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ESTUDO DE CASO DA COMUNIDADE RURAL DE SEBASTIÃO LAN II (RJ):
FORMAS DE NÃO REALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE REFORMA AGRÁRIA
Ana Maria Motta Ribeiro1
Rodolfo Bezerra de Menezes Lobato da Costa2
Resumo: Trata-se de um estudo sobre os trabalhadores rurais sem terra que ocuparam em
1997 uma área pertencente à União, grilada dentro do contexto de uma “modernização
conservadora” do Vale do rio São João (RJ). A construção social da comunidade rural de
Sebastião Lan II pode ser definida como uma experiência de democratização do acesso à
terra, que culmina num Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS). Na tentativa de
aliar a agricultura e a conservação da natureza, houve uma redução dos espaços
democráticos, impedindo que os trabalhadores rurais fossem protagonistas desse
processo. Mas há uma especificidade nesse caso, que é a presença da Universidade
Federal Fluminense (UFF), que acompanha de modo intermitente essa luta por reforma
agrária. Em 2013, a universidade é convidada pelo Incra para acompanhar o processo de
formação do PDS, mas a dinâmica social impôs um reposicionamento da pesquisa-ação.
A comunidade em questão procurou a equipe da UFF diante da ameaça que representava
o PDS. Os desdobramentos desse processo incluem o ingresso da Defensoria Pública da
União assim como a Ação Civil Pública contra o Incra para garantir um assentamento que
respeite a trajetória de conquista da terra e os investimentos realizados ao longo de duas
décadas de ocupação da área. A assessoria sociojurídica realizada, além de evidenciar a
viabilidade do assentamento rural, encontrou indícios de variadas estratégias ou formas
dinâmicas de negação da própria política de reforma agrária. Refletiremos sobre os efeitos
não planejados de um projeto de assentamento de reforma agrária que surge de setores
subalternizados da população para o Estado, que são esterilizados ou reeditados para não
colocar em risco a ordem fundiária, as desigualdades vigentes e os autoritarismos visíveis
e invisíveis.
Palavras-Chaves: Reforma agrária; Projeto de desenvolvimento sustentável; Sebastião
lan; Pds.
INTRODUÇÃO
Apresentaremos uma pequena reflexão sobre a luta de trabalhadores rurais sem
terra que ocuparam uma área pertencente à União, que havia sido grilada. Essa
comunidade rural, sob o nome de Sebastião Lan II, iniciou uma construção social – ainda
em curso – que pode ser definida como uma experiência de democratização do acesso à
terra, à moradia e ao trabalho. Trata-se de um caso que envolve uma relação entre os
conflitos socioambientais e a reforma agrária no estado do Rio de Janeiro, que se tornou
o tema central da pesquisa de doutorado3 e revelou uma possibilidade real de produção
de conhecimentos a partir da permanência do coletivo de trabalhadores rurais por 21 anos
1 Doutora em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. Professora do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), Universidade Federal Fluminense (UFF), e
coordenadora do Observatório Fundiário Fluminense. Email: anamribeiro@outlook.com. 2 Pesquisador do Observatório Fundiário Fluminense. Mestre e doutor pelo do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Direito (PPGSD), Universidade Federal Fluminense. Email: rodolfolobato@hotmail.com. 3 Esse artigo caracteriza-se como um resumo de parte da Tese de doutorado defendida no mês de maio de 2018, pelo PPGSD/UFF.
em situação de acampamento. Uma temporalidade tão extensa a ponto de configurar o
acampamento de maior duração até hoje visto no país, ultrapassando a média de sete a
oito anos até então verificada por pesquisas e pelos próprios quadros e documentos do
movimento social.
Entretanto, dada essa demora conseguiram atingir a condição de reconhecimento
social, e inclusive institucional, como uma comunidade rural. Isso ocorreu a partir da
comercialização de sua produção (ainda que realizada sem qualquer financiamento
público), e de sua presença na vida do município. Mesmo sem a devida regularização
fundiária, a comunidade tem a singularidade de integrar um conjunto de redes
econômicas, religiosas e culturais. Em que pese sua precarização dentro da estrutura
social abrangente, fundamentalmente por serem acampados, uma posição social que não
oferece dotação de cidadania plena e os reduz a um estado de liminaridade.
Procuraremos demonstrar o quanto o Projeto de Desenvolvimento Sustentável –
(PDS)4, modelo de viabilização de sua reprodução como beneficiários da reforma agrária
proposto, foi colocado como a única alternativa de viabilização do assentamento. Esse
modelo, que deveria abarcar as imposições tecnicamente necessárias de desenvolvimento
dentro do paradigma consolidado por um tripé econômico, ecológico e social, reedita a
questão agrária fluminense enquanto uma forma de marginalização dos trabalhadores
rurais.
A área onde se encontra a comunidade rural Sebastião Lan II, chamada de Brejão,
localiza-se entre as cidades de Casimiro de Abreu e Silva Jardim, interior do Estado do
Rio de Janeiro. Em 1997, a conquista dessa terra foi conduzida em conjunto pelo
Movimento dos Sem Terra (MST) e pelo sindicalismo rural (Fetag-RJ).
Ao mesmo tempo que permitiu a reintegração de uma área grilada para a União,
colocou em evidência uma articulação entre uma lógica produtivista e uma lógica
preservacionista. Vizinhos de uma Reserva Biológica, que tem como finalidade a
preservação do mico-leão dourado, faz-se necessário destacar as diferentes dinâmicas
impostas e os constrangimentos ambientais sob os quais esses trabalhadores são
obrigados a conviver.
O estudo do caso justifica-se pela longevidade do conflito, pela interseção entre
diferentes campos (jurídico, político, econômico, agrário e ambiental) e, principalmente,
pelo acompanhamento da trajetória dos agentes sociais pela Universidade Federal
Fluminense (UFF) por cerca de 16 anos.
Como todo campo intelectual (que inclui o poder judiciário), a ciência torna-se
também sujeita a um conjunto de forças e tensões para reconhecer, manter ou retirar
determinados graus de autonomia da agência sociais que observa (BOURDIEU, 2004).
A possibilidade de superar os limites disciplinares, assim como as sanções positivas e
negativas à liberdade de produção, dentro da própria ciência ou da prática jurídica
apresenta-se como um desafio ao ato de escrever, pensar e pesquisar.
A partir desses desafios encontramos como característica significativa o estudo de
uma comunidade rural de sem terra marcada em seu movimento real, em um cotidiano
eivado de contradições e determinações internas e externas. Assim, tentam se reproduzir
como beneficiários da política de reforma agrária e que foram sendo paralelamente
“acompanhados/observados” por diversas pesquisas acadêmica e técnicas, oferecendo ao
investigador o que aqui chamamos de singularidade original de fato. Essa situação pôde
oferecer ao olhar curioso e indagador uma análise interessante sobre um processo de
mudança de posição social realizado pelos próprios agentes, sujeitos dessa mudança com
4 Modelo de assentamento proposto pelo Incra para a comunidade, que se diferencia de assentamento
convencional por uma série de fatores (por exemplo por ser ambientalmente diferenciado).
recursos criativos e possivelmente “inventados” a partir de sua determinação social
exótica (liminar).
De trabalhadores rurais sem-terra em luta pela reforma agrária, passaram a se
constituir enquanto uma comunidade rural que vive a ambiguidade de ser reconhecida
enquanto tal e é, simultaneamente, marginalizada dos principais processos decisórios dos
quais são ou deveriam ser beneficiárias. Eis que a mudança da posição social que
permitiria a regularização fundiária do território para constituição de um PDS, uma
exigência do Estado para qualificá-los como assentados, sintetiza uma proposta de
reforma agrária que contraria a prática cotidiana e a experiência com a terra em curso.
Essa contradição entre o plano institucional para o desenvolvimento do
assentamento, aqui considerado como o modelo de reforma agrária proposto pelo Incra,
e a dinâmica social emergente apareceu e se constituiu com a presença da Universidade
(UFF). Essa presença ocorreu através da atuação formalizada em projetos de pesquisa e
de extensão universitária, na condição de uma assessoria sociojurídica, o que corresponde
às práticas do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF), um núcleo de pesquisa e
extensão de caráter interdisciplinar, voltado para a formação de investigadores de campo
e de assessoria aos movimentos sociais organizados.
Mas essa presença da universidade, apesar de conduzida ao longo de quase duas
décadas de modo intermitente, teve dois momentos mais relevantes e duas formas
diferenciadas. Esse recorte faz-se necessário para que se possa compreender o lugar de
pertencimento diante da comunidade, através das formas pelas quais foram sendo
conduzidas as duas mais significativas modalidades de pesquisa-ação. As motivações de
intervenção e entrada nessa história, agenciadas pela comunidade rural do Sebastião Lan
II, colaborou, acompanhou e interferiu na mudança de sua identidade e
comprometimento. E, dialeticamente, permitiu à universidade repensar seu lugar nessa
relação ao longo desses anos.
A primeira experiência aconteceu a convite do Incra, mais claramente circunscrita
em termos de objetivos, metas e prazos para a formação e coordenação, via grupo de
estudo especializado, de uma ação específica. No ano de 2002, a universidade pública
fica em evidência como agente harmonizador do conflito, autorizado a pedido dos
Ministérios do Meio Ambiente (MMA) e do Desenvolvimento Agrário (MDA) para
solucionar o conflito entre o Ibama e Incra. Para atender essa demanda, a reitoria da UFF
formou uma equipe através de uma norma de serviço, que formalizou o GT Ecosocial.
Enquanto universidade, nesta oportunidade realizamos então o processo de
gestação de um Laudo Multidisciplinar, ouvindo todos os atores em conflito em suas
diferentes versões, mas a partir de um lugar acadêmico especializado. O caráter da
pesquisa e extensão desenvolvidas o tornavam indissociáveis dos seus efeitos políticas,
que culminou com a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
Depois, em 2013 (passados dez anos da primeira pesquisa), fomos convidados
pelo Incra para acompanhar uma reunião formal, com a presença de autoridades técnicas
e do próprio superintendente regional do instituto, no sentido de viabilizar o PDS. Sem
que soubéssemos muito a respeito dos acontecimentos envolvendo a relação do Incra com
a comunidade de Sebastião Lan II naquele momento. O primeiro contato nos revelou de
imediato uma enorme resistência da comunidade à proposta, e a estranha descoberta de
que algumas das indicações essenciais previstas no Laudo e no TAC não tinham sido
encaminhadas. Descobrimos que não houve qualquer tentativa de abrir o debate à
participação da comunidade uma construção democrática dessa escolha de PDS. Esse
problema ganha contornos de maior dramaticidade quando percebemos que o Incra
esperava que a equipe da universidade (UFF) definisse quais dos 44 moradores, entre as
cerca de oito dezenas de famílias existentes, poderiam permanecer naquele território e
quais teriam que sair.
A equipe da UFF ainda tentou uma parceria no sentido de criar um Grupo de
Trabalho com a participação dos moradores, da universidade, e do Incra (com assento
também para a Emater e Embrapa), no sentido de começar a discutir o modelo de gestão
de modo gradual e integrando os principais interessados. Depois de várias reuniões no
Incra com a presença dos representantes da comunidade, que também se recusavam a
decidir quais famílias poderiam ficar e quais poderiam sair, o Instituto retornou afirmando
falta de recursos.
Finalmente a comunidade procurou a equipe da UFF quando da publicação da
portaria criando o PDS, sem as considerações sobre os efeitos “negativos” apresentados
em reuniões prévias. Mas, naquele momento, a presença da universidade estava reduzida
aos professores do direito e da sociologia, ambos trabalhando na Linha de Pesquisa
conflitos socioambientais do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
(PPGSD). Nesse momento surge a Ação Civil Pública (ACP) contra o Incra para garantir
um processo de assentamento que respeitasse a trajetória de conquista da terra e os
investimentos realizados ao longo de duas décadas de ocupação da área. A ACP
representa também o ingresso de uma nova agência, a Defensoria Pública da União, nesse
longo processo.
Esta pesquisa vincula-se acadêmica e politicamente na busca pela integração entre
os imperativos de conservação da natureza com as necessidades de reprodução de
comunidades de pequenos agricultores representados neste caso especifico pela
comunidade do Sebastião Lan II. Trabalhamos com a hipótese de que o modelo de
organização do assentamento, neste caso, foi apresentado pelo Incra sem ouvir a
comunidade de afetada.
A modalidade PDS (Plano de Desenvolvimento Sustentável) surge no Rio de
Janeiro como uma proposta que havia sido gerada na experiência de Chico Mendes na
Amazônia, e uma trajetória marcada por uma conquista de um segmento subalternizado,
formulada pela experiência dos seringueiros. Nesse caso aqui em foco apareceu, ao
contrário, como uma decisão do Estado, na forma de um modelo importado e estranho à
lógica local. Esse novo modelo acabou sendo imposto como se fosse “uma forma
aparentemente progressista” pela idealização da experiência originária e terminou por
gerar mais conflitos, por ter sido formulado desta vez ao contrário de sua emergência:
como uma proposta de cima para baixo, induzida pelo Estado, e sem qualquer
participação dos interessados que seriam foco dessa política pública.
Foi assim que o PDS tornou-se uma proposta administrativa do Incra do Rio de
Janeiro como modelo prioritário para os assentamentos que surgiam. Essa oferta para
comunidade significou, de modo pouco racional, um acúmulo da mesma disputa fundiária
anteriormente formulada pela ideia de um conflito supostamente intransponível entre o
paradigma preservacionista e a prática da agricultura familiar.
Vale destacar o fato de que o Incra não pode ser pensado, certamente, como uma
entidade homogênea e harmônica. Assim, optamos por olhar o agente de reforma agrária
além das formas tradicionais, portanto tentamos perceber e descrever as vontades
políticas ou vaidades, representações, decretos, estudos e laudos, diferentes
temporalidades institucionais versus a dinâmica social, a atuação profissional ineficiente
ou equivocada, os efeitos da intervenção e a atuação (ou inação) dessa agência.
Essa complexidade do processo de reforma agrária, possível apenas pela
característica de longa duração do mesmo, decorre, segundo pudemos perceber, de uma
certa acomodação dada pela exclusão crônica dos agentes subalternizados do poder e das
engrenagens operacionais da burocracia. Essa ausência surge, também, em face de
entraves que não são apenas objetivos ou concretos, mas que são até mesmo decorrentes
de formas imateriais de internalização e da naturalização do lugar de um saber técnico,
científico ou jurídico.
Para compreender a importância da noção de disputas hegemônicas de concepções
de mundo, e a existência de conflitos sociais, destacamos a questão sobre os usos sociais
da ciência e o universo em que estão inseridos os agentes sociais e as instituições
responsáveis pela produção desse determinado conhecimento. A reflexão sobre a relação
entre o Estado e a construção do conhecimento tornou-se necessária para poder expor o
contraste entre o pensar e agir, a divisão entre o trabalho intelectual e a prática social.
Enfim, por tudo isso é que vamos tentar olhar o que aqui chamamos de ação do
Estado contra a realização da reforma agrária. Essa (in)ação acontece através de
expressões variadas de processos e acontecimentos, que tem a sua formulação dentro de
aparelhos estatais estruturados para, aparentemente, estabelecer um equilíbrio entre o
desenvolvimento rural e a conservação da natureza.
Assim, para investigar as dinâmicas sociais em Sebastião Lan II ao longo do
tempo, utilizamos metodologicamente o paradigma proposto por Ginzburg para
compreender os elementos da realidade, ou observar as “zonas privilegiadas - sinais,
indícios - que permitem decifrá-la” (GINZBURG,1989, p. 177). Em paralelo, o debate
proposto por Alier (2007) também nos ofereceu um espaço de análise complementar
quando ele sugere classificar os tipos de discursos sobre a natureza, que são
operacionalizados no caso de Sebastião Lan II, ora para justificar a repressão da
comunidade, ora para reforçar o caráter de protagonismo da Reserva Biológica, enquanto
modelo de unidade de conservação, ora para rearticular o discurso de uma elite rural que
se rearticula para preservar seus direitos ou interesses especulativos. A partir da relação
entre o trabalho de campo desenvolvido nos diferentes momentos até a chegada de uma
concentração nesse artigo, aliadas às discussões acumuladas na academia, pudemos tecer
um problema de conhecimento. Seria esse um estudo sobre a não realização ou sobre as
formas de se evitar a reforma agrária no Brasil?
ASSESSORIA SOCIOJURÍDICA
Em vez de assessorar o Incra no processo de sensibilização da comunidade para a
construção do PDS, o Observatório Fundiário Fluminense (OBFF) e o GT Ecosocial
alteraram seu foco de atuação, passando a fornecer um suporte mínimo para os
trabalhadores rurais de Sebastião Lan II. Nesse sentido, a partir de 2015, os trabalhos de
campo contaram com a participação direta de doutorandos do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF), sempre com um cientista social e um
advogado atuando coordenadamente.
Nosso intuito era o de acompanhar o processo institucional, na busca pela
integração entre os imperativos de conservação da natureza com as necessidades de
sobrevivência da comunidade de pequenos agricultores. Para tal, trabalhou-se com a
hipótese de que a modalidade PDS fora imposta à comunidade Sebastião Lan II,
expressando, de modo recorrente, uma disputa fundiária e uma disputa por hegemonia,
do paradigma preservacionista sobre o agrícola/agrário.
Importante ressaltar que as lutas que criaram as condições de invisibilidade social
e política referem-se não apenas a uma população estigmatizada, mas aos laços invisíveis
de um conflito que reafirma ou dilui os limites entre as diversas categorias em disputa.
Essas categorias são materializadas politicamente nos discursos sobre a classificação da
natureza, construídos por agentes do Estado ou da sociedade civil, que deslegitimou
tecnicamente o saber construído através da experiência. Ao mesmo tempo em que setores
do Estado deram aspectos de “legalidade” a um conhecimento construído através da
exclusão de uma população subalternizada, essa mesma comunidade redefiniu seu
próprio território de vida.
A Ecologia científica, o Estado e os demais atores sociais integram,
assim, a luta classificatória pela representação legítima da Natureza e
pela distribuição de poder sobre os recursos territorializados, ora
questionando seu uso ‘interessado’, ora reivindicando o ‘respeito aos
equilíbrios naturais’, ora evocando a natureza como reservatório de
recursos, como cenário de distinção nobre, como paisagem de consumo
estético ou espaço de reprodução de grupos socioculturais. Entre as
diferentes estratégias discursivas adotadas, encontraremos referência a
direitos de propriedade contra direitos de uso, a reprovação moral, a
argumentação científica de riscos, a patologização de certas práticas, a
apresentação de certos atores como capazes de melhor cuidar do
equilíbrio ecológico. Assim, na relação entre o plano discursivo e o
plano das práticas, a cada inflexão nas representações dominantes sobre
o meio, mudará, consequentemente, o poder relativo dos atores no
campo de forças onde configuram-se conflitos ambientais.
(ACSELRAD, 2004, p. 22)
Segundo Acselrad, os conflitos ambientais devem ser trabalhados,
simultaneamente, em duas dimensões de apropriação: material (poder e recursos) e
simbólica (valores e representações). Como consequência, o referido autor define conflito
ambiental como aquele que envolve os modos de apropriação, usos e significados do
território.
Em linha com essa orientação, retomamos os contatos com as lideranças de
Sebastião Lan II e, no primeiro semestre de 2015, realizamos reuniões no sentido de
planejar novas estratégias de ação, a partir da premissa de que o conflito poderia colocar
em suspenso as atividades executadas pelo Incra no território.
Nesses encontros, percebeu-se o grande temor da comunidade quanto à efetivação
do PDS nas modalidades e nas condicionantes impostas. Ao todo, foram três reuniões
durante o primeiro semestre de 2015, uma das quais entre a UFF, a DPU e as lideranças
de Sebastião Lan II. A primeira reunião tinha um caráter eminentemente formal, na qual
a comunidade foi orientada a encaminhar suas demandas diretamente ao órgão
responsável por sua defesa. Nas duas reuniões subsequentes, levantaram-se os
questionamentos da comunidade à Nota Técnica construída pelo Incra, que forneceu
bases para a Licença Prévia do Inea e a consequente portaria de criação do PDS. Naquele
momento inicial, fazia-se necessário compreender e identificar os pontos conflitantes.
A partir dessa identificação mínima, encaminharam-se alguns questionamentos
para a DPU, que corroborou a maioria dos pontos e protocolou a ACP na Justiça Federal.
Apesar de a ação revelar um conflito, houve o cuidado de manter os canais de diálogo
abertos, razão pela qual se optou por realizar uma reunião de negociação com o Incra.
No dia 2 de setembro de 2015, realizamos uma discussão prévia, com a intenção
de organizar minimamente a comunidade para o debate que a ACP poderia provocar. Na
visão das lideranças presentes, o grande desafio, seria provar a situação de liminaridade
sociojurídica da população de Sebastião Lan II, que não vivia mais sob lonas. A
temporalidade (18 anos) já alterara a infraestrutura básica de sobrevivência: já havia a
presença de luz elétrica, a coleta de lixo, o transporte escolar, a construção de uma sede
comunitária, o processamento de alguns alimentos e as igrejas construídas.
A identificação dos agricultores pelos lotes, criados durante a ocupação, tornou-
se referência tanto para o Incra quanto para outros órgãos do Estado e, assim, a
comunidade se constituiu. Tratados como “absurdos”, os documentos elaborados para a
construção do PDS evidenciavam, para eles, um desconhecimento ou mesmo a má
intenção de setores que agiam por dentro das instituições do Estado para inviabilizar a
reforma agrária. Esses “absurdos” se materializavam, por exemplo, nas medidas que
tentavam limitar a limpeza dos canais artificiais criados ainda pelo antigo grileiro,
tratando-os como cursos de água naturais. Segundo eles, “cursos d’água naturais, não são,
tem que manter o acesso pra fazer a limpeza, vai complicar se a gente tratar eles como
rios” (Georges5 C).
Apesar de a Reserva Legal comprometer a maior parte do assentamento, as
lideranças não se posicionavam contrárias a ela, indicando até mesmo áreas tratadas como
tal, mesmo sem serem oficializadas. Construímos coletivamente uma proposta de criação
da uma Reserva Legal mais extensa, que abrangesse não somente o território de Sebastião
Lan II, mas que incluísse também o somatório das áreas de Sebastião Lan I, II e III. Como
o assentamento de Lan I foi condenado judicialmente – e a área do suposto Lan III estava
invadida por fazendeiros locais – o Incra poderia reprojetar a Reserva Legal, incorporando
essas áreas e criando o grande território de Sebastião Lan.
Essas foram estratégias de argumentação construídas para os primeiros diálogos
entre a comunidade e o Incra. Pretendíamos que a ACP retomasse a construção do PDS a
partir do reconhecimento de práticas e experiências em curso – e não como um
assentamento a ser criado hipoteticamente, como se não existisse uma comunidade
vivendo há quase duas décadas no local.
Em sentença judicial, há uma demanda do Poder Judiciário para que a UFF
mobilize o GT Ecosocial, com a citação nominal do professor Wilson Madeira Filho, que
vem a ser o Coordenador do GT Ecosocial6, para acompanhar novamente o processo, a
partir do início de 2017. Apesar de o fato gerar uma série de mobilizações internas, não
havia os recursos fundamentais para construir uma pesquisa do porte daquela conduzida
em 2002 (tanto do ponto de vista orçamentário quanto do ponto de vista humano). Houve
reuniões preliminares de trabalho envolvendo o OBFF e o GT Ecosocial, sob as
coordenações dos professores Ana Maria Motta Ribeiro e Wilson Madeira Filho,
respectivamente. Contávamos então com a ajuda da Defensoria Pública da União e a
adesão voluntaria de outros profissionais e pesquisadores da UFF.
A primeira reunião formal ocorreu no auditório da Faculdade de Direito da UFF,
no dia 30 de junho de 20177. Nas discussões, constatou-se a inviabilidade de
desenvolvimento do modelo de assentamento proposto pelo Incra, tanto do ponto de vista
econômico como legal.
Os problemas começam no processo que culminou no licenciamento prévio de
operação, quando a atividade agrícola já estava em curso há cerca de 20 anos, ou seja,
seria preciso realizar um licenciamento de correção das práticas. A própria perda de
validade da Licença Prévia, somada às alterações incorporadas no novo Código
Ambiental, exigiriam tanto um novo cálculo para a Reserva Legal como também a
5 Para preservar o anonimato dos entrevistados, todos os trabalhadores rurais citados serão classificados
como Georges para os homens e Geórgias para mulheres. 6 Depois da realização do Laudo o GT Ecosocial foi desmembrado em dois grupos de pesquisa, sendo que
o GT Ecosocial sob a coordenação do professor Wilson Madeira Filho, e o OBFF sob coordenação da
professora Ana Maria Motta Ribeiro. 7 Evento que contou com a presença dos professores da UFF Wilson Madeira Filho, Ana Maria Motta
Ribeiro, Andreza Franco, Valter Lúcio; com os doutorandos Rodolfo Lobato, Emmanuel Oguri, Hugo
Belarmino, com a bióloga Alba Simon, com uma extensionista rural da Emater e assessora do deputado
Flávio Serafini (PSOL), com os membro da Defensoria Pública da União Bárbara, Mariana e Bernard, com
o consultor em Direito Ambiental profissional do ICMBio Rogério Rocco, e com sete membros da
comunidade Sebastão Lan II.
possibilidade de o Incra utilizar as áreas dos Projetos de Assentamento Sebastião Lan I,
II e III como uma única unidade territorial, o que possibilitaria utilizar uma área maior
comprovadamente agricultável.
A permanência deste grupo de ocupantes já perfazendo duas décadas na área em
foco, exigiria, previamente, a consideração sobre a construção das casas para moradia,
assim como o investimento realizado (conforme previsto em estudos e documentos
preexistentes). Segundo os moradores essa “falta de respeito pelo que construímos
dificulta a conversa”. Como contrapartida à exigência de uma agrovila e à criação de uma
grande área de uso coletivo, a comunidade oferece um outro ordenamento territorial, mas
que não desloque os lotes já historicamente habitados. Há uma contradição entre o modelo
de PDS, com exploração coletiva, e a tradição agrícola de loteamentos individuais, seja
para a produção, seja para plantios de subsistência. Ressaltando o fato de que a área
encontra-se já com benfeitorias tais como casas de farinha, galpões de produção, igrejas
e demais investimentos individuais nos respectivos lotes, surge novamente a questão da
possibilidade de indenização.
Há uma grande preocupação da comunidade quanto à necessidade de um “Portal”
dentro da área. Segundo os relatos dos trabalhadores rurais “na verdade os caçadores e
pessoas que ameaçam a Reserva Biológica ingressam pelo Rio São João, e não pelo Lan”.
Por mais que os técnicos do Incra se esforcem para demonstrar que o significado do Portal
é mais informativo, eles temem perseguições e a responsabilização dos órgãos ambientais
sobre todo e qualquer dano à reserva.
Três encaminhamentos resultaram dessa reunião: 1) prioridade para assentar 60
famílias, como um número mínimo para a viabilidade do assentamento; 2) construção de
uma proposta que contemple a Reserva Legal como um somatório das áreas de Sebastião
Lan I, II e III – pois trata-se de um único projeto de colonização e reforma agrária; 3)
realização de uma segunda reunião, no Sebastião Lan II (Silva Jardim) para cotejamento
dos dados do Incra com a realidade da comunidade hoje; 4) manutenção das áreas de
produção, com prioridade para os atuais residentes dessas áreas, construção de moradias
mantendo o lote (em caso de risco de inundação) como local de trabalho da família
beneficiada pela reforma agrária.
A segunda reunião realizada em 24 de Junho de 2017, deu-se após uma conversa,
realizada na véspera, na Associação dos Trabalhadores Rurais de Sebastião Lan II),
apenas entre os moradores. Essa reunião caracterizou-se por um repasse das informações
recentes sobre os encaminhamentos da última reunião, realizada na UFF, e um
levantamento sobre a situação dos lotes (remanejamentos, permanências e eventuais
deslocamentos das áreas), referente aos 44 lotes selecionados. Naquele momento,
realizamos uma reclassificação dos lotes, utilizando critérios internos, um mapeamento
prévio de todos os lotes existentes, além de apresentarmos a lista dos moradores, membros
da comunidade, novos integrantes e áreas possíveis para a Reserva Legal.
A lista dos lotes, produzida em parceria com a comunidade, mostrou algumas
discrepâncias em relação ao levantamento realizado pelo Incra, a realidade modificou-se
muito rapidamente. Tanto do ponto de vista de organização dos loteamentos, das
atividades produtivas em curso, dos atuais moradores, bem como das classificações, as
discrepâncias foram muito grandes. No total, localizaram-se oito lotes não mapeados,
identificou-se um morador falecido, dois casos de sucessão familiar e vinte e seis lotes
que encontravam-se em situação diferente do retratado pelo Incra.
Realizada na comunidade rural de Sebastião Lan II, no dia 11 de Julho de 2017, a
terceira reunião teve como foco a discussão sobre o projeto a ser apresentado diante das
condicionantes ambientais. Dois sítios pertencentes ao Sebastião Lan II foram visitados
(do Georges H e Georges I). Uma turma do curso de Engenharia Agrícola e Ambiental
da UFF foi mobilizada para registrar e analisar determinados locais da comunidade
previamente acordados8.
O primeiro lote visitado foi o do Georges H, que recebeu a turma perguntando:
“Vocês querem conhecer uma área improdutiva?”. A brincadeira foi a forma criativa
escolhida para apresentar a produção de três tipos diferentes de aipim, além de coco,
abóbora, maracujá, ovos de galinha caipira e árvores frutíferas. Georges H tem também
um trator, que alega ter montado sozinho, usando peças de tratores antigos, a cabine é
feita de madeira.
No segundo sítio visitado, do Georges I, a ênfase foi na discussão sobre o processo
de produção: UFF: Você mexe a terra ela toda, o que você faz?
Georges I: Semeio o calcário todinho nela aí depois eu cavo ela todinha,
fofo, para misturar o calcário aí depois meto folha. [...] meto folha
porque a folha apudrece. [...] depois vamo fazendo os cantero já
misturando adubo de boi [...] molho bem e vou fazendo as muda [...]
depois espalho, vou reprantando, tirando aí faço já os canteiros. [...]
molho direto [...] Eu tenho mangueira e bomba. [...] A água eu pego do
poço, ai eu ligo a bomba e joga, a mangueira vai pra horta já. [...] por
volta de seis horas eu começo a molhar aí quando for de tarde, a hora
que o Sol já caiu, quando já tá mais fresco aí molho de novo. Só de
manhã e de tarde. Por causa da nebrina também de manhã a gente molha
por causa da nebrina, porque cai a nebrina e aí abre o Sol aí mata tudo.
Os alunos: O senhor vende?
Georges I: Não. [..] Pra uso, pros amigos, pra todo mundo aí. [...] aqui
minha casa vive cheia, graças a Deus. Eu gosto disso. Minha casa vive
cheia, sábado e domingo aí, pessoal crente, vai tudo pra lá. O pastor,
muita gente.9
Os alunos se subdividiram em grupos de trabalho, através dos quais elaboraram
laudos técnicos sobre as visitas, o que tornou possível conciliar uma atividade de ensino
e extensão universitária. A partir de diferentes perspectivas, puderam coletar insumos
para refletir sobre a realidade da comunidade a partir de uma perspectiva de engenheiros
agrícolas em formação. Sobre a paisagem encontrada, assim descreveu um dos grupos de
estudantes: Outra observação feita foi em relação à presença de grupos de árvores
próximos às residências dos moradores. Nas áreas de fazenda, antes de
chegar à comunidade, vê-se uma área apenas com gramínea, enquanto
há existência desses microclimas com árvores próximas às casas. Isso
se dá por causa do sombreamento das árvores que aumenta muito o
conforto térmico das residências, proporciona barreira visual e
disponibiliza alimento [...], tanto para consumo humano, quanto para os
animais. A presença dessas árvores incentiva e possibilita o retorno de
pássaros e outros animais10.
8 Trata-se de uma turma da disciplina da Sociologia Rural, ministrada pela professora Ana Maria Motta
Ribeiro. Uma semana antes ministrei uma aula sobre a situação social e jurídica em que encontrava-se a
comunidade rural de Sebastião Lan II, repassando documentos prévios de estudos, mapas e referências para
prepara-los para o trabalho de campo. A UFF disponibilizou um micro-ônibus, com o qual ingressamos em
Sebastião Lan II, no percurso discutimos aspectos que seriam necessários para compor os trabalhos finais
do curso. 9 Transcrição da conversa realizada pelos alunos: Kassia Chebli, Mayara Gomes, Nathália Viana e Patrick
Polatto. 10 Sem paginação. Trabalho da disciplina Sociologia Rural de Bruno Fonseca, Igor Jevaux, Jéssica Hotz e
Débora Thomaz, 2017.
A interessante reconstrução da paisagem pelo relato do grupo sublinha o aumento
da biodiversidade, criado a partir da construção das moradias. Em outros sítios da
comunidade, é possível identificar o mesmo processo de recomposição de uma vegetação,
que combina árvores frutíferas com árvores para sombreamento. Aos olhos dos
estudantes, que entraram em Sebastião Lan II pela primeira vez, foi nítida a perplexidade
diante das soluções encontradas pelos moradores para contornar a falta de assistência.
Pode-se perceber que a falta de assistência por parte do INCRA fez com
que os próprios agricultores descobrissem soluções para enfrentar
problemas na lavoura e formas para organizar o modo de produção.
Essa mesma falta de acesso, tanto de informações quanto de assistência
tem reflexos negativos no meio, uma vez que [...] mesmo de forma
pontual [...] [usam] pesticidas para combater doenças ou pragas na
produção. Na condição de assentados, estes teriam [...] créditos,
assistência e uma infraestrutura, que ajudariam no avanço de sua
produção. Porém, é notável que apesar das dificuldades, a produção de
alimentos na comunidade é grande.11
Em relatos semelhantes, houve a descrição de um potencial não apenas
“adormecido” da terra, mas, acima de tudo, redescoberto pela experiência. Um potencial
que, em um dos laudos produzidos, apareceu na forma do “quanto a ação conjunta da
Reserva Biológica e os assentados poderia ser favorável para a construção de uma região
ambientalmente equilibrada”12. A percepção ou perplexidade dos estudantes diante da
aparente contradição entre os laudos que declaram inaptidão para agricultura é
contundente no seguinte relato:
O local foi definido pela Embrapa como improdutivo, porém produz
com muita facilidade culturas como abóbora, mandioca, milho, feijão e
até arroz. A maioria dessas culturas é feita através de consórcios e
rotação, o que beneficia o solo.13
Nas discussões da reunião constatou-se que a competência ambiental não é do
Incra, mas cabe ao Inea e ao ICMBio. Segundo nos documentos apresentados no processo
de criação do PDS Sebastião Lan II não houve levantamento de campo; apenas uma
consulta aos órgãos ambientais. Os moradores argumentam que o Inea não realizou
nenhum levantamento de campo, tanto que o instrumento de licenciamento ambiental não
contemplou atividades agropecuárias em curso, restringindo-se a um licenciamento
prévio, como se não houvesse atividades em curso.
Dessa forma, o termo utilizado para “restauração” ambiental mostra-se inviável
do ponto de vista técnico, econômico e do Direito ambiental, quando, na verdade, algumas
áreas deveriam passar por um processo de “recuperação”. A interlocução dos órgãos
ambientais apenas com o Incra criou um processo de invisibilidade social e política,
impedindo que os moradores apresentassem aos órgãos competentes as dinâmicas de usos
da terra e do território, com baixo ou mínimo impacto ambiental. A própria ocupação pela
agricultura familiar, em um território outrora devastado pela monocultura do arroz,
11 Página 12, trabalho da disciplina de Sociologia Rural de Kassia Chebli, Mayara Gomes, Nathália Viana
e Patrick Polatto, 2017. 12 Trecho do trabalho da disciplina de Sociologia Rural, de Daniela Marques, Jéssica Raposo, Jóice Azeredo
e Larissa Monteiro, 2017. 13 Trabalho da disciplina Sociologia Rural de Alice Balliester, Bianca Oliver Sarmento, João Pedro da S.
C. Andrade, Pedro G. F. Christiano, Renata M. Canto de Souza, 2017.
permitiu, hoje, a sobrevivência de áreas de vegetação nativa, a recomposição da
vegetação, o plantio de árvores e um limite físico para o crescimento desordenado da área
urbana de Casimiro de Abreu.
Durante a reunião, alguns tópicos foram levantados para análise futura: 1) há
exceções quanto à impossibilidade de uso da APP, como utilidade de uso público,
interesse social e baixo impacto; 2) há, no Novo Código Florestal, o conceito de “Área
Rural Consolidada”, que, em nenhum momento, foi utilizado como argumento a favor da
comunidade, reforçando a noção de invisibilidade de práticas sociais em curso por mais
de 20 anos; 3) a Reserva Legal pode ser remanejada, desde que inserida dentro da mesma
bacia hidrográfica, o que reforça o argumento de que o Incra pode utilizar as áreas de
Sebastião Lan I e III como área de Reserva Legal; 4) não há uma negação do PDS pela
comunidade, mas sim um conjunto de adaptações e melhorias a serem incorporadas com
a participação da comunidade; 5) faz-se necessária a realização de uma Oficina de
Cartografia Social com a comunidade, o Incra e os órgãos ambientais, para redesenhar o
projeto de PDS.
Ao final da reunião, definiram-se duas alternativas ao PDS proposto: 1) realização
de um único projeto de assentamento, incluindo Sebastião Lan I, II e III, assim
contemplando a maioria dos atuais ocupantes da terra e expulsando os grileiros e
fazendeiros que atualmente ocupam de forma ilegal terras públicas; 2) utilização, como
referência para a construção da Reserva Legal, de corredores florestais, a serem
construídos nos resquícios de mata nativa, e não ao longo do Rio São João, como exposto
no projeto apresentado pelo Incra. O mapa a seguir ajuda-nos a visualizar uma proposta
diferenciada de área para Reserva Legal14.
Essa atividade de campo contou com a participação das principais lideranças de
Sebastião Lan II, incluindo as duas últimas gestões da Associação II, mais agricultores
que ficaram responsáveis por guiar os alunos em trabalho de campo, e outros responsáveis
pela infraestrutura (alimentação e transporte). Quando o micro-ônibus da UFF entrou na
comunidade um dos “novos ocupantes” seguiu o grupo e, percebendo que o havia ali um
amontoado de pessoas resolveu estacionar o carro. Não era um carro simples, mas uma
picape importada, sentou-se em silêncio e resolveu acompanhar a reunião. Momento em
que a dona da casa em que estávamos chamou-o e pediu para que fosse até Casimiro de
Abreu correndo para comprar gasolina, pois precisava do combustível para alimentar o
gerador. Era mentira.
No momento em que esse “intruso” saiu a dona da casa revelou que “ele está
espionando, ele não é da comunidade”. Tratava-se de uma ocupação não legitimada pela
Associação, com suspeitas que ele fosse um “matador”, que chegou comprando as terras,
não participava das atividades da associação e visivelmente não tinha um perfil de
agricultor familiar. Depois de aproximadamente uma hora, ele retorna com o combustível,
o tom dos debates muda, as conversas no pé da orelha aumentam. As discussões ficam
mais genéricas e, assim, encaminhamos apenas questões práticas no final. Mas, antes de
terminar, e antes que as pessoas começassem a se despedir, esse “intruso” pede a palavra
e diz: “Que Deus abençoe a todos!”.
14 Mapa produzido pelo grupo de estudantes: Kassia Chebli, Mayara Gomes, Nathália Viana e Patrick
Polatto.
Figura 1 - Mapa desenvolvido pelos alunos da turma de Engenharia Agrícola, como trabalho final de conclusão.
Todas essas discussões prévias foram encaminhadas, no dia 2 de agosto de 2017,
momento em que nos reunimos, na sede do Incra. Essa reunião, sem a presença de
membros da comunidade, tinha como foco a discussão sobre o processo em curso da ACP.
Procurávamos manter o órgão federal ciente dos trabalhos desenvolvidos em campo
durante o ano de 2017, e apresentar algumas conclusões prévias e possibilidades de
confluência de propostas. Nessa ocasião, conhecemos o novo chefe do setor de meio
ambiente, assim como as discussões internas referentes ao Sebastião Lan II.
Através do gestor da Reserva Biológica de Poço das Antas, fomos informados das
novas reuniões realizadas entre o Incra e o ICMBio, dos trabalhos de campo sobre as
experiências produtivas na comunidade, em áreas anteriormente classificadas como
“inaptas” pela Embrapa, e da expectativa de atualizar informações relativas aos padrões
de uso e ocupação do solo. Os técnicos se disponibilizaram também a efetuar
levantamentos sobre a dinâmica de inundação e verificar a rede de drenagem.
Entre as principais conquistas e acordos entre a universidade e o Incra podemos
citar o compromisso do instituto em realizar um mapeamento sobre os remanescentes
florestais e, finalmente, identificar as áreas mais adequadas para implantar uma vila de
casas internas do assentamento. Nesse sentido, a criação da vila deveria se restringir à
moradia das famílias cujos lotes estivessem totalmente inseridos em áreas de risco de
inundação, mas que permaneceriam com seus lotes como áreas de trabalho, deslocando
apenas a moradia. Foi indicada, também, a possibilidade de criação de um documento,
por meio do qual os assentados demonstrariam ciência quanto às limitações e os riscos
para a produção, em ocasiões de enchentes. Entre os encaminhamentos podemos destacar:
diminuição da reserva legal para o mínimo estabelecido pela legislação ambiental (20%
da área total do imóvel); implantação da APP nos termos da legislação, com
remanejamento do menor número de famílias possível.
REFORMA AGRÁRIA DE BAIXO PARA CIMA
A classificação dos lotes pela Associação, sob coordenação do OBFF/GT
Ecosocial, diferencia-se da metodologia utilizada pelo Incra. Em reunião realizada com
membros das últimas duas gestões da Associação II, observou-se como o caráter de
liminaridade sociojurídica vivenciada há 20 anos obrigou-os a receber novos membros
como condição de sobrevivência e manutenção do tecido social. Esse ingresso de
trabalhadores rurais somou-se a uma dinâmica de saída e retorno, seja por motivos
econômicos, seja por motivos familiares (separações, mortes, nascimentos), caracteriza
uma demanda constante por mobilidade (externa ou interna). Mas essas dinâmicas têm
que ser combinadas com a necessidade constante de invasões, seja por fazendeiros ou por
grupos de especuladores urbanos. Ou seja, tanto a pesquisa quanto a conversa com as
lideranças demonstrou o quanto é “preconceituosa” ou “etnocêntrica” a perspectiva de
fixação do homem no campo.
Qual o tipo de homem que deve ser “fixado” no campo? Como construir modelos
capazes de “inserir” indivíduos em lotes, para serem beneficiados pela reforma agrária?
Como identificar o potencial de um trabalhador rural ou de periferias urbanas que se
pretende um agricultor familiar? A mobilidade interna ou externa dos trabalhadores rurais
significa apenas uma especulação da terra? As diversas práticas de mobilidade seriam
indícios de uma falta de “cultura” coletiva?
A fala e o discurso, ao mesmo tempo revelam, condenam e censuram elementos
do passado e do presente. Trata-se de idiossincrasias que caracterizam cada campo em
disputa. Assim, o poder de classificar, reelaborar a memória coletiva, coloca em jogo
formas de exercício de poder em suas diversas dimensões (econômica, simbólica ou
políticas). Para Pierre Bourdieu (2005), a relação do sujeito com o seu passado envolve
uma reconstrução permanente da história, que se relaciona com os seus aliados e
adversários do presente. Ou seja, as classificações estão intimamente relacionadas com
os campos de disputa. Nada há de menos inocente do que a questão de saber se devem incluir
no sistema de critérios pertinentes não só às propriedades ditas
"objetivas" (como a ascendência, o território, a língua, a religião, a
atividade econômica, etc.), mas também as propriedades ditas
"subjetivas" (como sentimento de pertencimento, etc.), quer dizer as
representações que os agentes têm das divisões da realidade e que
contribuem para a realidade das divisões. (BOURDIEU, 2005, p. 120)
A partir dessas representações dos próprios membros da comunidade construiu-se
uma nova classificação, com o objetivo imediato de dialogar com a classificação
ocupacional realizada pelo Incra. Nesse sentido, estabeleceram-se, em uma oficina de
trabalho no Sebastião Lan II, algumas categorias: morador, comunidade, ocupante,
novo membro da comunidade e área alagável. Não se procurava desqualificar o
trabalho realizado, mas sim demonstrar a transitoriedade de qualquer trabalho, por maior
que seja sua qualidade, numa comunidade que vive em situação de liminaridade.
Primeira reclassificação.
No início das conversas, já identificávamos a assimilação e reelaboração dos
discursos preservacionistas para o território, provenientes de ideias que surgiam de uma
experiência com a terra, combinando a possibilidade das atividades econômicas e sociais
com a própria dinâmica da natureza. Assim, a área alagável, na palavra das lideranças,
refere-se a lotes em que há o reconhecimento do grau de precariedade e risco, incluindo
o baixo índice de produtividade.
Ao todo, são três os lotes considerados alagáveis, que nas análises do Incra
aparecem com as seguintes classificações: "ocupante não produtivo", “terreno
abandonado” e “morador”. Ao atualizarmos os nomes das famílias presentes nesses lotes,
percebemos que, do estudo realizado pelo instituto de reforma agrária até 2017, um dos
membros que constava na lista oficial já havia falecido, e outros dois já haviam saído de
Sebastião Lan II (não constavam nos registros da Associação novos membros nessas
áreas). Há, assim, uma indicação prévia para que esses lotes venham a se constituir como
reserva legal.
Segunda reclassificação.
A complexidade da classificação interna começa a aparecer quando as lideranças
resolvem criar uma categoria para incorporar diferentes situações de ingresso em
Sebastião Lan II, posteriores à ocupação de 1997. Trata-se da classificação como
membros da comunidade. São pessoas e famílias que obtiveram uma aprovação formal,
em Assembleia, ou ingressaram em acordo com o último ocupante do lote, seja ele
participante da ocupação original ou não. São pessoas que, de certa forma, entraram de
forma “amigável” e contribuem com as redes de solidariedade internas. Essas redes
internas podem ser percebidas tanto nos desafios da produção (dividindo insumos,
equipamentos), como no suporte para as mobilizações de reivindicação nos órgãos
públicos, apoiando outros membros em momentos difíceis (durante as enchentes, doenças
ou transporte) e, também, nas atividades festivas ou religiosas.
Ao compararmos as famílias dessa categoria (comunidade) com o relatório oficial
do Incra, encontramos três lotes em que ninguém foi encontrado encontrada naquela
época, mas onde hoje existem pessoas classificadas. Da mesma forma que há um elevado
grau de mobilidade dentro dessa categoria, podemos perceber algumas regularidades.
Essas regularidades referem-se não só a formas de reocupação de terrenos por novos
membros, mas também pelo retorno de antigos ocupantes da terra.
Um exemplo concreto pode ser contemplado quando nos deparamos com um
“morador” (de acordo com o relatório INCRA), que foi classificado como membro da
"Comunidade". Essa situação se destaca, pois envolve uma mudança de posição em
relação à própria ocupação de 1997, momento em que o mesmo entrou em conflito com
o movimento social. Após a fase de conflito, esse agricultor, ex-funcionário de Dilvo
Peres (antigo grileiro da Fazenda Arizona), “aproveitou-se do acampamento”, segundo as
lideranças atuais, e ocupou um lote. Essa noção de “aproveitamento” foi relatada sem
qualquer sinal de rejeição ou antipatia, interpretada como se o trabalhador rural tivesse
aproveitado uma “oportunidade”.
Entre os “ocupantes não produtivos” (INCRA, 2012) que se transformaram em
“membros da comunidade”, há outros exemplos para exemplificar a abrangência da
classificação interna. Na primeira situação descrita, o ocupante inicial do lote se deslocou
internamente, por temor das enchentes. Na segunda situação, uma família considerada
“não produtiva” (de acordo com relatórios do Incra), com a qual conversamos e
identificamos um apoio coletivo para a sua permanência em Sebastião Lan II, ingressou
inicialmente na área do Sapê. Diante das dificuldades encontradas inicialmente, decidiu
com o apoio da comunidade, assim como no primeiro caso, deslocar-se para um lote de
melhor qualidade.
A terceira família alvo de debates diz respeito a um lote ocupado inicialmente por
um militante do MST, ainda em 1997, que trabalhava na dragagem do canal do rio São
João. Com a sua morte, deixou de herança para o filho o fruto de sua luta: a terra
conquistada. Houve o reconhecimento de que o filho tinha o direito de repassar essa terra,
o que foi feito. E, hoje, diferentemente do que diz o relatório do Incra, há um ocupante
legitimado pela Associação II, ou seja, uma transmissão que atende a critérios internos de
mobilidade.
Há um quarto caso de um ex-arrendatário, ocupante não produtivo que passa a ser
classificado como “comunidade”. O mesmo foi expulso da área arrendada do antigo
grileiro, durante a ocupação de 1997, perdendo toda sua produção e entrando, naquela
época, em conflito com o acampamento em constituição. Anos mais tarde, ele retorna,
mas numa área diferente daquela que arrendava. Hoje ele é aceito como membro da
comunidade, pois as “mágoas ficaram no passado”.
Em um quinto caso, o Incra classifica como “ocupante” alguém que passou a ser
membro da comunidade. Nesse caso, o nome estava de acordo com a classificação
realizada pelo instituto, mas o fato de esse trabalhador rural servir de ajudante para o
ocupante original do lote, que participou da luta de 1997, forneceu-lhe legitimidade para
ingressar na comunidade. O ocupante original conseguiu um emprego na cidade de
Casimiro de Abreu e “passou a posse”, nas palavras das lideranças da Associação II.
Um sexto caso pertencente a membro da comunidade, classificado como
“ocupante” pelos relatórios do Incra, mostra o quanto a mobilidade é uma constante em
Sebastião Lan II. O relato produzido na reunião é esclarecedor desse movimento interno:
“Primeiro foi o seu Georges 1, que foi pra cidade e deixou o filho (Georges 2), esse filho
não queria trabalhar a terra e foi embora. Aí entrou o Georges 3, que também abandonou
e entrou o Georges 4. Depois que veio o Georges 5, que foi padrasto do Georges 6. Mas
como o nome dele tava sujo, o nome que tá lá é de Georges 6 mesmo”. Essa trajetória
toda apenas para explicar que o atual ocupante da terra, Georges 7, não consta da lista
realizada pelo Incra em 2011.
Terceira reclassificação.
Apesar de o lapso temporal dificultar o trabalho, devemos reconhecer a qualidade
de formação do assentamento, ora descrito em seus diversos níveis. Assim, o profissional
do INCRA (2012) produz um relato sobre um dos membros do assentamento, revelador
sobre a necessidade de as lideranças incorporarem pessoas em situação de vulnerabilidade
social como membros da comunidade. Um dos critérios, também, é a necessidade de
moradia e a impossibilidade de reconstituir a vida nas periferias das grandes cidades. Eis
o relato produzido pelo técnico do INCRA sobre um indivíduo que, em 2011, tinha 65
anos15.
A situação física ou psicológica não foi um critério utilizado pelas lideranças para
tornar o postulante a uma vaga como apto ou inapto. Pelo contrário, há situações de
velhice ou de sofrimentos familiares acolhidos e protegidos, seja através da categoria
“comunidade” seja através da categoria de “morador”. Por mais que o Incra diga que
alguns dos ocupantes que produzem “merecem” o benefício da reforma agrária, a
comunidade e a entidade expandem essa concepção para fortalecer uma comunidade, que
busca legitimação, ou para respeitar um histórico de luta pela terra. Dessa forma, o
ingresso de elementos diferentes do perfil específico de beneficiário da política pública,
por mais que contrarie os preceitos legais, permite contemplar uma
“multifuncionalidade”16 da reforma agrária.
A partir de conversas com as lideranças, foi possível constatar que, para a
comunidade, é fundamental manter uma mobilidade constante para garantir a presença
15 Georges X “vive em estado de semiabandono, algo isolado. É-lhe difícil entrar e sair do acampamento
porque não dispõe de qualquer veículo. Então caminha. Caminha muito. Por vezes tem a carona da Kombi
escolar. Senão, são quatro horas de ida até Casimiro de Abreu e depois mais quatro horas de retorno."
(INCRA, 2012: 218) 16 As sensíveis transformações no ambiente rural contemporâneo colocam em debate o tema da
multifuncionalidade, tal como as seguintes questões emergentes: o caráter pluriativo das famílias rurais em
função das atividades não-agrícolas no campo; o papel da agricultura e das demais atividades rurais na
manutenção ou na criação de novos empregos; o processamento, a transformação e a venda direta de
produtos agrícolas de qualidade; o agroturismo; a proteção do meio ambiente e da biodiversidade; as
preocupações ligadas à segurança alimentar; e, a produção-manutenção da paisagem rural. A difusão
internacional da noção caminha, de um lado, sobre a pretensão de realçar as demais funções que devem ser
desempenhadas pela agricultura além de sua função primária de produzir alimentos. (Cf. LOBATO DA
COSTA, 2005)
numerosa de famílias em Sebastião Lan II. Esse fato, além de recompor constantemente
o tecido social local, tem a função de constranger o Poder Público. Ao mesmo tempo em
que as autoridades políticas locais contemplam esse campo como oportunidade eleitoral,
o quantitativo de produtores significa, também, maior poder de “barganha” ou
coordenação de esforço dos trabalhadores rurais frente ao mercado (com canais de
distribuição da produção e desenvolvimento técnico) concretizada nos poderes públicos
locais (mais de 80 famílias como “eleitoras”); e no preenchimento rápido de lotes
abandonados. Enfim, esse raciocínio faz com que os membros da Associação II não
falem, tampouco indiquem a existência de lotes vagos, ociosos ou improdutivos. Todos
possuem uma função, mesmo que seja uma função futura, como nova oportunidade de
trabalho e renda para quem eles permitirão entrar.
Há um total de 15 moradores ocupantes originais, ou seja, que estiveram presentes
no acampamento de 1997 ou que são filhos dos ocupantes originais (em sua maioria
organizados pelo MST). Isso não quer dizer necessariamente que estejam contentes com
seus lotes ou que desejam permanecer ali, por mais que a maioria queira permanecer. Há
alguns que não desejam mais suportar a precariedade da situação de indefinição. Mas,
também, há casos de pessoas que sempre quiseram voltar à vida no mundo rural,
relembrando seus antepassados. Cumpre ressaltar, contudo, que o elemento mais comum,
de uma perspectiva das trajetórias individuais é a fuga da cidade, da favelização, do
trabalho precário, da violência das periferias e o retorno a uma vida rural (lembranças da
infância).
Quarta reclassificação.
Há um único caso, de um membro da comunidade que foi classificado pelas
lideranças da Associação II como "novo membro da comunidade". Esse caso é revelador
como a diferença de renda interna não implica em uma rejeição a priori, mas revela a
importância que eles atribuem à diversidade. Quando conversamos com ele em trabalho
de campo, mostrava-se como um empreendedor. O mesmo vendeu seu antigo sítio para
ingressar numa área melhor dentro do Sebastião Lan II. E, com ele, houve o ingresso de
equipamentos e insumos que poderiam ser utilizados pela Associação, ao mesmo tempo
que ele fornecia suporte com contatos na Secretaria de Agricultura participavas das
festividades e das reuniões da Associação II. Sabendo de minha presença em uma das
casas ele trouxe uma série de “presentes” (whisky, cachaça e linguiça) pra gente
conversar. Poderíamos dizer que esses “presentes” representam uma forma de “ganhar”
a confiança, mas, para a maioria das pessoas que conversamos em trabalho de campo, a
presença desse “novo membro da comunidade” significava uma possibilidade do ingresso
das famílias em uma rede de comercialização que permitiria elevar os rendimentos e a
produtividade para uma “modernização” do assentamento. Apesar de ele atender aos
critérios de um “ocupante”, as lideranças reivindicavam a classificação dele como “novo
membro da comunidade”.
Quinta reclassificação.
O critério utilizado pelo Incra (2012) para ocupante refere-se àquele que não
reside nem produz, com rendas não provenientes em sua maior parte de atividades
agropecuárias. Para as lideranças em entrevista sobre essa mesma categoria,
contemplava-se, também, agricultores que chegaram na comunidade sem que houvesse
um trâmite mínimo baseado em relações de confiança. Nesse caso em particular
encontramos os relatos de negociações envolvendo carros, motos, dinheiro e casas na
região dos Lagos. Ou seja, uma terra utilizada para especulação e para turismo.
Nesse subitem, tal como revela a pesquisa realizada por Gil Félix na Amazônia
Oriental (2009), a compra e a venda da terra era vista por agentes do Estado, mais
especificamente pelo Incra, como uma ausência de ordem, ou mesmo como uma situação
que exigia uma “moralização da reforma agrária”180. Há uma diferenciação que devemos
fazer para compreender a venda da terra como dinâmica histórica de reprodução do
campesinato, tal como apontado na pesquisa realizada por Gil Félix, e as dinâmicas de
venda da terra não legitimadas pela comunidade, tal é o cenário que podemos contemplar
ao estudar os “ocupantes”.
Entre esses ocupantes também encontramos indícios e relatos, tanto de técnicos
do Incra quanto em conversas na comunidade, de formas diferenciadas de intimidação,
ameaças e violências. Nessas áreas específicas há, além de plantações de eucaliptos,
criações de gado ou associações a supostos grupos milicianos em formação. Nesse sentido
há um movimento interno que, mesmo sob risco de ameaça, não legitima tais ocupações
e tenta atendimento de órgãos como a ouvidoria agrária. Em uma das conversas durante
o trabalho de campo um dos moradores de Sebastião Lan II revelou que uma denúncia de
agressão é verdadeira: “Foi Georges Y, ele quis dar um susto no W (técnico do Incra),
mas quem estava no carro era G (outro técnico do Incra)”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao não realizar a reforma agrária durante 21 anos, o Estado permitiu a existência
de um mundo “autossuficiente”, fechado dentro de seus impasses. O primeiro impasse,
representado pela ilegalidade da ocupação, depois pela incompatibilidade entre
agricultura e meio ambiente e, agora, esse período recente apareceu a falsa ideia de falta
de aptidão do solo, do trabalhador e pelo risco de inundação. Esse artigo mostra sua
relevância ao tentar demonstrar as diversas formas encontradas para esterilizar qualquer
ação de baixo para cima que venha a perturbar a ordem fundiária vigente e o movimento
de concentração de terras.
Nesse sentido, faz pouca diferença se o contexto validador de exclusão dos
trabalhadores rurais ao acesso e à regularização fundiária em Sebastião Lan II seja de
ordem jurídica, agronômica, meteorológica ou econômica. De uma forma, ou de outra,
todos os discursos técnicos ou científicos possivelmente racionais ou lógicos foram
prejulgamentos. O julgamento pré julgador que, uma vez aceito, constituiu um a priori
empírico que não pode ser transcendido.
Há uma disputa superficial, em que está aparente a disseminação de uma nova
forma de se fazer reforma agrária (unindo as perspectivas ambientais e econômicas), mas
que, em sua dimensão inconsciente, significa a eliminação de conceitos capazes de
compreender o que está acontecendo (práticas criadoras de impasses contínuos).
Queremos dizer, há limites econômicos que representam o PDS no discurso comum dos
Georges e das Geórgias de Sebastião Lan II. Não há uma proposta real para uma transição
agroecológica, não há uma educação ambiental prévia, não há uma assistência técnica. A
relação entre o discurso promotor de um desenvolvimento rural sustentável (de cima para
baixo) aparece, contraditoriamente, como limite ao desenvolvimento livre de uma forma
de ser ecológico (de uma perspectiva de baixo para cima).
Estudar e pensar o caso de Sebastião Lan II leva-nos a uma situação de
ambiguidades constantes, por representar um caso de ocupação de terra relativamente
bem-sucedido. O ingresso das famílias nesse território criou um tecido social capaz de
resistir às pressões do grileiro, aos desafios ambientais, aos preconceitos de grupos
preservacionistas e, de forma contraditória, mas eficaz, às pressões do mercado
imobiliário. Nesse sentido, há a necessidade de ponderarmos sobre a relação e a
convergência entre os interesses em disputa e as pequenas utopias em realização.
Não se trata, em absoluto, de incorporar à reflexão um romantismo conceitual que
colocaria os trabalhadores rurais e a comunidade como sujeitos dotados de uma verdade,
contra um movimento iluminista acadêmico dotado de uma autoridade científica. Mas,
justamente, de superar ou compreender as ambiguidades. Ao incorporarmos uma
concepção gramsciniana de ideologia como visão de mundo, percebemos o quanto nossas
perspectivas sobre o conflito socioambiental estão localizadas em modelos que precisam
ser atualizados para uma realidade em constante movimento.
Esses autoritarismos são reificados pela própria ciência, quando nega ao seu
campo de pesquisa elementos de uma racionalidade que a universidade, por vezes,
monopoliza. Ou quando os agentes do Estado não compreendem os beneficiários da
reforma agrária como agentes capazes de decidir seu futuro, ou quando não abre espaços
efetivos de participação política. O PDS, um projeto inovador para o Estado do Rio de
Janeiro, aparece para os moradores de Sebastião Lan II como “coleira”.
Eu queria o PDS, eu sonhava com o PDS. Quando a gente falava lá atrás
de ecologia eu pensava que a gente ia fazer ecologia igual ao fazendeiro,
da nossa cabeça. Eles não são forçados pra fazer agroecologia, eles
querem e fazem a ecologia deles. Pra gente é uma coleira, não vem da
nossa cabeça... (Georges C, depoimento em 2017)
Essa “coleira” reafirma a reforma agrária encaminhada pelo Estado, apresenta-se
como um processo autoritário, sem dúvida. Mas, nesse caso, o autoritarismo não é contra
a propriedade privada, o autoritarismo é contra a reforma agrária. Portanto, não existe
democracia sem reforma agrária democrática. Há um hiato entre a realidade das classes
subalternizadas e seu potencial. Da mesma forma que representa “autoritarismo
etnocêntrico” dizer o que significa ser ambientalmente correto. Não podemos, como
instrumento retórico, desejar a “fixação” do homem ao campo, assim ignoraremos uma
possibilidade e a necessidade de mobilidade ou de inovações. Em resumo, a contradição
entre as normas legais e a dinâmica social exige novas perguntas a serem realizadas em
parceria democrática com a comunidade.
Nos interstícios do Estado, nas sombras da legislação ambiental, na penumbra do
produtivismo, há uma reforma agrária em gestação constante. Se, de um lado, há um
movimento de concentração de terra (desagriculturalizando-a), há um outro movimento
de democratização das terras (rerruralizando-as). A especulação imobiliária e os limites
ambientais do “mundo moderno” deixaram de ser problemas restritos a espaços urbanos
ou rurais. Da mesma forma as bandeiras da terra e da moradia, assim como as bandeiras
de luta contra os autoritarismos, fazem da experiência cotidiana de luta dos trabalhadores
rurais uma experiência de uma classe social sem fronteiras.
Diante de autoritarismos não declarados ou silenciosos, de um sistema econômico
que produz miséria e violências, identificamos pequenas trilhas de um caminho sem uma
direção preconcebida, mas em movimento constante. Se há uma burocracia que mantem
“eternamente” o processo de acumulação capitalista e expropriação como a regra do jogo
– por isso não ser possível a reforma agrária no Brasil hoje. Há limites entre a legalidade
e a experiência que fazem do pão nosso de cada dia uma invariável interveniente ao acesso
à terra e à vida, seja na fé, lei ou na marra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Trabalhos de conclusão de disciplina, realizados pela turma de Sociologia Rural,
ministrada pela professora Ana Maria Motta Ribeiro no segundo semestre de 2017,
autores: Kassia Chebli, Mayara Gomes, Nathália Viana, Patrick Polatto, Bruno Fonseca,
Igor Jevaux, Jéssica Hotz e Débora Thomaz, Daniela Marques, Jéssica Raposo, Jóice
Azeredo e Larissa Monteiro, Alice Balliester, Bianca Oliver Sarmento, João Pedro da S.
C. Andrade, Pedro G. F. Christiano, Renata M. Canto de Souza.
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