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ARTIGO
ÉTICA PÚBLICA NO CONTROLE DA GESTÃO FINANCEIRA E
ORÇAMENTÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
LUIZ GUILHERME DE OLIVEIRA MAIA CRUZ
Procurador do Estado do Rio de Janeiro
Email: lgmaiacruz@globo.com
Resumo: Orçamento público: meio pelo qual se realiza o princípio do imposto consentido e
das despesas autorizadas. A democracia substantiva exige uma gestão financeira e
orçamentária pautada conforme princípios éticos, de sorte que a Advocacia de Estado, no
exercício do controle interno da legalidade, deve atuar para que tais princípios sejam
obedecidos, sendo, por conseguinte, indispensável, o fortalecimento da carreira para tanto.
Palavras-chave: Orçamento público. Ética orçamentária. Democracia substantiva. Gestão
financeira e orçamentária. Endividamento. Fortalecimento da carreira do Advogado de
Estado. Independência técnico-funcional.
Declaração
Declaro, na forma do art. 24, § 2º do Regulamento do XLI Congresso Nacional dos
Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, a minha pretensão de concorrer ao prêmio
Diogo de Figueiredo, que tem por temática o fortalecimento da carreira e a defesa das
prerrogativas de Procuradores de Estado e do Distrito Federal (art. 24, caput), bem como a
minha aquiescência para com as regras para sua outorga.
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ÉTICA PÚBLICA NO CONTROLE DA GESTÃO FINANCEIRA E
ORÇAMENTÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo trata de assunto bastante relevante para a democracia
substantiva: a ética pública no controle financeiro e orçamentário da Administração.
Desta sorte, será destacado o papel do Orçamento Público como instrumento
jurídico pelo qual se concretiza o consentimento da receita e a autorização das despesas
públicas, bem como a concomitante e indispensável condução de uma gestão orçamentária
baseada em princípios perenes, indispensáveis para os reais interesses da sociedade, tais quais,
por exemplo, o da economicidade, do equilíbrio e da prudência fiscal.
Será destacada, ainda, a importância de uma gestão orçamentária responsável,
tanto para a transparência dessa mesma gestão – já que pela Lei do Orçamento é possível
analisar as escolhas de políticas públicas – como para os reais efeitos dela na vida das
pessoas, particularmente, dos citadinos.
Neste contexto, serão também apresentadas questões relativas à ética
orçamentária tendo por objeto fatos concretos, como, por exemplo, a realização de grandes
eventos no Brasil (Copa do Mundo e Olimpíadas), e a necessidade de um efetivo controle da
gestão financeira e orçamentária, sem o qual a democracia pode se esvaziar numa mera
formalidade, reduzida ao processo eleitoral de escolha de agentes políticos.
Com relação ao controle da gestão financeira e orçamentária da Administração,
será dada ênfase ao papel dos Procuradores de Estado e do Distrito Federal, haja vista que o
cumprimento deste dever colabora, de forma significativa, para o aperfeiçoamento da
democracia substantiva, além do que serão apontados alguns pontos importantes para o
fortalecimento da carreira e para a defesa das prerrogativas desses Advogados Públicos.
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2. ORÇAMENTO PÚBLICO: INSTRUMENTO PELO QUAL SE REALIZA O
PRINCÍPIO DO IMPOSTO CONSENTIDO E DAS DESPESAS AUTORIZADAS
A origem do Orçamento como instituto jurídico fundamenta-se na necessidade
“de se tornar um instrumento de exercício da democracia pelo qual os particulares exercem o
direito, por intermédio de seus mandatários, de só verem efetivadas as despesas permitidas e
as arrecadações tributárias que estiverem autorizadas na lei do orçamento (grifo estranho ao
orignal)”1.
De fato, o Orçamento Público como instituto jurídico constitui em autêntica
conquista da sociedade e encontra-se essencialmente relacionado para com o conceito de
democracia. Aliás, como bem salientado por Agenor de Roure, “a votação do Orçamento,
com cálculo da receita e a fixação da despesa, representa a vitória do princípio da soberania
popular sobre a soberania real –– vitória obtida, depois de lutas muito sérias entre as duas
soberanias, pela consagração definitiva de regras gerais a adotar na limitação das despesas
e na determinação das taxas e dos impostos a cobrar, substituindo o regime anterior da
cobrança de taxas e impostos por exclusiva vontade dos Reis, que gastavam como
entendiam”2.
Diante dessa constatação, cabe-nos indagar: uma vez que os princípios jurídicos
que regem a política fiscal, a evolução dos mesmos e o respeito a esses princípios por parte
das autoridades políticas são frutos do amadurecimento de um Estado Democrático de Direito,
de que serviria eleger pessoas para cargos públicos se estas, uma vez eleitas, não cumprissem
com os princípios formadores do Direito Tributário e Financeiro ou não fiscalizassem o
cumprimento destes?
Portanto, cabe-nos indagar: há efetivo controle nas escolhas orçamentárias? A
proposta orçamentária, sua aprovação e execução seguem a critérios éticos? Se esse controle
1 Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito Financeiro e Direito Tributário, São Paulo, Saraiva, 1991, pg. 73-74.
2 ROURE, Agenor de. O Orçamento. Rio de Janeiro: Ed. Pimenta de Melo & C, 1926, p.11.
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não é exercido de forma satisfatória, poder-se-ia dizer que a democracia se realiza
plenamente?
Tais questões são relevantes para a análise do orçamento como instituto jurídico-
político, haja vista a forte conexão entre Orçamento Público e Democracia, sendo
indispensável conceber esta não apenas como um regime no qual há um processo eleitoral
para escolha de nomes (democracia formal), mas como um instrumento efetivo pelo qual a
sociedade logra fiscalizar, por seus representantes, os gastos públicos, tanto nos aspectos
formais com os quais são autorizados como em seus aspectos éticos, em sua economicidade,
eficiência, qualidade.
A esse respeito, insta salientar o entendimento do nobre Professor Diogo de
Figueiredo:
“Ora, uma democracia substantiva, para sua prática, não pode
depender apenas do sufrágio eletivo de representantes; exige, cada vez
mais uma decidida abertura a uma autêntica participação, com a
derrubada dos remanescentes dos muros autocráticos... infelizmente,
ainda erguidos em mentes de políticos estatocratas, que se revelam em
suas práticas anacrônicas, pelo desprezo à economicidade, ao
equilíbrio fiscal, à prudência fiscal e, sobretudo, à legitimidade nos
gastos públicos, que, afinal, oneram os contribuintes e impõem altos
custos e insegurança às transações econômicas e ao progresso dos
povos”3.
Destaca-se, por oportuno, que um dos principais deveres do Poder Legislativo –
senão o mais importante – diz respeito ao controle financeiro do Estado, ou seja, consentir
com a carga tributária a ser suportada pela sociedade e autorizar as despesas que o Poder
Público pretende realizar; aliás, não por acaso esse controle se encontra elencado, justamente,
nos dois primeiros incisos do artigo 48 da Constituição da República, que dispõe sobre as
atribuições do Congresso Nacional; vejamos:
3 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Orçamentos e Finanças Públicas Democráticas. Um breve ensaio sobre a legitimidade fiscal. In: TORRES, Ricardo Lobo. Coord. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Direito Financeiro. Vol. VIII, 2001, p. 04.
5
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da
República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52,
dispor sobre todas as matérias de competência da União,
especialmente sobre:
I - sistema tributário, arrecadação e distribuição de rendas;
II - plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual,
operações de crédito, dívida pública e emissões de curso forçado;
Ora, uma vez que pela Lei do Orçamento se realiza de forma concreta o princípio
dos impostos consentidos e das despesas autorizadas, se não houver na sociedade uma noção
clara da importância do orçamento em si, ou seja, da maneira como se deve conduzir a gestão
orçamentária (sua proposição, aprovação e execução) no sentido de, efetivamente, o referido
instrumento jurídico se prestar para a realização da democracia substancial, não haverá como
exercer um controle efetivo sobre aqueles – os parlamentares – que tem a missão, justamente,
de fiscalizar o Poder Público, isto é, de controlar a política de captação e de gastos do
Estado; e, esse controle, vale lembrar, engloba a qualidade dessa política.
Destaca-se que esse controle não é missão exclusiva do Parlamento – e aqui é que
se encontra uma faceta interessante da Advocacia Pública: os Procuradores de Estado e do
Distrito Federal, no cumprimento de seus deveres institucionais, segundo cediço, podem e
devem exercer, internamente, o controle da legalidade dos atos da administração; ora, uma
vez que o Parlamento instituiu a Lei de Responsabilidade Fiscal, com o efeito de alcançar os
princípios do equilíbrio e da prudência fiscais, foi conferida aos Advogados Públicos uma
importante ferramenta jurídica através da qual podem exercer, prévia e internamente, o
controle da legalidade da gestão orçamentária.
A Lei de Responsabilidade Fiscal, aliás, constitui um valioso instrumento de
controle das finanças públicas e surgiu na esteira da evolução do conceito de uma democracia
meramente formal para uma democracia substancial, isto é, que não se limita ao sufrágio
eletivo dos governantes, já que a gestão da coisa pública deve dar-se em conformidade para
com princípios da economicidade, do equilíbrio e prudência fiscais, da ética financeira e
orçamentária, e tal gestão, por sua vez, deve ser também objeto de controle, não apenas por
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parte do Poder Legislativo4, como também da parte dos membros das Procuraturas, no âmbito
interno da própria Administração. A este respeito, insta ressaltar os ensinamentos do
Professor Diogo de Figueiredo:
“Porém, mais do que a todas as pessoas, a Constituição exige essa
observância por parte daqueles que, por profissão, livremente
abraçada, devam sustentar permanentemente, em prol da
sociedade, a supremacia desses valores fundantes: tal é o caso dos
membros das Procuraturas constitucionais, aos quais são impostos
certos comportamentos específicos, como, sinteticamente o são, os de
sustentar, com dever mínimo, e o de aperfeiçoar, como dever pleno,
a ordem jurídica instituída.
Se com o comando sustentar, se visa ao desempenho de atos eficazes,
aptos a manter a incolumidade da ordem jurídica, indubitavelmente,
com o comando aperfeiçoar há de se pretender, além da efetiva
prática desses atos, comportamentos eficientes, capazes de aprimorar
qualitativamente o sistema, pois a democracia material não se
aperfeiçoa senão trilhando o laborioso caminho da eficiência”5.
Eis, portanto, uma relevante e nobre missão da Advocacia Pública no sentido de
colaborar para a concretização da democracia substancial, tendo as normas e princípios
pertinentes ao direito financeiro e orçamentário como instrumentos para tanto6.
4 A esse respeito, vale transcrever os ensinamentos do Professor Diogo: “O advento da Lei de Responsabilidade Fiscal não veio sem resistências, uma esperada reação que, mais uma vez, demonstra que hoje a clivagem no plano das idéias políticas não mais se faz na velha opção, de ordem unida intelectual, entre esquerda e direita, mas entre a democracia formal e a democracia substancial. ... Não obstante, o aspecto mais importante para o Direito Financeiro é que nos últimos decênios, os institutos das finanças públicas, em sua evolução, passaram auspiciosamente a refletir as modificações contemporâneas do conceito de democracia, na transcendência de seu conteúdo formal para um novo e rico conteúdo material” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Orçamentos e Finanças Públicas Democráticas. Um breve ensaio sobre a legitimidade fiscal. In: TORRES, Ricardo Lobo. Coord. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Direito Financeiro. Vol. VIII, 2001, p. 01).
5 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Independência Técnico-Funcional da Advocacia de Estado. In: TAVARES GUIMARÃES, Lúcia Léa (Coord.). Advocacia Pública. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, 2006, p. 12/13.
6 O Professor Diogo de Figueiredo, ao tratar do controle interno da legalidade, manifestou-se nos seguintes termos: “... por gestão financeira, entende-se todo o gênero: a disposição administrativa dos recursos públicos; por gestão orçamentária, a submissão contábil dos dispêndios públicos à previsão legislativa expressa pelas três leis de natureza orçamentária instituídas; por gestão operacional, a busca da eficiência administrativa, através da
7
3. A LEI ORÇAMENTÁRIA E O PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA
O Orçamento é um instituto jurídico intrigante. O direito à saúde, à educação, à
segurança, à moradia, o fomento de atividades de logística e infraestrutura, a promoção da
diminuição das desigualdades sociais transcorrem pela via da Gestão Orçamentária, pois é no
orçamento que se concretiza a política fiscal do Estado. A política fiscal, captação (receita) e
aplicação (despesa) dos recursos financeiros, passam, necessariamente, pelo Orçamento. Seu
rosto é o espelho da política de um governo, sua visão de mundo.
Como melhorar, por exemplo, a prestação dos serviços públicos sem uma crítica
análise do Orçamento, suas dotações, a forma como é gerido? Como é possível acreditar em
promessas políticas que não se respaldam nas dotações orçamentárias, na possibilidade efetiva
de receita, do meio de obtê-la, na possibilidade da aprovação da respectiva despesa e de sua
efetiva realização? Que implicações uma boa ou má gestão orçamentária traz para a
infraestrutura das cidades, dos grandes centros urbanos, das regiões metropolitanas e até
mesmo para a integração eficiente e barata entre diferentes cidades e regiões metropolitanas?
O Orçamento, de fato, é intrigante, e o é porque sendo instituto jurídico não se
resume ao aspecto positivo, pois a sua gestão acarreta relevantes efeitos, positivos ou
negativos, de interesse da sociedade. Pensemos, por exemplo, nos citadinos das grandes
cidades brasileiras, carentes de uma infraestrutura adequada às suas demandas, que não
apenas se lhes permita percorrer longas distâncias em pouco tempo, mas com um conforto
mínimo e digno, aceitável. Pensemos, ainda, na indispensável necessidade “de se praticar
internamente nesta Região do país – o autor se refere à região sudeste, onde se encontra a
maximização quantitativa e qualitativa dos resultados, com a minimização dos dispêndios; por gestão patrimonial, a disposição jurídica do patrimônio mobiliário e imobiliário do Estado. Em conseqüência, as atividades de controle terão, genericamente, o objetivo de zelar pela juridicidade dos atos praticados no desempenho desses aspectos específicos da gestão pública. O controle orçamentário destina-se a fiscalizar e a corrigir as infrações às leis de meios, orçamento plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual, zelando pela legalidade e pela legitimidade da disposição dos dinheiros públicos. O controle financeiro volta-se à fiscalização e à correção das ilegalidades cometidas na gestão dos dinheiros públicos, inclusive, o endividamento, implicando, assim, o controle contábil quanto a seus aspectos técnicos peculiares. O controle operacional direciona-se à supervisão das atividades administrativas quanto ao fiel cumprimento dos planos e programas e, especificamente, quanto ao atingimento dos resultados e metas específicas por eles visados. O controle patrimonial objetiva a rigorosa observância das normas que regem o uso, a conservação e a alienação dos bens públicos, com ou sem dispêndio de recursos fazendários (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 12ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2012, p. 558/559).
8
maior parte do PIB nacional (inserção exógena ao original) – custos logísticos
internacionalmente aceitáveis, obtendo-se maior produtividade e redução de custos de
produtos em geral” 7 8.
Ora, uma política fiscal responsável, concretizada através da gestão orçamentária9,
pode trazer grandes benefícios para toda a sociedade. A gestão orçamentária, portanto, traz
implicações de ordem urbana, econômica, política, com inegáveis efeitos na melhoria,
manutenção ou piora nas condições de vida dos citadinos. Aliás, a relação do Orçamento com
a sociedade, com a economia e com a política deve sempre ser orientada no sentido de
facilitar a formação de um ambiente propício à melhoria da vida de cada pessoa que integra a
sociedade. Não é demais lembrarmo-nos das sábias palavras do Senador Liberato de Castro
Carreira, que lá em 1883 já dizia: “O Orçamento é a base fundamental da vida do homem e
das nações”10.
Entretanto, de nada valeria a lei orçamentária se, de fato, não espelhasse a
realidade da política fiscal, se a atuação governamental se fizesse valer de subterfúgios
contábeis para maquiar a sua própria gestão financeira e orçamentária. Daí ser indispensável o
atendimento, por parte dos gestores públicos, ao princípio da transparência, já que tal
princípio possibilita a fiscalização dessa mesma gestão, isto é, a verificação da conformidade
7 DELMO PINHO. Rio de Janeiro – Estratégia para a Construção de uma Plataforma Logística de Classe Mundial. In: Coordenadores: AIETA Vânia Siciliano (Coord.); GONÇALVES JUNIOR, Jerson Carneiro; SETTE FORTES, Márcio; SÁ RIBEIRO, Marco Aurélio. Infraestrutura e o Futuro do Brasil no Séc. XXI: Desafios e oportunidades para os empresários desenvolverem as estruturas econômicas junto com as Administrações Públicas e a inegável melhoria nas condições de vida do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015, p. 58.
8 “Aparentemente, solucionar tal questão poderia ser encarado como um esforço de caráter meramente administrativo ou tecnocrático, mas que, na prática, representa a solução de uma das maiores mazelas do país, e que se traduz pealas seguidas perdas de posição do Brasil no ranking logístico mundial desenvolvido pelo Banco Mundial, que mede a eficiência dos sistemas de transportes em 160 países. A versão de 2014 do trabalho, mostra que, no ano de 2007, o Brasil estava na 61ª posição, em 2010 estava na 41ª posição, em 2012, na 45ª posição, e em 2014, na 65ª posição...” (Delmo Pinho, opus cit., p. 58)
9 O Professor Ricardo Lobo Torres destaca que a preocupação com as questões inerentes à gestão orçamentária veio à tona num contexto maior da reforma administrativa empreendida no governo Fernando Henrique Cardoso, bem como da necessidade de se adotar métodos próprios da iniciativa privada no trato com coisa pública, e nos aponta alguns princípios que devem regê-la: “A gestão orçamentária deve se fazer de acordo com princípios da descentralização, da eficiência e da responsabilidade (accountability) e dos seus subprincípios da prudência eda transparência, como vimos antes” (LOBO TORRES, Ricardo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. O Orçamento na Constituição. Volume V. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2000, p.324).
10 CASTRO CARREIRA, Senador Liberato de. O Orçamento do Império, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1883, pg. 03.
9
da atuação administrativa para com os princípios do equilíbrio e da prudência fiscal11. Trata-
se de pressuposto legal para uma gestão fiscal responsável, conforme dispõe o §1º do artigo 1º
da Lei de Responsabilidade Fiscal; in verbis:
“Artigo 1º. ... § 1o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe
a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e
corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas,
mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e
despesas e a obediência a limites e condições no que tange a
renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da
seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária,
operações de crédito, inclusive por antecipação de receita,
concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.
Evidentemente, o descumprimento da transparência fiscal dificulta ou, até mesmo,
impossibilita a fiscalização da gestão financeira e orçamentária, o que compromete toda a
teleologia da própria lei orçamentária, e, com isto, atenta contra a própria democracia
substantiva, podendo reduzi-la a uma mera formalidade, cujos administradores eleitos, na
prática, não prestam contas de seus atos, e os membros do Poder Legislativo, por sua vez, não
logram cumprir com sua missão fiscalizadora. A experiência, a propósito, demonstra que a
falta de transparência na gestão financeira e orçamentária, além de ilegal, constitui mau
presságio.
Destaca-se, por oportuno, como já afirmado anteriormente, que a Lei de
Responsabilidade Fiscal é um importante instrumento pelo qual o Advogado de Estado pode –
e deve – exercer o controle interno da gestão financeira e orçamentária da Administração,
11 O princípio da transparência fiscal é previsto no artigo 1º, §1º, da Lei de Responsabilidade Fiscal, in verbis:
“Artigo 1º. ... § 1o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.
10
colaborando, assim, com a sociedade na consolidação e realização de uma efetiva democracia
material.
A inexistência de transparência na gestão financeira e orçamentária pode trazer
graves prejuízos ao equilíbrio fiscal, com óbvios e gravíssimos danos para toda a sociedade12,
e, efetivamente, consiste em método adotado pelo administrador para a condução de uma
gestão desconectada para com o princípio da prudência fiscal, já que pela falta de
transparência logra o gestor público esconder da sociedade sua irresponsabilidade na
condução fiscal das políticas de governo.
Por fim, insta ressaltar o princípio da transparência é o espírito mesmo da lei de
orçamento, sem o qual não há como a sociedade exercer efetivamente a democracia, sem o
qual o instituto jurídico orçamentário não logra cumprir com sua razão de existir: meio pelo
qual as receitas são consentidas e as despesas autorizadas.
4. ALGUMAS QUESTÕES QUE ENVOLVEM ÉTICA ORÇAMENTÁRIA E SUA
RELAÇÃO PARA COM OS INTERESSES DA SOCIEDADE BRASILEIRA
Tomemos como objeto concreto de análise o Orçamento do Estado do Rio de
janeiro e sua gestão.
Em julho de 2007, a dívida pública (externa e interna) do Estado do Rio de
Janeiro era equivalente a R$46.325.899.267,00, isto é, cerca de R$46,4 bilhões de reais. Dessa
dívida, havia apenas seis contratos internacionais firmados no decorrer da década de noventa,
feitos juntos a instituições financeiras estrangeiras (cinco deles atrelados ao dólar e um ao
Iene)13.
12 Por essa razão, os Advogados de Estado não podem furtar-se de seu dever de realizar o controle interno da legalidade da gestão financeira e orçamentária da Administração, trata-se de um dever moral e legal assumido perante a sociedade.
13 Demonstrativo das Condições Contratuais da Dívida Fundada Interna (p.15) e Demonstrativo das Condições Contratuais da Dívida Fundada Externa (p. 16), Anexo da Lei Estadual nº 5.182/2008 (LOA/RJ de 2008), fonte do site da SEPLAG/RJ (http://www.rj.gov.br/web/seplag/exibeconteudo?article-id=186183) – acesso em 20 de agosto de 2015.
11
Entretanto, de julho de 2007 a julho de 2014, a dívida do Estado do Rio de Janeiro
saltou de R$46,4 bilhões de reais para R$85,143 bilhões de reais14, passando a corresponder a
mais de 150% de sua própria Receita Corrente Líquida15.
Como se pode notar, o endividamento do Estado do Rio de Janeiro, em apenas
oito anos, quase duplicou, e ultrapassa, vale frisar, a previsão de receita líquida para todo o
ano de 201516.
Houve também, neste mesmo período um aumento galopante da dívida externa do
Estado do Rio de Janeiro. Em julho de 2007, o último empréstimo internacional contraído
pelo Estado do Rio de Janeiro havia sido assinado em 28/07/1999, de maneira que, naquele
então, havia apenas 6 (seis) empréstimos internacionais tomados pelo Estado17. No entanto,
desde 2007, foram contraídos 19 (dezenove) novos empréstimos internacionais, alguns dos
14 Demonstrativo das Condições Contratuais da Dívida Fundada Interna e Externa em julho de 2014 (fls. 30) –anexo à Lei nº6955/2015 (site oficial da SEPLAG/RJ: http://www.rj.gov.br/web/seplag/exibeconteudo?article-id=186183) – acesso em 20 de agosto de 2015.
15 Sessão da ALERJ, aberta em razão da Mensagem 03/2014, para discutir acerca do PL nº 2771/2014. http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/taqalerj.nsf/8b99ca38e07826db032565300046fdf1/591ceb348c91eaae83257c7f0056519e?OpenDocument
16 Eis o teor do artigo 2º da Lei nº 6955, de 13 de janeiro de 2015, Lei Orçamentária Anual (LOA), que estabeleceu como previsão de líquida prevista o valor correspondente a R$82,80 bilhões:
Art. 2º - A receita total dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social corresponde à previsão da receita bruta de R$ 90.311.430.806,00 (noventa bilhões, trezentos e onze milhões, quatrocentos e trinta mil, oitocentos e seis reais) menos a estimativa das deduções da receita no montante de R$ 7.507.411.038,00 (sete bilhões, quinhentos e sete milhões, quatrocentos e onze mil e trinta e oito reais), perfazendo o valor líquido de R$ 82.804.019.768,00 (oitenta e dois bilhões, oitocentos e quatro milhões, dezenove mil, setecentos e sessenta e oito reais), assim distribuído:
Constata-se, portanto, que a dívida do Estado do Rio de Janeiro, da ordem de R$85,143 (oitenta e cinco bilhões e cento e quarenta e três milhões de reais) já ultrapassa a sua receita líquida estimada; e considerando que a receita é apenas uma previsão, bem como levando em conta a crise financeira que está começando a fazer efeitos no Brasil, constata-se que esta situação tende a se agravar.
17 Informação obtida do “Demonstrativo das Condições Contratuais da Dívida Fundada Externa” da Lei nº5182, de 02 de janeiro de 2008 (p. 16).
12
quais bilionários, todos atrelados ao dólar, o que, indubitavelmente, expõe as finanças do
Estado também ao risco cambial18.
Assim, a dívida externa do Estado do Rio de Janeiro que era, em julho de 2007,
equivalente a R$1,59 bilhão de reais19; em julho de 2014, havia atingido a cifra de R$7,38
bilhões de reais20, o que correspondia, no referido mês, a um aumento, em apenas oito anos,
de 365%. E considerando a desvalorização relevante do real frente ao dólar (da ordem de
72,27% desde então)21, a dívida externa do Estado teve um aumento também considerável.
Ressalte-se, que, justificando-se, basicamente, na necessidade de cumprir com
compromissos assumidos para a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas, em poucos
anos, foram assumidos pelo Estado do Rio de Janeiro empréstimos bilionários, cujo montante,
boa parte, para melhorias na infra-estrutura de mobilidade urbana22 23.
18 Informação obtida do “Quadro Demonstrativo das Condições Contratuais da Dívida Fundada Externa” do PL da LOA de 2015 (p. 29 e 30), constante no site da SEPLAG (Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão do ERJ).
19 Informação obtida do “Demonstrativo das Condições Contratuais da Dívida Fundada Externa” da Lei nº5182, de 02 de janeiro de 2008 (p. 16).
20 Informação obtida do “Quadro Demonstrativo das Condições Contratuais da Dívida Fundada Externa” do PL da LOA de 2015, constante no site da SEPLAG (Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão do ERJ).
21 Fonte do site oficial do Banco Central. Cotação do dólar em 01/07/2007: R$2,20. Cotação do dólar em 05/09/2015: R$3,79. - http://www4.bcb.gov.br/pec/taxas/port/ptaxnpesq.asp?id=txcotacao e http://www4.bcb.gov.br/pec/taxas/port/ptaxnpesq.asp?id=txcotacao. Houve, portanto, no período, uma valorização do dólar frente ao real correspondente a 72,27%.
22 Discussão no plenário da ALERJ, em razão do PL nº2771/2014, acerca dos gastos com mobilidade urbana no Rio de Janeiro (acesso ao endereço eletrônico em 18 de agosto de 2015): http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/taqalerj.nsf/8b99ca38e07826db032565300046fdf1/591ceb348c91eaae83257c7f0056519e?OpenDocument
23 Listagem, a partir de 2011, de leis que autorizaram o Poder Executivo a contrair empréstimos em nome do Estado do Rio de Janeiro:
Lei 6002, de 06/07/11 – US$320 milhões de dólares – Banco de Desenvolvimento da América Latina –Programa Pró Vias (malha rodoviária).
Lei 6086, de 24/11/11 – US$712,348 milhões de dólares – Agência Francesa de Desenvolvimento - Programa de Integração e Mobilidade Urbana da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro – PMU.
Lei 6183, de 22/03/2012 – R$3,65 bilhões de reais – Banco do Brasil – Metrô (linhas 03 e 04), Prodetur, Asfalto na Porta, Somando Forças, Morar Seguro, Pró-Infra comunidades, Arco Metropolitano, Pró-Estradas, Casas de Custódia, Comando de Operações Especiais (PMERJ), sistema aquaviário, controle de cheias, recuperação do complexo Lagunar da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá, elaboração de projetos executivos de infraestrutura.
13
Eis, agora, alguns dados interessantes que envolvem a análise da LOA/RJ de 2015
(Lei Estadual/RJ nº 6.955/2015), de interesse dos citadinos da região metropolitana do Rio de
Janeiro:
∑A dotação orçamentária destinada ao pagamento de dívidas contraídas
(juros, encargos e amortização) equivale a 2,6 (dois vírgula seis) vezes o
valor fixado como despesa em habitação, saneamento e gestão
ambiental24.
∑As rubricas destinadas ao pagamento das dívidas assumidas (juros,
encargos e amortização) correspondem a mais de 20 (vinte) vezes a
dotação orçamentária fixada para habitação25.
∑A dotação orçamentária destinada à rubrica do “urbanismo” equivale a
menos da metade que o montante da dotação para pagamento das dívidas
contraídas (juros, encargos e amortização)26.
Lei 6368, de 20/12/2012 – R$3,12 bilhões de reais – Banco do Brasil – Programa de Infraestrutura do Estado do Rio de Janeiro para Grandes Eventos – PRO CIDADES II/RJ.
Lei 6413, de 13/03/2013 – R$3 bilhões de reais – BNDES – Metrô (linha 4)
Lei 6506, 20/08/2013 – R$450 milhões de reais – Banco BTG Pactual – Programa de Suporte à Política de Transporte.
Lei 6507, de 20/08/2013 – US$750 milhões de dólares – CreditSuisse e Goldman Sachs Bank – Programa de Suporte aos Grandes Eventos EsportivosLei 6527, de 10/09/2013 – US$750 milhões de dólares – Banco Internacional (BIRD) – PROMIT (Programa de Melhoramento da Qualidade e Integração dos Transportes de Massa Urbanos – PROMIT).
Lei 6699, de 06/03/2014 – R$3,5 bilhões de reais – BNDES – Complementar despesas da Linha 04 do Metrô.
Lei 6728, de 25/03/2014 – R$600 milhões de reais – CreditSuisse (Brasil) - Programa de Desenvolvimento Socioambiental, PRODES, visando reforçar o orçamento do Estado do Rio de Janeiro para que este elabore e execute projetos de ampliação de infraestrutura da RMRJ – Região Metropolitana do Rio de Janeiro, englobando áreas de saneamento ambiental, obras viárias e segurança pública.
24 A rubrica fixada na LOA/2015 do Estado do Rio de Janeiro para pagamento das dívidas contraídas pelo referido ente da federação é da ordem de R$7,03 bilhões de reais, enquanto a soma do montante fixado para as rubricas de habitação, saneamento e gestão ambiental equivale a R$2,68 bilhões de reais (Lei nº 6.955/2015, Anexos II e III).
25 A rubrica fixada para a habitação corresponde a R$337,04 milhões, enquanto a destinada ao pagamento das dívidas contraídas equivale a R$7,03 bilhões (Lei nº 6.955/2015, Anexos II e III).
14
∑A dotação orçamentária destinada às rubricas do pagamento das dívidas
contraídas (juros, encargos e amortização) é consideravelmente superior
ao montante destinado na rubrica do transporte: o supera em 42,3%27.
A constatação desses dados oficiais nos leva ao seguinte questionamento: a
adoção de uma política que sobrecarregue as finanças do Estado, pressionando-o à captação
de uma receita maior, constitui um projeto de desenvolvimento ou de endividamento?
Como foi possível constatar através da análise LOA do Estado do Rio de
Janeiro/2015, quanto mais o ente público se endivida, menor é a sua capacidade de executar
políticas públicas de interesse dos citadinos. Ademais, não nos parece conforme para com o
princípio da prudência fiscal28, engordar receitas e despesas orçamentárias, com empréstimos
e mais empréstimos em períodos de bonança, porque, simplesmente, como bem sabemos, é
tênue o equilíbrio dos fatores que mantêm a prosperidade, além do que inúmeras são as
variáveis – inclusive, que não dependem apenas do administrador público – para que tal
ambiente se mantenha.
Desta sorte, se nos parece medida prudente, que o ente público se posicione de
forma a poder ter os meios necessários para superar da maneira menos onerosa para a
sociedade, e a mais ágil possível, eventuais circunstâncias desfavoráveis de ordem econômica
que venham a surgir.
26 A rubrica orçamentária destinada ao urbanismo equivale a R$2,9 bilhões, enquanto a dotação orçamentária destinada ao pagamento da dívida contraída é da ordem de R$7,03 bilhões. Portanto, a rubrica “urbanismo” corresponde a 42,4% do montante gasto com pagamento de dívida por ano (Lei nº6.955/2015, Anexos II e III).
27 A dotação orçamentária destinada para o pagamento das dívidas contraídas (juros, encargos e amortização) equivale a R$7,03bilhões, enquanto a rubrica do transporte corresponde a R$4,94 bilhões. Assim, as rubricas destinadas ao pagamento da dívida, juntas, superam em 42,30% o valor destinado ao transporte (Lei nº Lei nº6.955/2015, Anexos II e III).
28 A prudência fiscal é um dos princípios de ordem orçamentário-financeira: “Basta examinar os argumentos expendidos pelos que se surpreenderam com os novos princípios orçamentário-financeiros, como os do equilíbrio fiscal e da prudência fiscal, para se distinguir os que tem a democracia como um processo de sufrágio de nomes, dos que a cultuam como uma expressão maior da liberdade de escolher como cada um pretende viver” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Orçamentos e Finanças Públicas..., p. 01 – grifos estranhos ao original).
15
Neste contexto, governar na base dos empréstimos, e, por conseguinte, no
aumento de tributos necessários para fazer frente às dívidas contraídas, que já são
elevadíssimos no Brasil, não se nos parece constituir uma boa gestão, além do que, destaca-se,
pressiona para a elevação do que se convencionou chamar por “custo brasil”, dificultando o
desenvolvimento da infraestrutura e da logística no território brasileiro, com efeitos
inexoráveis na vida dos citadinos, seja na condição de consumidores de produtos – que
poderiam ser mais baratos, mas não o são em razão dos custos de produção e logística de
transporte –, seja na condição de usuários, por exemplo, dos serviços de mobilidade urbana ,
cuja ampliação e modernização da respectiva rede de transportes se torna engessada por um
ambiente econômico inapropriado ao risco, em razão do endividamento elevado dos entes
públicos29.
Outro aspecto que merece destaque é o que diz respeito à adoção de políticas
fiscais que tem por efeito o comprometimento de gerações futuras. Em analisando a
LOA/2015 do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, constata-se que há empréstimos cujas
prestações se estendem até 15 de maio de 2043, sem contar outros que permeiam a década de
30 e alcançam 2040, 204130.
Cabe-nos, então, perguntar: é justo que a administração pública se endivide de tal
forma a fazer com que as crianças e jovens de hoje, ou, até mesmo, aqueles que ainda sequer
foram gerados, tenham de suportar financeiramente o ônus do endividamento presente? Quais
seriam os critérios que legitimariam a assunção de dívidas no presente cujo pagamento será
suportado também por gerações vindouras? Esta é uma questão de ética orçamentário-
financeira que precisa ser enfrentada.
A modernização e ampliação de uma rede de transporte que melhore a mobilidade
urbana no presente e que possa servir de suporte para as gerações vindouras se nos parece
legitimar a contração de empréstimos para tanto, sempre, evidentemente, em considerando
29 Um exemplo prático da relação entre escolhas orçamentárias desconectadas com a real capacidade de obtenção de receita e as consequências negativas da mesma no cotidiano dos citadinos são as diversas obras de infraestrutura urbana paralisadas no Ceará. http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/cidade/obras-paradas-ha-nove-meses-geram-cenarios-de-abandono-1.1229027 (acesso em 18 de agosto de 2015).
30 Vide Quadro Demonstrativo das Condições Contratuais da Dívida Fundada Interna e Externa, Anexo IV, da Lei nº6.955/2015 (LOA/2015).
16
escolhas que se conformem com o princípio da economicidade e uma execução orçamentária
que se dê em acordo com o princípio da eficiência31.
Entretanto, se houver outro meio, que não seja o do endividamento público,
através do qual se logre melhorar a mobilidade urbana, ou a infraestrutura voltada para uma
logística de transporte eficiente e barata, tornando a produção em território nacional mais
competitiva em relação às existentes alhures, pelo princípio da economicidade, a opção pelo
endividamento público deve ser afastada. E tal proceder também tem efeitos no presente e
futuro próximo, haja vista que o endividamento do ente público, na verdade, é um
endividamento da própria sociedade, que, inexoravelmente, terá de arcar com todos os ônus
financeiros dessa escolha de governo de executar as políticas públicas pela via do
empréstimo.
Ora, para pagar empréstimos dever-se-á produzir receita, e quem produz a receita
do Estado é a própria sociedade através de seu trabalho, já que o tributo dela absorve os
recursos financeiros. Portanto, a escolha do endividamento como instrumento de política
pública, inexoravelmente, constitui em ônus para toda a sociedade, no aumento do custo de
produção, na diminuição do poder de compra, enfim, na criação de um ambiente não propício
à atividade empreendedora, com efeitos negativos na infraestrutura oferecida, seja no âmbito
das cidades, seja para a conexão entre as mesmas ou entre os locais de produção e os da
destinação desses bens.
Já gastos de dinheiro público para a construção ou modernização de equipamentos
esportivos, que se prestam, frise-se, justamente, como bens de capital de organizações
31 Insta lembrar, por oportuno, que a gestão orçamentária deve atentar para os princípios da eficiência e da economicidade, princípios estes previstos no artigo 37, caput, e 70, caput, ambos da Constituição da República.
Eis o teor dos referidos dispositivos constitucionais:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:...
Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder (grifos exógenos ao original).
17
privadas voltadas para a realização desses mesmos eventos, não nos parece que constitua
medida eticamente aceitável, muito menos quando os recursos para tanto são obtidos via
empréstimos contraídos pelo Poder Público a ser suportados pelas gerações que sequer
existiam quando da realização desses eventos.
Ademais, considerando que tais eventos esportivos são pagos pelos particulares
que deles participem, também não nos parece legítimo que a sociedade como um todo – nela
incluídos, frise-se, aqueles que não se interessem pelos mesmos ou que sequer disponham de
meios financeiros para comprar ingressos – tenham também de pagar a conta para patrociná-
los via tributos32 33. Aliás, em considerando a carga tributária a ser suportada por toda a
sociedade e o número de lugares disponíveis para as pessoas nesses mesmos eventos, já é
possível verificar a falta de proporcionalidade e razoabilidade na tentativa de justificar a
realização de gastos públicos para a realização desses mesmos eventos.
Não custa lembrar, ademais, que os bens são finitos, e na qualidade de bem, os
recursos financeiros também o são, de sorte que as escolhas orçamentárias implicam,
necessariamente, em priorizar determinados fins em detrimento de outros, o que envolve,
certamente, questionamentos inerentes à ética orçamentária, e, uma vez que tais escolhas
podem criar oportunidades, ou dificultar, o desenvolvimento de atividades empreendedoras no
campo da infraestrutura disponível à sociedade brasileira, passam a ser relevantes para o
estudo do Direito da Cidade e da Infraestrutura, como também para o fortalecimento da
Advocacia Pública, para que possa bem realizar o controle interno da legalidade da gestão
orçamentária.
Ressalte-se que se busca justificar os empréstimos públicos para a realização
desses grandes eventos como se estes fossem indispensáveis para a ampliação ou
32 Enquanto bilhões de reais do Erário eram destinados para a construção de estádios para a realização da Copa do Mundo, a infraestrutura de saneamento básico no Brasil ainda deixava – e deixa – a desejar; eis mais uma indagação de ética orçamentária de interesse do citadino. Em 2012, por exemplo, apenas 14% das obras do PAC previstas para o setor estavam concluídas. Internet: http://www.tratabrasil.org.br/maioria-das-obras-de-esgoto-do-pac-esta-paralisada-e-avancos-seguem-timidos (acesso em 28 de julho de 2015).
33 Em 2010, segundo a reportagem do G1, em balanço feito pela Coordenadora do PAC, Miriam Belchior, a um mês do término do segundo mandato do Presidente Lula, de todas as obras do PAC previstas, a conclusão das mesmas não chegava a 40%. Internet (acesso em 28 de julho de 2015): http://g1.globo.com/politica/noticia/2010/12/em-4-anos-obras-do-pac-totalizam-r-444-bilhoes-em-investimentos.html
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modernização da infraestrutura disponibilizada aos citadinos, o que, data venia, não é
verdade.
Ora, basta verificar que se o poder público pode dispor de bilhões de reais para
erguer estádios ou “cidades olímpicas”, ou se lança a endividar-se nesse fim, evidentemente,
poderia dispor desses mesmos bilhões para investir em infraestrutura, ou para dar uma
destinação que efetivamente deixasse um legado para os citadinos de hoje e os das gerações
vindouras.
Ademais, poderia também optar por uma política de desoneração de dívida, com
concomitante e paulatina desoneração da carga tributária, o que, de per si, contribuiria em
muito para incentivar o empreendedorismo e, vias de conseqüência, colaborar com a criação
de mais emprego e renda nas mãos dos indivíduos, e não dos burocratas.
Entretanto, lamentavelmente, diante das escolhas fiscais, a célebre frase do
Deputado Delfin Neto, proferida há mais de duas décadas, diante de uma constatação de
realidade que reluta em modificar-se, parece encontrar-se atualíssima: “O governo está
cobrando impostos da Inglaterra e prestando serviço de Gana. Em lugar da ‘Belíndia’, estão
criando a um novo país: a ‘Ingana’”34.
5. NECESSIDADE DO FORTALECIMENTO DA CARREIRA DO ADVOGADO
PÚBLICO PARA O DESEMPENHO EFICAZ E EFICIENTE DO CONTROLE
INTERNO DA GESTÃO ORÇAMENTÁRIA DO ESTADO. BREVES
CONSIDERAÇÕES
Conforme explicitado nos parágrafos anteriores, a forma como é conduzida a
gestão financeira e orçamentária é de suma relevância para a realização da democracia
material e existem instrumentos jurídicos à disposição dos Advogados Públicos para que bem
possam, cumprindo com sua missão institucional de controle interno da legalidade dos atos da
Administração, colaborar para que a democracia, em nosso país, não se resuma ao seu aspecto
formal.
34 Dep. Federal Antônio Delfim Netto, Revista Veja, 04 de janeiro de 1995.
19
Aliás, os Procuradores de Estado e do Distrito Federal são instituições
instrumento à disposição da sociedade para que a democracia substancial se concretize, e, por
conseguinte, constata-se ser indispensável que sejam dotados de meios para o efetivo
exercício desse controle interno.
Ressalte-se, por oportuno, que a atividade contenciosa, outro ramo relevante das
atribuições dos Procuradores de Estado e do Distrito Federal (artigo 132 da CRFB/88), na
maioria das vezes, por razões de falta de estrutura humana e material somada a um volumoso
acervo de massa a cargo de cada Procurador, se faz com muito esforço e dedicação35.
Entretanto, para que os Advogados de Estado possam efetivamente cumprir com a
nobre missão de colaboradores da realização da democracia substancial, cujo respectivo
papel de controle, segundo o Professor Diogo de Figueiredo, é primordial para a sua
concretude36, parece-nos preciso refletir sob novos paradigmas, com base nos quais seja
reestruturada a própria carreira da Advocacia de Estado, fundamentados na maximização do
resultado do trabalho dos Procuradores – particularmente, dos que tem a seu cargo a árdua
tarefa do contencioso de massa, composto, em regra, por processos repetitivos e
individualmente sem expressão financeira –, dotando-os de meios humanos efetivamente
qualificados que lhes sirva de apoio, de forma a que, desincumbindo-se com eficiência desse
labor, possam dedicar-se ao cuidado de processos judiciais relevantes para a sociedade, bem
como para o exercício do controle interno da legalidade dos atos de gestão da administração,
nos campos financeiro, orçamentário, operacional e patrimonial37.
35 Salienta-se que, lamentavelmente, parte dos Advogados de Estado tem sido forçada a exercer, circunstancialmente, de forma limitada, suas atribuições, reduzindo-as à condução de acervos de massa com trâmites em juizados especiais fazendários e à realização concomitante de um excessivo número de tarefas burocráticas, que, se necessárias, deveriam ser executadas por pessoal de apoio; com o agravante de serem submetidos a um ambiente de trabalho carente de estrutura humana e material.
36 “Esta exposição envolve o dever ser, o ser e o devir da Advocacia de Estado, sua imprescindibilidade (grifo estranho ao original) à realização da justiça e da democracia e a sua independência técnico-funcional, essencial à sua própria existência e eficiência institucionais” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Independência Técnico-Funcional..., p. 3).
37 Quanto às espécies de gestão e respectivas espécies de controle, vide nota de rodapé nº06.
20
Raciocínio análogo deve ser adotado em se tratando do exercício do controle
interno da gestão administrativa, até mesmo porque, haja vista a complexidade e
especificidades de seus diferentes campos de atuação, é indispensável, para o cumprimento
eficiente e eficaz desse munus, que os Procuradores contem não apenas com estrutura
material, mas com pessoal especializado, dotado de qualificação adequada para amparar-lhes,
por exemplo, na análise da conformidade do pretensa atuação administrativa para com a Lei
de Responsabilidade Fiscal, para com a lei orçamentária etc.
Aliás, ao reestruturar a carreira, humana e materialmente, com base nesses novos
paradigmas, estará o órgão das Advocacias de Estado, por sua vez, aplicando, em sua própria
administração, os princípios constitucionais da eficiência e da economicidade (artigo 37,
caput, da CRFB/88), maximizando o potencial produtivo de seus próprios membros e
direcionando os esforços desses para o exercício de suas relevantes funções; tudo, no interesse
final que é o da promoção da justiça e da democracia material, que, no fundo, são os próprios
interesses da sociedade38.
Insta registrar, por oportuno, que o cumprimento da nobre missão de controle
interno da legalidade da gestão administrativa exige, inexoravelmente, a garantia das
prerrogativas funcionais do Advogado Público, particularmente sua independência
técnico-funcional39, e, por conseguinte, haja vista que pela própria natureza da execução
dessa missão surgem pressões de toda sorte contra o Advogado Público, torna-se primordial o
fortalecimento da carreira.
Ressalte-se que esse fortalecimento não é apenas do interesse da pessoa do
Procurador, mas também da própria sociedade40, e se dá, sem prejuízo de outros meios, por
38 “Portanto, na mesma linha de raciocínio – agora especificamente dirigida aos membros da Advocacia de Estado – aperfeiçoar o desempenho de suas atividades profissionais, exigindo-se individualmente uma clara consciência da relação que deve existir entre a qualidade de sua atuação e o benefício direto que dela possa resultar para a ordem jurídica e para a sociedade, constitui-se, certamente, em um dever especial, que pode e deve ser cobrado, não somente no plano moral, mas no plano funcional (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Independência Técnico-Funcional... p.13).
39 Conforme bem salientado pelo Professor Diogo de Figueiredo a independência técnico-funcional do Advogado de Estado é “essencial à sua própria existência e eficiência institucionais” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Independência Técnico-Funcional da Advocacia..., p. 3).
40 “Ao Procurador do Estado e do Distrito Federal, bem como à Advocacia Geral da União (órgão coletivo) competem a defesa dos interesses públicos e, especialmente, o controle interno da legalidade, além da
21
intermédio do estabelecimento de prerrogativas – e do cumprimento das já existentes – que
justamente assegurem ao Advogado de Estado sua independência técnico-funcional,
autonomia essa essencial à sua própria atividade e eficiência institucionais, particularmente,
no cumprimento de sua nobre missão de fiscalizar a legalidade dos atos da Administração,
neles compreendidos os atos de gestão orçamentária e financeira, e, com isto, de colaborar
para com o aperfeiçoamento de uma autêntica democracia substantiva, sem a qual o Estado
Democrático de Direito se esvazia de sentido, transformando-se numa democracia meramente
formal, dissociada dos legítimos anseios dos cidadãos.
Destarte, para o fortalecimento da carreira, com o efeito de propiciar um ambiente
cada vez mais favorável à sustentação da independência técnico-funcional (prerrogativa esta,
frise-se, essencial à própria existência e eficiência institucionais dos membros das
Procuraturas)41, se nos parece necessário:
1º) Que haja uma individual conscientização dos próprios Procuradores de Estado
e do Distrito Federal a respeito da importância de sua missão bem como de seu dever de atuar
com autonomia funcional42, em vista a criar uma cultura de Advocacia de Estado no âmbito
da advocacia pública que repudie toda e qualquer forma de tentativa de ingerência de agentes
públicos em sua independência técnico funcional, ou de não obediência às prerrogativas já
previstas no ordenamento jurídico43.
consultoria jurídica das entidades federadas a que pertencem. ... Assim, nenhum desses agentes poderá funcionar com tranquilidade se não tiver autonomia e independência. Até porque, como veremos a seguir, essa independência e segurança no exercício de suas funções, sem que inexista qualquer tipo de pressão, é garantia para o próprio cidadão” (FIGUEIREDO MOREIRA, Cléia Cardoso. Estabilidade dos Integrantes das Funções Essenciais à Justiça. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, nº 48, 1995, p.109).
41 Vide nota de rodapé nº 36 e 39.
42 Essa conscientização individual é indispensável para o aperfeiçoamento do desempenho das próprias atividades profissionais do Advogado de Estado: “Entendo e sustento, portanto, que as perspectivas de realização plena das missões constitucionais dessas carreiras de Estado, em curto, médio e longo prazos, tão auspiciosas e amplamente abertas na alvorada deste novo século e milênio, dependerão fundamentalmente da compreensão que nós próprios tenhamos de nossa alta missão essencial à justiça, na que se inclui a essencialidade à realização da democracia, bem como da coragem cívica e profissional que devamos demonstrar para desempenhá-la e aperfeiçoá-la, sustentando nossas prerrogativas funcionais, notadamente a de independência técnico-funcional, em toda sua plenitude, sempre com absoluta e imarcescível certeza de que só assim estaremos dando nossa definitiva contribuição na construção do Estado Democrático de Direito brasileiro” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Independência Técnico-Funcional... p.22/23).
43 Ora, a formação de uma cultura de Advocacia de Estado, no seio mesmo dos Procuradores, não admite espaço para adoção de teses contrárias às prerrogativas que lhes são previstas na lei. Portanto, cabe aos Procuradores, especialmente aos que estão incumbidos de funções de diretoria e representação em entidades de classe
22
2º) Que seja garantida a inamovibilidade do Procurador de Estado e do Distrito
Federal bem como o concomitante estabelecimento de regras objetivas de remoção, a
exemplo do que já existe na Magistratura, no Ministério Público e na Defensoria Pública44,
com o efeito de evitar que Procuradores sejam removidos com freqüência ou que se sintam
constrangidos a adotar uma postura não independente, haja vista a possibilidade de que
sofram remoções não pautadas em critérios objetivos ou razoáveis.
3º) Que haja regras objetivas de promoção, considerando, por exemplo, a
dificuldade do exercício da atividade de Procurador em determinado setor, tomando por base
o número de processos que se encontram sob seus cuidados e a respectiva estrutura
disponível, considerando a conclusão de cursos de mestrado e doutorado etc.45
4º) Que haja amplo acesso de qualquer Procurador a candidatar-se ao respectivo
Conselho de Procuradores, com o efeito de tornar o referido órgão num colegiado
efetivamente representativo da carreira, e não de um grupo de Procuradores, em atendimento
à proporcionalidade e pluralidade na representação46.
(associações de Procuradores, por exemplo), sempre adotar, evidentemente, as teses que são favoráveis às prerrogativas, e não as que, eventualmente, possam ser utilizadas em prejuízo da classe dos Procuradores, até mesmo porque por dever contratual assim devem atuar. Aliás, trata-se, no mínimo, de um dever ético da parte dos representantes dessas associações de classe a defesa firme, sem subterfúgios, das prerrogativas dos Procuradores de Estado, cujo descumprimento, inclusive, pode ser passível de responsabilidade civil.
44 Não procede a defesa de que o instituto da inamovibilidade seria incompatível para com o exercício da advocacia pública. Destaca-se que a defesa dessa suposta incompatibilidade – frise-se, inexistente – é inspirada numa desfocada visão de que o Advogado Público seria um advogado de governo – diga-se, do governante – e não de Estado. Ora, a previsão da inamovibilidade dos Defensores Públicos na Lei Complementar Federal nº 80/94, mais precisamente, em seus artigos 34 a 38, é prova cabal de que não existe incompatibilidade entre o referido instituto e a carreira de Advogado Público.
45 Evidentemente, não nos parece em conformidade para com o princípio da impessoalidade, considerar como critério de promoção, de remoção, ou de concessão de custeio para fins de estudos e de licença para tanto, o fato de o Procurador se encontrar em cargo comissionado, haja vista que o exercício de função dessa natureza se dá por escolha subjetiva, única e exclusiva do gestor público competente para tanto. Ora, o eventual estabelecimento de tempo de exercício de cargo comissionado como fundamento, por exemplo, para a promoção, remoção ou concessão de benefícios, na prática, implicaria em normatizar, justa e contraditoriamente, a pessoalidade como princípio.
46 A formação de um Conselho que efetivamente represente de forma proporcional e plural o universo de Procuradores – e não apenas um grupo/parte de Procuradores, representado por uma “chapa vencedora” –, constitui em importante instrumento de defesa das prerrogativas dos Advogados de Estado, servindo de freio e contrapeso entre os diferentes grupos internos das Procuradorias e, inclusive, prevenindo eventual assédio moral contra Procuradores de Estado, já que o aparelhamento do Conselho por um determinado grupo pode acarretar na utilização desse Colegiado, responsável por processar e julgar os procedimentos sancionatórios, como instrumento de pressão sobre os demais Procuradores que dele não façam parte.
23
Por fim, frisa-se que é preciso ter em conta que as prerrogativas dos Procuradores,
notadamente a independência técnico-funcional, devem sempre ser defendidas com firmeza –
segundo o Professor Diogo de Figueiredo: com coragem cívica e profissional47 –, seja com
palavras, seja por atos, em vista à criação de uma cultura de Advocacia de Estado, sem a qual
a própria carreira como um todo fica enfraquecida, o que prejudica, evidentemente, o
cumprimento de seus deveres mais nobres.
Essa cultura, vale frisar, é a base para que o princípio da impessoalidade seja
inspiradora da sustentação e do aperfeiçoamento das prerrogativas dos Advogados de Estado,
por intermédio de atos e normas que garantam sua aplicação em diversas circunstâncias: por
ocasião da realização de promoções, de remoções, de concessão de licenças para estudo e o
custeio destes etc.
6. CONCLUSÃO
Pelo exposto, conclui-se nos seguintes termos:
1. Orçamento é um importante objeto de pesquisa não somente porque nele se
deva traduzir o princípio dos impostos consentidos e das despesas autorizadas,
mas também porque, para o estudioso dos assuntos da cidade, nos apresenta
informações concretas e relevantes, que suscitam uma série de perguntas
relativas às escolhas orçamentárias – aí também entendidas aquelas decisões
que integram, evidentemente, a proposta orçamentária, já que nela o
administrador aponta quais são suas reais prioridades –, como também
através dele, pode-se avaliar a gestão da coisa pública, especular acerca de
seus possíveis efeitos, questionar, até mesmo, a ética na gestão financeira e
orçamentária.
47 Vide nota de rodapé nº 39.
24
2. A problemática da ética na elaboração do Orçamento e na condução de sua
gestão é um assunto bastante relevante no contexto de um ambiente que se
espera propício à atividade empreendedora.
3. Um Orçamento legal, imaculado em seu processo de elaboração, não basta para
que os reais interesses e demandas da sociedade possam ser atendidos. É
preciso, sobretudo, que seja a lei de Orçamento proposta, aprovada e
executada conforme a ética, ou seja, consoante uma ética orçamentária que
sirva de instrumento para o exercício de políticas de longo prazo, através das
quais seja possível superar desafios e estimular oportunidades para os
empresários desenvolverem as estruturas econômicas junto com as
Administrações Públicas, em vista a uma inegável melhoria nas condições de
vida do povo brasileiro48; o que não se dará, por certo, através de um projeto
de endividamento do Estado, já que uma gestão orçamentária desta natureza
deixa a Administração cada vez mais engessada, cria um ambiente de
desconfiança para empreender, dificultando as oportunidades para o
atendimento das demandas dos citadinos, sobretudo, dos mais simples.
4. Por intermédio do Orçamento deve-se propiciar um ambiente no qual o ser
humano possa desenvolver-se e tornar-se cada vez mais livre dos governos,
senhor de seu próprio destino, de sua própria felicidade; e não se tornar
instrumento de estímulo a uma conduta servil da sociedade em relação para
com os que ocupam cargos públicos ou políticos. Sem esse senso ético perde-
se sentido todo o conteúdo legal orçamentário.
5. Também se inclui na álea da ética orçamentária a questão inerente à
transparência em todas as fases orçamentárias (propositura, aprovação e
execução da lei orçamentária), de sorte que constituiu um marco importante o
48 Essa expressão em itálico foi inspirada no subtítulo do livro “Infraestrutura e o Futuro do Brasil no Século XXI: desafios e oportunidades para os empresários desenvolverem as estruturas econômicas junto com as Administrações Públicas e a inegável melhoria nas condições de vida do povo brasileiro”, editado pela Lumem Juris, no Rio de Janeiro, em 2015, sob a coordenação dos Professores Jerson Carneiro Gonçalves Junior, Márcio Sette Fortes, Marco Aurélio de Sá Ribeiro e Vânia Siciliano Aieta.
25
advento da Lei de Responsabilidade Fiscal49 50. Sem transparência, não há
como ponderar acerca da qualidade da gestão da coisa pública, nem como
permitir a sua fiscalização pela sociedade, além do que dificulta o próprio
controle pelos órgãos institucionais criados para tanto na Constituição da
República.
6. Como foi possível verificar, as escolhas orçamentárias que não condizem com
a ética orçamentária acarretam na pressão por mais receita da parte do Estado,
o que implica em mais ônus para a sociedade, podendo constituir em mais um
elemento do “custo brasil”, agravando os desafios e diminuindo as
oportunidades de negócios, com implicações na demanda da sociedade por
uma infraestrutura que atenda efetivamente à melhoria de sua qualidade de
vida.
7. Em vista a prestar maior eficiência e economicidade à própria atuação do
Advogado de Estado, e tendo em mente sua mais nobre missão essencial à
justiça, na que se inclui o seu dever de contribuir para a construção do Estado
Democrático brasileiro, é preciso repensar novos paradigmas com base nos
quais seja reestruturada a própria carreira da Advocacia Pública,
fundamentados na maximização do resultado do trabalho dos Procuradores,
particularmente, dos que tem a seu cargo a árdua tarefa de acompanhar o
contencioso de massa – composto, em regra, por processos repetitivos e
individualmente sem expressão financeira – dotando-os de meios humanos
efetivamente qualificados que lhes sirva de apoio, de forma a que, podendo
desincumbir-se com eficiência desse labor, possam dedicar-se ao cuidado de
processos judiciais efetivamente relevantes para a sociedade, bem como para o
exercício do controle interno da legalidade dos atos de gestão da
49 Não por acaso, o nobre Professor Ricardo Lobo Torres, pouco depois do advento da Lei nº 101/2002, assim a ela se referiu: “A Lei de Responsabilidade Fiscal constitui importante passo para o aperfeiçoamento da gestão orçamentária” (Ricardo Lobo Torres. Opus cit., p.324).
50 Com relação à Lei de Responsabilidade Fiscal: “Um bom exemplo disso está na evolução institucional trazida como o novo conceito de responsabilidade fiscal, entronizado pela Lei Complementar nº101, de 04 de maio de 2000, que, na linha da eficiência, por passar a exigir certos comportamentos dos agentes públicos na gestão dos recursos que lhes são confiados, vem de trazer notáveis aprimoramentos à democracia substantiva pela clara definição dos legítimos interesses dos cidadãos e, assim, pelo seu melhor atendimento (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Independência Técnico-Funcional..., p. 13).
26
administração, nos campos financeiro, orçamentário, operacional e
patrimonial.
8. A Advocacia de Estado possui uma função/dever imprescindível para o
aprimoramento do Estado Democrático de Direito, isto é, para o
aperfeiçoamento da democracia substantiva, sendo a sua independência
técnico-funcional essencial para a sua própria existência e eficiência
institucionais51, e, por conseguinte, é indispensável o fortalecimento da
carreira, particularmente, para assegurar essa independência.
9. Para o fortalecimento da carreira, sem prejuízo de outras medidas, se faz
necessário: 1º) que haja uma individual conscientização dos próprios
Procuradores de Estado e do Distrito Federal a respeito da importância de sua
missão bem como de seu dever de atuar com autonomia funcional, em vista a
criar uma cultura de Advocacia de Estado; 2º) que seja garantida a
inamovibilidade do Procurador de Estado e do Distrito Federal, com o
concomitante estabelecimento de regras objetivas de remoção, a exemplo do
que já existe na Magistratura, no Ministério Público e na Defensoria Pública;
3º) que sejam estabelecidas regras objetivas de promoção; 4º) que haja amplo
acesso de qualquer Procurador a candidatar-se ao respectivo Conselho de
Procuradores, com o efeito de tornar o referido órgão num colegiado
efetivamente representativo da carreira, e não de apenas um grupo de
Procuradores, em atendimento à proporcionalidade e pluralidade na
representação.
7. REFERÊNCIAS
BASTOS, Celso Ribeiro Bastos. Curso de direito Financeiro e Direito Tributário. São Paulo:
Editora Saraiva, 1991.
51 Vide nota de rodapé nº 33.
27
CASTRO CARREIRA, Senador Liberato de. O Orçamento do Império, Rio de Janeiro,
Typographia Nacional, 1883, pg. 03.
DELMO PINHO. Rio de Janeiro – Estratégia para a Construção de uma Plataforma
Logística de Classe Mundial. In: Coordenadores: AIETA Vânia Siciliano (Coord.);
GONÇALVES JUNIOR, Jerson Carneiro; SETTE FORTES, Márcio; SÁ RIBEIRO, Marco
Aurélio. Infraestrutura e o Futuro do Brasil no Séc. XXI: Desafios e oportunidades para os
empresários desenvolverem as estruturas econômicas junto com as Administrações Públicas
e a inegável melhoria nas condições de vida do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Juris, 2015.
FIGUEIREDO MOREIRA, Cléia Cardoso. Estabilidade dos Integrantes das Funções
Essenciais à Justiça. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, nº
48, 1995.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Independência Técnico-Funcional da Advocacia de
Estado. In: TAVARES GUIMARÃES, Lucia Lea (Coord.). Advocacia Pública. Revista de
Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, 2006.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 12ª. Ed. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2012.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Orçamentos e Finanças Públicas Democráticas.
Um breve ensaio sobre a legitimidade fiscal. In: TORRES, Ricardo Lobo. Coord. Revista de
Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Direito
Financeiro. Vol. VIII, 2001, p. 01.
LOBO TORRES, Ricardo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. O
Orçamento na Constituição. Volume V. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2000.
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