrer pela indústria pastoril sul-riograndense,
assistindo na própria Capital do Estado a uma triste demonstração do seu pujante desenvolvimento, não seria justo
ir-se contra os vigentes esforços do Rural de Bagé que após annos de lucta e trabalhos conseguiu organizar com toda
a regularidade uma feira que impôs-se como a 3ª da America Latina, chamando a si numerosos gados uruguayos e
argentinos, injectando assim no rebanho regional forte dose de sangue fino.
Embora não se possa ajudar de um modo positivo a grande exposição fronteirista, que ao menos não se lhe
cause prejuízos, por menores que sejam elles.
Seria isso já um bom auxílio e, de mais a mais o anno que corre tem 366 dias...
Maio
Maio, 1°. Terça
Desde domingo que uma chuvinha miúda vem impedindo todo o servi ço. Que caceteação e que
augmento de despeza são obrigados a fazer os arrozeiros com a seccage m do cereal molhado. Não há panno que
baste; além de poucos, todos molhados.
Um arzinho frio cala aos pouquito através da roupa; é o inverno que chega. Maio... no dia 13 será realizado
em Livramento, uma grande reunião opposicionista para fundar o Partido Libertador, segundo a orientação
fornecida pelo Congresso de Bagé.
O “Cella” opellido com que é conhecido o filho do Fulgencio Silveira, velho fazendeiro e federalista ainda
mais velho, anda percorrendo a Conceição em propaganda da próxima reunião.
Excitado, sempre falando em Borges e Chimangos, apeia -se em todos os ranchos maragatos,
convidando, insistindo... Na sua meia linguagem expressa em tom alegre e convicto, parece não ver o desanimo
de alguns correligionários.
“Precisamos ir companheiro. E agora que elles andam meio esparramados. Foi pena ‘os circulares’ não
terem vindo, sinão você ia ver. Vamos virar ‘estes bichos’ de pernas p‘ra o ar”.
Ou então, vendo o espírito do companheiro embotado de mais para contaminar-se ao seu enthusiasmo: “Lá
os oradores lhe dirão o que eu não posso explicar. E que discursos! Vem o Assis, o Luzardo, o Demetrinho, e outros mais.”
E por ahi vae, saboreando o amargo, a contar factos da revolução.
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“Você não foi à guerra”? pergunta elle a um rapazito que desde o começo o escutava em silencio.
“Não, nunca me convidaram”.
- “Então não tens nada p’ra contar”, e desconfiando que o moço fosse chimango “era menos um para disparar”.
O rapaz fingiu não perceber e elle mudou de assumpto, interessado pelos títulos de eleitores presentes.
“Perdeu o seu? Não faz mal, tira-se outro. E você, não é qualificado? Bueno, lá na reunião o alistaremos”.
Agradeceu o convite para pousar e sae no seu baio noite a dentro.
“Obrigado, não posso; ainda tenho que chegar no Nézinho e amanhã cedo tenho muito que fazer. Até amanhã”.
O Contrabando de Gado. 2 de Maio
Formulou a Comissão encarregada pelo 2° Congresso de Criadores reunido na Capital para estudar a
tão debatida questão do malfadado contrabando de gado e xarque, várias conclusões tendentes todas, na sua
illustrada opinião, a cercear sinão impedir de uma vez, a matança clandestina de gado de em os nossos
estabelecimentos saladoris de fronteira .
Na leitura do parecer apresentado deduz-se claramente que a douta comissão visou tão somente a cura do
mal, sem estudar, ao menos a título de elucidação, fazendo um trabalho mais completo, a possibilidade de ser o
contrabando uma chaga incurável dadas as condições actuaes por que elle é efectuado e a moral dos homens a quem
está ligado o contrabando, isto é, os contrabandistas e os guardas fiscais.
Que o ambiente fronteirista difficulta a repressão ao contrabando, não há dúvida alguma e o provam as
declarações de innumeros criadores e os repetidos editoriaes da imprensa, admittindo por base fundamental de
qualquer serviço fiscal de repressão, uma forte e eficaz ação dos governos, Estadual e Federal.
Dando-se de barato que se obtenha dos poderes competentes - apezar dos precedentes havidos não
apoiarem em nada tal supposição - uma machina vigiante e intransponível, teríamos ainda a considerar as pessoas
encarregadas de manejar a machina do fisco e, principalmente, aquellas em quem o interesse pessoal despertaria toda
a atenção e perspicácia a fim de burlar a ação do fisco.
Quanto aos primeiros, os empregados dos poderes públicos, deveriam ter como elemento básico, um espírito
imune a qualquer tentativa de suborno. Ora este espírito forte será algo dicífil de ser obtido na totalidade dos
encarregados: as amizades, a subserviência politica e o amor à própria vida, sem falar nos attractivos do dinheiro, o
único Deus sem atheus, no dizer acertado de algum, bastariam para deitar por terra qualquer indivíduo, di antemão
disposto a ser “intransponível’. Quantos exemplos, conhecidos dos moradores da fronteira, nos mostram
funcionários, hoje “umas canjas” quando eram, “um osso”, ao iniciarem as suas atribulações.
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O próprio povo, fonte donde sahirarn estes funcionários, seriam os melhores auxiliares dos contrabandistas.
Por melhor que fosse, o systema de repressão falharia pelas mãos dos seus próprios manejadores.
É este erro a observar no referido parecer. E não se falle em caracter honesto e cheio de virtudes e
patriotismo, pois que o pedido surgido ahi, de se botar a effeito um rigoroso inquérito sobre os actuaes funcionários
afim de expurga-los de toda a conciencia venavel, não despertou interesse algum entre os que clamam contra o
contrabando, devido a sua clara inutilidade.
No que diz aos interessados em passar contrabando - fazendeiros e invernadores - ellos continuarão a faze-
los a fronte erguida, visto que contrabandear não é nos costumes, leis moraes da família gaúcha, deshonra alguma.
Pae algum negará a mão de sua filha a um companheiro de classe pela simples e única razão de ter elle abatido, no
“saladeiro” vizinho, uma tropa contrabandeada.
São por acaso menosprezados, no conceito público, as pessoas gradas e as autoridades que vêm a
Rivera fazer compras vultuosas?
Absolutamente não.
É esta a razão porque não há denuncia de contrabando, por parte dos criadores, conforme pedem alguns,
ignorando em sua boa fé, o que vae cá por essa fronteira. Depois, convém não esquecer que até os dias de hoje os
homens não conseguiram sobrepor aos interesses pessoais, os da collectividade, pelo que o contrabando será feito
mesmo se antevendo prejuízos para a classe em sua extensão.
Os dois motivos acima nos levam a aceitar o contrabando, lembram a idéia de aproveitar a matéria prima,
boa e barata, que nos é offerecida para fortalecer e desenvolver a indústria frigorífica entre nós, de modo que ao
chegar o rebanho nacional a produzir em escala a novilho typo frigorífico, teremos um bom e seguro mercado de
carnes em que a qualidade dos gados vindos do Uruguay nos abriram um fácil caminho, realizando uma propaganda
fecunda e positiva, visto que os “quartos congelados e resfriados” daqui saíram com o rótulo nacional.
Conquistaremos os mercados europeus, sem as despezas inúteis das embaixadas e teremos nivelado os nossos gados
ao do prata, porquanto o bom preço pago às tropas “do outro lado” e a figura triste que fazem nas mangueiras dos
frigoríficos os nossos bois quando ao lado dos novilhos especiais seria o melhor incentivo para o criador, levando-o a
iniciar o melhor, dos seus gados. E é isto, reduzidas as proporções, o que tem se dado nas fronteiras onde a vizinhança
do Uruguay e Argentina e não os campos finos foram os comandantes da mestiçagem que já se encontra naquela região.
O Jornal. 3 Maio
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Povinho simples e sem ambição, vive a gente de Conceição completamente alheia ao resto do mundo, que
nos seus parcos conhecimentos geográphicos se resume em Montevideo, Livramento, algum as cidades da fronteira e
Porto Alegre, onde vive o Borges. Ainda assim não são todos os que sabem com firmeza estas noções geographicas.
Dahi não é de admirar a raridade em se encontrar por aqui um diário porto alegrense. Um exemplar é
guardado com cuidado, indo de mão em mão deleitar os espíritos mais adeantados.
“O patrão mandou pedir o jornal emprestado, si o senhor já leu...”
E lá parte o próprio levando a preciosidade que geralmente tem mais de mez. Isto tudo ahi fica a propósito
do incidente seguinte, verdadeiramente histórico.
O Nenê um fazendeiro que se differencia dos muitos que por aqui existem por ter apenas 6 palmos, si tanto,
de altura, apeou-se em frente ao galpão, tendo contudo o cuidado de deixar o rosilho juncto a um velho tronco de
cinamomo que a edade derrubou: precaução para não pedir um banco quando da hora de montar.
Tomou-se o matte, conversando sobre o tempo, carreiras, a safra...
Neste ponto, ao perguntar-lhe si sabia algo sobre preços de gado gordo, sahiu-me o homenzinho com esta,
enquanto me devolvia a cuia vazia:
“Eu tenho lá em casa um Correio do Povo que diz estarem pagando 300 R$ por boi gordo. Lindo preco, não?”
É articulei a custo, pensando no orgulho deste feliz jornal elevado a categoria de um livro. Com que
desprezo olharia elle para os “La Nacion’ “Paiz” e “Times” que não conseguem viver mais do que 24 horas...
Milho
Segunda, 14.
Começamos a romper terra. Há dias que gêa. Por inquanto um só arado. A terra está dannada, o pasto bem
enraizado e os bois, como diz o Quirino, não tem tiro; negam-se a trabalhar, saindo seguidamente do rego. A lavração
de hoje não attinge 3.000 m2; espero porem que as cousas entrem nos seus eixos: um bom arado e bois…. com tiro
27 de Maio de 1928
Um inglês, alto funcionário dum grande frigorífico da fronteira, viajava pela campanha estudando as
possibilidades de ampliar certo ramo da campanha que representava. Com era a primeira vez que vinha a América,
acompanhou-o o Lauro, tropeiro e federalista velho, grande vaqueano da zona que iriam percorrer.
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Fevereiro abrasava e os viajantes chegaram a um rancho afim de comprarem uma melancia.
Veiu a fructa apetecida que foi devorada num instante. Chegada a hora de sahir, pediu o inglez o preço da
melancia. O caboclo dono do rancho deu-o: uma exorbitância. O neto de John Bull pagou sem protestar. Sahiram, já
longe da casa disse a inglês: “O’ D.Lauro, muito escassas devem ser as melancias no Brasil.”
- “Não” - responde o Lauro, mui ligeiro - “Melancias há muitas, os ingleses é que são escassos”.
Chove que se leva ao diabo. Está chato. No galpão contaram-me uma boa. É a caso que um vivente vinha
afogando estrada afora, a ver si ainda chegava à hora do almoço, na estância mais próxima.
Mas foi de azar, apeou bem no momento em que a pionada tomava uns amargos, para tirar o gostinho do feijão.
Como fosse pessoa de destaque veiu o patrão e levou-o para dentro. Iniciando a conversa com uma pergunta sobre
o tempo, gritou o fazendeiro para alguém que devia estar na sala próxima: “O Chininha traz um café aqui p’ro seu Sibico!”
Este, interrompendo a descrição dum temporal que lhe arrebentara o chiqueiro dos terneiros, chegou-
se para o dono da casa:
- “Me diga uma cousa, compadre, cafezinho antes do almoço não faz mal?”
- “Ah! Você ainda não jantou ?”
-“Não, compadre”.
- “Bueno. Olha” - gritou de novo - “deixa o café e traz um almoço”.
Maneiroso, como si nada houvesse acontecido, o Sivibo seguiu a história do temporal.
Sonho d’inverno
Ella chegará do passeio. O chapeozinho mui apertado, aplastara-lhe os cabellos louros. Tirou-o e chegou-se
para o espelho do cabide japonez da sala de entrada. Estava lindo que nem um fructo prohibido! E eu a contemplava
embevecido. Offereci-lhe o meu pente de bolso. Aceitou-o sorrindo. Enquanto se penteava, pensava eu na Capitu do
Machado de Assis. Porque cortara a mata, os cabellos da mulher? Que pena...
Devolveu-me o pente com um sorriso, misto de gratidão e promessa. Não pude, ante esse convite, esse
incentivo amável que eu li em seus olhos, fitei-a terno, pedindo e com o dorso do pente flexível, afaguei-a atrás da orelha.
Que estúpido fora na escolha deste logar ! Nem sei mesmo porque a fiz.
O mesmo olhar, porém, todo incentivo e meiguice, instigava-me e sentia o meu ser gritar: “vamos,
avança...” e baixei o pente lúbrico, passando -o com vagar, num antegozo louco, na ponta de seu seio erecto, mas
contido na justeza do vestido.
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-“Logo aqui”- diz ella em voz monsa, submissa, “onde sou tão magra !
Exclamação ainda mais estúpida, inexplicável nella, tão linda e inteligente. Mas nessas ocasiões os lábios
não reflectem e o espírito varia.
Segui, maneiroso, a caricia do pente.... Arquejando o seio, num approximativo, chegou a boca, olhos
semi-cerrados…
“Fulana, vem cá, anda.”
Afastou-se, num estremeço, era o marido que a chamava...
30 de Maio de 1928
Junho
Junho
A Reunião Libertadora no Sobradinho
A expectativa para a primeira reunião opposicionista a ser realizada pelos elementos do 4° e 5° districtos,
nessa nova era política em que atravessa o Rio Grande, era puramente de expectativa. Poucos, pouquíssimos
confiavam no sucesso d’aquella assemblea campal. A maioria, apoiando as suas razões nos acontecimentos dolorosos
e tyranicos que as ultimas revoluções crearam, levavam apenas a esperança, que nunca abandona o homem.
Com essa ansiedade geral, não foi de admirar a alegria que se espalhou entre os libertadores ao verern o
triumpho que foi a reunião. Mais de 200 cavalleiros aos poucos foram chegando ao local, um baixo no costado da
serra, abrigado por um renque de eucalyptus. Era grande o enthusiasmo dos que primeiro chegaram ao verem se
approximar os grupos de 8, 10 e até 30 companheiros, ostentando nos lenços e mesmo nos pellegos as cores
simbólicas. Ao chegarem mais perto, cortavam-se os chefes desses piquetes, chegando nessa ordem até o grosso da
festa. E os vivas, calorosos e vehementes, jorravam d’aquelles peitos fortes, há 4 annos condenados despoticamente a
um silencio aviltante para a nossa dignidade de homens livres.
Desencilhados e soltos os cavallos, num piquete ao lado, espalharam-se os gaúchos em grupos, conversando
aqui procurando alli os companheiros amigos em abraços cheios de satisfação.
Ta lindo. Os picapaus ao saberem desta lindeza, vão dizer que nós somos como carrapato: quanto mais
se mata, mais apparece!
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E riam todos, saboreando o matte, em torno dos braseiros em que chiava, aloirando-se, a carne de cinco vacas.
Percorremos os fogões.
Aqui mostraram-me um veterano do Paraguay. Contemplava, num sorriso, mais um estímulo, uma
approvacaão, que uma alegria pessoal, aquella promessa que seus filhos e netos alli escreviam com as rosetas de suas
esporas na grama verde, de trabalharem pela liberdade.
Num outro, um fazendeiro moço, falava com os olhos fitos na multidão que em torno se movia: “Reparem,
quanta gente que ninguém tinha por companheiro! Até o Orestes que eu vi de fuzil e divisa azul!”
Mais adiante, um companheiro quase que nos esmagou num forte abraço: - “Como é isto? Diziam que não
havia mais maragatos!!” - e mostrando um piquete que chegava, descarregando os revólveres - “Veja só um mundo de
gente, e quanto pellegão macanudo.
Crenças e Sympathias
O povo é extraordinariamente crédulo. Talvez devido a triste ignorância em viver, graças a clarividente visão
de nossos governadores. Pois poucos são os que sabem ler, entre a pionada; nas mulheres nem é bom falar.
Dahi o crédito que dão a qualquer negro velho, cadongueiro no falar e nos gestos mysteriosos com que dá
um conselho ou applica uma receita.
No entanto, coisa interessante, o gaúcho isolado não crê em toda a sympathia. Não, dá a preferência a
cartas, do que decorre haver muitas superstições; segundo os gostos de cada um.
Exemplificando: Uns ao deitar uma gallinha, põem todo o reparo na lua; só o fazem na phase propícia,
enquanto que outros, scientes disso, mostram um descaso profundo pela mensageira da noite, crendo no entanto que
obterão feliz ninhada só si colocarem no ninho três pedacinhos de carvão.
18-6-28
O Homem Que Correu
Elle correu três léguas sem parar. E chegou primeiro que muitos companheiros montados.
Foi no combate da Armada. O seu esquadrão desmontara. A cavalhada enfiada nos maniadores como uma
fieira de peixes no junco do pescador, ficara num baixo, abrigada e sob a guarda de dois soldados apenas. De
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mosquetão em punho, elles avançaram, enthusiasmados. O cheiro da pólvora e o estralar das pipocas encorajava os
menos valentes. O inimigo pegou a fugir; isto animou-os ainda mais; deitavam a persegui-los.
A cavalhada lá ficara ao longe. Não pensavam mais nella: a Victoria e a sede dos adversários tomava-os
completamente. Mas... a guerra do pampa é assim mesmo: aquela retirada era fingida; aquillo tudo não passava de
uma cilada. E elles caíram que nem uns patinhos. Tiveram que fugir, desordenados e sem rumo, e o peior de a pé que
as cavallos estavam longe. E a correria foi grande, espalhou-se ao resto da força. Commandantes e soldados fugiam
agora aos gritos fortes e alegres dos revolucionários. Sem largar a arma elle correu para o descampado. Ia só; os
companheiros esparramados que nem filhotes de avestruz batidos pela cachorrada. Encontrou o coronel e implorou:
- “Não, me deixe morrer, commandante!”
- “Não te assuste rapaz. O meu cavallo é novo, sinão te dava garupa. Foge, anda.”
E elle continuou a carreira, olhos esgazeados, imaginando a morte que o esperava nas mãos dos
inimigos. A degola numa restinga...
Adiante encontrou um grupo de correligionários. Iam a quanto podiam os seus cavallos já cansados. Pediu
auxílio. Mostraram-lhe uma petiça que corria entreveirada com as retirantes. Sempre correndo elle saltou no animal
que, sem uma rédea qualquer, assustou-se, abrindo do grupo. Deu-lhe um coronhaço na cara, emparceirando-a com
os outros. Sorriu… mas sorriu curto. Uma detonação e a petiça caiu. Com a arma que não largara tocou-a para que
levantasse. O animalzinho esperneou, agonizava.
Largou de novo a correr, sozinho; os companheiros olhararn-no sem parar: o inimigo vinha perto.
Sempre a correr. Uma cerca atravessou-se em sua frente. Saltou-se apoiado apenas no mosquetão, à guiza de vara.
Três léguas fez e foi dar em Dom Pedrito, esfarrapado. Até as ceroulas rasgara no esforço desesperado da fuga.
22 -6 -28
O Baile. 27-6-28
O “Nozinho” mandou convidar-nos para um baile que elle dará em casa do seu “Acelyno”, no dia em que
este primo delle festejará mais um anniversário natalício. Não pudemos deixar de ir; o convite foi gentil e, depois
ambos são vizinhos, tanto o Nozinho como o que dá a sala. Verdade é que iríamos - apezar do convite - contribuir com
um tanto para o samba, pois este é o costume cá dos pagos.
Do meio dia p‘ra tarde começou a cruzar gente, isto é, famílias. Influímo-nos e ao por do sol apeávamos no
galpão já do Acelyno que amável e sorridente sahiu de lá insistindo para que desencilhásemos. Accedemos logo e
entregamos os arreios enmalados a um pião que os guardou num quarto à chave. Notamos esta precaução.
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- “Entre nós, os Silveiras, o hábito é esse. Amanhã se entregarão os arreios sem faltar nada. Todos podem,
assim, estar certos de não terem um pellegão ou um maniador surrupiados pelos amigos do alheio”.
Chegamos papa o grupo de homens aos quais já tínhamos cumprimentados, conhecidos e
desconhecidos, com um aperto de mão.
Numa cuiazinha retovada tomávamos um matte olhando os que chegavam: homens, cavallos e arreios.
“Hoje corro tudo”, diz o Tallau ao apeiar.
“Cuidado, tchê, há, muito bicho encapado”.
A rapaziada toda trazia numa malinha de garupa as calças e os sapatos p’ra uma dança. Alguns até o colarinho e
a gravata, mas eram poucos estes, que a maioria já vinha de pescoço apertado na prisão inusitada dos collarinhos.
Cahiu a noite e os grupos foram se dispersando. Sahia um, depois outro, em seguida outro, todos rumo às
macegas do fundo da casa ou então p’ra traz da mangueira de varas, voltando todos de calças e sapatos e com as bombachas
ou calções e com botas na mão. Era a noite com a escuridão favorável que lhes fornecia o quarto de vestir. E que quarto!
Inteiramente ao sabor do minuano gélido daquella noite de junho. Expor as ceroulas, sempre finas, aquelle ventinho
cortante, já era gostar de baile, ou então, da moda que exclue a bota dos bailes gaúchos. Poucos são os que reagem contra
este modernismo tolo, que elimina a bota n‘aquelles mesmos que dançam os argentinos como valsas lentas.
Já sentem vergonha de entrarem num salão ostentando o tradic ional lenço, symbolo clássico do
gaúcho; agora é só mantinhas a collarinhos.
Sabe Deus que figuras grotescas criam estes gauchitos modernos e cheios de empáfia, torcendo volta e meia,
o pescoço dentro d’aquelles collarinhos todos enrugados por estarem mal postos. E não podia ser d’outro jeito. Que
entendem estas mãos, habituadas ao laço e à rabiça do arado, de um tope de gravata?!
Mas a riograndense, sendo filho do Brasil, faz juz ao epitheto com que o brindaram os castelhanos:
“macaquitos” Bastou um filho de um estancieiro qualquer, surgir numa sala de chão, no meio da peonada e posteiros,
ostentando uma gravatinha para que todos, no baile seguinte apparecessem da mesma forrna.
- “A janta está na mesa, rapaziada! Vamos cortar um pedaço de assado!”
E o dono da casa empurrava gentilmente os que estavam mais próximos, a fim de formarem a ponta. Após
os primeiros, um tanto recalcitantes o resto entrou sem cerimônia. A mesa grande, posta em diagonal na sala de
jantar estava garridamente repleta de comestíveis e flores. Sapo de massa, arroz, guisados e assados de carne de vaca,
carneiro e leitão, tudo isso intercalado por montes de pão e por uns frascos de vinho, foram o toque de carga para o
pessoal. A mesa tornou-se pequena; foi necessário fazer-se a 2ª e depois 3ª mesa.
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Sentados em silêncio nos longos bancos a moçada pouco conversava olhando as meninas que os espiavam
pelas portas dos quartos adjacentes. Serviam os pratos dois convidados, dos íntimos da casa, postos no meio da mesa,
um fronteiro ao outro, e ambos de pé. Eram apenas servidores, comeriam depois.
Terminada a janta, as mulheres - também pessoas íntimas - que retiravam os pratos já servidos, trouxeram
um pires a cada conviva, com três ou quatro qualidades de doces.
Assim que davam “sumiço” nos doces, um por um, a gaúchada foi se levantando, dando lugar aos que,
de pé esperavam uma vaga.
Durou este almoço cerca de uma hora. Foi levantada a mesa e as raparigas invadiram a sala sentando-se em
bancos e cadeiras, collocadas contra as paredes.
No momento em que todos esperavam a música, foi arrumada uma mesinha sobre um canto.
Era um retardatdário que ainda não tinha jantado. Índio de calma, este. Comeu, a vista de todo aquelle povo,
como se estivesse solito em sua casa. Veio enfim a orchestra: um bandonio, uma clarineta e um violão; e já rompeu num
maxixe. Foi o mesmo que atirar uma lebre a uma matilha de galgos: a rapaziada avançou p’ra as gurias n‘um só tempo, e a
sala ficou cheia de pares, levantando poeira. Raro era a prosa, silenciosa, a maioria saboreava as delícias daquelle tanguinho,
a sua marca predileta, pois, é preciso que se saiba, já passou o tempo dos “shottish” e dos “mazurcas” apenas a valsa ainda
lembra o passado aos velhos que, de quando em quando, esquentam as “mocetas” ao som de uma dellas.
Morrem os últimos ocordes do abandonio, e os pares se desprendem, quase sempre sem um “muito
obrigado”, no lugar em que pararam, rumando cada qual para sua posição anterior, sem ter na generalidade das
vezes, ouvido a voz do seu companheiro de dança. A orchestra não se faz de rogada, enfia marca sobre marca, até o
clarear do dia. Poucos armam a sua barraquinha num canto da sala.
Julho
2 de Julho de 1928
Ao que diz o povo, o “Nenê” não faz nada nesse mundo, sem primeiro consultar a mulher. É tal a confiança e a
consideração, que tem o anãozinho para com a sua cara metade, que nas ocasiões de carnear elle grita para dentro: -
“Ó Ignácia, vem ver a vaquinha que veiu para carnear. Que tal achas?”
- “Tão bonitinha”- diz a esposa - “esta não, coitadinha. Até é uma malvadeza matar um animalzinho destes!”
- “É mesmo, Ignacia. Óia, cumpadre Felippe, vamos soltar a pampinha; amanhã nós trouxemos outra”.
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E a vaca vai p’ra o campo, e o homensinho repete o serviço na manhã seguinte, só para não quebrar a
harmonia do casal. Que par ditoso!
4-6-28
Anda a preocupar grande número de nossos criadores a mortandade que o inverno trouxe aos rebanhos. A
chamada “safra do cedo” - como a cognominou o gaúcho em humorismo desalentador – já attingiu em alguns
estabelecimentos a uma centena de couros, em outros, é menor mas tem na aftosa um terrível auxilar, uma triste
contribuição que fará o campeiro chairar com frequência a sua faca.
Ao preço actual, 100 couros representam nada menos que uma dezena e tanto de contos de réis,
quantia bem sensível ao bolso do fazendeiro.
Que fazer nessa emergência? Recorrer cuidadosamente os campos para não perder os couros, atenuando
assim a perda, e achar o meio de evitar, para o anno próximo, outra mortandade.
Curar o mal não é possível; afasta-lo, quase que corta-lo pela raiz impedindo-lhe o surto annual, isto
sim, é cousa provável. Vejamos, porque morre a rez? Por magra; porque não poude na abundância do pasto e
do clima favorável do verão, armazenar reservas nutritivas capazes de fazere m face ao rigor do inverno com os
seus temporais e sua carência de pasto.
E tudo isso, só porque um ladrão foi furtando-lhe, lenta e continuamente a gordura, a carne e o próprio
sangue que a pobre rez ia creando com a assimilação do capim forquilha e de outras gramíneas.
Este ladrão, causante indireto mas real desta coureação é - afora algumas exceções - o carrapato.
É elle o consumidor das energias que permittiriam a rez passar o inverno. Sugando o sangue, o carrapato
suga a própria vida do bovino. Vejamos um pouco esta sucção, a luz de alguns algarismos: um carrapato adulto, nos
seus 7 dias de parasitismo, chupa diariamente de 20 a 25 centigramas de sangue. Na semana temos de 140 a 175
centigramas, ou uma média de 1,5 grama do líquido vital.
Somme-se a isto uma meia gramma correspondente aos 16 dias nos quaes o parasito, em estado jovem já é
hóspede da pobre rez, e teremos para cada um destes carrapatinhos - e são tantos - o consumo de 2 grammas de
sangue. Em o animal com regular número de carrapatos, attingem estes sugadores até 1000 indivíduos, todos elles
dando conta das suas 2 grammas. Tomando 500 parasitas, representarão elles nada mais do que uma diminuição de 1
litro na quantidade de sangue da rez, desfalque este já mais do que sufficiente para enfraquece-la, pondo-a em
condições desvantajosas na lucta contra o inverno, em que o frio, requerendo maior dispêndio de energia calorífera,
mata as pastagens em que o animal poderia encontrar recursos para enfrentar aquelle aumento nos seus gastos de
energia, producto da combustão dos alimentos.
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Os algarismos acima, apanhados em grande média e a título de exemplificacão, mostram o quanto se
prejudicam os criadores banhando as suas rezes somente depois de as verem carregadas dos terríveis ácaros, no
momento em que elles já estavam prestes a deixarem o seu hospedeiro. O banho ahi, vem apenas apressar um pouco a
queda natural dos carrapatos. O mal já estava consumado.
Na applicação tardia dos banhos é que está ao nosso ver, a causa desta “coureação” desmedida que vem
lesando muitos dos nossos criadores. Rez gorda, não teme o inverno. Coutela para o anno seguinte e evitar-se-à a
safra do cedo.
CARREIRAS
Segunda-feira, 9-7-28
Fui hontem às carreiras, no outro lado do Vacaquá. Umas 80 pessoas em torno dos trilhos espichados p or
altos e baixos. Cancha atôa. Matungada; apenas um ou outro cavallo bom. O cervo do Raul foi o respeitado.
“Tirando o zaino do Tarumã corro o resto”, gritou sem reserva a Luiz. Um topou; desencilharam e puzeram
os cavallos a saga, para dar umas bocadas. Na hora de enfrenar, o dono do zaino allegou que o verrnelho do Luiz
levaria a vantagern de 5 Kg.
“Por isso não se incommode - fez o Luiz - lhe dou luz no fim do rastro”.
Com esta o homenzinho assustou-se e abriu a carreira. E o vermelho ganhou a carreira, e não foi só esta. Já
antes um mal entendido, a propósito de uma carreirita, entre o Luiz e um bulicheiro torto, aquelle disse-lhe,
apontando a égua bonita do torto:
“Me faça o bem; quando a sua égua sarar me mande um bilhetinho lá em casa, e eu virei para nós
experimenta-la”. E deu de rédea enquanto que o outro, bicho mui alarife, resmungava, afrouxando a tirão:
“E si ella não sarar, não corremos nunca”.
A égua estava sã. O medo é cousa séria; é bicho de pata, deixa sempre a vergonha para trás.
Havia muito cavallito encordoado, mas o povo está sestroso para correr. A preocupação de lograr o
adversário é geral e dahi o reduzido número de carreiras realizadas.
Nestes últimos dias o meu diário tem se ocupado de tudo, menos de minha própria vida, única razão de ser
do seu existir. Parece tal coisa um contrasenso, mas tem o seu fundamento. Não é o homem o reflexo do meio em que
vive? Logo, nada mais natural que elle, quando observado, mostre o ambiente em que decorre a sua existência.
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...Recordo quase que diariamente o meu romance das margens do Uruguay. Espero, por elle, tirar a conclusão da
controvérsia nascida numa roda de companheiros do km 9 (seria a Granja Rapadura, república em que moravam os
estudantes de Agronomia, creio que localizada no km 9 da estrada que liga Porto Alegre a Viamão - marcação daquela
época ) Será o matrimônio, quando vivido em harmonia, o producto de mútuo empenho em viverem os cônjuges de accordo,
ou é a consequência natural de duas pessoas feitas uma para a outra, e que se encontraram a despeito da vastidão da orbe?
A prevalecer esta hypothese - aceita por muitos, que pensam haver no mundo uma mulher destinada, desde o berço, para
cada homem - os consórcios cá deste rincão da campanha riograndense, realizados na maioria entre parentes e vizinhos,
serão, em grande número, artificiaes, pode-se dizer; isto é, effectuados pela conveniência de mudar de estado que sente todo
o indíviduo em certa época da vida. Nestes casos, não foi o encantro casual do seu complemento, o causante do enlace, mas
sim a necessidade, financeira ou physica, de constituir um lar, de descansar.
A favor da primeira interpretação, vem o exemplo dos que se prendem por um compromisso e esperam
pacientemente, annos a fio, a possibilidade de concretiza-lo na Igreja.
Julho, 18
Fui ao baile no bolicho do Lodário. Apezar da chuva a concorrência não foi má: Uma gauchinha desfez a má
impressão que até então me causaram as filhas dos que moram em rancho de chão. As expressões “nóis fumos, nó is
fiquemos” perderam um pouco da grande piedade que a princípio me causavam. Dizem que o hábito é uma segunda
natureza. A Praxedes, tão conhecida do Raul e de quem o povo não perdoa os pecadinhos, estava só; o namorado não viera.
Já pelo abandono em que a deixavam os rapazes, já por ser a única “gurya do povo” fiz-lhe uma carguinha;
discreta na apparência, mas séria no fundo. Dançamos juntos demais; o povo notou...mas que importa, não fui eu o
primeiro... Ella é boa. , Mas a sala era pequena e tinha tanta gente, tanta... É sempre assim, a vida prende o mortal nas
conveniências sociais... e offerece-lhe, irônica, a maçã.
“Não acredito que me leves contigo daqui”- fez ella, num sumiço de voz, muito meigo, d’aquelles de
virar a cabeça a um santo de pau.
Sahi do baile antes de terminar. O que me restava fazer n‘aquella sala? Pensei tolamente no verso: “eu
queria, ella fugia...” Sucedia-me o contrário...
Ah! Dinheiro, dinheiro, porque não nasci teu afilhado!!!
19 de Julho
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Recebi ontem uma cartinha do Zé Carlos. Avivou-me ainda mais as recordações da vida alegre do km 9
(Granja Rapadura ?), já evocadas momentos antes, pelo jornal em uma notícia que o pessoal da Agronomia offerecera
aos acadêmicos cariocas um churrasco no I.B.M. Ao terminar de ler aquellas linhas galhofeiras - fiel retrato do seu
autor - senti como que um vácuo em torno de mim. Parecia-me estar deslocado, fora do meu ambiente, tal qual um
peixe em terra secca. Os meus vizinhos, todos recém conhecidos, são legítimos productos do meio, offerecendo assim
um vero contraste com a minha pessoa, simples, mas com outros gostos, outros desejos. E com ironia amarga que
recordo a phrase tão commum entre nós, nas granjas da “Egatéa”.
“É uma troca de idéias”.
Trocar idéias! Que vontade tenho de faze-lo. Mas qual! Aqui é quase impossível, a não ser dentro da bitola dos
causos genuinamente gaúchos, dictos à roda do fogo. Discutir politica, communismo, Monteiro Lobato e V.Netto, só qué
vivesse ao lado de um dos nossos... E por que não acontecerá isso? Depois que se obter dinheiro, uma combinaçãozinha
talvez nos fizesse lindeiros, a mim e o Bernardes, p. ex.. Havia de ser lindo! Um oásis de sofisticação mental neste deserto de
medíocres. Quem sabe se não realizará este projecto? Ao menos não idealizado durante a vida acadêmica...
O Moralista
Como todas as patroas de nossa campanha, a senhora do coronel tambem criou uma rapariguinha. Vindo,
não sei d’onde, a pequena cresceu bonito e bem conversada, acompanhando sempre a patroa, na cidade e na estância.
Um dia, rebenta uma nova formidável. A cozinheira velha descobriu que a pequena estava grávida. Foi
um barulho dos infernos. O coronel indignou-se; fez vir a culpada a sua presença e, em voz tonitroante, bradou-
lhe a extensão do falta.
- Uma vergonha! Mas isso não fica assim. Vamos, diz o nome do patife, que o obrigarei a reparar o crime.
Anda, fala... E a sua autoridade de sub-intendente local já via o culpado preso, esperando o juiz que os casaria no dia
seguinte. -“Fala desavergonhada. Na minha casa, quem diria; uma desmoralização dessas! Mas eu desaffrontarei a
sociedade dessa mancha! Não seja eu mais o chefe desses pagos, si não souber por as famílias a salvo dos ataques
libidinosos desses violadores dos lares”.
Satisfeito com esta “tirada” o coronel parou, e a rapariga, levantando a cabeça: “Não culpe ninguém. Se
assim estou, foi o seu filho o culpado.”
Um silêncio invadiu a sala. O coronel empalideceu; mordia os lábios. A sua esposa em lágrimas, soluçou:
- “Criada com tanto mimo;... e eu esperava que ella fizesse um bom casamento...”
E ficou tudo por isso mesmo...
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A lei, é uma rede que só caça bicho pequeno...
Sabbado. 21 de Julho
Morreu o Chico Arlequim. Esta nova, uma semana depois do trágico suicídio do seu Gabyto, tornou-se o
assumpto obrigatório destes dias funestos. Aos poucos, vem chegando as minúcias do assassinato; d’espacito, pela
boca de um e de outro viandante. O primeiro que aqui aportou foi o negrinho do bolicho.
“O seu Chico Arlequim ia indo pela estrada quando o inspector, que sahira para alcançá-lo, pregou-lhe o
grito e deu-lhe 4 tiros, um em riba do outro”...
- “Bárbaro”, fez um dos ouvintes.
- “Foi bem assim. Quando o seu Chico se deu conta, já estava morto”, continuou o negrinho.
Sorri da pegada do moleque. A notícia mais recente deu-ma o seu Antoninho: - “Foram dois homens, os
assassinos, e o corpo da víctima passou a tarde de hontem na Intendência, onde foi examinado por 4 médicos.
Mas como todo o mal sempre beneficia alguém, a morte do cunhado do Lodário resultou algo ao João.
Chamado pela Da. Teta para dormir no bolicho - que ficou só com as mulheres, porquanto o Lodário fora assistir à
irmã - o João voltou alegre na madrugada seguinte. Tinham-lhe tratado como rico; até doce lhe deram. E ria alegre,
mostrando a dentadura branca no lusco-fusco da sua pelle de mulato...
-Um baile foi transferido...
Segunda -23 de Junho
Hoje cedo, sahiamos para o campo quando o Florêncio chegou. Vinha meio triste e não quis apeiar.
Conversamos pois a cavallo. Da parte do velho Luiz vinha convidar-nos para o enterro de uma meninazinha que elles
criavam, e pedir-me o favor de ir retratar a defunta. Surpreso, acedi, indagando a hora da cerimônia. Despedimo-nos
e elle se foi a tirar licença do inspetor.
Mal elle sahiu, entrei a pensar. Retrato de defunto, dentro de casa, é meio diffícil para quem está apenas
habituado a tirar instantâneo. Decididamente, não vou de manhã. Irei a hora do enterro e apresentarei a desculpa de
estar sem pellícula. O Raul está de viagem para o outro lado; convidei-o - Vamos, Raul?
- “Qual! Eu desconfio que esta filha de criação é uma negrinha. Si ainda fosse a Luizinha...”
- “Deixa de agouro”, bradei-lhe – “Isto de certo pode ser contado a ella, não?”
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8 horas da noite
O Bragança ao ser perguntado por um colega, quando voltava de um enterro, que tal tinha estado a
cerimônia fúnebre, respondeu cynicamente.
- “Esteve bonzinho”.
Como elle, poderia dizer hoje o mesmo. Quando entrei na sala a Luizinha e outras moças circundavam o corpinho
lindamente enfeitado com palmas de Sta. Rita, num choro convulsivo. Em volta, algumas velhas apresentavam os olhos
vermelhos; e os homens pelos cantos da salinha tinham a physionomia compungida. Alguns até traziam a barba por fazer,
ostentando maior pezar. Ganhei rápido em um canto, cumprimentei 2 ou 3 conhecidos e puz-me a olhar o scenário. A
pobrezinha, 3 anos de idade, estava de unhas roxas, boquinha aberta, mostrando a alvura dos dentinhos...
- “Seu Paulo...” voltei-me; era o seu “Mita”, com um Kodak aberto.
“Já tirei 3 retratos mas eu tenho pouca prática, assim era bom que o sr. tirasse o resto.
Reluctando agarrei a machina; o homem batera 3 chapas, dentro da sala, que tinha apenas uma porta para
entrada de luz, usando a graduação 50 por 22. Vi que não ia sahir nada, pelo que dispuz-me a auxilia-los, apesar da
nenhuma prática. Tirei 2 dentro da casa com 10 por 7,7. Si tiver sorte... me firmarei como retratista. Prevendo um
insucesso preparei terreno junto aos donos da casa.
Dentro do caixão a morta continuava, pedi para por na rua para ser photografada. O vento forte
desmanchava-nos o cabello. Fallaram em recolher o caixãzinho, para as despedidas.
- “Não, que esperança; depois de sahir, o caixão não deve mais entrar em casa, não presta”.
Vários apoiaram essas palavras, e a innocente ficou no vento, onde recebeu os últimos adeuses dos que não a
acompanhariam ao cemitério do Tarumã.
Foi uma scena tocante. Velhas e moças, cada uma por sua vez, com os olhos cheios de lágrimas,
approximavam-se da defunta, beijando-a no rosto, nas mãozinhas cruzadas no peito, como quem reza, e na sola dos
sapatinhos, já usados. Vendo isso a pobre Luizinha chorava a sua filhinha de criação. Uma mulher poz um pacote
dentro do caixão (até hoje não sei o que continha o tal pacote), fecharam-no e nós o colocamos no chão da aranha, em
que tomaram assenro a Luiza e a irmã casada. E o préstito se poz em marcha. O Nézinho de ponteiro; uma meia
dúzia de moças a cavallo atraz do carrinho, e o resto dos convidados formando a retaguarda em grupos de 2 a 4
cavalheiros, que conversavam de tudo, dos negócios de gado aos namoros e bailes. Até carreiras acertavam!
28 de Julho de 1928
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Amanheceu chuvendo. Logo hoje, sabbado, véspera da festa dos Maragatos no outro lado. E a animação era
grande; o povo de xá ia agrupado sob uma bandeira colorada. No bolicho do Lodário se apeou um vivente; queria um
lenço de pescoço, encarnado. Não havia. Mas o homem não se arreliou, tinha precisão do lenço symbolico.
- “Não hai uma fazenda qualquer ahi, que seja bem vermelha?”
- “Bueno, me corte um pedaço que dê p’ra um lenço.”
Cortado o panno, o gaúcho atou-o no pescoco, alçou a perna e sahiu “cajo”, escaramuçando o cavallo...
Partido que tem gente assim, não pode deixar de vencer. É só dar-lhe cacha limpa dos “tacurutos” das trapaças.
Não sei o que fazer; jornais, li-os todos; livros, são muito conhecidos, falta-lhes os encantos das cousas novas.
Escrever? mas a escripta é demais lenta para acompanhar o pensamento, que é tão rápido. Sahiria um pedaço de cada
idéia, de cada sonho. Tenho de ir ao Rosário buscar dinheiro para pagar as vacas compradas ao Aristides. E a
preguiça é tanta!... Vou dar um bordo pelo galpão.
Agosto
Agosto. Sabbado, 4
Amanheceu fud. Este sabbado. Contudo os que pousavam aqui - em rumo as carreiras - pouco caso fizeram
do tempo. Mandaram roda, de poncho enfiado.
...Estou me recordando da minha instalação no Tarumã. Que impressão desagradável me causou esta região
com o seu atraso, com os seus escândalos amorosos, aos quatro ventos propalados. Hoje tudo mudou; não que se
transformasse o meu modo de ver, mas porque adaptei-me à nova vida. É uma aclimatação lenta, em que o meu eu
reage numa lucta da qual sahirá vencedor, pois um pressentimento me diz que cedo ou tarde mudar-me-ei
Adeus preconceitos sociaes...
Muitas vezes, ultrapassando os seus direitos pessoaes, o homem entra illeso no cyclo das atribuições
collectivas. O caso deste velhinho, é um exemplo. Paupérrimo, vivendo em miserável rancho, na companhia de uma
filha, única restante da dúzia que lhe dera a defunta mulher, o ancião arrasta a vida simples e conhecida dos gaúchos
alquebrados, vida sombria, sem brilho, a furta o sol das liberalidades do “patrão velho”.
A maledicencia humana não poupou o ranchinho coberto de “colla de zorro”. Tomou alli uns amargos bem
mais doces que as amarguradas queixas do tio Bastião, e sahiu falando do incesto que commettiam os seus dois
moradores. Espalhou-se, ferino, o boato; e não faltou alguns que abordassem o Bastião, numas carreiras:
- “Como é isso, tio velho, o povo já está falando...”
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E o pae que parecia tão desnaturado aos olhos do vulgo, enxergando perversão num organismo decrépito
que mostrava claramente ser já um túmulo das paixões amorosas, respondeu com tristeza e desalento:
- “É… mas a gente é pobre e faz tanto frio agora que inté” dá pena vê a pobrezinha tremer... Assim a
gente se aquece um pouco...”
Domingo. 5 de Agosto
O sol apareceu emponchado numas nuvens sombrias. Está aluado. As coxilhas tapadas de um nevoeiro
azulado, mui tênue, como presuntos na fumaça do galpão. Até a figueira está suffocada. Ao redor do fogo a gaúchada
toma matte, commentando as carreiras de hontem.
O velho Sibico era um dos julgadores do 1° laco. Mão aberta no rosto e cavallo pela rédea, o velhinho
esperava agachado, a passagem dos parelheiros: a vermelhinha do Aniceto com um bagual douradilho dos Silveira .
Largaram bem, mas o cavallo, mui bruto, se abriu antes dos 200 m, correndo direto ao Sibico. O corredor
gritou-lhe não julgasse. Surdo, o velhinho permaneceu alheio ao perigo. O povo correu lá do partidor, mas chegou
tarde. Foi aquelle choque; e o velhinho ficou deitado ali mesmo e o bagual rodou atirando longe o corredor. Deitando
sangue, o Sibico foi logo attendido, não era nada, não deu p’ra matar e cá se retirou elle para o galpão do bolicho com
o corpo doído e estancando o sangue do nariz. O cavallo porem permanecia inmóvel; em volta o povo discutia. Com a
rodada e a força que trazia, o animal virara uma cambalhota, quebrando o pescoço.
A parceria, cavalheira, devolveu o dinheiro da parada. Estava acostumada a ganhar no trilho e não se
prevalecendo de um desastre. Era de lei isto sim, mas não queriam ... a vermelha já lhes tinha dado tanto dinheiro...
Um piá balanceou a cabeça, olhando p’ra o cavallo morto: “É pena, ia ser corredor?”
Passou-se o domingo em grande monotonia. Só pensei em ir às carreiras, mas o pavor que tenho ao corredor
do Libório fez-me desistir de tal. Dei uma volta no matto e não gastei um só cartucho. Que azar! Eu, triste, e o
negrinho, Moreno, pellado que nem colla de pinto, como elle mesmo diz, riu o quanto deu o dia.
São 20 ½ horas. Escrevo para matar o tempo, visto não ter nada de novo para ler. É a crise do livro. O último
que li - “Como eu vi a França” de Carlos Santos – deixou-me a idéia de ir tambem a Europa. Seria delicioso veranear
em Biarritz, esta praiazinha franceza que motivou o melhor trecho do dito livro. Mas qual! Falta a mola capaz de
lançar um vivente dos pampas às plagas europeas: o dinheiro. Será isto ambição demasiada ou o desejo natural,
suscitado pela cultura, naquelle que já tem um pouco? Seja o que for, quem, no mundo, não tem a sua ambiçãozinha?
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O próprio Moreno, quando pequeno, gostava tanto dos animaes pequenos, de tamanho abai xo do
normal, que cortava, no melhor da boa fé as pernas dos borregos, separando -as com cuidado pelas junctas, a
fim de que ficassem petiços.
O amor é o cio humano, educado pela humanidade; ahi é que está a differença do seu irmão irracional. Mas
o atavismo traz-nos sempre o primitivo, que hoje chamamos de “sensualismo brutal” e outros nomes de igual jaez.
Carta
Foi a tua belleza, repassada de um encanto especial que te faz lindamente meiga, um typo rosa- violeta, que
despertou na minha mocidade sôfrega de affectos, a ousadia de escrever estas linhas. Todo o ser humano sente - cedo
ou tarde - a necessidade de dedicar-se a alguém; de ter o seu ídolo terrestre, em cujo altar sacrifique os seus
pensamentos e as suas ações. Desta regra, o destino não exclui ninguém: todos amam; para uns, o objetivo da sua
adoração é um semelhante, para outros é a imagem de um santo ou de Deus, mas a essência é a mesma. É o mesmo
desejo imperioso de dedicarmos a nossa vida que nos faz escravos voluntários de um amor. E a minha sina - numa
ironia cruel – ergueu-me o altar longe, bem longe, nesta volta ao Uruguay, em que estive o tempo justamente
necessário para te conhecer e ouvir a tua voz. E foi só. Impassível, o deus Azar lançou-me neste pampa aonde não
chega o teu olhar, mas em que percebo o incenso que queimam a teus pés, adoradores diversos. E isto tudo, sem que
saibas ao menos que a teu culto já tem um adepto, um sacerdote expontaneo; um espírito que, pensando em yter
encontrado em ti a companheira para atravessar o mar do mundo, trabalha quase desesperado, esperando que
fortuna venha ajudar-lhe a surgir à tua presenca, antes que outro o faça, tornando-te inacessível. É um suplício ver os
dias passarem, trazendo o dia em que os jornaes noticiem o teu enlace, o roubo do objecto que a consciência diz-me
estar destinado a mim. Que fazer! Si não me julgo com direitos a solicitar-te uma attenção, um compromisso, si não
tenho recursos para tal!?...
Para isto, seria indispensável, poder eu construir um canteiro tão lindo como aquelle em que foste criada.
Então sim, iria a ti: “Vem, tudo é teu, nada te faltará” Como eu seria ditoso, ao falar assim...sonhos...
Para que sonhar? A riqueza custa a vir e os noivos são tantos; em qualquer volta se topa com um.
Mas a esperança não me foge, eu aproveito uma hora de folga, para desabafar-me contigo, neste papel, bem
mais feliz que eu, pois vae as tuas mãos.
Aquelle que julga ter nascido para guiar-te ao porto da felicidade.
Terça-feira. 7 de Agosto.
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Como muita gente boa, não acredito em sonhos. Mas tem se dado ultimamente coincidências tão estranhas,
que não podem passar sem comentários. Nas vésperas do espancamento do Jõao pelo seu amigo Capivara, a Chininha
sonhara com uma mulher, muito sua conhecida, que agredia-a raivosa, sem fazer caso da amizade existente entre
ellas e que a Chininha allegava constantemente. Ainda nesta noite, o próprio João sonhara ter sido atacado por um
touro brabo e, para fugir, saltava de um para o outro lado da cerca, tal qual se deu no dia seguinte, em que chegou a
rasgar a capa no arame farpado. Outra coincidência, boa é verdade: ante hontem sonhei com uma carta vinda dos
parentes de Passo Fundo (Annes); horas depois recebe, o Raul, uma carta do Carlos noticiando a sua chegada e que
faria a viagem juncto com a Eloah até Sta. Maria, visto ella seguir para Passo Fundo... Para não existir a allegação de
que esses acasos só são notados depois do facto realizado e que deixamos passar milhares de sonhos para nos admirar
de uma mera coincidência, registro aqui hoje, os dois sonhos seguintes tidos nessa noite, de 6 para 7, por mim e pela
Chininha - a adivinha do Tarumã. Sonhei que um enterro passava pela estrada que atravessa o potreiro aqui da
frente. Montado no meu tordilho fui-lhe assistir ao desfile. Mulatas a pé, acompanhavam o caixão... Logo da minha
chegada, uma das velhas iniciou um choro, em alta voz, no que foi acompanhada por todos os presentes. Cavalleiros
formavam a retaguarda do féretro. Recordo-me ainda, de ter tomado uma feição triste, fazendo coro ao sentimento geral.
Há pouco estava eu cortando uns pus de lenha, quando a Chininha surpreendeu-me, com a narração
seguinte: -“Sonhei, tio Paulo, que, lá do bolicho, via velando um homem aqui em casa. Enxergava tão bem o defunto
encima da mesa, as vellas se mexendo com o vento que vinha de cá - e mostrou o sul -. Não pude conhecer o morto,
mas parecia-me “Gonha” bolicheiro no Sobradinho. Havia muita gente chorando. Quase tudo mulatos, que eu não
conhecia, mas que eu lhes dizia adeus. Contei o sonho ao Raul antes de elle sahir.
E o povo diz que sonhar com negro ou gente trigueira é de mau agouro.
Ahi fica o registro; vejamos o futuro.
Acrescente-se a isto, que a chaleira do galpão, hontem à noite, virou e, hoje pela manhã, tornou a cahir, mas
foi suspensa a tempo pelo Raul que a calçou com o pé.
À hora que comecei estas notas, 2 pica paus vieram cavocar o pau secco da mangueira dos
cavallos...Sem commentários.
Terça, 8
O patrão sol ainda não appareceu no galpão do mundo. São 8 horas e a peonada das coxilhas, preguiçosa,
dorme enrolada no poncho da cerração. O guaypéca do galpão se enroscou entre dois gaúchos...
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Tenho uma vacca para campera... mas não se enxerga meia quadra em roda...Este Agosto sahiu de um fim
de Julho frio de renguear cusco, enfumaçado neste nevoeiro, que parece uma mortalha gigante, reaffirmando, todas
as manhãs, o azar que o povo vê neste mez, funesto aos casamentos, as mudanças, etc...
7 horas da noite
A estância está algo alvorotada; a Chininha lavou a casa, fez um doce; tudo porque esperamos o Carlos, o
capataz do Tarumã. Não deve demorar; a cada momento penso ouvir a cachorrada latir. Que novidades trará?
Abraços dos amigos e parentes; nóticias do Internacional e, sobretudo, o assumpto pessoal da Eloah.
Amando, é natural que dê vazão às impressões fresquinhas das horas passadas ao lado da eleita, e das
bondades da velha, interessada em não perder o futuro genro. Um estancieiro, moço e bem educado, é uma “papito”
para o povo da cidade, ainda mais tendo um comportamento um tanto família. Chega, que assim já é ter má fé com
quem só pensa, agindo deste modo, na felicidade de alguém, muito embora este alguem seja uma filha. Sempre é uma
boa acção; merece pois louvores. Para que falar mal?...
-Assim, só como o carancho,
Que do alto da tronqueira,
Passa o dia dizendo mal
Do boi, da vacca e da terneira.
11 de Agosto de 1928
O Ataliba Silveira occupa particularmente a attenção do povo. Um tanto neurasthenico, tendo “uma
systema sua” como dizem os que o conhecem, vive isolado, não fazendo visitas, embora receba hospitaleiro, os que vão
à sua casa, outro motivo de espanto para os seus vizinhos, pois além de grande, dotado de boas de vastas peças
diverge muito dos estâncias cá da zona, sempre faltas de conforto, verdadeiros ranchos de alvenari a. Fomos hontem
lá, o homem estava de boa volta, levou-nos à sala, um aposento grande com um “bureau” e três cadeiras de pau. Sobre
a escrevaninha, alguns livros de contabilidade e homeophatia. Num canto, havia ainda uma mala e, em cima a
Fazenda Moderna e vários números da “A Estância”. Pareceu-me estudioso.
Chega de histórias sobre o Ataliba, que o mais é ser indiscreto, bisbilhoteiro...
Domingo. 12 de Agosto
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O dia hoje foi danado; um pampeiro cruel galopeou o dia inteiro nesta frente desabrigada e plana,
obrigando o povo a conservar-se em casa. Fui até o matto, voltei com os cartuchos intactos... um capincho atirou-se à
água, mas gritou assustado... um passarinho azul com um topete encarnado e branco... só isto.
Si chegar a ser um estancieiro rico, trarei um empalhador a fim de fazer um museu de aves. Será lindo
e de alto valor scientífico. Porjectos....
Mas, por ventura todas as realizações actuaes, que levam o homem à glória, não são o resultado da seleção
feita entre milhares de projectos? Sobre uma mocidade ergue-se uma pátria.
O Rio Grande entrou em um novo cyclo de progresso pela mão forte e pelo cérebro novo da geração actual, a
dos “jovens turcos”. Creio mesmo que a preocupação máxima dos educadores modernos, é dar à mocidade uma
precoce noção de responsabilidade. Quanto mais cedo for, um homem, útil aos seus contemporâneos, maior lucro terá
a sua pátria. Não só deixará de ser um ônus ao bolso de alguém, como produzirá um excedente para a melhora de sua
vida, e que se reflectirá vantajosamente na riqueza nacional.
Terça. 14 de Agosto
Estive no Rosário hontem, atrás de uns cobres para pagar uma bois mansos comprados. Si o trem, na ida
esteve bom, apezar de meio vazio, pois viajei com o Delmar, na volta deu-me uma viagem rápida, tantos eram os
conhecidos de boa prosa. Conversando com o Delmar, iniciei por sport, um flirt com a prima delle que, juntamente
com a irmã do advogado, ia a Sta. Maria. Feia... uma “Oribe”, como diria o Simões, o “philóis”. (folósofo?)
À tarde, o Sr. Moysés Vianna, encarregado dos negócios do fallecido Gabyto, fez-me ver a necessidade de ser
vendido o Tarumâ única maneira de serem pagos os credores daquelle finado, e a conveniência da compra ser feita
pelo Papae. No Guará onde eaperava-me a Papae, tocou elle novamente no assumpto, durante o curto minuto que
demora o trem naquella estação. Com o dispêndio de 60 contos já e o resto a prazo, estará a compra feita. O Papae, a
príncipio varreu a possibilidade de fazer o negocio; ao opitar o trem, porém, deixou antever o interesse que lhe
despertava o caso. Quem sabe? Talvez saia a compra. Por várias vezes, antes da morte trágica do Gabyto, o povo já
tocara no assumpto, admittindo a possibilidade de virmos a ficar donos do Tarumã. É...“vox populi...” Esperemos.
Quarta. 15 de Agosto
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Como o dia de hontem fosse horrível, não deixei unir bois à tarde. Assim a pionada ficou pelo galpão,
fazendo faxina uns, outros a cortar umas conjuntas do couro do pampa velho que morreu magro e sarnoso, enquanto
que nós tomávamos matte, mantendo o assumpto.
De cá para lá e de lá para cá, veio à scena o tio Victor, sogro do seu Dico. Surgiu como patrono de
algumas mentiras. Eis uma:
“D’uma feita eu (o tio Victor), na porteira da mangueira contava, de noite, uma tropa que nós levávamos
p’ra S. Gabriel. A noite era feia que era negocio; ameaçando tormenta. Cahiram 5 raios; quando vinha o clarão, eu
balanceava o cavallo, e o raio cahia no meu costado; e eu seguia contando igual...
Anoitece, marca o relógio 6h20. A tarde se despede triste, tão triste como as minhas idéias agora. Sinto uma
vontade de esporear-me: ter uma casa bonita e cheia de graça, ser abastado e conceituado, sempre no meio do
trabalho rural. Não quero deitar-me sobre um capital dourado, mas pisar o leito áspero do trabalho acompanhando-
o, na marcha para o progresso. Não é a demora que me acabrunha, mas sim, o facto de marchar parallelo àquella
estrada que eu escolhi, entre as mil que conduzem o homem ao bem estar; aquella estrada que só eu sei...
16 de Agosto. 7 horas da noite
Reli o que escrevi hontem, e durante a leitura me lembrei de escrever ao Xavier e Da. Inah ...(desta, a
lembrança é indevida). Como não posso palestrar, ver, ambos, tomo a resolução de escrever ao Xavier pois o que a
ella... siquer imaginar ella pode, que eu ponha-lhe o nome aqui. - Assim vamos ao Xavier. Que contraste! Do Perna-
Torta à filha do rio Uruguay!...
25 de Agosto
Finda o mez. A secca é grande, obrigando os arados a suspenderem a sua faina de estragarem campo.
O Quirino trouxe uma cruzeira do cercado. Irá fazer companhia à que está na gaiola e que attenção
desperta no povo que vae ao ponto de aportar aqui só para vê-la. Um velhinho, estando aqui durante a nossa
ausência, contemplou o bicho e fez para a piôa:
“Qual, siá Chininha, estes meninos podem ser muito bons, mas depois que agarraram este bicho,
hum... não há que se fiar.”
Estamos em negócio para comprarmos o Tarumã aos herdeiros do Gabito. Não me agrada o campo, mas as
condições do compra são boas: pequena entrada à vista, e prazo longo. Demais 13:000$ com casa e banheiro. Si
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conseguimos, liquidarmos tudo até findar-se o arrendamento, teremos quase duplicado o capital aos 6 annos: de 200
a 380 contos. Correndo bem é provável que se atinja a casa dos 400...
A propósito vou fazer um inventário do estância.
Reli a carta escripta no dia 5. Algo romântica, não me desagradou de um todo, talvez por ser de casa.
26 de Agosto
Domingo lindo, convidando a gente a sahir. Um arsinho fresco estimula, aponta uma troteada. E eu olho para o
mouro que pasta tranquilo na frente da Estância, brevemente de propriedade dos meninos do Tarumã.
Segunda. 27 de Agosto
Sempre sahi; fui até a casa do Dotte. Apeei às 11 horas. Ninguém appareceu. Completamente tapera. Rodeei
o rancho; uns enxertos de parreira chamaram-me a attenção; eram mudas de moscatel violeta, - Moscatel, perral de...-
e mais duas variedades. Cortei 3 olhos da primeira e 4 da segunda. Por serem vigorosas o desfalque foi insignificante,
não será apercebido.
Hoje enxertei-as em Izabel, à ingleza. Na falta de estufa, estratifiquei-os em areia, com uma camada de
estrume por cima, a guisa de aquecedor.
Esperemos os resultados. Tenho fé.
Fiz também, ante-hontem, 2 enxertos na vergamoteira e outros na figueira. Enxertei-os de garfo. Como
emplastro fabriquei uma mesela de breu-graxa-esterco e um pouco de alcatrão. Visto ter sahido meio molle, endurei-o
com farinha de mandioca. Não sahiu bom; bastante pegajoso e com o cheiro desagradável do piche. Utilizei-o assim
mesmo. Entretanto preparei outro: breu-graxa-esterco; este tem boa apparencia. A mistura do breu com a graxa, ao
esfriar separa-se em duas camadas, indo o breu para o fundo. Talvez que mexendo-a enquanto esfrie de algum resultado.
São 7 horas da noite e o calor é forte. Em Agosto; mas também a secca é forte; há mez e meio que não chove.
O Moreno, justificando o facto de estarem algumas éguas excessivamente barrigudas, como se estivessem
promptas a darem cria, diz que estes animaes foram muito judiados na doma, época em que estariam cobertas.
Maltratadas, morreram-lhes os potrilhos na “barriga” e dahi a razão de não adelgaçarem.
E termina, justificando:
“A minha tordilha faz cinco annos que está prenhe. O potrilho está morto e ella não há meio de botá -lo
para fora. Até fico feio.”
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31 de Agosto
Último dia do mez, e sexta-feira. Como já passou o mez funesto, pouco importa aos crentes, que a
despedida seja em dia aziado.
Fizemos hontem a marcação. Poucos terneiros, 73. E foram muitos, dada a venda feita no verão, em que 300
e tantos marcharam p’ra o frigorífico.
O trabalho de hontem foi um parenthesis de lida alegre na monotonia do inverno. O primeiro grito forte na
madrugada fresca foi bem a alvorada da primavera do campo. Está iniciado o novo anno rural, 1928-1929.
Uma boa chuva precedera-o, verdejando os campos amarellos de palha.
Setembro
Quarta. Setembro, 5.
Chove e chove muito. É o segundo dia de chuva continua: 3 e 5. E talvez continua pois que o povo diz ser o
dia 5 o indicativo do que será o mez. Demais a mais, de mil annos para cá as primaveras tem entrado chuvosas. E
ainda temos que romper um resto de terra, fechar a chácara, gradeá-la e finalmente plantá-la.
Ando aborrecido; sinto falta de um serviço capaz de me ocupar as horas do dia; a noite, sem os cinemas e as
palestras, é assaz sufficiente para 2 horas de leitura.
Continuando as cousas no pé em que estão, para o anno farei outra plantação maior que a deste anno, e
cuja extensão calculo ser de 20 quadras, mais ou menos. Talvez assim passe mais ligeiro nossa vida da campanha, cujo
único encanto está - para o homem rural, bem entendido - na satisfação de ter cumprido, dia a dia, religiosamente, a
tarefa que iniciou. De fato, ao se impor um trabalho qualquer, de lavoura ou de campo, o morador da campanha,
assume instinctivamente, juncto a seus pares, a obrigação de envidar todos os esforços para leva-la a cabo. Elle fica
obrigado a cumpri-la; é um desdouro para a sua não effectivação saber a interferência de uma natureza hostil, como
uma secca forte, uma praga de gafanhotos, etc...
Vou attender o meu tordilho, dar-lhe aveia.
Hontem respondi ao Bernardes.
Quinta. 6 de Setembro
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A idéia da carta - pg .120 deste diário - voltou-me à mente durante o dia de hoje, levando-me a desabafar
meu borrão, em outra missiva idêntica àquella. Reli-a e feitos alguns retoques senti ganas de manda-la. Fiquei na
dúvida, será ridículo, embora anonyma? Não sei. Quer me parecer, contudo, que ella talvez contribuísse, agindo como
revelação, para o que tanto desejo. Entretanto, resolvo deixar as cousas neste pé, dando assim tempo ao tempo: não há
fructo bom sem um período mais ou menos longo de maturação.
É noite e a Chininha não demora a vir dizer-me: Tio Paulo, a comida ta na mesa. Ei-la, ahi. Já vou.
10-9-28
O dia amanheceu com anuncios de chuva pelo ar. Sahi assim mesmo a ver as 400 reses di filhote, mas voltei,
meio caminho andado, que a água vinha perto. E veio, mansa, “molhadeira”.
Sexta fui ao Rosário. Uma empregada do correio, feiazinha, conheceu-me, disse que desde P. Alegre, da
Confeitaria Central. Fiquei na mesma... e conversamos um pouco. E de San t’Anna, aonde vai seguido a passeio e
offereceu-se para avisar-me quando for da sua próxima àquella cidade. Estupefacto, acceitei o que pensará ella?
Através dum “guichet” pouca psychologia há, contudo, não cheira a namoro innocente.
Quinta, 13 de Setembro
Nova chuva impediu-nos de ultimarmos a cerca do cercadinho aqui da frente. Este Setembro veiu húmido a
valer. Quase que não nos deixa trabalhar. E há tanta cousa que fazer.
Li um romance de Bernardo Guimarães; parece incrível como muda radicalmente o gosto literário de um homem!
Eu que apreciava tanto este autor, achei-o puramente insípido em romantismo de folhetim barato. Desagradou-me o
linguajar figurado e empolado em seu lyrismo absurdo dos protagonistas, todos pessoas rústicas, pescadores.
Como difere de Monteiro Lobato, Ribeiro Couto e Cia., hoje os meus preferidos. Volubilidade minha ou
apuração de gosto? Não sei mesmo como qualificar essa mudança de meu paladar.
A Chininha deitou hoje uma galinha; cito o facto para verificar o tempo exacto para a eclosão dos ovos.
Os meus enxertos vão bem. O que sentiu foi o de fenda inglesa. Fazem hoje 18 dias. Creio ter sido bem succedido.
Respondi à carta conferência do Dario (Dario Brossard), com volumosa carta. Exige elle a reunião em Bagé
agora em Outubro, conforme accordo effectuado pela turma nos áureos tempos acadêmicos. Escrevendo isso lembro-
me do doce prazer evocativo experimentado pelo autor do “Iy illo tempore”, livro que gravou-se-me fundo na
memória, e eu o li há muito tempo.
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Sabbado. 15 de Setembro
Friosito. Escrevo, assassinando o tempo, como diria o “Affonsão” de imperecível memória. São 7 horas; o
pessoal já foi para o serviço e eu espero apenas o café para pular até lá.
O Rangel me escreveu um postal, desses de gravuras baratas, mui brejeiro. Vou responder-lhe, chamando-o
a ordem. Fazer uma coisa destas a mim, a um homem será como eu!
Amanhã em trem especial, o Carlinhos vae ao Rosário disputar com os Santannenses o Campeonato
Regional. Estive por ir mas o Dotte convidou-nos para uma surpreza que faz, amanhã à noite, ao capataz dos
Escoteguy. Vacillo entre um e outro. Opino pelo baile. O tempo do foot-ball já passou. Lá jaz com o título de Campeão
Estadual de 1927. É bom para gurys.
O João trouxe umas laranjas da coxilha que estão aqui sobre a mesa, numa tentação à minha gulodice. Vou
parar de escrever... sinão o povo come as bonitas e…
Bueno - passe o termo que a época é de liberdade literária - já comi uma e vou escrever mais um pouco
a guisa de aperitivo.
O João entrou e sentou. Está enchendo a sala com as suas risadas. Falam de namoro e elle diz: “Eu não
compreendo estas cousas”. Cousas são namoros. A não ser os escriptores, é esta a primeira pessoa que diz, em
conversa natural, não entender o amor.
A victrola geme: “Páginas do amor” O Raul lê XX (revista) e o resto conversa fazendo-me lembrar o
Maiasinho com a sua mania de exigir silêncio sempre que tocavam victrola. Maia, Telmo, Km 9 (Granja Rapadura)
como é doce recordar esses tempos que lá estão a bracejar na memória, em lucta com o esquecimento. E vencerão
porque tem o longo preparo de 4 annos em que preparamos diariamente, com alegria ou pesar, os batalhões dos casos
imperecíveis, das recordações fortes das excursões e reuniões, verdadeiros marcos de pedra na curta existência do homem.
Em Outubro vindouro deve se realizar a reunião do turmo. Não queria que sahisse, embora sinto que vão
ser 3 ou 4 dias deliciosos, semeados de anedoctas alegres, de evocações, tudo a luz de risadas cheias de vida. É o narrar
das primeiras difficuldades da vida. Creio que vou; espero apenas a certeza de que 5 dos 7 lá estarão. Certeza só tenho
do Dário e Luz; parece porém que o Zé Carlos e Rangel comparecerão. A este escrevi hoje, tocando no assumpto.
Bailes... é só de que falam.
- A filha do velho Silvano vae?
- Não, diz que foi para Sta. Rita.
- Que peso! E a velha Teta?
- Esta parece que vae. E depois, quase que não gosta de sapecar!
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- Ah! Ah! - grita o João - já está o seu Raul!
Chega. Vou ler algo lá na cama. A victrola continua: “Uma casinha que eu tenho...” lindo este tango.
Boa noite, papel.
Segunda, 17
Que massada o baile no Totte! Fracassando, a reunião era incapaz de entreter um vivente a noite inteira.
Cabeceei firme... benvindos cafezinhos... Guryas, 6; todas do typo “nóis fumos” e, o que é pior, nada que
arrebentasse um laço.
“Eh!” fez-me o Raul, ao lado.
Franzi a testa. “A que menos me desinteressa e aquella guêchinha.
Continuei ainda hoje a armar a grade. Aos poucos vou acertando embora tenha, desde já uma peça para a
qual não encontro lugar. Si a grade fosse acompanhada de folhetos elucidativos ou mesmo, de uma boa gravura, a
coisa não seria diffícil. Mas assim, reunir aquelles ferros esparsos, discos p’ra cá e lá alavancas por toda parte, tudo
bem misturadinho no coixão que lhes trouxe, numa grade de 16 discos Rud-Laih - a primeira desta marca que
examino - é tarefa de dar galão a qualquer um, mesmo tendo “profundos conhecimentos de machinas agrárias”
cadeira do 2° anno do I. B. M, professor: Zé Bolota, ex. Zeiss, vulgo Alberto Lopes da Silva.
Quarta, 19
De hontem para cá plantamos batata doce, mandioca, melancia e abóbora.
Anoitece. O gado cerca o coxo, banqueteando-se com sob. Embora a chica dê o NaCl como inodoro, a
criação sente-o mal. é elle collocado no coxo, e vem aos poucos, porando um rodeiosi to de per si. Aonde a razão?
Na sciência ou no animal?
A menos que o gado perceba o sal por um outro sentido que não o olfacto.
O Carlos foi ao Guará e o Raul ensilhou o zaino... e foi chinar. Assim é que estou só. Scismo e ganho em troca
melancolia. O contraste entre a vida que levo e a que desejaria viver surge forte, chocante, quase num desalento. Não é
que seja eu um estopista, querendo passar do nada ao tudo num amanhecer; não, a minha ambição é pequena: aspiro
apenas estar no começo de um sonho a fazer; estar no partidor para a carreira grande da vida, e não estar ensaiando
carreirinhas. Quando iniciarei a minha tarefa de produzir qualquer cousa que me sobreviva, que me caracterize no
conceito dos vizinhos, ao menos, como um homem de trabalho progressista, um “homem de negócio” como dizem
aqui, e cuja palavra tenha algum valor, alguma autoridade?
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Sonhos, castellos, diria talvez quem lesse o escripto acima. Pode ser, mas creio ter lido alhures que aquillo
que produzimos nesta vida é um/mil dos projectos que viveram no nosso cérebro. Assim, sonhe a minha ideia e sonhe
bem, que o que sahir há de sê-lo bom. Queira a Deus.
Sexta. 21 de Setembro
Terminei de ler o “Vestidinho de lã” de H. Bourdeana, isto é, reli-o, visto que há bons 6 annos foi que o li
pela primeira vez. Desta vez me impressionou bastante o amor mystico de Raymunda, achando pouco um amor fiel
por toda a vida, queria-o mais longo, pelo além adentro.
Tudo isso, essas impressões emotivas, naturalmente não são mais do que consequ ências obrigatórias dos 21
annos. Características da idade, do período em que o espírito criança passa a ensaiar os primeiros vôos para as regiões
mysteriosas do desejo de procurar, ou melhor, de amar, que é o termo humano para tal cousa comum a todos os
animaes. Puro convencionalismo! Disfarce com que os homens forçam a sua posição de senhor da creação.
Dirão que os animaes visam apenas a materialidade das satisfações sexuaes, enquanto que o homem ama
com a alma, com o cérebro, sentindo prazer em estar horas a fio ao lado do ente amado, numa contemplação
espiritual. Mas o que é verdade, é o que o homem vê a companheira também como a sede dos prazeres carnaes,
buscando-o outras vezes que não a indispensável à fecundação. Desvirtua assim a sentir a natureza que faz jogo
simplesmente para garantir a reprodução das espécies.
Chega, vou traduzir um pouco de inglez.
Domingo. 23 de Setembro de 1928
Flor de dia, este. O sol enche de vida a terra, brilhando no verde todo especial do pasto orvalhado. Os
passarinhos amanheceram cantando, a roda do galpão, catando a sua primeira refeição nos velhos cinamomos e no
esterco dos cavallos. Cardeaes, Azas de telhas, tico-ticos, bem como Pombinhas, Picapaus e Gralhas; todos saltam
alegres na nossa frente, tornando-se o assumpto obrigado da palestra.
O mascote e mais a mulher cubiçam os cardeaes e pintasilgos para po-los em gaiolas. E desejam um alcapão.
Pobres bichos! E o homem se diz rei da creação; ser dotado da razão e da bondade. Creio que a criancinha de 9 meses
agarrada aos seios chupados da “mascate” também tem como os paes, o coração no bolso.
Há duas semanas enviei 400 francos a J. G. Bailliére et fills, com um pedido de livros. Virão? Dentro...
Ella - a do Correio - me escreveu uma cartinha toda perfumada. Boa letra, perfilada como soldados em
posicão de sentido, pede desculpas por não me ter avisado a sua ida a Sant’Anna, visto ter sido ella súbita e assas curta.
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Para começo de romance de arnor já serve; ao menos já está ahi uma nota original.
Quarta, 26
Firmou-se o tempo. Um frio misturado com vento afugentou a chuva cacete de hontem. Creio que este já
leva em sua bagagem humida, uns 7 dias de chuva. E o dia 5 foi de água à bessa; parece ter razão o vulgo dando este
dia como o regulador do estado climátérico do tempo.
Domingo, 30
Findou-se o mez, com as suas chuvas e dias de vento norte. O dia hoje foi quente, daquelles de dar dor de cabeça.
Felizmente o Silla cá esteve a nos entreter a tarde. Sempre gajo, é monopolizador da conversa. Tão depressa mata o revólver
gaviões voando, como ganha questões jurídicas, achicalhando adversários. E um bicho com os seus 40 annos!
Amanhã vou até a Estação; aproveitarei para comprar jornaes e queira Deus que o revisyteiro os tenha.
A grade está armada felizmente. Apenas não atinei com o fim de uma peça, embora a falta pareça não ser
sensível, pois o seu Dico affirma que a sua grade - que e idêntica - não a tem. Verificarei tal cousa examinando a
delle, assim que puder.
Fiz umas mensurações de altura em três cavallos crioulos – 1.46 – 1.43 e 1.31. O Cervo, inglês (puro ou
mestiço, não sabemos) deu 1.58.
Outubro
Outubro, 5. Quinta-feira
Estou só em casa; isto quer dizer que o Carlos e o Raul não estão: foram a São Simão buscar um gado; 300
rezes a 147$. É caro mas é o preço.
Estou decidido a ir a Bagé; não há como fugir à atracção da possibilidade de lá encontrar os amigos do IBM.
Da turma vão o Dario, o Luz e o Bernardes, segundo carta do primeiro; o Rangel é provável o seu comparecimento. Do
Pacheco e do Xavier não tenho esperança. Este deve andar as tontas com a idéia de fazer produzir a chácara
adquirida na Capital: o outro...Sta. Vitória do Palmar fica tão longe!
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Noite. Não sei o que fazer; tento escrever mas mil pensamentos me baralham a idea. Ler, também não posso,
pela mesma razão. Em todo caso vou dar uma “tenteada” com o Eça. Bicharedo este homem. Pena não ser
contemporâneo, pois a mim temmuito mais sabor um escripto tendo por época a actualidade.
6 de Outubro
Trabalhei a manhã inteira de alambrador. Eu e o Adão não fizemos mais do que cravar 12 moirões, sendo
um enrabichado, e correr as guias. Vou augmentar o meu vocabulário gaúcho.
Domingo, 7
Fui à tarde ao bolicho do Lodário, pagar-lhe a conta.
“A pressa é sua” diz elle, maneiroso.
“Negócio é negócio” retorqui-lhe firme, puxando a carteira. Essa pressa de saldar compromissos era pura fita, pois
o que eu visava era “apenasmente” conseguir troco para ir a Sant’Anna buscar a minha fatiota e, de lá rumar p’ra Bagé
É corrente na voz maliciosa do povo, que a mulher, a Teta, é sapeca, isto é “quase que não gosta de namorar”.
Na verdade, ella tem um certo modo de olhar, algo ambíguo, com um longe de promessa.
Mais a título de curiosidade que por interesse resolvi tirar a limpo tal questão, procurando penetrar
n‘aquelles olhos cor de chuva e decifrar aquelle sorriso em que se pegam as más linguas para a seu costumaz cochicho.
Demorei uma meia hora... e sahi no mesmo: a sorriso e o olhar continuaram indecifráveis. É verdade que momentos
me esquecia por completo do estudo daquella mímica, mas contudo, deve haver exagero na malíci a do povo. Talvez
que seja das conquistas lentas, typo andar de boi manso; água dura em pedra molle...
Em todo caso é para as que tem queda.
Resumo: Não há língua maior do que a do povo e ainda dizem: vox populi. vox dei (salvo erro gráphica)
Poradoxo... Reino de Oscar Wilde...
São 8 ½ horas. Boa noite papel amigo.
Terça. 9 de Outubro de 1928
Embarcarei amanhã Não sei o que escrever. O que fiz? Quase nada; dei uma volta no Tarumã; plantei uns
galhos de Tarumã (Vitex Montevidensis,) ao pé dos moirões dos cercadinhos.
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Foi uma idéia que tive: quando os moirões apodrecerem é so passar a cerca para as árvores; é preciso porém
que elles vinguem. Quem sabe? Dizem que a sciência (theoria, fica melhor) é muito, a prática é mais e a
experiência, superior a todas.
Ando com ideia de mostrar os meus diários - i.é. parte delles - ao Telmo, quando for do nosso encontro em
Bagé. É uma esperança de que talvez as cousas se encaminhem para a fim desejado.
Bagé! Linda terra.
Quaes os collegas que encontrarei lá? O Brossard é um certo, o Luz também, salvo motivo forte; o
Bernardes... quem sabe?... mas é provável, elle abomina uma reunião dessas; o Rangel duvidoso; e os demais não creio
que compareçam. Dos ex- turma (ex aqui quer dizer fora da ...) não citando as excursionistas, espero Filóis e a Saibro.
O “Seu Valle” mora perto, mas parece estar servindo, - sorteado - e a Olympinha solicita em casa.
Quarta, 17
Cheguei hontem; demorei mais um dia. Boa exposição e melhor ainda a nossa reunião. Faltaram Xavier,
Pacheco e Rangel. Foram 4 dias adoráveis em que vivemos os tempos passados e os acontecimentos succedidos neste
primeiro anno de lucta. Em todos nota-se uma esperança firme de ganhar “cobre”; a e terna ambição pelo ouro
calcada no trabalho honesto e rude da terra.
Encontramos ainda os collegas Jomar e Simões da turma de 926. Sempre bons companheiros assim como o
Antônio Bastos, nosso (meu e do Zé) “de rancho”. Movimentadíssima a Exposição. “Aqui se aprende muito” disse o
seu Valle; de pleno accordo, é preciso porém que as visitas e comentários sejam feitos entre nós, afim de que seja
evitado todo o receio de dúvidas ou enganos.
Quinta-feira, 25
Volto à pagina anterior e vejo que desde 17 não escrevo nada. Razão: muito serviço. Realmente. Comecei a
plantara 19 passado, mas trabahei só um quarto de dia devido à chuva. Por enquanto só dois arados. Semente, 26
caixinhas de milho e cerca de 2 Kg ½ de feijão. Enxofre. Em 2 ¼ lavrei seguramente mais de quadra. Plantador, o “Dégas”.
Domingo, 28
Plantei mais 25 caixas de milho. Flor de domingo. Lembranças de sahidas de missas. Vamos assiti-las, convida o
Aristides, e a gente sente um travo lá no fundo do peito, revendo figurinhas conhecidas no scenário da vida das cidades. E se
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enpandilham também perfis de collegas e amigos sombreando o quadro para seu maior realce. O destino é mesmo cruel;
enraíza relações de amizade em nós, só para ter o prazer de reben ta-las sorrindo indifferente ao nosso sentir.
Quarta, 31
Secca com ameaças de chuva. Mas não passam de ameaças, e uma chuvinha viria bem a calhar para as terrinhas
vermelhas. Vou plantando o tempo que Deus dá. Quanto colherei? Não sei. Quantas quadras tenho? idem. E neste ponto
divergem as opiniões dos práticos. Alguns vão a 40 quadras; outros, que baixa deste número, indo contudo além de 20;
ainda outros julgam haver mais terra que o Antoninho que affirmou ter colhido 4.000 mãos. Baseando-se no “vox populi” a
colheita deverá oscilar entre 4 e 8.000 mãos. A minha opinião é que são 20 quadras e o razão de 200 por uma...
Novembro
Novembro, 3
Finados! Embora os homens tenham a morte como a esponja que apaga a lembrança dos que se foram, um
restinho sempre nos fica na memória, descoberto e venerado nesse dia 2. Romaria ao cemitério do Tarumã. E não foi
pequena; todo o santo dia; gente a pé e a cavallo, carroças e aranhas. Ninguém deixa de accender a sua vela. A
plantação vae indo; hoje começaram a trabalhar os três arados. Agora vae render o serviço, notadamente si
continuarmos a mudar bois as 9 e as 16 ½ horas. Talvez uma quadra por dia.
“Vocês estão virando nuns chaçareiros de primeira ordem” Diz o Alynes.
“Báh! Coizinha pequena”.
Domingo. 4 de Novembro
Choveu a manhã toda. Chuva boa p‘ra terra e p‘ras plantas. Quis passear mas não pude. Ninguém gosta de
ser contrariado. A vida é assim mesmo nunca se está satisfeito. E tudo porque temos a faculdade de raciocinar. Quer-
se uma cousa, e logo mil obstáculos saltam-nos à mente, escudados pelos preconceitos, responsabiildades, etc... etc...
Escrevo para matar o tempo, pois não sei o que fazer neste resto de domingo tão grande. Terei que habituar-
me a fazer visitas todos os domingos, ao menos para trocar idéas, do que para matar o tempo, evitando esse “far
niente” tão desalentador. Também nunca achei o tal “dolce” nessa phrase tão a miúdo repetida.
53
Depois que cheguei de Bagé escrevi ao Zé e ao Telmo e ainda nada de resposta. A distância pode muito, mas
nunca apagar a lembrança. É; o homem por força deve ser um animal social; como o gado, o cavallo e a ovelha jamais
se dará bem solto. O Cervo vive a rinchar - inquieto - toda vez que a guáchinha não está ao seu lado.
Novembro, 13
Vim hoje de Livramento. Exposição fraca. Cidade mui movimentada. Foram 3 dias bons, contrastando
utilmente com o mez passado quase todo no cercado; nessas 4 semanas anteriores não passeei mais que 1 dia, e isto na
casa do Nenê. Vão crescendo as minhas relações em Sant’Anna; em qualquer dos sexos.
Recebi os retratos tirados em Bagé: Os da Noemy estão mais ou menos. Vou mandar-lhos... e com algumas
linhas. Poucas, muitas... discretas ou amorosas... francamente. não sei Pensarei uns dias.
Novembro, 16
Escrevi, enviando os retratos tirados em Bagé, uma cartinha enviada a Noemy. Mais ou menos o que segue.
Em amor não há inspirações para taes missivas; é o que me pareceu ao reler as linhas escriptas; insípidas.
“Não me esqueci que promessa é dívida; a demora em lhe enviar os retratos foi menos por culpa minha que
da pessoa encarregada de me remette-los de P. Alegre, onde foram revelados.
Estão elles bem longe de serem um bom reflexo do original, mesmo porque eu - deve comprehender - não
podia efficazmente assumir a dupla função de retratista e ... admirador.
No entanto elles me são mais que sufficientes para ilustrar a lembrança daquelles três dias de Outubro p.p.
em que uma silhueta gentil e uma voz toda meiga, me fizeram esquecer agradavelmente, a realidade desta vida.
Remetendo-lhe respeitosas homenagens, firma-se o amigo e admirador.
P.S. Bem reconheço não ter o menor direito, mas uma só palavra - telegráphica que fosse - dar-me-ia a
certeza tranquilizadora de que estava cumprida a promessa”.
E o melhor é que o meu endereço não appareceu em parte alguma da carta. Esta é a última... Esperemos.
Segunda. Novembro, 19
Secou o tempo; os plantadores já estão gritando. É nestas occasiões que se vê quanto pode armazenar água
uma terra trabalhada. Um só ferro dado no inverno mostra visíveis consequências na secca.
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Fui hontem visitar o “seu Lélo”. Proseamos muito. É um homem de quem o povo diz que se aprende
muito, palestrando com elle.
É um crente de que o gado do futuro será um mixto. Vender leite para as cidades, é o grande negócio para
as zonas encostadas às estações da via férrea.
É também um enthusiasta da acácia (Robinia pseudo-acacia). E com razão, tive occasião de ver mudas do
anno muito desenvolvidas. E depois resistente a valer: uma rez derruba uma muda recém plantada?- a gente levanta-
a e ella nem mostra sentir a queda.
Contaram-me há dias que um filho do José da Silveira suicidou-se por ter sido sorteado. (para servir no exército,
como se dizia na época) Espírito fraco, dirão uns. Triste falta de patriotismo, affirmará outro. Pode ser; para mim entretanto
isso não passa de mais uma prova do degeneramento em que está cahindo progressivamente a família Silveira.
Quinta. 22 de Novembro
Ando com preguiça de escrever. Porque, não sei. Talvez seja o tempo o culpado; um calor brabo; que secca
santo Deus! Os arados dos vizinhos pararam; os nossos ainda vão, mas não passarão de amanhã.
Uma “chacra” é uma roleta; a semente é o dinheiro da gente atirado na mesa da terra. Si a bolinha branca
do tempo for camarada a cousa dá; sinão...
Si não chove “ta” como as diabos.
Eu estou sem saber o que escrever. A cabeça cheia de idéias, mas não vem nada à pena... O Rio Grande se
agita; nas artes em geral, nas indústrias e na política, novos rumos surgem, novas picadas se abrem pelo pulso forte
dos espíritos inspirados, gente que enxerga. São os olhos da época.
Eu quizéra... chega de querer, que isto comum a todos, cousa banal; opanágio do homem medíocre de ingenieros.
Foi-se mais um mez.
Dezembro
Dezembro, 1°. Sabbado
Dezembro, o mez portador do verão, com o seu séqüito de calores e seccas intermináveis... entrou chuvoso.
Trouxe água, e em boa hora, que há 26 dias não cahia uma gotta do precioso líquido. E logo em Novembro, o “mez das
plantas” como diz e positivo a gaúcho, enchendo nessa época, a seu cercadinho com milho, o alimento do nosso
homem rural, o ouro dos pobres.
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Amanhã, Domingo, tenho vontade de passeiar, ir até o Lélo, quebrar a monotonia desses 15 dias vividos
dentro das divisas do Tarumã. É sempre a mesma ânsia de trocar idéias. Salvam-me ao menos as cartas que
mantenho com os collegas. Amigos, saudades latentes em nosso coração, que uma notícia qualquer faz brotar na
memória. Brota e cresce para contentamento da gente.
O Porto Alegre vencendo a páreo 15 de Novembro, indicou a sua guarnição como concorrente ao
campeonato brasileiro de remo, guarnição de que fazem parte o Ernesto e o Luiz Buchman; exultei com esta nova, e
pensei enviar-lhes um postal de felicitações: são velhos camaradas do Anchieta. Desisti porém; esperarei, talvez
tragam do Rio glórias para o torrão gaúcho; então sim, as cumprimentarei.
Quarta. 5 de Dezembro de 1928
O tempo ameaça chuva. A toda hora esperamos um temporal. Que venha água que a de Sabbado foi pouca.
Bairrismo
Falávamos há dias da necessidade de comprarmos uma bomba ou um moinho a venta, que viesse
simplificar a questão da água. É uma campanha este negócio de arrastar água em pipa; nunca se tem água em casa...
O Dico, que escutava sério a conversa, entregou a cuia ao cevador e disse em voz lenta:
“Com a pipa o senhor da a que ganhar a um pobre coitado d’aqui enquanto a dinheirão que custa uma
machina dessas, vae todo embora, p’ras mãos dos gringos.
6 de Dezembro
Mais uma chuvita; p’ra planta deu, p’ras aguadas não.
Carbúnculo, peste negra que matou a Pimentinha; logo esta vaquinha tão mansa e boa; que dava sempre o
melhor terneiro do chiqueiro. A vida é assim: pôe sempre um fim no que é bom, e conserva pellechado o que não presta.
8 de Dezembro
Há festa nos pagos hoje; um baile no velho Fulgêncio. A sala é boa commentavam, habituados que estão a
dansarem em casa de chão. E ainda por cima carreiras amanhã na cancha do Lodário.
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10 de Dezembro
Dansei a noite inteira no baile do Cella. Gente aos montes. O mestre de sala - o João Maria - numerou os
rapazes; 2 turmas a revesarem, p’ra que ninguém ficasse queixoso de não ter dansado.
11 de Dezembro
O Antônio Novo, gauchito pitiço dos tempos de 93, contou a história das mulheres valentes que houve por
este rincão. Eram índias quebras de pala, espora e arma na cintura. A Malvina Quinta até domava. “Uma vez que me
topei com ella na Estância do Cerro, mexi logo com a mulata: - diz que vancê se agarra; eu tenho aqui um cavallo de
freio p’ra você montar; quero ver você virar o Campeão p’ro ar. - Me olhou atravessada, com uma cara de negro
macho, cabello de carapinha”.
- “Outra, a Fidência, se botava de faca na gente; muito índio ella surrou a rebenque. Carreteava e até
carreira corria.”
- “Havia também a Felizarda velha, que viveu muito tempo nas pedreiras da estrada de ferro, no campo do
seu Guto. Botava fervo e gritava uma cousa que chegasse.”
- “Então eram homens vestidos de mulher, Antônio.”
- “Qual, eram mulheres mesmo. Duas pariram e a Malvina nós fizemos uma pegada numa picada.
Estendemos dois laços no varar o passo da Soriedade, bem num empedrado que tem no que cruza a cancela...”
- “E fizeram fêmea da miúda ?”
- “Ué! Ella já tinha logrado nóis um número de veiz”.
Dezembro, 23
Anda péssimo o preço do milho. Apenas consegui 25$ os 100 Kg embolsado; é claro que não acceitei e
está pegando a carunchar.
A secca era grande; mas tem chovido a 17-18 e hoje 23. Plantações atrasadas.
O sonho da sesta foi algo original; não tanto como o que aqui registrei mezes atrás, mas bem nítido ao
accordar. Numa praça, dessas de canteiros com árvores densas, as ruas eram riachos; uma água parada, sem
profundidade. Vestido com traje de banho, lancei-me à água bracejando com difficuldade. Um cansaço inexplicável
pesava-me como chumbo os braços, enquanto que os pés de quando em quando tocavam o solo limoso. Avistei uma
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pequena nadando em sentido contrário ao meu; assim que me viu, mergulhou, tentando passar ao meu lado. Como
roçasse por mim, segurei-a e mergulhei
No fundo d’água, assim agarrados, beijei-a uma, duas vezes, e seguimos os nossos caminhos. Nadei rápido
procurando attingir, por outros passeios, o canal em que ella nadava. Surgiu então uma velha, guarda da pequena.
Nadava também a megera. Com os olhos em mim, se descuidou da pequena que ficou num desvão de um barranco.
Parei como quem desiste da perseguição, e fui encontrar a nympha. Reproduzimos a scena desta vez ao ar livre.
Sensualismo forte - Aqui se interrompe o enredo; os personagens surgem agora em terra firme em roupas normaes -
A velha arranja uma companheira e censura na presenca da sua pupila os costumes assas livres das meninas de hoje.
Assisto à reprehensão; a pequena faz ouvidos de mercador, torcendo uma peça de roupa de banho. Quando a velha
prometeu enviar um bilhete de queixa ao pae, a menina numa calma em que só se percebia carinho filial, falou.
-Para que vae a Sra. Fazer isto!? Hontem já mandou um bilhete; indo outro hoje, só serve p’ra aborrecer o papae.
- Conformou-se a matrona; Domingo eu vou lá e conto tudo eu mesma.
- Tranqüilizada em saber que ao menos tão cedo não lhe entristeceriam o paezinho, o diabo da gurya,
ociltando o rosto às velhas, moveu os lábios para mim desenhando com o indicador e o polegar uma cousa que me
pareceu um cartão. Entendi essa linguagem mímica. Pedia-me que fosse receber, em sua casa, hoje à noite, um bilhete
seu. Com a cabeça, accedi que sim, e ella, sorrindo despediu-se, atirando um beijo.
- ...Accordei…; a chuva tinha parado de cadenciar no telhado de zinco; fora bôa p’ras plantas.
Dezembro, 21. Segunda
Amanheceu chovendo. Curioso esse tempo. Inverno secco. Setembro chuvoso. Novembro fortemen te
secco e dezembro molhado.
Gados - de cria não há negócio, sei de uma offerta a 145$; os que tem para vender esperarn p’ro fim do verão
afim de serem contados os terneiros. Vaccas de invernar, uma ou outra de 150$ a 160$.
Dezembro, 27. Quinta
Natal! Dia grande nas cidades e tão desapercabido cá nos pagos. Como de costume fomos passa-lo no
Guará matando o calor com gelados e sorvetes.
Choveu Domingo e Segunda. Hoje, um pouquito. Morreu a secca.
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Noite de verão! A gente sente uma lassidão invadir-nos o corpo, pondo preguiças no próprio espírito. Uma
vontade não sei de que assaltou-me a idéia, trazendo recordações que vagueiam em torno das figuras dos amigos do
Km 9. O Juca, que fará agora? Talvez emUruguayana passando as boas festas.
- 20.000$000, é muito e não é nada... o que se pode fazer com elles? Ando martellando uma applicação
e não a acho.
- Topographia... o Sr. Cabeda vem medir o Tarumã (8 a 9). Tenciono ajuda-lo. Li por isso as minhas notas
do II anno. Tive a fortuna de poder comprovar mais uma vez a “especialidade” que ellas são.
Dezembro, 28. Sexta
19 horas. O tempo ainda vae sombrio. Sinto uma sensação de um desocupado, e que no entanto, tem
ímpetos de ação. Quero caminhar e os pés me estão preso ao solo. E um trabalho se desenvolve formidável,
suprindo essa inacção phísica.
Lembro-me de separar com os 20 pacotes (seriam os 20.000$000?) a quadra e meia que por troca,
receberemos no Libório. Assalta-me porém a dúvida de que o milho não baste para compensar as despezas advindas
com a creação de um novo estabelecimento.
4 homens - de Maio a Dezembro, o mezes a 20 dias por mez dão 640 dias que a 640 dias que a 6$ = 3.840$
Uma pioa, a 100$ (a bóia vae incluída no cálculo) 8 mezes = 800$
Um gury, idem, idem = 800$
Pessoal: 5:440$
Consertos em arados e vdrias 560$
Juros (10%) do capital 20:000$ 2:000$
8:000$
5 mezes com 4 arados = 400 dias de serviço
400/7=57 quadras de terra x 200 mãos. 11.400
11.400 mãos/10 = l. 140 fanegas
Com um desconto, ficamos em 1000 fanegas que aos preços extremos de 20$ e 32$ do corrente anno dão 20
a 32 contos. Admittindo que as despesas da colheita e beneficiamento sejam 5$ por 100 Kg; temos 5:000$ a ajuntar aos
8 contos, o que dão 13 contos a subtrair de 20 (ou 32), isto é: 20-13=7 contos ou 32-13=19 contos.
Ah papel! si tu fosses infallível!
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Ano de 1929
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Janeiro
Janeiro, 23 de 1929
Baile no Acelyno. Foram do Léllo e do João Osório. Maria Osório, morena, alta, cabellos negros repartidos ao
meio, olhos cor da noite, grandes como as noites de inverno.
Tem o rosto comprido, à hespanhola, envolto sempre numa tristeza apagada, triteza, sentimento a
provocar o silêncio que sonha. É o domínio do semblante quase mystico sobre os lábios quentes que não
gargalham nunca; sorriem tão somente.
Impressão final: dia sombrio em que a gente vai a janella ver a chuva que se foi e a tristeza nostálgica
pairando no campo, nos animais, em nós mesmos...
Sonhos... e que importa isso? Si tudo, tudo são sonhos, illusões.
Dansámos bastante e conversamos ainda mais. O Carlos com a Odith e eu, fazendo frente a Maria e a
Tininha. Ambas tem os seus eleitos; dahi uma conversa boa - entre amiguinhos - algo íntima, “tu p’ra cá tu p’ra lá”.
Quebrei assim a vida triste, monótona, com uma noite linda, inesquecível.
Mas vão amanhã p’ra Sant‘Anna. É verdade que à cidade, vou seguido, no entanto o meio é outro; alterou-se
o scenario. Estivesse o corvo do E. Poe (Edgar Allan Poe) elle grasnaria: “Never more! Never more!... Ave agourenta.
Estive lendo C. Wagner. Matar o tempo é um crime; quem o faz é criminoso. A sciência da vida está em não
perder um só minuto utilizázel.
Li.. e vim escrever isso. A tarde vai fugindo, deixando como sempre, a mesma vontade de pensar. Devaneios...
Meus companheiros não me escrevem tão a miúdo como desejo. Terei eu mais gosto em encher papel que elles?
Dinheiro! O propulsor da vida. Precisamos agir... agir. O que dá o capital que é pouco. É mister, pois o
tempo vae passando. . .já fiz 22 annos.
Fevereiro
Fevereiro, 1°. Sexta
Foi-se o mez de janeiro, o mez das noites curtas e dias longos.
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Tempo: para nós correu óptimo; chuvas seguidas e boas favoreceram grandemente as plantações, hoje com
lindo aspecto. Os milhos melhores mesmos não sei qual são; apenas as lavouras plantadas na secca forte do 2a
quinzena de Novembro estão mui ralas.
Gado: lindo. Carrapato sempre algum, exigindo já 2 a 3 banhos. Bicheiras poucas. O próprio rebanho
vae bem; gordo.
Apartamos a 29 do mez passado 68 terneiros.
Escrevi várias cartas, mas recebi poucas.
Carnaval “eu vou” vindo! Talvez vá a Sant’Anna. Ultimamente.
A safra parece vir desmentir um tanto os optimistas. $580 para vaccas, enquanto que a matança ainda não
foi ordenada pelo syndicato creio que só o será a 15 de Março. E já há vacca gorda.
Sonho muita cousa, e é só... Ideas, raramente são collectivas, quando em assumptos de negócios.
Quarta. Fevereiro, 6
Recebi longas cartas do Telmo, Zé e Firico. Afora umas cartas do Pacheco, o resto jaz silencioso.
“Silêncio! Não turvernos a paz...”
E vem o Carnaval! Vou a Livramento; como bom e legítimo brasileiro, sinto desejo de resumir o mundo
n’esses 3 dias de folia, mas a consciência de que não ganho ainda o sufficiente para taes larguezas, modera esses
impulsos. Si o Brasil está dividido entre Jeremias e Narcisos, eu sou, em relação a mim mesmo, um dos primeiros.
Descontente com a moldura que cerca a minha esphera de acção, que me parece asphyxiada em seus desejos de
expansão, vejo triste os dias passarem sem trazerem as indulgências d’esse deus pagão moderno, o Dollar.
Consolo-me, às vezes, considerando a época presente, como um noviciado preparador de energias para uma
grande lucta futura e proveitosa.
Fevereiro, 8
O Nenê esteve aqui. Voltou se São Sepé terra onde os Maragatos mandam. Não acho o que escrever aqui.
O Carlos foi a Passo Fundo ver a gurya; amor és ainda um Deus; si te cahiu a auréola dos idyllios
românticos, possues agora a coroa dos modernismos.
Chegarei eu a queimar incenso com tal fervor a essa divindade? Talvez... todos os homens são iguais.
Vou escrever ao Firico.
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Quarta 13 -2 – 929
Faz meia hora que cheguei em casa, trazendo nos ouvidos o ruído do Carnaval. E vim escrever essas
impressões: serão fresquinhas ainda sem acção do tempo.
Conheci: Helena Acauan, Carmem F. da C. Guerra, Ainda Guerra e uma irmã uma Maciel e ... Bailes
começando depois da hora e terminando as 4 ½ e às 5.
H.a Loirinha espigada; quando só é uma garça sobranceira, indifferente ao que lhe vae em torno, tal aquella
ave real no espelho preto da lagoa. Conversa com desembaraço phrases que trazem um cunho affirmativo, imperioso,
denotando sempre uma certa confiança em si mesma. É uma superioridade singela, sem raios de vaidade, provocando
uma sympathia quase instantânea. A gente gosta de admirar tanta firmeza numa silhueta frágil: uma florzinha do
campo branqueando impavidez graciosa numa longa haste delicada.
Começando perto de 1 hora, como se fossem de gala, animam-se rapidamente: a gente olha p’ra o relógio e
se apressa que a manhã vem vindo.
Outra revelação: Carmem. Auxilia muito essa pequena, o poder suggestivo do nome hespanhol que traz. A
gente evoca aquellas scenas do Hespanha dos jardins e paços floridos que os romances devorados na meninice nos
ensinaram. Ainda criança, seu talhe vigoroso quando corto a sala na cadência lânguida d’um tango, escravizam os
olhos de todos em uma admiração intuitiva, até desaparecer na multidão que dansa. Conquista...
Ella é a madrugada grande com as barras do dia, de seus lábios a prometter o sol da felicidade a quem
tiver muita sorte, muita...
Fevereiro, 20. Quarta
Secca formidável. Há milho perdido em Santa Rita. A última chuva foi a 31 do mez p.p.
Plantei mais sementes de Eucalyptus.
Foi-se o Carnaval e volveu, mais intenso ainda o desejo de ser-se algo.
Fevereiro, 21. Quinta
Escrevi um cartão a tia Morena agradecendo os doces que ella nos enviou pelo Carlos.
Eucalyptus - plantei mais dois caixões.
Trêmulo... apeei há pouco do cavallo; vinha do matto onde dei umas machadadas n‘um cerne de pitangueira.
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Sexta, 22
Choveu esta madrugada, e seguiu até as 10 horas. 22 dias de secca sempre matou algum milho.
Segunda, 25
Domingo fui ao João Osório. A Olga, noiva, agrada pelo ar e pela palestra; das 4 mais moças não estavam as 2
“boas” as outras não rebentam um laço. Presente também Graciana Carrera (salvo erro graphico); uma riverense a
desmentir os foros de “aja”, como terra de Evas boas. À volta viemos todos (o velho também) até os Escosteguy. Aproveitei a
occasião para conhecer estes veranistas. Estavam apenas a senhora e uma ponta de filhos ou sobrinhos. “Uma rubia e uma
morena”; esta paga uma troteada. Não sei si pelos meus trajes a gaúcha, ou pela presença dos vizinhos tão distinctos, o caso é
que a minha pessoa não passou de um illustre desconhecido, alli entrado à sombra dos Osórios. Debalde balanciei o
assumpto p’ra um e p’ra outro lado; olhavam o intruso como quem olha o seu vizinho num café. Vinguei-me (coisa doce a
vingança) monopolizando - quando podia - numa prosa rápida com a Da. Olga. Deixa estar jacaré! Que a lagoa há de
seccar, devia eu dizer com os meus botões, mas para que? Onde não há interesse não há ressentimento.
Ao despedirmo-nos, já separados por uns poucos metros, voltou-se a Olga:
“Em março ainda estarei aqui”.
Sempre camarada! ...Esta sim, duplamente vantajosa... (Entenda, papel amigo)
Acabo de escrever um postal ao Edgar, atualmente no Paulicéa, donde me enviou (ainda não os recebi) um
livro sobre construções e algumas revistas. Camarada, este Lebreiro!
Pedro Coelho - Sabbado veiu até aqui, isto é, até o rodeio do Tarumã, onde me entregou o anel que eu
esquecera em Lito. - Conversa mais comprida que esperança de pobre ou que matte de namorado. Interessante, basta
ter uma sympathia por algo, para que consiga muitas razões e justifica-la e nenhuma a fazer uma objeção séria.
Ainda o mez passado era partidário da criação em campo fino. Hoje, pensa o contrário, sem se dar conta que há
poucos dias, por mais de hora, me falara das vantagens dos bons campos. Vive dentro do presente, esquecendo ideias
de hontem. Mas, em summa, parece ser um observador prático, demonstrando no interesse que põem em tudo que é
capaz de “dar”, que já foi comerciante.
Terça, 26
Plantamos um pouco de aveia, uns 12 Kg - a terra está secca, mas há esperanças de chuva.
Eucalyptus - desde hontem se notam as primeira plantinhas.
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Amanhã vou ao Guará talvez vá a cavallo.
Março
Março, 5. Terça
Acabou-se a secca! Choveu Sabbado e choveu hoje; e que chuvas!
Nos annaes do Congresso dos Criadores, de 1928, li a projecto de Código Rural apresentado pelo Dr.
Joaquim Osório à Câmara Federal.
Sente-se a falta de conhecimentos jurídicos para estudar a questão, mas basta umas simples noções do lado
prático do assumpto em foco para que surja logo, o direito da crítica que assiste a todo o ser pensante.
-Art. 80 – “O proprietário rural que souber em seu campo da existência de gado alheio, deverá particiar o
achado ao respectivo dono, si for lindeiro, para retirar os ditos animaes dentro de 24 horas”.
Creio que a obrigação de noticiar a gado alheio deve se estender a todo proprietário, lindeiro ou não, e que o
prazo de 24 horas seja exigido apenas dos lindeiros, caso o tempo e circunstâncias adversas não se opporem.
Assim: ... “ao respectivo dono para retirar os ditos animaes dentro de 24 horas si se tratar dum lindeiro, e
que o tempo ou circunstâncias especiaes não impedirem a recolluta.”
-Art. 24 e 29 - redija-se: O gado vaccum e cavallar poderá ser marcado a ferro candente sobre a perna,
pescoço e queixada, sob pena de multa de 50$, por animal marcado de modo diverso.
Fica simplificada e dá-se também mais liberdade ao criador, podendo, para fins de seleção ou outros
quaisquer, marcar em lugares diversos sem inutilizar a couro. Não vejo nada que justifique a marca unicamente sobre
a esquerda, a não ser a tradição gaúcha, que aliás, é quebrada não poucas vezes pelos próprios criadores.
Nos animaes muares é até freqüente o emprego do marco na queixada.
10 de Marco de 1929
Continuei, em separado, as impressões sobre o projecto do Código Rural.
Escrevi ao Telmo; 6 páginas, como pé bom estender no papel as saudades dos tempos quase foram.
Domingo, hoje, li pouco; entreti as horas pelo galpão e a cuidar do Huraño. Agora, 9 ½ horas da noite,
escrevo essas notas na cama. Preciso comprar uma mesa. Livros também, assim como uma estante.
65
18 de Março de 1929
Segunda. Recordo a semana que se foi; assas variada. Ida a Sant’Anna, ao Guará encommenda de livros
norte-americanos, pic-nic nos Escosteguy...
Este, familiarmente bom, teve o número de pessoas justamente indispensáveis a alegria boa e simples que
reinou do começo ao fim.
Uma dona de casa, linda e attenciosa, duas pequenas sympatticas, um tenente (Cezimbra) bastante
camarada e um “graxahin” inconveniente a contestar-lhe de quando em quando a palavra e a ideia officializadas.
Outras personagens completavam o quadro d’aquella scena de que foi protagonista mudo, o Salso do
Libório. - Otenente me teimou que a bandeira riograndense não traz a faixa amarella no centro do pavilhão! Vinguei-
me capoteando-o fragorosamente no tiro ao alvo; enquanto que elle com três tiros do seu flamante 38 Smith enfiava
uma só bala no caixão de kerosene, à distância de 10 passos, eu fazia voar o chapeuzinho de cobra (cogumelo)
posto no centro do caixão.
Março, 20
Tem chovido este mez. As Picadas estão banhando. Hontem o João Duarte e o Coradino de tal, aqui
estiveram em viagem eleitoral. Devido à chuva, fiz-lhe senha para entrarem galpão adentro com o Chevrolet. Andam
convidando os companheiros para a eleição do dia 30. Trouxeram o meu título; eleitor brasileiro! Mais um grão à
minha cidadania que já é reservista brasileiro e vacinado nos devidos termos. Sim, senhor, cumpriremos o nosso dever
de bom filho do Brasil e de disciplinado soldado libertador depondo, profundamente convicto do gesto e da sua
significação, o nosso voto, grão de areia, pequeno mas indispensável, no edifício futuroso da Victoria “maragata”.
Março, 24. Domingo
Não sahi hoje a passeiar como é hábito cá na terra. Os “logares de attração” estão vazios; João Osório em
Montevideo; Lélo em Sant’Anna, bem como as Escosteguy. Mas foi bom, que a tempo se armou pela tarde, despejando
água das 5 horas até agora, 8 ½ , em que escrevo estas ao som da chuva no zinco. Não há quem fuja a suggestão da
chuva a tamborilhar num telhado de zinco; todos nós sentimos e manifestamo-nos reciprocamente este encanto que
provoca sempre uns desejos de sonhar; de amar. Volúpia quase mystica parece reagir excitada contra a cadência
monótona do canto-chão chuva. Pluie – piuva…
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E me vem à memória as pequenas, cujo conhecimento tenho feito nestes últimos tempos. Não estou “amoureux’
d’ahi a possibilidade de divagar a frio sobre a assumpto. Amar, cousa velha renovada continuamente em cada peito
(coração). Li Jeanne, de George Saint, escrito em 1844 e ... o amor é a mesmíssima cousa de hoje. Assim sendo não é de
admirar que eu - sem longa e continua experiência na matéria - seja capaz de fazer commentários accertados sobre a
problema, a ponto de dizer a Olga Osório (noiva): “O senhor está me parecendo ter mais prática do que affirma”.
A fallar nisso, queira o bom Deus que não fique em simples projecto o baile de Alleluia nos Escasteguy.
Alleluia, Sabbado próximo, como seria bom trocar, ou melhor, terçar palavras, phrases com algumas guryas. Ellas
parecem tão superiores no meio da gauchada, e a gente sente um prazer, orgulho quase, em levar de vencida sob os
trajes regionalistas, um desses diabinhos!
Escrevi hoje ao Edgar Fernandes Teixeira, bom camarada.
A vida... como custa a se firmar...ella vae passando e a gente vê com surpreza infinita que o nosso eu de
hontem, tão certo dos seus conhecimentos sobre o mundo, desapparece ante o eu presente, mais sábio, mais cheio de
bom senso. E aliás dictado trivial e velho: quanto mais se vive, mais se aprende.
Chega. Vou ler algo, talvez um romance francez.
Abril
1°Abril. Segunda
Dia dos bôbos! Repasso a semana-santa.
Escrevi ao Dário. Falta faze-lo ao Pacheco.
Hoje recebi um cartão do Rosário, escrito pelo Alberto offerecendo-me 5 sacos de semente de trigo. Artigas
de que está a Secretoria da Agricultura fazendo distribuição entre os agricultores. Vou responder-lhe, talvez já.
Domingo fui aos Escosteguy, conversamos e por fim, dansou-se um pouco. De chegada, appareceu a mulher
do capataz (Aurora). Investiguei cousas para achar assumpto.
“A Inah (a loura) achou o “seu” Gonçalves um moço bonito. Conversou bem e sem cerimônia.”
Santo Deus! Essa pequena é cega e não ouve, por certo... Ficou braba porque mexeu corn ella. Então não se
pode symphatizar com um rapaz sem gostar delle!?
Não esperava por essa; mas a vida é assim: dá-nos o que menos ambicionamos. Todos nós somos uns
aventureiros a descobrir o Pólo Norte do desconhecido, do que não é nosso!
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Maio
Maio, 3
Passei uma semana deliciosa em casa do seu Ângelo, a convite do Telmo. Impressão óptima do
estabelecimento e, ainda melhor, do modo como me trataram. Tudo isso já era do meu conhecimento, o que me
permittiu aprecia-lo mais à vontade, liberto da suggestão sempre favorável, em nós provocada pelas coisas novas,
vistas pela primeira vez.
Apenas no Domingo pude aproveitar para rever a cidade. Mas foi um dia aproveitável, bom... A Hilda, como
o Telmo lhe insinuasse ser eu um admirador da Elsa Rosat, sua prima, offereceu-se para m’apresentar-la aqui em
Sant’Anna, quando viesse aqui, ahi pelos dias 8 ou 9 deste. Si amanhecer com vontade talvez vá a cidade n’aquelles dias.
A fim de verificar se o carrapato morre na verdade e não cae simplesmente do couro do rez banhada, tomei
hoje, a sahida do banho, 3 carrapatos fêmeas e os depositei numa caixinha com lã.
Recebi carta do Firico e uma participação de casamento do Troa.
Secco desde o dia 24 de Abril. Um mez e pico sem uma gotta água e isso na entrada do inverno.
4 de Maio. Sabbado
Carrapatos! Acham-se vivos os patifes. Mexem as pernas; 18 horas após o banho, realizado às 8 da manhã.
Minha correspondência está atrazadíssima; devo resposta ao Pacheco, Edgar, Xavier e Firico. Ao Troa não
penso agradecer-lhe a participação; aquillo é um bohêmio; uma felicitação minha lhe terá tanto valor como um
cigarro doado pelo primeiro amigo que topar no caminho.
Noite. Reina Arthemisa (Se não me falha a memória) ou melhor, não reina, porquanto estamos em plena
minguante. A gente fica scismadora... Com vontade de ler poesias sentimentaes. Não há dúvida comprarei - assim que
for a “city” - um poeta lyrico – G. Almeida - Campoamor ou o próprio Cyrano de Rostaud.
Falando em livros, preciso alguns volumes de Eça, obra pósthuma, para doa -lo ao Telmo no seu dia
onomástico, 1° de Junho.
O Eça é adorável em suas cartas. A ironia fina, pontilhando com elegância e gosto as suas missivas, op faz
um dos meus autores predilectos.
Chega que hoje não sinto ganos de escrever; pudera, si estou a faze-lo encostado na preguiçosa!
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É a terceira vez que vou a Uruguayana e pela terceira vez trago a mesma impressão deliciosa sobre a I...
simplesmente adorável aquelle espírito brejeiro a fluctuar num rosto mimoso, como um fluído magnético cujos pólos
fossem, um os olhos pequenos, semicerrados, e o outro o queixo levemente curvado como a demonstrar ser a vida
suave e bela como aquella forma.
Desta vez fui franco com o Telmo. Dissse-lhe sem rebuço qual era a pessoa que mais me encantara na terra
delle; mas elle guardou um silêncio inexplicável sobre o affecto, comentando apenas e em poucas palavras a sua
belleza. Creio que elle trazia algo no cérebro; sahiamos do cinema onde elle estivera ao lado da pequena. Talvez este
me estivesse n‘aquelle momento me roubando a Inca. Pode ser pois a não se admittir isto, desisto de explicar a razão
porque elle não fez malícia sobre a minha declaração, ainda mais que 5 minutos depois entramos em casa (a delle) em
que uma assistência havia, toda favorável a um “trote” ou comentário:
Da. Corintha, Antônio e Senhora.
Hoje é quatro e d’aqui a 4 ou 5 dias elle passará com a irmã para Sant’Anna. O diabo é que não coincide
absolutamente com uma das minhas idas à cidade que a venda do arroz me obrigará a fazer.
Havíamos - eu ao menos - de passar boas horas. Quem sabe se a Hilda com o desejo bom de me proporcionar um
flirt em Uruguayana, não agitasse os pausinhos, (vindo a saber da cousa) para a próxima vez que eu lhes visitasse a terra?!
Em todo caso não quero que exagerem os factos dando-me uma cara de apaixonado recolhido.
Um flirt, só e nada mais. É isso mesmo, um flirt que bem podia ser dos “grandes” que vão até as cartas.
Chega por hoje, vou ler algo, Dechaubre, Maryan...
6 Abril. Segunda
Carrapatos: observei-os ao meio dia. Só dois apresentam movimentos nas patas. O outro imóvel.
Começarei a quebrar milho à tarde. A secco, 6500.
7 de Abril. Terça
Carrapatos. A mesma observação de hontem. Nada alterado. As vaccas banhadas ainda não largaram
os parasitas.
Poderá o Firino, recém casado, ter prazer em receber uma carta minha? Não sei responder cousa favorável à
minha missiva, pois dizem ser o amor um egoísmo à dois creador de um mundo cujas fronteiras cercadas por uma
muralha da China só da ingresso ao que lhes interessa. Estas cousas os livros não ensinam; resta-me apellar para a
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razão, a deusa Razão. Differente da sua homônima da Revolução Franceza, menos incensada que ella mas mais
respeitada no cérebro de cada um da nós.
Maio, 10. Sexta
Possei o dia num desânimo enorme; desânimo que começou ao receber a carta do Dário e o cartão do Telmo.
Não que essas missivas contivessem algo desalentador, qualquer cousa capaz de cortar ou frustrar pianos meus. Não;
com fermenthos ellas agiram simplesmente pela presença, como catalyticos. O Dario convidava-me para assistir o seu
casamento a 20 deste em Bagé, e o Telmo para ir a Sant’Anna encontrar-me com elle, ora de passeio por dois dias
n‘aquella cidade. Coisas simples, nada mais. Mas acontece que a quebra do milho impede-me de sahir por um dia que
seja. Si fosse um serviço, um trabalho de rendimento de bom grado acceitaria eu a coincidência dessas visitas com a
impossibilidade de largar a estância; mas não; o cercado como lucro de um anno, é ridiculamente miserável. Os seus
300 ou 400 saccos promettidos são muito, não há dúvida, mas provocariam um riso triste, si a considerarmos como o
fructo do serviço de um anno. 12 mezes na campanha, na solidão para se ter aquelle resultado!!
Maio, 29. Quarta
Ha muitos dias que não escrevo; preguiça e não por falta de assumpto. Continua quebrando milho; a cousa
vae dando. O preço é bom mas não o consegui vender em Sant’Anna em condições que me agradassem. Vou
esperar mais um pouco.
Que frio, santo Deus! os dedos friorentos e duros, se recusam a dirigir com feito a penna.
Em Sant’Anna passei 3 dias. “Flirtei” com a Myrtha as duas vezes que a encontrei no cinema, e no dia
seguinte o Mario Cunha, encontrando-me na rua, levou-me em seu auto à redação da Cidade onde, sob o meu
espanto, tirou duma gaveta, o retrato della. Fez uns comentários triviais que eu mal tentei rebater, pensando apenas
em obter a photographia. Afinal, não lh’a pedi.
À noite fui a uma kermesse no Caxeiral. Procurei sem apresentação, uma pequena, Santinha (Emilia
Monteiro?). Não valeu a minha audácia, pois já tinhamos sido apresentados há tempos. Conversamos um pouco,
isolados, o que me valeu os 2 telegramas functo. Ah! Povo danado... e eu que pensava ser um “illustre
desconhecido”...Nem este prazer me deram. Ultimamente, ella era novinha e bem agradável i proporciona uma boa hora...
Ovelhas. Ante-projectos
3000 ovellhas a 35 $ = 105:000$
70
juros a 9% = 9:450$
Arrendamento 10 quadras - 15:000$
Despezas costeio ...............- 12:000$ - 36:450$
Lã: 6.600 Kg a 5$ ................33:000$
500 capões a 35$ .................17:500$
200 borregos a 15$ ................3:000$
Lã: 1000 Kg a 3$ ....................3:000$- 56:500$
Saldo 20:000$
Gado - campo grosso
750 rezes - 140$ .......................105:000$
10 quadras a 700.... 7:000$
costeio .....................l0:000$
juros 7% .................9:450$- 26:450$
70 bois a 250........ 17:500$
70 vaccas a 200.... 14:000$- 31:500$
Saldo 5:000$
Ou então:
150 bois a 200 = 30:000$
100 vaccas 0150 r 15:000$
50 vaccas a 200 z 10:000$ - 55:000$
55:000 - 21:000 para 150 rezes de cria = 34:000$
Saldo 7:500$000
Invernando:
700 vaccas a 150$ 105:000$
Despezas................26 :450$
71
131:450$
500 terneiros a 40$...20:000
500 vaccas a 200$.... 100:000
200 vaccas a 150$ ... 30:000
150:000$
Saldo 19:000$
Junho
Junho, 18
Recebi hoje uma carta da Diva. É muito amável esta priminha. Vou responder-lhes qualquer cousa. Impôs-
me a penitência de lhes escrever outra carta sem mais delongas, só assim farei jus ao perdão concedido. Não há
dúvida, escrever-lhes-ei: Penitente humilde a dar só satisfação que a deusa (que não erro, pois és “Diva”) exige para o
perdão bondosamente concedido. E, constricto, protestarei obediência eterna a sua vontade.
Junho, 23. Domingo
Dia bom, varrendo a tristeza de um Sabbado encharcado. Escrevi a Diva; talvez não lhe obtenha uma
resposta visto estar comprando passagem para ir ver o Rio. Ultimamente, correspondência amiga que não traz
anseios de espera, próprios dos namorados.
Estamos resolvidos a arrendar uma estância que ficará sob a minha direcção immediata. E assim voltou-me
a esperança de ganhar dinheiro, esperança de há muito posta à margem da vida que eu levava aqui no Tarumã. Nã o a
tinha perdido é certo, mas ficara latente, a espera de urn raio de sol que a despertasse para o trabalho, pare a lucta.
Estou bem disposto; disposto para tudo: trabalhar, ler e até para namorar as pequenas. Parece incrível, mas é isso
mesmo o que sinto.
Junho, 30. Domingo
Hontem à tardinha recebi o bilhete seguinte:
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“Amigo Paulo Gonçalves Saúdo-te. Este é para te convidar e mais o Raul, e o Carlito pare virem para nos
jogar um loteria, e se viher um muzico dansamos umas marcas e também seu Pacheco.
Saudades do Amigo
Marcellino” (textual)
É claro que não podíamos recusar. Noite sem lua; um inferno, valeu-nos a claridade que sahia da janella da
casa. Sinão fora tal luzinha, mal e mal divisada...
Moças 4, três delas filhas do seu Miúdo, ex-capitão revolucionário. Rapazes, nós e os da casa. Contudo foi o
sufficiente pare attender ao apello da nossa victória, permittindo umas horas alegres, um verdadeiro “encurtar noite”
como diríamos nos tempos acadêmicos.
A nossa chegada interrompeu, é claro, a loteria (víspora) ainda em meio da primeira partida.
A dona da casa, filha do Gal. Honório, foi gentil em seus trajes um tanto sujos. Serviu-nos de início um
“traguinho” - que “canha” braba! Devolvi quase inttacto o copo; às 10 fomos ao comedor refazer energias n’um moka
completado por uns bolos. Por volta da meio-noite uma bandeija com a dita branquinha, desta vez açucarada,
passeiou pela sala; as moças próprias nos dão o exemplo, esvasiando os copos... (dos de vinho). Vieram ainda umas
balas e após a última marca – à 1 da manhã - voltamos à mesa a dar conta de uma marmelada com queijo.
Boa noite, não há dúvida.
Entregaram o Tarumã e foram arrendar a estância do Rochedo, no Alegrete.
Novembro
20 de Novembro de 1929
Veiu-me este caderno do Tarumã Até que enfim. Custou. E eu escrevi à toa por livretas e folhas soltas,
obediente sempre à volúpia mansa de galopear a penna.
26 de Novembro. Terça
Depois de uma estadia de 15 dias voltei ao Alegrete. Passamos o Domingo e a manhã de Segunda. Registro:
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Casa do João Peres. Conversa a Da. Marica com uma vizinha, Virginia e eu também. Diz a primeira
comentando o baile que fizemos no dia 10, anniversário do marido; e o desânimo da rapaziada local em organizar festas:
“Si tivesse 2 ou 3 como o seu Paulo, este Alegrete se endireitava”.
Isto assim de sopettão e p’ra um estranho, atordoa. E eu abobei. Talvez dissesse qualquer cousa bancando o
modesto... mas não me lembro.
Hontem proseávamos no jardirn, Virginia, Zenaira, Tino... Este no decorrer do assumpto, vasto mas somente
sobre “elles e ellas” citava de vez em vez uma moça e dizia-me - “vou-te apresentar para fazeres uma carguinha”.
Mais outra para eu namorar; à terceira eu protestei:
“Que diabo, por ventura sou namorado de aluguel para satisfação immediata das pequenas que
estiverem desocupadas?”
27 de Novembro de 1929
Esta vida vae que é uma belleza. Aqui fora mato o dia com trabalho, leituras e visitas ao Dr.Miguel. Nesta
última vou seguidamente; palestro com todos; intimidados. A “moça da casa” trata-me com muita attenção e estima,
que eu lhe pago o melhor possível. No entanto não há namoro, nem mesmo esta cousa mais distincta que é o flirt.
Sinto contudo que há grande attração instinctiva entre nós. A parte que lhe toca o Aristides traduz vulgarmente por
um simples “ella gosta muito de ti”. Talvez exagero. Creio porém que no Alegrete alguém já descobriu um namoro
nessa relação, pois a proposta de um assumpto, ella me disse:
“Aqui no Alegrete um rapaz não pode manter relações cortezes com uma moça, sem que vejam namoro nisso”.
28-11-1929
E depois não é só isso, o que? Nem sei a loucura dessa phrase que me brotou da penna.
Cedito fui ao seu Miguel desarmar a grade de discos e leva-la ao Érico; antes de chegar a casa deste cheguei
no Vivaldo. Não estava; appareceu-me o irmão. Não o conhecia. Trouxe matte. Puxei o assumpto, veiu facilmente.
Tento descreve-lo aqui.. mas como não me preveni não fixei nenhum de seus característicos. Preciso corrigir esta
inhabilidade. Typo grande, trigueiro claro; barba de 3 dias. De chinelos e modos de galpão. Fala aos tropeços como
quem é gago de palavras e não de sons. Cabelos escuros e olhos que lhes acompanham a cor. Rosto redondo, traços
grosseiros. Diz com firmeza que para o arrendatário só a avelha e a mula. E é só.
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Novembro, 30
Sabbado. Semana ingleza. 2 horas, não pude sestear. Calor. Vem à memória a differença entre a dor e o
prazer, 1ida em Afrânio Peixoto. Aquella é sempre caritativa, generosa, ella se reparte com os outros, buscando nessa
partilha um consolo mútuo que só o generalizado do soffrer é capaz de dar. O prazer, porém, é egoísta; não sae de
nós; queremo-lo todo, sem ceder a outro uma só parte. E às vezes narramo-lo com mystério para sentirmos a
valúpia de vermo-nos invejados.
O homem que assim pensou por certo que definiu bem a cousa.
Daqui a pouco irei ao seu Miguel. O Tino convidou-me para ir ao banho do Caverá. Fez primeiro este convite
às guryas. Acceitararn-no. Assim, tudo diz que iremos, eu e elle, acompanhando as amazonas. Como a Maria Grande,
digo: carreira que não sae.
Em todo caso vae a kodak, que me pediram.
Zenaira. Namorada do Mario. Veiu passar uns dias com a Virginia. Morena cor de rosa. Tem sempre nos
lábios o riso communicativo de uma palavra alegre. Cabellos escuros, soltos, a dansarem aos movimentos de sua
cabeça. Cabeça e rosto bonitos. Perfil bem traçado: evoca mouros, “mahomeds” terraços com mulheres veladas... Por
Deus que foi um nome bem posto. E como as crentes do Alcorão a gente pensa em cahir de joelhos para esta Mecca,
mais moderna e bem mais gentil que a antiga. - O homem é sempre um palerma; não vê mulher bonita sem ter
desejos de adoração. Frágil de corpo, a Zenaira é uma papoula viçosa n‘uma haste esguia, estiolada.
Registro: Tosca/Tósca
No seu Miguel. Os de casa, a Zenaira e a Nólo Lemes. Este, filho do grande Leão do Caverá (Honório Lemes),
hoje sem juba, confirmara às guryas a pecha de petulante. Ellas falavam em música; commentários...
O Nólo obrigado a attender à conversa do seu Miguel não largava do canto do olho o jeito da pequenas.
Tudo ia bem; o seu Miguel a vender touros, as duas a tocar música sem instrumento algum... e o Nólo no
meio disso tudo. De repente uma dellas falou na Tosca. Sim, conheço, diz a outra, a Tosca... e o Nólo pegou de ouvido e
emendou, sentencioso: “Tósca, uma pedra molle”.
Nota minha: Si isto não é excesso de sapiência!...
A Zenaira pisou no pé da Virginia. E eu depois expliquei a estas, o qui-pro-quó da Tosca e Tósca (pedra
molle) arenito decomposto, assim chamado na fronteira com o Uruguay.
Dezembro
75
Dezembro, 1. 1929
Passamos, o Aristides e eu, um lindo domingo. O Dóca com uns amigos, veiu comer um assado em casa do
seu Miguel. Duas mezas. Numa, elles, isto é, as convivas; n‘outra o Tino, nós dois, o Félix Motta e seu Paulino e as duas
gentis “garçonnes” Virginia e Zenaira. “Garçonnes” e companheiras ao mesmo tempo. O vinho era bom. “Boucho &
Veaus” Nada melhor que um estômago bem tratado para se sentir o encanto irradiado pelas mimosas filhas de Eva.
Shopenhauer quando disse serem as mulheres bichos de cabellos longos e idéias curtas, por certo que estava
em jejum. Ora, meu illustre philosopho pessimista, coma um sandwich duplo e vá depois a um footing qualquer
que há de mudar de pensar.
Dezembro, 9. Segunda
Desde sexta que ando com uma perna inmóvel; enterrei lá no matto um machado na canela. E leio, e penso
e escrevo. Descanso o corpo e canso o espírito. O seu Miguel está seguidamente aqui, já jantou 2 vezes em 3 dias. O
homem tem uma inclinação tremenda para attender doentes. Faz curativos, tem zelos e entertem horas a fio,
narrando casos mil que deixam na gente que pensa a sensação de ver perder cousas que fariam bonito n‘um livro qualquer.
Dezembro, 14. Sabbado
O meu pé nada de sarar. Fui contudo ao Alegrete comprar cimento p’ra o banho. 10 barricas a 48$000 cada
uma. Passamos 17 horas na cidade. Calor de aflouxar as unhas.
À noita tomamos um gelado no Luna. “Ellas” faziam também o seu footing. Mas resolveram não faze-lo
mais. Trocariam-no por um sorvete. Convidaram nos acceitamos - que remédio! Vieram gelados... conversou-se
bastante (euphemismo de thesourear). A Zenaira faz gracinhas; a irmã sente pelas três, e a Virginia ri com alegria.
Repetiram-se ambas as doses: a de gelados e a de “prosas”. Paguei
E voltei convencido
Que a mulher do Alegrete
Foi ver o desfile bonito
Ao “som” d’um aguado sorvete.
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Sabbado, 28
Domingo passado a hora da sesta fui ler umas revistas que estavam na salinha da casa do seu Miguel. Em
um dos números - por sinal repletos de phrases escriptas umas pelo Zenaira e outras pela Virginia, encontrei na capa
o seguinte de autoria d’aquellas duas:
“Não fiques tão triste; elle já está quase bom” (letra do Zenaira) e mais em baixo, vinha a resposta:
“Não é como tu pensas, é bem o contrário, somos só muito amiguinhos”.
E foi só o que eu li, mas, não chego p’ra um registro?
Dezembro, 29. Domingo
Chove. Mez chuvoso este. Almoçamos no S. Miguel; eu, o Aristides e o João Pedreiro. Provei lá uma água
benta, benzido pelo padre quando inauguraram a casa, há uns 4 annos, mais ou menos. Cor natural; cheiro levíssimo
de cousa velha, gosto salgado. Não está estragada, ficaram de mostrar-me outra água colhida em noite de São
João, também em bom estado.
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Ano de 1930
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Fevereiro
6 de Fevereiro de 1930
“Consagrarei meus ditimos dias ao trabalho e progresso ruraes, de que depende igualmente - senão
mais - grandeza Pátria”.
Assis Brasil
D’um telegramma seu enviado a um jornal carioca em 21-1-930
Segunda. 10 de Fevereiro de 1930
A minha vida vae indo sem variante de importância. Pequenos accidentes, há aos montes, mas a sua própria
seqüência me constitue a monotonia deste viver que eu - como todo o homem - não considero a minha ambição satisfeita.
Domingo
Hontem estive em casa do Erico Telles Pereira da Cunha. Casado, pouco mais de 30 annos, 7 filhos e um em
projecto. Mulher moça e bonita. E ainda acha tempo para fazer farinha de mandioca, polvilho e palhas para cigarro. E
sempre alegre. Parece ser feliz. Censura o marido n’um sorriso: “O Erico quando eu estou no Alegrete, alega não ter
nada para fazer lá, e só quer voltar, mas si eu fico aqui e elle vae só, então sim demora tanto tempo!”
Quarta- feira. 26 de Fevereiro de 1930
Há dias fui ao Alegrete. Vendi a lã: uma miséria - 31$ os l5 Kg.
Na ilha do Dr. Euripedes festejavam um anniverário. Fui apresentado - a pedido delle - ao Dr. Basílio
Bins; muito amigo do Armando Barcellos. Affirmou elle, terei muito prazer em manter com o sr. boas relações,
já que vem morar no Alegrete.
Um bailinho bom e fordsinhos em demasia. A Zenaira, sempre linda, é a coisinha mais linda da terra.
Bonita e graciosa é um riso contínuo varrendo tristeza.
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Um tenente conversava com ella, todo obsequioso (ella não dansa, é compromettida com um amigo) Por
trás della estava a Zahira, convidei-a de longe e ao chegar encontrei o tenente também candidato à marca.
Esperei ante a indecisão da Zahira que rasgássemos as cortezias de costume; o tenente porém espantou-me:
- “Creio que a antiguidade dá direito...”
Podia eu discutir esta antiguidade mas não quis. Alludindo a “prosa” delle com Zenaira, “carguinha” que eu
não vira com bons olhos, retorqui querendo ser perverso: - E eu creio que não é de bom gosto se desprezar uma
palestra boa -. Houve um silêncio e eu me afastei depois de retirar n‘um gesto a minha pretensão a dansar com a Zahira.
Março
Março, 5. Quarta
Carnaval - Desânimo que tinha as suas raízes na crise tremenda e geral. Nada de corso. Apenas bailes;
assim a segunda-feira foi vazia, sem uma serpentina ou um tango. Cheguei a andar azedo. Indignado contra esta
frieza, essa falta de iniciativa. E o que é melhor: puzeram-me de diretor de um dos bailes! Bradei contra este cargo
decorativo e sem acção, pois nada fiz. O “B.S Não ri que eu choro” não me comunicou “aquillo”; simplesmente
publicou a lista na Gazeta. Vão p’ra os diabos!
Apresentaram -me Gioconda Coutinho – Clory Alves - Olga Telles - Paulina Soares - Alvarina Pereira
e, Mimosa Souza.
A Clory procurou a Virginia no baile. Queixou-se que eu não dansara com ella aquella noite. Mas fez um
rodeio por longe; si “o teu companheiro” também ia p‘ra fora amanhã. E sentiu-se despeitada - “elle não me vem tirar”.
Meu buraco! Soube isso ao finalizar o baile. Si não teria esforçado-me para tira-la ao “empate” que toda a
noite impedia-me de chegar-lhes perto. E nós nos vínhamos cuidando desde o começo do “samba”. Enfim eu poderia
ter feito mais alguma cousa. Com a Mimosa houve um “flirt”; o povo commentou, como sempre; e ella falou em
noivado e casamento. Aborreci-me e abri o petiço. No final uma carguinha a Gioconda. Pareceu propensa a acceitá-la
mas o galope do fim deixou duvidosa a cousa. Em compensação, uma “mirada” olhar breve, rápido e - pareceu-me -
de excitamento, a porta do club esperançou-me para o próximo Domingo, em casa do Sr. Manuel Bicca.
Abril
80
Abril, 4. Sexta
Foi a minha graphomania. Troquei-a pela leitura. Leio tudo. Occultismo, Yogi..
Italiano... (manteggazza no original)
Afrânio Peixoto - A Esfinge
História das Missões... etc... etc... afora os jornaes.
Para não sepultar este diário vou arrumar um copiador para as cartas. Ao menos alli terei uma parte da
minha vida registrada.
Da lágrima que a Virgem
Chorou n‘uma saudade
Com dó de Jesus feito homem
Nos deu a Virgínia Trindade
Noite de vento, “Invernia braba” incerteza de corações fustigados pela dúvida. Sybillam descrenças nas
folhas das almas.
E no oitão do corpo uivam desordenadamente desejos insofridos. As flores frágeis dos sonhos as
amortalham pelo chão; grinaldas de felicidade desfeitas...
Crepes negros de amores traídos enlutam os céus, velam fúnebres as estrelhinhas do passado ditoso.
Voem-se à lua - a saudade em hóstia - no negrume tétrico do mão tempo do meu coração que soffre...
Fumaça de El agregao
Guilhermo Quadri
Fumaça do meu fogão, escuta!
Quando deixas os tições, antes nesmo de subires,
É em nome delles; é vingando seus mortos, que nos fazes lacrimejar?
Fumaça do meu galpão, pretenciosa!
Poia as vezes, ao trepares para o tecto, te entreparas, avolumando-te e, invejosa dos que estão no céu, voes
formando nuvensitas, que se vão...!
Outras vezes, preguiçosa, para não ires tão depressa, te vaes dando volta... volta..., parece que brincas como
os gurys do povo, quando se juntam, de roda!
Agora, louca e assustada vaes fugindo... vaes fugindo...
Será que virasses cobra, e disparas de teu fogo?
81
Fumacinha gaúcha, mais gaúcha que os próprios gaúchos, si ocampeiro já morreu, si já não há quase
baguaes, p’ra que então, muitas vezes, ao sahires dos tições, tu te ergues abrindo armadas de laço no ar?
Abril, 23. Quarta feira
Ella lá ficou no Alegrete. Ella tem um nome e é bem conhecida para que não nos falte commentários ao
nosso flirt. Clory Alves... E o Osório diz-me que ella quer... casar. Assim pensa naturalmente ir mais longe que um
simples “flirt”. Eu no entanto, simples desejo de cultivar uma sympathia nascida expontânea no baile de 31-12-1929. E
mais tarde uma saudade boa do que se passou, do que se disse, dos devaneios.
E o povo me irrita com as perguntas tão banaes, indiscretas. Vejo bem a verdade do egoísmo a dois.
“Ou ne passes pas” brado insensivelmente aos atrevidos. Quero virar a página, proseguir a leitura deste
romance. Mas sinto a precisão de suster-me na descicla que pretende arrastar-me para a perda dos compromissos;
peráo com só uma escada: a “ursada”. E ella vem veranear aqui perto, pertinho mesmo, no S.Miguel Veranico de Maio,
decerto o coração não tem inverno, na mocidade. É sempre abrazador.
No baile de Alleluia conversamos em tudo, menos em nós. Eu evito e ella não procura.
Não é criança, bem se vê, e comprehende que é uma lucta de diffícil Victória para ella.
Abril, 29. Terça
Hontem passei a chuva que duriu o dia todo, lá no S. Miguel. A Clory estava. Havia em tudo dispositivos de
um namoro entre nós. No entanto ella, reservada, evitava os meus olhos, tal qual fizera no Domingo. Conversamos até
tarde - 12 horas - sendo a última hora só nós 3 - Ella, Virginia e eu. Tanta cousa se disse. Comprehendo que ella
sabendo de meus flirts mantidos ainda, tenha a dignidade de calcar a sua inclinação. Retrae-se. Hoje voltei depois da
janta e sahi agora as 11 ½. Tirou-se a sorte e fizeram-se adivinhações: um serão simples como que não conheci e os
livros me ensinaram. Ella deu-me a violeta que hontem eu lá deixara entregue-lhe.
Comentou um sonho - mas mui por longe - que a Virginia tivera em voz alta, confessada por ella Clory.
Prometeu contar-m‘o mas a Virgínia protestou. Mais adiante uma sorte “affirmou” a Virginia que o seu namorado
estava perto e a Clory alludiu maliciosa ao sonho, sem porém que eu chegasse a exclarecer-me; o único rapaz que
estava lá era eu. Verei si consigo saber algo mais tarde; supponho ser cousa interessante.
Vou dormir. Ella pediu uns monogrammas.
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Maio
Segunda. 5 de Maio de 1930
Clory. Como é bom escrever o teu nome. Accordar com elle aquelles dias de enconto meigo passados lá na
cidade. Cinco letrinhas só e formam todo um alphabetho de graças.
A B C pequenino e que basta ao coração para a leitura do amor. Vejo-as todas dansarem nos teus olhos que
noite dilatou ainda mais: parecem que querem ser uma larga porta para a entrada juncto ao teu coraçãosinho.
Dois sonhos
O primeiro já tem 3 dias. Éramos nos dois a conversar, só recordo um de nós – qual? Não sei - a indagar do outro:
“Porque você se mostra tão reservado (a), porque esta incerteza?”
Talvez fosse eu mesmo a pronunciador desta phrase, pois a tua attitude aqui na casa do Sr. Mguel
permittia tal pergunta.
Outro
Ante-hontem; voltara da cidade onde pela primeira vez conversei contigo pel a janella - noite que
merece ser registrada - Éramos ainda nós a falarmos a sós. Nada lembro a não ser que a um olhar mais
demorado eu tomei a tua mão e sem res istência alguma levei-a aos 1ábios. Era o primeiro! Palpitando, retiraste-
a ligeiro, murmurando sentida: “Oh! Paulo...”
Maio, 5. Segunda
8 ½ da noite
O cravo que me deste cá o tenho na minha frente. Emprensado, sofre a falta de liberdade, como o meu
coração a tua presença; imagem da realidade!
Mas desprende um tão bom aroma! E o cheirinho as saudade. Assim, meu coração como o cravo rosado da
“estima” que symboliza, evola-se em sonhos - aroma da alma -!
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A tua lembrança purifica a minha vida! Pensar em ti é comungar a inocência. E a hóstia do teu olhar de
ternura me torna tão bom, outro homem.
Vês? Não sou mesmo ao erguer-me do altar da tua presença.
Lembra-te a noite do nosso encontro? Tu não me esperavas - e nenhuma surpreza te causou a minha chegada. Eu
não promettera, nem a mim mesmo, a meus passos andaram para a tua janeia. Fugiram as horas ante o nosso enlevo...
E ainda guardo nos ouvidos - um murmúrio de saudade - a tua voz. A tua voz! Nunca a esquecerei a sua
carícia muda, embriagando os meus sentidos...
No entanto eu te sinto tão longe. A felicidade ainda não nasceu para mim - e tu és felicidade. Vieste muito
cedo, sim, cedo demais. Minha sina não me quer feliz, em teu sorriso, e mandar-te-à embora, para a felicidade de outro.
Terça. 6 de Maio de 1930
Um sol de inverno nasceu após uma incubação de 6 dias de chuvas. Água a valer.
É tarde, vae o sol morrendo, amortalhado na tristeza do inverno. Si não morre na minha memória, aquelle
pensamento com… do externo.
Clory. Vou copiar o que escrevi no café Paulista!
Reli para que copiar? Lá está na livreta e ficará guardado para a velhice.
Vem - traz-me a alegria
Que innocente nascia,
No quadro da janella
N’aquelle inesquecível dia.
Já era de noite, e teu vilto no peitoril attrahia a attenção dos visitantes. E eu já sentia que cada um d’aquelles
“boa noite” levava um pedaço de ti própria. Ciúmes porque me roubavam a tua attenção.
Sexta. 9 de Maio de 1930
ABC do amor – Clory! E tem apenas 5 letrinhas; mas com ellas sinto aqui toda a graça que tinhas
n‘aquella noite tão mansa. A chuva guasqueia lá fora e guasqueia aqui dentro também, ensopando-me de
saudade por ti - symbolo da felicidade.
Maio - inverno e violetas... florzinhas humildes que o povo diz symbolizar a ingenuidade, a modéstia.
Fardineiro feliz, descobri- te na folhagem espessa, e a minha mão, trêmula e ousada, arrancou-te de lá para a luz do
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dia, para a luz do meu olhar, para o dia do meu viver. Tão pequenina - levo-te na mão - mas os meus dedos tão
grosseiros temem magoar o teu carinho, o aroma de tuas pétalas meigas.
Maio, 15. Quinta
Novamente temos chuva - e a enchente é grande - enorme. E eu o dia todo preso por uma dor de dente,
fraqueza sim, mas incommodativa ao último.
É verdade que nem o Tino e a Virginia lá estão em casa - mas o seu Miguel era capaz pela prosa boa de me
prender por lá todo o dia.
Entreguei a Virginia os monogrammas feitos para a Clory. Achou-os muito bonitos, censurando-me por ter
allegado ingrata a tarefa. Quase que escrevi juncto a quadrinha seguinte:
Cresceram sem borracha
Mas achei-a tão sem graça
Filhos da boa vontade
Perfeitos ninguém os acha
Mas também não trazem vaidade
Já anoitece - uma dor de cabeça, resultado de passar o dia todo deitado e a ler.
E eu prometti ir ao Alegrete quando o Tino...paciência...
“Nem sei como fiquei; elle da-me uma esperança e tira 2ou 3”.
Dito por ella ao Tino.
Maio, 18. Domingo
Na Sexta recebi notícias do Alegrete pela Virginia. A Clory agradesceu as letras. Está muito zangada e
descontente por ter eu faltado a promessa de la ir. E às justificações allegadas pela Virginia e Tino bradava: “Vocês são
suspeitos e elle tinha me promettido”.
Viagem incerta e a dor de dentes fizeram com que eu ficasse. E não me faltava vontade.
Ella passou por mim de auto. Ia voltada mas a companheira - a Esthersinha Kisboa, avisou-lhe a minha
presença na calçada. Pilhou-me preste, virando logo o rosto ao dar com o meu olhar. Foi um instante, porém tornou a
olhar-me até o auto desaparescer.
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Si não fosse sonho bem poderia ser a imagem da realidade.
Maio, 19. Segunda
Noite - frio - ameaças de geada para amanhã.
À tarde a Virginia, a Zenaira e a velha Ottília vieram à capellinha. Lá encontrei-as procurando trevos de 4
folhas. Os primeiros foram presenteados. Pecebi da V.1 da velha 1 e dei um à Zen. - Estivemos mais de hora e os trevos
não se fizeram rogar - uns 12 de 5 folhas e talvez ½ cento de 4 folhas. A chei 16 destes últimos e não fui o mais feliz.
Amanhã vamos ao Alegrete. Verei a Clory - deve estar sentida. Quero falar-lhe - saber se me considera um
pirata, como o disse a Virginia.
Sabbado. 24 de Maio de 1930
Continuam as chuvas. Estive no Alegrete. Só papa ver a C. fui assistir à Vida de Christo num cinema
semivasio. Enfim nos olhávamos como crianças no seu primeiro namoro.
Hoje à tarde pedi a Virginia um retrato que a Clory lhe dera com a condição de não dá-lo a ninguém, nem a uma
pessoa muito conhecida. Decerto esta condição foi feita para ser violada pois a Virginia gentilmente deu-me o Kodaksinho.
Colheita de Trevos
No cerrito, de pedra e velludo verde,
Operiariazinhas gentis
Sentadas na relva
Cartam nas foices roscas dos sonhos,
a haste tenra dos trevos de 4 folhas,
de cinco folhas.
E gritinhos e abraços brilham no sol de crystal
deste Maio tão cheio de luz,
annunciando ao céu a boa sorte,
pois aquelles trevos trazem a felicidade,
e piamente eu creio nisso tudo.
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Colheita da sorte,
que já é sorte grande
a gente assisti-la.
Segunda. 26 de Maio de 1930
Chasinho das 4
Chícaras transparentes
Retalhos dos pagos japoneses
Inebriante infusão aromática
Descem os gestos elegantes
N’um vão manso de garça rósea
E vem pousar na minha frente
Ópio aristrocata fumegante
E o tempo valsante passa
Em imperceptível fumaça
Que se ergue da taça
Junho
Junho, 22. Domingo
Há um pampeiro fracamente colorido por um sol desmaiado; é o inverno, inverno de vento e sem geada.
Fustiga a saudada na alma da gente, que mal se aquece tristemente, no sonho de hontem. Na praça a noite...
Já na véspera a Lila dissera-me que tu desejavas falar commigo, e marcamos a hora: depois das novenas, na
praça. Mas foi na rua Ypiranga, a chamado da Lila que eu cheguei. Anormalmente a rua estava cheia.
Cheguei calmo (estranhei tal sossego) pisando firme nas botas velhas. Começamos a quadrar a praça.
Mostrou-me uns retratos; é claro que pedi um. Negou. Insisti, foi pequena a lucta e deu-me com a promessa
(recurso meu que conquistou o postalsinho) de mostrar-lho em Porto Alegre, onde será confirmada a
offerta. Mais tarde exigiu um em retribuição; prometi-lhe.
Praça da Conceição, 46
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Com os monogramas feitos a Clory, surgiram pedidos de envaidecer. Eis-me “artista”. O diabo e
que não sei como sairei: si vier inspiração a influenciar...D. Ernestina Milano (offereceu-me paga em doce) -
D. Anna Milano e a Virginia Milano; esta (noiva) quer uns grandes para os lençóes. Três milano, mas todas
em hora e logar differentes.
Junho. São João. 1930
Hontem fogueira no cerrinho. Negrinho caminhando nas brazas a pés nus. Milagre de São João -
as brazas não queimam. E os pés pisam devagar sem receio. Depois as sortes em torno à mesa. Dados, livro
de sorte... clara de ovo...agulha n’água. Rizos e malícia. Na bacia com água, três agulhas: as 2 únicas guryas,
Zenaira e Virginia e eu. Vem revelar os nomes. Torcida de todos, não obstante o segredo. Uniram a Z. e eu.
Julho
Julho, 20. Quarta
Há dias atrás - depois da janta - estando sentado nesta meza senti vontade de fazer um soneto. E
risquei com facilidade que me espantou, os 14 versos. Não os acho de todo mau, falta principalmente
conexão entre o início e a chave.
Sabbado. 12 de Julho de 1930
Fiz uns monogrammas para as “Milano”. Juncto aos do Virginia vae o bilhete.
- O seu pedido; ...não o attendendo veria você nisso somente muita má vontade; procurei executa-
lo e me saem estes rabiscos. Não ambiciono que elles lhe agradem; quero apenas que veja nelles uma
maneira de evitar um “não sei” grosseiro ao seu pedido.
É preferível ter tido na conta de desastrado, do que passar por descortês.
A liberdade deste bilhete também merece censuras mas a culpa é da calumnia que deu uma falsa
habilidade em fazer monogrammas a este seu criado muito respeitoso e amigo.
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Paulo Annes Gonçalves
Agosto
Domingo. 24 de Agosto de 1930
Há 5 dias que vim de Porto Alegre onde passei 28 dias. Fui ao Seu Miguel, onde falamos a respeito
do Clory, cujo namoro desfiz em P. Alegre.
Soube algo - dessas cousas que surgem depois. Que ella era censurada por me procurar demais,
respondendo a isto que desejava casar e essa era a sua theoria; que o seu affecto era sempre ao Newton;
pobresinha, na situação em que está só a mão d’um marido lhe trará venturas.
Agosto 26
Encomendei os livros abaixo por intermédio da Engenharia:
Larousse Agricole
Copey - Machines Agricoles
Lê cheval - E. Cuyer
Estudieur du cheval – Lesbre
La connaissance du cheval - Giyieis
Revue de Zootechnie
Agosto, 29. Sexta
8 horas e 12 da noite marca o “Cyma” fulgindo o seu ouro à luz tola do lampião. Li durante 1 hora
críticas literárias. Penso - como em todas as horas de melancholias - na vida. O que é ella? Interrogação que
já prisma pela chatice. E rio dos conytrasytes que ella me offerece. Quase no mesmo instante leio Renan e
mando botas as vaccas. Acompanho o Eça ao Egypto e ensilho o Huraño para dar uma volta no campo.
Porto Alegre
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Lá está a minha saudade! Olha para as margens do Guahyba e vê tudo, não destacando nada
em especial.
A noite passada deu-me um sonho: uma festa, muitas mezinhas occupadas por moças que
traziam todas idênticos vestidos, como a pertencerem a um internato.
Em uma das mezas o Amado acompanhava a irmã. Era o único homem sentado. Passei notando aquella mesa.
Pareceu-me que o Olviro mostrava-me a irmã…
E accordei. Em P. Alegre fomos companheiros de passeio, agora neste inverno. Bi-collegas, forjamos uma
intimidade rápida. Nunca porém falou-me na irmã, embora eu saiba que tem uma e é linda no dizer do Guido
Aranha. Apezar destas associações, este sonho surgido 10 dias após a minha chegada, não deixa de ser algo interessante.
Setembro
Setembro, 21. Domingo
Primeiro dia primaveril! Ar pesado; “dá preguiça” disse com justeza a D. Morena Bijodoni. Jantei e o ventre
cheio esboça um soneto. Havia de ser o ventre pois que tendo se fartado reclamou nos versos o casamento, isto é, a mulher.
Tentei depois ler Eça, Rabindranth... mas qual, é uma ânsia para devaneios: preguiça intellectual, poderia
dizer aquella senhora si não morasse em ranchito de torrão.
Conversei com o Seu Miguel e os seus todos. Intimidade, quase...de casa.
Outubro
4 de Outubro de 1930
Rebentou a revolução desde hontem. Potreando gente e cavallos; pegaram o povo de surpreza. E amanhã -
victoriosa - irá às nuvens o patriotysmo dos gaúchos...pegados... obrigados...
Outubro, 6. Segunda- feira
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Noite. Sem notícias da revolta. Late o Jaráu, teimosamente... elle vê no luar inimigos impalpáveis. Dizem até
que os cães odeiam a lua cheia. Mas elles querem apenas, zelosos e fiéis, guardar a noite que o drama “Dogs
myths” teima em roubar.
9 de Outubro de 1930
Havia calmado a revolução aqui na zona. Soltara-se o pessoal, e eis que o Seu Miguel recebe um recado para
reunir gente e seguir amanhã. Elle veiu falar comigo. Parece incrível que homens como o Dr. Eurípedes e Péricles
Silveira, em assumptos de tal monta se limitem à imprecisão de um recado.
O que é um “próprio” ou uma lata de gazolina quando se trata de transtornar a vida local, diminuindo os
trabalhos nas estâncias e deixando famílias pobres sem sustento? Resolvem esperar algo positivo. Tudo isto nada é -
preocupa-me mais o facto da Poivrè estar sendo despregada pelo Huraño enraivecido. Este cavallo atira-se à égua
como a um pastor e interessante - nunca implicou com cavallo algum. A própria manada delle as vezes tem um ou 2
cavallos mansos. Até já lidei os dois com os olhos vendados. Mas nada. Estou aborrecido. Já pensei em submetê-la ao
pastor do Dr. “Enehgeds”.
Estou quase resolvido a ir para a revolução. Eu, revolucionário! Sim senhor. Anti-militarista - as guerras são
contraproducentes em face da iluminação e saber humano. E, depois, vitoriosa a revolta, effectuadas as mudanças que
constituem o programma da sublevação, deve se repetir - e aqui está o meu pessimismo - o mesmo quadro desolador
de antes. A mesma falta de moral, o mesmo avanço nos dinheiros públicos, enfim a mesma crise de carácter. Si um
dos espoentes actuaes, e muito incensado, recebeu censuras acres e talvez irrespondíveis quando...
Novembro
Novembro, 11.Terça
Depois de ter passado 12 dias em Uruguayana, voltei de novo a sem....deste Rochedo; sempre bom e amigo.
O que me encanta nelle? A vizinhança “velha”… decerto. Creio mesmo estar francamente inclinado...
Mas - vamos ver - não sentirei por accaso o mesmo ou maior ainda affecto pela irmã “mourinha” apezar de
ser quase noiva? Com esta sim - sinto que seria feliz - logo, não havendo lugar para uma dualidade amorosa, a outra
inclinação não é a verdadeira.
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Sexta. 6 de Novembro de 1930
Voltei de Uruguayana onde estive 12 dias a passeio e a comprar touros.
Revolução ; não sobrou p‘ra nós! O Alegrete não mandou as suas forças civis.
E eu passei 5 dias nos arreios, acampado no Aviação ou no Ibirapuytan. Fui e também não fui para a guerra.
Destino... Creio não ser precico muita coragem para ser guerreiro. E amanhã o que dizer? Que fui soldado da epopéia
de 1930? Mas si nem peguei em armas...
Enfim eis a Victoria! Uma nova República. Todos exultam! E nós quando formos velhinhos, bem velhinhos,
em entrevistas aos radio-jornaes, diremos desconsoladamente, sem tremor de voz; “Não foi essa a República que sonhamos”.
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Versos escritos por Raul
Annes Gonçalves
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O Taruman
Esta vida de estâcia
Lá é uma vida gozada
Sempre trabalhando
Para a parentada
Esta estância do Taruman
Muito mal situada
Lá bem longe da estação
Mas muito bem encilhada
A estancia bem grande
Com bastante divisas
A vizinhança em bom número
Com bastante guryas
Temos a envernada do Libório
Bem grande e engordadeira
Lá é que nos falta
Minha Zita ser parelheira
Tenho minha égua Zita
Bem gorda e escorchada
Do Baio e do Mouro amiga
Mais 2 ou 3 guachas
Cavallos temos bem bons
Arreios e fortes caronas
Lá nos falta
Umas bellas pionas
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Galpão temos bem grande
Somos bons companheiros
Lá é que nos falta
Cavallos parelheiros
Dos gados criamos o Colorado
Raça forte e sem igual
Dos outros sempre na frente
Como em P. Alegre o Internacional
Temos Alfredo Pacheco
De confiança e bom pião
Acompanhado também
Do gury Sebastião
Somos 4 sócios
O mais forte chamado Raphael
Tanto nos manda
Como representa o maior papel
Por segundo temos o Paulo
Todo metido a doutorado
Que irá fazer com o Taruman
E o gado colorado?
Por 3° temos o Carlinhos
Moço dos casamentos e bailados
O que irá fazer depois de alistado
No regimento dos casados?
Por último como boi lerdo
Ando eu entreverado
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No meio de tanta gente
Já um tanto encorajado
Ternos o cavallo Mouro
Por signal é...
Corre e alcança tudo
Até gado alçado
Esperança é o mesmo que orelhas
Todos tem uma ou duas
A minha está no milho
E a do Paulo nas ovelhas
Cachorrada também temos
Onde delta-se o Leão
Já com o título
De capataz do galpão
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A História das Estâncias –
1966, por Paulo Annes
Golçalves
97
Narrativa se fatos relativos às Estâncias da família Escrito a partir de 1966
Por Paulo Annes Gonçalves
História das estâncias que tivemos, inclusive da Estância Guará fundada em 1915 pelo meu pai Raphael
Barcellos Gonçalves no município de Rosário (do Sul).
Recordação escrita a partir de 1966. Servirá para não ficar no esquecimento as estâncias e vida rural da
família, como aconteceu com estâncias que nos 150 anos passados a família possuiu em vários pontos do Estado, como
Viamão, Pelotas, Serra e outros.
P.A. 24-4-66
Paulo Annes Gonçalves
Nasc. 9-1-1907
Nota prévia - regitro nesse volume as épocas diversas da vida rural que tivemos, os três, (Paulo, Carlos e Raul) e que
nos levaram de guris na rua Ramiro Barcellos 263 a criadores na fronteira do Estado.
Um carro em 1914
Na rua Ramiro Barcellos, esquina Castro Alves, morava minha avó paterna Rita Barcellos Gonçalves, viúva
de, Manoel José Gonçalves. Ela criou os três filhos menores de seu filho Raphael que perdera a esposa Branca, falecida
em Passo Fundo aos 25 anos. Papai (Raphael Barcellos Gonçalves) morava conosco. Estava viúvo desde 1911 quando
mamãe morrera em Passo Fundo. Tinha ele então 31 anos. Gostava de carros. Na época não havia o automóvel
popular. Os primeiros chegaram em P. Alegre em 1906. As famílias de posses tinham carros com 2 cavalos e bolieiro.
O Dr. Israel Rodrigues Barceios F° (tio Leca) médico homeopatha e irmão da vovó tinha um carro de 4 rodas puxados
por duas mulas bonitas e um preto de bolieiro. Ele morava em Terezópolis em bela chácara onde hoje está o hospital
Espírita. E de carro vinha à rua Ramiro Barcellos, esquina Castro Alves, onde morava a irmã.
As parelhas de animais mais formosas eram apontadas a zelo. Papai tinha um carro norte americano de 4
rodas. Com 2 assentos iguais e sem lugar para bolieiro. Próprio pois para ser guiado pelo dono. Nossa casa tinha um
páteo grande, coisa de 20 por 50 metros. Ali estava a cocheira. O primeiro animal que conheci e que me lembro era
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uma égua rosilha. Chamada “Mimosa” será mestiça de alguma raça de tração leve. Podia ter algum sangue inglês.
Puchava a carro sozinha, nos varais.
As pecas de metal do carro eram limpas por Papae e nós mesmos com líquido e pano de flanela. O correame negro era
pintado e repintado com tinto semelhante à de sapatos. Tudo ficava brilhando como novo. E as rodas eram tiradas
uma a uma para engraxar eixo e buzinas (bucha da roda) com graxa patente a marela. O segundo animal veio depois.
Uma égua douradilha de mais corpo. Viera da Argentina e papai comprara de um amigo seu, o “Piroca Porto”.
Chamava-se a égua “Maicy”, com assento no “y”. Bonita e forte. Em verdade o carro era só para passeio e para fora de
cidade. Íamos a Terezópolis (“chácara do tio Leca, apelido familiar do Dr.Israel R. Barcellos). E também a Canoas, à
chácara do Cel. Inácio do Cunha Rasgado, marido de tia Glorinha, prima irmã de papai. . Viamão tambem era
passeio, embora a 22 Km. Vilanova era outro ponto. Em época de pitangas seguíamos por estradas nos arredores da
cidade. Belém Velho e outras. Tanto com a primeira como com a segunda égua. Qualquer delas puxava o carro de 4
rodas. Não sei o que foi feito do carro. Até 1918, época da gripe espanhola ele estava em uso na casa da Ramiro
Barceios. Esse carro e as duas éguas foram os primeiros contatos que tivemos com animais e coisas rurais. Não
montávamos em petiço mas já aprendêramos a atrelar um animal no carro e a segurar e guiar as rédeas. A égua...
A Estância Guará
Foi a primeira estância que conhecemos. Antes, eu em 1915, janeiro ou fevereiro, tinha estado na Estância
Regina, chamada também de Lajeado pois que era o antigo Posto do Lajeado, da grande Estância do Curral de
Pedras, esta com 13 léguas de sesmaria (650 quadras de sesmaria ou 56.550 hectares). Santa Regina pertencia a Da.
Paulina Salles de Carvalho, mãe de América com quem papai casara em 2ª núpcias em 23-4-1914 (daí veio a marca do
Guará - 23). Era uma estância de 50 quadras com cerca de 3.000 reses e 1.500 ovelhas Merino. Seus campos não
repartidos tinham vários rodeios. Os bois tinham invernada fechada. A casa era grande, de frente reta com porta ao
centro e janelas ao lado. Havia um pátio murado para o serviço doméstico.
Nós três, só viemos a ter contato juntos com uma estância quando Papai comprou 5 quadras dos Soutos, na
Estação Guará. Ele em 1914 começara a fazer galpão e arvoredo nas seis quadras que eram da América. Arrendou as
seis quadras iguais que eram do Manoel Salles, irmão da América e povoou assim 12 quadras. Chamava o novo
estabelecimento de granja. Tinha uma ponta de ovelhas. Em 1915 aparecendo o negócio do Guorá comprou as 5
quadras a 6 contos cada uma. Ou 6.000$000 como então se escrevia. 6 contos eram 6 mil réis. Feito a compra passou
a construir a sede junto à Estação. Era mais acessível. já que a Granja ficava a 1 ¾ de légua (légua = 6 Km) da Estação
e além do rio que se passava de barco durante quase todo o ano. O rio era o Ibicuhy da Armada. Nas 5 quadras do
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Guará não havia casa nem rancho. Coxilha limpa. Papai comprou material de construção em Porto Alegre para um
chalet de madeira, com telhas francesas. Isto em 1915. E com um carpinteiro seguiu para o guará acampando na
coxilha 600 m da estação. Ergueram a casa. Ao lado um galpão com Santa Fé e piso de torrão. Foi num quarto deste
galpão que passamos as férias, os três, quando fomos pela primeira vez para a estância. Creio que em 1919 ou 1920. No
Guará as árvores eram pequenas, mas na Granja já havia fruta e sombra. Por isso tínhamos mais prazer em ir à
Granja, parar rodeio e mesmo dormir uma ou duas vezes lá no rancho onde era capataz o João, casado e com filhas.
No Gará sempre nas férias, começamos a aprender a lida de campo. Às tardes íamos com um peão, o
Alfredo Pacheco (um filho deste, também Alfredo Pacheco, foi peão no Santa Luiza por volta de 1965), tomar banho
na Sanga do Salso, logo abaixo da ponte do trem (bem próximo de onde passa a estrada federal que liga Rosário a
Livramento). Era campo dos Soutos, arrendado ao Felipe Maxwell, um velho inglês ali estabelecido com 1800 reses.
Fora marinheiro mercante e desertara na cidade do Rio Grande. Conheci-o velho e de barbas brancas e já não
montava. Hoje o campo é do Ananias Vasconcellos. A sede era bem na estrada que ia da Estação ao Passo do Lajeado,
trecho de ¾ de légua que fazíamos a cavalo para ir à Granja.
Naquela época não havia auto. Havia carro de 4 rodas e aranha de 2 rodas que logo aprendemos a guiar.
Pouco a pouco o campo do Guará foi aumentando. Papai permutou as 6 quadras da Granja por 6 quadras
que Salles tinha no Guará perto de nossa casa. Ali, ele Salles, fizera uma criação de gado Red Polled para fabricar
manteiga. Chegou a fazer alguma, naturalmente que sem resultado comercial. Com a permuta, Papai ficou com 11
quadras. Depois Papai comprou 5 quadras do Acioly, vizinho, que se mudou para a Rosário, ficando em pouco tempo
sem nada. Mais tarde adquiriu outras áreas, como 11 quadras dos Soutos. E antes 2 quadras pegadas às 5 originais.
Todas as compras de terra desde 1915 até cerca de 1945 elevaram a extensão para 38 quadras. Guará tornou-se assim
uma estância indo dos trilhos do trem até a barra do Vacacuá.
A Estância Tarumã
Em 1926 eu cursava o 3° ano de agronomia, em Porto Alegre. Carlos tendo terminado o 3° ano do Ginásio
Santa Maria, como interno, em 1925. O Raul porém estava no Guará. Não quizera mais estudar. Deixara o Ginásio
Santa Maria ao findar 1925, completando o 2° ginasial. Todo o 1926 esteve na estância, fazendo a lida de campo
campleta como um peão. Foi um êrro, pois tinha condições de sobra para continuar os estudos. Falta igual cometeu o
Carlos que ficou em P. Alegre apenas o ano de 1926 pois que em 1927 já ficou na estância, abandonando em definitivo
os estudos, apesar de bom estudante. Creio que mais tarde ambos lamentaram a desistência. E sempre assim: todos se
arrependem de ter abandonado os estudos; ninguém se arrepende de ter continuado a estudar.
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A estâcia do Tarumã nasceu do fato de ter o Raul desistido de estudar. Papai resolveu arrendar uma
estância e fazer uma sociedade em partes iguais entre ele e nós três. Como capital nosso, que nada tínhamos até então,
ele usou dois fundos que nos pertenciam. Um fora a herança do Cel. Gervásio Lucas Annes, nosso avô por parte de
mãe. Ao falecer ele, em 04/04/1917 - Passo Fundo, deixara metade da fortuna, considerável na época para Passo
Fundo, para a viúva, sua mulher em 2ª núpcias, Da. Picucha.
Da outra metade coube um quinto à mamãe, já falecida, tocando pois a nós, os três filhos. Em dinheiro eram
$100.000 ou cem contos, como se dizia na época; escrevia-se 100:000$000. A moeda base era um mil réis, que se
escrevia 1$000; mais tarde este mil réis passou para um cruzeiro. Ao recebermos os cem contos em 1917 éramos todos
colegiais. Uma vaca de campo valia menos de 100$000, logo os cem contos davam para comprar 1000 reses ou 20
quadras de sesmaria, em campo, pois Papai comprou o Guará em 1915 por 5 contos a quadra. Além desses 100 contos
tínhamos o valor de uma casa à rua Cristóvão Colombo, que vovó Rita, ao falecer em 1922 deixou para o s três. Foi esta
casa desapropriada pela Prefeitura Municial para abrir a avenida Alberto Bins. Hoje é o ponto onde está um posto de
gasolina, na confluência das duas ruas acima citadas. A desapropriação foi por 70 contos, se não me engano.
Com esses fundos Papai considerou integralizada a parte dos três, entrando ele com o restante quarto. Encontrou
ele a Estância do Tarumã que o sr.Gabito do Silveira queria arrendar, vendendo os gados. Eram 25 quadras entre as estações
férreas de Santa Rita e Porteirinha. Arrendamento 500 mil réis por quadra e por ano. O gado, eram 1200 reses, foram
comprados a 150 e 165 cruzeiros. O preço mais alto foi por 250 reses mestiças Durham, do sr. Aristides Silveira, irmão do
Gabito e que estavam numa das invernadas, a do Salso, com 5 quadras de excelente terra negra. O Raul ficou cuidando da
estância, isso na primavera de 1926, pois Carlos estava em Porto Alegre estudando preparatórios (para ingressar na
faculdade) e eu na Agronomia. No ano seguinte Carlos ficou na estância junto com Raul, assumindo a direção.
As 25 quadras estavam divididas em 4 invernadas o saber: a do arroio do Tarumã com 5 quadras, a do
Cemitério com 2 quadras, Salso com 5 e Libório com 11. Esta era de terra negra boa como a do Salso. As outras de terra
arenosa, de alecrim, campo mais fraco. Havia ainda o potreiro das casas com 1 quadra.
Um grande Tarumã velho, de galhos estendidos como uma figueira, existia solitário no potreiro a uns 500
metros da frente da sede da estância. Dera o nome à esta. A estrada vizinhal cortava o potreiro e era comum termos
gente para almoçar, no galpão ou na casa conosco. Havia um quarto de hóspede no oitão do galpão para este fim.
A Casa - Era de material, rebocada e caiada. Uma porta e três janelas de frente. Quatro quartos de dormir.
Uma sala de jantar. A cozinha era no páteo, a 2 metros da sala de jantar, num prédio de taboa. Tudo coberto de zinco.
Ao fundo do páteo, uma velha casa comprida com forno e quarto de carne.
O galpão ficava no alinharnento da casa, para oeste, tendo, como a casa, frente para o norte. Era ele coberto
de capim caninha, com 25 palmos por 75 (1 palmo = 22 cm, logo 5,5 m por 16,5 m). De esteios enterrados e com frente
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aberta ao norte. Piso de terra. Nele os peões dormiam, guardava, os couros, aranha (carrinho de 2 rodas de ferro), os
arreios e demais apetrechos.
Havia duas mangueiras, uma para vacas mansas e outra para os cavalos. Todas no alinhamento do galpão.
Umas figueiras grandes e bonitas davam sombra em frente à elas. A carreta de 2 rodas, para 1.500 Kg e 4 juntas de
bois ficava sob uma delas. Custou esta carreta, comprada do Sr. Gabito, 200 mil réis, 200 cruzeiros ou pouco mais que
o valor de uma rês. Era muito útil. Com ela trazíamos lenha do mato e buscávamos carga na estação Santa Rita.
O Tarumã esteve em nossas mãos até 1930, o ano da crise que desceu o preço do gado de cria ($160)
para $60, isso de 1926 a 1930.
Os meios de transporte
Naquele tempo de 1930, os automóveis ainda eram um luxo a que se permitiam só os fazendeiros ricos. Uma
estância arrendada como o Tarumã, mesmo com 25 quadras e 1.200 reses não tinha auto. O mesmo acontecia com as
estâncias vizinhas. Não havia um único automóvel nos nossos vizinhos de qualquer lado. Todos andavam a cavalo ou
de carro. Para ir tornar o trem em Santa Rita íamos a cavalo, deixando o cavalo e arreios no potreiro do negociante
existente junto à estação. Ao voltarmos, um guri do armazém já esperava com o cavalo ensilhado. Dava-se a ele 400
réis com o que ficava contente. O salário diário de um peão era de $4 (4 mil réis) e mais a comida. Também íamos de
aranha, carro com 2 rodas e puxado por um cavalo ou dois. Uma aranha valia 200 mil réis. Escolhia-se como animal
para o carro um cavalo ou égua forte e bem trotador. Tivemos dois animais assim. Uma égua tostada de nome
Guerreira. Tamanho de animal crioulo mas de trote muito rápido. Fazia as 2 léguas e um quarto da Estação Santa
Rita à Estância em pouco mais de uma hora. O outro puxador era um cavalo, o “Rosilho”; grande e lerdo como animal
de montaria, ensinamo-lo a puxar. Se não dava para o campo devia dar nos varais. E tornou-se bom na carroça,
ensinado por nós mesmos. Além da aranha, tinhamos uma carroça de 2 rodas que com 2 cavalos ia à estação buscar
cargo leve. Para cargas maiores usava-se a carreta; com 2 rodas era para 100 arrobas, (1.500 quilos) como se dizia.
Estava aparelhada para 4 juntas.
Alimentação no Tarumã
Na estância éramos 6 pessoas. Nós tres e uma empregada (chamada “Chininha”) e 2 peões no galpão. Além
disso, para os rodeios e banho de gado e vacinas, juntávamos mais 3 peões por dia que almoçavam e jantavam
no galpão com os outros 2.
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A comida era fornecida pela cozinha da estância, pela cozinheira que fazia comida para nós também.
Pela manhã cedo, madrugada, tomávamos os 3, Carlos, Raul e eu, mate no galpão com os dois peões até que
clareasse o dia, quando os dois peões iam tirar leite das vacas na mangueira. Cada um deles trazia um copo de lata
cônico de compota de abacaxi. Era para o meio dia. Para cozinha ia um meio balde. A cozinha fazia o café com leite,
enquanto um dos peões recolhia um piqueteiro e trazia os cavalos. Todos os 5 íamos à mangueira, de bucal na mão.
Os cavalos formavam todos em frente a um sovéu. Mais tarde os ensinamos a formar sem corda alguma.
Ensilhávamos e íamos tornar o café. Um peão chegava na cozinha e trazia a bandeija com as canecas cheias de café
com leite e algumas bolachas. Grandes e duras eram chamadas “galletas” (do castelhano). Umas redondas, maiores,
que regulavam bem 300 gramas de peso. E outras menores, dobrados em “V” e com metade do peso. Nós três íamos
para a sala de jantar da casa de material e ali a cozinheira nos servia o café com as mesmas bolachas. Manteiga não se
comprava, que era caro, nem se fazia. Às vezes a cozinheira nos fazia uns sonhos. Terminado o café saíamos para o serviço.
Ao voltar, se ainda havia algum tempo antes do almoço, tomávamos uns mates no galpão,
aproveitando a mesma erva. O fogão, ali: sempre com um pau grande, a propósito, conservava as brasas para
reacender ligeiro o fogo ao voltarmos.
O almoço em geral era pontual e ao meio dia. Conduzíamos o serviço sempre a respeitar as 3 refeições.
No galpão havia uma mesa com dobradiça, a qual ficava erguida e encostada à parede nas horas em que
não era usado. Dois bancos sem tralha. Se havia gente de fora, o que era freqüente, o forasteiro comia com os peões se
era um peão ele próprio. Se fôsse pessoa de mais consideração nós o convidávamos para nossa mesa.
A comida consistia em sopa (esta nem sempre), feijão preto com pedaços de charque, arroz e mais o que se
chamava de “mistura” e que era um prato de batata doce cozida, ou de abóbora, ou algumas espigas de milho verde,
ou de aipim cozido. Hortaliças, não havia, que não tínhamos horta. No cercado é que plantávamos batata doce,
moranga, milho verde, feijão miúdo e amendoin.
O charque no feijão era a carne. Um guizado de charque com farofa, um carreteiro, ou um guizado com
abóbora ou milho verde, eram pratos que variavam e se faziam, vez que outra. Carne fresca só nos três dias primeiros
em que se carneava a vaca do mês. Esta fornecia o charque para o feijão e a gordura para a cozinha. Não se usava
comprar banha. Cozinha va-se com graxa de gado, a qual nos dias frios de inverno gelava e endurescia no prato da
gente. Nos dias de carnear, a carne fresca era o fervido. Os ossos com carne que se cozinhavam com batata doce e abóbora.
Como sobremesa tínhamos o leite cru e fresco guardado em lugar menos quente. No verão baixávamos uma
lata com leite no poço. Cada um enchia um prato de sopa de leite e nele quebrava uns pedaços de bolacha, a mesma
do café da manhã, ou então com farinha de mandioca e açúcar. Marmelada, quando se vinha da cidade, ocupava o
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lugar da bolacha, e isso até acabar a caixeta. De quando em vez havia um doce que a cozinheira fazia, ou de leite, ou
de ovos, ou de figo, ou de abóbora, os não era seguido, que a açúcar era tido como artigo caro e de luxo.
Findo o almoço, se era verão, todos sesteavam, pois não se pegava antes das três da tarde, que o sol era muito forte.
Levantando da sesta, tomavam-se uns mates, recolhiam-se os cavalos e saíamos para o campo. Ninguém
tomava café à tarde. Ao voltar à tardinha, prendiam-se as vacas de leite, soltavam-se os cavalos e ficávamos no galpão
a tomar mate, esperando que escurecesse e nos chamasse a cozinheira para a janta.
Na ceia, a comida era igual que a do meio dia. Terminada a janta, sentávamos no galpão, ao redor do fogo, e
se tomova mais alguns poucos mates até que se resolvesse dormir.
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Crônicas por Raul Annes
Gonçalves
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Crônica por Raul Annes Gonçalves
A Estância do Rochedo
Os fatos aqui narrados foram lá pelo ano de 1929, no município de Alegrete, na estância do Rochedo;
situada à margem direita do rio Ibirapuitan, entre a estância do Dr. Assis Brasil e a do Dr. Euclides Milano,
próxima ao cerro do Catimbau.
Nesta época éramos solteiros quando fomos tomar conta daquela estência, meu irmão mais velho Paulo e eu. Ele já
formado, engenheiro agrônomo, era responsável pela ordem, fornecimento e parte monetria do estabelecimento. Eu, só com
o 2° ano ginasial, trazia comigo uma vontade férrea de ser um verdadeiro gaúcho em todo sentido da palavra. Enfrentava e
tornava parte nos trabalhos por mais duros que fossem; como fazer um aramado, ginetear num potro, cortar lenha no mato
e conduzir tropas. Nos serviços de campo, rodeios ou banhos de gado, ambos, Paulo e eu, trabalhávamos parelho com os
peões. Nunca tirávamos o revólver da cintura, de preferência um 38, Smith ou Colt, e a faca na cintura. Além disso eu usava
uma adaga com uns 50 cm de folha enfiada por baixo dos pelegos, na cobeça do serigote, boleadeiras e tirador.
Sempre estávamos dispostos a enfrentar qualquer serviço. Havia confiança e camaradagem entre nós e os
peões. Os trabalhos eram realizados em ritmo de alegria e estímulo, principalmente quando lidávamos com animais
chucros ou rezes brabas que atropelavam os campeiros a cavalo dentro da mangueira, no banho.
O Estabelecimento
O estabelecimento era amplo, mesmo grande; de material coberto de zinco, as janelas envidraçadas, todas as
peças eram assoalhadas e forradas. Porém não havia quarto de banho, nem instalação sanitária. Não tínhamos o
conforto de possuir água encanada. Esta era trazida em pipa puxada por uma junta de bois, e baldeada para dentro
de casa em latas que serviam para encher um barril de 200 litros, depositado na cozinha, onde mais se gastava água.
Os banhos tinham lugar nas sangas, como tambem lá se lavava a roupa. Este trabalho competia à própria
cozinheira que aproveitava as tardes para ir ao “arroio” lavar.
O galpão, também de material e coberto de zinco, com o piso de chão, no meio do qual havia um arco velho
de roda de correta cheio de terra batida onde se conservava o fogo acesso durante o dia e noite. No galpão era o ponto
de reunião dos peões nas horas de folga, ali tomavam o amargo; nos dias de verão íamos com o porongo e a chaleira
para a sombra dos cinamomos à frente do galpão.
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Vestimenta - Os peões usavam chapéu de abas largas e barbicacho, lenço no pescoço, camiza e bombachas
largas. Na cintura um cinto largo “guaiaca” com colder para o revólver e, atrás na cintura, enviesada carregavam uma
faca de bom tamanho ou facão. Esta faca servia para picar o fumo para o cigarro, courear, cortar no assado e abrir
picadas no mato quando iam fazer lenha.
No inverno pouco modificavam sua vestimenta, com o acréscimo de uma camiseta de lã e o casaco, o resto
do frio era combalido com o uso do poncho. O tirador fazia parte das vestes do gaúcho, principalmente se ele era
domador. Mesmo nos dias de muito calor o gaúcho não se desfazia das roupas completas, só regaçava as bombachas
que mantidas na altura do joelho, fora dos canos das botas, aliviavam o calor. Naquela época não se conhecia o uso da
camisa por fora das calças como atualmente se vê nas cidades.
Aos domingos os gaúchos melhoravam suas “pilchas” (arreios) com um pelegão curtido e colorido, de
preferência encarnado. E no corpo a roupa mais nova, ou recém vinda da lavadeira, bem limpa e passada a ferro.
Como complemento enfiavam o pala, ou levavam-no a meia espalda, ou simplesmente enrolado na cintura.
Os passeios eram no bolicho ou à casa da namorada; às vezes no vizinho ou visitavam algum parente.
Sempre regressavam ao cair da noite ou madrugada alta… Jamais deixavam de estar no galpão a hora de pegar o serviço.
Desta maneira o gaúcho com todo garbo sentia-se ufano de si memo, ainda mais se montova um “pingo”
bom de rédea e solto de pata, bem tosado e cola atada.
A MARCAÇÃO
Raul Annes Gonçalves
Tinha lugar sempre em maio. Havia alguém que preferia faze-la em setembro. Os dias de marcação eram
como dias festivos para a peonada. Convidava-se os conhecidos e vizinhos mais próximos e seus peões. Assim, reunia-
se regular número de gaúchos aficionados que compareciam para atirar o laço e cortar no assado.
Naquele tempo era desconhecido o uso do torquez “burdizzo” para castrar. A operação era feita
simplesmente à faca, no ato de se derrubar o terneiro para ser marcado e assinalado. Os escrotos, mais conhecidos
por “ovos’ eram jogados as brazas, que depois de bem assados eram mergulhados em uma cambona com salmoura e
comidos a todo momento. O sinal nas orelhas tambem feitos à faca, não havia assinalador tipo alicate como se usa
geralmente hoje em dia. A marcação era feita à unha, isto é, o terneiro era agarrado sem auxílio de corda. Dentro de
uma pequena mangueira se encerravam só os terneiros separados das mães, nela entravam 3 ou 4 campeiros sem
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esporas e faca na cintura. Um deles com uma mão segurava a orelha ou aspa de um terneiro e com a outra mão
sujeitava-lhe a cabeça. Sem perda de tempo outro homem segurava uma pata do animal enquanto outro firmava-lhe a
cola, desta maneira a terneiro era logo dominado e impossibilitado de continuar aos saltos e corcovos.
A DOMA DE POTROS
Raul Annes Gonçalves
Naquele tempo para o pessoal era a serviço mais apreciado e importante em uma estância.
Todos queriam ver o lote de potros a ser domado. Os palpites eram vários. “Este zaino será quebra,
corcoveará desde o primeiro galope” afirmava um. Outro retrucava: “Acho que o malacara será manso de baixo,
porém arisco e velhaco sairá correndo, não irá corcovear”. Assim por deante, sobre cada animal se profetizava a que
daria, solto de pata, lerdo, bom de cômodo, etc. etc.
No geral o domador era um só mas sempre entre as peões havia alguém que era aficionado e pedia a bolada
no 1 °galope, ajudando o domador nesta perigosa e arriscada façanha, sem vantagem alguma, a não ser de ginetear
um puco e mostrar aos companheiros que também era um gaúcho bom nos arreios.
Os potros na mangueira aguardavam o momento de serem laçados pelo pescoço, um de cada vez, para
serem encilhados. Assim que era laçado um potro, pelo domador, outros peões ajudavam-no a reter o laço firme até
enforcar o animal e bambalear caindo por terra. No ato, sem perda de tempo, os que ajudavam, corriam e agilmente
seguravam o cavalo pelas orelhas e cola, impossibilitando-o assim de levantar-se. Subjugado o potro, era logo
embuçalado e mandado nas patas, as mãos ficavam livres. No bucal, além do cabresto se apresilhava um laço ou
sovéo. Depois, com a cabeça do potro apoiada no chão, levanta-se o focinho para cima para meter-lhe no queixo o
bocal. O bocal é uma tira de couro bem sovada que é usada em lugar do freio, e na mesma são atadas as rédeas.
Depois deixava-se o potro levantar-se, porém sempre com a maneia nas patas e seguro firmemente pelo sovéo que
fazia as vezes de cabresto. Nesta posição um dos campeiros com prática e maestria segurava o potro por uma orelha,
tampando com o antebraço o olho do lado esquerdo. Não enxergando assim o domador que começava a lhe por as garras no
lombo. No 1° galope não se usa por o enxergão, vai logo a carona, depois o serigote apertado pela chincha, depois o pelego
seguro pela sobrechincha. O rabicho é enfiado por baixo da cola que é atada neste momento. Não é hábito galopear um
potro usando a peitera. Ensilhado o potro, está pronto para ser domado, tiram-lhe então a maneia das patas. Depois de
facilitar o animal que caminhe um pouco, tornam a sujeitá-lo pelo fiador do bucal e uma orelha. Aí então é chegado o
momento do domador montar seu potro. Ele chega-se com cautela para perto do animal, segurando as rédeas junto à
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cabeça do serigote, com uma mão, mete o pé no estribo e ágil, sem fazer peso com o corpo, monta o bicho. Depois de bem
montado, experimenta os estribos e atirando o corpo bem para trás, grita para que o larguem da orelha.
Assim que o animal sente-se livre, sae em desabalada correira, logo sentindo a estranha cargo que leva no lombo.
A CARRETA
Raul Annes Gonçalves
Hoje em dia é raro se encontrar em nossas estradas uma carreta puxada por 4 juntas de boi. E raro também as
pessoas que sabem carretear, dando direção certa aos bois só com o auxílio de uma guiada. E mais raro ainda os que sabem
os nomes das partes com que se formam uma carreta. Podemos começar pelas chedas e os recavéns que unidos pelas cadeias
formam a armação que suporta o ossoalho, ou melhor dito, a mesa. Esta tem de cada lado, cravados na cheda, seis fueiros,
em posição vertical. Por baixo da mesa é preso o cabeçalho, que na ponta é furado onde está a cavia que serve para atar o
jugo do coice. Também por baixo da mesa ou assoalho, mas atravessado e quase no meio é posto o eixo, que por sua vez é
atado em uma das cadeias. O eixo leva de cada lado, nas extremidades, uma roda, que é retida pela cavia, e na ponta do eixo
vai uma varilha de ferro para maior resistência do mesmo. No cabeçalho, está pendurado por um argolão de arame, o
muchacho, que serve para manter a carreta em posição horizontal quando parada, para ser carregada ou descarregada. A
roda é composta pela massa, de onde saem os raios em número de 12. As combotas formam o círculo da roda que é reforçada
pelo anel de ferro. Entre a massa e o eixo vae uma bucha de madeira dura, a buzina. Usa-se a carreta com tolda feita de
folhas de zinco, ou coberta de capim. Em geral as deste tio são de frete, carregando mercadorias da cidade para os distantes
bolichos. O tipo de carreta varia, a “Inteira” com capacidade para 1500 quilos, a ¾ para 1000 e a pequena, tipo carroça, só
para uma junta de bois, para 600 quilos.
Todo boi manso de carreta tem nome e lado certo para puxar. Além disso a junta é nomeada conforme a
posição que tem na fieira. A primeira chama-se “bois da ponta” ou simplesmente “ponteiros”. Atraz deles vem a junta
do “quarto da ponta”; depois a “quarta do coice” e por último a junta do “coice”, que é unida à carreta.
A lentidão e monotonia na vida do carreteiro, com o decorrer do tempo dão-lhe força capaz para combater o tédio
e solidão em suas viagens. Jamais se encontra um carreteiro aborrecido. Ele se distrai observando tudo que lhe é apresentado
no percurso de uma jornada. Conhece onde encontrar boa água e sombra para uma sesteada, onde há boa pastagem pora o
pouso, os buracos ou atoleiros que necessite mais cautela e firmar a fieira de bois afim de evitar um peludo.
Sue alimentação não vai além do já tradicional arroz com charque - “carreteiro” - e café preto com as
“bolachas secas” Viagens, não atingem mais do que 4 léguas diárias (24 km).
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O Gaúcho
Raul Annes Gonçalves
O gaúcho no geral é altaneiro e confia em si mesmo. Só dá crédito a outro gaúcho quando muito mais velho do
que ele ou mais campeiro. Pare ele as pessoas da cidade são dignas de lástima, tidas como criaturas fracas, sujeitas a se
perderem em noites escuras ou madrugadas de cerração imprestáveis para as lidas de campo. Propensas a morrerem de
fome se forem obrigadas a laçar uma vaca para carnear para matar a fome... O gaúcho antigo nunca confiou-se de quem
usava farda. Para ele, um soldado não era um gaúcho e sim um “milico”. O mesmo dizia do negro. Este quando não morre
em pequeno, dá desgosto depois de grande. Há uma lenda mais velha do que o chão, sobre isso. Eis o relato:
Em um galpão, junto ao fogo, um grupo de peões conversava, quando num certo momento os cachorros fizeram
um alarido. Olhando, logo viram que eram três cavaleiros que se aproximavam. Um deles disse - “lá vem três” - ao que outro
retrucou - “não há perigo, eles são trez e nós somos 5”- Nisto um notou, firmando a vista, e comentou - “não, não são 3
homens como parecia à primeira vista, um é negro, outro é milico, homem mesmo é só um, o do lado direito”...
O gaúcho não usa chapéu de palha, diz que é portador de miseria ou pobreza, nem pelego de chibo (cabrito).
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Diário de Paulo Annes
Gonçalves
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A primeira lavoura de trigo - Paulo A.G.
Formado em 1927, já no ano seguinte estava em Livramento, na Estância Tarumã, que vínhamos
arrendando desde 1926. Carlos e Raul também estavam lá. Naquele ano - 1928 - recebi carta do agrônomo Alberto
Lopes da Silva, o 1° diretor (creio) da Estação de Trigo de Bagé. Ele me comunicava o envio pela r. Férrea, de 5 sacos (5
x 60 = 300 Kg) de semente de trigo e me convidava a experimentá-la no Tarumã. Foi semeado, e em dezembro
colhemos. Semeado no Salso, invernada de terra negra (ótimo campo). Ali já tínhamos uma lavoura de arroz, cuidada
pelo sr. Dico. O trigo deu 55 sacos, ou 11 par 1 de rendimento. Foi vendido em Rivera, a uma barraca que também
comprou o arroz. Estes eram 1200 sacos em várzea irrigada com desvio natural da sanga que havia no fundo do Salso.
Não mais plantamos trigo.
Uma lavoura de linho - Paulo A. G.
Em 1930 tínhamos em mãos as 25 quadras da Estância do Rochedo; no Caverá a 6 léguas do Alegrete e na
margem direita do rio Ibirapuitan, que tinha bom mato de angicos e veado no mato.
No potreiro, e junto à cerca da Estância do Ibirapuitan, do Dr. Joaquim Francisco de Assis Brasil, na época
arrendada ao Antoninho “Irruleguy”, de Livramento, pai do Panchito, semeamos linho.
Este floresceu bem, colorindo a coxilha com suas flores roxas. A colheita, não recordo quanto, foi pequena.
Era um saco só; apenas. O grão foi vendido em Alegrete. Na ocasião o linho era moda em São Borja, onde vendiam
para Argentina como semente. O forte ia para Pelotas, pois lá fundaram uma fábrica extratora que produzia
muito óleo de linhaça.
Não continuamos com o linho no segundo ano. Mas fizemos lavoura de milho na invernada do fundo,
próximo ao rio Ibirapuitan, mas na coxilha. Plantador: Petronilho, conhecido por Pedro Louco, homem de força
descomunal.
Diário de Paulo Annes Gonçalves
Começado no Alegrete por occasião da revolta de Outubro de 1930. Era eu então, “Cadete” da forca
libertadora, organizada pelo Cel. Péricles Silveira.
Foi urna revolução original, havia gente demais. Baile de poucas moças, não nos sobrou par.
Prefaciado em 7-2-31
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De 18-10-1930 a 07-02-1931
18-10-30 Sabbado
Revolução
Há enthusiasmo no Alegrete; muitos vão, mas a maioria se esconde atrás de um “se for preciso” ...
Hontem fui pousar no acampamento. Hoje é provável que farei o mesmo. A instrução que nos dão lá é
grosseira e rudimentar.
Os cadetes - assim se chama a rapaziada distincta que incorporou - tem uma vida um tanto alegre.
Algumas piadas menos más.
Domingo deve ver as forças em formatura official.
Lembrei ao trem. Brenno, também cadete, a criação de um hymno para os cadetes. Approvou a idéia
suggerindo uma paródia à canção dos cadetes do Cyrano.
Uruguayana
Estância do Antônio
28 de Outubro de 1930
A lombriga ataca enormemente os carneiros novos. Estou por isso pondo a trato uns 30, recebendo ração de
milho quebrado com farelo.
Galpão novo - 16x7 ½ m sendo o corpo de 5 e a varanda de 2 m. Thezouros afastadas de 4 m.
Pelles: passadas sobre um arame grosso, a cavalleiro, teve as mãos e as patas ligadas a um só pau para peso.
Cabeça aberta por um arame.
Outubro. 1930-31
Plante! Rommey do Antônio; 2 dentes - 50 cabeças deram 133 Kg de veo.
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Tropeando Touros para o Guará
17 de Novembro. de 1930
Partida do Rochedo pela madrugada. Tropeiros: eu e o Aristides. Peões, não há, e para que? indiada
campeira como poucas, tranqueamos só com Deus.
Às 8 e tantos, assim a calculo, que é o nosso relógio, fizemos um café - na corticeira dos “amargos”. Café
solteiro pois os patifes dos bolicheiros não tinham bolacha alguma. Queira Deus que nunca tenham, diz a elles o Aristides.
Sesteada: no Branquilho, em Sta. Eugênia. Um assado de ovelha, matte e depois um café de chaleira de dar
laçados. Falta só bolacha...ah! Bolicheiros!
Os touros pastam uns e outros deitam, vinham bem bebidos. O trecho feito é grande: 3 ½ léguas. Os cavalos atados e a
soga. O Aristides fecha um cigarro e eu fecho a livreta para irmos cortar o assado.
Pouso no Reginaldo:
Terça, 17 de Novembro 1930
Sesteada no Taruman, corredor do Mato Secco, em São Leandro. Dia brabo; a sesteada veio a jeito. Foi o Octaviano
Silveira quem no-la indicou, pois vínhamos aventurando. Gratos. Os 16 touros pastam no corredor.
O campo é do São Leandro; umas boas ovelhas bem gordas, vejo.
Hontem pousamos no Reginaldo; Bolicho. E camarada, gastamos 13.200. Pouso gratis. Boa plantação de
alfafa. Cortada é recolhida à tardinha, tem mando de secar em girau.
Café das 7 horas - tomamo-lo num matinho depois da morada do Luiz Pinto. E às 9 ½ comemos na
Ferraria, dando o 2° pastito e água aos touros. Bolacha e marmelada.
Quarta, 18 de Novembro de 1930
Segue a tropeada. Batemos com os costados no passo do Matto Sêcco. Um bolicheiro àspero - Pedro não sei de que
- nos arrenegou o pouso. Chegou porém o dono do sítio, o seu Diocleciano que a voz de ser um filho do velho Rafael abriu-se
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camarada. Mudou a coisa do dia para a noite. Deu-nos jantar; um galpão e milho para meu alazão. Tudo por um muito
obrigado. Ou melhor, pela obrigação de lhe retribuirmos quando elle aparecer em nossa casa. Sempre se proseou.
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