ERROS DE PODAR

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AVENTURAS HERBÁCEAS E ERROS DE PODAR, por Nuno Pacheco -- PÚBLICO, 3 de Junho de 2012

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EM PÚBLICO | PÚBLICO, 3 de Junho de 2012

Aventuras herbáceas e erros de podar Por Nuno Pacheco, Jornalista

O defeito deve ser da gesta marítima, mas a verdade é que Portugal decididamente não se dá bem com aventuras herbáceas. Os ingleses, sim. Jardinagem é com eles. Qualquer coisa onde se mencione garden ou grass tem de ser bem feita. Eles sabem e dão muita importância ao assunto. Na América é diferente. Hal Ashby (no filme Being There, baseado na novela homónima de Jerzy Kosinski) até pôs Peter Sellers a fazer de um jardineiro alienado pela televisão que, perdido no mundo, acaba por ser adoptado como uma espécie de oráculo na alta-roda, deixando boquiabertos políticos e empresários, ou até mesmo o Presidente, com banalidades hortícolas do género "é preciso esperar para colher", vistas como conselhos de grande importância para economistas ou políticos. Mas, voltando a Portugal, herbáceas não é connosco. Nos relvados é o que se vê: muito suor, muitos nervos e resultados tantas vezes parcos e desinteressantes; quanto a jardins ou relvas, é o que se tem visto: o cabo dos trabalhos. Até mesmo as ervas aromáticas se vêem ameaçadas pelo avanço de tantas ervas daninhas. Isso não nos impede, no entanto, de praticar a arte da poda (ou seja, do corte ou desbaste de árvores, plantas ou vinhas) em muito do que nos passa pela mão. Às vezes até em segredos de Estado. Coisas de espiões, claro, das quais nem o Vaticano parece estar livre. Mas é na escrita que melhor se tem aplicado, ultimamente, esta arte. Os mais ousados artistas nacionais, aliás, até a fazem de venda nos olhos, como nos circos. Uns têm o modelo mais recente da máquina electrónica de podar. Pegam num texto, põem-no lá dentro e ele sai já devidamente podado do outro lado. Outros fazem-no a olho, com a mais pura convicção de que o fazem melhor do que ninguém. Azar dos azares, às vezes cortam os ramos saudáveis. Exemplo: a palavra contacto. Antes do acordo ortográfico (AO90), escrevia-se contacto; com o acordo, continua a escrever-se contacto. Alguma dúvida? Não. Apesar disso, multiplicam-se mensagens onde se diz e repete: "deixe o seu contato"; "havemos de contatá-lo mais tarde"; "se quer contatar-nos, o endereço é"; etc. O problema é este: quem anda a aplicar o acordo na verdade não o leu, desconhece o que ele preconiza, mas cuida que basta tirar umas letras para escrever "em bom português". Ora não basta. Confiar nos conversores ortográficos não chega. É preciso saber mais. Eu, que obviamente abomino tal peça, já li o acordo inúmeras vezes. A cada nova leitura fico mais aterrado, é certo, mas se me pedirem para escrever tal qual a nova "lei" (que não é lei nenhuma, já se disse), consigo fazê-lo. Só que, evidentemente, não quero. Não é o que sucede com a esmagadora maioria das pessoas, garanto. E isso dá nas calamidades que por aí se vai vendo. Um exemplo, que o acordo até sanciona: no Museu Berardo do CCB, "conceptualismo" passou a escrever-se "concetualismo". Assim mesmo. É uma invenção estritamente portuguesa, e ainda por cima absurda, já que a corrente artística sempre foi e continuará a ser conhecida por "conceptualismo" em Portugal e por "conceitualismo" no Brasil (são, aliás, sinónimos). O que o acordo fez, sem nenhum proveito (até porque este é um caso em que é "legalmente" consentida a dupla grafia, essa genial invenção do AO90), foi criar

uma designação espúria que só serve para ser disparatadamente "adotada" por quem não tem o mínimo de conhecimento do português e das suas raízes. O acordo é péssimo, já o escrevi e mantenho. Mas quem queira segui-lo ao menos que o leia. Esse procedimento tem duas vantagens: a primeira é evitar escrever barbaridades, tirando letras a eito só para estar "na moda" ortográfica; a segunda é ficar a conhecer, com rigor, o chorrilho de disparates que nos tentam impingir como uma benéfica "evolução" para a língua portuguesa. Se depois de lerem o acordo continuarem a "adotá-lo", ao menos que o façam conscientemente. Mas, se escreverem "contato" em vez de contacto, errarão como Angela Merkel ao apontar Berlim, num mapa escolar, como uma cidade algures no meio da Rússia. Há disparates que não têm desculpa. ___________________________________ Agradeço ao Pedro da Silva Coelho a disponibilização deste texto no seu Facebook Publicado na Biblioteca do Desacordo Ortográfico a 3 de Junho de 2012 http://www.jrdias.com/acordo-ortografico-biblioteca.htm Subscreva a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico http://ilcao.cedilha.net/docs/ilcassinaturaindividual.pdf

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