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SumárioMúsica que agrega 40Keith Swanwick ENTREVISTA
Gestão de qualidade do ensino musical 35Fernando Stanzione Galizia ARTIGO
Monitoramento de processo - ferramenta para a qualidade em projetos socioculturais 35Maria Helena Berlinck Martins ARTIGO
A presença da educação musical em espaços não-formais: um campo de possibilidades 30Eduardo Conegundes de Souza ARTIGO
Dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de Paulo Freire e a etnomusicologia 05Samuel M Araujo ARTIGO
Uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em “Orquestras Brasileiras” 20Joel Luis Barbosa RELATO DE EXPERIÊNCIA
O desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica 30Daniela Emilena Santiago ARTIGO
O método Dalcroze na prática do canto-coral 30José Fortunato Fernandes ARTIGO
Camargo Guarnieri e o ensino musical 30Ana Lúcia Kobayashi ARTIGO
O musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no NEAE e no CIEP do morro do Borel (RJ) 15Sidney Mattos RELATO DE EXPERIÊNCIA
Didática de ensino da música e prática pedagógica IV: reflexões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em música 10Maria Cecília de Araujo Rodrigues RELATO DE EXPERIÊNCIA
Manual ilustrado dos instrumentos musicais 45Elizabeth Carrascosa Martínez RESENHA
Conselho Editorial
Editoras
Susana Kruger (Coordenadora)
Cassiana Vilela
Renata Truzzi
Membros
Alessandra Costa
Francisco Rodrigues
Henrique Oliveira
Gestor da Revista
Leonardo Assis (gestão da implementação e site, etc -
especificar função)
Equipe de Apoio
Fernanda Favaro (especificar função)
Juliana Santos (especificar função)
Rodrigo Masuda (especificar função)
Edelci Amorim (especificar função)
Implementação Tecnológica
Amanda Vasconcellos Schustra (conferir o nome)
Consultora
Sueli Mara Soares Pinto Ferreira, Universidade de São Paulo,
Brasil
Associação Amigos do Projeto Guri
Organização Social de Cultura
Av. Francisco Matarazzo, 682 Água Branca
São Paulo SP Brasil CEP: 05001 000
Submissões e contato
Tel/ fax 55 11 3874 3355 ramal 371
revista@projetoguri.org.br
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ENTREVISTA
Durante a semana em que esteve no Brasil a convite da Associação Amigos do Projeto
Guri (AAPG), o educador-emérito da Universidade de Londres, keith Swanwick, ofereceu
conhecimentos importantes aos profi ssionais e participantes do III Seminário da
organização, realizado em novembro de 2009. Swanwick também teve a oportunidade de
conhecer mais sobre o trabalho musical desenvolvido pela AAPG em São Paulo. A seguir ele
comenta sobre as impressões que levou da visita ao Brasil, sobre o potencial da música para
mudar vidas de crianças e jovens que a praticam e sobre o olhar dos educadores e políticos
a respeito do tema.
AAPG - A partir de que momento de sua trajetória você percebeu que a música podia ser
determinante como recurso de educação na vida dos alunos? Quais as experiências práticas que o
levaram a essa conclusão?
Keith Swanwick - Meu início na área musical foi um tanto “bagunçado”, como acontece com
a maioria das pessoas nessa área. Toquei em bandas, estudei trombone e, posteriormente,
estudei música na Academia de Londres. Iniciei então carreira educacional, lecionando em
escolas secundárias. Mais tarde, comecei a ministrar seminários com base na experiência do
ensino e do acompanhamento de grupos musicais em educação. O que percebo é que, quando
começamos a trabalhar, é fácil visualizar a importância da música para os jovens. Porém,
conforme o tempo passa, vamos nos esquecendo dessa importância – tanto os alunos como
os professores. É como se as sensações se nivelassem e acabamos perdendo aquele sentido
mágico da música. Então, uma das coisas que procuro fazer nos seminários e reacender esse
senso mágico da música nas pessoas. Fazê-las resgatar esse valor e levar isso de volta àqueles
com quem trabalham.
AAPG - Como é possível trazer essa “mágica” às crianças que têm problemas sociais?
KS - Não existem respostas fáceis para isso. Mas acho que é preciso deixar a música disponível
de uma forma que interesse a eles. É preciso aproximá-los dela. Se a música for apenas um
recurso a mais, eles podem simplesmente escolher não praticá-la. Então é preciso oferecer
possibilidades de interesse, de se fazer um bom trabalho com a música. Precisamos saber o
que podem trazer para o aprendizado, mas precisamos também fazer mais do que isso. Não
podemos ensinar aquilo que eles já fazem. Devemos, na verdade, acrescentar valor a essas
experiências, estendendo o que fazem e tornando isso mais visível, desenvolvendo as direções
para onde caminham.
Música que agrega
O educador musical Keith Swanwick em visita à AAPG, quando concedeu
entrevista à revista Espaço Intermediário.
Foto
: Arq
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AA
PG
por juliana Winkel
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 10-12, maio, 2010.
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ENTREVISTA
AAPG - Como o abordagem pedagógica (T)EC(L)A1 contribui para de vencer as dificuldades de
aprendizagem e desempenho na música?
KS - Veja dessa forma: se você leciona música em apenas uma direção, tudo que as pessoas
farão é ouvir e reproduzir aquilo da maneira como aprenderam. Mas temos que nos lembrar
de que cada pessoa é diferente da outra e tem suas próprias possibilidades. A palavra original
para denominar esse modelo em inglês, C(L)A(S)P2, significa “agregar”, “manter alguma coisa”.
Tem esse significado em si mesma. Acho que se deve ter em mente a multiplicidade de
possibilidades. O melhor meio de aprender música, para uma pessoa, pode não ser o melhor
para outra. Se você tem uma banda, algumas pessoas vão adorar isso e outras vão odiar o
barulho – chamarão assim, de barulho. Ao invés de ensinar um instrumento da mesma forma
para todos, ou se focar apenas em teoria musical, é importante achar um meio de integrar tudo
isso de acordo com as diferentes pessoas. Até mesmo uma única pessoa oferece uma gama
diferente de possibilidades de aprendizado. É disso que fala o modelo C(L)A(S)P: de se estar
atento a essa multiplicidade. Aos poucos, o aprendizado os fará pensar também em si mesmos,
e não apenas no instrumento que estão estudando. É dessa forma que a música educa, agrega
e inclui. Ela ajuda a abrir mais janelas, mesmo quando você apenas a ouve, antes mesmo de
tocar algum instrumento.
AAPG - Em que áreas de vida do aluno o ensino musical pode ter influência positiva?
KS - Não se pode precisar exatamente. Mas acredito que, em qualquer área em que ele
se dedique e com a qual se identifique, e na qual se torne competente, pode desenvolver
esse senso de valorização pessoal. Eles podem não estar se desenvolvendo plenamente no
ambiente escolar, por exemplo, mas estão se desenvolvendo em várias habilidades por meio
da música. Acho que fortalecer a autoconfiança é um grande passo. A música, em particular,
auxilia na questão da expressão emocional, em direcionar sensações até então abstratas. Esse
efeito é algo muito difícil de mensurar, mas é também plenamente percebido.
AAPG - Você acha importante conhecer a vida do aluno, em especial sua situação social, para
desenvolver esse trabalho?
KS - Acho importante saber como o aluno vê a música, qual sua afinidade e com o que se
identifica para aprender. Pode ou não ser importante saber sobre sua vida pessoal. É preciso
saber até onde se pode ir. Para ajudar uma pessoa a sair de um rio, é preciso manter pelo
menos um dos pés na margem. Se você coloca os dois pés no rio, não conseguirá ajudá-lo.
AAPG - Acredita que, de modo geral, a sociedade reconhece a importância do ensino musical
para o desenvolvimento pleno dos estudantes? Como têm visto a receptividade desse tema pela
sociedade ao longo dos anos?
KS - A experiência da última década mostra que os investimentos têm variado, em diferentes
níveis da comunidade, inclusive de acordo com a orientação política do lugar ou do momento.
Um dos problemas do investimento nesse sentido é que não existe uma comprovação exata
1 O Modelo (T)EC(L)A foi criado pelo autor em 1979, e apresentado em parâmetro para a realização de atividades musicais. As letras ECA significam execução, composição e apreciação e as letras (T) e (L) sig-nificam técnica e literatura. Estão em parênteses por serem subsidiárias às demais. Vide SWANWICK, Keith. Aba-sis for music education. London: Routledge, 1979.
2 C(L)A(S)P: C Composition, (L) litera-ture, (A) Audition, (S) Skiel acquisi-tion, P Performance. (SWANWICH, 1979, p. 45)
Keith SwanwicK, Música que agrega.
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ENTREVISTA
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 10-12, maio, 2010.
dos efeitos dele para investidores. Não é como tomar penicilina, é um processo complexo de
efeitos a longo prazo. No Reino Unido, por exemplo, vimos um aumento de interesse nos últimos
anos. Mas continuo considerando que existem muitas possibilidades de desenvolvimento,
especialmente na área social, ligadas a essas ações. Uma das coisas mais importantes é
convencer a classe política da importância delas e da importância de eles próprios estarem
envolvidos na causa, se sentindo parte disso.
AAPG - Qual a importância, na sua opinião, de projetos como o Guri, que ensinam música e, ao
mesmo tempo, têm na música uma ferramenta para promover o desenvolvimento social?
KS - Acho muito importantes, pois são uma tentativa de reconhecer e combater problemas
sociais graves. Minha postura é a de que devemos incentivar a cultura da música no dia-a-
dia, pois se o sistema em geral reconhecer essa linguagem, ela poderá também se tornar um
instrumento de comunicação em termos sociais, que possibilitará aproximações. Não acho
que a música seja apenas um aspecto da sociedade. Ela é mais do que isso, tem a ver com a
liberdade de expressão e de escolha da maneira como as pessoas querem se desenvolver. Ela
oferece uma série de possibilidades. Então, o principal é promover o encontro musical dentro
da coletividade, de forma que as pessoas possam trocar conhecimentos e experiências e,
depois, levar isso de volta aos lugares onde vivem.
AAPG - Qual a sua opinião sobre o trabalho desenvolvido no Projeto Guri, com base no que pôde
conhecer durante esta passagem pelo Brasil?
KS - Estou muito impressionado com o trabalho do Guri, que reúne musicistas competentes
e comprometidos com o desenvolvimento dos estudantes. Infelizmente, não pude conhecer
a fundo os locais de ensino nesses poucos dias, ainda mais pelo fato de ser um projeto que
atua em uma área geográfi ca tão extensa, mas pude ver que existe um real comprometimento
profi ssional com a causa. Minha impressão pessoal é que, se você tem as pessoas certas
cuidando das tarefas certas, e comprometidas com isso, já tem 99% do que você precisa. Um
projeto dessa magnitude é também uma grande responsabilidade.
AAPG - Qual sua impressão sobre a cultura musical do Brasil de forma geral?
KS - Já estive no Brasil algumas vezes, visitando cidades como Salvador, Porto Alegre, Belo
Horizonte e Curitiba, além de São Paulo. Duas coisas que posso assinalar é que, desde a década
de 1970, quando o Brasil era controlado pelos militares, as mudanças são enormes. Agora é
possível ter um maior contato com a diversidade social, porque tudo é mais aberto. É mais
possível fazer coisas em conjunto, fazer projetos funcionarem. Mas uma coisa que não mudou
é a disposição das pessoas em se comunicar. Sempre gostei muito de trabalhar aqui porque as
pessoas são responsáveis, elas realmente fi cam em contato, se interessam e acompanham o
que é feito. Discutem, conversam e riem também. Essa é uma das boas características do povo
brasileiro, sempre a mesma em todas as vezes em que estive aqui.
Keith Swanwick foi um dos convidados do III Seminário da AAPG,
que reuniu mais de 400 pessoaspara discutir a Gestão de Qualidade
em Projetos Socioculturais.
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ARTIGO
RESUMO
Este texto tem como objetivos abordar formas
de buscar a qualidade do ensino musical em
projetos sociais, não perdendo de vista o objetivo
dessa prática – possibilitar o desenvolvimento
social dos estudantes – e examinar propostas
de indicadores de resultado para a avaliação
da qualidade desse ensino. O texto apresenta o
conceito de Gestão da Qualidade Total, utilizado
no mundo corporativo, traçando paralelos
entre esse conceito e o trabalho realizado por
educadores musicais. Nas considerações finais,
o artigo aponta a necessidade de formação
específica dos educadores musicais para o
trabalho docente em música; a contribuição,
para o trabalho dos educadores, do conceito de
aprendizagem significativa; e a possibilidade de
construção dos indicadores de desempenho do
ensino musical a partir da capacidade de cumprir
o objetivo ao qual ele se destina, além do impacto
da aprendizagem musical na vida dos alunos.
ABSTRACT
The aim of this text is to discuss ways of promoting
quality in music teaching within social projects
without losing sight of the purpose of this practice
– to make the social development of the students
possible – and to discuss proposals for outcome
indicators for use in evaluating the quality of this
teaching. The text presents the concept of Total
Quality Management, utilized in the business
world, tracing parallels between this concept
and the work carried out by music educators. In
the final considerations, a need is identified with
regard to specific training for music educators
in the work of teaching music; the contribution
made to the work of the educators through
the concept of meaningful learning; and the
possibility of constructing indicators for music
teaching performance based on the ability of
the same to fulfill the purpose for which they
are designed, as well as the impact that learning
music has on the lives of the students.
PALAVRAS-CHAVE
Educação musical. Gestão da qualidade.
Profissionalização docente. Saberes do
docente. Aprendizagem significativa.
KEYWORDS
Musical education. Quality management.
Professional teaching. Teacher knowledge.
Meaningful learning.
FERNANDO STANZIONE GALIZIA
Professor Assistente da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – Membro do Conselho de
Administração da Associação Amigos do Projeto Guri (AAPG) / Mestre em Música, pela UFRGS,
área de concentração: Educação Musical, pela UFRGS. e-mail: fernandogalizia@gmail.com
Gestão de qualidade do ensino musical1
1 Texto apresentado na mesa redon-da “Gestão de qualidade do ensino musical”, durante o III Seminário da Associação Amigos do Projeto Guri, evento realizado entre os dias 19 e 21 de novembro de 2009 na cidade de São Paulo/SP
Quality management in music teaching.
FeRnanDO StanZiOne GaLiZia, Gestão de qualidade do ensino musical.
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ARTIGO
O tema gestão de qualidade do ensino musical requer, primeiramente, que pensemos no
significado da palavra qualidade, termo cujo significado todos imaginam, mas ainda difícil de
se definir com exatidão. Se realizarmos uma busca sobre essa palavra, encontraremos diversas
definições, todas interessantes, porém diferentes entre si. Essa impressão é corroborada por
autores como Longo (1996):
Qualidade, enquanto conceito, é um valor conhecido por todos e, no entanto, definido de forma
diferenciada por diferentes grupos ou camadas da sociedade — a percepção dos indivíduos
é diferente em relação aos mesmos produtos ou serviços, em função de suas necessidades,
experiências e expectativas (LONGO, 1996, p. 8).
A autora apresenta, no mesmo texto, o conceito de gestão da qualidade total (GQT), que julgo
se adequar ao trabalho de educação musical em projetos de cunho social. A GQT é uma nova
filosofia gerencial que exige mudanças de atitudes e de comportamento. Essas mudanças visam
o comprometimento com o desempenho, a procura do autocontrole e o aprimoramento dos
processos. A GQT valoriza o ser humano no âmbito das organizações, reconhecendo sua capacidade
de resolver problemas no local e momento em que ocorrem, buscando permanentemente a
perfeição. Segundo a autora, ela precisa ser entendida como uma nova maneira de pensar, realizada
antes de se agir e produzir, implicando em uma mudança de postura gerencial e em uma forma
moderna de entender o sucesso de uma organização (LONGO, 1996).
Dessa forma, os pontos principais da GQT seriam o trabalho em equipe permeando toda a
organização; as decisões baseadas em fatos e dados; a busca constante da solução de problemas
e diminuição de erros; e o foco no cliente. Esse último ponto – o foco no cliente – é particularmente
interessante. Quem é o cliente de um projeto de educação musical de cunho social? Tornando a
pergunta mais abrangente, quem é o “cliente” de qualquer instituição de ensino, musical ou não?
Duas respostas são possíveis, de acordo com a linha de raciocínio que se segue. A primeira diz que
o cliente é aquele que paga e, dessa forma, os clientes de uma instituição de ensino são os pais
ou responsáveis pelos alunos. No caso de uma Organização Social de Cultura (OS), nessa linha de
raciocínio, os clientes seriam as entidades mantenedoras, públicas ou privadas2.
Outra forma de pensar seria entender como cliente de uma instituição aquele que consome o
“produto” dessa instituição. No caso de uma instituição de ensino, quem “consome” esse “produto”
(ensino) é o aluno, que aprende. Essa discussão é incomum no meio corporativo, pois, no caso de
uma empresa, quem consome também paga e, conseqüentemente, mantém a empresa3. Adoto
aqui essa segunda linha de raciocínio, entendendo como cliente de qualquer instituição de ensino
– musical ou não – o aluno. Essa posição é corroborada por diversos autores da área de educação,
como Abreu e Masetto (1980), por exemplo. Segundo esses autores, “entendemos que toda e
qualquer instituição de ensino, qualquer que seja seu nível (...) existe em função do aluno (...) e da
sociedade na qual se insere” (ABREU e MASETTO, 1980, p. 6).
Isso posto, voltemos à GQT. Como dimensões básicas, essa filosofia visa a qualidade intrínseca,
o custo, o atendimento, a moral, a segurança e a ética. Essas dimensões, embora pensadas para o
2 Para mais detalhes sobre esse assun-to, ver GALIZIA, KRUGER e KORSOKO-VAS, 2009.
3 Poderia se discutir ainda se o cliente de uma empresa são os consumidores de seus produtos ou os acionistas, mas essa discussão foge aos objetivos desse artigo.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 13-24, maio, 2010.
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ARTIGO
mundo corporativo, se adequam perfeitamente ao universo das instituições de educação. Voltemos
nossas atenções a três delas: a qualidade intrínseca, a moral e a segurança. A qualidade intrínseca
é entendida como a capacidade do produto ou serviço de cumprir o objetivo ao qual se destina.
A moral é uma dimensão associada aos funcionários da instituição, no que tange a sua motivação,
treinamento e engajamento no trabalho. Por fim, a segurança é associada ao cliente – no caso, o
aluno – e, mais especificamente, ao impacto do serviço prestado na vida desse cliente.
Como essas três dimensões, aliadas ao foco no aluno, se relacionariam dentro de uma
instituição de ensino? Vejamos a figura abaixo:
Figura 1 – As dimensões da GQT relacionadas entre si em uma instituição de ensino
De acordo com a figura acima, podemos pensar que os funcionários possuem uma atuação
direta junto ao o cliente (aluno) e essa atuação é avaliada em duas frentes: por meio do impacto
do serviço prestado na vida desses clientes e da capacidade do serviço de cumprir o objetivo
ao qual se destina. Mas se já sabemos (ou assumimos) quem são os clientes de uma instituição
de Educação Musical, então quem seriam os funcionários atuando diretamente junto ao aluno?
Eles são chamados de educadores musicais. Mas quem são de fato? Porque são chamados
dessa forma? O que significa ser um educador musical? Qual a diferença entre um educador
musical e um músico? Vamos refletir sobre essas questões por um instante.
Em primeiro lugar, pensemos no local de atuação de um músico, constituído dos diversos
espaços de apresentação musical (teatros, bares e outros). Não são os mesmos locais de
atuação do educador musical, que atua, primordialmente, em salas de aula.
Em segundo lugar, que ações são desenvolvidas nesses espaços? Os músicos, em seus
locais de atuação, desenvolvem primordialmente ações artístico-musicais – em outras palavras,
eles tocam (cantam, compõem, etc.). Por sua vez, em seus respectivos locais de atuação, os
educadores musicais promovem ações pedagógico-musicais – eles ensinam música. Quando
tocam ou compõem, esses profissionais são sempre guiados pela ação pedagógica, fazendo-o
como exemplo para os alunos ou como prática para determinado conteúdo.
Funcionários (motivação,
treinamento, engajamento)
Clientes (impacto
do serviço prestado)
A capacidade do produto ou serviço de
cumprir o objetivo ao qual se destina
ALUNOATUAÇÃO
AVALI
AÇÃO
AVALIAÇÃO
FeRnanDO StanZiOne GaLiZia, Gestão de qualidade do ensino musical.
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ARTIGO
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 13-24, maio, 2010.
Por fim, pensemos no objeto de trabalho de cada profissional. O músico possui como
objeto de trabalho a música – ele sobe ao palco com o objetivo de gerar música de alguma
forma. E o educador musical? Ele entra na sala de aula para gerar música? A resposta é não;
esse profissional entra em sala de aula com o objetivo de gerar aprendizado sobre música
junto a seus alunos. Essas ideias podem ser melhor visualizadas na tabela abaixo:
Tabela 1 – Diferenças entre músicos e educadores musicais
Músicos Educadores Musicais
Local de atuação Espaços de apresentação musical Sala de aula
Ação Artístico-musical Pedagógico-musical
Objeto de trabalho Música Aprendizagem dos alunos
A partir do exposto acima, podemos chegar a três conclusões. A primeira diz respeito ao fato
de o músico e educador musical serem profissionais diferentes, embora sua prática profissional
exija alguns saberes em comum. Em outras palavras, ambos lidam de forma mais ou menos direta
com música, porém em locais, de maneira e com objetivos diferentes. Traçando uma comparação
grosseira, seria como a diferença entre um dermatologista e um oftalmologista, por exemplo.
Embora ambos sejam médicos e lidem com a saúde dos pacientes, possuem atuações profissionais
distintas.
A segunda conclusão é decorrente da primeira. Por possuírem profissões diferentes, esses
profissionais – músicos e educadores musicais - precisam de formações diferentes. Não se
pode imaginar que pessoas que atuam de forma diversa, em espaços diversos e com objetivos
diversos possam receber a mesma formação, ou simplesmente saber as mesmas coisas.
Por fim, a terceira conclusão a que chego é que ambas as profissões podem ser exercidas
pelo mesmo profissional, desde que ele entenda que terá uma especialização dupla. Não
bastará a ele ser um músico para atuar como educador musical ou o inverso: ele terá que
buscar duas formações distintas, embora com algumas coisas em comum.
Essas conclusões estão em sintonia com o movimento de profissionalização da docência
e formação de professores que atinge a educação (GAUTHIER et al., 1998; GONÇALVES PINTO,
2004). Esse movimento acredita que, negando-se a reconhecer a existência de conhecimentos
inerentes ao exercício docente, nega-se o status de profissão a essa atividade, relegando-a a
categoria de semiprofissão. Em outras palavras, negando-se o status de profissão à docência,
assume-se que a atividade de professor não exige nenhum conhecimento próprio ou
específico. Porém, segundo diversos autores da educação e também da educação musical, a
docência tem, sim, especificidades e conhecimentos próprios, o que acarreta a necessidade
de formação específica dos profissionais que atuam nessa atividade (CALDEIRA e SANTIAGO,
2004; ISAIA e BOLZAN, 2004).
17
ARTIGO
O movimento de profissionalização docente combate o pensamento, comum tanto dentro
das instituições que contratam o profissional como entre muitos dos próprios profissionais
de que “quem sabe, automaticamente sabe ensinar” (MASETTO, 2003, p. 13). Para Anastasiou
(2002), já que instituição não exige desse docente os elementos da formação inicial para a
docência, deveria prover meios específicos para que o profissional preenchesse essa lacuna
em serviço. No entanto, segundo a autora, essas iniciativas não ocorrem nem por parte das
instituições, nem por parte dos professores individualmente.
Temos, assim, atuando nas salas de aulas, profissionais competentes em suas áreas de atuação,
com pleno domínio dos saberes científicos de suas áreas, sendo desafiados a constituírem-se como
professores, a assumirem-se nessa nova profissão, que tem estatuto, características, compromissos
e procedimentos próprios (...) ficam, então, desconsiderados os elementos constitutivos dessa
categoria profissional: o ideal, os objetivos, os compromissos pessoais e sociais, a regulamentação
profissional, o conceito de profissão e de profissional, o código de ética, as participações nas
entidades de classe, que são fundamentais para exercer-se com competência uma profissão, o que
possibilitaria um reconhecimento social da profissão (ANASTASIOU, 2002, p. 176).
O movimento de profissionalização docente assume então que, para se ensinar algo, é preciso
um conjunto de conhecimentos diferenciados em relação à área de atuação – no caso, música. Esse
discurso gera uma dicotomia entre o Músico e o Educador Musical, no sentido de que uma pessoa
não poderia ser as duas coisas. A posição que assumo aqui, já afirmada anteriormente, é que, no
caso específico da área de música, é possível sim que uma mesma pessoa atue como músico e
como educador musical, desde que assuma o fato de que são duas profissões diferentes com alguns
saberes em comum e busque formações distintas e condizentes com sua atuação.
Quando falamos na formação dos educadores musicais, citamos conhecimentos específicos para
a docência utilizando o termo “saber”, sem, no entanto, o definir. Esse termo possui três concepções
distintas, porém com pontos em comum. São eles a subjetividade, o juízo e a argumentação. Na
concepção de saber como subjetividade, ele seria equivalente a um tipo de certeza subjetiva,
produzida pelo pensamento racional, podendo assumir duas formas: uma intuição intelectual ou
uma representação intelectual, resultado do raciocínio. Já o juízo é contrário ao conceito anterior,
pois considera o saber como conseqüência de uma atividade intelectual - ou, explicitamente, um
julgamento a respeito dos fatos. Por fim, a argumentação define o saber como uma atividade
discursiva pela qual o sujeito tenta validar uma proposição ou uma ação. Tal validação é feita por
meio da lógica, da dialética ou da retórica. Nesse sentido, o saber não se reduz apenas a um juízo,
mas à capacidade de apresentar justificativas racionais para nossos argumentos.
Um ponto em comum entre as três concepções seria a exigência de racionalidade (GAUTHIER
et al, 1998; TARDIF, 2002; ARAÚJO, 2005). Para estes autores, o saber engloba os argumentos, os
discursos, as ideias, os juízos e os pensamentos que obedecem à exigência de racionalidade.
Porém, é preciso ressaltar que a racionalidade possui um grau de relatividade que exige
argumentação e justificativa para validá-la (PERRENOUD et al., 2002; ARAÚJO, 2005).
FeRnanDO StanZiOne GaLiZia, Gestão de qualidade do ensino musical.
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ARTIGO
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 13-24, maio, 2010.
A partir do exposto, Tardif e Gauthier (2002) apresentam a seguinte definição para o conceito de saber:
Chamaremos doravante de “saber” unicamente os pensamentos, as ideias, os julgamentos, os discursos,
os argumentos que obedecem a certas exigências de racionalidade. Eu falo ou ajo racionalmente quando
sou capaz de motivar, com auxílio de razões, declarações, procedimentos, etc., meu discurso ou minha
ação em face de um outro ator que me interroga sobre sua pertinência, seu valor, etc. Essa “capacidade”
(...) é verificada na argumentação, isto é, em um discurso em que apresento razões para justificar meus
atos. Essas razões são discutíveis, criticáveis e passíveis de revisão (id., p. 195).
Com essa definição em mente, podemos nos perguntar: o que um educador musical
precisa saber para realizar seu trabalho? Em primeiro lugar, de forma inegável, um educador
musical precisa saber música. Alguns profissionais diriam que a “quantidade” de música que um
educador precisa saber para dar aulas para crianças é menor do que a necessária a um músico
para desempenhar suas funções. Porém, apesar de o músico lidar de forma mais direta com
a música, o que exige dele um domínio exemplar dessa área de conhecimento, também um
educador musical precisa ter um amplo conhecimento acerca de música para poder ensiná-la.
Quanto mais conhecimento em sua área de atuação, melhor.
Mas apenas isso basta? Se sim, então quem tem conhecimento de música pode automaticamente
ensinar música, como afirma Masetto (2003). Alguns afirmam que, além de música, é necessário
“saber dar aulas”, ou “saber ensinar”, ou ainda “ter didática”. Como afirma Libâneo (2002):
Os alunos mais velhos comentam entre si: “Gosto dessa professora porque ela tem didática”. Os
mais novos costumam dizer que com aquela professora eles gostam de aprender. Provavelmente,
o que os alunos querem dizer é que essas professoras têm um modo acertado de dar aula, que
ensinam bem, que com elas, de fato, aprendem (LIBÂNEO, 2002, p. 8).
E quanto a “saber preparar aulas”? Quem já não teve um professor que conhecesse sua área de
atuação a fundo e que, além disso, ao falar possuísse uma “didática” incrível, mas cujas aulas eram sempre
“bagunçadas”, sem ligação umas com as outras ou ainda repetitivas, como se o professor não soubesse
prepará-las, pensar previamente no que iria ensinar em cada dia e de que forma? Saber “preparar aulas”
parece ser algo diferente de “saber dar aulas”, porém igualmente necessário a um educador.
Finalmente, se esse professor souber tudo isso e, ainda por cima, possuir uma larga experiência
no ensino de música, muitos considerariam ser esse um profissional completo. Pois essa é justamente
a tipologia adotada por Maurice Tardif (2002) para os saberes necessários à prática docente. Esse
autor identifica quatro grupos de saberes vinculados à formação do professor do ensino regular:
os saberes disciplinares, os saberes curriculares, os saberes experienciais e os saberes da formação
profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagógica).
Os saberes disciplinares correspondem aos diversos campos de conhecimento transmitidos
através de disciplinas (por exemplo, matemática, história e outras) nos cursos universitários,
independentemente das faculdades de educação e dos cursos de formação de professores.
Seria o “saber música”. Os saberes curriculares correspondem aos programas escolares
(objetivos, conteúdos, métodos) que os professores devem aprender a aplicar. Seria o “saber
preparar aulas”. Os saberes experienciais brotam do próprio exercício da profissão, oriundos da
19
ARTIGO
experiência e por ela validados (ter experiência no ensino de música). Por fim, os saberes da
formação profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagógica) são o conjunto
de saberes transmitidos pelas instituições de formação de professores, incluindo aí os saberes
pedagógicos, que seriam as doutrinas ou concepções provenientes de reflexões sobra a prática
educativa no sentido amplo do termo – o “saber dar aulas” (TARDIF, 2002, p. 37-39).
Em suma, o professor ideal é alguém que deve conhecer sua matéria, sua disciplina e seu programa,
além de possuir certos conhecimentos relativos às ciências da educação e à pedagogia e desenvolver
um saber prático baseado em sua experiência cotidiana com os alunos (TARDIF, 2002, p. 39).
No que tange à experiência, porém, ela por si basta? Ou seja, ter uma larga experiência no
ensino de música garante, por si, que o profissional tenha saberes experienciais? A resposta
parece ser: não. Fazer algo – ensinar, por exemplo - há muito tempo não garante, por si, que
aquilo seja feito de forma bem feita (ou com qualidade). Para que essa experiência traga saber
experiencial de fato é necessária uma prática reflexiva constante.
O conceito de profissional reflexivo é muito utilizado em pesquisas atuais (ARAÚJO, 2005), e
tem suas origens nos estudos de John Dewey sobre ação reflexiva, segundo a qual o professor
formula questões a partir de sua própria prática. Porém, foi Schön (2000) quem mais difundiu
esse conceito criando a ideia de “experiência compreendida”. Para esse autor, a reflexão deve
ser um elemento chave da educação profissional, pois possibilita integração entre teoria
e prática, devendo ocorrer de duas maneiras: pela reflexão-na-ação, ou seja, durante o ato
de ensinar o professor reflete sobre o que acontece, interferindo e modificando esse ato
simultaneamente, e pela reflexão-sobre-a-ação, segundo a qual o professor reflete sobre a
ação educativa após ela ter ocorrido, visando às ações futuras. A reflexão na prática educativa
é fruto também do processo de formação continuada que permeia o discurso de formação
de professores atualmente (PIMENTA, 1999). Essa constante reflexão está intimamente ligada
aos saberes docentes, mudando seu significado, pois, ao refletir na e sobre a ação, o professor
valida ou reformula seus saberes a partir da própria prática, adaptando-os a ela4.
Com base em tudo o que foi exposto até agora, podemos voltar à figura 1 e modificá-la
da seguinte forma:
4 E antes da ação, não é necessário refletir? Essa reflexão se dá no pla-nejamento (de aula, de disciplina, de atividade, etc.), onde se utilizam, para tal, os saberes curriculares.
Educadores musicais
Clientes (impacto
do serviço prestado)
A capacidade do produto ou serviço de
cumprir o objetivo ao qual se destina
ALUNOATUAÇÃO
AVALI
AÇÃO
AVALIAÇÃO
Figura 2 - Esquema de educação musical com base nas dimensões da GQT
FeRnanDO StanZiOne GaLiZia, Gestão de qualidade do ensino musical.
2020
ARTIGO
Vimos que os educadores musicais têm como objetivo de seu trabalho gerar aprendizado
sobre música em seus alunos. Mas como seria esse aprendizado? O que se quer com ele?
Vários podem ser os objetivos de uma instituição de ensino. Em se tratando de música, pode-
se querer formar músicos profissionais, por exemplo, ou ainda oferecer uma introdução ao
assunto, dentre várias possibilidades. No caso específico de entidades de educação musical
de cunho social, como as Organizações Sociais (OSs) ligadas à Secretaria Estadual de Cultura
do Estado de São Paulo5, o objetivo passa ao mesmo tempo pelo ensino de música e pela
formação do indivíduo de forma mais abrangente. Vejamos o objetivo da Associação Amigos
do Projeto Guri (AAPG), por exemplo. De acordo com o novo plano de trabalho da AAPG,
elaborado pela diretoria e pelo conselho de administração da instituição, seu objetivo é
“promover com excelência a Educação Musical e a prática coletiva de música, tendo em vista o
desenvolvimento humano de gerações em formação”. Percebe-se, pelo objetivo da instituição,
que se trata de um projeto de cunho social, além de cultural e artístico. Nesse caso, entendo
que o conceito elaborado por Rogers (1987) de aprendizagem significativa poderia se adequar
a tal objetivo. Segundo esse autor:
[aprendizagem significativa é] uma aprendizagem que é mais que uma acumulação de fatos. É
uma aprendizagem que provoca uma modificação, quer seja no comportamento do indivíduo,
na orientação da ação futura que escolhe ou nas suas atitudes e na sua personalidade. É uma
aprendizagem penetrante, que não se limita a um aumento de conhecimentos, mas que penetra
profundamente todas as parcelas da sua existência (ROGERS, 1987, p. 258).
A aprendizagem significativa não ocorre apenas quando o aluno compreende o que se está
ensinando (neste caso, música). Ela ocorre quando o conteúdo ensinado passa a fazer sentido
para sua vida. Quando, mais do que compreender, o aluno se apropria do conhecimento e
entende o porquê de estar aprendendo aquilo, enxergando possibilidades de aplicar esse
conhecimento em seu dia-a-dia. Dessa forma, promove-se uma mudança interna real na
pessoa. Em outras palavras,
A aprendizagem significativa ocorre quando o aluno consegue se apropriar do conhecimento trabalhado
e aplicá-lo em diferentes contextos ou situações [...] é possível dizer que, quando ocorre a aprendizagem
significativa, ocorre também o entendimento do que é aquele conhecimento e por que ele é importante.
Para que ocorra a aprendizagem significativa, faz-se necessário que as matérias de ensino sejam
estruturadas de maneira significativa (REALI, 2007, p. 60-61, grifo nosso).
A última frase da citação acima está grifada para chamar a atenção para a importância
dos saberes curriculares, além dos pedagógicos, disciplinares e experienciais. São eles que
permitem que a matéria de ensino – música - seja estruturada de forma significativa, o que
permite a ocorrência da aprendizagem significativa.
5 Para mais detalhes sobre esse assunto, ver GALIZIA, KRUGER e KORSOKOVAS, 2009.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 13-24, maio, 2010.
21
ARTIGO
Figura 3 – Ações de educação musical de uma OS ligada à cultura como a AAPG, com base nas premissas da GQT e de autores da educação
Por fim, uma última ideia que gostaria de desenvolver é a dos indicadores de desempenho,
essenciais em qualquer atividade que busque a qualidade. Seguindo as premissas da GQT, as variáveis
e os indicadores devem ser factíveis em sua construção, expressando valores compartilhados por
todos os agentes envolvidos (funcionários, alunos, mantenedores e outros). Mas como construir
esses indicadores? Se a ação maior da instituição será avaliada pelo impacto da aprendizagem
musical na vida do aluno, assim como pela capacidade do ensino musical de cumprir o objetivo ao
qual se destina, esses dois pontos podem ser entendidos como pilares básicos para a construção
desses indicadores. Dessa forma entende-se que, se essas duas metas forem alcançadas, o ensino de
música oferecido pela instituição é de qualidade, como pode ser visto na figura abaixo.
Educador musical
Impacto da apren-
dizagem musical na
vida do aluno
Capacidade do ensino musical de cumprir o objetivo ao qual se destina (promover
com excelência a Educação Musical e a prática coletiva de música, tendo em vista
o desenvolvimento humano de gerações em formação)
ALUNOAPRENDIZAGEM
SIGNIFICATIVA
AVALIAÇÃO AVALIAÇÃO
Pilares para construção de indicadores de desempenho
Educador musical
Impacto da apren-
dizagem musical na
vida do aluno
Capacidade do ensino musical de cumprir o objetivo ao qual se destina (promover
com excelência a Educação Musical e a prática coletiva de música, tendo em vista
o desenvolvimento humano de gerações em formação)
ALUNOAPRENDIZAGEM
SIGNIFICATIVA
AVALIAÇÃO AVALIAÇÃO
Figura 4 – Indicadores de desempenho e qualidade
Nossa figura, então, pode ser entendida agora da seguinte forma:
FeRnanDO StanZiOne GaLiZia, Gestão de qualidade do ensino musical.
2222
ARTIGO
A construção de indicadores de desempenho e qualidade ainda é um tópico que merece
mais discussões na área de cultura. Atualmente, parte-se da premissa de que esses indicadores
sempre serão parciais e específicos para um determinado serviço, indicando quantitativamente
as atividades realizadas pelas organizações. Como afirma Pacheco (2006):
Na área de cultura são ainda numerosos os problemas a enfrentar. Os indicadores foram adotados
de forma homogênea, sem ainda refletir as especificidades de cada equipamento ou projeto
cultural. Há problemas jurídicos a serem enfrentados. E, sobretudo, restam os desafios ligados à
mudança cultural (PACHECO, 2006, p. 7).
CONSIDERAÇõES FINAIS
Os educadores musicais possuem uma atuação diferente em relação à atuação dos
músicos. Essa atuação é específica da ação docente e, como conseqüência, esses profissionais
precisam de formação condizente com seu trabalho. Essa formação deve focar a aquisição dos
saberes necessários para o trabalho docente em música, o que contribuiria para o movimento
de profissionalização do ensino. Umas das especificidades do trabalho docente passa pelo seu
objeto de trabalho, entendido aqui como a aprendizagem em música de seus alunos.
No âmbito da missão da AAPG, um instituição de ensino musical de cunho social, essa
aprendizagem deve seguir os preceitos da aprendizagem significativa, entendida como aquela
que não visa a mera transmissão de conhecimentos, mas sim o contexto em que o aluno se
apropria do conteúdo, compreendendo o porquê de o estar aprendendo e enxergando
aplicações desse conteúdo em seu dia-a-dia.
Por fim, a avaliação dos resultados deverá ter como pilares de seus indicadores a capacidade
do ensino musical de cumprir o objetivo ao qual se destina e o impacto da aprendizagem
musical na vida dos alunos (ou o quanto essa aprendizagem foi significativa). Todas essas
ações levam à qualidade do ensino musical.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 13-24, maio, 2010.
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ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 13-24, maio, 2010.
25
ARTIGO
RESUMO
Este artigo apresenta a dificuldade da efetividade
de políticas sociais por falta de focalização
adequada. A qualidade só será atingida se
houver a preocupação constante pela gestão
por resultados, monitorando e avaliando tanto
o processo de execução das ações do projeto
social como também seu retorno imediato.
Outros pontos fundamentais para o alcance da
qualidade dos projetos sociais são a situação e
o papel do público alvo dentro do projeto. Os
beneficiários da ação não devem permanecer
passivos, expectadores; precisam participar
ativamente da avaliação e do replanejamento
das ações.
ABSTRACT
This article presents the difficulty encountered
in making social policies effective, owing to
the lack of adequate focus. Quality will only
be achieved if there is ongoing concern for
outcome management, monitoring and
evaluation of both the executive process for the
actions of the social project and the immediate
outcomes of the same. Another point that
is fundamental to achieving quality in social
projects is the situation and role of the target
public within the Project. Those benefitted by
the action can not be passive beneficiaries or
spectators; they need to actively participate in
the evaluation and the re-planning.
PALAVRAS-CHAVE
Gestão Social, Projeto Sociocultural, sistema
de monitoramento e avaliação, construção
de indicadores qualitativos e quantitativos.
KEYWORDS
Social management, Social-cultural project,
Monitoring and evaluation system, construction
of qualitative and quantitative indicators.
Assessora de Gabinete da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Coordenadora
do Programa Escola da Família/BA e-mail: lolaberlinck@terra.com.br
Monitoramento de processo -ferramenta para a qualidade em projetos socioculturais1
1 Texto apresentado na mesa redonda “Gestão de Qualidade em Projetos Socioculturais”, durante o III Semi-nário da Associação Amigos do Pro-jeto Guri, evento realizado em 20 de novembro de 2009 na cidade de São Paulo/SP. Inclui atualizações realiza-das pelo autor.
Process monitoring – a tool for promoting quality in social-cultural projects
MARIA HELENA BERLINCk MARTINS
MaRia heLena BeRLincK MaRtinS, Monitoramento de processo - ferramenta para a qualidade em projetos socioculturais
2626
ARTIGO
1 Introdução
Falar em gestão de qualidade em projetos socioculturais é, além de satisfação e orgulho,
uma viagem pela minha experiência. Mas antes de entrar no tema propriamente dito, preciso
esclarecer como entendo o significado de qualidade no contexto de um projeto social. Para
mim, a qualidade de um projeto está vinculada à efetividade do mesmo.
Para investigar o grau de efetividade de um projeto, temos que responder algumas
perguntas iniciais. O projeto provoca mudanças no público alvo que escolheu e na comunidade
em que atua? Trabalha para o fortalecimento e desenvolvimento de pessoas e comunidades?
Sua relação custo x benefício é razoável? Tem instrumentos de gestão modernos e eficazes?
Envolve o público alvo e parceiros em sua avaliação e no seu replanejamento? Possui práticas
articuladas com parceiros? Desenvolve uma comunicação clara e direta com todos os que nele
têm interesse?
Responder a todas essas questões de forma satisfatória significa um alto grau de exigência
para o gestor de um projeto social. Porém, na conjuntura que vivemos, isso tem que ser assim.
Não podemos deixar de ser exigentes quando vemos a grande desigualdade da sociedade
brasileira e a quantidade de recursos que os diferentes níveis de governo, e também a
sociedade, investem em programas, projetos e ações de inclusão social e redução da pobreza.
Podemos dizer que o problema na redução da desigualdade social não é fruto da falta de uma
política social, nem tampouco de recursos orçamentários, mas sim da baixa efetividade dos
programas, projetos e ações na área social.
São inúmeras as iniciativas existentes, mas elas dificilmente chegam aos que delas mais
necessitam. Existe imensa dificuldade em se atingir a população eleita como foco principal das
ações; geralmente, as iniciativas e projetos sociais acabam chegando a uma população menos
pobre, que já está incluída em outras ações da rede de proteção social brasileira.
2 o cuidado com a focalização
Tanto trabalho e tão pouco resultado: porque nossa política social é tão pouco efetiva?
Barros e Carvalho (2003) apontam duas razões: a má focalização e a baixa eficácia. Dizem eles
que grande parte dos programas sociais deixa de beneficiar os segmentos mais pobres da
população, em detrimento dos segmentos não-pobres.
Temos aqui o primeiro grande gargalo da qualidade de programas socioculturais. Em quem
estamos focalizando o programa? Trata-se de um programa voltado para uma população
menos pobre, já com acesso a diversos bens e serviços (moradia de qualidade, assistência à
saúde, por exemplo) e que amplia este acesso para bens culturais? Ou trata-se de um programa
de inclusão social através do acesso a bens culturais? Quais são os objetivos do programa
sociocultural em questão? Quero fortalecer as capacidades de pessoas e comunidades, abrir-
lhes opções de conhecimentos e práticas, capacitá-las no domínio de alguma habilidade de
expressão e comunicação artística, fortalecendo assim a auto-estima e o acesso a outros bens
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 25-32, maio, 2010.
27
ARTIGO
e serviços? Ou quero capacitar pessoas e comunidades para que aprimorem suas capacidades
artísticas e sejam formadas tanto para produzir como para consumir bens culturais? Em que
contexto de focalização se localiza o projeto sociocultural do qual faço parte?
Paes de Barros e Carvalho (2003) apontam ainda para o baixo grau de focalização das
iniciativas, que pode resultar do próprio desenho dos programas. Citam como exemplo
projetos desenhados para beneficiar os empregados com carteira de trabalho, como o abono
salarial, que acaba por beneficiar muito pouco os segmentos mais pobres da população.
Além da dificuldade de focalização, temos outro empecilho à qualidade: quando o
desenho e a gestão não oferecem impactos satisfatórios à população beneficiada. Isto ocorre
porque, muitas vezes, definimos o público alvo de nosso programa sociocultural por critérios
estatísticos, sem analisá-lo como ator social. A focalização baseada em dados socioeconômicos
não traz para os projetos interlocutores participantes, mas sim beneficiários passivos. O
impacto positivo no nosso público alvo se traduz por uma resposta espontânea aos estímulos
recebidos – quando ele percebe que é capaz de fazer alguma coisa autonomamente, adquire
auto estima, segue seu caminho de aprendizagem e busca por novas fronteiras para sua
vida. Este impacto positivo é produto de uma nova metodologia de trabalho que promove
as capacidades latentes nos grupos selecionados. Diz Cardoso (2004): “é importante integrar
ao debate sobre a focalização este outro debate sobre as inovações metodológicas que
necessitamos para tornar mais eficaz o combate à desigualdade social” (p. 44). Para olhar os
associados de um projeto sociocultural como interlocutores importantes da ação e não apenas
como beneficiários, é preciso observar suas potencialidades e então flexibilizar os métodos e
ações do projeto às características locais e ao público específico.
Ao focalizar o público-alvo, relacioná-lo com o local, o território ou a comunidade e
observar as suas potencialidades, abrimos caminho para a adesão e receptividade à proposta
do projeto e se flexibilizamos a metodologia de trabalho com esses achados podemos buscar
a integração entre várias formas de expressão artística, abrindo espaços para a participação de
outros membros da comunidade e parceiros locais.
Assim temos dois aspectos da focalização para projetos socioculturais. Não basta buscar
os mais pobres e excluídos, precisamos conhecer também a forma como vivem, como se
relacionam, os laços afetivos, as formas de relacionamento com outros grupos sociais e,
sobretudo, suas formas de expressão cotidiana. Com esses conhecimentos podemos adequar
e flexibilizar a metodologia do trabalho e alcançar resultados de qualidade.
3 MonItorAMEnto E AvAlIAção CoMo InStruMEnto dE quAlIdAdE
O grande desafio do gestor de projetos socioculturais parece ser controlar e monitorar a
execução do projeto dando condições de autonomia de novas buscas metodológicas para os
gestores locais. Como manter a visão estratégica do projeto sob sua coordenação, adequando as
ações a novos padrões de resultados e redefinição de atividades de acordo com o perfil local?
MaRia heLena BeRLincK MaRtinS, Monitoramento de processo - ferramenta para a qualidade em projetos socioculturais
2828
ARTIGO
O segredo está no monitoramento e avaliação constantes das ações. Sabemos muito pouco
sobre como executamos e quais os resultados que alcançamos conforme os diferentes tipos de
ações. Sabemos pouco sobre as razões das diferenças de resultados em diferentes locais. Nosso
conhecimento também é relativo quanto às razões da adesão do público alvo à proposta, ao
aproveitamento das atividades, à regularidade da freqüência e assim por diante.
Interessante notar como valorizamos a etapa de planejamento dos nossos projetos
sociais e damos pouca importância à etapa de monitoramento e avaliação do processo de
execução e dos resultados imediatos. Chegamos até a valorizar a avaliação para a elaboração
de um diagnóstico que apontará os objetivos da nossa ação ou ainda a avaliação externa que
servirá como uma espécie de “auditoria”, mas desprezamos o monitoramento de processo e a
avaliação dos impactos imediatos, muitas vezes por preconceitos do tipo: trata-se de práticas
de controle, vigilância e autoritarismos de nossos chefes. Outras vezes as barreiras manifestam
a auto-suficiência dos gestores, que acreditam firmemente que sabem tudo sobre o que fazem.
Esses gestores, resistentes ao monitoramento, acreditam que “o projeto é bom, que vem dando
certo há anos e que não há porque mudar”.
Não pretendo esgotar neste artigo um tema que é vasto, extremamente técnico e
específico. Quero somente apontar para a importância da estratégia de gestão social que, com
certeza, contribuirá para a efetividade do projeto e indicará seus principais componentes e
características.
O monitoramento e a avaliação - termos que considero como uma expressão composta, já
que as duas técnicas caminham sempre juntas - permitem conhecer a execução dos processos
e os resultados imediatos obtidos no projeto sociocultural de forma sistemática, auxiliando o
gestor e sua equipe no replanejamento e na disseminação da ação.
Montar um sistema de monitoramento e avaliação exige alguns condicionantes. O
primeiro deles é a participação da equipe. Mesmo que nem todos estejam presentes às etapas
de coleta e análise de informações, é imprescindível que todos saibam o que é monitorado e
porque é monitorado. A participação da equipe permite também um olhar mais abrangente
sobre as ações e suas características, assim como a definição coletiva dos indicadores de
qualidade, envolvendo eficiência, eficácia e efetividade do projeto. O momento de reflexão
e de elaboração de indicadores com a equipe é um excelente método de capacitação da
prática e de fortalecimento do compromisso de todos pelos resultados satisfatórios das ações.
E o envolvimento de toda a equipe tem que responder uma pergunta básica: o que vamos
monitorar e para quê?
Ao envolvermos a equipe na definição do sistema de monitoramento e avaliação, estamos
também sinalizando que queremos que todos juntos aprendam sobre o que fazemos, os
motivos pelos quais fazemos e o que estamos produzindo e modificando. Sinalizamos que
somos uma comunidade de aprendizagem, e não apenas colegas de trabalho que cuidam de
setores verticalizados e especializados na execução do nosso projeto. Sinalizamos também
que queremos evitar erros e não apenas remediá-los.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 25-32, maio, 2010.
29
ARTIGO
Montar um sistema de monitoramento e avaliação em um projeto sociocultural exige
a superação de algumas dificuldades. A maior delas está na definição de parâmetros para
conceitos intangíveis, que também fazem parte dos objetivos – como auto-estima, ampliação
do universo cultural e nova cultura de expressão artística, entre outros. Que parâmetros usar
para a apuração e julgamento dos indicadores? Outro desafio é a definição dos instrumentos
de coleta de informações ou a utilização dos meios de verificação.
Marino (2003) publicou um importante compêndio de conceitos e práticas para a gestão
por resultados, no qual explica a descrição dos sete passos do monitoramento de processos:
1. Foco da avaliação – o que monitorar, para que monitorar e por quem 2. Formação da equipe, constituição e capacitação 3. Identificação dos interessados - aqueles que ajudarão a formular perguntas e, a seguir, os
indicadores 4. Levantamento das informações quantitativas e qualitativas 5. Análise das informações e dos fatos 6. Elaboração do relatório e da divulgação
7. Utilização e disseminação (MARINO, 2003, p. 26-27)
Uma das etapas em que encontramos maiores dificuldades é aquele em que definimos os
indicadores - sobretudo porque estamos trabalhando, muitas vezes, com mudanças de atitude
sobre as quais os indicadores quantitativos pouco esclarecem. Mas, de fato, esta etapa não é
tão difícil como parece.
Sabendo que o indicador irá atribuir um valor às nossas ações, apontando o avanço, a
evolução e o desenvolvimento rumo aos objetivos e às metas do projeto, podemos dividir
sua formulação em três grandes grupos: aquele que indicará valores de abrangência, o que
indicará a receptividade ao projeto e o terceiro de impacto imediato. Todos os três grupos
deverão contemplar também indicadores de eficiência, cotejando os valores encontrados
junto aos recursos físicos, financeiros e humanos.
Figura 1 - orientadora da organização na definição dos indicadores (Capacitação Solidária - 2004)
Receptividade à proposta
Abrangência:
público alvo, atividades, equipe técnica
Impactos
imediatos
MaRia heLena BeRLincK MaRtinS, Monitoramento de processo - ferramenta para a qualidade em projetos socioculturais
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 25-32, maio, 2010.ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 25-32, maio, 2010.ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 25-32, maio, 2010.ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 25-32, maio, 2010.
3030
ARTIGO
Dentro do grupo da abrangência, construiremos indicadores que nos respondam a
perguntas como: até que ponto atingimos o público alvo pretendido; que parte da demanda
conseguimos atender; de qual território provêm os participantes do projeto; que tipos de
atividades oferecemos (relacionando tanto as que planejamos como aquelas que tivemos
que improvisar); qual a relação entre os inscritos no projeto e a frequência por atividade; qual
a caracterização e qualificação da nossa equipe; qual a sua distribuição por atividades que
espaços físicos são utilizados e qual o orçamento efetivamente gasto. Estaremos trabalhando
com indicadores quantitativos e os meios de verificação serão os questionários fechados,
fichas de inscrição e de frequência e planos de trabalho, além de uma grande parte do acervo
documental do projeto que compõe o sistema gerencial de informações.
No grupo de indicadores de receptividade e de impacto imediato, avaliaremos a aderência
prática das atividades oferecidas às expectativas, potencialidades e necessidades do público
alvo, assim como os resultados alcançados na vida dos associados, seus familiares e entorno.
Neste estágio podemos trabalhar com indicadores qualitativos e quantitativos. Como meio
de verificação dos indicadores qualitativos, podemos usar entrevistas individuais e em grupo,
além da técnica dos grupos focais. Importante será definir parâmetros relativos aos conceitos
dos indicadores, como: “ver muita televisão, ficar na rua, brigar com os colegas e em casa,
dificuldade de concentração”, e assim por diante. Não nos esqueçamos que dentro deste
foco de análise – a receptividade – podemos incluir a quantidade e a qualidade de parcerias
formadas, para responder ao seguinte questionamento: estamos fazendo parte de uma rede?
Que tipo de rede?
É preciso lembrar que não existe receita para se montar um sistema de monitoramento do
projeto sociocultural. Muitas vezes a equipe pode desanimar, achar que é muito trabalho, que
é difícil a coleta de informações – e, então, pensar em optar: “ou desenvolvemos o projeto ou
monitoramos”. Para ultrapassar este momento de crise, o gestor deverá administrar o tempo de
construção do sistema de monitoramento. Num primeiro momento poderá reduzir o número
de indicadores, ou dividi-los em grupos que serão introduzidos progressivamente. Mas não
deve desanimar nunca. Logo, na análise dos primeiros resultados, toda a equipe se sentirá
recompensada pelo esforço, reconhecendo que o trabalho valeu a pena, pois os amadureceu
como grupo e sinalizou tanto os pontos positivos como os desafios de aprimoramento.
4 ConCluSão: A AnálISE doS rESultAdoS do proCESSo dE MonItorAMEnto E
AvAlIAção EM projEtoS SoCIoCulturAIS?
A análise dos resultados apurados merece também muita atenção e discussão do grupo
gestor. Tanto os dados de receptividade como de impacto imediato guardam, em geral,
complexidades e especificidades próprias. Os resultados de um dado projeto sociocultural
podem ter múltiplos fatores e causas. Muitas vezes temos um objetivo e alcançamos outro
diferente. A análise desses resultados deve orientar o replanejamento do projeto. Também
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 25-32, maio, 2010.
31
ARTIGO
nesta etapa, começamos a ter indicadores de efetividade do projeto, quando comparamos
os resultados alcançados, as mudanças ocorridas no público alvo e a inserção em redes de
colaboração, ou seja, avaliamos nossa “cesta” completa de indicadores, incluindo recursos
humanos, financeiros e físicos envolvidos.
A avaliação externa, ou post-facto, pode ser também muito útil, mas dificilmente terá
impactos imediatos na qualidade da gestão do projeto - pois irá apurar os resultados
alcançados somente depois de algum tempo. Este tipo de avaliação servirá ao alinhamento da
visão estratégica do projeto e à medição de sua efetividade de forma mais assertiva, sobretudo
quando isolamos grupos que fizeram parte das ações e outros que não fizeram parte de nada
semelhante, comparando comportamentos.
A qualidade de um projeto sociocultural poderá ser disseminada no relatório de divulgação
da experiência ou de prestação de contas. Construir e redigir o relatório constitui também
uma oportunidade de aprendizagem. Temos que nos perguntar para quem queremos falar.
Muitos relatórios são descrições de vitórias e certezas. Muitas vezes eu me pergunto: será que
somente eu encontro dificuldades? Não existem dúvidas, nem tampouco pontos a aprimorar?
Os gestores não foram surpreendidos por algum fato? A equipe do projeto, autora do relatório,
não adquiriu novos conhecimentos que quisesse disseminar?
Finalizando, gostaria de acrescentar a descrição das características de um bom sistema de
monitoramento e avaliação, definida por Varallelli (2000):
É coerente com a visão e a concepção das organizações envolvidas •Considera as particularidades do contexto •Tem indicadores bem definidos, precisos e representativos•Está orientado para o aprendizado•Prevê e especifica os meios de verificação que serão utilizados•É simples, capaz de ser compreendido por todos•Combina indicadores relativos à eficiência, eficácia e efetividade•Fornece informações relevantes para a tomada de decisão•Aproveita as fontes confiáveis de informação existentes (VARALLELI, 2000, p.2)•
O monitoramento e a avaliação de um projeto social ou mesmo sociocultural não são tarefas
fáceis. Mas são, sem dúvida nenhuma, a garantia da busca da efetividade e da qualidade. Sua
construção é uma tarefa árdua que deve mobilizar toda equipe gestora. Não existe, que eu saiba,
nenhum manual com indicadores de monitoramento de processo para projetos socioculturais.
A equipe que trabalha na construção de indicadores de monitoramento se sente, muitas vezes,
num “ziguezagueando”, enfrentando a dúvida constante: estou conseguindo? Aos gestores,
digo apenas: não desanimem, não é fácil, mas os resultados são fantásticos e compensadores.
Espero que tenha contribuído para orientar o gestor de projetos socioculturais nas
metodologias de busca na qualidade de resultados.
MaRia heLena BeRLincK MaRtinS, Monitoramento de processo - ferramenta para a qualidade em projetos socioculturais
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ARTIGO
Referências
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CARDOSO, Ruth. Sustentabilidade: o Desafi o das Políticas Sociais no Século 21. São Paulo em Per-spectiva, São Paulo, v. 18, n. 2, abr.-jun. 2004. p. 42-48.
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ARTIGO
RESUMO
O presente artigo visa pensar sobre as
possibilidades de intercessão entre as
contribuições provindas dos métodos formais
de educação musical, que se consolidaram
como referências a partir do início do século
XX, e as constituições metodológicas possíveis
de serem observadas a partir de processos
não formais de educação. Assim, procuramos
demonstrar de que modo a educação não
formal vem se constituindo como um campo
educacional específico, em diálogo com as
áreas da educação e da sociologia da educação
na busca de gerar metodologias consonantes
com os contextos socioculturais dentro dos
quais se desenvolvem. Com isso, a educação
musical passa a ser apresentada enquanto
possibilidade de construção de práticas sociais
dialógicas e reflexivas.
ABSTRACT
The aim of this article is to reflect on the
possibilities for intercession between the
contributions offered by the formal methods
of music education, which have served as
consolidated references since the beginning
of the 20th century, and the methodological
constitutions one can observe based on non-
formal education processes. With this in mind,
we seek to demonstrate the way in which non-
formal education has been gaining space as a
specific field of education, in dialogue with the
areas of education and educational sociology
jointly seeking to generate methodologies in
keeping with the social and cultural contexts
within which they are carried out. In this way,
music education comes to be presented as a
possibility for the construction of dialogical and
reflexive social practices.
PALAVRAS-CHAVE
Educação musical. Educação não-formal.
Música.
KEYWORDS
Musical education. Non-formal education.
Music.
Professor Assistente do Curso de Educação Musical da UFSCar e UAB-UFSCar.
e-mail: edudemaria01@gmail.com
A presença da educação musical em espaços não-formais: um campo de possibilidades1
1 Texto apresentado durante a Mesa Redonda Ensino de Música e Inclusão Social, promovida pela As-sociação Amigos do Projeto Guri em 03/06/2009 em São Paulo/SP.
The presence of music education in non-formal spaces: a field of possibilities.
EDUARDO CONEGUNDES DE SOUZA
eDUaRDO cOneGUnDeS De SOUZa, a presença da educação musical em espaços não-formais: um campo de possibilidades.
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ARTIGO
1 A EduCAção não-forMAl CoMo CAMpo ESpECífICo
Para iniciarmos as reflexões que pretendemos realizar durante esse texto, é de fundamental
importância ter em mente que a educação musical no Brasil, desde que deixou de habitar o
espaço escolar nos anos de 1970, deixou também de ter um locus institucional que a abrigasse
e que exercesse o papel realizador daquilo que Maura Penna (1990) apresenta como processo
de musicalização efetivo e abrangente em meio à sociedade brasileira2.
Para que exista musicalização, é necessário que a educação musical ocorra enquanto ação
propiciadora do desenvolvimento humano, equilibrada no que diz respeito à sua integração com
as diversas áreas do conhecimento. Dessa forma, não podemos perder de vista o entendimento da
música enquanto conhecimento sensível, ligado aos diversos níveis de expressão humana.
Embora afastada da escola regular – espaço que seria ideal para a socialização dos diversos
saberes e do conhecimento historicamente construído – a música, justamente por ser uma forma
de expressão humana e também por estar arraigada a diversas culturas, nunca deixou de ser
praticada, ensinada e aprendida. Portanto, podemos formular a seguinte questão: será que, a
partir do afastamento do espaço escolar, a educação musical passou a estar presente apenas em
espaços especializados no ensino de música, como conservatórios e escolas de artes?
Embora esses espaços possam oferecer atividades de educação musical em sentido
mais amplo, os conservatórios e escolas de música apresentam caráter restrito em termos
de acesso. Por outro lado, normalmente, cumprem um papel ligado ao ensino técnico,
visando o treinamento e o direcionamento para a execução instrumental. Portanto, embora
sejam espaços formais de educação, se diferenciam da escola regular principalmente em
seu alcance e abrangência sociais.
Conforme nos coloca AFONSO (1992), quando nos referimos à educação formal nos
remetemos aos espaços em que as práticas educacionais são pautadas por uma grade curricular
previamente estabelecida, dentro da qual se definem classes ou graus de conhecimento pelos
quais os educandos devem passar de modo linear. Além disso, as práticas educacionais formais
ocorrem em tempos e espaços definidos e delimitados.
Pensando ainda em nossa questão inicial, é interessante observarmos que os saberes
musicais sempre foram transmitidos, também, em meio a relações informais do cotidiano, onde
ocorrem o ensino e a aprendizagem. Nesse outro âmbito que agora estamos denominando
como “informal” (AFONSO, 1992; GARCIA, 2001; TRILLA 1996), a educação pode acontecer sem a
utilização ou o desenvolvimento de métodos, sem tempos e espaços definidos e, muitas vezes,
sem mesmo intenção de se ensinar conteúdos específicos. É em meio às relações interpessoais
que ocorre a educação informal. No caso da educação musical, ela pode ocorrer em meio a
relações em que a música se faz presente, sendo apreciada ou praticada em diversos níveis –
como no âmbito familiar, em ciclos de amizades ou no convívio cotidiano.
Para que cheguemos a uma visão do que seria um “processo efetivo de musicalização”
(PENNA 1990, p. 32), podemos ainda observar as contribuições vindas dos “processos não-
formais de educação” (AFONSO, 1992; GARCIA, 2001; GOHN, 2001; TRILLA 1996).
Conforme nos coloca Jusamara Souza (1996), o fenômeno ensino-aprendizagem de músi-ca não ocorre só nos locais onde estamos e nem só da forma como conhecemos. Sendo assim, observar e considerar as possibilidades de educação em espaços diversos significa estarmos
2 Entendemos aqui musicalização como um processo que se desenvol-ve no decurso da vida dos indivíduos sem que tenha término ou ponto de chegada definido. Musicalizar seria atuar na sensibilização a partir da concretude sonora e no nível do fato musical. Sob essa concepção, mesmo o músico que se profissionaliza conti-nua sendo musicalizado ao longo de suas atividades. Portanto, usaremos o termo musicalização não em sobre-posição à educação musical, mas sim como sendo intrínseco aos diversos processos que a envolvem. Assim, po-demos ainda pensar que a educação musical abarca também o desenvolvi-mento técnico instrumental, a prepa-ração de repertório, a conceituação e teorização dos elementos musicais e a notação enquanto representação convencionada, relacionando-se ain-da à pesquisa e ao desenvolvimento de metodologias de ensino.
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abertos a processos interculturais, expressos por meio do diálogo entre diversidades que se apresentam em meio a processos diferentes da educação formal – e que também não podem ser encerrados pela definição de educação informal.
É importante ressaltar que a partir dos anos de 1980, atendendo a necessidades e demandas
sociais principalmente ligadas às populações periféricas, houve um grande aumento de práticas
educacionais não escolares em meio a organizações sociais, culturais, ONG’s, associações e fundações
de caráter privado, estatal e mesmo religioso. A partir dessas experiências e da observação de
práticas concretas, estudos que se situam na área da sociologia da educação vêm contribuindo para
que possamos ver a educação não formal como um campo educacional específico que difere da
educação escolar (formal) e também daquilo que se tem como educação informal. Esse foco sobre
um novo campo educacional vem se consolidando pelo fato de que: “embora essas práticas não
obedeçam a uma série de requisitos formais, passaram a construir diferentes modos de vivenciar,
compreender e sistematizar o processo de ensino-aprendizagem” (GARCIA, 2003).
Conforme Trilla (1996), a educação informal ocorre sem que se tenha a intencionalidade e
a sistematização de uma ação pedagógica. Quando tratamos da educação formal (escolar) e
não formal, podemos pressupor métodos e graus de sistematização de conteúdos e de ações
pedagógicas em ambos os tipos. A distinção observada está na flexibilização dos tempos em relação
aos conteúdos trabalhados e aos espaços em que ocorrem, assim como no foco centralizado na
figura do professor como transmissor dos conhecimentos - ou na ênfase participativa com foco nos
processos de coletivização e construção do conhecimento a partir dos diversos saberes.
Contribuindo para tal entendimento, podemos observar ainda a caracterização dada por
AFONSO:
Por educação formal, entende-se o tipo de educação organizada com uma determinada seqüência e
proporcionada pelas escolas enquanto que a designação educação informal abrange todas as possibilidades
educativas no decurso da vida do indivíduo, construindo um processo permanente e não organizado. Por
último, a educação não-formal embora obedeça também a uma estrutura e a uma organização (distintas
porém das escolares) e possa levar uma certificação (mesmo que não seja esta a sua finalidade), diverge
ainda da educação formal no que respeita a não fixação de tempos e locais e a flexibilidade na adaptação
dos conteúdos de aprendizagem a cada grupo concreto. (AFONSO, 1992, p.86)
Historicamente, segundo Maria da Glória Gohn (1997), até os anos de 1980, a educação não
formal no Brasil esteve ligada a processos de alfabetização de adultos, tendo como base as propostas
de Paulo Freire e outras práticas de movimentos sociais. Assim, em um primeiro momento, podemos
caracterizar dois campos de atuação da educação não formal - o primeiro voltado à alfabetização ou
transmissão de conhecimentos historicamente sistematizados, sendo estas atividades planejadas
para a os sujeitos das ações educativas, com uma estrutura e uma organização distintas das
organizações escolares, abrangendo a área que se convencionou chamar de educação popular
(conforme uso corrente nas décadas de 1970 e 1980) e educação de jovens e adultos nos anos 90;
e o segundo abrangendo a educação gerada dentro do processo de participação social, em ações
coletivas não voltadas para o aprendizado de conteúdos da educação formal.
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Assim, embora sejam diferentes das escolares, as práticas tidas como não formais apresentam um direcionamento e uma metodologia de construção dos saberes, de conteúdos específicos ou de transmissão da memória histórica, formadas a partir de referências culturais diversas e ligadas a contextos concretos e próprios dos grupos dentro dos quais são realizadas. Ou seja, não se baseiam na socialização de pacotes curriculares fechados, mas buscam construir e sistematizar os saberes a partir do conhecimento do contexto sociocultural em que estão imersas.3
Ao concebermos a cultura enquanto modos, formas e processos de atuação do homem na história, esta se torna uma construção em constante transformação e, ao mesmo tempo, continuamente influenciada por valores que se sedimentam em tradições e são transmitidos de geração a geração. Portanto, a educação pode ser abordada enquanto forma de ensino e aprendizagem realizada ao longo da vida dos cidadãos, consistindo o processo de absorção, reelaboração e transformação da cultura existente nos grupos sociais, o que lhe dá ainda uma dimensão política. Conforme nos coloca Maria da Glória Gohn (2001), esse processo ocorre pela leitura, interpretação e assimilação dos fatos, eventos e acontecimentos, atividades realizadas pelos indivíduos de forma isolada ou em contato com grupos e organizações. Para a educação musical, esses processos podem também ser observados em meio a manifestações culturais dentro das quais a música se faz presente, tendo papel gerador da sociabilidade (interações humanas) e aglutinador de pessoas em torno do fazer cultural.
Os processos de musicalização, portanto, não se restringem apenas ao âmbito de instituições destinadas especificamente ao ensino da música, mas envolvem contextos socioculturais mais amplos. A música normalmente está presente em diversas manifestações da cultura popular, envolvendo seus praticantes no fazer musical – seja através dos cantos entoados pela coletividade, seja pelo acompanhamento com instrumentos de percussão, harmônicos e melódicos. No Brasil, existe uma infinidade de manifestações dessa natureza espalhadas por todo o território, incorporando várias formas de expressão da cultura – tais como a dança, a música e a dramatização, podendo envolver elementos sagrados ligados a tradições católicas ou à religiosidade afrobrasileira.
Ao registrar e descrever como se desenvolvem as cheganças, reisados, pastoris e sambas de roda, dentre outras manifestações, Mário de Andrade (1937) evidencia o fato de serem estas tradições culturais transmitidas de geração a geração essencialmente através da oralidade. Por serem formas de organização comunitária pelas quais se transmitem valores e tradições, essas manifestações incorporam processos educativos na medida em que continuam vivas em diversas regiões do país. Nesse sentido, os processos de musicalização intrínsecos a elas ocorrem a partir da prática e da convivência, sendo os conhecimentos musicais transmitidos a partir de uma organização que se diferencia dos processos formais e (ou) escolares.
Essa diferenciação se dá, em princípio, pelo fato de serem criadas situações didáticas em que os saberes são construídos a partir do próprio fazer. Nessas manifestações, há uma inserção do indivíduo no discurso musical – e é através da observação e da prática imitativa ou criativa que o participante se relaciona com a música, aperfeiçoando e, principalmente, aguçando a percepção dos elementos musicais e corporais que constituem a manifestação. O executante, seja qual for o seu domínio com relação ao material musical, ao ser inserido na manifestação, precisa ouvir, interagir e adaptar a sua execução à dos outros integrantes do grupo. Assim, a partir do convívio, o participante passa a assimilar as células rítmicas, frases melódicas ou sequências harmônicas. Nesse processo, ao buscar se integrar ao conjunto rítmico e harmônico,
3 Abordar tais processos não significa legitimá-los como ideais ou perfeitos em termos dos resultados atingidos, nem que possam suplantar a educa-ção formal. O que ressaltamos é que este vem se tornando um campo de possibilidades e de experiências a ser considerado pela diversidade de metodologias possíveis a partir desse campo. Além disso, se fazem necessários estudos pedagógicos sobre a área inclusive enquanto pos-sibilidade de atuação dos educado-res musicais em formação.
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passa a ter uma relação concreta com a música, desenvolvendo a fluência musical. Conforme nos coloca SWANWICK (2003), a fluência e a inserção do educando no discurso musical são princípios fundamentais para que ocorra o aprendizado musical.
Nas manifestações da cultura popular brasileira, em muitos casos, há a presença de lideranças exercendo o papel de condução musical e organização coletiva. Estas se tornam os sujeitos que geram a transmissão ou mesmo a construção e reconstrução da música a ser executada coletivamente. Esses sujeitos detentores de saberes tradicionais se utilizam de métodos que se desenvolvem com o objetivo de transmitir as idéias musicais estruturantes da manifestação. Os cantos entoados em diversas manifestações da cultura popular brasileira, por exemplo, estão baseadas em versos conhecidos ou improvisados por esses sujeitos que, nesse momento, se tornam referência para o grupo e, portanto, exercem o papel de educadores. Normalmente, esses são chamados de mestres ou puxadores.
Ao ouvir os versos entoados pelo mestre, os participantes os repetem mantendo sua métrica e melodia. Nesse caso, a atividade envolve aspectos ligados à memória, percepção musical, reprodução de elementos rítmicos, melódicos e harmônicos, produção de texturas e densidades diversas, além do aprendizado e interpretação dos versos e do conteúdo expressivo da manifestação - fatores de fundamental importância dentro da cultura popular.
No modo de vida urbano e industrializado, tais manifestações perdem espaço frente ao modo de vida urbano e aos meios de comunicação de massa, em que a vivência cultural, segundo KENSKI, “ocorre de forma imaginária e virtual, porém, potencialmente forte a ponto de interferir nas experiências concretas da vida dos indivíduos”(KENSKI, s.d.).
É nesse contexto moderno e urbano que surgem e atuam instituições como as associações democráticas para o desenvolvimento, ONGS e fundações. Embora não tenhamos dados quantitativos para precisar tal informação, em grande parte essas instituições oferecem atividades musicais ou abrigam grupos e manifestações culturais em que a música se faz presente como elemento constitutivo. Muitas delas, por visarem a socialização, a solidariedade e o desenvolvimento social, tendo estruturas pouco hierarquizadas e sem a presença de grades curriculares pré-definidas se comparadas ao sistema escolar formal, essas instituições se caracterizam como espaços de educação não formal, dentro dos quais a educação musical se desenvolve em atividades ligadas à vivência e à prática musical concretas, assim como à valorização da cultura e do discurso musical vivenciados por seu público – possibilitando ainda o desenvolvimento de atividades voltadas à criação e à livre expressão. Com isso, no contexto brasileiro esses espaços passam a desenvolver um papel importante no desenvolvimento de processos de educação musical. Nesse aspecto, essas instituições adquirem um potencial transformador, pois podem retomar, junto às comunidades onde atuam, relações de grupo capazes de gerar a organização comunitária em torno da produção cultural, quebrando a relação passiva de consumo ligada aos meios de comunicação de massa.
Conforme temos apresentado, as práticas pedagógicas não formais podem se diferenciar do que ocorre na escola regular e na escola tradicional de música não por se contraporem a elas, mas por desenvolverem graus diferentes de formalização dos procedimentos didáticos com sistematizações baseadas em códigos culturais próprios – ligados à oralidade, à observação e inserção do aprendiz em meio ao desenvolvimento das manifestações musicais coletivas,
à inserção do participante a partir de seu grau de conhecimento e bagagem musical e ao
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estabelecimento de relações menos hierárquicas, favorecendo a vivência de saberes em nível de troca e igualdade em meio à diversidade. Como costuma ocorrer em grupos manifestantes da cultura musical brasileira, pode haver a presença de lideranças que floresçam a partir das competências comunicativas, organizacionais e de domínio de determinados conteúdos, tornando-se assim referências para o grupo, chegando a assumir muitas vezes o papel de educadores que atuam conforme as necessidades apresentadas em meio ao fazer.
O importante aqui é percebermos que os princípios balizadores da educação musical, construídos e desenvolvidos desde o início do século XX, podem encontrar nessas instituições espaços para novas formas de aplicação e para o desenvolvimento de diversas possibilidades metodológicas de musicalização.
Para a formação desses que estamos chamando de princípios fundamentais da educação musical, estão as práticas pedagógicas e reflexões desenvolvidas a partir do trabalho de diversos músicos e pedagogos musicais. Ao encontrarem consonância com os avanços da psicopedagogia focados no desenvolvimento humano e cognitivo, os músicos e pedagogos, ao longo do século XX, se voltaram à inserção do educando na vivência musical, tendo a experiência concreta e a atividade prática como princípios básicos para a formulação de seus métodos e procedimentos de construção e consolidação dos conceitos e saberes musicais.
Dentro do que hoje entendemos como uma corrente consolidadora dos fundamentos da educação musical, temos músicos e pedagogos musicais tais como Jaques-Dalcroze, Maurice Martenot, Edgar Willems e Carl Orff, que contribuíram para o desenvolvimento de importantes recursos de iniciação musical a partir dos quais se buscou a integração entre corpo e mente, gerando assim o equilíbrio entre percepção e conceituação dos elementos sonoro-musicais. Além disso, esses educadores passaram a dar ênfase à valorização da vivência efetiva dos elementos musicais como forma de consolidação dos saberes e da expressão musicais. Nessa busca, se gerou a constituição de instrumentos didáticos para musicalização infantil, desenvolvidos levando-se em conta as necessidades da criança e as interações entre diferentes formas expressivas e sensoriais. Somado a isso, o incentivo aos processos criativos também passou a figurar como fundamental para a consolidação dos modos de abordagem dos conteúdos musicais em atividades de musicalização. Compositores como Zoltan Kodály influenciaram diversos métodos que levam em conta o uso das tradições populares, ou da música tida como folclórica para o desenvolvimento de atividades lúdico-educativas (danças de roda, brincadeiras, parlendas, canções). Além desses, devemos considerar as ações de Shinichi Suzuki, que, sobre bases psicopedagógicas, realizou contribuições importantes para o ensino coletivo de instrumentos, tendo formulado sua metodologia a partir do ensino do violino para a iniciação musical.
Em suma, temos nas contribuições desses músico-pedagogos a consolidação do que consideramos os princípios básicos da educação musical. Dentre estes estão: a liberdade na manipulação dos materiais sonoro-musicais; a relação direta com os elementos musicais; a atividade como forma de valorização da experiência concreta e perceptiva; o desenvolvimento da percepção como ponto de partida para o acesso aos conceitos musicais. Além disso, o trabalho voltado para a criatividade e liberdade de expressão criadora foram aspectos marcantes para o desenvolvimento dessa corrente pedagógico-musical e dos processos de musicalização num sentido mais amplo, como temos abordado.
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Ligados a uma segunda etapa dos avanços da educação musical, também conhecida como “música experimental na escola”, estão músicos como John Paynter e Murray Schafer, dentre outros que tiveram suas práticas influenciadas pelo estruturalismo filosófico, pelas pesquisas sociológicas e também pelos desenvolvimento tecnológico inserido no campo da composição musical contemporânea. Estes desenvolveram suas práticas pedagógico-musicais baseados nos princípios e fundamentos desenvolvidos pela corrente anteriormente citada; porém buscaram, sob novas bases contextuais, trazer contribuições no sentido da inserção de novos materiais e objetos sonoros como possibilidades expressivas. Além disso, passaram a dar maior enfoque ao “ambiente sonoro” como fator a ser considerado para uma nova educação dos sentidos e da música em meio às sociedades contemporâneas. A criatividade e a liberdade de expressão na construção musical e na formulação de novas formas alternativas de notação se tornaram algumas das principais bases de suas práticas pedagógicas.
No Brasil, temos diversos músicos e pedagogos que, ao longo do tempo, vêm se voltando a atividades pedagógicas e à formulação de métodos, além de contribuírem para a ampla produção de pesquisas na área da educação musical. Podemos citar o movimento das “Oficinas de Música”, que tem na figura de Hans-Joachim Koellreutter o impulso agregador de pesquisadores voltadas ao desenvolvimento de atividades pedagógico-musicais ligadas aos progressos anteriormente citados, porém buscando novas propostas dentro do contexto brasileiro e contemporâneo.
No contexto brasileiro, os estudos e práticas, além de objetivarem avanços para o ensino da música em espaços diversos, também vinham sendo desenvolvidos como propostas de educação musical para a escola regular, com a busca de formulação de um currículo específico para a disciplina de música. Durante o governo populista de Getúlio Vargas, sob a ideologia do Estado Novo – focado no desenvolvimento de um caráter nacional da cultura e perpassando assim a educação – a música foi incluída na escola formal por meio da prática do canto orfeônico. Naquele momento, conforme as leituras empreendidas hoje sobre tal período, a educação musical figurou nas escolas dando ênfase à formação de um caráter cívico e nacional, o que lhe imprimiu um concepção menos formativa e mais ideológica. Mais tarde, com as reformas do ensino de primeiro e segundo graus ocorrida no início da década de 1970, como havíamos ressaltado, o ensino de música deixou de existir de forma autônoma na escola. Isso fez com que os esforços que se voltavam para o desenvolvimento da educação musical na escola se direcionassem para outros ambientes de ensino musical. Este fato contribuiu, em certo grau, para que o ensino formal da música tenha se tornado pouco acessível às classes populares brasileiras.
É importante notar que o percurso traçado por tais correntes pedagógicas e os métodos por elas desenvolvidos ao longo do tempo vêm dando base à constituição de procedimentos formais de educação musical, presentes em espaços voltados ao ensino de música em vários níveis. Porém, no contexto brasileiro, a educação musical têm estado presente em outros espaços, tais como os de educação não formal. Assim, os princípios e fundamentos da educação musical destas correntes apresentam graus diferentes na aplicação do que estamos chamando
de processo efetivo de musicalização.
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2 poSSIbIlIdAdES dE IntErSECção EntrE AS prátICAS forMAIS E não forMAIS
nA buSCA do EquIlíbrIo pArA o dESEnvolvIMEnto dA EduCAção MuSICAl
A cultura musical brasileira é marcada e reconhecida pela grande riqueza e diversidade
de formas e estilos, além de propiciar uma grande variedade de modos de realização e de
organização do fazer musical coletivo. Tais práticas podem estar ligadas a manifestações
populares tradicionais, muitas vezes remanescentes do universo rural, porém ainda presentes
nos meios urbanos - sendo reconstruídas e transformadas através de associações, organizações
populares ou mesmo grupos musicais específicos. Nesse contexto a música cumpre papel
mediador das relações comunitárias, se tornando um dos componentes marcantes das relações
de sociabilidade e de construção das identidades individuais e coletivas. Essa diversidade de
práticas se apresenta, ainda, em agrupamentos e instituições que têm o fazer musical como
centro de suas atividades, tais como orquestras comunitárias, bandas municipais ou ligadas a
escolas e conservatórios, pequenos grupos musicais e corais, dentre outros.
Em quaisquer das categorias anteriormente delimitadas, há modos significativos de
transmissão de saberes musicais e de experiências de vida a serem observados quando
pensamos em processos de educação musical, no desenvolvimento de metodologias e na
sistematização das ações dirigidas aos processos de ensino e aprendizagem. Esses modos de
transmissão podem ter maior ou menor grau de formalização, normalmente regidos pelas
necessidades de cada prática concreta. Portanto, ao observarmos o contexto amplo em que a
educação musical se insere como campo de atuação do educador, devemos considerar tanto
os aspectos formais e tradicionais do ensino da música quanto as experiências não formais,
considerando-as formadoras de um conjunto de possibilidades no desenvolvimento de novas
metodologias para a educação musical.
Se retomarmos os princípios ligados ao que diversos educadores ao longo da história
formularam como geradores de uma efetiva educação musical, se faz necessário buscar a
intersecção entre os métodos formais e não formais. Assim podemos gerar a riqueza necessária
para que, em nossas ações como educadores musicais, sejamos capazes de encontrar caminhos
válidos de atuação dentro de sociedades complexas, permeadas pelo moderno mas também
pelo tradicional. Com isso, passamos a considerar a importância da escrita e também da
oralidade, assim como da comunicação tecnologicamente mediada, sem deixar de considerar
a necessidade indissolúvel do contato humano. Nesse sentido, podemos observar a existência
de uma temporalidade linear da produção industrial e capitalista que deve ser contrabalançada
pelo tempo ritualístico da música e da sociabilidade por ela gerada, onde passado e presente
podem se encontrar levando a novas possibilidades de construções culturais.
A partir daí percebemos que a educação musical que buscamos desenvolver pode se
dar fundamentalmente em três momentos ou dimensões aqui apresentados distintamente,
apenas como recurso didático. Na verdade, entendemos estes como momentos indissociáveis,
que não devem cumprir uma ordem fixada a priori. Portanto, podemos pensar especificamente
no momento do contato e aquisição de conhecimentos, alcançados pelo educando a partir
da sistematização e transmissão didática de conteúdos musicais. Este momento marca o
processo formal de educação e aquisição de conhecimentos, estando baseado nas relações
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de ensino/aprendizagem, professor/aluno, mestre/discípulo, percepção/conceituação. Uma
outra dimensão passível de análise seria a da prática musical, em que os conhecimentos são
agregados ao processo de expressão em meio a manifestações simbólicas e estéticas, gerando
o significado necessário à continuidade do fazer musical prazeroso e motivador. Neste
momento, podemos buscar o estabelecimento das relações de sociabilidade dentro das quais
as trocas são possíveis em nível de igualdade de relações e respeito às diversidades. Portanto,
podemos considerar como parte fundamental do processo de educação musical a integração
do educando em meio a um fazer coletivo, dentro do qual os indivíduos podem se perceber
contribuindo para o resultado estético-musical coletivo. Assim se desenvolve o sentido de
pertencimento, propiciando a constituição da identidade coletiva a partir da qual a educação
pode buscar o equilíbrio entre necessidades e anseios individuais e objetivos grupais - gerando
ainda a motivação para uma busca contínua pelo desenvolvimento musical e humano.
Estes momentos associados ainda a um terceiro, o da prática reflexiva como forma de
avaliação do processo de construção dos saberes, pode gerar a consolidação dos processos
de ensino e aprendizagem num caminho que vai da percepção à conceituação. Para o músico,
o educando ou ainda para o educador musical, esse percurso se desenvolve de “forma
espiralada” (HENTSCHKE, 1993, p. 47). As experiências, o contato com o material musical e com
a prática, levam a conceituações possíveis de serem retomadas a partir de novos contatos.
Nesse processo há, em cada momento, diferentes níveis de reflexão e diferentes pontos de
vista. Este é um percurso fundamental no processo de formação enquanto construção dos
saberes musicais. Assim, há um olhar lançado a partir do presente para as experiências vividas
– ao mesmo tempo em que, ao reconhecer a concretude do que foi realizado, se projeta para
o futuro no sentido da construção contínua. Essa relação intrínseca entre o conhecer e o saber,
que se corporifica pela prática, gera o sentido necessário à continuidade do crescimento
musical e humano - foco da educação musical efetiva e motivadora, capaz de enxergar o
homem em sua inteireza.
Conforme nos coloca Gainza (1998), a inserção do educando em práticas musicais efetivas
promove o equilíbrio necessário ao bom desenvolvimento musical, entre a aquisição de
conhecimentos, a recepção da música e a expressão. Assim, a inserção dos educandos em
práticas coletivas, já desde o início de seu aprendizado, tende a gerar um desenvolvimento
musical mais claro e seguro. Os conceitos passam a ser construídos a partir da experiência,
o que alicerça toda a construção dos saberes musicais a serem desenvolvidos ao longo de
uma trajetória musical saudável. Segundo a autora, o aprendizado musical seria a síntese ou o
produto das condutas receptivo-expressivas que envolvem a musicalização, podendo ser essa
síntese gerada pelo contato do educando com possibilidades de práticas musicais coletivas.
Além disso, com a vivência em meio a práticas musicais efetivas, a música ou mesmo a
performance musical passam a ter sentidos claros dentro do processo de educação musical.
Segundo Koellreuter (1997), a música retoma assim seu sentido primordial: o de mediar relações
humanas em diversos níveis. Quando essa prática está associada a procedimentos dialógicos
e de incentivo às trocas entre os membros do grupo em nível de igualdade, se fortalecem
os laços identitários entre eles, assim como entre estes e seus dirigentes e lideranças e entre
participantes do grupo e seus professores ou mestres. Todos passam a ter um foco comum - o de
eDUaRDO cOneGUnDeS De SOUZa, a presença da educação musical em espaços não-formais: um campo de possibilidades.
4242
ARTIGO
gerar a capacidade de desenvolvimento de um discurso musical fluente, dentro do qual todo o
conhecimento passe a ser aplicado e direcionado ao fazer musical efetivo. Em última instância,
estes laços se estabelecem ainda entre o grupo e seu público quando há uma preocupação em
informar os ouvintes sobre os valores humanos, culturais e estéticos daquilo que está sendo
executado e do próprio processo coletivo. Isso ocorre desde a escolha do repertório à forma
como se dá o contato entre o grupo e seu público.
Portanto, neste tipo de atividade ocorrem diversos níveis de educação, envolvendo desde o
desenvolvimento técnico musical até o desenvolvimento da sociabilidade e do senso estético
do público espectador. Em muitos casos os indivíduos integrantes desse público podem
passar a desenvolver o senso participativo, seja como ouvintes atentos ou como pessoas que
se percebem integrados como produtores de cultura e como sujeitos dos processos históricos
e sociais.
Este tipo de relação entre educação e prática musical leva a um diálogo constante
entre aquilo que se exige de uma boa execução musical e o que, por conseguinte, deve ser
trabalhado para que a performance aconteça enquanto prática social e coletiva capaz de
socializar conteúdos músico-culturais e sociabilizar o homem através da música.
Assim, passamos a entender a performance musical como uma prática que envolve mais do
que a execução musical: engloba a interação humana que se dá desde o processo de ensino/
aprendizagem até a relação do músico com a sua cultura, com seu público e com as gerações
passadas e futuras no sentido da recuperação e transmissão da memória cultural, assim como
na construção dos saberes enquanto prática social reflexiva, crítica e dialógica.
A partir disso, podemos pensar que a educação musical se expande ao reconhecer o seu
papel, indo além da transmissão de conhecimentos e habilidades musicais. Independente
de habitar o espaço formal ou não formal, ela pode formar seres humanos conscientes da
importância da música como saber sensível e possível de ser vivenciado de forma indiscriminada.
Consequentemente, o músico e o educador musical passam a ser considerados como sujeitos
sociais, com um importante papel: o de possibilitar as interações humanas e sociais a partir da
vivência musical, tendo assim a possibilidade de atuar para a expansão do acesso à cultura de
forma rica, igualitária e livre da mera reprodução dos padrões veiculados e consumidos a partir
dos meios de comunicação de massa.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 33-43, maio, 2010.
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eDUaRDO cOneGUnDeS De SOUZa, a presença da educação musical em espaços não-formais: um campo de possibilidades.
4444
ARTIGO
RESUMO
O artigo discute as premissas implícitas tanto
em trabalhos de pesquisa etnográfica da
música quanto no ensino de música modelado
institucionalmente no Ocidente, a partir do
pensamento pedagógico de Paulo Freire.
Propõe, então, com base em experiência de
longa duração desenvolvida no Rio de Janeiro,
alternativas metodológicas de abordagem da
música em ambos os contextos enfocados,
no caminho do reforço à participação ativa
de membros das culturas pesquisadas e de
educandos no processo de construção do
conhecimento.
ABSTRACT
This article discusses the premises implicit
both in the work of ethnographical research
into music and in music teaching that is
institutionally modeled on the West, based
on the teaching philosophy of Paulo Freire.
Grounded in the long term experience carried
out in Rio de Janeiro, it therefore proposes
alternative methodologies for approaching
music within both of the contexts under focus,
as a way of reinforcing the active participation
of representatives from the cultures surveyed
and of students in the knowledge building
process.
PALAVRAS-CHAVE
Educação musical. Etnomusicologia. Práxis
musical. Autonomia.
KEYWORDS
Musical education. Ethnomusicology. Musical
praxis. Autonomy.
dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de paulo freire e a etnomusicologia1
1 Texto apresentado na mesa redonda “Entre o musical e o social - diferentes perspectivas do ensino de música em projetos especiais”, realizada durante o II Ciclo de Palestras da Associação Amigos do Projeto Guri, realizado em São Paulo/SP em 4 de março de 2009.
Dialogicity and the construction of knowledge: a meeting between the thoughts of Paulo Freire and ethnomusicology.
Universidade Federal do Rio de Janeiro / Doutor em Etnomusicologia
e-mail: Araujo.samuel@gmail.com
SAMUEL M. ARAUJO
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 44-53, maio, 2010.
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ARTIGO
SaMUeL M. aRaUJO, Dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de Paulo Freire e a etnomusicologia
1 Introdução
De um modo geral, a pesquisa etnomusicológica é concebida pelo senso comum como
o estudo de uma cultura musical estranha à experiência do pesquisador. Sob esse viés, a
compreensão dos fenômenos, conhecimentos, acordos e desavenças que constituem tal
cultura parecerá ao pesquisador tão mais difícil quanto estranhas forem para ele as práticas
observadas, a língua que veicula os conhecimentos pertinentes à cultura e os discursos
em torno dos mesmos. A pesquisa propriamente dita requereria, assim, a observação e
participação do pesquisador, na medida do possível, dentro da cultura a ser pesquisada, assim
como a realização de registros variados da mesma (por meio de caderno de campo, vídeo,
áudio e outros recursos) e a interpretação do material observado e registrado em termos de
uma discussão acadêmica que, muito comumente, tem a forma escrita como principal veículo.
Poderíamos dizer, portanto, que esse tipo de pesquisa assume inicialmente uma postura
bastante despojada de pretensões em relação ao conhecimento estranho e desafiador que
já se encontra construído no universo a ser observado, através de um processo de iniciação
progressiva, até que a aquisição de certa competência cultural, ou a capacidade de operar com
os códigos de conduta “internos às culturas observadas”, permitam um discurso mais reflexivo
acerca das mesmas.
O grau em que esse discurso poderá reivindicar autoridade sobre a cultura observada,
assim como sua excelência de interpretação, dependerá de muitos fatores – entre eles
a legitimação de tal pesquisa no campo de conhecimento em questão, o renome do
pesquisador, as instituições que a tornaram possível ou a quantidade de publicações por ela
gerada. Já a repercussão do trabalho realizado será tão maior quanto o forem o exotismo
da cultura pesquisada na percepção do meio acadêmico que valoriza o racionalismo e a
ciência e, conseqüentemente, o desafio interpretativo enfrentado pelo pesquisador, assim
como o eventual reconhecimento dos pesquisados por “algo bom” que a pesquisa lhes tenha
retornado. Quando, porém, essa interpretação (“conhecimento”) leva à identificação de
alguma forma de distorção, estereotipação ou estigma atribuídos à cultura em estudo, ou,
pior, chega ser contestada publicamente pelos próprios pesquisados, põe-se sob suspeita não
apenas o trabalho de pesquisa responsável por esse tipo de desacordo entre pesquisados e
pesquisadores, mas também toda a área de pesquisa por estes representada.
Por outro lado, ao nos defrontarmos com percepções de senso comum relativas à educação
(incluída aí a musical) que, muitas vezes, estão embutidas em práticas educacionais concretas,
também podemos encontrar semelhante margem de equívoco entre o que se propõe
como caminho à construção do conhecimento, o papel ativo reservado exclusivamente ao
educador e a experiência daqueles que deveriam ser sujeitos desse processo de construção
- os educandos. Tais concepções e práticas foram denominadas “bancárias” por Paulo Freire
(1970), - ou seja, a experiência e universo cognitivo dos educandos seriam reduzido a uma
espécie de estado de latência, “à espera de” um conhecimento pré-formatado, em contextos
socialmente distantes e, muitas vezes, adversos à promoção da autonomia do educando.
4646
ARTIGO
Desnecessário lembrar aqui os muitos paradoxos dessa “charada”. Podemos citar um exemplo
apenas: a redução relativa de índices de analfabetismo, incrementando os índices do assim
chamado analfabetismo funcional.
Notemos a simetria quase absoluta entre os dois processos cognitivos comentados
brevemente até aqui. No primeiro, dentro da pesquisa etnomusicológica, o conhecimento (uma
cultura musical “estranha”) é dado como preexistente à intervenção de um agente externo, o
pesquisador - que fará, de início, um grande esforço de codificação em termos simultaneamente
inteligíveis às culturas respectivas dos pesquisados (tanto quanto for possível, a chamada
teoria musical nativa) e do pesquisador (a chamada “teoria da música”, quase sempre extraída
ou adaptada da música erudita ocidental), para finalmente ser capaz de decodificar seus
significados em termos inteligíveis tão somente à própria cultura do pesquisador (“a verdadeira
teoria”), já que o pesquisado dificilmente terá acesso ao (ou interesse pelo) produto final da
pesquisa. No segundo caso, da ação educativa a partir de modelos institucionais do Ocidente,
o conhecimento (em nosso caso, “a música”, também definida como uma cultura “estranha”)
já se encontra précodificado em termos inteligíveis à cultura do agente “externo”, o educador
(em geral, no nosso caso específico, música com teor “educacional” avalizada por instâncias
escolares), que procura decodificá-lo em termos inteligíveis aos educandos (supostamente
carentes de “conhecimentos musicais”).
Em ambas as situações, portanto, o senso comum tomaria o agente externo como termo
ativo de uma desejável equação cognitiva: no primeiro caso, entre o conhecimento produzido
pelo pesquisador e o conhecimento que conforma a experiência do pesquisado; no segundo,
entre o conhecimento depositado no educador e o conhecimento a ser depositado no
educando. Também em ambas as situações, essa equação tenderá ao fracasso, como assinalado
tanto por Paulo Freire (1970) quanto por certos antropólogos e etnomusicólogos que tratam
do diálogo intercultural: quanto maior o fosso entre a experiência e poder de vocalização das
diferentes culturas impedidas de real diálogo, tanto maior a negação de um papel mais ativo
ao pesquisado ou ao educando.
Após este longo preâmbulo, colocamos as seguintes questões: o que aconteceria se
pudéssemos vislumbrar outro mundo, em que tanto a pesquisa quanto a ação educativa
reservassem um papel ativo a, respectivamente, pesquisados e educandos [já que “ninguém
educa ninguém”, insiste Paulo Freire (1970) em várias ocasiões]? Poder-se-ia imaginar a
produção de outro tipo de conhecimento, superando relações sociais de sujeição em prol
de relações de construção efetivamente compartilhada, talvez qualitativamente superior
às do modo “tradicional” (no sentido de “tradições disciplinares”) ou “bancário”? Nesse caso,
dissolver-se-ia qualquer distinção entre pesquisa e educação?
Este artigo não pretende, obviamente, responder tais questões de modo categórico, mas
busca tão somente refletir sobre sua pertinência dentro de uma pesquisa2 realizada junto a um
grupo de dez estudantes de escolas de ensino médio da Maré - área do Rio de Janeiro marcada
pela exclusão social e violência – e conduzida por equipe do Laboratório de Etnomusicologia
2 O autor agradece o suporte do CNPq (Edital Universal nº 1 – 2002; Bolsa de Produtividade em Pesquisa 2007-2013; Bolsa de Iniciação Científica 2005-2010), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Bolsas de Iniciação de Cien-tífica, Artística e Cultural 2005-2010), do Centro de Estudos e Ações Solidá-rias da Maré - Rede Memória (2003-2010), da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Bolsa Cientistas do Nosso Estado 2005-2006; Edital Humanida-des 2009-2010; Bolsas Jovens Talentos de Iniciação Científica Jr. 2008-2010); CENPES - Fundação COPPETEC Bolsas de Convênio Pró-Iniciação Científica 2006-2010).
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 44-53, maio, 2010.
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SaMUeL M. aRaUJO, Dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de Paulo Freire e a etnomusicologia
da UFRJ, alunos de pós-graduação em etnomusicologia e de graduação em diferentes áreas de
conhecimento (música, artes visuais, história, ciências sociais, fonoaudiologia, física, biologia,
letras, pedagogia), além do autor e orientador do presente trabalho. Partindo de uma breve
exposição do contexto em que a pesquisa se desenvolve, será examinado uma série de desafios
conceituais e práticos que essa experiência tem colocado aos modos mais usuais de produção
de conhecimento na etnomusicologia, esperando-se abrir uma discussão em torno dos temas
já apontados. Acima de tudo, deseja-se compartilhar algumas perplexidades e assimilar críticas
que possam contribuir para a pesquisa em andamento.
2 ContExto GErAl dA pESquISA
A concepção da pesquisa acima referida surgiu como desdobramento de uma série de
discussões entre professores e alunos da área de etnomusicologia no âmbito da Escola de
Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na tentativa de assimilar alguns dos
debates cruciais no campo da antropologia. Entre estes, pode-se mencionar as assim chamadas
“crises” da representação e da autoridade etnográfica, assim como o valor e modo de inserção
da voz do “pesquisado” como contribuição ao debate acadêmico. Em conseqüência dessas
discussões, procuramos vislumbrar objetivos e metodologias de pesquisa experimentais que
respondessem aos desafios colocados à desejada “horizontalização”, por assim dizer, do processo
de produção de conhecimento. Estudos de pequena escala, conduzidos inicialmente por
alunos de pós-graduação, resultaram em trabalhos de pesquisa e dissertações que buscavam
combinar estratégias etnográficas tradicionais de observação participante com modelos mais
recentes, alguns dos quais auto-rotulados “dialógicos”, de etnografia. Estes embutiam cuidadosa
negociação de focos e modos de observação, assim como questões de linguagem e tradução,
bem como das formas de difusão das respectivas pesquisas. À medida que tais discussões se
tornaram sólidas e os resultados parciais mais palpáveis e difundidos através de dissertações,
publicações e participações em simpósios, algumas organizações não-governamentais (ONGs)
comunitárias da cidade do Rio de Janeiro procuraram pelo Laboratório de Etnomusicologia da
UFRJ (LE-UFRJ) em busca do estabelecimento de projetos comuns, tendo como ponto de partida
o desejo dessas instituições de trabalhar com a memória local, envolvendo o estabelecimento de
centros de referência e bancos de dados - talvez percebendo essas ações como “resultado” mais
imediatamente identificável dos projetos até então realizados pelo laboratório.
Um aspecto relevante da perspectiva particular aqui apresentada é a ênfase relativamente
recente, dada por ONGs que atuam em áreas marcadas pela violência e pela exclusão, aos assim
chamados “projetos sociais” com foco artístico - incluindo aí o trabalho de educação musical -
geralmente patrocinados por agências e instituições externas à comunidade, públicas e privadas.
Como em outras partes do mundo (IMPEY, 2002; OCHOA GAUTIER, 2002), uma idéia bastante
presente em tais projetos é o uso da arte como alternativa à violência e à exclusão. Tais projetos
artístico-sociais são tipicamente propostos a uma ONG comunitária por iniciativas isoladas
de artistas, ou coletivos artísticos, externos à comunidade (por exemplo, não-residentes em
4848
ARTIGO
seus limites espaciais), que muitas vezes assumem, eles próprios, o papel de educadores
propriamente ditos. A credibilidade constitui fator capital na captação de recursos para a
viabilização de cada projeto - mas, eventualmente, a projeção social do artista também terá
uma influência muito grande, ou talvez ainda maior que a da própria ONG, sobre o acesso a
determinadas oportunidades de patrocínio ou financiamento.
Os programas ou, termo mais recorrente entre as partes envolvidas, “projetos” artísticos, incluindo
os musicais, possuem focos variados, desde a transmissão de noções de leitura e escrita musicais
à formação de grupos de flauta-doce ou de percussão. Rotineiramente, inexiste integração entre
os mesmos, o que reflete a dificuldade das ONGs em acompanhar, de um modo geral, os diversos
projetos em andamento sob sua tutela. Disso resulta certa desarticulação e, não raro, contradições,
quando não conflitos, entre as várias experiências envolvidas.3
3 ContExto pArtICulAr
A primeira parceria do LE-UFRJ em projetos dessa natureza foi firmada com o Centro de
Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM),4 ONG criada por moradores de uma das áreas
residenciais do Rio de Janeiro mais estigmatizadas pela equação favela-exclusão-tráfico-
violência - uma representação parcial, mas decerto recorrente como “verdade” em certo
espectro do imaginário carioca e brasileiro, incluindo desde formuladores de políticas públicas
até agentes do aparelho repressivo de Estado, por seu viés conservador e discriminatório.
É importante estabelecer aqui um parêntese para que possamos destacar a enorme ambigüidade
conceitual, notada por Löic Wacquant, no que concerne às categorias desenvolvidas acerca dos
núcleos residenciais urbanos das grandes metrópoles, que congregam majoritariamente os
estratos subalternos da hierarquia social de base capitalista. As “favelas”, no caso brasileiro, seriam
algo definível entre “slum” e “ghetto” no caso norte-americano, encerrando, segundo o sociólogo
francês, os quatro requisitos que elevariam os dois termos em inglês de um plano meramente
descritivo e circunstancial a categorias sociológicas abrangentes: estigma, constrangimento/
repressão (constraint), confinamento espacial e auto-institucionalização (criação de instituições
voltadas para o atendimento de demandas internas) (WACQUANT, 2004). No contexto mundial de
hegemonia neoliberal da década de 1990, a desindustrialização e a conseqüente deterioração de
instituições “tradicionais” (laborais, culturais e outras) dos guetos teriam levado, ainda segundo o
mesmo autor, à hegemonia do tráfico de drogas como instituição nas áreas em questão.
A Maré possui aproximadamente 135 mil habitantes distribuídos em cerca de 16 subáreas
reconhecidas como distintas pelos moradores, envolvendo diferenças sociais, econômicas e
demográficas significativas. As populações respectivas de cada uma variam entre 8 mil e 25
mil habitantes, que derivam de movimentos populacionais social e historicamente diversos -
incluindo desde populações removidas de outras localidades do Rio de Janeiro até oriundos de
processos migratórios de trabalhadores para a área industrial — em sua maioria, nordestinos
— passando até mesmo por movimentos migratórios internacionais, como é o caso dos mais
de mil angolanos, entre estudantes e refugiados de guerra, que lá vivem. Tais referenciais
3 Em seminário acontecido na cidade do Rio de Janeiro/RJ em 2003, o re-presentante de uma importante ONG da cidade manifestou a preocupação da entidade com ao questão da de-sarticulação, uma vez que a organi-zação possuía, à época, mais de 900 projetos realizados simultaneamente. Na ocasião, este tema foi eleito como prioritário para o seminário a ser reali-zado no ano seguinte.
4 Mais informações sobre a histó-ria, demografia e cultura locais em www.ceasm.org.br .
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 44-53, maio, 2010.
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SaMUeL M. aRaUJO, Dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de Paulo Freire e a etnomusicologia
apenas sugerem os amplos contornos humanos e culturais da área da Maré, pontuados por
uma dura exposição a violentas incursões policiais, à tibieza e corrupção do poder público e às
lutas sangrentas entre facções do tráfico de drogas em disputa pelo controle de territórios.
Nesse contexto, o CEASM, parceiro institucional do LE-UFRJ, é uma das mais visíveis e reputadas
ONGs comunitárias atuantes na região, dispondo de considerável infraestrutura (dois prédios
localizados na comunidade, além de dependências administrativas bem equipadas, salas de aula
com bom suporte de equipamentos, salas de informática, biblioteca e bancos de dados) e um forte
foco na preparação de jovens para exames vestibulares, visando especialmente as instituições
públicas de ensino. Por meio da continuada interlocução entre a administração da ONG e as
lideranças locais, definiu-se como objetivo dos programas de arte ali realizados a complementação
do ensino preparatório para os vestibulares, desenvolvendo nos alunos, dessa forma, capacidades
complementares que contribuam para sua formação geral.
Após alguns meses de discussões, a colaboração CEASM/LE-UFRJ estruturou-se em torno
da criação de um banco de dados sobre a produção musical na Maré, levando-se em conta a
contribuição dessa atividade na formação global de seus moradores - notadamente os participantes
de projetos culturais em áreas como música, dança, teatro e contação de estórias, entre outros.
4 MúSICA E SoCIAbIlIdAdE nA MAré
Uma versão inicial do projeto foi preparada por uma equipe do LE-UFRJ5 tendo
como principais pontos de partida: a) o retorno positivo, tanto em termos éticos
quanto epistemológicos, de experiências prévias em pequena escala, envolvendo
modos experimentais de etnografia, cujos respectivos focos foram negociados entre os
pesquisadores universitários e membros dos grupos estudados, assim como o envolvimento
destes em vários estágios da pesquisa propriamente dita6; b) em contraste com os muitos
projetos artísticos em andamento, a ênfase nos recursos musicais produzidos ou disponíveis
localmente; c) a considerável experiência acumulada em subcampos da pesquisa acadêmica
qualificados como “aplicados”, “advocatícios” e “participativos” nas ciências humanas,
incluída a etnomusicologia, e a disponibilidade de literatura a eles relacionada; d) o suporte
institucional de agências de fomento e da universidade em meio a um quadro político de
crescente consciência das acachapantes desigualdades sociais, políticas e econômicas
vigentes no país.7
Discussões intensas com representantes da ONG parceira, entre educadores, historiadores
e representantes administrativos, levaram ao desenvolvimento do projeto inicial de um ano
de duração, restrito a duas subáreas da Maré e envolvendo três estágios básicos. O primeiro
deles consistiu de dois encontros semanais, por um período de quatro meses, com um grupo
de vinte estudantes voluntários de escolas de ensino médio residentes na comunidade, e em
sua maioria já participantes de outros projetos, com o objetivo de identificar áreas temáticas
e desenvolver uma base conceitual para a formação do banco de dados sobre a música local.
5 Compreendendo dois dou-Compreendendo dois dou- dois dou-tores, um mestre egresso da UFRJ e três alunos de pós-gra-duação.
6 Por exemplo, como colabo-exemplo, como colabo-, como colabo-radores em registros sonoros, tradutores de variações lingüís-ticas locais e outras atividades.
7 Não discutimos aqui, por ex-discutimos aqui, por ex- aqui, por ex-trapolar os limites do trabalho, em que medida se encaminha a efetiva solução ou apenas se tergiversa a respeito do tema, mas parece evidente que, frus-tradas ou não, as expectativas manifestadas publicamente são no sentido de sua superação.
5050
ARTIGO
Para tal, utilizou-se uma estratégia moldada em torno do pensamento pedagógico de Paulo
Freire (1970, 1996), em que os pesquisadores universitários atuassem tão somente como
mediadores do debate entre os pesquisadores “nativos” sobre categorias e objetos relevantes
para a pesquisa musical.
O segundo estágio, em andamento e sem previsão de término ou resultados concretos no
momento8, envolve a documentação propriamente dita de práticas musicais e depoimentos
em suportes de áudio e imagem - preparação para o que seria a terceira e última etapa do
projeto, igualmente com prazos abertos: a construção do banco de dados de acesso público,
localizado em uma das dependências do CEASM na Maré9, e o desenvolvimento de programas
de difusão de seu conteúdo entre a comunidade e o público em geral.
5 olhAr loCAl dEfInIndo tEMAS pArA uMA pESquISA dA MAré
Um grande número de questões potenciais emergiu durante as discussões para a realização
da primeira etapa do projeto. Examinaremos aqui apenas algumas entre as mais recorrentes.
As diferenças entre as experiências musicais individuais dentro do próprio grupo
de residentes locais foram imediatamente percebidas e discutidas como traço presente
na experiência comunitária como um todo. Após algumas discussões que serviram ao
amadurecimento da questão e superação, ao menos parcial, de certo individualismo na
apreciação da experiência alheia, a noção de paisagem sonora (SHAFFER, 1977a, 1997b)
foi introduzida pelos pesquisadores universitários e reconhecida, de um modo geral,
como pertinente à questão em análise. Na paisagem sonora da Maré, foram identificados
os gêneros pagode, forró, rock, reggae, gospel (música popular evangélica) e funk
(incluído aí o gênero “proibidão”, ligado à apologia do tráfico), além da música ouvida
por segmentos minoritários, como o pop africano ouvido por angolanos. Constatou-
se também muito rapidamente que cada um desses gêneros pode tanto ser a escolha
exclusiva de um indivíduo como fazer parte de um espectro mais amplo de opções em seu
cardápio auditivo - o mesmo podendo ser dito sobre as fontes de experiência musical dos
residentes da comunidade, que envolvem uma ampla gama de recursos midiáticos, além
de eventos públicos e privados em espaços fechados ou abertos, próximos ou distantes
da Maré (incluindo outros bairros ou regiões da cidade); um leque, enfim, não muito
diferente do disponível à maioria dos habitantes do Rio de Janeiro. À medida que tais
discussões foram aprofundadas, as distinções entre gostos musicais foram reconhecidas
como relacionadas a fatores como idade, educação formal, afiliação religiosa, período de
residência na Maré e proximidade relativa com o tráfico de drogas (o que não significa
necessariamente envolvimento direto).
É relevante notar, também, que a revelação e análise iniciais dessas diferenças, com se
poderia esperar, desse margem a extensos períodos de silêncio significativo (ver FREIRE, 1970)
durante os primeiros encontros. Pouco a pouco, no entanto, determinadas estratégias de
8 Retornando ano após ano aos mes-Retornando ano após ano aos mes- ano após ano aos mes-mos locais de prática musical pesqui-sados, constatamos em muitos deles a mudança de objetivos, públicos e repertórios, entre outros aspectos.
9 O CEASM foi recentemente contem-plado com um Ponto de Cultura, pro-grama de auxílio à criação de centros de fomento à cultura do Ministério da Cultura, tendo apresentado o projeto Museu da Maré, que prevê, entre ou-tras ações, o abrigo e continuidade do banco de dados, em gestação, so-bre a produção musical local.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 44-53, maio, 2010.
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SaMUeL M. aRaUJO, Dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de Paulo Freire e a etnomusicologia
interação propostas pelos pesquisadores universitários10 abriram a cada um dos participantes
a possibilidade de apreciação da forma e conteúdo dos estilos musicais preferidos pelos
demais estudantes.
Outro tema significativo surgido nas primeiras discussões foi o impacto da violência sobre
a vida social em geral e, particularmente, sobre a vida musical. Violência, nas discussões realiza-
das, aparece quase sempre relacionada ao tráfico de drogas (às “guerras” por território) e/ou à
ação policial. É importante registrar que os exemplos de violência abordados nos debates foram
freqüentemente associados aos sons significativos de suas variadas manifestações, indo as refer-
ências específicas do volume do alto-falante de uma entidade de religiosa, na tentativa de “abafar”
o ruído amedrontador da luta armada, até rajadas de metralhadoras em meio ao baile que segue.
Essa percepção torna particularmente relevante a ênfase na categoria “som”, sobrepondo-se às
noções mais elásticas e abrangentes de “música”, ao se tratar do mapeamento do contínuo entre
a criação seletiva e a experiência cotidiana mediadas por esse mesmo som. Nesse sentido, vale
retomar a noção de paisagem sonora de Schaffer(1977b), ressaltando o caráter descritivo de uma
realidade dada, a partir da qual se pensam novas formas de intervenção ou composição. Na alter-
nativa de se trabalhar apenas com a descrição da paisagem sonora, tem se mostrado relevante
pensar o contínuo que move a experiência humana entre sons perceptíveis e sons significativos
- estes últimos marcados por situações mais ou menos ritualizadas, ou, em outras palavras, as for-
mas de ação sobre as paisagens sonoras e as condições de sua produção (ver ARAUJO, 1992).
Não obstante a violência física em estado latente e o terror que se impõe em dados momen-
tos, a violência tem aparecido mais freqüentemente nos discursos dos pesquisadores da Maré
sob sua forma mais sub-reptícia e eficazmente perversa: como violência simbólica (BOURDIEU,
1997). Reconhecida apenas ocasionalmente e, ainda assim, em estágio muito recente das dis-
cussões, a violência simbólica aparece muitas vezes sob a forma de depreciação da produção
local — ou até mesmo de incredulidade diante do fato de que esta ideia possa fazer sentido
— pelos próprios residentes, talvez como resultado de anos de políticas voltadas ao que lhes
“falta”. A adoção de uma perspectiva dialógica e não diretiva, com ênfase em questões que
sejam relevantes aos sujeitos do diálogo, sempre encontra uma grande resistência interna dos
próprios (ver FREIRE, 1970). No entanto, à medida que são superados os mecanismos de vio-
lência simbólica que lhes impõem visões de mundo conservadoras e a eles próprios contrárias,
não apenas é modificada a atitude em relação à construção do conhecimento, dissolvendo
contradições inexistentes entre o plano particular e o geral, mas continuamente reinventada a
agenda de pesquisa de temáticas significativas.
Nesse ponto, embora não se possa assegurar a continuidade ou a autossustentabilidade
(redução do papel da universidade em paralelo ao incremento das condições locais) da ex-
periência em curso, é importante lembrar que muitos dos programas artísticos, ao depend-
erem de conteúdo definido exclusivamente por um responsável não-residente, são interrom-
10 Por exemplo, mostrando videodo-exemplo, mostrando videodo-, mostrando videodo-cumentários registrando diferentes práticas musicais na Maré ou através da realização de entrevistas levantan-do as histórias de vida, com ênfase na experiência musical, dos próprios pesquisadores residentes.
5252
ARTIGO
pidos quando este interrompe sua participação ou sua colaboração com a ONG responsável,
deixando freqüentemente um senso de vácuo ou frustração na comunidade.
A violência simbólica têm aparecido também sob a forma de conceitos acerca de práticas locais
concebidos a partir de visões externas socialmente legitimadas, tais como o discurso acadêmico
ou de agências de Estado, que “congelam”, por assim dizer, as práticas sociais, falhando em re-
conhecer - ou, de acordo com Bourdieu (1997), “reconhecendo” erroneamente - estratégias práti-
cas dinâmicas ou apresentando-as como categorias relativamente “fechadas” que não fazem o
menor sentido no mundo real. Isso traz sérias implicações ao trabalho, uma vez que as discussões
entre os pesquisadores residentes na Maré têm revelado usos particulares locais de categorias
aparentemente estabelecidas com diferentes sentidos no meio acadêmico, lado a lado ao uso de
categorias de amplo uso local que permanecem absolutamente excluídas dos estudos acadêmi-
cos sobre a exclusão e a violência. Conseqüentemente, não parece inoportuno especular sobre
a relativa inocuidade de muitos rótulos e abordagens centradas em categorias aparentemente
estabelecidas em torno de características exclusivamente sonoras (samba, forró, funk e outras)
que permeiam a literatura sobre as culturas musicais populares no Brasil, vis-à-vis a extremamente
significativa, embora amplamente ignorada, práxis - conceito que integra o sonoro a outras di-
mensões da vida e que move as lutas diárias pela sobrevivência física e emocional.
6 dIAloGICIdAdE E ConStrução dE ConhECIMEnto SobrE A MúSICA
Com base na experiência em andamento, aqui discutida, levanta-se, à guisa de provocação
ao debate, três questões potenciais:
1. Se, como proposto por Paulo Freire (1996), a construção de conhecimento só é concre-
tamente possível quando se parte de uma investigação temática que interrogue a reali-
dade imediatamente apreensível, talvez tenhamos que repensar o próprio tema deste
trabalho, pesquisa e educação musical, e destacar a alta relevância sociocultural, pelo
menos no contexto aqui discutido, de um contínuo de significados partindo de sons
relativamente isolados a formas sonoras mais ritualizadas tais como a fala, a música e
outros tipos de práticas e eventos sonoramente estruturados.
2. As condições de emergência e predominância da violência física (por exemplo, a estag-
nação econômica levando ao tráfico de drogas como alternativa de “sobrevivência”) po-
dem ser mais conjunturais e efêmeras que aquelas associadas à violência simbólica, que
provavelmente não desapareceria num mundo de menor desequilíbrio sócioeconômico.
3. Assumir uma postura dialógica requer ultrapassar a falsa dicotomia entre pesquisa e
ação educativa, mantendo no horizonte — contra todas as evidências do mercado, da
globalização, etc., etc. — a utopia de busca de sentido na agência simbólica sob a he-
gemonia aparentemente irresistível da forma mercadoria.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 44-53, maio, 2010.
53SaMUeL M. aRaUJO, Dialogicidade e construção do conhecimento: um encontro entre o pensamento de Paulo Freire e a etnomusicologia
Referências
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5454
ARTIGO
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 54-66, maio, 2010.
RESUMO
Este trabalho traz uma proposta de educação
musical que tem por objetivo a qualidade
musical e a emancipação social. Tal proposta
tem como centralidade a diversidade musical
brasileira e como metodologia a prática
musical, as rodas de conversa e o apoio
social. Sua ênfase pedagógico-musical está
nas atividades de performance, criatividade
e percepção, sugerindo que seu mote seja
construído por educadores e educandos.
Como resultado, espera-se que surjam
grupos musicais de excelência artística com
identidades próprias ligadas à cultura brasileira,
trazendo novos repertórios e formações
instrumentais diversas e inovadoras.
ABSTRACT
This work offers a proposal for music
education aimed at musical quality and
social emancipation. The centrality of this
proposal is in Brazilian musical diversity and
its methodology lies in the practice of music,
circles of conversation and social support. Its
teaching-musical emphasis is on the activities
of performance, creativity and perception,
suggesting that its motto be constructed by
educators and students. As a result, it is hoped
that artistically excellent musical groups with
their own identities, tied in to the Brazilian
culture, will appear, bringing new repertoires
and diverse and innovative instrumental
formations.
PALAVRAS-CHAVE
Educação musical. Instrumentos musicais.
Ensino coletivo.
KEYWORDS
Musical education. Musical instruments.
Collective teaching.
JOEL LUIS BARBOSA
Escola de Música da UFBA/DMA e-mail: jlsbarbosa@hotmail.com
uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em“orquestras brasileiras”1
1 Texto apresentado durante o I Semi-nário Projeto Guri: Ação sociocultural e Educação musical, realizado entre 28 de novembro e 1º de dezembro de 2007 em São Paulo/SP. Inclui atualiza-ções realizadas pelo autor.
A proposal for Social and Brazilian Musical Education through the Practice of Musical Instruments in “Brazilian Orchestras”.
55
ARTIGO
JOeL LUiS BaRBOSa, Uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em“orquestras brasileiras”
1 Introdução
O que entendemos por ensinar ou aprender um instrumento musical? O processo de ensino-
aprendizagem de um instrumento é um processo de educação musical. Mas que educação
musical queremos para os alunos de instrumentos? Uma educação musical que promova impactos
positivos na qualidade de sua vida pessoal, social, política e profissional? Existe alguma educação
musical que, por si só, promova tais impactos? Se sim, como é ela? Como pode a música, enquanto
fenômeno sonoro, nos transformar? Os valores históricos, sociais e psicológicos de uma prática
musical desempenham algum papel neste processo de transformação? Se quisermos que o aluno
obtenha autoconhecimento e autocrescimento, assim como a formação de grupos musicais mais
ricos artisticamente falando, talvez uma educação musical que trabalhe os valores identitários e a
criatividade por meio da diversidade musical brasileira, fazendo uso de rodas de conversas e apoio
social aos educandos, promova esses resultados. Precisamos de uma educação musical brasileira
e social - brasileira por ter sua centralidade nos aspectos identitários musicais, culturais, sociais e
históricos do Brasil, e social por buscar libertar os educandos dos fatores históricos, econômicos e
educativos que os oprimem.
2 pArtE SoCIAl
Índices da Fundação Getulio Vargas (REBIDIA, 2001) dizem que 50 milhões de brasileiros
vivem abaixo da linha de indigência (29% da população), enquanto a Organização das Nações
Unidas (BRASIL, 2006) estima que este número deverá subir para 55 milhões em 2020. No
ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o Brasil ocupa a 75a posição, estando
entre os países cujo índice é considerado elevado. Contudo, uma pesquisa feita por Marcelo
Paixão (MILANEZ, 2001), da ONG Fase, quando o Brasil ocupava posição inferior a tais países,
afirma que o país cairia da 74a para a 108a posição se fossem analisadas apenas as condições
de vida dos afrodescendentes. Se somente a parcela de pessoas brancas fosse contabilizada,
por sua vez o país ocuparia a 48ª posição - ou seja, o Brasil “dos brancos” seria quase duas
vezes e meia mais rico do que o “dos negros”. De acordo com critérios do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), a parcela negra da população é formada pela soma de pretos
e pardos, o que representa 45% do total populacional. Entre eles, estão 64% dos pobres e
69% dos indigentes do país (MILANEZ, 2001; NASSIF, [ca. 2007]). Certamente este quadro não
mudou significativamente nos últimos anos.
A herança social de alunos de música de projetos comunitários tem relação com os índices
apresentados. Muitos desses alunos olham ao seu redor e vêem avós, pais e familiares que
conseguiram pouco em termos de educação, profissão e renda para garantir uma qualidade
de vida digna a seus familiares. Acrescente-se a isso o discurso adotado pela mídia, durante
décadas, de que o pobre e o negro dificilmente conseguem evoluir na escala social. Desde a
época da colonização, estes dois grupos foram inferiorizados e marginalizados pelas políticas
sociais, econômicas e educativas (FANON, 2002).
5656
ARTIGO
Considerando a situação social do país, acredito que um projeto de educação musical com
fins sociais deve ter uma proposta idealista, no sentido de promover a libertação da opressão
social e histórica em que os educandos se encontram. Ela deve ter como ideal o crescimento
do educando em termos pessoais, sociais, artísticos e profissionais. Com isso, indaga-se: será
que a música pode cooperar neste sentido?
O educador musical John Drummond e o filósofo da educação musical David Elliott
defendem que a educação musical pode ajudar o educando em seu processo de auto-
conhecimento e autocrescimento. Drummond declara em seu artigo na International Society
for Music Education (ISME) Newsletter que:
Ela [a música] nos coloca em contato com nossa origem, nossa herança ou heranças culturais, e
não há base melhor que esta para se construir nossa visão de futuro. Ela também desenvolve nosso
entendimento estético - nossa compreensão além do mundano. A música articula nossa visão e
como a Bíblia coloca isso: ‘onde não há visão o povo perece’ (DRUMMOND, 1998, p.5, tradução
nossa).
Elliott (1995, p. 14, tradução nossa) afirma “que o fazer música e o ouvir música são formas
únicas de pensar e fontes únicas dos mais importantes tipos de conhecimentos que seres
humanos podem obter.” Ele declara também que:
Os valores primários da educação musical são os valores primários da música: autocrescimento,
autoconhecimento, prazer musical, gozo e a felicidade que vem destes – em síntese, é um certo modo
musical de viver. Educação musical é uma fonte única e principal de diversos valores fundamentais
da vida (ELLIOTT, 1995, p.308, tradução nossa).
2.1 descolonização e roda de conversa
Apesar das declarações destes educadores, cabe a seguinte pergunta: em vista da situação
social, econômica e educacional em que se encontram os educandos de baixa renda que participam
de projetos sociais, como pode se dar o crescimento integral (individual e social) deles?
Acredito que para um crescimento significativo desses jovens é necessário que eles
passem por um processo de “descolonização”. Dan Baron, em seu livro Alfabetização cultural: a
luta íntima por uma nova humanidade, define descolonização como: “O processo para entender
os efeitos psicossociais e psicoemocionais do projeto intelectual do colonialismo e como eles
se manifestam em nossas relações e organizações sociais para convertê-las em uma prática de
respeito intercultural e igualdade multicultural” (BARON, 2004, p. 420).
Assim sendo, a prática musical pode ser propícia para desencadear o processo de
descolonização do educando, pois é uma atividade que traz consigo valores históricos, culturais,
psicológicos e artísticos de um povo e de sua história. Consequentemente, por meio da prática
musical aliada à reflexão, ele pode compreender tais valores, ampliando o entendimento a
respeito das realidades do passado e do presente, de quem é o outro e, principalmente, de
quem é ele mesmo em sua sociedade. Para tal, esses valores da prática musical precisariam
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 54-66, maio, 2010.
57
ARTIGO
ser objetos de diálogo na aula de música, em formato de “rodas de conversa” que sigam a
metodologia dos “círculos de cultura” de Paulo Freire (1967). O pesquisador e educador Luiz
Nascimento, referindo-se aos círculos de cultura, diz que: “Essa forma de organização facilitava
o desenvolvimento do trabalho, além de favorecer uma maior aproximação entre os próprios
educandos, e entre estes e o educador. […] Evidenciava-se, assim, a força da linguagem como
processo de ‘inter-ação’ humana” (NASCIMENTO, 2005, p.44).
Feitosa (2005, p.32) acrescenta que o método de Freire “agrega a leitura do mundo a da
palavra e, por isso, auxilia o educando a ler o contexto em que vive, utilizando seus saberes
para transformá-lo.” Não ocorre o mesmo na educação musical? Não precisamos que nossos
alunos entendam a cultura da prática musical que realizam? Não necessitamos que eles leiam
e transformem o mundo em que vivem? Acrescentemos a isso o que o próprio Freire diz em
seu livro Pedagogia do Oprimido:
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de
falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir,
humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta
problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar (FREIRE, 1987, p.78).
Quando o grupo dialoga entre si, tem maior chance de construir sua identidade artística
e resolver problemas metodológicos e de relacionamento, podendo encontrar seu caminho
para o processo de descolonização. Seus integrantes perguntam na roda de conversa: “Qual
é a minha origem e história? Quem sou eu hoje? Quem sou eu neste grupo? Quem somos
nós como grupo? O que estou/estamos fazendo neste curso? O que espero/esperamos
dele? Por que participo/participamos dele? Qual a importância dele para minha vida e para
minha comunidade? Quais os valores históricos e culturais desta prática musical para nossa
comunidade local e sociedade?” Um grupo de indivíduos que constroem seus relacionamentos
para juntos entenderem e terem consciência dos motivos e objetivos, pessoais e grupais, que
os fazem estar juntos, desenvolvendo suas atividades, pode melhor garantir a construção, a
qualidade e a consolidação do produto artístico.
Uma abordagem semelhante é utilizada por Maria Eugenia Milet na área de teatro. Ela
aplica sua metodologia dentro do CRIA (Centro de Referencia Integral de Adolescentes),
ONG de Salvador que tem obtido grande sucesso em suas atividades, recebendo premiações
nacionais e internacionais. Ali, esta abordagem é chamada de “quem sou – quem somos nós”.
Milet a define como sendo:
um método de avaliação e exercício criativo-educativo, desenvolvido durante todo o processo
– expressão escrita, oral, musical e cênica – que desafia cada jovem-ator a exercitar a expressão
poético-histórica de sua própria pessoa, através da revelação de seu momento presente. O desafio
consiste, principalmente, em cada pessoa encontrar coragem de encarar o próprio medo diante do
espaço vazio do eu desconhecido (MILET, 2002, p.82).
JOeL LUiS BaRBOSa, Uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em“orquestras brasileiras”
5858
ARTIGO
2.2 Apoio social
O processo de emancipação social pode ser mais eficiente e extensivo se a concepção do pro-
jeto considerar a teoria de Fato social total formulada por Marcel Mauss. Ele define “o social como
real” e acrescenta que o social “não é real se não for integrado em sistema” (MAUSS, 2003, p. 23).
Maus explica que, para interpretar um fato social como total, é necessário “observar a conduta das
pessoas como um todo e não dividida em faculdades”, conectando “o físico, o fisiológico, o psíquico
e os aspectos sociais” do indivíduo (MAUSS, 2003, p. 23). Isso significa que os educandos precisam
ser considerados em sua situação social como um todo. Muitos deles deixam os projetos sociais
por necessidades financeiras, enfraquecendo seu processo de emancipação social. Sendo assim,
bolsas de monitoria e apoio para preparação ao vestibular seriam ajudas sociais significativas, prin-
cipalmente para aqueles que desejam ser músicos profissionais.
Em suma, o processo de emancipação ou libertação do educando acontece em sua mente.
Isto ocorre porque os indivíduos estão juntos, constituindo um grupo. Seria impossível para
um educando construir sozinho esse processo, sem as atividades e relacionamentos sociais do
grupo. Como escreveu Paulo Freire: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho:
homens se libertam em comunhão”. (FREIRE, 1987, p. 52).
3 pArtE MuSICAl
3.1 Colonização e educação musical
A colonização, que afetou também a educação musical no Brasil, ainda mantém uma forte
presença. É importante entender esta presença no momento de tomar decisões relativas à
concepção de projetos de educação musical. O conceito estético da música surgiu a partir das
idéias de Baumgarten, em 1735, e se consolidou na área musical por meio do trabalho de um
pequeno grupo de pensadores europeus brancos e do sexo masculino (ELLIOTT, 1995, p. 22-
26). Muitos músicos europeus que chegaram ao Brasil no fim do século XVIII e durante o século
XIX propagaram este conceito em suas aulas e ensinamentos. Os conservatórios brasileiros
criados em meados do século XIX passaram também a ensinar de acordo com o conceito
europeu.
Na segunda metade do século XX, aparece o conceito de educação musical como educação
estética (REIMER, 1970), que depois é absorvido no Brasil. Ainda hoje, este conceito está
presente na prática e ensino da música de concerto no país. De maneira geral, ele entende
a música como uma coleção de obras a serem apreciadas pelos seus elementos estéticos
expressivos: melodia, ritmo, harmonia, timbre, dinâmica, textura e forma (ELLIOTT, 1995, p.
28). Partindo deste conceito, muitas tradições musicais brasileiras, tais como as músicas de
trabalho, de roda de samba, frevo, maracatu, carimbó e outras, eram e ainda são consideradas
“inferiores” à música erudita européia por serem composicionalmente simples. A política de
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ARTIGO
colonização tratou o indígena e o africano, assim como suas culturas, como inferiores. Dessa
forma, o conceito estético não permite ao educando entender e valorizar tradições musicais de
nossa cultura como elas realmente são - práticas humanas que trazem relações entre padrões
musicais e valores de natureza religiosa, social, moral, cultural, histórica, política, psicossocial e
psicológica. Esta outra maneira de conceber a música está ligada à filosofia praxial da educação
musical, conceituada por David Elliot em seu livro Music matters: a new philosophy of music
education (1995, p. 33).
Manter o ensino de instrumentos focado no conceito estético é útil, quase que exclusivamente,
para formar instrumentistas e apreciadores da música de concerto. Não incluir ou não optar
pelo conceito praxial da educação musical é manter a mente de muitos educandos colonizada,
perdendo-se a oportunidade de, por meio da música, permitir que eles conheçam a riqueza de sua
cultura, entendam amplamente sua história e sociedade e compreendam mais profundamente
a si próprios e às pessoas com quem compartilham este chão chamado Brasil. Limitar-se ao
conceito estético é, por exemplo, aprender a interpretar Mozart e Brahms na clarineta, buscando
conhecer os pensamentos europeus do Classicismo e Romantismo e a sociedade de então, e
perder a oportunidade de, por meio da clarineta, entender valores históricos, sociais, ambientais
e humanos do Brasil presentes nos choros de Pixinguinha, nos frevos de Lourival Oliveira e nos
carimbós de Verequete – conhecimentos por meio dos quais os alunos poderiam se conhecer
melhor e atuar com mais qualidade como membros de um grupo musical e da sociedade.
Como se pode notar, no Brasil não existem apenas os conceitos europeus de música ou
de educação musical que vieram com o colonizador. Existiam e existem outros conceitos
presentes no modo de pensar, fazer e ensinar a música de tradição afrobrasileira, indígena, rural
e popular urbana. A música afrobrasileira, por exemplo, contém texturas musicais e estruturas
rítmicas complexas não encontradas na música européia, como exposto por Nketia (1963,
1974) e outros etnomusicólogos. Possui concepções musicais únicas que podem enriquecer
muito a formação musical do educando. Os valores da música de candomblé, ampliando o
exemplo, estão nas relações de seus padrões rítmicos e melódicos com os elementos religiosos,
psicológicos, psicossociais e de natureza humana expressos nas vestimentas e danças de seus
praticantes durante os rituais (CARDOSO, 2006).
A diversidade brasileira é desvalorizada, por um lado, pelos conceitos herdados da
colonização e, por outro, pela ganância e pressão capitalista da indústria cultural que tende a
homogeneizar o cenário musical, movida por interesses financeiros. Salles (2005), comentando
o livro Diversidade cultural: globalização e culturas locais: dimensões, efeitos e perspectivas,
organizado por Leonardo Brant, apresenta “uma nova dimensão sobre cultura ao oferecer
um panorama amplo do tema e buscar compreender a importância da diversidade como
pressuposto básico para a existência da própria vida”. A homogeneização que advém da mídia
atrapalha os processos criativos dos grupos musicais que buscam identidades próprias para
dar mais colorido aos tons da aquarela brasileira.
JOeL LUiS BaRBOSa, Uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em“orquestras brasileiras”
6060
ARTIGO
3.2 proposta de educação musical com orquestras brasileiras
A visibilidade de projetos sociomusicais deve vir da excelência dos grupos musicais e de suas
apresentações. Quando se fala de grupo musical de excelência, é importante definir a identidade
e perfil artístico-musical desejados para ele. Neste sentido, uma educação musical que tenha
como centralidade a diversidade musical brasileira e enfatize a criatividade poderá proporcionar
grupos musicais de excelência artística com identidades próprias, ligadas à cultura brasileira por
seus repertórios e formações instrumentais tradicionais, diversas e/ou inovadoras.
Considerando isso e a preocupação social exposta na primeira parte deste texto, a filosofia
praxial da educação musical de David Elliott pode muito bem nos orientar. Ele explica que
o termo praxial de sua filosofia “enfatiza que a música deve ser entendida em relação aos
significados e valores evidenciados na realidade do fazer e ouvir música de contextos culturais
específicos” (ELLIOT, 1995, p. 14, tradução nossa). Afirma ainda que todos os estudantes de
música devem ser ensinados do mesmo modo básico: executar, improvisar, compor, fazer
arranjos e memorizar a música, preferivelmente, pela percepção (Idem). Em função disso,
apresento uma proposta para um programa de educação musical com orquestras brasileiras:
Tabela – Quadro Curricular
Etapa Curso DisciplinaCarga
horáriaOrquestras brasileiras Duração
primeira
Curso el-
ementar em
instrumentos
musicais
Instrumento
de percussão120 horas
Escola de samba, mara-
catu, fanfarra, congada,
etc..
3 anos
Instrumento
harmônico120 horas
Grupos de carimbo,
cururu, siriri, roda de
samba, etc..
Instrumento
melódico120 horas
Banda de música,
orquestras de cordas
pinçadas e de cordas
friccionadas, banda de
pífanos, etc..
Segunda
Curso avan-
çado em
instrumentos
musicais
Instrumento
melódico,
harmônico ou
de percussão
360 horas
Orquestra sinfônica,
banda sinfônica, or-
questra de frevo, grupo
de bossa nova, regional
de choro, etc..
3 anos
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 54-66, maio, 2010.
61
ARTIGO
O quadro anterior apresenta o resumo de uma proposta de educação por meio de
instrumentos musicais, formada por duas etapas - dois cursos e três disciplinas. As disciplinas da
primeira etapa são simultâneas. Já as atividades musicais ocorrem em grupos ligados às tradições
musicais brasileiras. Os instrumentos do curso são também aqueles pertencentes a elas. O foco do
repertório abordado é a música brasileira, embora inclua também músicas de outras culturas. As
aulas, por sua vez, são coletivas, abrangendo atividades transversais que incluem: executar, cantar,
ouvir, improvisar, compor, fazer arranjos, tocar “de ouvido” e memorizar.
Além dos grupos pertencentes à cultura brasileira, outros grupos podem ser organizados
a partir de nossas tradições musicais, incluindo ou não gêneros como hip hop, rap e/ou música
eletrônica.
Outra atividade pedagógica também incluída no curso é a roda de conversa mencionada
anteriormente. É importante o contato direto dos educandos com os grupos originais e mestres
das tradições musicais praticadas, organizado principalmente nos ambientes de origem destas
tradições musicais.
O Curso elementar em instrumentos musicais é formado por três disciplinas. Na disciplina
de instrumentos de percussão, o aluno pode participar de um ou mais grupos, entre eles
fanfarra, escola de samba, grupos de jongo, congada e outros, além de cantar as melodias,
quando houver. No treinamento em instrumentos harmônicos, o aluno canta e toca, por
exemplo, banjo em um grupo de carimbó, cavaquinho em uma roda de samba, viola de
coxo em um grupo de cururu e/ou sanfona em um trio de forró. A disciplina de instrumentos
melódicos inclui instrumentos de sopro, cordas friccionadas, cordas dedilhadas ou teclado,
sendo executados como melódicos e não como harmônicos. O aluno inicia-se, dessa forma,
em aulas coletivas. Depois poderá, por exemplo, tocar trompete em uma banda com repertório
tradicional (dobrados, polacas, marchas e outras), saxofone em uma orquestra de frevo, pífano
em uma banda de pífanos, rabeca em grupos de fandango, moçambique e/ou folia-de-reis ou
guitarra em um grupo de bossa nova.
As disciplinas do curso elementar ocorrem simultaneamente. O aluno pode, por exemplo,
tocar tamborim em uma escola de samba ou alfaia em um grupo de maracatu, enquanto
aprende os primeiros acordes do cavaquinho ou os rudimentos da clarineta em aulas coletivas
de instrumentos de cordas e de banda, respectivamente.
No Curso avançado em instrumentos musicais, ou segunda etapa, o aluno se concentra (se
especializa) em um instrumento, participando de grupos musicais que trabalham repertórios
mais complexos que os trabalhados na etapa anterior.
3.3 orquestras brasileiras
O que quero dizer com “orquestras brasileiras”? Digo no plural, orquestras brasileiras, porque
a diversidade musical do Brasil é tamanha que são muitas as possibilidades de formações
instrumentais que se enquadram no conceito que defino como: grupos musicais, de formações
JOeL LUiS BaRBOSa, Uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em“orquestras brasileiras”
6262
ARTIGO
instrumentais já existentes ou inventadas, que trazem características da diversidade musical
brasileira como sua razão de ser. Dessa forma, penso em conjuntos musicais que traduzem o
som do Brasil. Um som que expressa as cores, sentimentos, paisagens, imagens, movimentos,
experiências, festas, dores, natureza, religiosidade, alegrias e esperança do povo miscigenado
e irmanado que vive nesta terra rica e bela. Um som-Brasil.
Um som-Brasil? Mas que som é este? É o conjunto único, singular e próprio de sonoridades
de nossa gente e de nossa terra. Sonoridades metropolitanas, urbanas, da periferia, rurais,
ribeirinhas, da floresta, da serra, litorâneas, do frio, do calor, da umidade, da chuva e da seca.
São sons que vêm das festas santas, civis e profanas; das procissões, desfiles, cortejos e danças;
do trabalho, do civismo e da brincadeira. São canções da criança, do adulto, do idoso, do índio,
da negra, do branco, da mulata, do cafuzo e da morena, presentes nas rodas de pata-choca, de
ciranda, de verso, de toré, de candomblé, de capoeira, de samba e de choro, com instrumentos
e danças. Estas são músicas que não se ouve e não se “vê” em outros lugares.
No Brasil, há música durante o ano todo. Do fim de dezembro até seis de janeiro, dia de Reis,
o Brasil louva o menino Jesus em casa, após abrir as portas para os foliões dos reisados vadiarem
porta adentro, indicando que é o tempo para se desmontar o presépio. Depois a Bahia canta na
rua ao Senhor do Bonfim e em fevereiro é dia de festa no mar. No calor de fevereiro o país sai
feliz para o carnaval com sambas, marchas, frevos, maracatus e caboclinhos. O povo brasileiro,
principalmente o mineiro, encerra contrito a quaresma na semana santa, em abril, com cânticos,
loas, bandas e orquestras nas missas e procissões, sobre coloridos tapetes de rua, mantendo
tradições medievais como o Ofício de Trevas. Cinqüenta dias depois, aproximadamente, vêm
os festeiros do divino e as caixeiras de Alcântara comemorando o milagre do pentecostes com
a descida do Espírito Santo. No “friozinho” de junho, os trios nordestinos começam a esquentar
o povo nas festas de São João. As quadrilhas borbulham por todos os cantos e os bois do
Maranhão se reúnem em grande celebração. Como se não bastasse, neste mesmo período
começam as marujadas e os tambores rufam, anunciando o início do ano litúrgico de religiões
afrobrasileiras, com muitas celebrações, músicas e danças. Nos dias dois de julho na Bahia e
sete de setembro em todo o país, crianças, jovens e adultos desfilam de verde-amarelo sob o
céu-azul anil com bandas e fanfarras comemorando a Independência. Os fervorosos romeiros
cantam benditos o ano inteiro nas festas santas, como na devoção ao Senhor Bom Jesus da
Lapa no Rio São Francisco; além dos cânticos no Círio de Nazaré e no caminho ao santuário
nacional de Nossa Senhora Aparecida, mãe divina, padroeira do país, em outubro. Dezembro
inicia-se com os autos pastoris e lapinhas, adorações ao Menino-Deus, e termina com o reisado
onde começamos, formando o ciclo “melodioso” brasileiro.
Mas que som brasileiro é este? É o toque da moda de viola que traz a simplicidade e
ingenuidade da vida caipira no interior. É a voz do cururueiro e do repentista no desafio. É a
batida da viola de coxo que traz o movimento colorido dos dançarinos do cururu, do siriri e do
rasqueado matogrossense. É o rufar das caixeiras da festa do Divino em Alcântara. É a matraca
da semana santa em Minas e da lamentação das almas na Bahia. É o som dos tantos bois-
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ARTIGO
bumbás que brincam de norte a sul. É a sonoridade rural das músicas de trabalho da paneleira,
das carpideiras, dos batedores de pilão, do moinho e do carro de boi. É a marujada e a festa
do divino sobre o rio. É a voz infantil e pura que canta do “bosque solidão” e da canoa que vira.
É a suavidade da cantiga do bicho papão na voz da mamãe querida. É a cantiga de saudade
que vem da chalana “riscando o remanso do Rio Paraguai” e da “moreninha linda do meu bem
querer”. É a batida de mãos do quebrador de coco e o sapateado da catira e do fandango. É o
som da banda de pífaros. É o som da orquestra indígena com suas clarinetas, flautas, apitos,
buzinas, maracás, tambores e guizos, instrumentos feitos com bambu, osso, madeira, chifre,
cabaça, cerâmica e sementes da floresta. É a sonoridade lúgubre e rouca da flauta do Xingu.
É o canto dos pássaros. É o grupo de carimbó com a sonoridade “rasgada” no contagiante
improviso de clarineta e com a batida frenética do banjo artesanal, que evocam as paisagens
do litoral paraense. São a caixa e o macaco do marabaixo de Macapá. É o bater das espadas do
maculelê. É o agogô no afoxé e o arco e flecha no caboclinho. É o som dos mestres da rabeca.
É a orquestra do auto do cavalo marinho com seus traços africano, indígena e holandês. É o
ritmo envolvente do atabaque do tambor de crioula, do tambor de mina e do candomblé que
leva ao transe. É a batida da alfaia do maracatu rural e de baque virado com o brilho multicor
da nobreza de seu rei e rainha. É o trombone debochado na gafieira. É o regional com seu
bandolim seresteiro no choro. É a fanfarra no desfile, a viola na toada e a zabumba da congada.
É a sanfona do trio nordestino no arrasta-pé e forró com baião, coco e xote, e a gaita-ponto no
vaneirão, chamamé, milonga, rancheira e chimarrita. É o tambor do menino do “Pelô”. São o
ronco da cuíca e a marcação do surdo que trazem a imagem do samba do morro carioca. É a
suavidade da orquestra de pau e corda do frevo-de-bloco e o som efervescente e preciso dos
instrumentos de sopro da orquestra de frevo no eclodir do carnaval de Recife. É o sincopado
malandro do cavaquinho chamando a bateria para iniciar a maior festa de rua do planeta. É
o apito da escola de samba no êxtase do carnaval com suas cores, alegrias, suores, brilhos,
movimentos, gingas, belezas e sensualidades próprias de um povo - do povo brasileiro.
Quantos repertórios! Quantos ritmos! Quantos instrumentos! Quantos músicos! Quantas
cores! Quantas imagens! Quantos sentimentos! Quanta exuberância! Quantas magias! Quantas
Orquestras Brasileiras! São pluralidades de uma singularidade chamada BRASIL!
Instrumentos europeus e grupos instrumentais de cordas pinçadas, de pau e corda, de sopro
com percussão e big bands estão espalhados pelo mundo todo. Chegaram ao Brasil através dos
europeus e da mídia. Aqui se abrasileiraram. Ao se constituírem dentro da cultura nacional,
passaram a ter um modo de expressão particular, com formação instrumental enriquecida,
repertório único e linguagem musical própria. Ganharam instrumentos indígenas e africanos
e se tornaram bandas com seus dobrados, polacas, marchas e maxixes, big bands com frevos
e sambas, regionais com choros e valsas, conjuntos de pau e corda e grupos de acordeão com
seus gêneros nordestinos, nortistas e sulistas. Eles se abrasileiraram porque estiveram imersos
na cultura miscigenada das classes populares. Seus músicos ousaram interpretar o repertório
internacional de uma maneira própria. Timbre, dinâmica, articulação, prosódia, ritmo, síncopas,
JOeL LUiS BaRBOSa, Uma proposta de educação musical social e brasileira através da prática de instrumentos musicais em“orquestras brasileiras”
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ARTIGO
acentuações e conduções melódicas foram executados com a beleza e profundidade de nossa
expressividade. O choro, o frevo, o maxixe e o dobrado nasceram de maneiras particulares
(“chorosa”, “efervescente” e sincopada) de se tocar o repertório europeu de mazurcas, polcas,
schottiches e marchas.
O que dizer de nossa orquestra sinfônica? Que sonoridades orquestrais únicas foram
criadas por nossos compositores? Que Brasil belo e intenso se ouve no Uirapuru, no Trenzinho
Caipira, na Floresta do Amazonas e nas Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos? Uma orquestra
sinfônica com som de Brasil!
4 ConCluSão
Talvez as orquestras brasileiras diferenciem-se de outras:
a) por se movimentarem corporalmente de maneira livre, solta e flexível no palco, com
coloridos e elegâncias brasileiras, como é nossa música e nossa gente;
b) por utilizarem instrumentos de nossa terra;
c) por buscarem sonoridade diferente dos instrumentos internacionais;
d) por terem uma interpretação singular das músicas estrangeiras; e
e) por terem repertórios próprios que expressem a nossa linguagem musical e a exuberân-
cia do país.
São orquestras de músicos que têm a tradição cultural brasileira impressa e expressa no
corpo e no “sangue”. Ou seja, elas têm a ingenuidade da criança, a simplicidade do caipira, a
ginga do jogador de futebol, o vôo do capoeirista, o balanço do sambista, o charme da porta
bandeira, o mistério da mãe de santo, a devoção da rezadeira, o colorido dos bois e dos cordões
de pássaros, o brilho do maracatu, a energia da fanfarra, a tristeza de um samba, a dor do
bandolim, o furor da “furiosa” no coreto, a sofisticação da bossa nova, o frenesi dos atabaques e
a destreza e efervescência do frevo. Elas são elegantes e arrebatadoras como nossa diversidade
cultural. São orquestras sui generis. São Orquestras Brasileiras. Será que vale a pena incluí-las
nos programas de educação musical de nosso país?
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ARTIGO
RESUMO
O presente texto, de natureza teórica, busca realizar uma discussão sobre o desenvolvimento infantil, segundo a Perspectiva Sócio-Histórica de análise e compreensão do desenvolvimento e psiquismo humano - sendo essa corrente representada pelos autores L. S. Vigotski, A. Leontiev e A. R. Luria. Segundo tal perspectiva, o desenvolvimento do ser humano é condicionado pela relação por ele estabelecida com a realidade, através da qual se concretizam os processos de mediação, apropriação e objetivação, fundando dessa forma o psiquismo humano e orientando o desenvolvimento a atingir níveis mais elevados de especialização. Esta realidade, para muitas crianças e adolescentes, está relacionada à sua inserção em projetos socioculturais que se mostram, segundo a teoria adotada, como importante ferramenta para o desenvolvimento do psiquismo, bem como para impulsionar a emersão de outros estágios de desenvolvimento.
ABSTRACT
This text, in its theoretical nature, aims to promote discussion on child development, according to the Social-Historical Perspective of the analysis and understanding of the human psyche, with this school of thought being represented by the authors L.S.Vigotski, A.Leontiev and A.R.Luria. According to this perspective, the personal human development depends on the relationship the individual establishes with the reality through which they concretize the processes of mediation, appropriation and objectification, thus creating a basis for the human psyche and guiding development to achieve higher levels of specialization. This is a reality that for many children and adolescents is related to their insertion in the Projeto Guri, which, through application of the adopted theory, has proven to be an important tool for the development of the psyche and also for providing impetus for emersion in other stages of development.
PALAVRAS-CHAVE
Desenvolvimento. Desenvolvimento Infantil. Perspectiva Sócio-Histórica. Projetos socioculturais.
KEYWORDS
Development. Child Development. Social Historical Perspective.
DANIELA EMILENA SANTIAGO
Coordenadora de Polo do Projeto Guri de Quatá -SP, Regional de Marília-SP; Assistente Social da Prefeitura
Municipal de Quatá-SP; Professora do Curso de Serviço Social da Universidade Paulista (UNIP) de Assis; Assistente
Social graduada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Especialista em Violência Doméstica contra Criança
e Adolescente pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Julio de
Mesquita Filho (UNESP). e-mail: da.santiago@hotmail.com
o desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica
SOBRE O ARTIGO
The Dalcroze method: perspectives for application in choir singing
Submetido em:
12 / 02 / 2010
Aprovado em:
23 / 04 / 2010
DanieLa eMiLena SantiaGO, O Desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica
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ARTIGO
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1 Introdução
Esse texto foi elaborado com a finalidade de aprofundar a discussão teórica sobre o
desenvolvimento infantil. O conceito de desenvolvimento infantil aqui retratado recorre à
Perspectiva Sócio-Histórica de compreensão e análise do desenvolvimento e do psiquismo
humano e infantil retratada por autores como L. S. Vigotski, A. R. Luria e A. Leontiev1, psicólogos
russos que, a partir da década de 1970, iniciaram seus escritos buscando teorias críticas para
orientar a compreensão sobre o ser humano. Contrapondo-se sobre muitos aspectos das
teorias de compreensão do psiquismo reinantes até o período em questão, os autores buscam
o subsídio crítico junto às teorias marxistas e, partindo desse pressuposto, reelaboram uma
forma totalmente distinta de compreensão do psiquismo e do desenvolvimento humano.
Note-se que, nesse texto, será realizada menção apenas aos autores anteriormente
citados, mas é preciso pontuar que há outros que adotam o mesmo referencial e que não
serão aqui abordados – já que isso exigiria a elaboração de um documento mais específico,
comprometendo a confecção deste trabalho nos moldes adotados. Portanto, estão excluídos
dessas reflexões autores importantes que também representam essa corrente, como Elkonin e
Davidov, dentre outros. Cumpre-nos, nesse sentido, informar ainda que algumas considerações
com recorrência a autores contemporâneos de tal teoria também serão feitas. Nesse sentido,
foram adotados os autores Newton Duarte (1993, 2001, 2004), Sueli Terezinha Ferreira Martins
(2007), Ana M. Bock (2004) e Wanda Maria Junqueira Aguiar (2001), que mais se aproximam
da teoria do estudo em questão. Esses autores têm a característica de voltar o olhar para o
desenvolvimento infantil e para o desenvolvimento do processo de aprendizagem.
Dessa forma, o texto será iniciado com algumas considerações sobre o desenvolvimento
do ser humano, buscando descrever como esse processo ocorre - e trabalhando, nesse sentido,
conceitos como a mediação, a apropriação e a objetivação. Em seguida, será dedicado espaço
específico para as discussões sobre o desenvolvimento infantil, sendo enfatizado nesse
aspecto o desenvolvimento e a subjetividade constituídas pela criança durante os processos
de mediação, apropriação e objetivação.
Espera-se, com esse trabalho, colaborar para a socialização de conceitos diferenciados
sobre desenvolvimento infantil como os que são defendidos pelos autores supracitados, e
que tais conceitos possam auxiliar todos aqueles que possuem relação direta com crianças -
sobretudo os que desenvolvem atuação pedagógica e social junto a esse segmento.
2 dESEnvolvIMEnto do SEr huMAno
2.1 Conceitos iniciais sobre desenvolvimento: atividade, objetivação e apropriação
Para compreender o desenvolvimento humano dentro da perspectiva de estudo adotada,
é primordial observar o conceito de atividade, já que ele é fundamental para o entendimento
dos processos de objetivação e apropriação a que nos referimos.
1 Dá-se hoje ênfase à Psicologia Social, que seria uma Psicologia que passa a considerar a influência da realidade social no desenvolvimento das pes-soas. A Psicologia Sócio-Histórica, defendida por Vigotski e seus colabo-radores, é um das expressões da Psi-cologia Social - embora não a única.
69
ARTIGO
A atividade ou ação é desempenhada pelo ser humano cada vez que ele pretende satisfazer
uma necessidade. A necessidade, por sua vez, é algo inerente a todos os seres humanos - por
exemplo, quando nascemos, apresentamos necessidades de alimentação e com o tempo essas
necessidades vão sendo alteradas. O que fazemos frente a essas necessidades é desempenhar
ações visando satisfazê-las. Durante essas ações, o homem estabelece contato com o mundo
que o cerca e, por isso, a atividade colabora no sentido da objetivação e apropriação humana.
É através desse processo de contato com a realidade, em decorrência de desempenhar uma
atividade, que o homem consegue se apropriar do conhecimento produzido pela humanidade.
À medida que o homem consegue pensar sobre a realidade que o cerca, se dá a apropriação
(LURIA, 1991a). Por extensão, quando o homem se apropria da realidade do mundo, ele
também se objetiva. Nessa relação estabelecida com o mundo, tanto este é modificado quanto
o homem se modifica.
Ao agir sobre o mundo exterior o modificam; com ele se modificam também a si mesmos. Por isso
o que os homens são está determinado por sua atividade, a qual está condicionada pelo nível já
alcançado no desenvolvimento de seus meios e formas de organização (LEONTIEV, 1978a, p. 21).
De forma que a sociedade e a realidade nas quais está inserido o ser humano traz
importantes implicações para o seu processo de objetivação e apropriação. Tudo que irá
alimentar o cérebro humano é trazido de sua realidade. Bock (2004) ressalta que o ser humano
possui poucos sentidos inatos, sendo que os sentidos que motivam as ações são, via de regra,
apreendidos de acordo com a realidade vivenciada pelo ser humano.
A apreensão desses conceitos acontece sempre de uma maneira mediada, intermediada
pelas pessoas e pelos objetos. Para compreender melhor esse aspecto, estaremos trabalhando
a seguir o conceito de mediação.
2.2 desenvolvimento e mediação
Por meio da relação estabelecida entre a objetivação e a apropriação, ocorre o chamado
processo de “mediação”. Para Duarte (1993), “[...] o processo de formação do indivíduo é o
reconhecimento da indispensável mediação, realizada por outros indivíduos, entre a pessoa
que realiza o processo de apropriação, e a significação social da objetivação a ser apropriada”
(p. 46). Essa mediação se dá, para Leontiev (1978a), por meio das relações estabelecidas pelo
ser humano com os objetos que o cercam, assim como pelo contato com outros sujeitos.
É dessa forma, por exemplo, que a criança pequena logo aprende quem é o responsável por
ela, quem são seus pais, os irmãos ou os avós e qual a função de cada pessoa em relação a ela.
É da mesma maneira, também, que aprende qual a função de seu professor, de seu educador
e dos outros profissionais que atuam no Polo. Esse é um processo contínuo que também é
vivenciado pelo adolescente, e que irá orientá-los em relação às ações que ele pode e deve
desempenhar. Portanto esses limites devem, desde sempre, estar bem claros na consciência
do adolescente - e muito mais claros para o adulto com quem será estabelecida essa relação.
DanieLa eMiLena SantiaGO, O Desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica
7070
ARTIGO
Leontiev (1978a) também coloca que, nesse contexto, não só as relações sociais são
importantes como também os objetos que auxiliam na elaboração de conceitos – a criança
pequena, por exemplo, apreende o significado de uma bola por meio também do contato com
esse objeto. Analogamente, é importante para a criança ou para o adolescente integrado em
instituições socioculturais o contato com os instrumentos musicais. Só por meio desse contato
eles conseguirão apreender o significado do objeto em toda sua plenitude. Ora, não adianta
apenas falar sobre um pandeiro. A criança e o adolescente precisam do contato direto e prático
para compreender amplamente como funciona o instrumento e que tipo de som pode ser
extraído dele. Todas essas informações são importantes no sentido de alimentar o cérebro da
criança e do adolescente, impulsionando seu desenvolvimento. Quanto mais aprende, mas o
ser humano se desenvolve.
Por isso, todas as relações estabelecidas pela criança são importantes - desde aquelas
estabelecidas no núcleo familiar, na escola, até as estabelecidas em projetos sócio-culturais
com outras crianças, educadores e coordenadores. Essas relações irão mediar informações tanto
para a criança quanto para o adolescente, não se restringindo apenas à aprendizagem musical,
mas podendo e devendo também transmitir outros valores à criança e ao adolescente.
Duarte (2001) nos coloca que o processo de mediação é, por excelência, um processo
educativo. Por isso, segundo o autor, todas as interações estabelecidas são importantes - o que,
segundo ele, deve ser considerado em todos os estágios de desenvolvimento. Antes, o autor
faz a ressalva da responsabilidade de educadores, sobretudo professores, no sentido de sua
importância para o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Sua análise cabe perfeitamente
para projetos sócio-culturais, a fim de que todos os profissionais que estabelecem relação com
as crianças e com os adolescentes percebam a relevância de sua mediação e, portanto, de
colaboração em seu desenvolvimento.
Dessa forma, é através desse processo ativo que combina a objetivação, a apropriação e a
mediação, que o psiquismo vai sendo construído. Segundo Leontiev (1978b), por meio dele
o conhecimento genérico, que fora construído social e historicamente, é apreendido pelos
seres humanos. Trata-se de um conhecimento que se origina na praxis, que advém dela e que
forma assim a consciência - ou, em outras palavras, “[...] a consciência do homem depende
do seu modo de vida humano, da sua existência” (LEONTIEV, 1978b, p. 92). O conhecimento
produzido por várias gerações e acessível ao homem em sua realidade cotidiana transmitirá as
informações de que será alimentada a sua subjetividade.
A criança, observando o que fora arrolado acima, vai-se apropriando do conhecimento
produzido pelo gênero humano e, com isso, adentra a sociedade na qual está inserida. Assim,
cada vez que desempenha uma atividade visando ter uma necessidade atendida, ela vai
tomando contato com o mundo circundante. Vai-se, nesse sentido, objetivando através de suas
relações estabelecidas e se apropriando do conhecimento produzido pelo gênero humano.
Aguiar (2001), partindo desse princípio, coloca ainda que o processo de formação da
subjetividade e, por conseguinte, da consciência, é um processo social, pois acontece por
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meio da interação social; é ativo porque provém do desempenho das atividades, e é também
histórico, pois tem grande influência nele o estágio de desenvolvimento histórico-social por
que passa a sociedade. A autora coloca ainda que esse processo vem associado pela formação
do pensamento, pelo desempenho de ações e pela constituição dos sentimentos ou “estados
de espírito”, conforme também observa Leontiev (1978a).
Assim, podemos concluir que a subjetividade, o psiquismo e o desenvolvimento de uma
criança indiana, por exemplo, será totalmente diferente do psiquismo de uma criança brasileira.
Da mesma maneira será diferenciado o psiquismo ou o desenvolvimento de uma criança que
tem acesso à música, à cultura, ao esporte e ao lazer, já que o cérebro se alimenta da realidade
concreta proporcionada a ela. Da mesma forma, a criança nunca inserida em um projeto sócio-
cultural não terá a mesma subjetividade daquela que o freqüenta2.
No item seguinte, voltaremos nossa atenção ao estudo do desenvolvimento infantil,
observando como o desenvolvimento da criança acontece, quais funções são especializadas
e como esse processo se desenvolve de forma a atingir níveis cada vez mais elevados de
desenvolvimento. A compreensão do processo que acontece com a criança permite também
compreender o desenvolvimento durante a adolescência, pois, segundo a perspectiva de estudo
adotada, o desenvolvimento do ser humano é um constante devir que não se esgota nunca.
3 dESEnvolvIMEnto InfAntIl
3.1 Atividades principais ou dominantes
Como já salientado, o desenvolvimento do ser humano provém da realidade concreta que irá,
por sua vez, condicionar o desenvolvimento do psiquismo. Em relação à infância especificamente,
Leontiev (1978b, 1988) elaborou o conceito compreendido como “atividade principal” ou
“atividade dominante”, aquela que concretizará substancialmente o psiquismo da criança - ou a
mais influente nesse sentido. Segundo ele, a atividade principal está totalmente ligada à situação
concreta, à realidade concreta que a criança vivencia durante o seu desenvolvimento. Dessa forma,
as mudanças ocorridas na realidade ao seu redor têm reflexos fundamentais em sua atividade. Com
as alterações da realidade vivenciada pela criança, suas relações sociais também são modificadas
significativamente, o que traz também condicionantes à sua atividade principal:
A atividade principal é concebida como resultante das necessidades das condições concretas de
vida da criança, em seus diversos períodos de desenvolvimento, e de sua conseqüente relação
estabelecida com o mundo, incluído o manuseio dos objetos e as relações com outros seres
humanos (LEONTIEV, 1988, p. 82).
Ou seja, durante seu desenvolvimento, a criança irá se deparar com uma série de
necessidades. Quando entra na escola precisa dominar os desenhos, depois a escrita, depois
a escrita correta. Isso acontece porque a criança vai crescendo e, nesse processo, novas
necessidades são postas. Por isso, quando sua realidade muda, é gerada a demanda para
2 O ideal seria que todo ser humano tivesse acesso a artes, música e in-formações afins por meio da escola, livros, família. Entretanto, sabemos que as condições de acesso das pes-soas são diferenciadas e, por isso, grande parcela da população só tem acesso a um conhecimento específi-co como a música por meio de pro-jetos sócio-culturais instalados no território onde residem.
DanieLa eMiLena SantiaGO, O Desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica
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ARTIGO
outras atividades que vêm a se tornar as principais para ela durante cada estágio específico
de desenvolvimento.
A cada estágio de desenvolvimento, corresponde um determinado tipo de atividade
principal. Leontiev (1988) é enfático ao afirmar que isso decorre da realidade da criança,
tendo ou não ligação com sua idade. Para ele, é incorreto estabelecer expectativas rígidas de
desenvolvimento em decorrência de determinada idade, mas há que se considerar sua vivência
no sentido de definir esse desenvolvimento. Assim, a criança pequena utiliza, sobretudo, o
brinquedo como forma de conhecimento e interação com o mundo. Já a criança pré-escolar
irá se basear na mediação do professor para a construção do conhecimento.
Assim sendo, a atividade principal é compreendida por Leontiev (1988) como aquela
em que há a emersão de outros tipos de atividade, lembrando que, por meio dela, há uma
diferenciação entre todas. Isso porque há uma mudança nas necessidades da criança,
demandando outras atividades e gerando novas necessidades cognitivas – que farão com que
surjam outras atividades aparecerão que irão se constituir em atividades principais. Há, dessa
maneira, uma diferenciação das atividades, no sentido de que cada necessidade gera um tipo
de ação na criança.
Leontiev (1988) pontua ainda que, durante a realização da atividade principal, os processos
psíquicos da criança vão sendo reorganizados e reconstruídos. Isso porque, com o surgimento
de novas necessidades e atividades, o contato da criança com o mundo provoca alterações
em seu psiquismo, em sua forma de compreender o mundo, de se objetivar e se apropriar
dele. Colabora, desse modo, na formação da personalidade da criança. Esses conhecimentos,
resultantes das necessidades da criança, vão sendo apreendidos por ela e vêm a se constituir em
material importante de sua consciência sobre si mesma e sobre os outros (LEONTIEV,1988).
Essas mudanças da atividade principal, além de provocarem alterações no psiquismo da
criança e a definição de sua personalidade, colaboram ainda para uma especialização com
referência às operações que ela desempenha. O domínio da escrita e da linguagem podem ser
compreendidos nesse sentido. Note-se que a criança pequena, quando começa a dominar a
escrita, em geral faz garatujos na tentativa de imitar a escrita dos adultos. A criança pequena,
na verdade, não precisa saber escrever. Quando essa demanda surgir, aprenderá formas
diferenciadas e mais elaboradas de escrita.
Durante essas mudanças, ocorre ainda uma especialização das funções psicofisiológicas da
criança, à medida que essas operações se alteram. Leontiev (1988) atenta para uma apuração
dos órgãos do sentido por parte da criança, que atingirá níveis cada vez mais elevados de
desenvolvimento. Sempre que novas tarefas e exigências são colocadas à criança, ela busca
desempenhá-las e isso a conduz a novos níveis de desenvolvimento.
Por isso, sempre que se deseja que uma criança ou mesmo um adolescente ascenda de
um nível de desenvolvimento para outro, é preciso que lhe seja colocada uma nova atividade.
Se hoje a criança ou o adolescente consegue executar a música “Atirei o Pau no Gato” - que
pode ser considerada, em termos de aprendizagem, uma música simples - amanhã conseguirá
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ARTIGO
executar, por exemplo, a música “Falsa Baiana”, mais complexa, e assim sucessivamente.
Entretanto, a ascensão do conhecimento e a conseqüente ampliação da capacidade de
execução de tarefas só pode ser alcançada se essa necessidade for apresentada à criança.
Portanto, a responsabilidade de todos os profissionais envolvidos com a educação musical é
grande, já que, por meio de um trabalho integrado, devem visar não apenas a aprendizagem,
mas também sua ampliação – que, com toda certeza, exercerá influência no desenvolvimento
dos alunos.
A ascensão de um estágio de desenvolvimento para outro nos leva aos conceitos de
desenvolvimento proximal e potencial, que veremos a seguir, dada a importância desses
fenômenos durante o processo de desenvolvimento do ser humano.
3.2 Zona de desenvolvimento: proximal e potencial
Vigotski (1997) elabora o conceito de desenvolvimento potencial e desenvolvimento proximal,
que têm total relação com o que foi abordado acima. O autor nos diz que o desenvolvimento
proximal corresponde a tarefas que a criança consegue resolver sozinha, enquanto o
desenvolvimento potencial corresponde a tarefas que a criança desempenha com o auxílio
do adulto, mas que a preparam para que, no futuro, ela os desenvolva de maneira autônoma.
Por isso, segundo Vigotski, (1997a) a criança precisa da mediação de terceiros para que possa
atingir outros níveis de desenvolvimento. Na verdade a criança, e mesmo o adolescente,
sempre precisarão de um adulto que medie sua ascensão a outros níveis de conhecimento.
É também por meio da atividade que a criança consegue atribuir sentidos e significação
aos fenômenos com os quais estabeleceu contato. A significação seria, segundo Leontiev
(1978b), uma generalização sobre a realidade. Está composta por uma série de informações
que a criança abstrai do mundo que a cerca e com o qual tem contato desde o nascimento.
A significação colabora no sentido de proporcionar à criança a apreensão do conhecimento
produzido pela humanidade ou, melhor dizendo,
“[...] a significação é entrada na minha consciência (mais ou menos plenamente e sob todos os seus
aspectos), do reflexo generalizado da realidade elaborado pela humanidade e fixado sob forma
de conceitos, de um saber mesmo ou de um saber-fazer (modo de ação generalizado,norma de
comportamento, etc.)” (LEONTIEV, 1978b, p. 96).
Já o sentido possui uma relação muito estreita com a significação. É, no entanto, pessoal -
de modo que cada significação abstraída pela criança possuirá para ela um sentido individual.
Portanto, “trata-se aqui da conscientização, isto é, do sentido individual que, para a criança,
toma um dado fenômeno, e não do conhecimento que ela tem deste fenômeno” (LEONTIEV,
1978b, p. 302). Esses sentidos podem ser diferenciados, dependendo da realidade concreta na
qual a criança está inserida. São também transmitidos para a criança por meio da mediação
que tanto o adulto como os objetos desempenham. A mediação faz com que os processos
inatos da criança se tornem processos psíquicos. E ela se forma essencialmente através da
DanieLa eMiLena SantiaGO, O Desenvolvimento infantil para a perspectiva sócio-histórica
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ARTIGO
comunicação, que converte tais processos em processos intrapsicológicos (LEONTIEV, 1978b).
E é por isso que, durante a inserção da criança ou do adolescente em atividades educativo-
musicais, são trabalhados conceitos além da aprendizagem musical - às vezes diretamente,
por meio da realização das atividades de eixo transversal, e às vezes indiretamente, apenas por
meio da percepção da criança ou do adolescente. Nesse sentido, a criança ou o adolescente
constrói conhecimento quando percebe um educador comprometido ou equipes de apoio
que desempenham suas atividades com compromisso, de forma integrada; e aprende, constrói
conhecimento também quando percebe o oposto.
Essa aprendizagem se dá por meio da Mediação que, por sua vez, orienta a elaboração de
conceitos, conforme poderemos observar a seguir.
3.3 Mediação e elaboração de conceitos
Na relação de mediação, é de vital importância o contato da criança com o adulto. A criança
aprende com aquele que é mais experiente do que ela sobre os objetos , sobre o meio social
no qual está inserida e sobre tudo que a rodeia: “Desde o nascimento, a criança é rodeada por
um mundo objetivo, criado pelo homem; são os objetos correntes, as roupas, os instrumentos
mais simples, a língua e as concepções, as noções, as idéias que o refletem” (LEONTIEV, 1978b,
p. 119-120).
Vigotski (1997b) destaca que a linguagem é um componente importantíssimo no sentido da
mediação. Comenta ainda que a linguagem possui quatro etapas básicas de desenvolvimento
que influenciam o pensamento e o relacionamento da criança com o meio social: a “etapa
da fala primitiva”, a que corresponde o balbuciar; a “etapa da psicologia ingênua”, na qual a
criança se utiliza dos instrumentos para direcionar a fala; a “etapa do signo externo”, quando
passa a dominar a linguagem e, por fim, a “etapa do crescimento interno”, quando a linguagem
passar a ser transplantada para a esfera do pensamento intelectual. É quando a criança torna
a linguagem um processo psíquico interno, sendo essa a fase mais importante, que forma o
psiquismo e impulsiona o desenvolvimento de um período a outro.
A especialização da linguagem corresponde também a uma especialização das funções
intelectivas. Processos como a leitura, a música, o teatro e o desenho tendem a colaborar no
desenvolvimento e na especialização da linguagem infantil - já que nesses espaços a criança e
o adolescente têm a possibilidade de enriquecer o vocabulário. Depois que a criança consegue
transferir, diga-se assim, a linguagem para o pensamento, inicia-se uma fase rica de seu
desenvolvimento, que condiciona outras áreas “intelectuais” . Ela passa a elaborar conceitos
atribuindo a eles um sentido pessoal. Vigotski (1997b) atenta para a existência de dois tipos
de conceitos, que denomina como “conceitos cotidianos” e “conceitos científicos”. Os conceitos
cotidianos, segundo ele, são formulados pela criança durante a sua atividade principal,
surgindo e se formando a partir de sua experiência pessoal na relação com a realidade concreta
na qual está inserida. Esses conceitos são caracterizados ainda pelo autor como conceitos não
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conscientes, ou seja, são informações recebidas pelas crianças, mas sobre as quais, devido ao
seu período de desenvolvimento, ainda não puderam refletir.
Já os conceitos científicos seriam aqueles constituídos durante um processo de instrução,
por meio da acumulação do conhecimento transmitido à criança em um processo educativo.
Não são simplesmente apreendidos a partir do contato com a realidade. Por isso, para serem
elaborados, pressupõem que a criança vivencie um determinado período de desenvolvimento,
conduzido, a princípio, a partir da elaboração dos conceitos cotidianos. Para Vigotski (1997b),
os conceitos cotidianos e científicos aparecem e desaparecem durante o desenvolvimento da
criança. Entretanto, seria impossível que a criança se apropriasse dos conceitos científicos sem
um mínimo de conhecimento precedente, formado pelos conceitos cotidianos.
Por conseguinte, o desenvolvimento dos conceitos científicos pressupõe a ampliação de
diversas funções intelectuais: atenção voluntária, memória lógica, abstração, comparação e
diferenciação. Essas funções são ampliadas a partir do processo de instrução, pressupondo a
intelectualização além da consciência refletida e o controle ou domínio por parte da criança
(VIGOTSKI, 1997b).
A mediação e a elaboração de conceitos condicionam o ser humano de maneira contumaz.
O contato com o mundo, com os objetos e com as pessoas auxilia no desenvolvimento da
linguagem, da memória e da imaginação da criança.
3.4 desenvolvimento da linguagem, da memória e da imaginação
Neste processo de desenvolvimento, a mediação proporciona à criança a apropriação da
linguagem, a formação dos conceitos e sua conservação na memória. A memória, como a linguagem,
tem “fases” de ampliação ligadas ao desenvolvimento da criança. Em decorrência do seu período
de desenvolvimento, a memória da criança pequena é distinta da memória da criança de maior
idade e, conseqüentemente, da memória do adulto. A criança pequena, segundo Luria (1991b), tem
dificuldades em organizar sua memória, não conseguindo ainda direcioná-la a um fim específico.
Apenas quando há demanda, ela consegue superar essa deficiência. Em decorrência,
[...] a memória de uma criança de três e quatro anos de idade também tem as suas fraquezas: é
difícil organizá-la, torná-la seletiva. Ela ainda não é, em nenhuma medida, uma memória arbitrária
capaz de memorizar o necessário, orientado para um dado fim, separando os vestígios fixáveis
dentre todos os outros. (LURIA, 1991b, p. 91-92).
A capacidade de orientar a memória por meio da instrução verbal vai se desenvolver apenas
mais tarde, juntamente com a mudança de comportamento da criança (LURIA, 1991b) no início
da vida escolar, quando o desenvolvimento infantil permite essas “conquistas”. Verifica-se,
deste modo, que o processo de desenvolvimento da memória na idade infantil “é um processo
de transformações psicológicas radicais cuja essência consiste em que as formas imediatas
naturais de memorização se convertam em processos psicológicos superiores, sociais por
origem e mediatos por estrutura...” (LURIA, 1991b, p. 96).
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ARTIGO
Luria (1991b) destaca que a memória se dividiria em “memória breve” e “memória longa”.
Como é possível supor, a “memória breve” é composta pelas impressões imediatas que a criança
tem sobre o mundo e que não se consolidam no cérebro. Já a “memória longa” faz referência
às informações que a criança consegue reter no cérebro. Segundo o mesmo autor, a fixação ou
não de determinados fatos na memória irá depender essencialmente da freqüência dos fatos
ocorridos e mesmo da intensidade, ou seja, da representação que a criança tem dos mesmos.
A “memória breve” e a “memória longa” coexistem, sendo impulsionadas também a partir da
interação da criança. Por isso, a capacidade de atingir a “memória longa” deve ser exercitada
constantemente.
Provém igualmente da realidade da criança, de sua mediação estabelecida com o adulto
e com o meio social e de sua memória, a capacidade de imaginar e criar fantasias. Vigostki
(1996) compreende a imaginação da criança como um estágio inicial da capacidade de criar
expectativas sobre sua vida futura. A criança recorre à memória, onde dispõe do material que
lhe permitirá imaginar, criar, e a memória, por sua vez, nasce da realidade social na qual está
inserida. A imaginação infantil, nesse sentido, é moldada pelos conhecimentos e por todas as
informações com as quais a criança toma contato através de sua relação com o mundo.
Resulta assim que os primeiros pontos de apoio que a criança encontra para sua futura criação
é o que vê e o que ouve, acumulando materiais cujas partes fundamentais não combina em vão,
sem sentido, de modo casual como nos sonhos e nos delírios insensatos (VIGOSTKI, 1996, p. 27- 28,
tradução nossa).
Tudo aquilo que a criança ouve, vê, sente ou com o que se relaciona acaba se constituindo
em material da memória e, por conseguinte, irá exercer influência em sua capacidade de
elaboração da imaginação. Portanto, segundo Vigotski (1996), a imaginação “não se cria do
nada”, mas necessita do material da memória. Para ele, a criança pode até mesclar informações
sobre aspectos compreendidos pelo adulto como não reais com aspectos ditos como
reais. Uma criança pode imaginar um fato assombroso, como um elefante voar, o que seria
impossível de acontecer na realidade; todavia, formulou essa possibilidade tomando como
base aspectos reais, como o elefante, e a circunstância de que alguns animais voam. De acordo
com Vigotski (1996), isso se chama “reelaboração”, que seria a junção de aspectos da realidade
e sua combinação em histórias fantásticas.
A capacidade de imaginação da criança está relacionada, pois, com a “memória precedente”,
ou seja, com as informações que ela já traz consigo. Interferem nesse processo de imaginação
também o período de desenvolvimento que a criança estiver vivenciando, assim como
as relações estabelecidas por ela. A cada período corresponde uma determinada forma
de imaginação e mesmo de expressão. A criança pequena, em geral, se utiliza com grande
freqüência dos brinquedos como forma de mediar a expressão de sua imaginação. Com o
tempo, passará a usar outros instrumentos, como o desenho (VIGOTSKI, 1996). Desse modo,
a capacidade que a criança tem de imaginar e mesmo de elaborar suas perspectivas sobre o
futuro irá depender da realidade com a qual tem contato direto.
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A ampliação desse universo resulta em uma conseqüente ampliação da capacidade da criança.
Daqui a conclusão pedagógica sobre a necessidade de ampliar a experiência da criança se
queremos proporcionar-lhe base suficientemente sólida para sua atividade criadora. Quanto mais
veja, ouça e experimente, quanto mais aprenda e quantos mais elementos reais disponha em sua
experiência tanto mais considerável e produtiva será, e igualmente as circunstâncias restantes, a
atividade de sua imaginação (VIGOTSKI, 1996, p. 18).
Pensar, portanto, em uma vida futura, ou em uma vida diferente da atualmente vivida,
irá depender da realidade com a qual a criança ou o adolescente estabelece ou não contato.
Dependerá do que é posto à criança pelo adulto - seus familiares, professores e educadores.
Não há como a criança se imaginar um músico se não tem contato com essa realidade. Não é
possível uma criação partindo do vazio. Ela irá recorrer à memória que, por sua vez, provém da
realidade e dos processos já descritos.
Assim, pode-se inferir que o psiquismo da criança é forjado num processo ativo e histórico de
objetivação e apropriação, no qual a linguagem assume um papel de relevância, possibilitando,
entre outras ocorrências, o surgimento de memória, e influenciando a capacidade da criança
em imaginar e criar expectativas sobre sua vida futura. Assim as experiências vivenciadas pela
criança são armazenadas e registradas, ajudando a compor sua subjetividade, sua “consciência”,
seu psiquismo e a impulsionar o seu desenvolvimento.
Nesse sentido, o conhecimento musical e a integração social proporcionados por projetos
socioculturais são de suma importância. Por meio dessas intervenções, a criança e o adolescente
estabelecem contato com educadores e outros participantes do processo - constituindo
material que irá alimentar seu cérebro e, consequentemente, conduzir seu desenvolvimento a
estágios diferenciados que atendem ao progresso cognitivo.
4 ConSIdErAçÕES fInAIS
Após a realização desse estudo, é possível inferir que a criança demanda a intervenção
do adulto em seu processo de aprendizagem e conhecimento do mundo. É possível inferir
ainda que todo processo de aprendizagem deve ser um processo educativo, transmitindo
conhecimentos diferenciados para a criança. Conclui-se também que os estágios de
desenvolvimento alcançados pela criança irão depender também do processo de aprendizagem
e de conhecimento a que a criança tem acesso. Isso condiciona o período de desenvolvimento,
a imaginação, a perspectiva de vida futura e a subjetividade como um todo. Dessa forma, é
possível concluir que os adultos com os quais a criança tem ou estabelece relação – tanto
da família como outros relacionados à sua aprendizagem - são importantes no sentido de
legitimar e orientar o desenvolvimento infantil.
É importante enfatizar que o trabalho realizado em projetos socioculturais tem substancial
importância para ampliar o desenvolvimento dessas crianças. Quando é colocada, para
uma criança, a demanda a ser realizada dentro de um curso, há uma colaboração para seu
desenvolvimento. Quando a criança é convidada a tocar, a cantar, é na verdade convidada a
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ARTIGO
utilizar sua funções intelectivas da fala, memória, leitura e assim por diante - atividades que
colaboram para a ampliação do universo da criança. Quando uma criança executa uma música
que remete a uma realidade específica, não está apenas usando a linguagem e a observação,
mas pode também imaginar sobre aquilo e reelaborar conceitos. Quanto mais atividades
forem postas às crianças de maneira planejada, maior será sua capacidade de atingir níveis
mais elevados de desenvolvimento, do que decorre a necessidade do adulto em viabilizar
esse processo.
A criança, por outro lado, não aprenderá apenas por meio da instrução, mas também por
meio do contato estabelecido com outras pessoas – e, no caso de projetos socioculturais, no
contato estabelecido com outras crianças, alunos e toda a equipe disponível. A aprendizagem
não estará restrita apenas a aspectos musicais, mas trabalhará também aspectos relacionados
à convivência interpessoal, valores e assim por diante - sempre de maneira espontânea, dadas
as diferenças de cada ser humano.
Considerando as teorias de desenvolvimento infantil aqui descritas, é possível concluir
que os projetos socioculturais têm possibilidades de ampliar sempre mais os níveis de
desenvolvimento das crianças com as quais atua. Para isso, é de vital importância um trabalho
integrado de toda equipe que, além da ampliação do desenvolvimento infantil, pode também
a colaborar com a transmissão de valores éticos e, portanto, oferecer subsídios positivos para a
constituição da subjetividade dos sujeitos atendidos.
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RESUMO
Este artigo fala sobre o processo de
educação musical desenvolvido por Emile
Jaques-Dalcroze e tem como principal
objetivo buscar fundamentação teórica para
que o educador de canto coral enriqueça
suas estratégias utilizadas em aula. O
artigo apresenta um pequeno histórico do
educador, uma síntese de seu pensamento
metodológico e duas séries de exercícios,
que incluem atividades rítmicas e atividades
melódicas. No final do artigo, aponta-se para
a perspectiva de utilização de seu método,
com grande potencial de aplicabilidade ao
canto coral.
ABSTRACT
This article talks about the music education
process developed by Emile Jaques-Dalcroze
and its principal objective is to seek theoretical
basis for the choir teacher to enrich the
strategies used in lessons. The article presents a
brief background on the educator, a synthesis
of his methodological thinking and three series
of exercises that include: rhythmic activities;
melodic activities; and rhythmic and melodic
activities applied to the study of improvisation
on the piano. The end of the article points to
the perspective for using his method with
tremendous potential for application in choir
singing.
PALAVRAS-CHAVE
Dalcroze. Educação musical. Canto coral.
KEYWORDS
Dalcroze. Musical education. Choir singing.
JOSÉ FORTUNATO FERNANDES
Doutorando em Música pelo Departamento de Música do Instituto de Artes da UNICAMP.
Professor da Faculdade Teológica Batista de São Paulo e Assistente de Instrumento –
Coral da Associação Amigos do Projeto Guri. e-mail: jfortunatof@itelefonica.com.br
Método dalcroze: perspectivas de aplicação no canto coral
1 Texto apresentado durante o I Semi-nário Projeto Guri: Ação sociocultural e Educação musical, realizado entre 28 de novembro e 1º de dezembro de 2007 em São Paulo/SP. Inclui atualiza-ções realizadas pelo autor.
SOBRE O ARTIGO
The Dalcroze method: perspectives for application in choir singing
Submetido em:
18 / 02 / 2010
Aprovado em:
06 / 04 / 2010
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ARTIGO
1 Introdução
O assunto que permeia este artigo justifica-se pelo fato de que, muitas vezes, na educação
formal a música tem sido vivenciada como meio para atingir objetivos extramusicais - tais
como concentração, formação de conceitos ou mesmo entretenimento –, muito mais do que
uma área do conhecimento com linguagem própria capaz de conduzir o ser humano a uma
experiência estética diante do mundo que o cerca. Esse distanciamento da linguagem musical
tem sido uma constante na educação musical que se dá por meio da prática do canto coral e,
por isso, há a necessidade de se repensar o papel da música e respeitar o processo individual
de desenvolvimento musical dos alunos.
Por privilegiar a aula em grupo e tomar como ponto de partida o próprio corpo humano (e a
voz) para promover a aprendizagem na relação movimento-música, o pensamento pedagógico
de Emile Jaques-Dalcroze parece se adequar ao meio de expressão musical do canto coral, cujos
participantes geralmente se restringem a executar, reproduzir (repetir) o que já está pronto.
Assim, perde-se a chance de explorar o novo (experimentação, improvisação) e mesmo de
aprender a apreciar a música (escuta musical ativa e crítica). O método ativo desenvolvido por
Dalcroze propõe-se a ensinar pela vivência, partindo das sensações e percepções adquiridas
na experiência musical, passando pela análise dessas experiências para depois se chegar a
uma intelectualização da música.
Este artigo busca ressaltar que o processo de educação musical pode ser uma experiência
prazerosa, vivencial (sem teorização), na qual a música seja pensada de modo a proporcionar um
amadurecimento semelhante ao aprendizado de uma língua pátria. Dessa forma, respeitando
o processo contínuo de construção de cada um e com a consciência de que a música faz parte
da formação integral do ser humano, acreditamos que o sucesso na aprendizagem musical
através da prática do canto coral possa levar os alunos a um desenvolvimento mais humano.
2 EMIlE jAquES-dAlCroZE (1865-1950)
Filho de pais suíços, Emile Jaques-Dalcroze nasceu em Viena, Áustria, em 6 de julho de
1865. Em 1875 mudou-se para Genebra, Suíça. Ficou indeciso entre seguir a carreira da
arte dramática ou da música. Em 1884, com 19 anos de idade, foi para Paris, França, onde,
após estudar direção teatral, tomou a decisão de estudar música. Ali, manteve contato com
Leo Délibes. Em 1887 passou a freqüentar o Conservatório de Viena onde estudou órgão e
composição com Anton Bruckner. Em 1889, aos 24 anos de idade, voltou a Paris para trabalhar
com os compositores Leo Délibes e Gabriel Fauré. Pouco tempo depois, em 1890, tornou-se
o segundo diretor da orquestra de um teatro na capital da Argélia, Argel. Porém em 1892
regressou a Genebra onde foi nomeado professor de Solfejo e Harmonia do Conservatório
e onde começou a aplicar suas lições revolucionárias. Em 1909, mudou-se para Hellerau,
Alemanha, onde continuou o desenvolvimento de suas idéias para o ensino do solfejo, rítmica
e improvisação. Em 1914, foi surpreendido em Genebra pelo início da Primeira Guerra Mundial
JOSÉ FORtUnatO FeRnanDeS, Método Dalcroze: perspectivas de aplicação no canto coral.
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ARTIGO
e não voltou mais para Hellerau. No ano seguinte, em 1915 fundou em Genebra o Instituto
Jaques-Dalcroze. Entre 1924 e 1926 voltou a trabalhar em Paris. Daquele momento até o início
da Segunda Guerra Mundial, em 1939, bem como após o término da Guerra, houve um grande
avanço e intensificação de seu método. Morreu em 1º de julho de 1950, aos 85 anos de idade,
em Genebra (RODRIGUES, [s.d.], p. 2, 3, 7-9).
Dalcroze expõe claramente seu conceito de educação musical:
No meu modo de ver, a educação musical deveria basear-se por completo na audição, ou em todo caso na percepção do fenômeno musical – mediante o ouvido que se acostuma a captar as relações entre notas, tonalidades e os acordes e o corpo inteiro, por meio de exercícios especiais, iniciando-se na apreciação da rítmica, a [sic; da] dinâmica e os [sic; dos] coloridos agógicos da música (DALCROZE, 1926 apud RODRIGUES, [s.d.], p. 2).
O princípio básico do processo de educação musical de Dalcroze é sentir, viver, analisar e
intelectualizar, tomando como ponto de partida a relação entre movimentação corporal e ritmo.
Dessa forma, em seu método a prática musical antecede ao aprendizado da teoria, da mesma
forma como uma criança aprende a língua materna: primeiro a fala e depois seus símbolos.
Na minha experiência com canto coral, a prática musical tem antecedido ao aprendizado
da teoria tornando-se um meio propício para a aplicação desse método. Para Dalcroze, a
educação musical pode ser usufruída por todos, de forma coletiva, e sua finalidade é mais do
que permitir que os alunos acumulem conhecimentos ou desenvolvam qualidades que não
possuem: é operar sobre a vontade para coordenar as diversas funções vitais e desenvolver as
qualidades que já possuem por meio de atividades que aperfeiçoem a visão, a audição e o tato
e sua interação com as sensações e emoções.
As matérias básicas do processo de educação musical proposto por Dalcroze são: 1) rítmica
(movimento e ritmo): utiliza os movimentos do corpo para desenvolver tanto o sentido
rítmico corporal quanto o sentido auditivo dos ritmos; 2) solfejo: utiliza a voz para desenvolver
o sentido dos graus e suas relações entre as diferentes tonalidades e o reconhecimento de
timbres; 3) improvisação: com base no aprendizado da rítmica e do solfejo, desenvolve a
expressão musical, o sentido táctil-motriz e a tradução de idéias musicais rítmicas, melódicas
e harmônicas (RODRIGUES, [s.d.], p. 21-22). Tenho aplicado essas três matérias à prática do
canto coral de forma sistemática através da utilização de percussão corporal ou coreografias
(rítmica), o canto propriamente dito (solfejo) e a composição/improvisação de pequenas frases
rítmicas ou melódicas (improvisação).
O princípio básico do processo de educação musical de Dalcroze é explorar, experimentar,
descobrir, aprender e analisar. Através de estímulos sensoriais, geralmente auditivos, mas
que também podem ser de outra natureza (por exemplo, visual, na execução de ritmos ou
gestos expressivos, e tátil na exploração de instrumentos para experimentação de timbres),
conseguimos um desencadeamento de respostas mentais e físicas por meio de movimentos
corporais. O estudo de tais movimentos desperta o organismo inteiro, pois segundo Jerome
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 80-91, maio, 2010.
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Bruner, psicologista educacional, quando o sistema neuro-muscular é solicitado há uma
resposta motora a um estímulo sensorial, os movimentos criam imagens (conceitos) e
através das palavras e outros símbolos a intelectualização ganha espaço (WAX, 2007, p. 12-
13). Assim, a precisão rítmica torna-se o resultado da rápida comunicação entre o cérebro
e o corpo.
Com a repetição de movimentos conscientes chegamos ao automatismo, que é o
funcionamento muscular a partir de um reflexo rápido inconsciente. Dessa forma acontece
a expansão do ritmo natural e os primeiros resultados dos exercícios que levam ao
desenvolvimento das funções musculares e do pensamento aparecem: conhecimento e
domínio próprio e posse da personalidade. As respostas mentais e físicas tornam-se mais
evidentes no ensino coletivo devido ao encorajamento e imitação mútua, por isso a formação
de grupos é necessária para o desenvolvimento do processo de educação musical de Dalcroze.
A prática do canto coral, coletiva por natureza, torna-se propícia para a aplicação do método
Dalcroze visando seu desenvolvimento rítmico, melódico e expressivo.
Para justificar a importância de se conjugar práticas tão distintas como a ginástica (ou
movimentação corporal) e a música, a fim de se conseguir um equilíbrio desejável, um
desenvolvimento harmonioso no ser humano, Platão dizia que “os que praticam exclusivamente
a Ginástica tornam-se por demais abrutalhados, e os dedicados unicamente à Música
amolecem-se mais do que lhes convém” (PLATÃO, [s.d.], p. 73). Assim também o objetivo do
processo de educação musical de Dalcroze é criar uma perfeita harmonia entre mente e
corpo. Pelo fato de a música ser uma atividade muito mais voltada para a mente do que para
o corpo, a prática corporal sempre precede a teoria, pois se aprende a fazer, fazendo: “[...] a
atividade é crucial e precede o entendimento” (WAX, 2007, p. 14). A ginástica, na concepção
de Dalcroze como a coordenação rítmica do movimento, revigora o sentimento e o instinto do
ritmo apesar da facilidade de alguns e dificuldade de outros (WAX, 2007, p. 14). O equilíbrio
entre a prática corporal e vocal no canto coral é muito importante, pois devemos ter o cuidado
de não deixar a execução do grupo estática, sem movimento, e nem transformá-la em uma
execução coreográfica. O foco da prática do canto coral é a voz.
O processo de educação musical de Dalcroze é adaptado para diferentes faixas etárias.
Alunos com dois anos de idade podem iniciar seu aprendizado com atividades de treino
auditivo, movimento rítmico, canto e improvisação melódica. Desenvolve-se em todas as
faixas etárias, além da sensibilização musical, conceitos, ferramentas e vocabulário para serem
aplicados na leitura e escrita musical. Conforme os alunos vão adquirindo conceitos, as respostas
surgirão espontaneamente através da análise dos movimentos. Embora o canto coral não seja
praticado com a faixa etária de dois anos, podem ser realizadas atividades preparatórias para
um posterior ingresso nesse grupo com faixa etária adequada.
Quando o aluno deseja o aprendizado de um instrumento, o desenvolvimento da
sensibilidade musical precede o desenvolvimento da coordenação motora necessária para o
instrumentista, pois não só o instrumentista, mas o músico de forma geral, necessita de um
JOSÉ FORtUnatO FeRnanDeS, Método Dalcroze: perspectivas de aplicação no canto coral.
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ARTIGO
bom preparo: “Antes de se lançar a semente é preciso preparar o terreno” (DALCROZE, 1925,
p. 93-94, tradução nossa). O processo de educação musical de Dalcroze atende a idades,
interesses e necessidades diversificadas: crianças, jovens e adultos, músicos ou não.
Emile Jaques-Dalcroze “[...] foi quem primeiro se preocupou com o corpo como meio para
o desenvolvimento não só musical, mas também da personalidade da criança. Ele criou uma
disciplina chamada euritmia [...]” (BRITO, 2003, p. 145). A euritmia pode ser definida como o
treinamento rítmico musical através do corpo ou a educação do corpo para resolver problemas
rítmicos musicais. Para Dalcroze, o ritmo é o elemento mais ligado à vida, portanto os ritmos do
corpo – respiração, coração, caminhar, etc. – devem ser conectados com a música para que o
movimento corporal seja utilizado sempre para desenvolver o senso rítmico em qualquer estágio
de complexidade. O estudo do ritmo por meio do movimento desperta a sensação rítmica
corporal e desenvolve a expressão, a concentração e a execução do movimento rítmico, como
também desperta a sensação auditiva e desenvolve a expressão, a apreciação, a concentração e
a espontaneidade na realização vocal. No canto coral, a execução vocal espontânea refletirá a
percepção - que ocorre através dos sentidos da audição, da visão e do tato - do ritmo, da pulsação,
da métrica e da frase de forma expressiva. A consciência rítmica surge a partir da análise das
experiências com o movimento e por meio destas se desenvolve a aquisição de um vocabulário
de movimentos para a expressão rítmica. “Deste modo, todos os exercícios são voltados para o
crescimento do corpo e da mente, tanto como coordenação e harmonia entre os dois” (WAX, 2007,
p. 6). Dalcroze estabelece os seguintes objetivos da rítmica:
Todos os exercícios da ‘rítmica’ têm por objetivo reforçar a faculdade de concentrar-se, de habituar o corpo a manter-se, por assim dizer, sob pressão esperando as ordens da zona superior, de fazer penetrar o consciente no inconsciente, e de aumentar a faculdade inconsciente de todo o contributo de uma cultura especial, que tem por resultado o respeito a ela. Além disso, esses exercícios tendem a criar hábitos motrizes mais numerosos e novos reflexos para obter-se com o mínimo esforço o máximo efeito, portanto a tranqüilizar o espírito, a revigorar a vontade e a estabelecer a ordem e a clareza no organismo (DALCROZE, 1925, p. 93, tradução nossa).
Dalcroze inovou a forma de estudo da teoria musical fundamentando-a na prática:
“Teoria musical é muito freqüentemente o estudo de sinais musicais ao invés de ser a experiência
e a análise na própria música” (apud WAX, 2007, p. 6). A rítmica se desenvolve por meio da força
e da energia. Para a execução do ritmo musical devemos atentar para o inter-relacionamento
de três elementos essenciais: tempo, espaço e energia. A audição determinará a sensibilidade
para a resposta física do movimento que utiliza as corretas proporções entre os três elementos.
No canto coral esses três elementos são aplicados, especificamente na execução vocal, à correta
utilização dos articuladores - dentes, lábios, língua, mandíbula e palato - visando a precisão
rítmica e uma boa dicção. Há uma nítida relação entre os exercícios elementares e os avançados,
pois algumas questões rítmicas estudadas no processo de educação musical de Dalcroze são
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sempre recorrentes – embora adaptadas à idade e ao estágio de complexidade –, tais como
pulsação, dinâmica, duração das notas, métrica, fraseado e polirritmia. O processo de
educação musical de Dalcroze também desenvolve a prática da improvisação rítmica através
do movimento, mas para isso é necessário que o educador tenha o treinamento adequado
para a sua aplicação.
Para o desenvolvimento do solfejo, o processo de educação musical de Dalcroze utiliza a
voz como instrumento natural tonal: “Dalcroze tem por fim desenvolver o senso de afinação,
relativa e absoluta. [...] O objetivo é treinar as pessoas a ouvir melhor, desenvolver uma escuta
apurada” (WAX, 2007, p. 8). O estudo do solfejo desperta a sensação dos graus, das relações
de elevação e abaixamento dos sons, a faculdade de reconhecer os seus timbres e desenvolve
a representação mental da melodia, do contraponto e da harmonia em atividades de leitura,
improvisação, notação e composição. Os exercícios para o desenvolvimento do solfejo
incluem escalas, acordes, cadências, intervalos, inversões, modulações, tons, semitons, etc.,
mas “seja qual for o assunto, nunca é desvinculado da experiência rítmica do Método Dalcroze
(Eurhythmics)” (WAX, 2007, p. 9). Esses exercícios podem ser retirados de trechos do repertório
e aplicados com o objetivo de relacioná-los aos conteúdos estudados e alcançar uma execução
mais musical. A prática do canto coral torna-se, repito, um meio bastante adequado para a
aplicação desse processo de educação musical desenvolvido por Dalcroze, na qual podemos
vivenciar o estudo do solfejo a partir de atividades técnicas que contribuam para o bom
desempenho de habilidades vocais. Assim também, além das atividades já sugeridas, podem
ser realizadas atividades de apreciação que venham a complementar a expressividade na
execução do repertório (SWANWICK, 2003, p. 70-72).
A leitura e a escrita estão vinculadas ao ouvido e ao desenvolvimento da audição interna:
“A pessoa verdadeiramente musical precisa ser capaz de ouvir internamente o que está impresso
na folha de papel” (WAX, 2007, p. 10). Dessa forma, depois de um ano de exercícios rítmicos,
o aluno passa pela classe de solfejo onde desenvolve a audição interior para a realização e
criação da sonoridade. Os exercícios de solfejo correspondem aos de rítmica e, além disso, os
alunos podem estudar vocalmente as tonalidades, a harmonia, os andamentos, percebendo
como os sons se reproduzem em seu corpo. Assim como a improvisação rítmica, a melódica
também é desenvolvida vocalmente no estudo do solfejo e tem seu ponto de partida em
palavras, movimentos, símbolos, gráficos e idéias. Uma das vantagens da aplicação do estudo
do solfejo idealizado por Dalcroze na prática do canto coral é que o aluno será levado a atingir
um nível em que consiga relacionar a leitura, a escrita e a audição interna através da execução
musical e não apenas por meio de exercícios.
Para Dalcroze, a improvisação é vista como a manifestação do conhecimento e, além do
desenvolvimento da improvisação rítmica (com o corpo) e melódica (com a voz), ele escolheu
o piano para aprofundar a prática da improvisação como meio de expressão, pois o estudo
da improvisação ao piano desenvolve a exteriorização musical mediante o tato. Dalcroze diz
que a virtuosidade é erroneamente associada à velocidade e que seu objetivo é desenvolver a
JOSÉ FORtUnatO FeRnanDeS, Método Dalcroze: perspectivas de aplicação no canto coral.
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técnica, que deve ser entendida como um conjunto de habilidades expressivas. Esse é um
conceito que deve ser aplicado não só à aplicação da técnica ao instrumento, mas também ao
canto coral.
A improvisação tem uma relação estreita com o tempo, pois é o elemento mais importante
nessa prática pelo fato de ser uma criação que podemos chamar de instantânea. A prática da
improvisação no canto coral pode ser desenvolvida desde a criação de ruídos - com a voz ou
objetos sonoros - que podem preparar uma atmosfera para a execução musical, passando pela
criação de ritmos por meio de percussão corporal ou instrumental, até a criação de melodias
contrapontísticas e harmonias. A partir da prática da improvisação qualquer pessoa pode
realizar música: “Dalcroze ensina que todas as pessoas [...] podem ser treinadas para tocar [e
cantar] música espontaneamente” (WAX, 2007, p. 10).
Para conhecer um pouco mais acerca do processo de educação musical desenvolvido
por Dalcroze e, ao mesmo tempo, facilitar sua aplicação, seguem-se duas séries de exercícios,
agrupados em atividades rítmicas e atividades melódicas. Eles não são seqüenciais, podem ser
escolhidos aleatoriamente e adaptados conforme a necessidade do grupo.
2.1 Atividades rítmicas
1) Descontração muscular e respiração: deitar de costas, ficar atento à respiração, contrair
um só membro, contrair dois membros, opor contração e descontração entre os dois
membros do corpo. “Este estudo da descontração é a base de todos os exercícios deste
método” (DALCROZE, 1925, p. 97, tradução nossa). O aluno se dá conta de suas resistên-
cias musculares e elimina as inúteis.
2) Divisão e acentuação métrica: marcar o pulso com os pés e o acento com os braços com
completa contração destes no 1º tempo. Ao ouvir hop - palavra utilizada por Dalcroze
para as mudanças de ação - o aluno impede a contração do braço (acento) ou ao pé de
tocar o solo (pulso), ou a bater o pé sem pressa ou sem lentidão (mudança de anda-
mento), ou a substituir o movimento do braço pelo do pé.
3) Memorização métrica: depois de ter feito movimentos especiais determinados pelo
hop, colocá-los na ordem em que foram executados. Depois da análise, explicá-los e
anotá-los na pauta.
4) Concepção rápida do compasso por meio da visão e da audição: os comandos hop
irão substituir as imagens auditivas pelas visuais e vice-versa. O aluno vai imitar por
audição a sequência de sons ou pela visão a realização dos movimentos ou pela leitura
no quadro negro.
5) Concepção dos ritmos mediante a sensação muscular: ao ouvir durações, o aluno de-
verá calcular a amplitude do movimento no espaço para preenchê-las através das sen-
sações das tensões e extensões dos músculos e dos dobramentos e desdobramentos
dos membros.
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6) Desenvolvimento da vontade espontânea e da faculdade de inibição: exercícios para
parar brusca ou lentamente, a trocar a direção da caminhada para frente, para trás, para
os lados, a saltar, a deitar, a levantar, sem perder a pulsação.
7) Concentração e criação da audição interior dos ritmos: andar, parar durante alguns pul-
sos, contá-los mentalmente e voltar a andar. Esse exercício prepara para a execução do
silêncio e ensina as leis do fraseado musical.
8) Equilíbrio corporal e continuidade dos movimentos: as concepções das durações são
asseguradas pela continuidade do movimento que deve ser executada com gradações
diversas de energia e interrompida por um comando.
9) Aquisição dos numerosos automatismos e sua combinação e alternância com atos de
vontade espontânea: os automatismos devem ser executados em velocidades difer-
entes e interrompidos com facilidade para serem substituídos por outros, devendo estar
combinados com várias partes do corpo, com palavras ou com o canto.
10) Realização das durações musicais: realização da semínima com um passo à frente; da
mínima, com um passo à frente e uma flexão no lugar.
11) Divisão das durações métricas: a semínima deve ser subdividida em dois passos breves
à frente para duínas, três para tercinas, quatro para quartinas, etc. Nas síncopes, os pas-
sos que representam as figuras de maior duração são substituídos por um passo breve
seguido de uma flexão no lugar.
12) Realização corporal imediata de um ritmo musical: com movimentos espontâneos para
representar as durações, substituir os ritmos sonoros por ritmos plásticos: “Durante a
execução de um automatismo, se prepara um outro automatismo” (DALCROZE, 1925, p.
105, tradução nossa).
13) Dissociação dos movimentos: contrair um dado músculo de um braço enquanto o
mesmo músculo do outro braço estiver descontraído. Executar, simultaneamente, mo-
vimentos com velocidades diferentes em membros diferentes do corpo.
14) Interrupções e paradas do movimento: a partir do fraseado e nuances do discurso musi-
cal, parar o próprio movimento ou interrompê-lo. “Equilíbrio e pontuação dos períodos
e frases do ‘discurso corporal’ segundo as leis do fraseado musical – As oposições e os
contrastes – Estudo da anacruse – Vários modos de respiração – Vários modos de parada
e interrupção do passo e do gesto” (DALCROZE, 1925, p. 106, tradução nossa).
15) Dupla e tripla rapidez e lentidão dos movimentos: a duplicação ou triplicação da rapidez
ou lentidão dos movimentos que representam um ritmo relaciona-se aos procedimen-
tos de “aumentação” e “diminuição” utilizados para desenvolvimento de um tema.
16) Contraponto plástico e polirritmia: é feita uma transposição dos exercícios de cada es-
pécie do contraponto (nota contra nota, duas notas contra uma, quatro - aumentado
para incluir três, ou seis etc. por outros - notas contra uma, notas deslocadas em relação
a cada outra - como suspensões -, e todas as quatro espécies juntas, como contraponto
ornamentado) para os membros do corpo. A polirritmia é desenvolvida através dos au-
tomatismos, pois enquanto um braço executa automaticamente um ritmo, outro mem-
bro executa um ritmo diferente.
JOSÉ FORtUnatO FeRnanDeS, Método Dalcroze: perspectivas de aplicação no canto coral.
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17) Acentuações patéticas: matizes dinâmicos e agógicos (expressão musical): “Todos os exer-
cícios precedentes têm o escopo de desenvolver o sentimento da medida e do ritmo. Estes
exercícios que seguem têm por fim despertar o temperamento dos alunos, de incitar o seu
corpo a vibrar de acordo com a música escutada” (DALCROZE, 1925, p. 107, tradução nossa).
Os matizes são representados pelas várias amplitudes dos movimentos, que devem passar
rapidamente de um matiz a outro.
18) Notação dos ritmos: anotar o ritmo que sente ou que vê sendo executado.
19) Improvisação (educação da faculdade imaginativa): ao comando do educador o aluno deve
improvisar uma série de compassos a 2, 3, 4, 5 ou 6 tempos (a noção de compasso simples
ou composto não deve ser abordada, mas apenas a quantidade de tempos a ser impro-
visada dentro dos compassos), ou inventar ritmos utilizando elementos já aprendidos.
20) Direção dos ritmos (comunicação rápida a outros, solistas ou grupos, de sensações e senti-
mentos individuais): um aluno conduz, através de gestos expressivos, os matizes dinâmicos
e agógicos de um ritmo memorizado por todos.
21) Execução dos ritmos por vários grupos de alunos (imitação de frases musicais): “Cada perío-
do de uma frase rítmica é realizada por um grupo de alunos” (DALCROZE, 1925, p. 109), ou
seja, as frases musicais serão executadas alternadamente por cada grupo.
2.2 Atividades melódicas
1) Contração e descontração dos músculos do pescoço, dos músculos relacionados à re-
spiração e ginástica pulmonar ritmada: experimentar vários ataques do som vocal e
enunciação das consoantes acompanhados de movimentos opostos dos braços, om-
bros e diafragma. Sincronizar o ataque do som com o início da caminhada. Reconhecer
as várias gradações de intensidade sonora. Relacionar a respiração com a emissão vocal.
Perceber e estudar os registros da voz.
2) Divisão e acentuação métrica: diferenciar os compassos por meio das acentuações dos
sons vocais. Atacar um som em um tempo estabelecido com ou sem comando. Substituir
um movimento corporal por um ataque vocal.
3) Memorização métrica: com o hop o educador provoca uma série de ataques vocais medi-
dos e acentuados regularmente que são memorizados e repetidos pelos alunos.
4) Concepção rápida do tempo mediante a visão e a audição: estudar os sinais musicais. Re-
alizar a métrica com os movimentos respiratórios ou com sons vocais de uma série de notas
medidas, escritas no quadro ou entoadas pelo educador.
5) Percepção da “elevação dos sons cantados” mediante a sensação dinâmica muscular: re-
conhecer os diversos graus de tensão da prega vocal e localizar as vibrações sonoras com
a mão apoiada sobre o alto do peito, o pescoço, a mandíbula, as paredes nasais, a testa,
controlando a elevação (altura) e a ressonância (intensidade) da nota emitida. Perceber e
estudar as relações entre a intensidade e a elevação do som. Perceber e estudar tonalidades
maiores e menores. Reconhecer e reproduzir as notas escolhidas na escala. Propor ritmos
diferentes para uma série de notas. Ler melodias.
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6) Aplicação dos exercícios de vontade espontânea e de inibição à voz: ao comando do edu-
cador, substituir uma melodia por movimentos corporais e vice-versa. Acentuar e pontuar
espontaneamente ao sinal do educador. Prontidão para parar e reiniciar o canto ao coman-
do do educador.
7) Concentração e criação da audição interior da sonoridade: cantar uma melodia ou uma
escala e, ao hop do educador, parar de cantar e continuá-la somente em pensamento. Ouvir
a harmonia de um som. Reconhecer timbres.
8) Associação dos movimentos corporais contínuos com os sons vocais sustentados. Explorar
suas combinações com movimentos interrompidos.
9) Aquisição de automatismos vocais, suas combinações e revezamentos com atos vocais de
volição espontânea: cantar uma escala com um ritmo dado e ao comando hop do educa-
dor, continuar cantando com ritmo diferente. Cantar uma escala e saltar uma ou mais notas
de acordo com o sinal do educador.
10) Aplicação dos exercícios de rítmica às realizações vocais: cadeia de ritmos - como a imitação
em cânone, compasso por compasso – de uma melodia cantada pelo educador. Estudar as
pausas.
11) Dissociação: cantar em fortíssimo enquanto o corpo executa um movimento em pianís-
simo e vice-versa. Cantar em crescendo enquanto o corpo executa um movimento em de-
crescendo. Cantar em fortíssimo enquanto um membro se move em crescendo e um outro
em decrescendo e vice-versa. Cantar em crescendo e decrescendo enquanto um membro se
move em fortíssimo e um outro em pianíssimo. Cantar 3 notas enquanto os braços ou os pés
fazem 2, 4 ou 5 movimentos e vice-versa.
12) Estudo dos silêncios e do fraseado: “Silêncios preenchidos por um canto interior. Períodos
e frases. Leis dos contrastes e das oposições. Duplos fraseados” (DALCROZE, 1925, p. 113,
tradução nossa).
13) Dupla e tripla rapidez ou lentidão dos movimentos: cantar uma melodia e, ao comando
hop, executá-la com o dobro de rapidez ou lentidão do compasso (ou do tempo), enquanto
o braço continua marcando o pulso inicial. Combinar e opor a dupla ou tripla rapidez ou
lentidão do som com os membros do corpo.
14) Polirritmia e contraponto plástico: cantar uma melodia e executar um outro ritmo através
de movimentos corporais. Executar um cânone utilizando a voz, as mãos e os pés. Escutar
o ritmo duplo de um compasso, cantar primeiro a voz superior e depois a inferior. Escutar
uma sucessão de acordes e reproduzir cada linha vocal, uma depois da outra.
15) Acentuação patética - matizes dinâmicos e agógicos (a expressão musical): acentuar notas
importantes dos ritmos, acelerar e reduzir a velocidade, fazer os crescendo e decrescendo,
primeiro por instinto e depois por análise. Estudar as relações entre a elevação e a acentua-
ção dos sons.
16) Notação de melodias, polifonias e sucessões harmônicas.
17) Improvisação vocal: criar melodias para um ritmo dado e criar um ritmo para uma melodia
dada com durações iguais.
JOSÉ FORtUnatO FeRnanDeS, Método Dalcroze: perspectivas de aplicação no canto coral.
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18) Direção dos ritmos: o grupo aprende uma melodia e a colore de acordo com as indicações
de um dos alunos.
3 ConCluSão
O processo de educação musical de Dalcroze é fundamentado na vivência, sensação e interiorização da música. Utiliza o movimento corporal como meio para desenvolver os automatismos necessários à execução musical em suas três vertentes principais: o ritmo, o solfejo e a improvisação. Esse processo de educação musical é perfeitamente aplicável ao canto coral.
Para o desenvolvimento do ritmo Dalcroze criou a euritmia, que é a utilização do movimento
corporal para a execução dos ritmos musicais, numa integração entre tempo, espaço e energia.
O solfejo é desenvolvido através de sua vinculação aos movimentos corporais trabalhados na
euritmia e busca o aperfeiçoamento da audição interior. A improvisação, embora abordada
pelo pedagogo com maior profundidade no estudo do piano, também está integrada nas
práticas relacionadas ao ritmo e ao solfejo, o que sinaliza seu grande potencial de aplicação
também no canto coral. Entretanto, para ser bem sucedido na aplicação dos ensinamentos de
Dalcroze, necessita-se de educadores bem preparados para tal.
Defendendo a idéia de que a música é possível para todos, Dalcroze elaborou seu processo
de educação musical para ser aplicado coletivamente, para diversas faixas etárias, atendendo a
diversos interesses, inclusive não musicais. Eis aí outros dois pontos de afinidade com a rotina
do canto coral.
No processo de educação musical de Dalcroze há uma íntima relação entre a música e o
movimento, que parte da exploração rítmica deste, acrescenta elementos melódicos através da voz
e culmina a plasticidade do movimento na busca de expressividade, unindo-se música e dança.
Assim, acredita-se que a aplicação desse processo de educação musical num grupo de canto
coral pode trazer muitos benefícios, não só por conceber a música como algo mais completo e
profundo, dotada de expressividade – para além de ritmos, melodias e harmonias – mas, acima
de tudo, por permitir ao ser humano uma vivência musical mais ampla e integrada – para além
da repetição (mecânica, parcial e intuitiva) dos sons e do individualismo que predomina nas
sociedades atuais.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 80-91, maio, 2010.
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Referências
BRITO, Teca Alencar de. Música na educação infantil. São Paulo: Peirópolis, 2003.
DALCROZE, E. Jaques. La ritmica, il solfeggio e l’improvvisazione. In: ______. Ginnastica ritmica estetica e musicale. Milano: Ulrico Hoepli, 1925. p. 88-123.
PLATÃO. diálogos III: a república. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [s.d.].
RODRIGUES, Iramar E. A rítmica de Émile Jaques-Dalcroze: uma educação por e para a música. Uberlândia: Associação Pró-Música de Uberlândia, [s.d.].
SWANWICK, Keith. Ensinado música musicalmente. São Paulo: Moderna, 2003.
WAX, Edith. O método Dalcroze. São Paulo: [s.n.], 2007.
JOSÉ FORtUnatO FeRnanDeS, Método Dalcroze: perspectivas de aplicação no canto coral.
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ARTIGO
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 92-105, maio, 2010.
RESUMO
Camargo Guarnieri (1907–1993), destacado
compositor paulista no cenário musical
brasileiro, sempre esteve envolvido com
o ensino musical. Além da atuação em
Conservatórios e Universidades, em 1956
foi nomeado Assessor Técnico em Música do
Ministério de Educação e Cultura, ocasião em
que tentou empreender a reforma do ensino
musical. Criou também, no início da década
de 1950, sua Escola de Composição, por onde
passaram dezenas de compositores. A partir
de revisão bibliográfica e da pesquisa em
matérias publicadas nos jornais da época,
este artigo tem como objetivo apresentar
um panorama do percurso de Camargo
Guarnieri em sua constante busca por um
ensino de qualidade, voltado para a música
brasileira em seus desafios e contradições.
ABSTRACT
Camargo Guarnieri (1907–1993), an important,
São Paulo born composer of significant stature
within the Brazilian music scene, has always
been involved in the teaching of music. Besides
his work in Conservatories and Universities, in
1956 he was nominated Technical Advisor for
Music to the Ministry of Education and Culture,
on which occasion he attempted to implement
a music teaching reform. At the beginning
of the 1950s, he also founded the Escola de
Composição (School of Composition), which
was home to dozens of composers. Based on
bibliographical study and research in articles
published in newspapers from that time, this
article seeks to present a broad view of Camargo
Guarnieri´s journey in his incessant quest for
good quality teaching, aimed at Brazilian music
with all its challenges and contradictions.
PALAVRAS-CHAVE
Camargo Guarnieri. Ensino musical.
Nacionalismo.
KEYWORDS
Camargo Guarnieri and music teaching.
Nationalism.
ANA LúCIA kOBAyASHI
Mestre em musicologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). e-mail: analucia.
kobayashi@gmail.com
Camargo Guarnieri e o ensino musical1
The Dalcroze method: perspectives for application in choir singing
1 Este artigo é parte da dissertação A Escola de Composição de Camargo Guarnieri (KOBAYASHI, 2009), e tem por objetivo apresentar o trabalho do compositor relacionado ao ensino musical, mostrando suas principais concepções. Por meio de pesquisa bibliográfica (livros, dissertações e, principalmente, artigos de jornais da época), mostra-se um panorama de seu envolvimento com a área.
SOBRE O ARTIGO
Submetido em:
17 / 02 / 2010
Aprovado em:
14 / 04 / 2010
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ARTIGO
ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.
1 IníCIo dA CArrEIrA CoMo profESSor
Em 2007, comemorou-se o centenário de nascimento do compositor paulista Camargo
Guarnieri (1907–1993), cuja produção musical, segundo o pianista José Eduardo Martins, tem
sido um dos temas de estudo mais procurados por alunos dos Programas de Pós-graduação
em Música no Brasil - e “isto se deve ao fato de, em pertencendo à trindade nacionalista -
junto a Villa-Lobos e Francisco Mignone -, Guarnieri ter-se destacado pela profunda ciência
composicional, prevalecendo sobre os seus ilustres colegas no segmento do esmero da feitura
criativa” (MARTINS, 1993, p. 34). No entanto, além de sua atuação como compositor, Camargo
Guarnieri preocupou-se também com o ensino musical desde o início de sua carreira.
Camargo Guarnieri iniciou sua carreira de professor aos 21 anos. Ingressou no corpo
docente do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo como professor de piano e de
acompanhamento. Três anos depois, assumiu também a classe de composição do maestro
italiano Lamberto Baldi (1895–1979), que havia se transferido para o Uruguai para assumir o
cargo de diretor do Serviço Oficial de Difusão da Rádio Elétrica (VERHAALEN, 2001, p. 25). No
ano seguinte, Guarnieri foi nomeado chefe do Departamento de Piano.
O Conservatório Dramático e Musical de São Paulo surgiu num momento de efervescência
cultural, social e econômica, devido ao enriquecimento do Estado de São Paulo graças ao cultivo
do café. Segundo Elizabeth Azevedo, “todo tipo de iniciativa comercial, industrial ou cultural
tinha o seu lugar, desde as mais populares até aquelas direcionadas a uma elite segura de si
e desejosa de deixar sua marca na paisagem da cidade” (2006, p. 1). O Conservatório paulista
foi criado em 1906, nos moldes do Conservatório de Paris - tido, na época, como uma das
melhores referências em formação musical. No início, esteve sediado à Rua Brigadeiro Tobias e
posteriormente, em 1909, mudou-se para a Avenida São João. A instituição ganhou prestígio e
contou com alunos como Francisco Mignone (1987-1986) e Mário de Andrade (1893-1945).
Camargo Guarnieri desligou-se do Conservatório em 1931, mas para lá retornaria em 1960 como
professor de piano, orquestração e composição. Nesse mesmo ano, a cúpula do Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo reuniu-se e o elegeu, por unanimidade, diretor da instituição.
Entretanto, Guarnieri permaneceria apenas dez meses no cargo. Seu pedido de exoneração
deveu-se à incompatibilidade da estrutura da instituição com sua vontade de estabelecer um
currículo que preparasse, de forma mais equilibrada, tanto instrumentistas quanto compositores
(VERHAALEN, 2001, p. 50). Em seu discurso de exoneração, Guarnieri declarou que:
Hoje, após dez meses de administração, concluo que não é mais possível prosseguir a menos que
ponha em jogo minha dignidade de cidadão e minha honorabilidade de artista. [...] O Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo, em suas atuais condições, é simplesmente inadmissível. Vícios
de origem corroem-lhe as entranhas. A indisciplina, o desrespeito são seus esteios. Intrigas,
maquinações as mais estúpidas povoam os seus corredores (apud ABREU, 2001, p. 48).
Os “vícios de origem” mencionados por Guarnieri referiam-se à grande ênfase dada ao
ensino de piano naquela instituição, à qual o compositor denominava “pianomania” ou, como
2 Proveniente de Isernia (Itália), Luigi Chiafarelli transferiu-se para o Brasil em 1880. Foi um dos mais importantes professores de piano no país, tendo formado pianistas como Guiomar Novaes e Antonieta Rudge.
3 À frente do Departamento de Cultura de São Paulo entre 1936 e 1939, Mário de Andrade concedeu a direção do Coral Paulistano a Ca-margo Guarnieri.
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ARTIGO
dizia Mário de Andrade, “pianolatria”. A ênfase sobre o ensino desse instrumento não era
recente: vinha desde o início da fundação do Conservatório, com a criação do departamento
de piano por Luigi Chiafarelli (1856–1923) 2. No início do século XX, o instrumento passou a
ocupar lugar cada vez mais importante, seja no surgimento de professores, na promoção de
recitais, no comércio especializado ou na criação de conservatórios, desempenhando, assim,
um significativo papel sócio-histórico (FUCCI AMATO, 2007, p. 3). Na ótica de uma sociedade
de classes, o piano tornou-se símbolo de status social, indicador de boa formação das moças
da época que, em busca do casamento, teriam, entre suas habilidades, além de cozinhar e
costurar, tocar o instrumento.
Segundo Márcia Camargos, o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, ao invés
de investir na formação de instrumentistas de cordas e cantores líricos para “possibilitar a
constituição de uma orquestra e fornecer intérpretes às produções do Teatro Municipal,
inaugurado em 1911 na mesma área, [...] rendeu-se à pianolatria” (CAMARGOS, 2006). Todavia,
é questionável atribuir a ausência de músicos de outros instrumentos a uma escolha do
Conservatório pelo ensino do piano. A grande demanda de alunos por esse instrumento
parece dever-se mais ao momento de prestígio do mesmo, tendência que o Conservatório
acompanhou.
Surgiu então, em 1938, uma oportunidade para que Guarnieri estudasse na França, por
meio de uma bolsa de estudos oferecida pelo governo brasileiro. Esse período, porém, não
foi muito longo. Devido à Segunda Guerra Mundial, Guarnieri foi forçado a retornar ao Brasil
no ano seguinte. Agora, no entanto, sem seu posto de regente do Coral Paulistano3 e sem o
cargo anterior no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, o compositor enfrentou
uma situação financeira difícil. Assim, em 1942, esteve prestes a aceitar o convite que recebera
do diretor do Conservatório Dramático e Musical do Panamá, Alfredo de Saint-Malo (1898 –
1984), para lecionar composição durante dois anos naquele país (VERHAALEN, 2001, p. 39). Em
entrevista ao Diário de Notícias, Guarnieri relatou que:
Foi uma verdadeira surpresa para mim. E é difícil explicar a satisfação que tive. Confesso que se
o aceitar, faço-o bastante constrangido. Compreenda que é duro a gente abandonar, talvez para
sempre, a terra em que nasceu, onde se viveu a maior parte da vida, onde realizamos nossa obra.
[...] Quando se vive como eu, premido pelos imperativos econômicos, uma proposta como esta é
como um presente do céu (apud DANTAS, 1942).
É interessante observar a reação da imprensa brasileira acerca desse convite. A Folha da Noite
aproveitou a notícia para manifestar seu desagrado com a partida de outros artistas brasileiros
para o exterior, como Guiomar Novaes, Francisco Mignone e Dinorá de Carvalho - declarando
que, “nesse andar, a grande música brasileira se transferirá definitivamente para o norte do
Continente” (apud VERHAALEN, 2001, p. 40). João Itiberê da Cunha manifestou sua indignação
em artigo publicado pelo Correio da Manhã em 16 de abril de 1942, declarando que:
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 92-105, maio, 2010.
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Camargo Guarnieri é um padrão de glória para o Estado em que nasceu e para a Pátria a que
pertence. Mereceria tratamento carinhoso. Devia ter pelo menos garantida a subsistência na sua
terra de nascimento. Não a tem. Sua vida é aleatória. Cheia de pontos de interrogação no que
concerne às questões financeiras...
[...] Mas, se os governos de São Paulo e o Federal nada fazem pelo ilustre artista patrício – que já fez jus à
proteção de ambos – é o menos que ele se vingue levando para o Panamá toda a experiência das suas luz
es, toda a sutileza da sua erudição de profissional e de virtuose. O que nós perdemos por imprevidência e
falta de patriotismo, ganham os panamenhos à nossa custa (apud VERHAALEN, 2001, p. 39).
Basílio Itiberê da Cunha culpava o governo por não fornecer o suporte financeiro
necessário ao compositor. Afirmações como essa eram comuns entre músicos e artistas em
geral, que consideravam justo receberem auxílio governamental para darem expressão a sua
arte. O “projeto nacionalista”, que estava em conflito com a preferência do público pela música
e cultura européias, visava à criação de uma linguagem artística nacional. Para a divulgação
desta música, porém, os nacionalistas acreditavam ser primordial o apoio do Estado, assim
como no custeio dos gastos e na criação de um circuito de música nacional, que “deveria
incluir conservatórios, teatros, corais, orquestras e público” (EGG, 2004, p. 11). Dentro dessa
visão, caberia ao Estado a responsabilidade sobre a criação artística, fornecendo ao artista
subsistência, a divulgação de suas obras e enviando-o, preferencialmente, para o exterior,
arcando com sua manutenção.
O ano de 1930 marcava a transição entre uma política caracterizada pela autonomia das
províncias e a centralização do poder, com a ascensão de Getúlio Vargas. Alessandra Lisboa
afirmou que:
Essa ruptura dos moldes administrativos tradicionais fez-se acompanhar de uma revolução cultural
que guiou a idéia de construção da Nação Brasileira, pautada por idéias de identidade, coletividade
e progresso. Esse conjunto de idéias, que aos poucos tomou forma no país a partir da implantação
do regime republicano, acabou por se tornar a forma ideológica que expressava o contexto da
época. Essas idéias, que a historiografia cunha de ideologia nacionalista, manifestaram-se na
política, economia e cultura nacionais, com força e influência (LISBOA, 2005, p. 13).
Segundo Egg, com a Revolução de 1930,
Os nacionalistas tenderam a associar a noção de Brasil novo, criada com a revolução, à de música
nova – que corresponderia ao modernismo nacionalista que deveria ser apoiado pelo novo regime.
Vários nacionalistas passaram a ocupar cargos ou assessorar o governo Vargas, que viam como um
marco da atuação do Estado em favor da música nacional (EGG, 2004, p. 24).
Assim, de um Estado centralizado e forte podia-se esperar medidas de caráter nacional que
refletissem as novas condições sociais e econômicas. No governo Vargas, a educação revestiu-
se da idéia de universalidade – a educação como um direito de todos – e a música passou a
ter um papel de destaque, pois, enquanto produção artística ligada à coletividade, poderia ser
usada como um fator de coesão nacional.
ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.
9696
ARTIGO
Uma das primeiras medidas tomadas pelo governo foi a reforma do Instituto Nacional
de Música. Luciano Gallet (1893-1931), nomeado diretor do Instituto, tinha como objetivo
transformar o ensino musical, até então voltado para a formação de intérpretes da música
romântica européia, em prol da formação de músicos capacitados para a criação de “música
brasileira”.
O momento histórico correspondente à Revolução de 1930 trouxe também uma
oportunidade para Villa-Lobos. Em 1931, o compositor fora convidado por Anísio Teixeira,
secretário de educação do Distrito Federal, para coordenar a implantação do canto orfeônico4
que, mais tarde, passaria a ser obrigatório em todas as escolas brasileiras.
Segundo alguns autores, a implantação de iniciativas como o ensino do canto orfeônico
era um “modo de inculcar na população uma consciência cívico-patriótica, com a intenção de
transformar as multidões tumultuosas em massas disciplinadas e ordeiras” (EGG, 2004, p. 27).
Mas o projeto nacionalista tinha um custeio alto, que o governo Vargas não estava disposto a
cobrir totalmente,
Por seu custo mais elevado, pelas dificuldades práticas de implementação e pelo pouco resultado
político que ele daria no curto prazo. Era muito mais fácil para o governo viabilizar um projeto
cultural mais superficial capaz de satisfazer os modernistas sem causar grandes mudanças
estruturais, ao mesmo tempo em que dava asas à nascente música comercial (EGG, 2004, p. 31).
Camargo Guarnieri, por fim, não deixou o Brasil. Recusou o convite de Alfredo de Saint-Malo
e aceitou outro, da União Pan-Americana. Passou seis meses nos Estados Unidos, com o apoio
do Departamento de Estado Norte-Americano5, o que considerou ser uma boa oportunidade
de conhecer o meio musical e divulgar suas obras naquele país. Nos Estados Unidos, teve a
oportunidade de reger a Orquestra Sinfônica de Boston e ver executadas algumas de suas
composições. Também nesse período, recebeu seu primeiro prêmio internacional pelo Concerto
nº. 1 para violino e orquestra (1940), premiado no concurso The Edwin A. Fleischer Music Collection.
2 ASSESSor téCnICo dE MúSICA do MInIStérIo dE EduCAção E CulturA
Transcorridos 14 anos de sua ida para os Estados Unidos, a atividade seguinte de Guarnieri
relacionada ao ensino musical seria sua nomeação, em 1956, para o cargo de Assessor Técnico
de Música do Ministério de Educação e Cultura, durante o governo de Juscelino Kubitschek,
pelo então Ministro Clóvis Salgado6 (1906 – 1978). Sua função seria a de auxiliar ou assessorar
o Ministro nas questões referentes à música, incluindo seu ensino.
Essa nomeação teve grande repercussão na imprensa, que publicou diversos artigos
discutindo os problemas que Camargo Guarnieri teria que enfrentar. Com relação ao Ministro
e as razões pelas quais aceitou o cargo, o compositor colocou que:
O ministro [...] é um homem esclarecido e de grande cultura. Gosta muito de música e está
altamente interessado em efetuar uma grande melhora no ensino musical e no desenvolvimento
4 “[...] modalidade de canto coletivo surgida na Europa [...] pensado para ser um alfabetizador musical de grandes massas populares, em con-trapartida ao ensino profissionali-zante ministrado em conservatórios, escolas de música especializadas e também em instituições de ensino regular particular, como liceus e colé-gios ligados a ordens religiosas” (LIS-BOA, 2005, p. 12).
5 Destaca-se que, durante os anos de 1933 e 1945, o governo norte-amer-icano caracterizava-se pela Política da Boa Vizinhança (Good Neighbor Policy), que consistia na troca de in-vestimentos e tecnologia por apoio à política norte-americana.
6 O Ministro Clóvis Salgado foi o re-sponsável pela inclusão da educa-ção no Plano de Metas (1956/61) do governo do presidente Juscelino Ku-bitschek. Para a educação, meta de número 30, foram previstas diversas medidas administrativas relaciona-das a todos os níveis de ensino, con-sideradas essenciais para “viabilizar a formação de mão-de-obra e a criação de um ambiente favorável ao projeto desenvolvimentista” (ROTTA, 2007, p. 130).
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 92-105, maio, 2010.
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e aperfeiçoamento do bom gosto artístico no Brasil. Aliás, foi somente porque vi seu real interesse
e uma grande oportunidade de contribuir para o progresso de nossa arte, que resolvi aceitar o
convite, embora já sobrecarregado de trabalho (apud BRISOLLA, 1956).
A imprensa da época manifestou-se favorável quanto à decisão do Ministro Clóvis Salgado
em nomear um compositor para o cargo - e não um político, diplomata, médico ou engenheiro.
Em artigo publicado no Jornal do Brasil, Renzo Massarani fez um apelo: “Não pediremos ao
ministro e a Camargo uma imediata revolução, mas um trabalho em profundidade, severamente
estudado e corajosamente realizado” (MASSARANI, 1956).
Em entrevistas aos jornais Correio do Povo, A Gazeta e Correio da Manhã, Guarnieri apontou,
no seu modo de ver, os principais problemas da educação musical no país. Mesmo tendo sido
nomeado para um cargo relacionado ao ensino público, Guarnieri não criticou somente este,
mas também o ensino particular de música.
Com relação à iniciação musical, Guarnieri julgava que esta deveria ser oferecida desde
a escola primária e somente por professores especializados - pois, segundo ele, o ensino de
crianças era muito mais complexo do que o de adultos. Fez também uma crítica severa às
bandas rítmicas formadas nas escolas, porque, segundo ele, as crianças somente poderiam tocar
depois de adquirirem um conhecimento prévio de solfejo rítmico, teoria e desenvolvimento do
senso auditivo. No artigo Crítica sincera da situação do ensino musical no Brasil, publicado em
1956 no jornal A Gazeta, afirmou que não acreditava que as crianças fossem verdadeiramente
iniciadas musicalmente por meio das bandas rítmicas, mas que apenas repetiriam os padrões
rítmicos por imitação. Dessa forma, a criança, segundo o compositor, ficaria fatigada e passaria
a não gostar mais de música.
Ao fazer tais declarações, porém, Guarnieri esquecia-se da própria iniciação musical. Ao
recordar suas aulas com Benedito Flora, declarou que:
Na primeira semana, Benedito Flora nos ensinou a desenhar uma semibreve e passamos a aula
toda fazendo semibreves. Na semana seguinte aprendemos a mínima. Muito fácil! Na terceira
semana ele ensinou a semínima. Que trabalho difícil! Na quarta semana ele misturou tudo... Não
voltei mais e durante o horário das aulas ficava brincando em um grande jardim perto de sua casa
[...] (apud VERHAALEN, 2001, p. 20).
É interessante observar que, nessa fala, o próprio Guarnieri alertava o quanto as aulas
teóricas poderiam se tornar excessivamente enfadonhas, com o risco de conduzirem a
um resultado inverso ao desejável. Isto é, ao ser submetida às aulas de solfejo, teoria e
percepção, sem atividades práticas, é provável que a criança desista ou perca o interesse
pela música.
Guarnieri julgava necessária a abolição do manossolfa7 e a tendência a se praticar
exclusivamente obras de caráter patriótico. Nesses aspectos, pode-se perceber que as críticas
do compositor referiam-se à prática do canto orfeônico. De acordo com suas convicções,
Guarnieri acreditava que:
ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.
7 “[...] sistema que alia sinais manuais às notas musicais”. (FONTERRADA, 2005, p. 144).
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[...] a educação musical tem a finalidade de desenvolver o amor pela música e não criar falsos
teóricos que, embora conheçam os valores das notas, nunca ouviram um Beethoven ou um Mozart,
quanto mais um compositor recente (apud BRISOLLA, 1956).
A fim de evitar a rejeição da música pelo aluno em conseqüência das práticas docentes,
a solução apontada por ele seria dar maior atenção aos processos de ensino, promovendo
audições de obras comentadas pelos próprios alunos com a orientação do professor, seguindo
a idéia de que “a participação ativa do aluno é o fator mais importante do aprendizado”
(BRISOLLA, 1956).
Ao referir-se a Beethoven e Mozart, por exemplo, Guarnieri parecia aderir à tradição
musical européia, destacando a importância do ensino da “música culta” e dos mais recentes
compositores que a cultivavam.
Quanto às escolas especializadas, Guarnieri criticou a existência da grande quantidade
de conservatórios e escolas de música, principalmente em São Paulo. De acordo com ele,
esses conservatórios fariam do ensino apenas um comércio. O compositor acreditava que
o país estaria sofrendo de “pianomania”, ou seja, só se estudava piano, enquanto os outros
instrumentos eram deixados de lado.
Mário de Andrade posicionou-se de modo similar em um discurso de paraninfo em 1935,
contrário à “[...] miserável mutação de música em comércio, pois o freguês pede virtuosidade, o
ensino musical tem se preocupado em nos dar virtuoses. Não se ensina música no Brasil, vende-
se virtuosidade” (ANDRADE, 1975, p. 189). Mário de Andrade acreditava que a “virtuosidade”,
tida como o domínio de habilidades técnicas, garantia de aplausos e dinheiro, chegava a se
sobrepor ao valor da própria obra musical e seu compositor. Dessa maneira, o virtuosismo não
implicaria necessariamente uma formação musical de qualidade.
Segundo Guarnieri, quanto à admissão de novos alunos, os conservatórios apenas se
preocupavam com critérios quantitativos - e não qualitativos. Muitos ali estavam somente
interessados em obter um diploma, e não em se dedicar ao estudo da música. A obtenção
do diploma seria uma forma de ascensão social, uma maneira de se destacar dos demais.
Guarnieri, no entanto, parecia assumir uma postura diferente, segundo a qual somente os que
demonstrassem maior interesse deveriam ter acesso ao estudo da música.
O compositor era contundente acerca dos compêndios de solfejo utilizados nos
conservatórios. Apontou a ausência de interesse artístico desses compêndios e uma lacuna
de abordagem quanto aos problemas rítmicos que a música mais recente apresentava. Ainda
quanto ao currículo, defendeu que as escolas deveriam adotar um programa mais flexível, de
acordo com as necessidades de cada aluno e, contraditoriamente, propôs que a teoria viesse
antes da prática, ao afirmar que o aluno só deveria ser iniciado no instrumento depois que
fosse capaz de escrever um ditado melódico de duas, três ou quatro vozes. Todavia, essa
concepção de currículo flexível, com a teoria antecedendo a prática, não parecia adaptável às
necessidades de cada aluno. Eis a contradição.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 92-105, maio, 2010.
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Ainda no artigo Crítica sincera da situação do ensino musical no Brasil, o compositor abordou
outro aspecto que considerava um problema do ensino musical: a sobrevivência das orquestras.
O esforço que estas realizavam para se manterem ativas devia-se, segundo Guarnieri, a dois
fatores: a falta de auxílio oficial e a falta de instrumentistas. Como se privilegiava o estudo do
piano, faltavam outros instrumentistas, principalmente de sopro. A solução para esse problema
seria estabelecer a gratuidade do ensino desses instrumentos e estimular o estudo por meio
de professores especializados, visto que no Brasil, segundo ele, era muito comum “um flautista
ensinar clarinete, ou um clarinetista ensinar fagote ou corno” (FRANÇA, 1956). Mais uma vez,
pode-se observar a expectativa de que o governo fosse o responsável pela manutenção e
disseminação da cultura musical no meio das orquestras.
Pode-se dizer, também, que sua preocupação com essa questão ia além da formação
genérica de intérpretes. Guarnieri esperava que a formação do instrumentista contemplasse,
em especial, a “música nacionalista”, o que até então não acontecia. Os intérpretes eram
formados de maneira a perpetuarem a tradição da música européia.
Quanto ao ensino da composição, Guarnieri declarou-se muito insatisfeito. Não compreendia
que um professor de composição que não fosse compositor, já que sua assistência seria de grande
importância por ser “capaz de sugerir diversos caminhos, quando um aluno está em dificuldades
com alguns problemas e é capaz de esquecer as regrinhas rançosas de velhos tratados, em favor de
uma solução de ordem estética. [...] Um mau professor destrói um futuro compositor, embotando-
lhe as idéias, atrofiando-lhe a fantasia” (GUARNIERI apud FRANÇA, 1956).
Outro curso ineficiente para Guarnieri era o de regência. Visto que os conservatórios ou
escolas raramente possuíam um conjunto orquestral, o compositor questionava como seria
possível um aluno adquirir a técnica de regência orquestral sem ter à sua frente uma orquestra
com a qual pudesse praticar. A regência orquestral era ensinada com um professor ao piano
e o aluno imaginando a orquestra. Segundo o compositor, “o equilíbrio da sonoridade e
a expressão do gesto, que são tão importantes ao regente, nunca, dessa maneira, serão
alcançados” (GUARNIERI, 1956).
As amplas críticas de Camargo Guarnieri ao ensino musical no Brasil tomaram como base
seu próprio percurso profissional – e, naquele momento, nem poderiam apresentar dados mais
precisos, assim como nenhum problema novo, parecendo apenas dar voz ao que era corrente
entre os músicos da época. Suas opiniões, por diversas vezes, beiraram o senso comum e não
diferiram substancialmente das críticas que ainda hoje perduram.
Muitos dos problemas citados por Guarnieri emergiam, principalmente, do modelo de
ensino adotado no Brasil, baseado nos conservatórios europeus, com disciplinas voltadas para
o ensino de instrumentos. As modificações propostas não visavam propriamente a mudança
do modelo institucional já existente, mas sua reforma interna, alterando aspectos curriculares.
No íntimo, pretendiam dar continuidade e sedimentar o “projeto nacionalista” propugnado
por Mário de Andrade: a criação de uma arte brasileira, a partir do desenvolvimento da arte
culta e com apoio do Estado.
ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.
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Alguns aspectos apontados por Guarnieri ainda estão presentes em discussões a respeito
da educação musical no Brasil nos dias de hoje. Como exemplo, pode-se citar o retorno da
música nas escolas, tanto particulares como públicas, que traz novamente o debate sobre a
formação do professor de educação musical, o conteúdo a ser abordado e a função da música
na escola, a fim de buscar propostas que a tornem uma experiência relevante na formação
escolar.
3 rEforMA do EnSIno MuSICAl
Como parte dos afazeres de seu cargo – Assistente Técnico de Música do Ministério de
Educação e Cultura -, Camargo Guarnieri apresentou um plano de ação inicial: a reforma do
ensino musical superior. A fim de adotar um sistema utilizado em outros países, o compositor
elaborou um projeto apresentado ao Ministro Clóvis Salgado, assim descrito:
Aqui no Brasil, infelizmente os estudantes apenas conseguem um diploma em música depois
de completado o colegial, pois os Conservatórios não possuem cursos de humanidades. Então,
o aluno é obrigado a terminar o segundo grau para depois entrar na Faculdade de Música, e
isso demora muito. Propus, em meu projeto, que os estudantes fizessem o que é costumeiro
nos Estados Unidos, Europa e Rússia. Freqüentariam o Conservatório das 7 da manhã às 6 da
tarde, estudando música e todas as outras matérias do currículo escolar (GUARNIERI apud
VERHAALEN, 2001, p. 28).
Antes de enviar o projeto ao Congresso, porém, foi nomeada uma comissão de reforma
do ensino musical designada pelo Ministério de Educação e Cultura, da qual faziam parte
Camargo Guarnieri, Andrade Muricy (1895 – 1984)8, Otavio Bevilacqua (1887 – 1959)9 e Moacyr
Liserra (1905 – 1971)10. O objetivo dessa comissão foi avaliar e melhorar o projeto por meio da
análise dos currículos dos conservatórios. Em artigo publicado pelo Correio do Povo, em 18 de
Julho de 1957, anunciou-se que, a partir daquela data, a comissão de reforma passaria a contar
com a participação do pianista Arnaldo Estrela (1908 – 1980)11.
Após o aperfeiçoamento do projeto, Guarnieri sugeriu que o documento fosse enviado
a todas as escolas de música, a fim de receber sugestões. Segundo o compositor, “[...] os
resultados foram desanimadores – recebemos apenas duas respostas, ambas negativas” (apud
VERHAALEN, 2001, p. 49).
Questionado sobre sua atuação no cargo, Guarnieri declarou que “fiz pouco, pois o plano que
elaborei dirigia-se às escolas. E estas, cujos professores e diretores estão sempre plenamente
satisfeitos com seu desempenho, não se deram ao trabalho de pensar sobre o assunto” (apud
ABREU, 2001, p. 47). A permanência de Camargo Guarnieri como Assessor Técnico em Música
terminou em 1960, sem que a sua pretendida reforma se realizasse. Não foi possível encontrar
mais notícias sobre o andamento do projeto que, provavelmente, foi deixado de lado.
8 Crítico musical e literário, José Cândido de Andrade Muricy es-creveu para os jornais A Folha e Jornal do Commercio. Lecionou História da Música e Estética Mu-sical na Escola Nacional de Música, atual Escola de Música da Universi-dade Federal do Rio de Janeiro. Foi também professor no Conservató-rio Nacional de Canto Orfeônico e ministrou aulas de Estética Musical no Conservatório Brasileiro de Mú-sica.
9 Professor e crítico musical, le-cionou no Instituto Nacional de Música, hoje Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Ja-neiro. Comissionado, viajou pela Europa a fim de conhecer os méto-dos utilizados no ensino musical.
10 Flautista, foi membro fundador da Orquestra Sinfônica Brasileira e da Orquestra Sinfônica Nacional. Entre suas obras didáticas encon-tra-se o livro A flauta – Origem, evolução e arte de tocá-la (1944).
11 Pianista brasileiro de renome, lecionou na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Ja-neiro.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 92-105, maio, 2010.
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ARTIGO
4 AtuAção nAS unIvErSIdAdES
Guarnieri também lecionou no Conservatório de Santos (SP) e em duas universidades
públicas: Universidade Federal de Goiás e Universidade Federal de Uberlândia (MG).
É importante destacar que a incorporação dos cursos de música às universidades brasileiras
deu-se, em sua maioria, na década de 1960, época da implantação de um modelo de universidade
em que ensino e pesquisa estavam associados. No entanto, o currículo adotado nos cursos
superiores de música não era muito diferente dos utilizados pelos conservatórios, ou seja,
Disciplinas estanques, aulas particulares de instrumentos, ênfase no adestramento musical, crença
na idéia de que aprendizado musical resume-se à capacidade de adquirir manejo da linguagem
musical, ausência de pesquisa – conforme tradição advinda do ensino de música da tradição
centro-européia (KERR et al., 2006, p. 2).
Os professores que passaram a atuar no ensino superior de música foram selecionados
com base em suas atividades profissionais como instrumentistas, solistas ou docentes em
geral, possuindo ou não diploma de curso superior – e, quando o possuíam, esse poderia ser
de qualquer modalidade, isto é, de outras áreas do conhecimento.
Assim, mesmo sem formação acadêmica, Camargo Guarnieri integrou o corpo docente da
Universidade Federal de Uberlândia12 entre 1965 e 1990. Nessa instituição, lecionou Harmonia,
Composição, História da Música e Piano.
Paralelamente, desde 1967, foi também professor na Universidade Federal de Goiás, cujo
Instituto de Artes fora criado em 1960. Ali, deu aulas de piano, análise formal das invenções
de Bach, contraponto e apreciação musical. Em 1974, tornou-se professor titular do quadro
permanente da Universidade. Segundo Rosa, mesmo após completar 70 anos de idade,
Guarnieri continuou a freqüentar a Universidade, ministrando os cursos de contraponto e
organização do conjunto de cordas (ROSA, 2005, p. 23).
É importante mencionar que, em 1987, a Universidade Federal de Goiás concedeu
a Camargo Guarnieri – então com 80 anos de idade – o título de Doutor honoris causa. No
documento Justificativa da proposta para a concessão do título de doutor honoris causa ao
maestro Camargo Guarnieri, Dalva Albernaz do Nascimento, diretora do Instituto de Artes da
Universidade Federal de Goiás, ao apresentar uma breve biografia do músico, ressalta o fato de
ser ele “o único compositor brasileiro que mantém um curso de composição com o intuito de
formar artistas conscientes da problemática da música nacional quanto à estética, às formas, à
linguagem e aos meios de realização” (apud ROSA, 2005, p. 117).
5 A ESColA dE CoMpoSIção
Ao mesmo tempo em que se dedicava a diversas atividades - como compositor, regente,
professor de diversas instituições e assessor técnico -, Guarnieri também ministrava aulas
particulares de composição. Convicto de seus ideais estéticos e de sua responsabilidade
ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.
12 O Conservatório Musical de Uber-lândia foi criado em 1957 e surgiu como a primeira faculdade isolada no processo de criação da Univer-sidade Federal de Uberlândia.
102102
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como compositor, estabeleceu sua Escola de Composição13 baseada nas teorias de Mário de
Andrade e em sua própria experiência musical, com o intuito de formar artistas conscientes da
problemática da música brasileira e de fornecer meios para que jovens compositores pudessem
se expressar musicalmente.
Camargo Guarnieri acreditava que a música deveria se basear no estudo e no aproveitamento
do folclore nacional, noção que refletia a influência do pensamento nacionalista de
Mário de Andrade, com quem manteve contato durante 17 anos. Entretanto, Guarnieri se
autodenominava um compositor nacional, afirmando seu desejo de compor música brasileira
desde antes mesmo de conhecer o escritor. Tendo sido aluno de Ernani Braga (1888-1948),
Sá Pereira (1888-1966) e Lamberto Baldi (1895-1979), também envolvidos com o movimento
nacionalista, fortaleceu seus conceitos no posterior encontro com Mário de Andrade (SILVA,
2001, p. 3).
Segundo Antonio Ribeiro, ex-aluno de Guarnieri, o próprio compositor não se lembrava
da data exata de início da sua Escola de Composição - e nem quem teria sido seu primeiro
aluno -, mas pode-se acreditar que mais de 30 compositores passaram por suas mãos, entre os
quais podemos citar Achille Picchi, Alceo Bocchino, Adelaide Pereira da Silva, Antonio Ribeiro,
Ascentino Theodoro Nogueira, Aylton Escobar, Domenico Barbieri, Eduardo Escalante, José
Antonio de Almeida Prado, Júlio César Figueiredo, Kilza Setti, Marlos Nobre, Nilson Lombardi,
Oliver Toni, Osvaldo Lacerda, Raul do Valle e Sérgio Vasconcellos Corrêa.
Apesar da imprecisão da data, atribui-se o início das atividades da Escola de Composição de
Camargo Guarnieri aos primeiros anos da década de 1950. Embora tenha lecionado composição
antes desta data14, a intensificação dessa atividade deu-se após a publicação da Carta Aberta
aos Músicos e Críticos do Brasil, em novembro de 1950. Nesse documento, Guarnieri manifestou
violentamente seu descontentamento com a difusão da técnica de composição dodecafônica.
Seu intuito, segundo Abreu, era o de “impedir que a música brasileira viesse a se diluir num
universalismo impessoal” (ABREU, 2001, p. 47).
Com a publicação da Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil, Guarnieri alertava aos
jovens compositores quanto ao que considerava o “perigo” da técnica dodecafonista. Segundo
ele, ao ser utilizada sem uma boa base musical, essa técnica composicional poderia conduzir
a obras resultantes de mera manipulação de notas, destituídas de propostas estéticas
(VERHAALEN, 2001, p. 48).
A “orientação atual dos jovens compositores” (GUARNIERI apud SILVA, 2001, p. 143),
mencionada na Carta, referia-se aos ensinamentos propagados por Hans-Joachim Koellreutter
(1915–2005), compositor e professor alemão que chegou ao Brasil em 1937 fugido do nazismo.
A partir das atividades que veio a desenvolver, Koellreutter tornou-se um grande agitador do
meio musical brasileiro, atuando no ensino da música, apresentando novas idéias musicológicas
e disseminando novas técnicas da música contemporânea. Foi fundador e líder do movimento
Música Viva, criado em 1939, que atuou principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo com
o objetivo principal de movimentar a atividade musical por meio da divulgação da música
13 Quando se fala em Escola de Com-posição de Camargo Guarnieri, é necessário que se faça distinção entre os dois significados do termo escola apontados por dicionários e enciclo-pédias. O significado mais comum designa um estabelecimento de ensi-no, com lugar físico e institucional-izado; o segundo remete a um grupo de discípulos que, em torno de um professor, se esforça para propagar, desenvolver e difundir a doutrina de seu mestre. A Escola de Composição de Camargo Guarnieri encaixa-se na segunda definição do termo, ou seja, foi formada por alunos que seguiram, durante espaços variados de tempo, os seus ensinamentos sobre como a composição da música brasileira de-veria ser feita.
14 Como professor de Eunice Catun-da e Dinorá de Carvalho.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 92-105, maio, 2010.
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ARTIGO
contemporânea, “principalmente brasileira, e a música ainda pouco conhecida do passado. Ou
seja, valorizar a música nova, ainda não ouvida, tenha sido composta recentemente ou não”
(EGG, 2005, p. 61).
A repercussão da Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil foi grande. Sua divulgação
deu-se em âmbito nacional, em uma época em que a música erudita tinha espaço na imprensa.
O que se seguiu foi uma forte divisão de opiniões no meio musical a respeito do documento,
tanto por parte de compositores como de intérpretes e críticos.
As conseqüências da publicação não foram sentidas por Guarnieri de imediato. Até o final
da década de 1950, o nacionalismo se manteve como tendência dominante na composição
brasileira. Porém, segundo Neves, com o falecimento de Villa-Lobos em 1959 e a introdução
de novos movimentos de renovação musical, o nacionalismo começou a perder forças (NEVES,
1981, p. 145-146). Assim,
[...] aparece na música brasileira um sincronismo claro com a pesquisa criativa desenvolvida nos
diferentes países do mundo: os jovens compositores brasileiros seguirão praticando o serialismo
integral, a aleatoriedade, a arte-total, a eletroacústica (NEVES, 1981, p. 147).
A partir desse momento, e segundo as idéias dos que procuravam percorrer o caminho
dessas novas tendências, Guarnieri passou a representar o que havia de mais retrógrado na
música brasileira, afirma Lutero Rodrigues (1993).
Porém, mesmo sendo duramente criticado, o compositor manteve suas convicções e
prosseguiu, durante mais de 40 anos - e de forma ininterrupta -, com o trabalho em sua Escola
de Composição, formando compositores bastante atuantes no cenário musical brasileiro.
6 ConSIdErAçÕES fInAIS
A partir do panorama apresentado, destaca-se o fato de que algumas das questões
apontadas por Camargo Guarnieri ainda estão presentes no ensino musical brasileiro. Questões
como o conteúdo a ser ensinado e a preocupação com os profissionais de educação musical
serão sempre atuais. Por isso, seu exemplo segue como importante referência, seja como
mestre, por seu compromisso com um ensino musical de qualidade, seja por seu olhar crítico,
sempre em busca de melhorias no campo da música.
ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.
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ana Lúcia KOBayaShi, camargo Guarnieri e o ensino musical.
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 106-115, maio, 2010.
RESUMO
O texto apresenta fatos, idéias e questionamen-
tos sobre Educação Musical, Arte-Educação
e Inserção Cultural, apoiado na experiência
no NEAE (Núcleo Experimental de Arte-
Educação) e no CIEP (Centro Integrado de
Educação Pública) Antoine Magarinos Torres
Filho, na comunidade do morro do Borel, RJ.
Além de pontuar o histórico e a filosofia de
trabalho do NEAE, o artigo propõe sugestões
metodológicas a serem avaliadas e discutidas
no âmbito de Instituições, Ongs, Pontos de
Cultura e afins - ambientes em que a música
exerça papel primordial junto aos indivíduos
atendidos. Em conclusão, o relato aponta para a
questão de que a formação do profissional que
atende ao público dessas organizações, em sua
maioria marginalizado culturalmente, deve ser
ampla e contínua.
ABSTRACT
This text presents facts and ideas and raises questions
regarding Music Education, Art-Education and Cultural
Insertion founded on the experience of Sidney Mattos
as Director, for the last seventeen years, of the Núcleo
Experimental de Arte-Educação - NEAE (Experimental
Center for Art-Education) and also as a Teacher for
the Municipal Region of Rio de Janeiro, acting at
the CIEP Antoine Magarinos Torres Filho (Integrated
Public Education Center) -, which is part of the Morro
do Borel (RJ) slum community. Besides delineating
the historical actions of the group and its working
philosophy, a number of methodological suggestions
are proposed for evaluation and discussion within the
ambit of Institutions, NGOs, Cultural Centers and the
like, ambiences where music can exercise a primordial
role in the relationship with the individuals attended. It
is my understanding that training of the professionals
that attend these people, most of whom are culturally
marginalized, needs to be extensive and on-going.
PALAVRAS-CHAVE
Música; Arte-educação; “Timbrar”.
KEYWORDS
Music. Art-Education. Timbrar-se (Take pride).
SIDNEy MATTOS
Músico / Diretor do Núcleo Experimental de Arte-Educação (NEAE)
e-mail: sidneymattos@gmail.com e neae@neae.com.br
o musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no nEAE e no CIEp do morro do borel (rj)The Musical and the Social
1 Texto apresentado durante o I Semi-nário Projeto Guri: Ação sociocultural e Educação musical, realizado entre 28 de novembro e 1º de dezembro de 2007 em São Paulo/SP. Inclui atualiza-ções realizadas pelo autor.
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
o musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no nEAE e no CIEp do morro do borel (rj)
SIDNEY MATTOS, O musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no NEAE e no CIEP do morro do Borel (RJ)
1 rElAto 1: A ExpErIênCIA no nEAE (núClEo ExpErIMEntAl dE ArtE-EduCAção)
O NEAE (Núcleo Experimental de Arte-Educação) foi criado no Rio de Janeiro a partir de um
Seminário no Instituto de Educação para Professores de Alfabetização, em 1991, no qual foram
oferecidas oficinas envolvendo as áreas de artes cênicas e plásticas, música e dança. A principal
discussão do Seminário evidenciou a importância da arte na formação do ser humano e da
cultura dentro do espaço escolar. Cabe ressaltar que, até a década de 1990, poucas propostas
que tratassem da cultura popular e folclórica das diversas regiões do Brasil chegavam às
escolas do Rio de Janeiro. Vivia-se nessa época uma “febre” de “teatrinhos de shopping”, que
consistiam em adaptações bem questionáveis dos contos tradicionais. A partir da dinâmica de
avaliação realizada no Seminário, Sidney Mattos, juntamente com Henrique Santiago, criaram
um grupo que pudesse oferecer às escolas públicas e privadas do Rio de Janeiro um trabalho
que contemplasse os resultados e conclusões nascidos no evento, trazendo, em sua essência,
o cuidado de envolver o educando em atividades lúdicas e pedagógicas que reforçassem os
conteúdos desenvolvidos pelas instituições de ensino.
Dessa proposta nasceu o NEAE, que hoje, registra, com orgulho, a realização de aproximadamente
800 shows em mais de 300 escolas e instituições, atingindo cerca de 550.000 crianças da Educação
Infantil (até a 4ª série do primeiro grau). O grupo apresentou-se também em diversas unidades do
SESC (Serviço Social do Comércio), além da Fundação Parques e Jardins e em várias Secretarias de
Educação e Cultura no Estado do Rio de Janeiro. Em 2000, o NEAE lançou o CD “Cantos do Brasil”,
com temporada no teatro do SESC - Tijuca em comemoração aos 500 anos do Brasil, e o CD “Cantar,
cantar, cantar”, no Parque das Ruínas e na Fundação Rio-Zôo. Em 2005, o grupo lançou seu terceiro
CD “Elementar - Terra, Fogo, Água e Ar”, no Dia Mundial do Meio Ambiente, com um grande show
no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Entre as distinções que o grupo recebeu, estão o “Prêmio
Educação 96” e o “Prêmio Cultura 97”, conferidos pelo Lions Clube do Brasil.
1.1 filosofia
O trabalho do NEAE se move sobre dois conceitos básicos: desenvolver a criatividade e es-
timular a imaginação. O grupo trabalha buscando a excelência em propostas, projetos e ações,
utilizando as várias formas de expressão artística e adaptando, distribuindo e graduando os
conteúdos de seus projetos de acordo com as faixas etárias de seus públicos-alvo: alunos da
Educação Infantil e da 1ª à 5ª séries do Ensino Fundamental.
Intercalando canções, “brincadeiras” e histórias, buscamos vivenciar, ao lado das crianças,
momentos que possam nos levar a uma verdadeira sensibilização para os conteúdos desen-
volvidos em cada trabalho sugerido, abrangendo os mais diversos temas - folclore brasileiro,
amizade, natureza, relações interpessoais, sentimentos, entre outros – priorizando sempre o
caráter musical do projeto. Entendemos que o espaço mais adequado para a Educação para as
Artes é a Escola e esta é a nossa bandeira: cantar, tocar, brincar, fazer eclodir em cada criança,
em cada olhar, a alegria, a vida, a emoção!
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
1.2 As oficinas e projetos
A preocupação do NEAE com a qualidade da educação, privilegiando a cultura, a
criatividade e a cidadania, faz com que estejamos sempre atualizando nosso conhecimento
no desenvolvimento de novos projetos. Além dos shows, também oferece os Projetos de
Construção, como as oficinas, concertos, palestras sobre arte-educação, gravação personalizada
de CDs temáticos, cursos de formação continuada para professores, festas temáticas (festas
juninas, autos de natal, eventos folclóricos, festas de pais, mães e avós), seminários, atividades
em colônias de férias, consultoria ou assessoria pedagógica para escolas e/ou instituições,
entre outras atividades. Tem seis espetáculos pedagógicos fundamentados nas diretrizes
da Arte-Educação, que envolvem de quatro a seis arte-educadores, além de um motorista e
um operador de áudio, e utilizam equipamento de som profissional visto que as obras são
cantadas e tocadas ao vivo, além de apresentar também manipulação de bonecos, dramaturgia
e coreografias. Além destas, desenvolve Oficinas sobre:
Brincadeiras e brinquedos cantados – Resgate e criação livre de brincadeiras e brinque-•dos utilizando o canto.Expressão Musical - Contato com os parâmetros do som: altura, timbre, intensidade e •duração. Vivência do ritmo: “Eu e minha música”; Vivência da melodia: “Eu e o outro”; Vivência da harmonia: “Eu e o mundo”.Instrumentos de percussão - Manipulação de instrumentos de percussão (conceitos de •som aberto e som fechado), variações de intensidade (fraco e forte), agógica (anda-mento) e pulsação, entre outros.Apostila musical-pedagógica - Tem como eixo principal a utilização didático-pedagógi-•ca de atividades artístico-expressivas baseadas no CD “Cantar, Cantar, Cantar” gravado pelo NEAE.Reciclarte – Oficina exclusiva para professores. Aborda o trabalho lúdico, o cantar, ativi-•dades com ritmo e som, pesquisa sonora, improvisação, papelagem, criação literária expressão corporal e o trabalho com o sensível e o imaginário, entre outras atividades.Artes Integradas - Jogos de movimentos, de observação, dramáticos e sonoros.•
Outros Projetos desenvolvidos são:
Tem NEAE no arraiá - projeto idealizado exclusivamente para a pré-escola. Consiste na •realização, em conjunto com a instituição de ensino, de uma festa junina criativa com a participação de alunos, pais e professores.Férias com Arte – Colônia de férias com quatro oficinas nos seguintes temas: música, •teatro, corpo e criação de texto, além de aulas de capoeira. As oficinas são intercaladas por faixa etária, possibilitando a freqüência das crianças em até duas delas.Auto de Natal - adaptação livre do • Auto do Pastoril realizado no Nordeste, idealizada exclusivamente para a pré-escola. Também desenvolvida em conjunto com a institu-ição de ensino.
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
Concertos didáticos - recitais de educação estética ilustrados com a execução de obras •do repertório de concerto e comentários sobre a história dos instrumentos, seus princi-pais compositores e intérpretes.
2 rElAto 2: CIEp (CEntro IntEGrAdo dE EduCAção públICA)
O outro relato que aqui descrevo refere-se ao trabalho realizado, há 15 anos, em um
CIEP (Centro Integrado de Educação Pública) Antoine Magarinos Torres Filho, localizado na
comunidade do morro do Borel, no Rio de Janeiro. Este CIEP atende a crianças de Educação
Infantil e de 1ª à 5ª séries do Ensino Fundamental - público muito particular em seus aspectos
culturais e sociais.
No início das atividades, o trabalho era voltado a 12 grupos que se revezavam no
“espaço musical”, tendo aulas de música que se caracterizavam por trabalhos corporais com
a utilização de métodos ativos, brinquedos cantados e outros. As aulas eram intercaladas
com a manipulação de objetos sonoros, envolvendo pesquisa e improvisação, assim como
instrumentos de percussão. Resumidamente, os objetivos principais eram cantar, tocar e fazê-
los se expressar.
Aos poucos me especializei na linguagem infantil, voltada à faixa etária entre 4 e 8 anos.
As aulas com crianças acima desta idade eram prejudicadas por problemas disciplinares
e pelo pouco engajamento dos professores com o trabalho. A partir dessa constatação,
sugeri à Direção da Escola que fizéssemos oficinas das quais os alunos maiores poderiam
participar voluntariamente. Foram estabelecidas três oficinas: flauta doce, pelo baixo custo
e pelo imediatismo sonoro; coral, devido à facilidade de montar um repertório que pudesse
eventualmente ser apresentado em atividades culturais; e percussão, pela própria característica
da comunidade, que tem a representá-la a Escola de Samba Unidos da Tijuca.
Tudo mudou! As aulas se tornaram mais interessantes e a participação dos alunos foi
aumentando gradativamente. O ponto mais positivo é que os alunos passaram a participar
sem a obrigatoriedade da aula em si. A sala de música passou a ser muito mais freqüentada,
até mesmo fora do horário estabelecido para tal.
Mais à frente, misturei as turmas, selecionando alunos das três oficinas e criando grupos
musicais diversificados. Estavam instalados os principais processos e objetivos da Educação
formal (trabalhar a partir do interesse dos educandos) e da Educação Musical (despertar o
interesse pela música). Essa “fórmula” bem-sucedida permite, entre outras coisas: liberação
de energia através de catarses rítmicas; socialização entre diferentes níveis de escolaridade;
melhora da auto-estima, já que as crianças vêem os resultados de seu trabalho; musicalização
objetivada e centrada no aluno; e resultados tangíveis que são reconhecidos pelo corpo
discente, pela direção e pelos pais.
SIDNEY MATTOS, O musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no NEAE e no CIEP do morro do Borel (RJ)
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
3 A forMAção E A AtuAção do profISSIonAl dE EduCAção MuSICAl EM projE-
toS SoCIoCulturAIS
A Cultura não é somente a herança histórica da trajetória vital dos nossos antepassados, nem as
manifestações artísticas mais destacadas. Muito mais que isso, a Cultura é o próprio fazer humano,
inteligente e criativo, frente a cada exigência ou desafio. (DIDONET, 1986, p.4)
Os relatos aqui apresentados levam a várias reflexões sobre a formação e a atuação do
profissional da educação musical. Os educadores musicais são os grandes responsáveis pelo
bom andamento dos processos de ensino e de aprendizagem. Devem estar plenamente
conscientes do desenvolvimento infantil, além de aptos e capacitados para o bom desempenho
da função. Quanto mais ampla sua cultura, melhor será seu ensinamento, deixando de focar
apenas aspectos técnicos para assumir características voltadas a uma educação integrada e
abrangente. “Vocês não ensinam o que sabem, mas o que são” (MARTENOT, 1939).
A maior qualidade de um educador, além do completo domínio de seu objeto de trabalho,
está na capacidade de compreender e perceber as necessidades do outro – seja ele criança
ou jovem. Esse outro precisa de liberdade para se expressar e manifestar sua originalidade.
Só assim poderá desenvolver sua criatividade. Dentro desta área, o convencionalismo é
totalmente descartável. O educador musical deve ter atitudes despojadas: se sentar no chão,
brincar de roda, se pintar. Deve, sempre que necessário, se transformar num “ator”, uma vez
que o instinto infantil percebe e sente nossas alegrias, tristezas, mau humor, ou seja, nossos
sentimentos. O fato de estar disposto e alegre, por si só, já inspira confiança, contribuindo
muito para o estabelecimento de interrelações e se tornando base para o desenvolvimento do
processo ensino-aprendizagem.
O educador deve cultivar a confiança de seus alunos e estar atento para não traí-la
jamais. Problemas afetivos ou emocionais bloqueiam a percepção, a emissão de mensagens
e o comportamento espontâneo. Deve também valorizar sempre os bons resultados e as
condições que favoreceram o sucesso das tarefas: “Fulano fez bem porque está concentrado”;
“Porque a voz de sicrano está mais limpa?”; “Quem fez bem estava com os olhos fechados,
prestou atenção”, evitando criticar negativamente um aluno na frente dos outros.
Além da preocupação com os conteúdos, com a disciplina e com outros elementos presentes
no ambiente de aprendizagem, ele deve manter aceso o interesse dos alunos. O ensino
vocacional de qualquer arte – seja ela música, pintura, teatro ou outra - objetiva resultados
estéticos e artísticos. A educação pela arte colabora significativamente para a formação geral
dos indivíduos, desenvolvendo no ser humano potenciais internos que, por meio dela, são
expressos livremente. Podemos conhecer melhor nosso aluno, manter seu interesse e promover
o seu desenvolvimento quando utilizamos práticas pedagógicas envolvendo situações de
aprendizagem que o levem: a um processo reflexivo e prático sobre as atitudes em situações
lúdicas; a conhecer suas possibilidades e limitações corporais; a aprender e criar jogos e
brincadeiras; ao conhecimento e a pluralidade de manifestações culturais do Brasil e do mundo,
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 106-115, maio, 2010.
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
e a ser participante da transmissão de diferentes manifestações culturais presentes no cotidiano.
Desta forma ele se tornará um sujeito ativo na produção de seu próprio conhecimento.
3.1 o ”timbrar-se”
O profissional da educação musical está quase sempre procurando o equilíbrio entre “ser
Educador” e o “ser Artista”, ao lidar tanto com propostas e resultados tangíveis - medidos e
rapidamente percebidos – como com os imponderáveis, que só serão percebidos com o tempo,
tais como recepção, afinamento, disponibilidade, potencial físico e mnêmico, entre outros.
Um instrumento musical precisa de tempo e uso para estar em condições ideais de ser
utilizado profissionalmente. Para confeccionar um violão, por exemplo, primeiro selecionamos
a madeira, depois a cortamos, lixamos, prensamos, envernizamos... depois precisamos tocar
muito com o instrumento, para que ele “amacie”. Chamamos a este processo de “timbrar” o
instrumento. O procedimento é muito semelhante com as pessoas. Conforme a vida vai se
mostrando e nos colocando diante de conflitos e opções, na maioria das vezes, somos nós a
decidir o que fazer com ela. Que caminho seguir? Que música ouvir e tocar? Que filme assistir,
que profissão escolher?
“Timbrar-se” é viver intensamente. É rir, cantar, dançar, chorar, brincar, se desgastar física
e espontaneamente, viver sensorialmente, diretamente. É tomar consciência da própria sua
inteligência, vivenciar sensações, classificá-las e compará-las. É aprender a se situar no espaço
e no tempo a fim de melhor representar e melhor comunicar, descobrindo o prazer de observar
e escutar. Existe grande subjetividade no ato de julgar. Ao “timbrarmo-nos”, estaremos sempre
mais “sensíveis” às comunicações inconscientes transmitidas individualmente pelos colegas
de trabalho, ou coletivamente pelos alunos. Podemos, assim, inferir normas e condutas mais
próximas da realidade.
Para tanto, os relatos aqui descritos permitem inferir que a formação cultural seja
fundamental para o bom desempenho da função de educador. Para isso, o profissional deve,
entre outras competências: possuir amplo domínio do seu material de trabalho; possuir a
capacidade de aplicar pessoalmente todas as propostas; ter uma vida cultural presente: ouvir,
dançar, ler, visitar museus, pesquisar desenvolver sua expressão pessoal, instigar, estimular;
e desenvolver toda a originalidade do seu ser no mundo através de atitudes propositivas e
proativas para si e para o outro. Ou seja, deve “timbrar-se”.
3.2 Aplicações práticas
Qualquer metodologia musical, hoje, deve levar em consideração os avanços na área da
Música, não se restringindo a apenas um modelo ou sistema - como o tonal, por exemplo.
Devemos lutar por um currículo escolar contínuo e graduado, por um programa abrangente
e diversificado - ilimitado quanto à pesquisa musical, à audição e à improvisação, que possa,
dessa forma, desenvolver a criatividade e a percepção musical.
SIDNEY MATTOS, O musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no NEAE e no CIEP do morro do Borel (RJ)
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
Essa nova metodologia deve facilitar e estimular os trabalhos em grupo por meio de diversas
oficinas de musicalização – envolvendo percussão, flauta doce e violão, entre outros instrumentos.
Deve também propiciar ambientes em que se desenvolva a manipulação do som com a utilização
de computadores e softwares livres, mostrando aos jovens a quantidade infinita de possibilidades
de se brincar com o som e organizá-lo em composições. Adiante, relaciono alguns objetivos que
podem fazer a diferença em projetos sociais ligados ao ensino musical:
Integ• rar equipe técnica e pedagógica, professores, alunos, funcionários e comunidade
por meio de atividades que desenvolvam a criatividade, a escuta e o pensamento
musical, utilizando a voz e o corpo.
Criar dinâmicas interdisciplinares promovendo encontros ritualísticos, envolvendo os •conceitos de ritmos simples, pulsação, parlendas, brinquedos cantados, rituais indíge-
nas e outros.
Confeccionar instrumentos com material de sucata como latas de cerveja ou refriger-•ante; copos de iogurte, plásticos ou de sorvete; bobinas; embalagens com tampa; PVC;
vassouras; garrafas e outros.
Estimular a pesquisa do objeto sonoro com brincadeiras e jogos rítmicos.•Deixar sempre espaço livre entre as atividades para a improvisação.•Compor em grupo utilizando a voz, o corpo, objetos sonoros e instrumentos.•Tratar o ensino musical para além do tonalismo, ampliando e registrando escutas inter-•nas e externas (paisagem sonora).
Aprender a utilizar programas de música via computadores e softwares livres (midi-áudio).•Convidar músicos e grupos musicais para audições e eventos.•Elaborar eventos culturais – temáticos ou não – com apresentações abertas à comunidade.•Visitar ensaios de orquestras, bandas, corai• s e afins.
Ressalto que as estratégias adotadas devem ser bem variadas. É fundamental que
entendamos a prática musical como um processo. Para que qualquer projeto educativo/
musical dê certo, precisamos de crença, qualidade e principalmente constância. A música
nos oferece uma gama riquíssima de opções didáticas e pedagógicas que complementam
e enriquecem a formação dos alunos. Por isso, no planejamento das atividades, não podem
faltar a manipulação livre de instrumentos de percussão, os brinquedos cantados, a ênfase na
expressão corporal, a audição de variadas formas musicais, a informática musical e o espaço livre
e soberano para as improvisações. Tanta riqueza, no entanto, não pode ser desperdiçada. Cabe
ao profissional distribuir bem esses conteúdos em sua grade e perseguir com determinação
seus resultados – lembrando que nada acontece de uma hora para outra. Este é um processo
gradual e constante que carece de avaliação periódica.
As oficinas podem ser ministradas em horários especiais. Devem ser voluntárias, atendendo
a classes mistas. Seu perfil pode variar de acordo com o perfil de cada instituição, incluindo
voz, flauta, violão, grupos musicais e/ou orquestrais, gêneros musicais diversos, atividades com
o corpo e outros. Nos relatos apresentados, as oficinas de canto e percussão foram as mais
proveitosas quanto ao aspecto da socialização.
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
Atividades extras complementam todo o trabalho descrito, tendo por finalidade o
enriquecimento cultural do aluno e, se possível, da comunidade. Por meio dessas atividades,
incluindo saídas para visitas a ensaios e concertos ou apresentações internas e temáticas,
conseguimos chegar mais perto da produção artística a que o trabalho proposto e oferecido
culminará.
Por fim, para que o trabalho alcance os objetivos propostos, é fundamental que se
planeje antecipadamente, que disponha com racionalidade dos recursos didáticos e escolha
as atividades e/ou tarefas dentro de um nível favorável. A realização das atividades deve ser
documentada para posterior aperfeiçoamento dentro de critérios específicos de avaliação. A
avaliação do trabalho é fundamental para nortear, a médio e longo prazo, as ações propostas
e executadas. Ela filtrará o que deu certo ou errado e apontará possíveis e novas estratégias.
Neste processo, é fundamental ainda que o professor realize a sua auto-avaliação. Grande
parte dos resultados negativos de uma ação acontece devido à acomodação e desinteresse
desse profissional que, em tese, é o facilitador do aprendizado.
4 ConCluSão
A música, além de sensibilizar, educar e socializar, tem características ritualísticas que
remontam ao início da nossa ancestralidade. Costumo dizer que “antes, era o som e não o
verbo”. Todas as manifestações folclóricas e religiosas, dentre outras, têm na música aliada
indispensável em sua execução. O ritmo constante e minimalista, ao lado das melodias
simples e das expressões individuais, proporciona rituais inerentes ao ser humano. No âmbito
pedagógico não poderia ser diferente.
Baseamos nossa prática em estudos e pesquisas do passado, mas nem sempre construímos
e inovamos no presente. Essa realidade nos embota, estabelecendo, conseqüentemente, certa
“acomodação” a nossas ações e reflexões. Ora, a música acontece no tempo, formada por
produção, criação e intuição agindo, às vezes, simultaneamente. Estas características deveriam
nos mover e nos remeter a desafios. O Músico ou Educador tem o dever de respirar música o
tempo todo. Essa é sua função e seu objeto de trabalho.
Todos nós, seres humanos, temos um compromisso com a realidade social que nos cerca.
Não dá para se isolar. Não se pode pensar que somente que o amor pelo próximo, a vontade de
ajudar o outro ou as chamadas “boas intenções” sejam suficientes para essa missão. Temos que
evoluir, transformar, reavaliar posições e questionar as instituições, exercendo uma criticidade
consequente.
Nossa personalidade é constituída por um complexo de fatores intervenientes.
Dialeticamente falando: bem/mal, sim/não, leve/pesado, arsis/tesis, fluxo/refluxo. A música,
constituída de tensão/repouso com característica predominantemente sensorial – a audição
-, desperta sentimentos e encontros com o nosso “eu”. Consegue abrir canais e portas,
desbravando o silêncio, a pergunta, o amor, a alegria. Oferece, dessa forma, uma gama
SIDNEY MATTOS, O musical e o social: algumas reflexões sobre as experiências no NEAE e no CIEP do morro do Borel (RJ)
114114
RELATOS DE EXPERIÊNCIA
riquíssima de interferências afetivas! Assim podemos “tocar” as pessoas nas suas principais
faculdades humanas: o amor, a vontade, a inteligência e a imaginação criativa. Com práticas
conseqüentes, podemos estabelecer relações afetivas a partir do exercício da memória
musical.
Qualquer abordagem musical, pedagógica ou social deve se nortear pela necessidade
de unirmos aspectos artísticos e afetivos-relacionais. Seus promotores devem harmonizar
empiricamente o saber com a sensibilidade e a prática. Não precisamos ser mestres na exatidão
expressiva ou escutar e discriminar internamente sons absolutos. Tampouco conceber a
simultaneidade dos sons, dos acordes ou agregados, analisando encadeamentos harmônicos
ou polifônicos para sermos bons educadores. Mas, indo além da não alienação destes e de
outros tópicos teóricos, temos que nos “timbrar” o tempo todo. Parafraseando Paulo Freire:
É neste sentido que, para mulheres e homens, estar no mundo necessariamente significa estar
com o mundo e com os outros. Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem
fazer cultura, sem “tratar” [timbrar?] sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar,
sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem sujar as mãos, sem esculpir, sem
filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência ou tecnologia, sem assombro
em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias de formação e sem politizar não é
possível. É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo
permanente. (FREIRE, 1996, p. 74)
Precisamos estar atentos para propiciar espaços onde o jovem possa expressar seu fazer
artístico a partir da valorização da sua cultura e da sua identidade, ampliando sua capacidade
imaginativa a fim de que se sinta sujeito-apreciador-autor da produção artística. Temos que
viver, sentir, denunciar, produzir, dirigir, sublinhar, corresponder, associar... são muitos fatores
para pouquíssimo tempo de vida. Cabe à própria pessoa, dessa forma, a responsabilidade de
“timbrar-se”. Então, mãos à obra!
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
Referências
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996.
DIDONET, Vital. Infância e cultura. Rio de Janeiro: Departamento Geral de Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro, 1986.
SIDNEY MATTOS, O musical e o social: algumas refl exões sobre as experiências no NEAE e no CIEP do morro do Borel (RJ)
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ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 116-125, maio, 2010.
RESUMO
O texto apresenta algumas reflexões de cenas das práticas pedagógicas de alunos do Curso de Licenciatura em Música do Centro Universitário Metodista/IPA, na cidade de Porto Alegre/RS. Ao ministrar as disciplinas Didática do Ensino da Música (2008/II) e Prática Pedagógica IV (2009/II), organizou-se uma articulação com as práticas pedagógico-musicais desenvolvidas durante a disciplina de Estágio Supervisionado I, por meio do diálogo com autores das áreas da Educação Musical, entre eles Silvia Sobreira, Jusamara Souza, Maura Penna, Maria Cecilia Torres, Guilherme Romanelli, Leila Sugahara e Cecília França, além de autores da área da Educação. Estes materiais foram significativos para a socialização das propostas e para a análise das práticas e concepções musicais desses alunos e professores em sua atuação como educadores musicais.
ABSTRACT
This text presents a number of reflections from moments in the teaching practices of students from the Music Licentiate Course offered by the Centro Universitário Metodista/IPA, in the city of Porto Alegre/RS. While ministering the courses on The Didactics of Music Teaching (2008/II) and Teaching Practices IV (2009/II), an articulation was formed with the music-teaching practices carried out during the Supervised Internship I course, via dialogue with authors from the field of Music Education, including Silvia Sobreira, Jusamara Souza, Maura Penna, Maria Cecilia Torres, Guilherme Romanelli, Leila Sugahara and Cecília França, as well as authors from the field of Education. These materials were significant for the socialization of the proposals and for analysis of the musical practices and conceptions of these students and teachers in their work as music educators.
PALAVRAS-CHAVE
Didática da música. Práticas pedagógicas.
Licenciatura em música.
KEYWORDS
The Didactics of music. Teaching practices.
Licentiate in music.
MARIA CECÍLIA DE ARAUJO RODRIGUES TORRES
Centro Universitário Metodista/IPA/ Doutorado em Educação
e-mail: mariaceciliaartorres@yahoo.com.br
didática de ensino da música e prática pedagógica Iv: reflexões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em músicaThe didactics of music teaching and teaching practices IV: reflections on musical practices in a music licentiate course
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
MaRia cecÍLia De aRaUJO RODRiGUeS tORReS, Didática de ensino da música e prática pedagógica IV: reflexões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em música.
1 Introdução
Este texto é um relato de experiência que apresenta reflexões sobre duas disciplinas
ministradas no Curso de Licenciatura em Música do Centro Universitário Metodista/IPA, ao
longo dos semestres 2008/II e 2009/II, na cidade de Porto Alegre/RS. Como professora das
disciplinas de Didática do Ensino da Música, que ocorre durante o terceiro semestre do Curso,
e de Prática Pedagógica IV, oferecida a alunos do quarto semestre, selecionei algumas cenas,
temas e atividades musicais desenvolvidos ao longo das mesmas, no sentido de refletir sobre
as ações dos alunos da perspectiva de uma professora formadora.
2 nA AulA dE dIdátICA do EnSIno dA MúSICA
Trago alguns pontos e questionamentos que auxiliaram e delinearam a composição e
estruturação do Plano de Ensino de Didática do Ensino da Música e, posteriormente, deste relato.
Quais tópicos e leituras selecionar para o trabalho nesta disciplina, que antecede ao semestre
do Estágio I em um Curso de Licenciatura em Música? Este certamente foi meu primeiro desafio ao
organizar o Plano de Ensino da disciplina, que estreava no currículo novo deste Curso no primeiro
semestre de 2009. A partir da ementa da disciplina, organizei os seguintes objetivos:
1. Situar aspectos da Didática para o ensino de música no campo da Didática geral;
2. Exercitar a observação de questões relacionadas às práticas e à didática, que embasam as
concepções de aulas de música do ensino fundamental e médio;
3. Conhecer e analisar parte dos métodos e propostas de Educação Musical adotados no Bra-
sil;
4. Organizar planos de aula, executá-los e produzir textos articulando a revisão bibliográfica
com a produção escrita;
5. Promover o contato dos alunos com experiências musicais diversificadas, além da re-
flexão acerca de questões pedagógico-musicais.
Preparei o Plano de Ensino a partir destes objetivos, englobando as atividades, formas de
avaliação e bibliografias básica e complementar. Organizei ainda uma relação de oito textos
básicos para a leitura ao longo do semestre, com o intuito de contemplar diferentes temas,
paradigmas e concepções de planejamento, aula e música:
1º) Didactica Magna – Saudações aos leitores (COMENIUS, Jan; 1633-38)
2º) Pedagogia Musical Brasileira no século XX – Introdução (PAZ, Ermelinda; 2000)
3º) Reflexões sobre a obrigatoriedade da música em escolas públicas (SOBREIRA, Silvia; 2008)
4º) Aula de música: do planejamento e avaliação à prática educativa (HENTSCHKE, Liane e DEL
BEN, Luciana; 2003)
5º) Música Popular Brasileira na escola (TORRES, Maria Cecília; 2000)
6º) A fala como recurso na Educação Musical: possibilidades e relações (PENNA, Maura; 2008)
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
7º) A aula de música na escola: reflexões a partir do filme Mudança de hábito 2: mais loucuras no
convento (GONÇALVES, Lilia Neves; 2008)
8º) Desafios para a Educação Musical: ultrapassar oposições e promover diálogo (PENNA,
Maura; 2006)
Alguns dos textos foram lidos e discutidos em sala de aula, enquanto outros foram
recomendados como sugestão de bibliografia para embasar a organização de planos de
aulas e propostas musicais para os estágios. Destaco que os textos sobre a obrigatoriedade
da música nas escolas, sobre a fala como recurso e sobre o planejamento para aulas de música
geraram diversas discussões e questionamentos por parte do grande grupo.
A seguir apresento algumas das atividades realizadas durante a disciplina:
2.1 lembranças de uma cena musical da infância como professor ou aluno
PROPOSTA
Descrever a cena de uma aula de música, como aluno ou professor, destacando aspectos
dos conteúdos musicais abordados, assim como das estratégias e metodologias
aplicadas. Explicitar se a aula foi individual ou em grupo, se envolveu algum instrumento
musical, o conteúdo trabalhado e como foi o trabalho musical. Boa escrita!
Esta proposta está centrada nas narrativas dos alunos a respeito das memórias musicais
de aulas das quais participaram como alunos ou professores, como um momento de reflexão
sobre sua ação e formação. É um tema que está entrelaçado em nossas vidas, seja através da
formação nos cursos de graduação, seja dentro dos múltiplos espaços de formação continuada,
em uma constante articulação com nossas práticas pedagógico-musicais.
No campo da Educação Musical, e envolvendo as lembranças musicais e narrativas
biográficas, trago algumas pesquisas como as de Barret e Stauffer (2009), que discutem
aspectos das investigações com narrativas no campo da música, a de Louro (2008), sobre
narrativas de docentes universitários-professores de instrumento, e a de Torres (2008), com
narrativas de si e memórias musicais de professoras do ensino fundamental. Estes são alguns
dos autores que promovem reflexões a respeito das memórias e narrativas musicais de alunos
e professores em diferentes espaços e tempos.
No campo da Educação, trago dois autores, dentre outros, que desenvolvem pesquisas
sobre os saberes e a formação de professores: Cunha (2002) e Tardif (2002), no que se refere
aos estudos que envolvem a reflexão dos professores sobre sua formação e ação, sobre o “ser
um bom professor” e sobre outros aspectos constitutivos da identidade deste profissional,
através de narrativas e discursos. Tardif argumenta, em sua obra, dentre vários temas referentes
ao trabalho docente, que é importante levar em conta os conhecimentos do cotidiano do
professor em seu trabalho – perspectiva também discutida no presente relato de experiência.
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
2.2 o trabalho com “trava-língua”
Outra proposta que levei para esta disciplina foi a de que cada grupo da turma, composta
por 42 alunos, trabalhasse com um exercício de “trava-língua” baseado em uma letra do alfabeto
- material retirado do livro Quem lê com pressa, tropeça, de autoria de Elias José (1992). A partir
do texto original, os grupos tiveram a tarefa de organizar uma proposta pedagógico-musical a
ser desenvolvida em sala de aula. Destaco que alguns alunos tiveram dúvidas sobre o objetivo
e significado musical desta proposição, o que certamente foi um desafio para mim, pois já
havia desenvolvido atividades com trava-língua junto a alunos de um Curso de Pedagogia,
mas nunca em um Curso de Licenciatura em Música. Após explicar cada passo da tarefa,
começamos a organizar dos trabalhos. A proposta inicial foi de que cada grupo mantivesse
o texto original, explorando a percussão corporal e sons vocais para acompanhamento. Na
perspectiva de Souza (2006),
transformar textos em música tem larga tradição na área da educação musical. Talvez tenham sido Carl
Orff e Murray Schafer quem definitivamente introduziu de uma forma mais sistemática a necessidade
de improvisar e criar música a partir de parlendas como trava-línguas, fórmulas de escolhas e
mnemônicas, assim como rimas, quadrinhos e ditos populares. Aos textos advindos da literatura oral
foram dados alturas, timbres, ritmos e, assim, as palavras passaram a cantar (SOUZA, 2006, p.9).
Após a apresentação das propostas musicais dos colegas, cada grupo organizou sua
atividade por escrito, detalhando as etapas do desenvolvimento do trabalho. Esta fase durou
quatro aulas e cada dupla ou trio teve 15 minutos para a apresentação de sua atividade, com
mais alguns minutos para perguntas e sugestões. Ao final do seminário, houve um momento
de avaliação em que os alunos destacaram diversos aspectos musicais abordados durante o
planejamento, tais como ritmo corporal, melodias, células rítmicas, timbres diversos, trabalho
com prosódia, composição, leitura musical, interpretação, improvisação, prática musical em
conjunto e escrita musical analógica. As letras escolhidas do livro do “trava-língua” foram as
seguintes: A, B, C, D, G, I, J, L, N, T, U, X, Z.
Seguem dois exemplos de letras retiradas do livro para a criação e organização da
atividade: Um bode bravo
É uma barraE o bode berraE o bode baba
Na barba.
O gaiteiro GaribaldiGuarda a gaita
E gargalha com graçaSe vê a graça, da Graça
Engraçando toda a praça.
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
O material organizado com as propostas do “trava-língua” foi socializado entre os colegas e,
posteriormente, utilizado e adaptado por alguns deles nas práticas musicais realizadas durante
os estágios supervisionados nas escolas, conforme relatos dos mesmos.
Trabalhamos ainda com “lengas–lengas” (BEINEKE e FREITAS, 2006), parlendas e provérbios
populares, buscando ressaltar a musicalidade das palavras nestes textos. Dessa maneira, foi
possível dialogar com idéias e fundamentos de educadores musicais como Carl Orff, que, por
meio do uso de palavras com ritmos e formatos diversos, buscou transformá-las em música.
Em relação a esta temática, destaco o trabalho de Penna (2008), intitulado “A fala como recurso
na Educação Musical: possibilidades e relações”, o qual foi lido e comentado em sala de aula,
desencadeando reflexões e questionamentos nos alunos.
3 prátICA pEdAGóGICA Iv: IníCIo do EStáGIo I
Ao desenvolver esta disciplina no segundo semestre de 2009, tive a intenção de dar continuidade
a certos questionamentos dos alunos a respeito das práticas musicais em sala de aula, além de
reorganizar as sugestões dos alunos que haviam cursado a disciplina no semestre anterior. A seguir,
descrevo e analiso duas propostas realizadas com esta turma, composta por quarenta e um alunos
do turno da noite, que renderam muitas reflexões, criatividade, planejamentos, leitura e dúvidas.
A primeira proposição foi a elaboração de Planos de aulas de música para a escola: entre
planejamentos e práticas pedagógicas, fundamentava na perspectiva de destacar a necessidade
dos planejamentos, como ressalta Sugahara (2007):
Organizar as atividades das aulas de música nem sempre é tarefa fácil, dada a diversidade de
métodos, estratégias de ensino e abordagens de conteúdos existentes. Então, por onde começar?
Se, por um lado, dar aula sem nenhum planejamento é missão quase impossível, um bom
planejamento pode oferecer ao professor a segurança necessária para que sua atuação seja
eficiente, justamente por delimitar o que será desenvolvido em sala de aula. É aí que entra em ação
o plano de aula (SUGAHARA, 2007, p.41).
A primeira parte da tarefa consistiu na escolha e seleção de uma peça musical para trabalhar
com os alunos em sala de aula. Após esta etapa do trabalho, os alunos se dividiram grupos
por interesse, a partir de cinco eixos temáticos: execução vocal; execução vocal e instrumental;
execução instrumental; apreciação musical e composição/improvisação.
A segunda etapa da atividade teve como objetivo a organização de um plano de aula
contendo fases detalhadas e referencial teórico coerente para subsidiar a atividade prática que
seria desenvolvida em sala de aula. Uma das características da proposta foi dar a cada grupo
um tempo para conhecer as músicas trazidas pelos colegas, e, juntos, escolherem três delas
para trabalhar em aula. Cada grupo teve 25 minutos para sua prática e, após as apresentações,
houve tempo para avaliação e análise das propostas. Tivemos a formação de oito grupos e as
apresentações aconteceram em forma de Seminário de Práticas pedagógicas.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 116-125, maio, 2010.
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
Dentre o repertório selecionado, listo as seguintes músicas:
Tabela 1 – Musicas listadas
1. Olá (Maurine Benson Ozment) 2. Vou-me embora Prenda minha (Folclore do Rio Grande do Sul)
3. Lá no frio do Sul (Renate e Ieda Moura) 4. Bambalalão (Domínio público)
5. A pulga (Vinícius de Morais/Toquinho/ Sérgio Bardotti)
6. Las manzanas (Rubem Rada)
7. The Lion sleeps tonight (G.Weiss/H.Pereti/ L.Creatore)
8. Alegria – 9ª. Sinfonia de Beethoven
9. Tema de flauta doce (Giovane Pasqualito) 10. Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)
11. Modinha (Folclore de São Paulo) 12. Sereia (Roda de verso: arranjo Viviane Beineke/Sérgio Freitas)
13. Adeste Fideles (J. Reading: arranjo de Larry Yester)
14. Dó-ré-mi (Richard Rodgers)
15- A galinha do vizinho (Domínio público) 16. Cai, cai, balão (Domínio público)
Outro tópico que merece destaque é concernente aos procedimentos ou metodologias
selecionados pelos alunos, envolvendo desde exercícios de concentração com os olhos fechados até
a identificação de timbres de instrumentos, passando pela execução rítmica da canção com sílaba
“ta”; leitura à primeira vista; realização da música em forma de cânone; aquisição de habilidades
aurais; divisão das turmas em grupos; atividades com mescla de voz, flauta doce e percussão
corporal; aquecimento vocal; e improvisação e criação de arranjos para determinada melodia. É
importante enfatizar a diversidade de propostas musicais que emergiu através das práticas, além
do retorno dos colegas por meio de sugestões, complementações e questionamentos.
É importante, também, ressaltar a diversidade do repertório selecionado, no qual estão
inseridas peças do folclore brasileiro e de outros países, além de trilhas sonoras de filmes,
peças do repertório clássico ou erudito – como Alegria, da Nona Sinfonia de Beethoven - dentre
outros estilos e compositores.
Um último ponto que ressalto nesta atividade está ligado aos objetivos organizados pelos
grupos, que focalizam aspectos como:
“desenvolver técnicas básicas e conhecimento de conjunto vocal”;•“trabalhar com a identificação de instrumentos dentro de uma música”;•“apresentar as músicas com um integrante do grupo cantando, outro tocando flauta e •outro fazendo percussão corporal”;
MaRia cecÍLia De aRaUJO RODRiGUeS tORReS, Didática de ensino da música e prática pedagógica IV: reflexões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em música.
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
“vivenciar a experiência de execução instrumental junto ao grande grupo, identifican-•do e avaliando a dinâmica utilizada”;“explorar uma melodia de várias formas, usando diversos instrumentos”.•
Finalizo este tópico ressaltando o entrelaçamento que aconteceu entre os planejamentos e as
práticas dos alunos desta disciplina e as idéias de França (2009), nas quais a autora defende que
aula de música não é aula de sons. Aula de música é aula de música, com música e por meio
da música. Muitos programas de ensino adotam como princípio organizador os conhecidos
parâmetros do som (especialmente altura e duração) [...] Nas minhas visitas e pesquisas em
escolas regulares e especializadas tenho observado que, muitas vezes, estímulos poderosos como
canções, brinquedos cantados ou histórias são subaproveitados devido àquele modelo de ensino
fragmentário (FRANÇA, 2009, p.25).
Analiso que o ponto principal de união destas práticas e reflexões foi o fazer musical de
múltiplas maneiras, em uma mescla de formas e sentidos que envolvem a musicalidade de
diferentes pessoas, em tempos e contextos diversos.
3.1 vamos construir instrumentos em aula?
Esta parte do texto trata de um projeto de construção de instrumentos musicais que surgiu
durante o semestre através de conversas com os alunos, com o objetivo fazer uma ponte entre
o conteúdo das aulas e as práticas musicais nos estágios. Tornou-se concreto a partir da leitura
de reflexão de dois textos: “Materiais didáticos na aula de música do ensino fundamental”
(OLIVEIRA, 2007) e “Construção de instrumentos musicais a partir de objetos do cotidiano
“(TORRES, 2000)1. Estes materiais foram instigantes e desencadearam afirmações como: “Na
minha escola não tem nada para trabalhar com música”; “Eu fiz este material com meus alunos”
ou “Quais materiais utilizar ou comprar para a aula de música?”.
Entre perguntas, dúvidas e materiais levados pelos alunos para ilustrar as práticas musicais
realizadas durante os estágios, decidi propor o projeto de construção de instrumentos musicais,
a partir de uma ficha preenchida e discutida em sala, e da posterior apresentação das etapas
de seleção e construção dos mesmos.
No que tange ao processo de construção de instrumentos a partir de objetos do cotidiano,
destaco o excerto de Torres (2000) que ressalta que uma proposta como esta:
[...] além de estimular a pesquisa sonora, a criatividade, a improvisação musical, a socialização e a
oratória, está inserida nos territórios do cotidiano do aluno. A título do material que foi produzido,
pode-se indicar a criação de composições musicais, com a grafia de partituras analógicas, a
gravação e apresentação das peças em um grande grupo (TORRES, 2000, p.149).
Esta atividade teve a aceitação do grupo composto por quarenta alunos neste semestre, os
quais, ao final, apresentaram seus projetos com as fichas, os instrumentos e as possibilidades
1 Para mais informações sobre a temá-tica da construção de instrumentos musicais, ver “Construindo instrumen-tos musicais no Curso de Pedagogia: entre chocalhos e ganzás” (TORRES, 2000).
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 116-125, maio, 2010.
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RELATOS DE EXPERIÊNCIA
sonoras, inclusive com a gravação de improvisações criadas por três alunos a partir de seus
instrumentos. Dentre os instrumentos confeccionados, prevaleceram aqueles da família da
percussão rítmica, além de outros de cordas e sopro.
Certamente, atividade oportunizou a socialização das idéias dos alunos para o grupo,
com perspectivas de inserirem os materiais em suas práticas musicais nas escolas. O exercício
explorou a musicalidade de alunos e professores de muitas maneiras: pela percussão de um
tambor ou pandeiro, no soprar da flauta de Pan construída de tubos de metal ou no sacudir e
tocar nas cordas de um berimbau de taquara.
4 AMAlGAMAr SonorIdAdES E propoStAS: fInAlIZAção
O exercício de mesclar o planejamento de aulas de música com a construção de
instrumentos musicais, aliado ao trabalho com “trava-línguas” e parlendas, foi uma
oportunidade para todos nós, professora e alunos, aprendermos uns com os outros,
experimentarmos atividades musicais, cantarmos, gravarmos e refletirmos sobre os desafios
que envolvem o “ser professor de música” em diferentes espaços.
Uma das propostas das duas disciplinas incluiu a leitura e discussão de textos, como os
citados no quadro da Didática do Ensino da Música (vide item 2). A partir destas leituras,
emergiram perguntas, dúvidas e questionamentos relacionados às práticas musicais na sala
de aula, com destaque para o período dos estágios supervisionados em Música.
Cabe ressaltar que, ao longo do semestre da disciplina Prática pedagógica IV, organizei uma
atividade de escrita reflexiva com os alunos a partir de quatro questões: “Qual é a escola ideal?”;
“Quem é o aluno ideal? ”; “Qual é o professor de música ideal? ”; e “Como é a aula de música ideal? ”
Meu objetivo, ao propor estas perguntas a partir do termo “ideal”, foi o de conhecer
algumas concepções dos alunos sobre a escola, seus alunos, professores e aulas de música na
perspectiva do que imaginam e idealizam e, desta maneira, desencadear estranhamentos e
reflexões no grupo. Estas questões perpassavam os aspectos constituintes da identidade do
professor de música que atua na escola de educação básica e estão também amalgamadas
com os ideais, projetos e concepções de música e aulas de música na escola.
Feitas estas considerações, finalizo este texto e destaco que as reflexões, avaliações e
proposições dos grupos de alunos ao longo das disciplinas - tanto de Didática do Ensino da
Música quanto de Prática pedagógica IV, foram fundamentais para minhas reflexões sobre o
trabalho como professora formadora em um Curso de Licenciatura em Música, no constante
processo de ensinar-aprender. Acredito que tenham sido, também, momentos importantes
de reflexão e aprendizagem para este grupo de alunos em processo de formação e de
organização de atividades e planejamentos de aula para os estágios supervisionados no
campo da Educação Musical.
MaRia cecÍLia De aRaUJO RODRiGUeS tORReS, Didática de ensino da música e prática pedagógica IV: reflexões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em música.
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Referências
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ROMANELLI, G. Planejamento na aula de música In: MATEIRO, Teresa; SOUZA, Jusamara (Org.). Práti-cas de ensinar Música. Porto Alegre: Sulina, 2008.
SOBREIRA, S. Refl exões sobre a obrigatoriedade da música em escolas públicas. Revista da ABEM, Porto Alegre, n. 20, set. 2008.
SOUZA, J. et. al. (Orgs.). Palavras que cantam. Porto Alegre: Sulina, 2006.
SOUZA, J; TORRES, M. C. A. R. Maneiras de ouvir música: uma questão para a educação musical com jovens. Música na Educação Básica, Porto Alegre, v. 1, n. 1, 2009.
SUGAHARA, L. Y. Musicalização - Plano de aula para crianças de três a seis anos de idade: o estágio do personalismo. Revista Cenário Musical, São Paulo, n. 5, 2007.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 116-125, maio, 2010.
125
RELATOS DE EXPERIÊNCIA
TARDIF, M. Saberes docentes e formação profi ssional. Petrópolis: Vozes, 2002.
TORRES, M. C. A. R. Construção de instrumentos musicais a partir de objetos do cotidiano. In: SOUZA, Jusamara (Org.). Música, cotidiano e educação. Porto Alegre: PPG/Música/UFRGS, 2000.
TORRES, M. C. A. R. Músicas do cotidiano e memórias musicais: narrativas de si de professoras do ensino fundamental. In: SOUZA, Jusamara (Org.). Aprender e fazer música no cotidiano. Porto Alegre: Sulina, 2008.
MaRia cecÍLia De aRaUJO RODRiGUeS tORReS, Didática de ensino da música e prática pedagógica IV: refl exões sobre práticas musicais em um curso de licenciatura em música.
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RESENHA
ELIZABETH CARRASCOSA MARTINEZ
Assistente de Instrumento-madeiras e de Iniciação musical da Associação Amigos do
Projeto Guri. e-mail: elicarras@hotmail.com
Manual ilustrado dos instrumentos musicais
Este livro é um guia completo de instrumentos musicais, descrevendo a origem, evolução,
características e modos básicos de execução de uma grande variedade de instrumentos
acústicos, eletrônicos e digitais, oriundos de diferentes partes do mundo. Com linguagem
simples, de fácil leitura, inclui fotografias coloridas que facilitam a identificação dos
instrumentos, constituindo-se em referência ideal para quem quer conhecer mais sobre
instrumentos de diversas partes do mundo.
O livro está dividido em duas seções. A primeira é dedicada à descrição dos instrumentos,
enquanto a segunda, de referência, inclui um panorama cronológico do desenvolvimento dos
instrumentos e sua utilização em conjuntos instrumentais, além de tabelas com as intensidades
sonoras aproximadas dos principais instrumentos e suas extensões. Ao final do livro, há um
glossário explicativo de 145 termos necessários para aprofundar a compreensão do texto.
Os instrumentos estão organizados no livro por “famílias” - de percussão, metais, madeiras,
cordas, teclados e instrumentos elétricos e eletrônicos. Dentro de cada “família” os instrumentos
se ordenam segundo o modo de execução (os instrumentos de cordas se subdividem em
cordas harpejadas, dedilhadas e tangidas e friccionadas, por exemplo).
Junto a cada “família” de instrumentos, há uma introdução com informações sobre a
evolução histórica e as técnicas de construção destes. A descrição individual dos instrumentos
inclui características sonoras, história e técnicas de execução, abrangendo desde um simples
tambor até um telharmonium.
O panorama cronológico da segunda seção do livro se centra no desenvolvimento dos
instrumentos eruditos mais utilizados na Europa Ocidental até o século XX. Os autores
relacionam esta evolução ao contexto histórico-musical de cada época, citando os principais
inventores e inovadores de cada período, bem como destacando as diferenças de uso e
construção de cada instrumento. O livro oferece ainda indicações sobre as funções dos
instrumentos dentro dos conjuntos musicais.
ReViSta eSPacO inteRMeDiÁRiO, Sao Paulo, v.i, n.i, p. 126-127, maio, 2010.
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RESENHA
JENKINS, Lucien (Org.). Manual ilustrado dos
instrumentos musicais: tradução de Denis
Koishi e Danica Zugic. São Paulo: Irmãos Vi-
tale, 2009. 416 p.
Há, no mercado internacional, outros livros dedicados à descrição dos instrumentos
musicais e sua evolução, como The History of Musical Instruments, de Curt Sach, o Atlas de los
Instrumentos Musicales, de Klaus Maersch ou Les instruments de musique dans le monde, de
François-René Tranchefort. Porém, todos são destinados a um público especializado, que possui
conhecimento prévio de música. Esta enciclopédia ilustrada dos instrumentos musicais possui
mais de 400 fotografi as e não somente descreve aspectos históricos ou teóricos, mas oferece
também informações práticas de como se executam e de como soam os instrumentos.
Este guia é altamente recomendado a um público amplo, que engloba desde estudantes
iniciantes, escolas de música, músicos profi ssionais, compositores, como aos afi ccionados que
querem adentrar no maravilhoso mundo da música. Com exemplos, fatos curiosos, sugestões
de leituras adicionais e indicações de sites correlacionados, é uma ótima ferramenta para
ampliar nosso conhecimento sobre como escolher e usar os instrumentos de várias regiões
do mundo.
O Manual Ilustrado dos Instrumentos Musicais é organizado por Lucien Jenkins, fundador
da revista Early Music Today, autor do livro Laying out the Body e co-autor da Collins Classical
Music Encyclopedia. Entre os consultores da obra destacam-se Rebecca Berkley, Leon Botstein
(presidente do Bard College de Nova York e diretor musical da American Symphony Orquestra),
Richard Buskin e Rusty Cutchin. O prefácio foi escrito pela célebre percussionista escocesa
Evelyn Glennie.
eLiZaBeth caRRaScOSa MaRtineZ, Manual ilustrado dos instrumentos musicais
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