Revista dh4

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direitos humanosAlexAndre CiConello, luCiAnA PivAtto e dArCi Frigo PAul singer eduArdo luis duHAlde vAlter roBerto silvrio giusePPe CoCCo Antonio lAnCetti Mrio tHeodoro CHiCo CsAr ClAudiA AndujAr

r e v i s ta

dezembro 2009

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ApresentaoEste quarto nmero da revista Direitos Humanos se abre com um artigo de Darci Frigo, Alexandre Ciconelo e Luciana Pivato analisam o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos. Seus autores integraram a coordenao de todo o processo da 11 Conferncia Nacional de Direitos Humanos, realizada em Braslia, em dezembro de 2008, como coroamento das conferncias locais e estaduais organizadas nas 27 unidades da Federao. O fechamento da edio ocorre sem que ainda esteja concluda a etapa de ajustes de texto entre diferentes reas do governo. Sua tica a da representao da sociedade civil, que estabeleceu parceria com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da Repblica e a Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados para levar a cabo o vitorioso processo democrtico que preparou a estrutura bsica do PNDH-3. Por sua importncia histrica, previsvel que novos artigos sejam publicados nas edies seguintes da revista para completar a anlise. Paul Singer, um dos mais importantes economistas brasileiros, smbolo maior das mobilizaes brasileiras em favor da economia solidria, foi convidado para escrever sobre a relao entre a crise econmica mundial e seus mltiplos impactos nas questes universais dos Direitos Humanos. O Secretrio de Direitos Humanos da Argentina, Eduardo Luiz Duhalde, ele prprio um exilado poltico que escapou por pouco do verdadeiro genocdio praticado pela ditadura militar instaurada naquele pas irmo em 1976, desenvolve uma acurada sntese sobre a luta pelo direito memria, verdade e justia. No crescente debate brasileiro sobre o mesmo tema, muito importante conhecer a experincia em curso nos pases vizinhos, sabendo aproveitar os pontos de semelhana e identificar diferenas. Dois artigos deste nmero se voltam para a defesa das aes afirmativas hoje em curso no Brasil. O professor da Universidade Federal de So Carlos Valter Roberto Silvrio e o pesquisador do Ipea Mrio Theodoro lanam olhares bastante convergentes, um da sociedade civil, outro de um centro de excelncia do poder pblico, sobre o desafio central que representa para a afirmao dos Direitos Humanos o enfrentamento do racismo, do preconceito, da discriminao e de todas as modalidades de excluso. A conexo entre Direitos Humanos e o mundo da comunicao trabalhada por Giuseppe Cocco, parceiro de Antonio Negri em Glob(AL) - biopoder e luta em uma Amrica Latina globalizada, e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua contribuio foi solicitada para ecoar o debate em curso rumo indita Conferncia Nacional de Comunicao, realizada em dezembro, no momento em que este nmero da revista fechado. Seu texto abre uma consistente plataforma terica para compreender o trabalhoso desafio de ampliar a defesa dos Direitos Humanos em uma rea na qual muitos veculos reagem como se fosse ameaa de censura qualquer proposta que se apresente com a inteno de democratizar e ampliar acesso. O psicanalista Antonio Lancetti, com papel-chave na experincia paradigmtica da Casa de Sade Anchieta, em Santos, durante a gesto Davi Capistrano da Costa, traa um panorama atualizado dos avanos obtidos e das resistncias enfrentadas pela Reforma Psiquitrica em nosso pas. Desde a promulgao da Lei n 10.216, em 2001, j se reduziram de 85 mil para 35 mil os leitos manicomiais, substitudos com xito pela estruturao de 1.400 Centros de Ateno Psicossociais, onde os pacientes esto livres de repetir as lamentveis ocorrncias de instituies gigantescas que durante dcadas existiram como verdadeiros presdios onde os pacientes eram segregados, submetidos a medicaes alienantes e, muitas vezes, vtimas de torturas. O artista entrevistado nesta edio o cantor e compositor Chico Csar, paraibano formado em Jornalismo em Joo Pessoa, com uma trajetria que funde a militncia poltica e social com uma criao artstica inovadora e ousada, que promoveu verdadeira atualizao na msica popular brasileira a partir dos anos 90. Sua entrevista narra a infncia em Catol do Rocha e valoriza em sua formao o papel do irmo quinze anos mais velho, Geg, militante dos movimentos populares de moradia que vem enfrentando h anos uma implacvel perseguio policial e judicial. Claudia Andujar, fotgrafa que se tornou clebre no s por suas imagens como por sua luta em defesa dos direitos do povo indgena Yanomami, apresenta nesta edio as fotos de seu mais recente livro, Marcados, lanado em 2009 pela Cosac Naify. Os retratos, nos quais os ndios fotografados seguram placas com nmeros de identificao, foram feitas no incio dos anos 80, quando Cludia viajou fronteira norte para fazer um registro de vacinao dos Yanomami fotografados, registrados, marcados para viver. A srie fotogrfica uma representao potica que se d em dilogo com sua infncia e incio da adolescncia. Aos 13 anos, Cladia teve seu ltimo encontro com aqueles que, levando a estrela de Davi afixada roupa, haviam sido marcados para morrer: sua famlia, amigos e o menino Gyuri, seu primeiro amor, deportados da Hungria ocupada e assassinados num campo de concentrao nazista. As ilustraes da edio ficam por conta do artista Rinaldo um paulistano de nascimento, mas cuja obra reflete o envolvimento e vida em Pernambuco, ou, em suas palavras, suco e sumo de uma gerao: Agreste e Litoral.

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Braslia, Dezembro de 2009 Paulo Vannuchi Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da Repblica

sumrio

wcl.american.edu

Arquivo Terra de Direitos

Arquivo Ciranda Internacional de Informao Independente

6Elza Fiza/ABr

Programa Nacional de Direitos Humanos: efetivar direitos e combater as desigualdadesAlexAndre CiConello, luCiAnA PivAtto e dArCi Frigo

13Google Images

Impactos da crise econmica mundial sobre o exerccio dos Direitos HumanosPAul singer

16ufscar.br

Memria, Verdade e Justia: a experincia argentinaeduArdo luis duHAlde

20Marco Fernandes - CoordCOM/UFRJ

Interseccionalidade de direitos como fundamento do antirracismo diferencialistavAlter roBerto silvrio

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Comunicao e Direitos Humanos: o trabalho dos direitosgiusePPe CoCCo

ExpedientePresidente da Repblica: Luiz Incio Lula da SilvaJuvenal Pereira

30Elza Fiza/ABr

Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da Repblica: Paulo Vannuchi

Sade Mental e Direitos HumanosAntonio lAnCetti

Secretrio Adjunto: Rogrio Sottili Conselho editorial:

34Srgio Schnaider

Aes Afirmativas no Contexto Brasileiro: algumas notas sobre o debate recenteMrio tHeodoro

Paulo Vannuchi (Presidente) Ada Monteiro Andr Lzaro Carmen Silveira de Oliveira Dalmo Dallari Darci Frigo Egydio Salles Filho Erasto Fortes Mendona Jos Geraldo Souza Jnior Jos Gregori Marcos Rolim Marlia Muricy Izabel de Loureiro Maior Maria Victoria Benevides Matilde Ribeiro Nilmrio Miranda Oscar Vilhena Paulo Carbonari Paulo Srgio Pinheiro Perly Cipriano Ricardo Brisolla Balestreri Samuel Pinheiro GuimaresCoordenao editorial:

38Juan Esteves

Entrevista

Erasto Fortes Mariana Carpanezzi Paulo Vannuchi Patrcia CunegundesTraduo: Ordanka Furquim

CHiCo CsAr

Reviso: Jora Coelho e Lcia Iwanov Colaborao: Fernanda Reis Brito Projeto grfico e diagramao: Wagner Ulisses Capa e ilustraes: Rinaldo Silva Produo editorial: Liberdade de Expresso Agncia e Assessoria de Comunicao

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ImagensClAudiA AndujAr

Esplanada dos Ministrios, Bloco T, Edifcio Sede, sala 424 70.064-900 Braslia DF direitoshumanos@sedh.gov.br www.direitoshumanos.gov.br ISSN 1984-9613 Distribuio gratuita Tiragem: 10.000 exemplares

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Servios

Direitos Humanos uma revista quadrimestral, de distribuio gratuita, publicada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da Repblica do Brasil. As opinies expressas nos artigos so de responsabilidade exclusiva dos autores e no representam necessariamente a posio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da Repblica ou do Governo Federal. Todos os direitos reservados. permitida a reproduo parcial ou total desta obra, exceto de fotografias e ilustraes, desde que citada a fonte e no seja para venda ou qualquer fim comercial.

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artigo

PRogRAMA NACIoNAl DE DIREIToS HuMANoS:EfETIVAR DIREIToS E CoMBATER AS DESIguAlDADESAlexAndre CiConello assessor de Direitos Humanos do Inesc. luCiAnA PivAto advogada e coordenadora da Terra de Direitos - Organizao de Direitos Humanos. Formada pela PUC - PR, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Poltica Criminal/ Universidade Federal do Paran. dArCi Frigo advogado e coordenador da Terra de Direitos - Organizao de Direitos Humanos. Em 2001, ganhou o Prmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos. Humanos no Pas e estabeleceram diretrizes e metas para o novo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). O objetivo deste artigo abrir o debate sobre o processo e o resultado da mobilizao que culminou com o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, no que diz respeito a sua importncia, seus avanos, seu formato e seu sistema de monitoramento. Entre os desafios a ser enfrentados est o de garantir que o PNDH seja efetivo e provoque mudanas reais na vida das pessoas ao longo dos prximos anos. Em face das

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IntroduoBrasil realizou, ao longo de 2008, um grande debate nacional sobre as prioridades que o Estado brasileiro deveria assumir ao longo dos prximos anos a fim de garantir uma vida digna a todos(as)

o

os(as) brasileiros(as). Esse debate ocorreu devido realizao da 11 Conferncia Nacional dos Direitos Humanos, momento em que representantes do poder pblico e das organizaes da sociedade civil e movimentos sociais avaliaram a situao dos Direitos

graves violaes de Direitos Humanos evidenciadas durante o processo de mobilizao da Conferncia, o PNDH no pode ser apenas uma declarao de intenes, mas deve ser, acima de tudo, um documento poltico e gerencial, que tenha articulao com os instrumentos de planejamento do estado brasileiro, em especial com o oramento pblico, e sirva tambm de instrumento para referenciar a sociedade civil no processo de monitoramento e exigibilidade dos Direitos Humanos no Brasil. O processo de construo do PNDH evidenciou a ausncia de importantes poderes da Repblica, conflitos entre gestores pblicos, descaso de autoridades nos Estados e tambm as graves, histricas e estruturais violaes de Direitos Humanos na sociedade brasileira. Evidenciou tambm a emergncia de diversos sujeitos polticos e movimentos sociais que do cara e contedos novos aos Direitos Humanos (DH). So, na verdade, os verdadeiros destinatrios desse processo, os quais, com suas lutas e seus anseios, ressignificam os pactos polticos internacionais e nacionais que reconhecem os Direitos Humanos, entre eles, o PNDH.

meio dos quais os Estados avanariam na promoo e na proteo dos direitos. Explicitamente, o primeiro PNDH atribuiu maior nfase promoo e defesa dos direitos civis, ou seja, com 228 propostas de aes governamentais prioritariamente voltadas para integridade fsica, liberdade e espao de cidadania de populaes vulnerveis ou com histrico de discriminao. No havia, no PNDH I, mecanismos de incorporao das propostas de ao previstas nos instrumentos de planejamento e oramento do Estado brasileiro. Alm disso, a maioria das propostas se colocava de maneira pouco afirmativa, genrica, no sentido de apoiar, estimular, incentivar.

PndH II: a emergncia dos direitos econmicos, sociais e culturaisDevido a essas e a outras crticas com relao ao formato do PNDH I, foi iniciado em 2001 um processo de debates e construo do PNDH II, por meio de seminrios regionais, que foi concludo com a publicao do Decreto Presidencial n 4.229, de 2002. O PNDH II incluiu os direitos sociais, econmicos e culturais, de forma consentnea com a noo de indivisibilidade e interdependncia de todos os Direitos Humanos expressa na Declarao e no Programa de Ao da Conferncia de Viena1 . Importante novidade foi a diretriz de criao de novas formas de acompanhamento e monitoramento das aes contempladas no PNDH, por meio da relao entre a implementao do programa e a elaborao dos oramentos nos nveis federal, estadual e municipal. Assim, o PNDH II deveria influenciar a discusso no transcurso de 2003, do Plano Plurianual 2004-2007, servindo de parmetro e orientao para a definio dos

Programa nacIonal de dIreItos Humanos: contexto PoltIco e HIstrIco PndH I: nfase nos direitos civis e polticos importante mencionar que o primeiro PNDH, publicado pelo Decreto Presidencial n 1.904, em 1996, foi objeto de debate da 1 Conferncia Nacional de Direitos Humanos. Isso ocorreu trs anos depois da Conferncia de Viena de 1993, que recomendava, em seu plano de ao, que os pases elaborassem Programas Nacionais de Direitos Humanos por

1. Programa Nacional de Direitos Humanos PNDH II. Introduo. 2. Idem.

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programas sociais a ser desenvolvidos no Pas at 2007, ano em que se procederia a 2 nova reviso do PNDH . Essa intencionalidade foi um grande avano do PNDH II, ou seja, a preocupao de que as propostas constantes do programa tivessem concretude com a formulao de polticas pblicas e a destinao de recursos para sua execuo. Nesse sentido, foi formulado pelo governo federal, na poca, um Plano de Ao para 2002, por meio da vinculao entre parte das 518 propostas do PNDH e os programas e aes governamentais, incluindo a previso dos recursos previstos na Lei Oramentria Anual (LOA 2002) e as metas fsicas a ser atingidas naquele ano. Cabe dizer, contudo, que o PNDH II foi publicado no ltimo ano do governo FHC, no tendo tido muita influncia na formulao das polticas pblicas vigentes na poca. Embora o PNDH II tenha sido pensado como uma poltica de Estado e no de um governo, houve dificuldades de prosseguir com seu monitoramento e de consider-lo como um instrumento relevante na formulao das polticas pblicas no Pas a partir do governo Lula. Isso ocorreu tanto por parte do governo como das organizaes da sociedade civil. Ocorre que essa tentativa de criar uma poltica pblica estrutural e articulada sobre os Direitos Humanos sofreu diversos problemas, tais como cortes em seus programas e falta de atualizao em face dos novos desafios enfrentados pela sociedade brasileira. Os gestores pblicos de 2003 at a presente data pouco utilizaram o PNDH como instrumento efetivo para a definio de polticas pblicas. Tambm no houve continuidade na elaborao de planos de ao anuais. A prpria sociedade civil no lutou para sua implementao, ou para o estabelecimento de um sistema de monitoramento.

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artigo

Programa Nacional de Direitos Humanos: efetivar direitos e combater as desigualdades so de construo do PNDH III contou com a participao de diversos sujeitos por meio da realizao da 11 Conferncia Nacional dos Direitos Humanos. Foram realizados debates em todos os 27 estados da Federao, com mais de quatorze mil participantes. A etapa nacional, realizada em dezembro de 2008, reuniu duas mil pessoas, tendo produzido como deliberaes: 36 diretrizes, 702 resolues e 100 moes. verdade que o processo das conferncias sofreu diversos problemas, especialmente nas etapas estaduais. Em diversos estados, a sociedade civil apontou dificuldades metodolgicas, ausncia de oramento adequado, pouca participao dos movimentos sociais e defensores de Direitos Humanos oriundos das regies distantes das capitais que deram etapa estadual um carter metropolitano. Apesar desses entraves, inegvel que a construo do terceiro PNDH, a partir da 11 Conferncia Nacional, contribuiu muito para o avano do programa, principalmente porque permitiu a incorporao de uma srie de desafios do cenrio atual dos Direitos Humanos no Brasil. Desde o incio, o principal desafio poltico e metodolgico do PNDH foi o de construir um programa que considerasse a indivisibilidade e a interdependncia dos Direitos Humanos em todas as suas dimenses: civis, polticas, econmicas, sociais, culturais, sexuais, reprodutivas e ambientais. Para tanto, o debate se deu a partir de eixos temticos estruturantes, trazendo os principais desafios para a efetivao dos direitos em nosso pas, destacando as dimenses de desigualdade, violncia, modelo de desenvolvimento, cultura e educao em Direitos Humanos, democracia, monitoramento e direito memria e Justia. Cabe ressaltar duas dimenses que foram consideradas estruturantes na construo do PNDH III: a universalizao dos direitos em um contexto de desigualdades e o impacto de um modelo de desenvolvimento insustentvel e concentrador de renda na promoo dos Direitos Humanos. Muito se avanou aps a Constituio Federal de 1988 na construo de um arcabouo legal de afirmao e garantia de direitos. Essas declaraes e esses reconhecimentos formais so conquistas importantes, muitas delas decorrentes das lutas populares. Contudo, ainda h no Brasil um fosso imenso entre a previso normativa e a ao executiva de implementao de polticas pblicas que efetivem os Direitos Humanos em geral e os Direitos Econmicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Desca), em particular. De fato, pouco se avanou na efetivao de direitos dentro de um contexto de grandes desigualdades. No caso da sociedade brasileira, essa dimenso essencial. No h como se falar em direitos sem considerar o ambiente de desigualdades estruturais, que permite que certos sujeitos de direitos, em razo de fatores como cor, sexo, faixa etria, situao regional, orientao sexual, etnia, classe social, etc., tenham maiores dificuldades de acessar direitos ou tenham seus direitos negados e violados. Combater a pobreza ou as desigualdades de renda no Brasil passa necessariamente pelo entendimento de que aqui ambas tm relao com as variantes de cor e sexo. As mulheres negras so as mais pobres e tm menor grau de escolaridade, enquanto os homens jovens e negros so os que mais sofrem com a violncia, por exemplo. As inaceitveis distncias que ainda separam negros de brancos, em pleno sculo XXI, se expressam no microcosmo das relaes interpessoais dirias e se refletem nos acessos desiguais a bens e servios, ao mercado de trabalho, educao que persistem, apesar das melhorias nos indicadores

Uma pesquisa realizada pelo Inesc revelou, por exemplo, que Com a aprovao do Plano Plurianual PPA 2004/2007 ocorreu uma nova reviso do PNDH, sem que fosse realizada qualquer consulta aos diversos atores envolvidos. O resultado foi a supresso de 30 programas voltados proteo dos Direitos Humanos. No PPA 2000/2003, havia 87 programas, nmero que foi reduzido para 57 no PPA 2004/2007. A maioria dos programas que esto em descontinuidade ligada aos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais 3 DESCs . Durante o ano de 2008, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) elaborou, como subsdio para a 11 Conferncia Nacional de DHs, uma atualizao do PNDH II, no sentido de sistematizar o que foi feito desde 2002 em termos de aes governamentais. Muitos dos gestores de diversos ministrios nem sequer conheciam o PNDH.

alguns avanos do PndH IIIO processo de organizao da 11 CNDH demandou grande esforo de articulao da sociedade civil e dos movimentos sociais no sentido de construir um amplo acordo poltico, para no repetir experincias negativas anteriores nem gastar energia com um amplo processo de mobilizao sem que se chegasse a lugar algum. A proposta de retomar o Programa de Direitos Humanos exigia abrir um debate com o governo sobre quais seriam suas bases, como seria conduzido o processo de mobilizao e que garantias seriam apresentadas sobre seu processo de implementao. De incio, cabe ressaltar que, diferentemente dos demais programas, o proces-

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3. INESC Instituto de Estudos Socioeconmicos. A poltica de Direitos no governo Lula. Nota tcnica n 99, agosto de 2005. Disponvel em http://www.inesc.org.br.

tomados para o conjunto da populao bem como no gozo de direitos civis, polticos, sociais e econmicos. Enfrentar as desigualdades sociais passa, ainda, pela necessidade de compreender que a opo pelo atual modelo de desenvolvimento hegemnico que insustentvel ambientalmente e concentrador de renda transformou as terras, urbana e rural, e os territrios tradicionais em mercadorias. Desse modo, para privilegiar grupos de empresas nacionais e transnacionais, a todo tempo os direitos terra e ao territrio de povos indgenas, comunidades tradicionais, trabalhadores rurais e populaes urbanas so negados. Nesse sentido, o PNDH III avanou ao estabelecer diretrizes e aes

destinadas proteo da terra e dos territrios tradicionais. Outra inovao do processo de construo do PNDH a tentativa de incorporao dos impactos do modelo de desenvolvimento em curso no Pas sobre os Direitos Humanos. O direito ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentvel foi, portanto, incorporado pelo programa, no s como elemento necessrio conformao da conjuntura, mas como Direito Humano. O desafio criar mecanismos efetivos para garantir o controle social, a responsabilizao e a reparao das violaes causadas pelas atividades das empresas transnacionais e por grandes obras de infraestrutura, pois a impunidade das aes violadoras desses grupos perpetua o cenrio

de desigualdades sociais, alm de beneficiar o grande capital. O PNDH III tambm incorporou diretrizes dirigidas promoo, defesa e proteo da ao dos defensores de Direitos Humanos. Os instrumentos anteriores nem sequer mencionavam a temtica dos defensores, cujo papel essencial construo de uma cultura de direitos no Pas e consolidao da democracia. Nesse sentido, um avano que o programa tenha absorvido desafios como a proteo aos defensores de Direitos Humanos, que tm suas vidas ameaadas em razo de suas atividades, bem como o enfrentamento criminalizao dos movimentos sociais, povos e comunidades tradicionais.

destacamos abaIxo, como exemPlos, algumas aes ProgramtIcas sIgnIfIcatIvas estabelecIdas no PndH:eixo orientador I: Interao democrtica entre estado e sociedade civil Apoiar, no Poder Legislativo, a instituio do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, garantindo recursos humanos, materiais e oramentrios para seu pleno funcionamento, e efetuar seu credenciamento no Escritrio do Alto Comissariado das Naes Unidas para os Direitos Humanos como Instituio Nacional Brasileira, como primeiro passo rumo adoo plena dos Princpios de Paris. Incorporar as diretrizes e objetivos estratgicos do PNDH-3 nos instrumentos de planejamento do Estado, em especial no Plano Plurianual (PPA), na Lei de Diretrizes Oramentrias (LDO) e na Lei Oramentria Anual (LOA). Construir e manter um Sistema Nacional de Indicadores em Direitos Humanos, de forma articulada com rgos pblicos e sociedade civil. eixo orientador II: desenvolvimento e direitos Humanos Fomentar o debate sobre a expanso de plantios de monoculturas, tais como eucalipto, cana-de-acar, soja, e sobre o manejo florestal, a grande pecuria, minerao, turismo e pesca, que geram impacto no meio ambiente e na cultura dos povos e das comunidades tradicionais. Garantir que os grandes empreendimentos e os projetos de infraestrutura resguardem os direitos dos povos indgenas e das comunidades quilombolas e tradicionais, conforme previsto na Constituio Federal e nos tratados e convenes internacionais. Fomentar polticas pblicas de apoio aos estados e municpios em aes sustentveis de urbanizao e regularizao fundiria dos assentamentos de populao de baixa renda, comunidades pesqueiras e de proviso habitacional de interesse social, materializando a funo social da propriedade. Reforar o papel do Plano Plurianual (PPA) como instrumento de consolidao dos Direitos Humanos, enfrentando a concentrao de renda e riqueza e promovendo a incluso da populao de baixa renda. eixo orientador III: universalizar direitos em um contexto de desigualdades Fortalecer a agricultura familiar e camponesa no desenvolvimento de aes especficas que promovam a gerao de renda no campo e o aumento da produo de alimentos agroecolgicos para o autoconsumo e para o mercado local. Fortalecer a reforma agrria, dando prioridade implementao e recuperao de assentamentos, regularizao do crdito fundirio e assistncia tcnica aos assentados, com: Atualizao dos ndices Grau de Utilizao da Terra (GUT) e Grau de Eficincia na Explorao (GEE), conforme padres atuais. Regulamentao da desapropriao de reas pelo descumprimento da funo social plena. 9 Revista Direitos Humanos

artigo

Programa Nacional de Direitos Humanos: efetivar direitos e combater as desigualdades

Garantir demarcao, homologao, regularizao e desintruso das terras indgenas, em harmonia com os projetos de futuro de cada povo indgena, assegurando seu etnodesenvolvimento e sua autonomia produtiva. Assegurar s comunidades quilombolas a posse de seus territrios, acelerando a identificao, o reconhecimento, a demarcao e a titulao desses territrios, respeitando e preservando os stios de alto valor simblico e histrico. Apoiar a alterao do texto constitucional para prever a expropriao dos imveis, rurais e urbanos, em que forem encontrados trabalhadores reduzidos condio anloga a de escravos. Erradicar os hospitais psiquitricos e manicmios e fomentar programas de tratamentos substitutivos internao, que garantam s pessoas com transtorno mental a possibilidade de escolha autnoma de tratamento, com convivncia familiar e acesso aos recursos psiquitricos e farmacolgicos. Fiscalizar a implementao do Programa Nacional de Aes Afirmativas (Decreto n 4.228/2002) no mbito da administrao pblica federal, direta e indireta, com vistas realizao de metas percentuais da ocupao de cargos comissionados por mulheres, populaes negras e pessoas com deficincias. Garantir a igualdade de direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores domsticos com os dos demais trabalhadores. Desenvolver campanhas de informao sobre o adolescente em conflito com a lei, defendendo a no-reduo da maioridade penal, em observncia clusula ptrea da Constituio. Elaborar programas de combate ao racismo institucional e estrutural, implementando normas administrativas e legislao nacional e internacional. Trabalhar pela aprovao do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos. Apoiar projeto de lei que dispe sobre a unio civil entre pessoas do mesmo sexo, assegurando os reflexos jurdicos desse ato. Instituir mecanismos que assegurem o livre exerccio das diversas prticas religiosas, assegurando-lhes espao fsico e coibindo manifestaes de intolerncia religiosa. eixo orientador Iv: segurana pblica, acesso Justia e combate violncia Ampliar recursos oramentrios para a realizao das aes dos programas de proteo a vtimas e testemunhas ameaadas, defensores de Direitos Humanos e crianas e adolescentes ameaados de morte. Implementar o Observatrio da Justia Brasileira, em parceria com a sociedade civil. Assegurar a criao de um marco jurdico brasileiro na preveno e na mediao de conflitos fundirios urbanos, garantindo o devido processo legal e a funo social da propriedade. Reorganizar as Polcias Militares, desvinculando-as do Exrcito, extinguindo as Justias Militares estaduais, disciplinando sua estrutura, seu treinamento, controle e emprego de modo a orientar suas atividades proteo da sociedade. Criar uma base de dados unificada que permita o fluxo de informaes entre os diversos componentes do sistema de segurana pblica e a Justia criminal. Fortalecer aes estratgicas de preveno violncia contra jovens negros. Fortalecer aes de combate s execues extrajudiciais realizadas por agentes do Estado, assegurando a investigao dessas violaes. Implementar mecanismos de monitoramento dos servios de atendimento ao aborto legalmente autorizado, garantindo seu cumprimento e facilidade de acesso. eixo orientador vI: direito memria e verdade 10 Revista Direitos Humanos Elaborar, at abril de 2010, projeto de lei que institua Comisso Nacional da Verdade, composta de forma plural e suprapartidria, com mandato e prazo definidos, para examinar as violaes de Direitos Humanos praticadas no contexto da represso poltica no perodo 1964-1985. Identificar e sinalizar locais pblicos que serviram represso ditatorial, bem como locais onde foram ocultados corpos e restos mortais de perseguidos polticos. Desenvolver programas e aes educativas, inclusive a produo de material didtico pedaggico para ser utilizado pelos sistemas de educao bsica e superior sobre o regime de 1964-1985 e sobre a resistncia popular represso. Revogao de leis remanescentes do perodo 1964-1985 que sejam contrrias garantia dos Direitos Humanos ou tenham dado sustentao a graves violaes.

outros desafIosO principal desafio para a implementao do PNDH transform-lo em uma poltica de Estado, no de um governo ou mesmo da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Isso significa que esse deve ser um instrumento de referncia para a formulao de programas e aes tanto para o Poder Executivo, como para os Poderes Legislativo e Judicirio. Uma das principais dificuldades de todo o processo foi envolver representantes do Poder Judicirio na discusso e tambm no compromisso de implementao do programa. notrio que, dentro do prprio governo federal, h contradies que emergiram nesse processo, como a recusa do Ministrio da Defesa em subscrever o PNDH, retardando ainda mais seu lanamento pblico, por opor-se criao da Comisso Nacional da Verdade, aprovada durante a Conferncia e subscrita pela SEDH e a quase totalidade dos ministrios. Para que o programa tenha efetividade, necessrio que as diretrizes que o compem tenham reflexos nos instrumentos de planejamento do Estado Brasileiro: Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Oramentrias, Lei Oramentria Anual. Embora o Estado brasileiro tenha-se comprometido, com a ratificao do Pacto Internacional sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (Pidesc), em 1992, a destinar o mximo de recursos disponveis para assegurar progressivamente os direitos listados no Pacto, no isso que ocorre. O oramento da Unio no se destina, prioritariamente, a garantir os direitos da populao, mas sim manuteno de privilgios, como o pagamento de juros da dvida do governo, a investimentos, diminuindo o custo para a reproduo do capital e, em muitos casos, a polticas sociais compensatrias, que no garantem a emancipao de seus sujeitos de direitos.

Por mais genricas que possam ser as diretrizes e metas estabelecidas, todas se devem materializar em aes concretas, monitorveis e com recursos suficientes para sua realizao. Isto , devem ser elaborados planos anuais, como um instrumento sinttico, monitorvel, composto de diretrizes e metas de Direitos Humanos a ser efetivadas e cumpridas pelo Estado brasileiro em toda a sua extenso Unio, estados, municpios, executivo, Legislativo, Judicirio, Ministrio Pblico e Defensoria um plano de metas para a realizao progressiva dos Direitos Humanos. Cabe dizer que, em 2008, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou uma proposta brasileira que estabelece metas voluntrias em Direitos Humanos a ser assumidas pelos pases. O Brasil, como proponente dessa iniciativa, deveria dar o exemplo e estabelecer um amplo conjunto de metas nacionais em matria de Direitos Humanos, por meio do PNDH.

monitoramento sistema nacional de Indicadores de direitos HumanosUm dos principais instrumentos de monitoramento do PNDH deve ser a criao e manuteno de um Sistema Nacional de Indicadores em Direitos Humanos. Quando falamos em progressiva realizao dos Direitos Humanos, significa que precisamos desenvolver indicadores que demonstrem o

nvel de acesso da populao aos diversos direitos, quais sejam, educao, sade, moradia, segurana, trabalho, etc., em um dado momento, e quais metas devemos traar para cinco, dez, quinze anos de ampliao desses direitos. Poderemos, assim, responder a vrias perguntas: as polticas pblicas existentes esto conseguindo efetivar os direitos previstos no PNDH? Os recursos so suficientes? Que novas polticas devem ser criadas, ou que modificaes devem sofrer as polticas existentes? A definio de indicadores em Direitos Humanos um debate eminentemente poltico e no apenas tcnico. Por essa razo, a sociedade civil deve ter participao no debate sobre a construo e manuteno do sistema de indicadores em Direitos Humanos. Sugere-se que o sistema de indicadores deva ser o mais desagregado possvel e que o Estado brasileiro garanta sua continuidade. A observncia das desigualdades de raa, gnero e etnia e da forma como homens e mulheres, negros(as) e brancos(as) tm acesso aos direitos devem ser componentes centrais do sistema, assim como a formulao de indicadores de riqueza e concentrao de renda e de indicadores de aferio de violao de direitos.

controle socialOutro grande desafio se d com relao ao monitoramento do PNDH, que deve ser participativo e envolver no apenas o Exe-

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O principal desafio para a implementao do PNDH transform-lo em uma poltica de Estado, no de governo ou mesmo da Secretaria Especial de Direitos Humanos

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Programa Nacional de Direitos Humanos: Efetivar Direitos e Combater as Desigualdades para quem o Conselho no deve ter participao da sociedade civil. Em todas as ocasies, em comisses e em plenrio, o deputado tem adotado uma postura que busca inviabilizar o andamento e a consequente aprovao do PL que cria o Conselho. Especial dos Direitos Humanos (SEDH). O que podemos arriscar a dizer que acreditamos que a SEDH tenha papel central de articulao do PNDH dentro do governo federal, em outros poderes, estados e municpios. Para alm de executar aes vinculadas ao PNDH nas reas da criana e do adolescente, da pessoa com deficincia, da populao LGBT, dos defensores de Direitos Humanos, etc., a SEDH deve manter um sistema de indicadores nacionais de Direitos Humanos, alm de atuar de forma transversal com outros ministrios e poderes, trabalhando em conjunto para elaborar e monitorar os diversos programas e as diversas aes que contribuiro para a realizao das diretrizes e metas do PNDH.

cutivo federal, mas tambm o Legislativo e o Judicirio. Atualmente, temos pouqussimos instrumentos de monitoramento sobre as aes do Poder Judicirio, essenciais para a efetivao de direitos no Pas. Acreditamos tambm que o futuro Conselho Nacional de Direitos Humanos seja o lcus privilegiado de monitoramento do PNDH. Cabe dizer que o Projeto de Lei n. 4.715/1994, que transforma o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) em Conselho de Direitos Humanos est pronto para ser votado no plenrio da Cmara e isso s no ocorre pela intransigncia do deputado Jos Carlos Aleluia-DEM/BA,

articulao institucional da implementao do PndH dentro do estadoUm tema que necessita entrar na agenda de debates diz respeito ao papel da Secretaria

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impactos da crise econmica mundial sobre o exerccio dos direitos HumanosPAul singer nasceu em Viena (ustria), em 1932, e vive no Brasil desde 1940. Professor titular na Universidade de So Paulo (USP), foi membro fundador e economista snior do Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento (CEBRAP) (1969-1988) e atualmente desempenha a funo de secretrio nacional de Economia Solidria do Ministrio do Trabalho e Emprego. autor de vrias obras, entre elas Desenvolvimento e crise (1968) e O capitalismo sua evoluo, sua lgica e sua dinmica (1987).

a

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crise econmica mundial se manifesta sob a forma de uma paralisia das atividades econmicas, sufocadas por forte queda da oferta de crdito. O capitalismo contemporneo , simplesmente, incapaz de funcionar sem ampla e flexvel disponibilidade de financiamento, tanto da acumulao de capital como de consumo. A maioria dos consumidores no tem dinheiro para adquirir, vista, os bens e servios que usualmente consome. Nos EUA, as famlias ficam cronicamente endividadas para ostentar um padro de vida considerado essencial para merecer o respeito e a confiana dos vizinhos, amigos, colegas e demais conhecidos. Ultimamente, antes que estourasse a crise mundial, a poupana do domiclio estadunidense era negativa, ou seja, seus gastos com compras e pagamento de juros superavam seu rendimento normal.

A presente crise mundial foi causada pela suspenso, pelas famlias menos aquinhoadas, do servio de suas dvidas hipotecrias. Essas dvidas haviam sido adquiridas, sob a forma de ttulos, pelos maiores bancos no apenas dos EUA, mas tambm da Europa e do Japo. Sua sbita desvalorizao fez que sofressem perdas imensas. Essa crise foi precipitada em 2007, nos EUA, pelo estouro de uma bolha imobiliria que j durava seis anos. Os preos dos imveis passaram a cair bruscamente, atingindo, sobretudo, os devedores de hipotecas de segunda classe subprime, de baixa renda, que viam o valor de seus imveis cair abaixo da dvida a ser amortizada. Tornou-se vantajoso para eles suspender o pagamento das prestaes, mesmo correndo o risco de perder a moradia. A completa desvalorizao de uma massa de ttulos,

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Impactos da crise econmica mundial sobre o exerccio dos Direitos Humanos ser geral, o mesmo se aplicando aos demais pases capitalistas. Em todos, a desigualdade e a injustia social afetam parcelas variveis de suas populaes. No capitalismo, em sua atual fase neoliberal, o pleno emprego est longe de ser normal. Em parte das famlias, nenhum dos membros possui renda regular, proveniente de um trabalho assalariado, por conta prpria ou de alguma aposentadoria, penso ou outro tipo de beneficio continuado. Sua renda ganha pelo exerccio de atividades eventuais: servios variados, os chamados bicos, mendicncia, prostituio, ou prtica de delitos. E h, ainda, famlias que praticamente no tm qualquer tipo de renda, vivendo da caridade pblica ou de vizinhos. Como hoje a quase totalidade das famlias desamparadas faz jus, no Brasil, Bolsa Famlia, sabemos de sua dimenso: so cerca de treze milhes de famlias, cinquenta milhes de pessoas, por volta de um quarto da populao do Pas. Os impactos da crise econmica atingem a maioria da populao em cada pas, mas de forma extremamente desigual. As classes possuidoras de capital sofrem perdas que, medidas em moeda, atingem valores muito elevados, mas apenas uma parcela pequena delas se arruna. A grande maioria dos integrantes dessas classes possui propriedades e tesouros acumulados nas formas de ttulos financeiros, imveis, joias, obras de arte e similares. A crise os torna menos ricos, mas so provavelmente poucos os que perdem tudo e se tornam verdadeiramente pobres. As maiores vtimas da crise so aqueles que j eram pobres antes que estourasse. Grande parte das pessoas que se encontravam nessa situao pertence a grupos estigmatizados, que so muitas vezes objetos de discriminao por gnero, por etnia, por idade, por comportamentos considerados desviantes loucos, homossexuais, mes solteiras, dependentes de txicos, etc. , sem falar dos portadores de deficincia fsica, dos egressos de prises e de manicmios, dos moradores de rua ou de lixes e tantos outros. Se as pessoas desprovidas de capital prprio j tm escassas oportunidades de escapar da pobreza, as que somam carncia de recursos alguma caracterstica que lhes gera alguma forma de discriminao tm, obviamente, muito menos oportunidades ainda. A crise econmica mundial faz que aumente o nmero de pessoas que perdem o trabalho que lhes permitia escapar da pobreza, ao mesmo tempo que faz diminuir a quantidade total de postos de trabalho disponveis. O resultado, naturalmente, o encolhimento dramtico do nmero de pessoas que podem exercer seus Direitos Humanos. A esses impactos quantitativos preciso somar os qualitativos. As pessoas que perdem o emprego, no Brasil, tm direito ao seguro-desemprego por alguns meses. Esse prazo calculado como o necessrio para que as pessoas possam encontrar outro emprego. Em tempos de crise, encontrar outro emprego torna-se quase impossvel. O seguro-desemprego, juntamente com o Fundo de Garantia por Tempo de Servio, quase sempre serve apenas para moderar a queda na pobreza e para retardar o mergulho na misria.

no valor de trilhes de dlares, levou bancarrota os maiores intermedirios financeiros do mundo. Com a retrao no s do crdito imobilirio, mas de todas as espcies de crdito, provocada pela crise financeira, a demanda por bens e servios em geral passa a cair, ocasionando a retrao de quase todas as atividades produtivas. Surge um crculo vicioso: a queda da produo obriga as empresas a demitir empregados, esses imediatamente reduzem seus gastos ao mnimo, o que acelera a queda da demanda e, em consequncia, o aumento do desemprego; a cada volta desse crculo infernal, mais famlias perdem suas moradias, mais trabalhadores ficam sem trabalho e sem renda e as cotaes nas bolsas de valores desabam, aniquilando, tambm, os proventos de milhes de aposentados. A crise econmica impacta o exerccio dos Direitos Humanos, principalmente dos direitos sociais, que procuram garantir a todos os cidados o atendimento de suas necessidades bsicas: de comida e bebida, abrigo, vesturio, educao, sade, transporte, cultura e recreao. A Constituio brasileira, por exemplo, declara que o acesso educao e assistncia sade so direitos do cidado e deveres do Estado. Estabelece, tambm, o direito de todos os brasileiros ao trabalho e a um salrio mnimo suficiente para o sustento do trabalhador e de seus dependentes. verdade que, mesmo antes da atual crise econmica mundial, o usufruto dos direitos sociais pelos brasileiros estava longe de

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As maiores vtimas da crise so aqueles que j eram pobres antes que estourasse. Grande parte das pessoas que se encontravam nessa situao pertence a grupos estigmatizados, que so muitas vezes objetos de discriminao

A conquista dos Direitos Humanos parte essencial de uma conquista maior, a da democracia, no s como regime poltico, mas como modo de convivncia social.As famlias atingidas pelo desemprego do chefe comeam por perder a moradia, porque no conseguem mais pagar a prestao da hipoteca ou o aluguel. Quando podem, passam a morar com parentes ou amigos; quando no podem, as alternativas costumam ser a favela, o cortio, o lixo ou a rua. A perda do teto frequentemente ocasiona a dissoluo da famlia, cada membro procurando se virar para arranjar algum abrigo. A dissoluo tambm se d pela perda da afeio ou do autorrespeito do chefe da famlia que, impossibilitado de cumprir seus deveres de pai e de marido, se entrega ao desespero na forma de alcoolismo, loucura, enfermidade psicossomtica ou suicdio. H estudos feitos em diferentes lugares e em diferentes pocas, mostrando forte correlao entre a variao do desemprego e do gasto com sade pblica. A tragdia do abandono de crianas, que sobrevivem em bandos, em condies desumanas, torna-se muito maior, por causa dos impactos da crise sobre as classes desfavorecidas. nesse meio que o crime organizado, em suas mltiplas formas, recruta seus asseclas. Se a crise despoja milhes de pessoas de sua condio humana, torna-se inevitvel que parte delas opte pelo crime como forma de sobrevivncia e tambm de socializao das perdas que sofreram. Uma das lies da crise econmica que a possibilidade de satisfazer regularmente as necessidades bsicas no s um direito humano, mas tambm condio essencial para que os outros Direitos Humanos as liberdades de ir e vir, de manifestao do pensamento, de eleger e de ser eleito, etc. possam ser exercidos. Algum que no tem onde morar, que no dispe de endereo fixo em que possa ser encontrado, que pode ser enxotado de qualquer espao pblico que porventura ocupe, ainda que seja por algumas horas para descansar, algum que perdeu o reconhecimento de sua condio humana. A conquista dos Direitos Humanos parte essencial de uma conquista maior, a da democracia, no s como regime poltico, mas como modo de convivncia social. A base da democracia, nesta acepo, o reconhecimento da igualdade de todos os seres humanos que formam uma dada sociedade. A conquista da democracia poltica, a partir das grandes revolues dos sculos XVIII, XIX e XX, criou, aos poucos, as condies de possibilidade para que a democracia pudesse extravasar o terreno da poltica e penetrar na economia, na vida familiar, em sntese, na prpria cultura. O surgimento dos novos movimentos sociais e sua intensa luta para que esse extravasamento possa se dar prova de que a per-

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sistncia do exerccio dos Direitos Humanos depende, vitalmente, de que uma outra Economia, uma Economia imune ocorrncia de crises gerais como a atual, que flagela o mundo, possa tomar o lugar hoje ocupado pelo capitalismo. Esta crise econmica, medida que multiplica o nmero de suas vtimas, demonstra que o capitalismo incompatvel com o exerccio dos Direitos Humanos por todos. Direitos que s podem ser exercidos por alguns no podem ser considerados humanos. possvel que a soluo desse dilema esteja na luta das classes sociais, cuja humanidade a crise inadvertidamente nega. Essa luta assume, hoje em dia, novas dimenses, que so econmicas e polticas ao mesmo tempo. As classes trabalhadoras, para escapar do risco de ser privadas de seus Direitos Humanos, ou seja, de seus direitos como membros da humanidade, adotam, como objetivo primordial, se tornar proprietrias dos meios de produo, que utilizam para satisfazer suas necessidades, no apenas as bsicas. E para no reproduzir a desigualdade que resulta da apropriao privada dos meios de produo, as novas formas de apropriao dos meios de produo tendem a ser associativas, ou coletivas. Inmeras experincias de organizao econmica baseadas na cooperao e na autogesto esto-se espalhando pelos bolses de pobreza que as frequentes crises econmicas deixam atrs de si, no mundo inteiro. Dessa maneira, as vtimas das crises se defendem da desapropriao de seus Direitos Humanos e constroem vias de reconquist-los. Como j dizia saudoso filsofo alemo, a humanidade, quando coloca um problema, j tem a seu alcance os meios de solucion-lo. As grandes crises econmicas do terceiro milnio podem, quem sabe, motivar suas vtimas a procurar vias de super-las definitivamente.

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Memria, Verdade e Justia: a experincia argentina

eduArdo luis duHAlde advogado, historiador e jornalista argentino. secretrio de Direitos Humanos do Ministrio da Justia, Segurana e Direitos Humanos da Argentina. Foi consultor de Direitos Humanos das Naes Unidas e professor da Faculdade de Cincias Sociais da Universidade de Buenos Aires. Tem longa trajetria como defensor de presos polticos e atua h vrias dcadas no movimento de Direitos Humanos. Foi tambm professor titular de Direito, Histria e Poltica em diversas universidades argentinas e estrangeiras, e membro de instituies acadmicas no seu pas, na Amrica Latina e na Europa, bem como de organismos de Direitos Humanos da Argentina e de outros pases. Em 1976, no incio da ditadura militar na Argentina, teve os direitos civis e polticos cassados. No fim deste mesmo ano foi exilado na Espanha. Foi um dos organizadores da denncia internacional contra o terrorismo de Estado na Argentina. autor de 24 livros, entre eles O Estado terrorista argentino (El Estado terrorista argentino). Foi responsvel pela publicao Militncia Peronista pela Liberao, ao lado de Ortega Pea, morto em um atentado em 1974.

Memria, Verdade e Justia:

a experincia argentina

o estado terrorIsta e suas conseQuncIasimpossvel compreender o processo de Memria, Verdade e Justia que se leva adiante na Argentina, talvez por sua profundidade quase incomparvel na realidade internacional atual, sem a prvia caracterizao do que temos denominado como Estado Terrorista Argentino. A dimenso da tragdia ocorrida em meu pas, por sua abrangncia, s pode se comparar, na Amrica Latina do sculo XX, com a sofrida pelo povo guatemalteco ao longo de mais de cinquenta anos, a partir da derrocada de Jacobo Arbenz, em 1954. Diferentemente daquele, o processo repressivo ilegal argentino teve um perodo de implementao muitssimo mais concentrado e, ao mesmo tempo, de elaborao e de planejamento sistemticos, que adquiriu formas especficas e singulares dentro do estado de exceo na Amrica Latina, que

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jogou por terra os regimes institucionais democrticos. O regime militar instaurado a partir de 24 de maro de 1976, com sua prolixa e sistemtica preparao e a crescente ao repressiva ilegal, se baseou em uma elaborada teoria, que configurou o Estado terrorista e sua face clandestina permanente. Produzido no decorrer de uma crise poltica catastrfica e fundado na necessidade de ajustes permanentes no modo de acumulao de capital para a manuteno de uma ordem social injusta, trouxe, em si, mudana substancial de formas: configurou-se como Estado terrorista, partindo de pressupostos que se esgrimiram como permanentes e que contradiziam as bases fundamentais do Estado democrtico. Afirmou-se sobre o princpio de que sujeio lei, publicidade dos atos e a seu controle judicial incapacitaria definitivamente o Estado para a defesa dos interesses da sociedade. Em consequncia, apareceu, como substrato de tal concepo, a necessidade de estruturao quase com tanta fora como a do Estado pblico do Estado clandestino e, como instrumento deste, o terror como mtodo. Assim, o Estado terrorista a culminao degenerativa do Estado militar eficiente. O trgico resultado registra, aproximadamente, trinta mil detidos desaparecidos, assassinados, de todas as idades e condies sociais, a maior parte deles arremessada com vida ao mar, depois de inenarrveis processos de torturas fsica e mental, ou fuzilados e enterrados clandestinamente; outros dez mil detidos prisioneiros, a maioria deles sem processos jurdicos, apenas disposio do Poder Executivo, nos presdios da Repblica; mais de duzentos mil cidados exilados e um nmero superior de demitidos de seus trabalhos, pblicos e privados; professores e estudantes expulsos das escolas, homens e mulheres que aumentaram as listas negras

de mortos civis, sem acesso a empregos pblicos ou privados por ter sido considerados vinculados delinquncia subversiva, em decorrncia de sua militncia poltica, social, ou de sua atividade intelectual, qualificada como dissidente, ou incompatvel com o processo militar em curso. Mas o regime militar tambm gerou um processo civil de resistncia, encabeado por um emergente Movimento de Direitos Humanos liderado, como expresso pblica, pelas Mes da Praa de Maio, que simbolizaram os fatores ticos e polticos violados e a vontade de um povo oprimido, mas no vencido. Esse processo de resistncia se intensificou depois da derrota da ditadura em uma guerra irresponsvel pela recuperao das Ilhas Malvinas, que finalmente levou os militares ao abandono do governo, em dezembro de 1983. A recuperada democracia constitucional, presidida por Ral Alfonsn, criou logo em seguida, a pedido das organizaes de Direitos Humanos, a Comisso Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), primeira constatao oficial da dimenso do extermnio coletivo levado adiante pelos militares usurpadores do poder. Depois disso, era inevitvel o julgamento das trs juntas militares que se haviam revezado no poder. Em um processo histrico e sem precedentes no mundo, um tribunal judicial condenava os chefes de uma ditadura militar sangrenta a penas de priso perptua, como no caso de Videla e Massera, seus principais responsveis. O governo civil se deu por satisfeito com esse enorme gesto e com sua ressonncia simblica. As vtimas sobreviventes, os familiares dos presos desaparecidos e assassinados, o movimento de direitos humanos e amplos setores da sociedade civil, no. E passaram a promover a continuidade dos julgamentos dos genocidas, at que se fizeram ouvir as demandas militares clamando por impunidade.

O poder poltico foi sensvel a essas presses, ditando as chamadas leis de Obedincia Devida e Ponto Final, complementadas com indultos concedidos pelo presidente Menem aos comandantes condenados. A partir da, abriu-se uma etapa de mais de quinze anos de luta de amplos setores da sociedade civil, encabeada pelas Mes, as Avs e os demais organismos de Direitos Humanos, contra a impunidade. Essa impunidade comeou a chegar ao fim quando Nestor Kirchner assumiu a Presidncia da Repblica, colocando como eixo das polticas pblicas de seu governo os princpios de Memria, Verdade e Justia. Tratava-se no somente de cumprir com as responsabilidades do Estado pela reparao, previstas nos instrumentos internacionais subscritos pela Argentina e que gozam de status constitucional como tambm de recuperar os fundamentos ticos do Estado democrtico, inseparveis da vigncia dos Direitos Humanos. O reconhecimento da nulidade das chamadas leis de perdo, pelo Parlamento, e sua declarao de inconstitucionalidade por parte da Corte Suprema de Justia, colocaram os trs poderes do Estado no caminho de pr fim impunidade. A reabertura dos julgamentos por crimes contra a humanidade, imprescritveis, foi o passo seguinte. Hoje, a Memria, a Verdade e a Justia constituem o corpo doutrinrio efetivado em polticas estampadas e irreversveis. Faamos uma breve reviso.

a memrIaUma pea nodal dessas polticas, que no assptica nem neutra, o combate pela Memria. Os atores do privilgio e da excluso, bem como da consequente atividade antidemocrtica e repressiva ao longo do sculo XX e at agora, tentaram, juntamente com o assalto s instituies de 1976, fazer uma leitura da histria legitimadora de seu agir.

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Memria, Verdade e Justia: a experincia argentina vo, com capacidade de atuar sobre a vida social, sustentando o reconhecimento coletivo da identidade e as projees futuras. A memria a vida, sempre levada por grupos vivos e, por isso, em evoluo permanente, aberta dialtica da lembrana e do esquecimento: um fenmeno sempre atual, alimenta-se de lembranas indefinidas, globais ou flutuantes, particulares ou simblicas. sensvel a todos os modos de transferncia, censura ou projeo. A memria instala a lembrana no sagrado, como apontou Pierre Nora. A memria tambm est ligada construo da sociedade que queremos. Quando falamos de terrorismo de Estado, estamos fazendo referncia tambm metodologia impulsionada por setores polticos e econmicos concentrados, que, por meio das Foras Armadas, impuseram, criminal e maciamente, um modelo de sociedade ferozmente excludente e totalmente dependente. E, hoje, apesar de essa experincia genocida, que forma parte do nosso passado lacerante, estar sendo condenada por meio de processos que a Justia leva a cabo, no alcanou esses fatores poltico-econmicos que impulsionaram o golpe de Estado e que esto entre ns. Hoje usam outros instrumentos, outros meios, mas o combate continua. O desafio que hoje enfrentamos na Argentina construir um legado do nunca mais, um discurso narrativo nem cristalizado nem esttico, do qual possam reapropriar-se as novas geraes, com o olhar do presente que queiram viver e que lhes garanta, assim, o direito de conhecer sua prpria Histria e de receber a memria coletiva, sob os princpios de Memria, Verdade e Justia e da vigncia irrestrita dos Direitos Humanos. A designao, como tais, das Bases e Quartis onde funcionaram Centros Clandestinos de Deteno e Extermnio, mediante placas e pilares, a converso dos grandes centros clandestinos emblemticos em Espaos da Memria, como a Escola de Mecnica da Armada (ESMA), em Buenos Aires e La Perla, em Crdoba, parte da obra que realiza a Secretaria de Direitos Humanos, por meio do Arquivo Nacional da Memria. Esse arquivo a custdia pblica de toda a documentao recuperada sobre a represso ilegal, seus autores e suas vtimas. Mais de dez milhes de folhas constituem seu acervo documental, fonte de investigao e, ao mesmo tempo, prova documental de todos os processos judiciais.

A partir dessa perspectiva, buscaram fazer toda sua violncia sistemtica parecer mera resposta de defesa da nao contra a irracional violncia militante e social, qual no hesitam em qualificar como gerada pela subverso aptrida. Como eixo dessa postura, aparece a defesa desavergonhada do terrorismo de Estado. A partir disso, pretenderam impor a organizao do esquecimento, apagando tudo o que se faa aparecer nu em seu modelo genocida de represso e excluso. Diante dessa manipulao da Histria e das tentativas de construo de uma falsa memria coletiva, dever da democracia social e dos governos republicanos opor, a essa viso contrabandeada dos fatos, um forte resgate da memria histrica, assentado na irrefutvel verdade do ocorrido, trazendo luz e convertendo em lembranas permanentes aquilo que os sujeitos populares, as vtimas levam como bandeira reivindicativa e reparatria, ao longo de dcadas de luta pela verdade e pela justia. No h receita para a construo de uma memria histrica fora do esforo por estimul-la, resgatar suas marcas, muitas vezes cobertas pelo esquecimento, relembrando o passado e pondo luz a continuidade do acontecer histrico e seus pontos essenciais, que no devem deixar de ser parte de nosso presente, como passado vivo. Claro est que essa tarefa tem um rigor, em sua elaborao, que no simples espontaneidade da lembrana. Narrao e simbolizao na ressignificao do horror no a mera lembrana de fatos do passado. Sua iluminao significante implica muito mais: analisar, segundo as Cincias Sociais, a sistematicidade de sua prtica ilegal e de sua persistncia no tempo, pelos olhares cruzados dos atores sociais vtimas. A Memria no busca coisificar a Histria em forma glida e esttica, mas sim convert-la em elemento dinmico e operati-

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No h receita para a construo de uma memria histrica fora do esforo por estimul-la, resgatar suas marcas, muitas vezes cobertas pelo esquecimento, relembrando o passado e pondo luz a continuidade do acontecer histrico e seus pontos essenciais, que no devem deixar de ser parte de nosso presente, como passado vivo

Assim, a memria tem um sentido coletivo de recuperao da Histria a partir do presente, de ensino e de caminho em direo ao futuro. , ao mesmo tempo, autodefesa de nossa prtica diria e assentamento das bases de uma sociedade futura sobre os pilares do aprofundamento democrtico, da vigncia plena dos Direitos Humanos e dos princpios da tolerncia, da solidariedade e do respeito ao outro.

o dIreIto verdadeEssa ideia se expressa tambm na consagrao do Direito Verdade. O direito ao conhecimento da verdade acerca do cometimento de crimes aberrantes vale tanto para o nefasto captulo do passado quanto como obrigao diante do presente e do futuro. Para isso tem-se de manter em viglia as conscincias tica e moral e sua sano jurdica. A respeito disso, cabe recordar que, no campo do direito internacional dos Direitos Humanos, h muito tempo comeou a desenvolver-se o chamado Direito Verdade, para o qual foi marco importante o pronunciamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos em um caso de desapario forada de pessoas. Naquele caso, a Corte sustentou que O dever de investigar fatos desse gnero subsiste enquanto se mantenha a incerteza sobre o destino final da pessoa desaparecida. Na hiptese de que circunstncias legtimas da ordem jurdica interna no tenham permitido a aplicao das sanes correspondentes a quem seja individualmente responsvel pelos delitos dessa natureza, o direito dos familiares da vtima de reconhecer qual foi seu destino e onde se encontram seus restos mortais representa justa expectativa, que o Estado deve satisfazer com os meios ao seu alcance (Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Velsquez Rodrguez, sentena de 29 de julho de 1988).

JustIaDe maneira geral, pode-se sustentar que o direito de acesso Justia consiste na possibili-

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Em consonncia com tal interpretao, afirmou-se tambm que Existe uma expectativa no-individual do direito verdade, que se assenta no direito de a comunidade conhecer seu passado... o direito da sociedade de conhecer suas instituies, seus atores, os fatos acontecidos, para poder saber, por meio do conhecimento de seus acertos ou de suas falhas, qual o caminho a seguir para consolidar a democracia. Tais conceitos foram recepcionados tambm pela Comisso Interamericana de Direitos Humanos, ao assinalar que o direito de saber a verdade sobre os fatos, assim como a identidade de quem deles participou, constitui obrigao do Estado para com os familiares das vtimas e a sociedade, como consequncia das obrigaes e dos deveres por ele assumidos como Estado-Parte da Conveno. Tanto o Conselho de Direitos Humanos das Naes Unidas (proposta da Argentina apoiada por 54 pases) como a Assembleia da OEA reconheceram em resolues importantes a relevncia de respeitar e garantir o direito verdade para o fim da impunidade, promover e proteger os Direitos Humanos. Foi bem recebida a criao, em vrios Estados, de mecanismos judiciais especficos, assim como outros, extrajudiciais ou ad hoc, que complementam o sistema judicial de investigao das violaes dos Direitos Humanos e do direito internacional humanitrio e servem de base para a preparao dos informes e das decises desses rgos. Os militares responsveis pela aplicao do terrorismo de Estado seguem negandose a revelar a verdade: persistem ocultando a lista de pessoas assassinadas, o destino das crianas apropriadas, os responsveis de cada crime e o destino dos corpos.

dade que tem toda pessoa, independentemente de sua condio econmica, social ou de qualquer outra natureza, de recorrer aos tribunais para formular pretenses ou para defender-se, e de obter o pronunciamento, o cumprimento e a execuo de uma sentena desses tribunais. A Justia como tal foi negada s vtimas do terror estatal, ao amparo das leis de Obedincia Devida e do Ponto Final, assim como dos indultos. Os processos judiciais foram arquivados e os responsveis no foram julgados, por falta de provas. O caminho de reconstruo do direito Justia levou substituio da vergonhosa Corte Suprema de Justia do menemismo, mediante uma avaliao poltica da composio de seus membros e sua substituio por prestigiosos juristas independentes. O segundo passo foi a ratificao da Conveno sobre imprescritibilidade dos delitos de lesa-humanidade. O terceiro passo foi a declarao de inconstitucionalidade das leis de Obedincia Devida e Ponto Final, assim como dos Indultos. A seu lado, o governo nacional comeou a apresentar-se como polo ativo nas aes judiciais, impulsionando a reabertura dos processos, sempre observando todas as garantias do devido processo legal. Hoje o resultado est vista: cinquenta e seis responsveis importantes pela prtica de crimes de lesa-humanidade j foram condenados, contando-se desde o processo das juntas militares; 182 esto sendo processados e outros 130 o sero nos prximos anos. H 289 causas abertas contra repressores, nas quais 556 pessoas so processadas, em todo o pas, por violaes aos Direitos Humanos cometidas durante a ltima ditadura militar. O mais importante, entretanto, no essa estatstica, mas esse processo indito, no qual a Justia de um pas, em nome dos direitos fundamentais e dos princpios democrticos, julga e condena os responsveis de uma poca marcada pelo horror sistemtico, sem que, ao faz-lo, coloque em perigo as instituies da Repblica, mas, pelo contrrio, as fortalea.

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Interseccionalidade de direitos como fundamento do antirracismo diferencialista

Interseccionalidade de Direitos como fundamento do antirracismo diferencialista

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vAlter roBerto silvrio professor associado do Departamento e Programa de Sociologia da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar) e coordenador do Ncleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade.

movimentos sociais, um amplo espectro reivindicativo, que compreendia desde os direitos civis e polticos, passando pelos direitos culturais, at os direitos difusos. Aps duas dcadas de uma Constituio considerada cidad por sua ateno ao conjunto dos Direitos Humanos, de forma outrora nunca vista, se verifica que as tenses ento presentes naquele momento estavam assentadas basicamente em trs grandes ordens de questes: a) consolidao e expanso das liberdades polticas e democrticas adequadas a um pas profundamente diverso e complexo na sua composio populacional (direitos civis e polticos); b) materializao do atendimento s necessidades econmicas e sociais dos cidados brasileiros (direito ao trabalho, educao, sade, previdncia social); c) reconhecimento da diversidade tnico-racial constitutiva da populao brasileira, no passado interpretada de forma negativa e, atualmente, celebrada enfaticamente como um dado positivo do repertrio nacional, ou seja, como o direito identidade cultural particular que , ao mesmo tempo, parte da identidade nacional. Tratar dos direitos culturais como possibilidade do exerccio de prticas sociais e reivindicaes especficas de grupos racializados no interior dos Estados metropolitanos ps-coloniais amplia a atual tendncia de enxergar apenas os imigrantes das ex-colnias, que se libertaram no sculo XX, como foco dos problemas e das polticas. Nos vrios pases em que a dispora africana continua subjugada, discriminada racialmente e submetida a uma lgica sociocultural que procura oprimir o exerccio

a

Assembleia Nacional Constituinte de 1987 pode ser considerada o espao no qual se observa, por parte dos

pleno de sua subjetividade, em nome da mestiagem e das polticas pblicas de cunho universalista, urgente se pensar em solues democrticas para os velhos e os novos problemas. No Brasil do sculo XXI, a luta pela plena consolidao dos Direitos Humanos requer tanto um olhar no-nostlgico para o passado como o debate sobre um novo arranjo institucional, no qual as diferenas, na chave da diversidade, sejam o valor e o fundamento de novas prticas institucionais. No Brasil contemporneo, a constante afirmao, sem base nos fatos histricos, de que somos todos iguais, tem por funo encobrir que o efetivo respeito dignidade, fundamento absoluto dos Direitos Humanos, o resultado de lutas polticas pela liberdade e de lutas sociais pela igualdade (MATAMACHADO, 2007). somente com a identificao da dimenso histrica na qual os processos de lutas e conquistas se inserem que podemos, de forma breve, analisar a especificidade do processo de implementao dos direitos culturais no Brasil neste incio de sculo XXI. A luta para assegurar liberdades em relao ao Estado direitos civis vem acompanhada da exigncia do gozo pleno das liberdades no seu interior direitos polticos. O contexto brasileiro torna-se exemplar de um processo no-tpico do estabelecimento dos Direitos Humanos, uma vez que os direitos econmicos direito ao trabalho e os direitos sociais direito educao, sade e previdncia social isto , o direito de toda pessoa viver em um nvel adequado, antecederam os direitos civis e polticos. Some-se, ainda, o fato de que seu escopo restrito e fortemente marcado pelas orientaes do perodo Vargas levou alguns estudiosos a considerar que a cidadania da

decorrente era regulada. Assim, a questo a ser perseguida a seguinte: como a luta pela implementao dos direitos culturais, no caso brasileiro, se intersecciona com a ampliao do escopo do conjunto de direitos e com a construo de uma arquitetura institucional no racializada? Antes de responder de forma parcial questo acima, convm descrever singelamente o papel da Unesco na discusso e na implementao dos direitos culturais.

os dIreItos culturaIs e a necessIdade de um novo arranJo InstItucIonalQuando se trata do debate sobre diversidade cultural e seus desdobramentos nas questes das relaes sociais entre brancos e no-brancos, possvel observar, com base na trajetria do pensamento e da ao da Unesco sobre a cultura e a diversidade, as mudanas de percurso e de tratamento dessas dimenses da vida social. O tema da diversidade cultural, na chave dos conflitos tnico-raciais, est na raiz da prpria criao daquela agncia internacional e tem permeado seu pensamento e suas aes desde seu surgimento. A Unesco apostou na crena de que elucidar a contribuio dos diversos povos para a construo da civilizao seria um meio de favorecer a compreenso sobre a origem dos conflitos, do preconceito, da discriminao e da segregao raciais. Ou seja, a Unesco apostou na ideia de que o conhecimento levaria compreenso e esta seria a base das condies para a paz. Iniciou, ento, um ambicioso trabalho de pesquisa histrica, chamado Histria do Desenvolvimento Cientfico da Humanidade, que viria a ser escrita, durante vrios anos, por aqueles que eram identificados como sendo os dois grandes entes sociopolticos e 21 Revista Direitos Humanos

artigo

Interseccionalidade de direitos como fundamento do antirracismo diferencialista O tema dos direitos culturais comparece pela primeira vez no informe do diretor-geral da Unesco, em 1969, quando se decide pela realizao de um estudo nesse campo. O Informe de 1977 aborda uma questo importante, evitada no ps-guerra, quando a prioridade absoluta da Unesco era garantir a paz e o entendimento entre Estados soberanos. Trata-se do reconhecimento da importncia das diferenas culturais internas aos pases. Marca esse perodo a busca do equilbrio entre a afirmao das identidades e a ameaa de divisionismos e de recluso. Uma srie de conferncias intergovernamentais regionais converge para o enunciado otimista da Conferncia Intergovernamental sobre Polticas seja, sua compreenso como uma faculdade universal, e no apenas como um rgido conjunto de padres, trouxe consigo as ideias de renovao, discernimento e escolha crtica, respondendo ameaa de que o pluralismo pudesse se tornar um baluarte contra as trocas interculturais. Uma questo concreta o Apartheid lana um foco sobre a relao entre diversidade e igualdade, ou seja, evidencia-se a conexo com os Direitos Humanos. No final da onda de descolonizao, o Plano de Mdio Prazo da Unesco afirmava que o verdadeiro usufruto da condio de liberdade pelos povos dependia de pr-requisitos que iriam alm de sua nova condio legal e poltica, alcanando fatores econmicos, sociais e

culturais em que se dividia o mundo: o Oriente e o Ocidente. Nesse momento, as ideias de pluralismo, diversidade e interculturalidade, embora presentes, diziam respeito s relaes entre pases, ou seja, cada Estado-Nao era tido como uma entidade coesa e unitria, sob o ponto de vista da diversidade. Como nos lembrou Lvi-Strauss, em conferncia proferida em 2005, por ocasio do sexagsimo aniversrio da Unesco, a abordagem da cultura nesse perodo estava ainda muito ancorada na ideia de produo artstica e de conhecimento histrico. Como decorrncia, a diversidade era tratada exclusivamente como fonte de riqueza, como o tesouro comum da cultura. educao, e no cultura era atribudo papel preponderante na luta por banir o mito da superioridade racial. No entanto, j no final da dcada de 40, a representao, no seio da Unesco, de fortes tenses internacionais relacionadas ao fim do colonialismo, assim como de discusses sobre os direitos das minorias, demonstrava que tanto as origens quanto as possibilidades de mitigao de muitos desses conflitos se vinculavam cultura. Em paralelo, ganhava corpo a ideia de que existiam caminhos prprios de cada povo ou de cada cultura para o desenvolvimento, o 22 Revista Direitos Humanos que devia ser estimulado, desde que tomadas precaues contra o isolamento excessivo. A partir dos anos 50, crescente a conexo da cultura no apenas com o desenvolvimento, mas com a poltica e com os Direitos Humanos.

Tudo levava a crer que no interior do governo vrios olhares e ouvidos estavam atentos ao debate em torno da questo racial na sociedade brasileira, que j naquele momento ganhava mais espao na esfera pblicaCulturais para Amrica Latina e Caribe, a qual defende que o pluralismo pode ser a verdadeira essncia da identidade cultural e que esta deve ser considerada como um fator de estabilizao, e no de diviso. A evoluo dessa trajetria conduziu conexo entre cultura e democracia. A dificuldade de dar consequncia prtica aos conceitos formulados levava a Unesco a enfatizar, cada vez mais, a responsabilidade dos governos e a necessidade de polticas culturais no mbito de cada pas. A sofisticada viso da cultura que resultou da Conferncia do Mxico, em 1982, ou

culturais. O foco na democracia e na promoo de direitos econmicos, sociais e culturais demonstra, na prtica, a relao entre cultura e poltica identificada em dcadas anteriores. O incio da dcada de

90 enfatiza a importncia da cooperao cultural internacional, considerando a crescente interdependncia entre cultura e economia, a crescente reafirmao de identidades e o desenvolvimento de sociedades cada vez mais multiculturais. Acentua-se a preocupao com os conflitos resultantes de sociedades fragmentadas e complexas, ou seja, multitnicas, multiculturais e multirreligiosas. A nfase recai novamente sobre as polticas pblicas no mbito dos pases, que devem cuidar das relaes entre comunidades internas e refor1 ar a coeso social .

1. Palestra de Vincent Defourny sobre a Conveno para a Proteo e a Promoo da Diversidade das Expresses Culturais. Seminrio Brasil-Canad sobre a Diversidade Cultural Braslia, 27 de maro de 2007.

rumo ao brasIl do sculo xxI Na dcada de 90, as mudanas da agenda poltica das principais organizaes do movimento negro brasileiro coincidiram com o momento de conformao do Estado liberal democrtico no Brasil. Essas mudanas possibilitaram que tais organizaes se deslocassem do campo da denncia para a crescente utilizao de mecanismos jurdico-polticos, tanto para criminalizar a discriminao e o racismo, como coletividade, quanto para exigir polticas pblicas compensatrias pelos danos espirituais e materiais causados pelo racismo e pela discriminao passados. Por que os Direitos Humanos passam para o plano central das reivindicaes das organizaes negras no Brasil? Em primeiro lugar, a relevncia da questo racial para o equacionamento da questo social no pas ficou mais evidente quando, durante a campanha presidencial de 2002, os principais candidatos Presidncia da Repblica se viram obrigados a tratar, no debate pblico em rede nacional de televiso, o tema das aes afirmativas para negros. A vitria de Lula, um nordestino, ex-lder sindical, ex-operrio, gerou um conjunto de expectativas em relao s mudanas pelas quais vrios movimentos sociais lutam pelo menos h trs dcadas. Em relao ao movimento negro, tais expectativas se tornaram ainda maiores quando, de forma indita na histria do Pas, o presidente eleito nomeou dois ministros de Estado identificados como afrodescendentes. A positividade do cenrio se expandiu quando Lula sancionou, no dia 9 de janeiro de 2003, a Lei n 10.639, a primeira do seu governo. A referida lei altera a Lei de Diretrizes

e Bases da Educao Nacional e introduz a obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-brasileira no ensino bsico . Em segundo lugar, durante o primeiro ano do governo Lula, em meio a controvrsias e ambiguidades, o diagnstico que inspirava as iniciativas governamentais em relao questo tnico-racial, como citamos abaixo, coincidia com as expectativas da maioria dos grupos e entidades negras espalhados por todo o Pas. Alm disso, o surgimento, no mbito do Ministrio da Educao, da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad) , em 2003, indicava a importncia que o tema da diversidade tnico-racial assumiria na rea da poltica social do governo Lula. Os dados estatsticos disponveis apontam para um agudo quadro de desigualdade entre os grupos raciais que compem a sociedade brasileira. O modelo de relaes raciais no Brasil materializa, em toda a sociedade, um tipo de segregao amparada nos preconceitos e nos esteretipos, disseminados e sustentados pelas instituies sociais, dentre elas a escola. Essa questo transborda a esfera individual e constitui-se em fato presente no cotidiano da populao negra. A cor explica parte significativa da variao encontrada nos nveis de renda, educao, sade, moradia, trabalho, lazer, violncia, etc. O racismo representa um elemento que tem determinado as desigualdades entre negros e brancos na sociedade brasileira, contrariando noes de cidadania, democracia e Direitos Humanos proclamadas pelo Estado. (Relatrio de Gesto da Secad, 2004). Tudo levava a crer que no interior do governo vrios olhares e ouvidos estavam aten3 2

tos ao debate sobre a questo racial na sociedade brasileira, que j naquele momento ganhava mais espao na esfera pblica. Esse momento mostra-se profcuo para a reconfigurao de aes voltadas superao das desigualdades entre negros, indgenas e brancos na sociedade, visto que o Estado brasileiro signatrio de vrios tratados e convenes internacionais que advogam a eliminao da discriminao tnica, racial e de gnero (Relatrio de Gesto da Secad, 2004). A preocupao com a educao e a escola ganha importncia nos vrios pronunciamentos governamentais, como forma de superao do grave quadro de iniquidade social com base nas diferenas raciais. Muitos estudos confirmam que a questo racial tratada, na escola, de maneira displicente, com a propagao de aspectos legitimadores do status quo, o que inibe a formao de uma identidade negra. O cotidiano escolar apresenta-se, desse modo, marcado por prticas discriminatrias que se refletem nas expectativas negativas sobre as possibilidades intelectuais dos(as) negros(as), o que tem um enorme impacto no rendimento dos estudantes afrodescendentes (Relatrio de Gesto da Secad, 2004). Com o surgimento da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (Seppir), que tem como funo precpua transversalizar a questo da diversidade tnico-racial em todos os ministrios, as promessas governamentais ganharam a possibilidade de se materializar de forma institucional. Assim, no primeiro ano do primeiro mandato do governo Lula, as aspiraes dos movimentos sociais identitrios em geral e, 23 Revista Direitos Humanos

2. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educao nacional, para incluir no currculo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira, e d outras providncias. 3. Embora tenha surgido em 2003, a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad) obteve sua condio de nova unidade administrativa do Ministrio da Educao (MEC) em 2004, por meio do Decreto n 5.159, de 28 de julho de 2004. 4. A Lei n 10.678, de 23 de maio de 2003, criou a Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial da Presidncia da Repblica (publicada no DOU em 26 de maio do mesmo ano).

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Interseccionalidade de direitos como fundamento do antirracismo diferencialista

em especial, do movimento negro, ganharam a cena do debate pblico com intensidade, gerando expectativas sobre formulaes de polticas pblicas que, ao mesmo tempo, criassem um novo desenho institucional e enfrentassem as iniquidades sociais construdas com base nas diferenas inatas. Mas, de alguma forma, isso no se deu a contento. Ento, a questo a ser respondida a seguinte: o que tem inviabilizado o aprofundamento da ao governamental no tratamento das gravssimas desigualdades sociais brasileiras que colocam, com base nos indicadores sociais, negros e brancos em plos opostos? Uma resposta possvel a ausncia de insterseccionalidade no atendimento entre as demandas por redistribuio e as demandas por reconhecimento que se encontram de forma segmentada nos vrios tipos de direitos que compem os Direitos Humanos. Assim, a luta pelo pleno estabelecimento dos Direitos Humanos no Brasil , antes de tudo, uma luta antirracista e democrtica. referncIas BRAH, A. Diferena, diversidade, diferenciao. Cadernos Pagu (26), janeiro-junho de 2006, pp. 329-376. Brasil: o estado da nao. Braslia: Ipea, 2005. Brasil: o estado da nao. Braslia: Ipea, 2006. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1992. 217p. ____________. Liberalismo e democracia. So Paulo: Editora Brasiliense, 1988. 100p. CARVALHO, Jos Murilo. Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001. CURY, Vnia M. e FILHO, Almir P F. Instituies, agentes sociais e desenvolvimento econ. mico: Rio de Janeiro, 1890-1945. Revista Estudos do Sculo XX Empresas e Empresrios. Publicao do Centro de Estudos Interdisciplinares do Sculo XX. Coimbra, Portugal, 2004. DEFOURNY, Vincent. Palestra sobre a Conveno para a Proteo e Promoo da Diversidade das Expresses Culturais. Seminrio Brasil-Canad sobre a Diversidade Cultural. Braslia, 27 de maro de 2007. FERNANDES, A. S. A. Polticas pblicas: definio, evoluo e o Caso Brasileiro. s/d. Mimeo. GUIMARES, A. S. A e MACEDO, Mrcio. Dirio Trabalhista e Democracia Racial Negra dos Anos 1940. Dados Revista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 1, 2008, p. 143 a 182. IPEA. Polticas sociais: acompanhamento e anlise (1995-2005). Edio Especial, n 13, 2007. KRISCHKE, Paulo. Governo Lula: polticas de reconhecimento e de redistribuio. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Cincias Humanas. n. 47, outubro de 2003. MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. MATA-MACHADO, B. N. Direitos Humanos e direitos culturais. 2007 (mimeo). MELO, Marcus Andr B. C. Anatomia do Fracasso: Intermediao de Interesses e reforma da Poltica Social na Nova Repblica. Dados Revista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, v. 36, n.3, p. 119-164, 1993. PAES DE BARROS, Ricardo. Desigualdade e Pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitvel. Revista Brasileira de Cincias Sociais. v. 15, n. 42, fevereiro/2000, p. 122-142. SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e Justia. A poltica social na ordem brasileira. Rio de Janeiro, Campus, 1979. SILVRIO, Valter R. Affirmative action in the United States and India: a comparative perspective. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP v. 18, p. 307-312, 2006. , TEIXEIRA, Sonia F. Poltica social e democracia: reflexes sobre o legado da seguridade social. Cadernos de Sade Pblica. RJ, 1(4): 400-417, out. /dez., 1985. VARGAS, Getlio. A Nova Poltica do Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 19381947, 11v. VELLOSO, Carlos M. da S. Dos direitos sociais na constituio do Brasil. Texto bsico de palestra proferida em Madri, Espanha, na Universidade Carlos III, sob o patrocnio desta e da ANAMATRA Associao Nacional dos Magistrados do Trabalho, 2003. Mimeo. VIANNA, M. L. Teixeira. Em torno do conceito de poltica social: notas introdutrias, 2002, Mimeo.

24 Revista Direitos Humanos

Comunicao e

Direitos Humanos:giusePPe CoCCo Com graduao em Cincia Poltica pela universidade Paris VIII e ttulo de doutorado em Histria Social concedido pela universidade de Paris I (Pantheon-Sorbonne), Giuseppe Cocco exerce atualmente a carreira de professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. editor de vrias revistas (como Lugar Comum e Multitudes) e em 2005 publicou, em parceria com Antonio Negri, o livro GlobAL: biopoder e lutas em uma Amrica Latina globalizada (Record:2005).

o Trabalho dos Direitos

Os Direitos Humanos so o conjunto de processos de luta pela dignidade humana. Joaqun Herrera Flores1

convocao da Conferncia Nacional de Comunicao (Confecom) pelo presidente Lula constitui pano de fundo extremamente concreto e instigante para uma reflexo poltica sobre a relao que pode ligar democratizao da comunicao e Direitos Humanos. Poderamos at dizer que um dos temas de deliberao constituinte da Confecom deveria visar a responder duas perguntas: (1) Qual poltica de comunicao adequada a uma poltica dos Direitos Humanos? (2) O que um direito humano comunicao?

a

25 Revista Direitos Humanos

1. Com essa epgrafe, queria homenagear a memria do amigo Joaquin Herrera Flores, militante dos Direitos Humanos que muito contribuiu para a renovao do pensamento no meio jurdico europeu e brasileiro. Sua paixo pela vida nos servir de referncia potente.

artigo

comunicao e direitos humanos: o trabalho dos direitos valores que lhe permitem impor o mercado como forma universal. A universalizao dos Direitos Humanos como mera abstrao individualista torna universal apenas o mercado e seu direito de propriedade, que, na realidade, os contradiz e suspende. As consequncias polticas so conhecidas. Relegados a uma existncia meramente formal, os Direitos Humanos se transformam em elemento retrico de legitimao das novas formas de poder e excluso, seja quando acompanham os avies dos exrcitos imperiais que bombardeiam os palestinos em nome da paz; os afegos em nome da luta contra o terrorismo; os iraquianos em nome da democracia; os ex-iugoslavos em nome da tolerncia, seja quando sustentam as operaes de polcia destinadas a manter a misria dentro de seus limites democrticos, atrs dos muros das favelas. Aqui, a retrica dos Direitos Humanos se articula com aquela do fim da Histria: no haveria por que, nem como, se opor a sua soberania. Nas novas formas de soberania imperial, paz e guerra se misturam: o exrcito vira polcia, como nos territrios ocupados da Palestina ou do Iraque, e a polcia vira exrcito, como nas favelas cariocas. Nessa nova condio, o peso crescente do discurso dos Direitos Humanos se acompanha de um nmero cada vez maior de homens sem direitos. No h como fugir desse paradoxo sem transpor suas bases: o humanismo ocidental e o marco jurdico liberal. Assim, uma concepo material, social e no-individualista dos Direitos Humanos passa, necessariamente, pelo que Primo Levi definiu como a Vergonha de ser um ho7 mem o ponto de partida a indignao e a resistncia diante do que os homens fazem! A indignao, a vergonha de ser um homem o momento constituinte, ao mesmo tempo, dos direitos e dos homens. No se trata de pleitear direitos naturais e individuais que descenderiam de uma essncia transcendental do homem. a luta contra a desigualdade e pela liberdade que transforma os homens e constitui os direitos. O que interessa so os homens que resistem e, assim, criam e produzem materialmente seus direitos e, nessa exata medida, constituem outro mundo e tambm outro homem.

a vergonHa de ser um Homem Em 1991, no meio da globalizao de um neoliberalismo que afirmava que a histria tinha chegado a seu fim, Flix Guattari e Gilles Deleuze publicaram seu ltimo livro escrito em parceria: O que a Filosofia?2 O livro um manifesto de resistncia3 e se prope a oferecer uma srie de conceitos e ferramentas para uma filosofia que eles definem como uma prtica: processo de constituio dos homens livres, de um novo povo e de uma nova terra por vir4 . Num captulo dedicado ao conceito de Geofilosofia, eles desenvolvem crtica pioneira da globalizao neoliberal e de sua retrica. Nele encontramos uma afirmao emblemtica para nossa reflexo: Os Direitos Humanos no 5 nos faro abenoar o capitalismo . O desenvolvimento seguinte explicita e aprofunda: com muita ingenuidade ou at malandragem que uma filosofia da comunicao pretende restaurar uma sociedade dos amigos ou at dos sbios por meio da formao de uma opinio universal como consenso capaz de moralizar as naes, os Estados e o mercado6 . A crtica dos Direitos Humanos visa imediatamente ideia de uma comunicao que funcionaria como o instrumento neutral de implementao, por meio dessa nova retrica do poder, do consenso em torno da soberania do mercado. Com efeito, a crtica se dirige contra a mistificao liberal e neoliberal do discurso dos Direitos Humanos e do humanismo eurocntrico ocidental que lhe est embutido. De maneira afirmativa, isso significa dizer que no possvel pensar os Direitos Humanos sem uma crtica do capitalismo e dos 26 Revista Direitos Humanos

a nova centralIdade da comunIcaoNo terreno da comunicao, a ambiguidade do discurso neoliberal sobre os Direitos Humanos aparece nitidamente: a dimenso formal da chamada liberdade de imprensa serve, na realidade, para defender uma grande mdia televiso, rdios e imprensa que associa concentrao econmica e total falta de pluralismo. No caso do Brasil, temos um diagnstico alarmante: no apenas cada grupo da comunicao desenvolve uma nica linha editorial de massacre sistemtico do governo Lula e de suas reformas como no h, praticamente, nenhuma nuance entre os vrios grupos. Ao mesmo tempo, qualquer tentativa de discutir a democratizao das concesses de rdio e de teledifuso, a concentrao da propriedade e dos recursos de propaganda, estatais e privados, ou de implementar novos marcos de regulao, como o foi com a

2. Quest-ce que la philosophie? Les ditions de Minuit, Paris, 1991. Traduo para o portugus do Brasil, O que a filosofia? ed. 34, So Paulo, 2000. Nossas citaes seguiro a edio francesa. 3. bem nesses termos que eles explicitam: Os livros de Filosofia e as obras de arte () tm em comum (o fato) de resistir, resistir morte, servido, ao intolervel. 4. Nas pginas 9 e 10, Deleuze e Guattari definem a filosofia como um atletismo generalizado: o agn. 5. Ibid. p. 103. 6. Ibid. 7. isto um homem? Rocco, Rio de Janeiro, 1988 (Se questo un uomo, Einaudi, Torino) 1958. Deleuze e Guattari, justamente, recorrem a Primo Levi na construo de seu deslocamento.

No terreno da comunicao, a ambiguidade do discurso neoliberal sobre os direitos humanos aparece nitidamente: a dimenso formal da chamada liberdade de imprensa serve, na realidade, para defender uma grande mdia que associa concentrao econmica e total falta de pluralismoAncinav, rotulada como ameaa ao Direito Humano que a liberdade de opinio. Na realidade, por trs da postura antidemocrtica da mdia oligopolista, h uma grande fraqueza determinada pelo esgotamento do modelo sobre

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