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7/23/2019 Ritornelo Trad. Ivo
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11. 1837 Do ritornelo
A mquina de gorjear
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I. Uma criana no escuro, tomada pelo medo, tranqiliza-se cantarolando. Ela anda e se detm
ao sabor de sua cano. Perdida, abriga-se como pode, ou se orienta bem ou mal com sua canozinha.
Esta como que o esboo de um centro estvel e calmo, estabilizante e calmante, no seio do caos. Pode
ser que a criana pule ao mesmo tempo que canta, ela acelera ou diminui sua andadura; mas a prpria
cano j um salto: ela salta do caos a um incio de ordem no caos, ela tambm corre o risco de se
deslocar a cada instante. H sempre uma sonoridade no fio de Ariadne. Ou ento o canto de Orfeu.
II. Agora, ao contrrio, a gente est em casa, na querncia [on est chez soi]. Mas a querncia [le
chez-soi] no preexiste: foi preciso traar um crculo em torno do centro frgil e incerto, organizar um
espao limitado. Muitas componentes bem diversas intervm, demarcaes e marcas de toda sorte. Isso
j era verdade no caso anterior. Mas agora so componentes para a organizao de um espao, no maispara a determinao momentnea de um centro. Eis que as foras do caos so mantidas no exterior
tanto quanto possvel, e o espao interior protege as foras germinativas de uma tarefa a ser cumprida,
de uma obra a ser feita. H nisso toda uma atividade de seleo, de eliminao, de extrao, para que as
foras ntimas terrestres, as foras interiores da terra, no sejam submergidas, que elas possam resistir, ou
que possam at emprestar alguma coisa do caos atravs do filtro ou do crivo do espao traado. Ora, as
componentes vocais, sonoras, so importantssimas: um muro do som, em todo caso um muro de cujos
tijolos alguns so sonoros. Uma criana cantarola para recolher em si as foras do trabalho escolar a ser
terminado. Uma dona de casa cantarola, ou liga o rdio, ao mesmo tempo em que ela erige as foras
anti-caos de seus afazeres. Os aparelhos de rdio ou de tev so como que um muro sonoro para cada
lar, e eles marcam territrios (o vizinho protesta quando est alto demais). Para obras sublimes como a
fundao de uma cidade, ou a fabricao de um Golem, traa-se um crculo, mas sobretudo anda-se em
torno do crculo como numa ciranda infantil, e combina-se as consoantes e as vogais ritmadas que
correspondem tanto s foras interiores da criao como s partes diferenciadas de um organismo. Umerro de velocidade, de ritmo ou de harmonia seria catastrfico, pois destruiria o criador e a criao
trazendo de volta as foras do caos.
III. Agora, enfim, entreabre-se o crculo, abre-se-o, deixa-se que algum entre, chama-se algum,
ou ento a gente mesmo vai pra fora, se arremessa. O crculo no se abre do lado onde as antigas foras
do caos se espremem, mas numa [383] outra regio, criada pelo prprio crculo. Como se o prprio
crculo tendesse a abrir-se sobre um futuro, em funo das foras em obra que ele abriga. E desta vez,
para juntar-se a foras do porvir, a foras csmicas. A gente se arremessa, arriscando uma improvisao.
Mas improvisar juntar-se ao Mundo, ou confundir-se com ele. A gente sai de casa no fio de uma
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canoneta. Sobre as linhas motoras, gestuais, sonoras que marcam o percurso costumeiro de uma
criana, enxertam-se ou pem-se a brotar linhas de errr, com volteios, ns, velocidades, movimentos,
gestos e sonoridades diferentes1.
No so trs momentos sucessivos numa evoluo. So trs aspectos numa s e mesma
coisa, o Ritornelo. Nos contos que se lhes encontra, contos de terror ou de fadas, nosliedertambm.
O ritornelo tem trs aspectos, ele os torna simultneos, ou lhes mistura: ora, ora, ora. Ora o caos um
imenso buraco negro, a gente se esfora por fixar nele um ponto frgil como centro. Ora se organiza em
torno do ponto uma andadura (ao invs de uma forma) calma e estvel: o buraco negro deveio uma
querncia. Ora se enxerta uma escapada nessa andadura, fora do buraco negro. Paul Klee quem
mostrou to profundamente esses trs aspectos, e seu liame. Ele diz ponto gris, e no buraco negro,
por razes picturais. Mas o ponto gris, justamente, primeiro ele o caos no dimensional, nolocalizvel, a fora do caos, feixe enredado de linhas aberrantes. A o ponto salta por cima dele mesmo
e faz radiar um espao dimensional, com suas camadas horizontais, seus cortes verticais, suas linhas
costumeiras no escritas, toda uma fora interior terrestre (essa fora igualmente aparece, com uma
andadura mais desligada, na atmosfera ou na gua). O ponto gris (buraco negro) ento saltou de estado,
e representa no mais o caos, mas a morada ou a querncia. Enfim, o ponto se arremessa e sai de si
mesmo, sob a ao de foras centrfugas errantes que se espraiam at a esfera do cosmos: A gente exerce
um esforo por impulsos para descolar da terra, mas no escalo seguinte a gente realmente se eleva acima
dela (...) sob o imprio de foras centrfugas que triunfam o pesadume2.
Amide se sublinhou o papel do ritornelo: ele territorial, um agenciamento territorial. Os
cantos de pssaros: o pssaro que canta marca assim seu territrio... Os modos gregos, [384], os ritmos
hindus, so eles prprios territoriais, provinciais, regionais. O ritornelo pode ganhar outras funes,
amorosa, profissional ou social, litrgica ou csmica: ele sempre arrasta terra consigo, ele tem por
concomitante uma terra, mesmo espiritual, ele est em vnculo essencial com um Natal, um Nativo. Umnomo musical uma melodiazinha [petit air], uma frmula meldica que se prope ao
reconhecimento e continuar sendo o alicerce ou o solo da polifonia (cantus firmus). Onomoscomo lei
costumeira e no escrita inseparvel de uma distribuio de espao, de uma distribuio no espao,
com isso ele ethos, mas o ethos tambm a Morada3. E ora se vai do caos a um limiar de agenciamento
1 Cf. Fernand Deligny, Voix et voir,Cahiers de l'immuable: a maneira pela qual uma linha de errr, entre crianasautistas, separa-se de um trajeto costumeiro, pe-se a vibrar, estremecer, guinar...
2 Paul Klee,Thorie de l'art moderne[tr. fr. 1964], pp. 56, 27. Cf. o comentrio de Maldiney,Regard, parole, espace, L'ge
d'homme [1973], pp. 149-151.3 Sobre o nomo musical, o ethos e o solo ou a terra, especialmente na polifonia, cf. Joseph Samson, inHistoire de lamusique, Pliade, t. I, pp. 1168-1172. Tambm se reportar, na msica rabe, ao papel do Maqmi, ao mesmo tempotipo modal e frmula meldica: Simon Jargy,La musique arabe, P.U.F., pp. 55 sq.
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territorial: componentes direcionais, infra-agenciamento. Ora se organiza o agenciamento: componentes
dimensionais, intra-agenciamento. Ora se sai do agenciamento territorial, rumo a outros agenciamentos,
ou ainda alhures: inter-agenciamento, componentes de passagem ou at de fuga. E os trs juntos. Foras
do caos, foras terrestres, foras csmicas: tudo isso se enfrentando e concorrendo no ritornelo.
Do caos nascem osMeiose osRitmos. o assunto das cosmogonias antiqussimas. O caos no
est sem componentes direcionais, que so suas prprias extases. Vimos numa outra ocasio como toda
sorte de meios embrenhavam-se uns relativamente aos outros, uns sob os outros, cada um definido por
uma componente. Cada meio vibratrio, ou seja, um bloco de espao-tempo constitudo pela
repetio peridica da componente. Assim, o vivente tem um meio exterior que remete aos materiais;
um meio interior, aos elementos componentes e substncias compostas; um meio intermedirio, smembranas e limites; um meio anexado, s fontes de energia e s percepes-aes. Cada meio est
codificado, um cdigo definindo-se pela repetio peridica; mas cada cdigo est em estado perptuo
de transcodificao ou de transduo. A transcodificao ou transduo a maneira pela qual um meio
serve de base a outro, ou ao contrrio se estabelece num outro, se dissipa ou se constitui num outro.
Justamente, a noo de meio no unitria: no apenas o vivente que passa constantemente de um
meio a outro, so [385] os meios que passam um no outro, essencialmente comunicantes. Os meios
esto abertos no caos, que lhes ameaa de esgotamento ou de intruso. Mas a resposta dos meios ao caos
o ritmo. O que h de comum ao caos e ao ritmo o entre-dois, entre dois meios, ritmo-caos ou
caosmos: Entrea noite e o dia, entre o que est construdo e o que naturalmente cresce, entre as
mutaes do inorgnico ao orgnico, da planta ao animal, do animal espcie humana, sem que esta
srie seja uma progresso... nesse entre-dois que o caos devm ritmo, no necessariamente, mas tem
uma chance de devi-lo. O caos no o contrrio do ritmo, antes o meio de todos os meios. H ritmo
desde que haja passagem transcodificada de um meio a outro, comunicao de meios, coordenao deespaos-tempos heterogneos. O estafamento, a morte, a intruso ganham ritmos. Sabe-se bem que o
ritmo no medida ou cadncia, mesmo que irregular: nada menos ritmado que uma marcha militar. O
tam-tam no 1-2, a valsa no 1, 2, 3, a msica no binria ou ternria, mas antes 47 tempos
primeiros, como entre os Turcos. que uma medida, regular ou no, supe uma forma codificada cuja
unidade mensurante pode variar, mas num meio no comunicante, ao passo que o ritmo o Desigual
ou o Incomensurvel, sempre sem transcodificao. A medida dogmtica, mas o ritmo crtico, ele
enoda instantes crticos, ou se enoda na passagem de um meio num outro. Ele no opera num espao-
tempo homogneo, mas com blocos heterogneos. Ele muda de direo. Bachelard tem razo em dizer
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que a ligao dos instantes verdadeiramente ativos (ritmo) sempre efetuada sobre um plano que difere do
plano onde se executa a ao4. Nunca o ritmo tem o mesmo plano que o ritmado. que a ao se faz
num meio, ao passo que o ritmo se pe entre dois meios, ou entre dois entre-meios, como entre duas
guas, entre duas horas, entre co e lobo,twilightouzwielicht, Hecceidade. Mudar de meio, pego no
flagraii, o ritmo. Aterrissar, amerrissar, alar vo... Com isso, facilmente se sai de uma aporia que
arriscava levar a medida de volta ao ritmo, apesar de todas as declaraes de inteno: com efeito, como
a gente pode proclamar a desigualdade constituinte do ritmo, enquanto que se fica ao mesmo tempo
admitindo as vibraes sub-entendidas, as repeties peridicas das componentes? que um meio existe
sim por uma repetio peridica, mas esta no tem outro efeito seno produzir uma diferena pela qual
ele passa num outro meio. a diferena que rtmica, e no a repetio que, no entanto, a produz; mas,
de chofre, essa repetio produtora nada tinha a ver com uma medida reprodutora. Seria esta a soluocrtica da antinomia.
H um caso particularmente importante de transcodificao: quando um cdigo no se
contenta em pegar ou receber componentes codificadas de outro jeito, mas pega ou recebe fragmentos
de outro cdigo enquanto tal. O primeiro caso remeteria ao vnculo folha-gua, mas o segundo ao
vnculo aranha-mosca. Freqentemente se notou que a teia de aranha implicava no cdigo desse animal
seqncias do cdigo da mosca; dir-se-ia que a aranha tem uma mosca na cabea, um motivo de
mosca, um ritornelo de mosca. A implicao pode ser recproca, como a vespa e a orqudea, a boca-de-
leo e a mamangava. J. von Uexkll fez uma admirvel teoria dessas transcodificaes, descobrindo nas
componentes outras tantas melodias que se fariam contraponto, uma servindo de motivo outra e
reciprocamente: a Natureza como msica5. Cada vez que h transcodificao, podemos estar seguros de
que no h uma simples adio, mas constituio de um novo plano assim como de uma mais-valia.
Plano rtmico ou meldico, mais-valia de passagem ou de ponte, mas os dois casos nunca so puros,
eles na realidade se misturam (tal como o vnculo da folha, no mais com a gua em geral, mas com achuva...).
Todavia, no seguramos ainda umTerritrio, que no um meio, nem mesmo um meio a mais,
nem um ritmo ou passagem entre meios. O territrio de fato um ato, que afeta os meios e os ritmos,
que lhes territorializa. O territrio o produto de uma territorializao dos meios e dos ritmos. D no
mesmo perguntar quando que os meios e os ritmos se territorializam, ou qual a diferena entre um
animal sem territrio e um animal de territrio. Um territrio lana mo de todos os meios, vai
4 Bachelard,La dialectique de la dure, Boivin [1936], pp. 128-129.5 J. von Uexkll,Mondes animaux et monde humain, Gonthier [1965].
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abocanhando-lhes, pegando-lhes a brao com o corpo (embora continue frgil s intruses). Ele
construdo com aspectos ou pores de meios. Comporta em si mesmo um meio exterior, um meio
interior, um intermedirio, um anexado. Tem uma zona interior de domiclio ou de abrigo, uma zona
exterior de domnio, limites ou membranas mais ou menos retrteis, zonas intermedirias ou at mesmo
neutralizadas, reservas ou anexos energticos. Ele essencialmente marcado, por ndices, e esses
ndices so emprestados das componentes de todos os meios: materiais, produtos [387] orgnicos,
estados de membrana ou de pele, fontes de energia, condensados percepo-ao. Precisamente, h
territrio quando componentes de meios deixam de ser direcionais para devirem dimensionais, quando
elas deixam de ser funcionais para devirem expressivas. H territrio quando h expressividade de ritmo.
a emergncia de matrias de expresso (qualidades) que vai definir o territrio. Peguemos um exemplo
como o da cor, dos pssaros ou dos peixes: a cor um estado de membrana, que remete ele prprio aestados interiores hormonais; mas a cor permanece funcional, e transitria, enquanto estiver ligada a um
tipo de ao (sexualidade, agressividade, fuga). Ela devm expressiva, ao contrrio, quando adquire uma
constncia temporal e um alcance espacial que fazem dela uma marca territorial, ou antes
territorializante: uma assinatura6. A questo no saber se a cor ganha de volta funes, ou se ela
preenche novas funes no seio do prprio territrio. evidente, mas essa reorganizao da funo
implica, primeiramente, que a componente considerada tenha devindo expressiva, e que ele tenha como
sentido, deste ponto de vista, marcar um territrio. Uma mesma espcie de pssaro pode comportar
representantes coloridos ou no; os coloridos tm um territrio, ao passo que os brancacentos so
gregrios. Sabe-se o papel da urina ou dos excrementos na marcao; mas, justamente, os excrementos
territoriais, por exemplo para o coelho, tm um odor particular devido a glndulas anais especializadas.
Muitos macacos, de sentinela, expem seus rgos sexuais de cores vivas: o pnis devm um porta-cores
expressivo e ritmado que marca os limites do territrio7.Uma componente de meio devm, de uma s
vez, qualidade e propriedade,qualeeproprium. Em muitos casos, constata-se a velocidade desse devir,com que rapidez um territrio constitudo, ao mesmo tempo que as qualidades expressivas so
selecionadas ou produzidas. O pssaroScenopoeetes dentirostrisivestabelece suas demarcaes fazendo cair
da rvore, em cada manh, umas folhas que ele cortou, depois virando-as ao reverso, para que sua face
6 K. Lorenz,L'agression, Flammarion [1968], pp. 28-30: A esplndida roupagem deles constante. (...) A repartio dascores sobre superfcies relativamente grandes, vivamente contrastadas, distingue os peixes de coral no apenas da maioriados peixes de gua doce, mas tambm de quase todos os peixes menos agressivos e menos apegados ao seu territrio. (...)
Assim como as cores dos peixes de coral, o canto do rouxinol assinala de longe a todos os seus congneres que um
territrio encontrou um proprietrio definitivo.7 I. Eibl-Eibesfeldt,Ethologie, Ed. Scientifiques [1972]: sobre os macacos, p. 449; sobre os coelhos, p. 325; e sobre ospssaros, p. 151: Os diamantes-mandarimiii, que tm a plumagem de atavio coloridssima, mantm-se a uma certadistncia uns dos outros, ao passo que os sujeitos brancacentos empoleiram-se mais perto.
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interna mais plida contraste com a terra: a inverso produz uma matria de expresso...8
O territrio no primeiro relativamente marca qualitativa, a marca que faz o territrio. As
funes num territrio no so primeiras, elas supem primeiramente uma expressividade que faz
territrio. bem neste sentido que o territrio, e as funes que nele se exercem, so produtos da
territorializao. A territorializao o ato do ritmo devindo expressivo, ou das componentes de meios
devindas qualitativas. A marcao de um territrio dimensional, mas no uma medida, um ritmo.
Ela conserva o carter mais geral do ritmo, de inscrever-se sobre um outro plano que no o das aes.
Porm, agora, os dois planos se distinguem como o das expresses territorializantes e das funes
territorializadas. Eis por que no podemos seguir uma tese como a de Lorenz,que tende a colocar a
agressividade na base do territrio: a evoluo filogentica de um instinto de agresso que faria o
territrio, a partir do momento em que esse instinto deviesse intra-especfico, voltado contra oscongneres do animal. Um animal de territrio seria aquele que dirige sua agressividade contra outros
membros de sua espcie; o que d espcie a vantagem seletiva de se repartir num espao onde cada
um, indivduo ou grupo, possui seu lugar prprio9. Essa tese ambga, com perigosas ressonncias
polticas, parece mal fundada. evidente que a funo agressiva ganha uma nova andadura quando ela
devm intra-especfica. Mas essa reorganizao da funo supe o territrio, e no o explica. No seio do
territrio, existem numerosas reorganizaes, afetando igualmente a sexualidade, a caa etc.; existem at
novas funes, como construir um domiclio. Mas essas funes so organizadas e criadas apenas
enquanto estoterritorializadas, e no o inverso. O fator T, o fator territorializante, deve ser buscado
alhures: precisamente no devir-expressivo do ritmo ou da melodia, isto , na emergncia das qualidades
prprias (cor, odor, som, silhueta...).
Pode-se nomear de Arte esse devir, essa emergncia? O territrio seria o efeito da arte. O artista,
o primeiro homem que erige um marco ou faz uma marca... A propriedade, de grupo ou individual,
[389] decorre disso, mesmo que seja para a guerra e a opresso. A propriedade primeiramente artstica,pois a arte primeiramentecartaz,placa. Como diz Lorenz, os peixes de coral so cartazes. O expressivo
primeiro relativamente ao possessivo, as qualidades expressivas ou matrias de expresso so
forosamente apropriativas, e constituem um ter mais profundo que o ser10. No no sentido em que
essas qualidades pertenceriam a um sujeito, mas no sentido em que elas desenham um territrio que
pertencer ao sujeito que as traz consigo ou que as produz. Essas qualidades so assinaturas, mas a
8 Cf. W. H. Thorpe,Learning and Instinct in Animals, Methuen and Co. [1956], p. 364.9 Lorenz tende constantemente a apresentar a territorialidade como um efeito da agresso intraespecfica: cf. pp. 45, 48,57, 161 etc.
10Sobre um primado vital e esttico do ter, cf. Gabriel Tarde,L'opposition universelle, Alcan [1897].
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assinatura, o nome prprio, no a marca constituda de um sujeito, a marca constituinte de um
domnio, de uma morada. A assinatura no a indicao de uma pessoa, a formao casual de um
domnio. As moradas tm nomes prprios e so inspiradas. Os inspirados e sua morada...v, mas com
a morada que surge a inspirao. ao mesmo tempo que gosto de uma cor e que fao dela meu
estandarte ou minha placa. Coloca-se uma assinatura num objeto assim como se planta uma bandeira
numa terra. Um bedel de colgio carimbava todas as folhas que juncavam o cho do ptio, e as
recolocava no mesmo lugar. Ele havia assinado. As marcas territoriais soready-made. E, outrossim,
aquilo que se chama de arte bruta no nada de patolgico ou de primitivo, to somente essa
constituio, essa liberao de matrias de expresso, no movimento da territorialidade: o soclo ou o
solo da arte. De qualquer coisa que seja, fazer uma matria de expresso. OScenopoeetesfaz arte bruta. O
artista scenopoeetes, pronto pra rasgar seus prprios cartazes. Decerto, a este respeito, a arte no oprivilgio do homem. Messiaen tem razo em dizer que muitos pssaros so, no apenas virtuosos, mas
artistas, e o so primeiramente pelos seus cantos territoriais (se um ladro quer ocupar indevidamente
uma regio que no lhe pertence, o verdadeiro proprietrio canta, canta to bem que o outro vai embora
(...). Se o ladro canta melhor, o proprietrio lhe cede o local11). O ritornelo o ritmo e a melodia
territorializados porque devieram expressivos e devieram expressivos porque so territorializantes. No
estamos girando em crculo. Queremos dizer que h um auto-movimento [390] das qualidades
expressivas. A expressividade no se reduz aos efeitos imediatos de uma impulso que desencadeia uma
ao num meio: tais efeitos so impresses ou emoes subjetivas ao invs de expresses (assim, a cor
momentnea que um peixe de gua doce ganha sob tal impulso). As qualidades expressivas, ao
contrrio, as cores dos peixes de coral, so auto-objetivas, isto , acham uma objetividade no territrio
que elas traam.
Qual esse movimento objetivo? O quefazuma mteria como matria de expresso? Primeiro
ela cartaz ou placa, mas ela no fica nisso. Ela passa por isso, tudo. Mas a assinatura vai devir estilo.Com efeito,as qualidades expressivas ou matrias de expresso entram, umas com as outras, em vnculos
mveis que vo exprimir o vnculo do territrio que elas traam com o meio interior das impulses, e com o
meio exterior das circunstncias. Ora, exprimir no depender, h uma autonomia da expresso. Por um
lado, as qualidades expressivas entram umas com as outras em vnculos internos que constituemmotivos
territoriais: estes ora desaprumam as impulses internas, ora as superpem, ora fundam uma impulso
11O detalhe das concepes de Messiaen a respeito dos cantos de pssaros, sua avaliao das qualidades estticas deles, seus
mtodos, seja para reproduzi-los, seja para se servir deles como de um material, encontram-se em Claude Samuel,Entretiens avec Olivier Messiaen(Belfond [1967]) e Antoine Gola,Rencontres avec Olivier Messiaen(Julliard [1961]).(Especialmente, porque Messiaen no se serve do magnetofone nem do songrafo habitual aos ornitlogos, cf. Samuel,pp. 111-114).
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numa outra, ora passam e fazem passar de uma impulso a outra, ora se inserem entre ambas, mas eles
mesmos no so pulsados. Ora esses motivos no pulsados aparecem sob uma forma fixa, ou
aparentam estarem aparecendo assim, mas ora tambm os mesmos, ou outros, tm uma velocidade e
uma articulao variveis; e igualmente sua variabilidade e sua fixidez que os torna independentes das
pulses que eles combinam ou neutralizam. Dos nossos ces, sabemos que executam com paixo os
movimentos de farejar, levantar, correr, acossar, abocanhar e sacudir at a morte uma presa imaginria,
sem ter fome. Ou ento a dana do esgana-gatavi, seu ziguezague um motivo onde o zigue esposa uma
pulso agressiva para com seu parceiro, o zague uma pulso sexual para com o ninho, mas onde o zigue
e o zague so diversamente acentuados e at diversamente orientados. Por outro lado, as qualidades
expressivas entram igualmente noutros vnculos internos que fazemcontrapontos territoriais: desta vez,
a maneira pela qual elas constituem no territrio pontos que tomam como contraponto ascircunstncias do meio externo. Por exemplo, um inimigo se aproxima, ou faz irrupo, ou ento a
chuva comea a cair, o sol se levanta, o sol se pe... Ainda a, os pontos ou contrapontos tm sua
autonomia, de fixidez ou variabilidade, relativamente s circunstncias do meio exterior cujo vnculo
com o territrio elas exprimem. Pois esse vnculo pode estar dado sem que as circunstncias estejam,
assim como o vnculo com as impulses pode [391] estar dado sem que a impulso esteja. E mesmo
quando as impulses e circunstncias esto dadas, o vnculo original relativamente ao que ele vincula.
Os vnculos entre matrias de expresso exprimem vnculos do territrio com as impulses internas,
com as circunstncias externas: eles tm uma autonomia nessa expresso mesma. Na verdade, os motivos
e os contrapontos territoriais exploram as pontencialidades do meio, interior ou exterior. Os etlogos
cercaram o conjunto desses fenmenos sob o conceito de ritualizao, e mostraram o liame dos rituais
animais com o territrio. Mas essa palavra no convm forosamente queles motivos no pulsados,
queles contrapontos no localizados, e no d conta nem da variabilidade deles nem de sua fixidez. Pois
no umaououtra, fixidez ou variabilidade, mas certos motivos ou pontos s esto fixos se outros sovariveis, ou ento s esto fixados numa ocasio para serem variveis em outra.
Seria preciso antes dizer que os motivos territoriais formamrostos ou personagens rtmicos, e os
contrapontos territoriais,paisagens meldicas. H personagem rtmico quando no mais nos
encontramos na situao simples de um ritmo que seria ele mesmo associado a um personagem, a um
sujeito ou a uma impulso: agora, o prprio ritmo que todo o personagem e que, a este ttulo, pode
continuar constante, mas igualmente aumentar ou diminuir, por adio ou remoo de sons, de
duraes sempre crescentes ou decrescentes, por amplificao ou eliminao que fazem morrer ou
ressuscitar, aparecer e desaparecer. Outrossim, a paisagem meldica j no uma melodia associada a
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uma paisagem, a prpria melodia que faz uma paisagem sonora e toma como contraponto todos os
vnculos com uma paisagem virtual. por isso que samos do estgio da placa: pois se cada qualidade
expressiva, se cada matria de expresso considerada em si mesma uma placa ou um cartaz, essa
considerao no deixa de ser abstrata. As qualidades expressivas entram umas com as outras em
vnculos variveis ou constantes ( o quefazemas matrias de expresso), para constituir, no mais
placas que marcam um territrio, porm motivos e contrapontos, que exprimem o vnculo do territrio
com impulses interiores ou circunstncias exteriores, mesmo que estas no estejam dadas. No mais
assinaturas, mas um estilo. O que distingue objetivamente um pssaro msico de um pssaro no
msico , precisamente, essa aptido aos motivos e aos contrapontos que, variveis ou at constantes,
fazem disso outra coisa que no um cartaz, fazem disso um estilo, pois articulam o ritmo e harmonizam
a melodia. Pode-se dizer, ento, que o pssaro msico passa da [392] tristeza alegria, ou ento que elesada o nascer do sol, ou ento que ele mesmo se pe em perigo por cantar, ou ento que ele canta
melhor que outro etc. Nenhuma dessas frmulas comporta o menor perigo de antropomorfismo, ou
implica a menor interpretao. Antes seria um geomorfismo. no motivo e no contraponto que est
dado o vnculo com a alegria e a tristeza, com o sol, com o perigo, com a perfeio, mesmo que o termo
de cada um desses vnculos no esteja dado. no motivo e no contraponto que o sol, a alegria ou a
tristeza, o perigo, devm sonoros, rtmicos ou meldicos12.
A msica do homem, tambm ela passa por isso. Para Swann amante da arte, a pequena frase de
Vinteuil age amide como uma placa associada paisagem do bosque de Boulogne, ao rosto e ao
personagem de Odette: como se ela trouxesse a Swann a segurana de que o bosque de Boulogne foi
sim seu territrio, e Odette sua posse. J h muita arte nessa maneira de ouvir a msica. Debussy
criticava Wagner comparando os leitmotive a placasviiindicadoras que assinalariam as circunstncias
ocultas de uma situao, as impulses secretas de um personagem. E assim mesmo, num nvel ou em
certos momentos. Todavia, mais a obra se desenvolve, mais os motivos entram em conjuno, mais elesconquistam seu prprio plano, mais eles ganham autonomia relativamente ao dramtica, s
impulses, s situaes, vo ficando mais independentes dos personagens e das paisagens, para devirem
paisagens meldicas, personagens rtmicos que no cessam de enriquecer suas relaes internas. A ento
podem permanecer relativamente constantes, ou ao contrrio aumentar ou diminuir, crescer e decrescer,
variar de velocidade de desenrolamento: nos dois casos, deixaram de ser pulsados e localizados, mesmo
as constantes esto pela variao, e eles tanto se endurecem quanto mais provisrios so, quanto mais
12Sobre todos esses pontos, cf. Claude Samuel,Entretiens avec Olivier Messiaen, cap. IV, e, sobre a noo de personagemrtmico, pp. 70-74.
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fazem valer essa variao contnua qual resistem13. Precisamente, Proust est dentre os primeiros a
sublinhar essa vida do motivo wagneriano: ao invs do motivo estar a um personagem que aparece,
cada apario do motivo que constitui ela mesma um personagem rtmico, na plenitude de uma msica
que tantas outras msicas, com efeito, preenchem, cada qual delas um serviii. E no por acaso se a
aprendizagem da [393]Buscapersegue uma descoberta anloga a respeito das pequenas frases de
Vinteuil: elas no remetem a uma paisagem, mas trazem e desenvolvem em si mesmas paisagens que no
existem mais afora (a branca sonata e o septuor rubro...). A descoberta da paisagem propriamente
meldica e do personagem propriamente rtmico marca esse momento da arte enquanto ela deixa de ser
uma pintura muda numa tabueta. Talvez no seja esta a derradeira palavra da arte, mas a arte passou por
isso, assim como o pssaro, motivos e contrapontos que formam um autodesenvolvimento, isto , um
estilo. A interiorizao da paisagem sonora ou meldica pode encontrar sua forma exemplar em Liszt,bem como a interiorizao do personagem rtmico encontraria a sua em Wagner. Mais geralmente, o
lied a arte musical da paisagem, a forma mais pictural da msica, a mais impressionista. Os dois plos,
porm, esto a tal ponto ligados que, tambm no lied, a Natureza aparece como personagem rtmico s
transformaes infinitas.
O territrio primeiramente a distncia crtica entre dois seres de mesma espcie: marcar suas
distncias. O que meu primeiramente minha distncia, eu s possuo distncias. No quero que me
toquem, eu rosno se entram em meu territrio, coloco placas. A distncia crtica um vnculo que
decorre das matrias de expresso. Trata-se de manter distncia as foras do caos que batem porta.
Maneirismo: o ethos de uma s vez morada e maneira, ptria e estilo. Bem se v isso nas danas
territoriais ditas barrocas, ou maneiristas, onde cada pose, cada movimento instaura uma tal distncia
(sarabandas, allemandas, bourres, gavotas...14). H toda uma arte das poses, das posturas, das silhuetas,
dos passos e das vozes. Dois esquizofrnicos se falam, ou perambulam, seguindo leis de fronteira e de
territrio que podem nos escapar. A que ponto importante, quando o caos ameaa, traar umterritrio transportvel e pneumtico. Por necessidade, tomarei meu territrio sobre meu prprio corpo,
eu territorializo meu corpo: a casa da tartaruga, o ermitgio do crustceo, mas tambms todas as
tatuagens que fazem do corpo um territrio. A distncia crtica no uma medida, um ritmo. Mas,
justamente, o ritmo est pego num devir que arrasta as distncias entre personagens, para delas fazer
personagens rtmicos, mais ou menos distantes, mais ou menos combinveis (intervalos). [394] Dois
animais de mesmo sexo e de uma mesma espcie se afrontam; o ritmo de um cresce quando ele se
13Pierre Boulez, Le temps re-cherch, inDas Rheingold, Bayreuth, 1976, pp. 5-15.14Sobre o maneirismo e o caos, sobre as danas barrocas, e tambm sobre o vnculo da esquizofrenia com o maneirismo eas danas, cf. Evelyne Sznycer, Droit de suite baroque, inSchizophrnie et art, de Lo Navratil, Ed. Complexe [1978].
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aproxima do seu territrio ou do centro desse territrio, o ritmo do outro decresce quando ele se
distancia do seu, e entre os dois, sobre as fronteiras, uma constante oscilatria se estabelece: um ritmo
ativo, um ritmo sofrido, um ritmo testemunha15? Ou ento o animal entreabre seu territrio ao parceiro
do outro sexo: forma-se um personagem rtmico complexo, em duos, cantos alternados ou antifnicos,
como entre os picanos africanosix. Mais ainda, preciso levar em conta simultaneamente dois aspectos
do territrio: no s ele assegura e regulamenta a coexistncia dos membros de uma mesma espcie,
separando-os, mas torna possvel a coexistncia de um mximo de espcies diferentes num mesmo meio,
especializando-as. ao mesmo tempo que os membros de uma mesma espcie entram em personagens
rtmicos e que as diversas espcies entram em paisagens meldicas, as paisagens sendo povoadas por
personagens, os personagens pertencendo a paisagens. Assim aChronochromie, de Messiaenx, com
dezoito cantos de pssaros, formando de uma vez s personagens rtmicos autnomos e realizando umaextraordinria paisagem em contrapontos complexos, acordes subentendidos ou inventados.
A arte no s no espera o homem para comear, mas pode-se perguntar se a arte jamais
apareceu entre o homem, salvo em condies tardias e artificiais. Freqentemente se observou que a arte
humana ficava por muito tempo tomada nos trabalhos e ritos de uma outra natureza. Todavia, talvez
essa observao no tenha tanto alcance quanto aquela que faria a arte comear com o homem. Pois
verdade que, num territrio, dois efeitos notveis se do:uma reorganizao das funes, um
reagrupamento das foras. De um lado, atividades funcionais no so territorializadas sem ganharem uma
nova andadura (criao de novas funes como construir uma residncia, transformao de antigas
funes, como a agressividade que muda de natureza devindo intra-especfica). H nisso como que o
tema nascente da especializao ou da profisso: se o ritornelo territorial passa to freqentemente nos
ritornelos profissionais, que as profisses supem que atividades funcionais diversas se exercem num
mesmo meio, mas tambm que a mesma atividade no tem outros agentes no mesmo territrio.
Ritornelos profissionais se cruzam no meio, como os gritos dos mercadores, mas cada um dessesritornelos marca um territrio onde no se [395] pode exercer a mesma atividade nem repercutir o
mesmo grito. No animal como no homem, so as regras de distncia crtica para o exerccio da
concorrncia: meu cantinho de calada. Em suma, h uma territorializao das funes que a condio
de seu surgimento como trabalhos ou ofcios. neste sentido que a agressividade intra-especfica ou
especializada , em primeiro lugar, necessariamente uma agressividade territorial, que no explica o
territrio porque dele decorre. De chofre, reconhecer-se- que no territrio todas as atividades ganham
15Lorenz,L'agression, p. 46. Sobre os trs personagens rtmicos definidos respectivamente como ativo, passivo etestemunha, cf. Messiaen e Gola, pp. 90-91.
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uma andadura prtica nova. Mas isso no uma razo para se concluir que a arte no existe a por si
mesma, j que ela est presente no fator territorializante que condiciona a emergncia da funo-
trabalho.
E o mesmo se d quando se considera o outro efeito da territorializao. Esse outro efeito, que j
no remete a trabalhos, mas a ritos ou religies, consiste no seguinte: o territrio reagrupa todas as
foras dos diferentes meios numa gavela s, constituda pelas foras da terra. somente no mais
profundo de cada territrio que se faz a atribuio de todas as foras difusas na terra como receptculo
ou soclo. O meio circundeante sendo vivido como uma unidade, s dificilmente se saberia distinguir
nessas instituies primrias o que pertence terra propriamente dita daquilo que apenas manifestado
atravs dela, montanhas, florestas, guas, vegetao. As foras do ar ou da gua, o pssaro e o peixe,
devm assim foras da terra. Mais ainda, se o territrio em extenso separa as foras interiores da terra eas foras exteriores do caos, o mesmo no se d em intenso, em profundidade, onde ambos os tipos
de foras se estreitam e se esposam num combate que tem apenas a terra como crivo e como aposta. No
territrio, h sempre um lugar onde todas as foras se renem, rvore ou arvoredo, num corpo-a-corpo
de energias. A terra esse corpo-a-corpo. Esse centro intenso est de uma s vez no territrio mesmo,
mas tambm fora de vrios territrios que convergem pra ele no fim de uma imensa peregrinao
(donde as ambigidades do natal). Nele ou fora dele, o territrio remete a um centro intenso que
como que a ptria desconhecida, fonte terrestre de todas as foras, amigveis ou hostis, e onde tudo se
decide16.A tambm, ento, devemos reconhecer que a religio, comum ao homem e ao [396] animal,
s ocupa o territrio porque ela depende, como de sua condio, do fator bruto esttico,
territorializante. ele que, todo junto, organiza as funes de meio em trabalhos, e liga as foras de caos
em ritos e religies, foras da terra. ao mesmo tempo que as marcas territorializantes se desenvolvem em
motivos e contrapontos, e que elas reorganizam as funes, reagrupam as foras. Contudo, por isso mesmo o
territrio j desencadeia alguma coisa que vai ultrapass-lo.Somos sempre reconduzidos a esse momento: o devir-expressivo do ritmo, a emergncia das
qualidades-prprias expressivas, a formao de matrias de expresso que se desenvolvem em motivos e
contrapontos. Seria ento preciso uma noo, mesmo de aparncia negativa, para apreender esse
momento, bruto ou fictcio. O essencial est na decalagem que se constata entre o cdigo e o territrio.
O territrio surge numa margem de liberdade do cdigo, no indeterminada, mas determinada de outro
jeito. Se verdade que cada meio tem seu cdigo, e que h perpetuamente transcodificao entre os
16Cf. Mircea Eliade,Trait d'histoire des religions, Payot [1949]. Sobre a intuio primria da terra como forma religiosa,pp. 213 sq.; sobre o centro do territrio, pp. 324 sq. Eliade marca bem que o centro est de uma s vez fora do territrioe bem difcil de alcanar, mas que ele est tambm no territrio, ao nosso imediato alcance.
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meios, parece ao contrrio que o territrio se forma ao nvel de uma certadescodificao. Os bilogos
sublinharam a importncia dessas margens determinadas, mas que no se confundem com mutaes,
isto , com mudanas interiores ao cdigo: trata-se, desta vez, de genes desdobrados ou de cromossomos
supranumerrios, que no esto pegos no cdigo gentico, que so funcionalmente livres e oferecem
uma matria livre variao17. Mas que uma tal matria possa criar novas espcies independentemente
das mutaes continuaria bem improvvel, se os acontecimentos de uma outra ordem no se juntassem
a ela, capazes de multiplicar as interaes do organismo com seus meios. Ora, a territorializao
precisamente um tal fator que se estabelece nas margens de cdigo de uma mesma espcie, e que d aos
representantes separados dessa espcie a possibilidade de se diferenciar. porque a territorialidade est
em decalagem relativamente ao cdigo da espcie que ela pode induzir indiretamente novas espcies.
Em toda parte onde a territorialidade aparece, ela instaura umadistncia crticaintra-especfica entremembros de uma mesma espcie; e em virtude de sua prpria decalagem relativamente sdiferenas
especficasque ela devm um meio [moyenxi] de diferenciao indireta, oblqua. Em todos estes sentidos,
a decalagem aparece mesmo como o negativo do territrio; e a distino [397] mais evidente entre os
animais de territrio e os animais sem territrio, que os primeiros so muito mais codificados que os
outros. Falamos mal o bastante do territrio para avaliar agora todas as criaes que tendem a ele, que
nele se fazem ou dele saem, que vo sair dele.
Ns fomos das foras do caos s foras da terra. Dois meios ao territrio. Dos ritmos funcionais
ao devir-expressivo do ritmo. Dos fenmenos de transcodificao aos fenmenos de descodificao. Das
funes de meio s funes territorializadas. Trata-se menos de evoluo que de passagem, de pontes, de
tneis. Os meios j deixavam de passar uns nos outros. Mas eis que os meios passam no territrio. As
qualidades expressivas, aquelas que chamamos de estticas, certamente no so qualidades puras, nem
simblicas, mas qualidades-prprias, isto , apropriativas, passagens que vo de componentes de meio a
componentes de territrio. O prprio territrio lugar de passagem. O territrio o primeiroagenciamento, a primeira coisa que faz agenciamento, o agenciamento primeiramente territorial. Mas
como j no estaria ele em vias de passar pra outra coisa, noutros agenciamentos? Eis por que no
podamos falar da constituio do territrio sem j falar de sua organizao interna. No podamos
descrever o infra-agenciamento (cartazes ou placas) sem j estarmos no intra-agenciamento (motivos e
contrapontos). Nada podemos dizer tampouco sobre o intra-agenciamento sem j estarmos na via que
nos leva a outros agenciamentos, ou alhures. Passagem do Ritornelo. O ritornelo vai at o agenciamento
17Os bilogos freqentemente distinguiram dois fatores de transformao: uns, do tipo mutaes, mas os outros, processosde isolamento ou de separao, que podem ser genticos, geogrficos ou at psquicos; a territorialidade seria um fator dosegundo tipo. Cf. Cunot,L'espce, Ed. Doin [1936].
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territorial, nele se instala ou dele vai saindo. Num sentido geral,chama-se ritornelo todo conjunto de
matrias de expresso que traa um territrio, e que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens
territoriais(h ritornelos motores, gestuais, pticos etc.). Num sentido restrito, fala-se de ritornelo
quando o agenciamento sonoro ou dominado pelo som mas por que esse aparente privilgio?
Estamos agora no intra-agenciamento. Ora, ele apresenta uma organizao bem rica e complexa.
No s ele compreende o agenciamento territorial, mas tambm as funes agenciadas, territorializadas.
Que seja os Trogloditas, famlia de passeriformesxii: o macho toma posse do seu territrio e produz um
ritornelo de caixa de msica, como de guarda montada contra os possveis intrusos; ele mesmo contri
ninhos nesse territrio, s vezes uma dzia; quando chega uma fmea, ele se coloca diante de um ninho,
lha convida a visit-lo, deixa suas asas penderem, [398] abaixa a intensidade do seu canto que ento se
reduz a um s gorjeio18
. O que aparece a funo de nidificao fortemente territorializada, pois osninhos so preparados pelo macho sozinho antes da chegada da fmea, que no faz seno visit-los e
conclu-los; a funo de cortjoxiii igualmente territorializada, mas num grau menor, pois o ritornelo
territorial muda de intensidade para se fazer sedutor. No intra-agenciamento, toda sorte de
componentes heterogneas intervm: no apenas as marcas do agenciamento, que renem materiais,
cores, odores, sons, posturas etc., mas os diversos elementos deste ou daquele comportamento
agenciado, que entram num motivo. Por exemplo, um comportamento de parada nupcial compe-se de
dana, estalo de bico, exibio de cores, postura do pescoo alongado, gritos, alisamento de penas,
reverncias, ritornelo... Uma primeira questo seria saber o que faz ficarem juntas todas essas marcas
territorializantes, esses motivos territoriais, essas funes territorializadas num mesmo intra-
agenciamento. uma questo deconsistncia: o ficar-junto de elementos heterogneos.
Primeiramente, eles constituem apenas um conjunto brumosoxiv, um conjunto discreto, que ganhar
consistncia...
Mas uma outra questo parece interromper ou recortar essa da. Pois, em muitos casos, umafuno agenciada, territorializada, adquire bastante independncia para formar ela prpria um novo
agenciamento, mais ou menos desterritorializado, em vias de desterritorializao. No h necessidade de
abandonar efetivamente o territrio para entrar nesta via; mas o que, h pouco, era uma funo
constituda no agenciamento territorial, devm agora o elemento constituinte de outro agenciamento, o
elemento de passagem a outro agenciamento. Como no amor corts, uma cor deixa de ser territorial par
entrar num agenciamento de cortjo. H uma abertura do agenciamento territorial para um
agenciamento de cortjo, ou para um agenciamento social autonomizado. o que ocorre quando se faz
18Paul Groudet,Les passereaux, Delachaux et Nistl [1951], t. II, pp. 88-94.
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um reconhecimento prprio do parceiro sexual, ou dos membros do grupo, que j no se confunde com
o reconhecimento do territrio: ento se diz que o parceiro umTier mit der Heimvalenz, um animal
valendo pela quernciaxv. No conjunto dos grupos ou dos pares, poder-se- ento distinguir grupos e
pares de meio, sem reconhecimento individual, grupos e pares territoriais, enfim grupos sociais e pares
amorosos, quando o reconhecimento se faz independentemente do [399] lugar19. O cortjo, ou o grupo,
j no fazem parte do agenciamento territorial, mas h autonomizao de um agenciamento de cortjo
ou de grupo mesmo que se permanea no interior do territrio. Inversamente, no seio do novo
agenciamento, uma reterritorializao se faz, sobre o membro do par ou sobre os membros do grupo
que valem-por (valncia). Uma tal abertura do agenciamento territorial sobre outros agenciamentos
pode ser analisada em detalhe, e varia muito. Por exemplo, quando no o macho que faz o ninho,
quando o macho se contenta em transportar os materiais ou arremedar a construo, como entre osTentilhes da Austrlia, ora ele faz o cortjo fmea com um raminho de palha no bico (gnero
Bathilda), ora utiliza outro material que no do ninho (gnero Neochmia), ora o raminho de grama s
serve nas fases iniciais do cortjo ou at antes (gneros Aidemosyne ou Lonchura), ora a grama
beliscada sem ser oferecida (gnero Emblema20). Sempre se pode dizer que esses comportamentos de
raminho de grama so to somente arcasmos, ou vestgios de um comportamento de nidificao. Mas
a noo de comportamento que se revela insuficiente relativamente de agenciamento. Pois, quando o
ninho no foi feito j pelo macho, a nidificao deixa de ser uma componente do agenciamento
territorial, de certa forma ela descola do territrio; mais ainda, o prprio cortjo, que precede ento a
nidificao, devm um agenciamento relativamente autonomizado. E a matria de expresso raminho
de grama age como uma componente de passagem entre o agenciamento territorial e o agenciamento
de cortjo. Que o raminho de grama, ento, tenha uma funo mais e mais rudimentar em certas
espcies, que ele tenda a se anular numa srie considerada, no basta pra fazer dele um vestgio, muito
menos um smbolo. Nunca uma matria de expresso vestgio ou smbolo. O raminho de grama umacomponente desterritorializada, ou em vias de desterritorializao. No um arcasmo, nem um objeto
parcial ou transicional. um operador, um vetor. um conversor de agenciamento. a ttulo de
componente de passagem, de um agenciamento a outro, que o raminho se anula. E o que confirma esse
ponto de vista que o raminho no tende a se anular sem que uma componente de revezamento o
substitua e ganhe cada vez mais importncia: a saber, o ritornelo, [400] que j no apenas territorial,
19Em seu livro sobreA agresso, Lorenz distinguiu bem os bandos annimos, do tipo cardume de peixes, que formamblocos de meio; os grupos locais, onde o reconhecimento se faz somente no seio do territrio e incide ao mximo sobreos vizinhos; enfim, as sociedades fundadas num liame autnomo.
20K. Immelmann,Beitrge zu einer vergleichenden Biologie australischer Prachtfinken, Zool. Jahrb. Syst., 90, 1962.
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mas devm amoroso e social, e conseqentemente muda21. Por que a componente sonora ritornelo
tem, na constituio de novos agenciamentos, uma valncia mais forte que a componente gestual
raminho de grama, uma questo que s mais tarde se poder considerar. O importante para o
momento constatar essa formao de novos agenciamentos no agenciamento territorial, esse
movimento que vai do intra-agenciamento a inter-agenciamentos, com componentes de passagem e de
revezamento. Abertura inovadora do territrio junto fmea, ou ento junto ao grupo. A presso
seletiva passa pelos inter-agenciamentos. como se foras de desterritorializao trabalhassem o prprio
territrio e nos fizessem passar do agenciamento territorial a outros tipos de agenciamento, de cortjo
ou de sexualidade, de grupo ou de sociedade. O raminho de grama e o ritornelo so dois agentes dessas
foras, dois agentes de desterritorializao.
O agenciamento territorial no pra de passar noutros agenciamentos. Assim como o infra-agenciamento no separvel do intra-agenciamento, o intra-agenciamento tampouco o dos inter-
agenciamentos e, no entanto, as passagens no so necessrias, e so feitas segundo o caso. A razo
disso simples: o intra-agenciamento, o agenciamento territorial, territorializa funes e foras,
sexualidade, agressividade, gregaridade etc., e as transforma territorializando-as. Mas essas funes e
essas foras territorializadas podem, de chofre, ganhar uma autonomia que as faz despenhar noutros
agenciamentos, compr outros agenciamentos desterritorializados. A sexualidade pode aparecer como
uma funo territorializada no intra-agenciamento; mas ela pode igualmente traar uma linha de
desterritorializao que descreve outro agenciamento; donde os vnculos bem variveis sexualidade-
territrio, como se a sexualidade tomasse sua distncia... A profisso, o ofcio, a especialidade
implicam atividades territorializadas; mas elas tambm podem descolar do territrio para construir em
torno de si, e entre profisses, um novo agenciamento. Uma componente territorial ou territorializada
pode [401] comear a brotar, a produzir: de tanto que isso o caso do ritornelo seria preciso talvez
chamar de ritornelo tudo o que est nesse caso. Aquele equvoco entre a territorialidade e adesterritorializao o equvoco do Natal. bem melhor compreendido se fr considerado que o
territrio remete a um centro intenso no mais profundo de si; mas precisamente, ns vimos, este centro
intenso pode estar situado fora do territrio, no ponto de convergncia de territrios bem diferentes ou
bem longnquos. O Natal est fora. Pode-se citar um certo nmero de casos clebres e perturbadores,
21Eibl-Eibesfeldt,Ethologie, p. 201: A partir do transporte de materiais para a construo do ninho, no comportamentode cortjo do macho, desenvolveram-se aes que empregam raminhos de grama; em certas espcies, os raminhos
devieram cada vez mais rudimentares; ao mesmo tempo, o canto desses pssaros, que primitivamente serviam paradelimitar o territrio, sofre uma mudana de funo quando esses pssaros devm muito sociveis. Os machos, emsubstituio ao cortjo com oferecimento de grama, cantam docemente bem pertinho da fmea. Eibl-Eibesfeldt,todavia, interpreta o comportamento do raminho de grama como um vestgio.
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mais ou menos misteriosos, ilustrando prodigiosos descolamentos de territrio, fazendo com que
assistamos a um vasto movimento de desterritorializao em plena tomada dos territrios, e
atravessando-os de cabo a rabo: 1) as peregrinaes s fontes, como dos salmes; 2) os reajuntamentos
supranumerrios, como dos gafanhotos, dos tentilhes etc. (dezenas de milhares de tentilhes perto de
Thounexviem 1950-1951); 3) as migraes solares ou magnticas; 4) as longas marchas, como das
lagostas22.
Sejam quais forem as causas de cada um desses movimentos, bem se v que a natureza do
movimento muda. Nem mesmo basta dizer que h inter-agenciamento, passagem de um agenciamento
territorial a outro tipo; o que antes se diria que se est saindo de todo agenciamento, excedendo as
capacidades de todo agenciamento possvel, para entrar num outro plano. E, com efeito, j no um
movimento nem um ritmo de meio, tampouco um movimento ou um ritmo territorializantes outerritorializados; agora h Cosmos nesses movimentos mais [402] amplos. Os mecanismos de localizao
no deixam de ser extremamente precisos, mas a localizao deveio csmica. J no so as foras
territorializadas, reunidas em foras da terra; so as foras reencontradas ou liberadas de um Cosmos
desterritorializado. Na migrao, o sol j no o sol terrestre que reina sobre o territrio, mesmo que
areo; o sol celeste do Cosmos, como nas duas Jerusalns, Apocalipse. Porm, fora desses casos
grandiosos, onde a desterritorializao se faz absoluta, sem nada perder de sua preciso (pois ela esposa
variveis csmicas), j preciso constatar que o territrio no deixa de ser percorrido por movimentos
de desterritorializao relativa e at no mesmo lugar, onde se passa do intra-agenciamento a inter-
agenciamentos, sem que haja necessidade de abandonar o territrio, nem de sair dos agenciamentos para
esposar o Cosmos. Um territrio est sempre em vias de desterritorializao, ao menos potencial, em
vias de passagem a outros agenciamentos, pronto para que outro agenciamento opere uma
reterritorializao (algo que valha a querncia)... Vimos que o territrio se constitua sobre uma
margem de descodificao que afeta o meio; vimos que uma margem de desterritorializao afeta oterritrio em si mesmo. uma srie de desengates. O territrio no separvel de certos coeficientes de
22Cf.L'Odysse sous-marine de l'quipe Cousteau, film n 36, commentaire Cousteau-Diol, La marche des langoustes(L.R.A.):ocorre s lagostas espinhosas, ao longo da costa norte de Yucatn, deixarem seus territrios. Primeiro elas se renem empequenos grupos, antes da primeira tempestade de inverno, e antes que um signo seja detectado nas escala dos aparelhoshumanos. Depois, quando a tempestade chega, elas formam longas procisses de marcha, em fila indiana, com um chefeque se reveza e uma retaguarda (velocidade da marcha 1km/h sobre 100km ou mais). Essa migrao no parece ligada desova, que s acontecer daqui a seis meses ou mais tarde. Hernnkind, especialista das lagostas, supe que se trata deum vestgio do ltimo perodo glacial (h mais de dez mil anos). Cousteau pende para uma interpretao mais atual,pronto para invocar a premonio de um novo perodo glacial. Com efeito, a questo de fato que o agenciamento
territorial das lagostas abre-se aqui, excepcionalmente, sobre um agenciamento social; e que esse agenciamento social estvinculado com foras do cosmos, ou, como diz Cousteau, das pulsaes da terra. Da que o enigma permaneceinteirio: e mais ainda porque essa procisso das lagostas a ocasio de um massacre pelos pescadores; e que, por outrolado, esses animais no podem ser marcados, em razo da muda das carapaas.
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desterritorializao, avaliveis em cada caso, fazendo variar os vnculos de cada funo territorializada
com o territrio, mas tambm os vnculos do territrio com cada agenciamento desterritorializado. E a
mesma coisa que aparece aqui como funo territorializada, pga no intra-agenciamento, e acol como
agenciamento autnomo ou desterritorializado, inter-agenciamento.
Eis por que uma classificao dos ritornelos poderia ser apresentada assim: 1) os ritornelos
territoriais, que buscam, marcam, agenciam um territrio; 2) os ritornelos de funes territorializadas,
que ganham uma funo especial no agenciamento (o Acalanto, que territorializa o sono e a criana; o
Amoroso, que territorializa a sexualidade e o amado; o Profissional, que territorializa o ofcio e os
trabalhos; a Mercantil, que territorializa a distribuio e os produtos...); 3) os mesmos, enquanto
marcam agora novos agenciamentos, enquanto passam para novos agenciamentos, por
desterritorializao-reterritorializao (as parlendas [comptines] seriam um caso complicadssimo: soritornelos territoriais, que no se canta da mesma maneira de um bairro pra outro, s vezes de uma rua
pra outra; elas distribuem papis e funes de jogo no agenciamento territorial; mas tambm fazem o
territrio passar no agenciamento de jogo que, ele prprio, tende a devir [403] autnomo23); 4) os
ritornelos que reamontoam ou reajuntam as foras, seja no seio do territrio, seja para ir afora (so
ritornelos de enfrentamento, ou de partida, que por vezes engajam um movimento de
desterritorializao absoluta, Adeus, estou partindo sem desviar os olhosxvii. Ao infinito, esses ritornelos
devem juntar-se s canes de Molculas, aos vagidos de recm-nascidos dos Elementos fundamentais,
como diz Millikan. Eles deixam de ser terrestres para devirem csmicos: quando o Nomo religioso
desabrocha e se dissolve num Cosmos pantesta molecular; quando o canto dos pssaros d lugar s
combinaes da gua, do vento, das nuvens e das nvoas. L fora o vento, a chuva...xviiiO Cosmos
como imenso ritornelo desterritorializado).
O problema daconsistnciadiz bem respeito maneira pela qual ficam juntas as componentes de
um agenciamento territorial. Mas ele tambm diz respeito maneira pela qual agenciamentos diferentesse mantm, com componentes de passagem e de revezamento. Pode at ser que a consistncia s
encontre a totalidade de suas condies num plano propriamente csmico, onde todos os disparates e os
heterogneos so convocados. Contudo, cada vez que heterogneos ficam juntos num agenciamento ou
em inter-agenciamentos, um problema de consistncia j se coloca, em termos de coexistncia ou de
sucesso, e ambos de uma vez s. Mesmo num agenciamento territorial, talvez seja a componente mais
23O melhor livro de parlendas, e sobre as parlendas, parece-nos serLes comptines de langue franaise, com os comentrios
de Jean Beaucomont, Franck Guibat e colab., Seghers [1961]. O carter territorial aparece num exemplo privilegiadocomo Pimpanicaille, que tem duas verses distintas em Gruyres, segundo os dois lados da rua (pp. 27-28); mas sh parlenda propriamente falando quando h distribuio de papis especializados num jogo, e formao de umagenciamento autnomo de jogo, que reorganiza o territrio.
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desterritorializada, o vetor desterritorializante, como o ritornelo, que assegura a consistncia do
territrio. Se colocamos a questo geral O que faz ficar junto?, parece que a resposta mais clara, a mais
fcil, seja dada por um modeloarborescente, centralizado, hierarquizado, linear, formalizador. Por
exemplo, o esquema de Tinbergen, que mostra um encadeamento codificado de formas espao-
temporais no sistema nervoso central: um centro superior funcional entra automaticamente em ato e
desencadeia um comportamento de apetncia, na busca de estmulos especficos (centro de migrao);
pelo intermdio do estmulo, um segundo centro, at ento inibido, encontra-se liberado, que
desencadeia um novo comportamento de apetncia (centro de territrio); da outros centros
subordinados de combate, de nidificao, de cortjo..., at os estmulos que desencadeiam os atos de
execuo correspondentes24. Tal representao, todavia, construda sobre binaridades simples demais:
inibio-desencadeamento, inato-adquirido etc. Os etlogos tm uma grande vantagem sobre osetnlogos: no tombaram no perigo estrutural que divide um terreno em formas de parentesco, de
poltica, de economia, de mito etc. Os etlogos resguardaram a integralidade de um certo terreno no
dividido. Porm, fora de ainda assim orient-lo com eixos de inibio-desencadeamento, de inato-
adquirido, eles correm o risco de reintroduzir almas ou centros em cada lugar e em cada etapa dos
encadeamentos. Eis por que at os autores que muito insistem no papel do perifrico e do adquirido, no
nvel dos estmulos de desencadeamento, no revertem verdadeiramente o esquema linear arborescente,
mesmo que invertam o sentido das flechas.
Parece-nos mais importante sublinhar um certo nmero de fatores aptos a sugerirem todo um
outro esquema, em favor de um funcionamento rizomtico e no mais arborificado, que j no passaria
por esses dualismos. Em primeiro lugar, aquilo que se chama de um centro funcional pe em jogo, no
uma localizao, mas a repartio de toda uma populao de neurnios selecionados no conjunto do
sistema nervoso central, como numa rede de fiao. A ento, no conjunto desse sistema considerado
por si mesmo (experincias em que as vias aferentes so seccionadas), se falar menos do automatismode um centro superior do que de coordenao entre centros, e de agrupamentos celulares ou de
populaes moleculares operando esses acoplamentos: no h uma forma ou uma boa estrutura que se
impe, nem de fora nem por cima, mas antes uma articulao por dentro, como se molculas oscilantes,
osciladores, passassem de um centro heterogneo a outro, mesmo que para assegurar a dominncia do
uno25. O que evidentemente exclui a [405] relao linear de um centro a outro, em proveito de pacotes
24Tinbergen,The Study of Instinct, Oxford University Press [1951].
25Por um lado, as experincias de W. R. Hess mostraram que havia, no tal centro cerebral, mas pontos, concentradosnuma zona, disseminados numa outra, capazes de provocar o mesmo efeito; inversamente, o efeito pode mudarconforme a durao e a intensidade da excitao do mesmo ponto. Por outro lado, as experincias de Von Holst sobre ospeixes desaferentados mostram a importncia de coordenaes nervosas centrais nos ritmos de nadadeiras: interaes
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de relaes pilotados pelas molculas: a interao, a coordenao, pode ser positivaounegativa
(desencadeamento ou inibio), ela jamais direta como numa relao linear ou numa reao qumica,
ela sempre se faz entre molculas de pelos menos duas cabeas, e cada centro separadamente26.
H nisso toda uma maqunica biolgico-comportamental, todo umengineeringmolecular que
deve nos fazer compreender melhor a natureza dos problemas de consistncia. O filsofo Eugne
Duprel tinha proposto uma teoria daconsolidao; ele mostrava que a vida no ia de um centro a uma
exterioridade, mas de um exterior a um interior, ou antes de um conjunto brumoso ou discreto sua
consolidao. Ora, esta ltima implica trs coisas: que haja no um comeo donde derivaria uma
seqncia linear, mas densificaes, intensificaes, reforos, injees, recheaduras, como outros tantos
atos intercalares (s h crescimento por intercalao). Em segundo lugar, e no o contrrio, preciso
que haja acomodao de intervalos, repartio de desigualdades, a ponto de s vezes, para consolidar, serpreciso fazer um buraco. Em terceiro lugar, superposio de ritmos disparates, articulao por dentro de
uma inter-ritmicidade, sem imposio de medida ou de cadncia27.A consolidao no se contenta em
vir depois, ela criativa. que o comeo s comea entre dois, intermezzo. A consistncia
precisamente a consolidao, o ato que produz o consolidado, tanto de sucesso como de coexistncia,
com os trs fatores: intercalos, intervalos e superposies-articulaes. A arquitetura testemunha disso,
como arte da morada e do territrio: se h consolidaes pra-depois, tambm h as que so partes
constituintes do conjunto, do tipo chave de abbada. Porm, mais recentemente, [406] matrias como o
concreto armado deram ao conjunto arquitetural a possibilidade de se desprender dos modelos
arborescentes, que procediam por pilares-rvores, vigas-galhos, abbada-folhagem. No s o concreto
uma matria heterognea cujo grau de consistncia varia com os elementos de mistura, mas nele o ferro
est intercalado segundo um ritmo; mais ainda, ele forma nassuperfcies auto-portadorasum personagem
rtmico complexo, onde os caules tm sees diferentes e intervalos variveis conforme a intensidade e
a direo da fora a ser captada (armadura e no estrutura). neste sentido tambm que a obra musical
de que o esquema de Tinbergen s secundariamente d conta. Todavia, no problema dos ritmos circadianos que maisse impe a hiptese de uma populao de osciladores, de uma manada de molculas oscilantes, que formariamsistemas de articulaes pelo interior, independentemente de uma medida comum. Cf. A. Reinberg, Lachronobiologie, inSciences, I, 1970; T. van den Driessche e A. Reinberg, Rythmes biologiques, inEncyclopaediaUniversalis, t. XIV, p. 572: No parece possvel reduzir o mecanismo da ritmicidade circadiana a uma seqncia simplesde processos elementares.
26Jacques Monod,Le hasard et la ncessit[Seuil, 1970]: sobre as interaes indiretas e seu carter no linear, pp. 84-85,90-91; sobre as molculas correspondentes, bicfalas pelo menos, pp. 83-84; sobre o carter inibidor ou desencadeadordessas interaes, pp. 78-81. Os ritmos circadianos dependeriam tambm desses caracteres (cf. quadro inEncyclopaedia
Universalis).27Duprel elaborou um conjunto de noes originais, consistncia (em vnculo com precaridade), consolidao,intervalo, intercalao. Cf.Thorie de la consolidation,La cause et l'intervalle,La consistance et la probabilit objective,Bruxelas;Esquisse d'une philosophie des valeurs, P.U.F.xix; Bachelard as reivindica emLa dialectique de la dure.
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ou literria tem uma arquitetura: saturar o tomo, dizia Virginia Woolf; ou ento, segundo Henry
James, preciso comear longe, to longe quanto possvel, e proceder por blocos de matria
trabalhadaxx. J no se trata de impr uma forma matria, mas de elaborar um material cada vez mais
rico, cada vez mais consistente, apto ento a captar foras cada vez mais intensas. O que torna um
material cada vez mais rico aquilo que faz ficarem juntos os heterogneos, sem que eles deixem de ser
heterogneos; o que faz com que assim fiquem so osciladores, sintetizadores intercalares de pelo menos
duas cabeas; so analisadores de intervalos; so sincronizadores de ritmos (a palavra sincronizador
ambga, pois esses sincronizadores moleculares no procedem por medida igualizadora ou
homogeneizadora, e operam de dentro, entre dois ritmos). No seria a consolidao o nome terrestre da
consistncia? O agenciamento territorial um consolidado de meio, um consolidado de espao-tempo,
de coexistncia e de sucesso. E o ritornelo opera com os trs fatores.Mas preciso que as prprias matrias de expresso apresentem caracteres que tornam possvel
uma tal tomada de consistncia. Vimos, a esse respeito, a aptido delas a entrarem em vnculos internos
que formam motivos e contrapontos: as marcas territorializantes devm motivos ou contrapontos
territoriais, as assinaturas e placas fazem um estilo. Eram os elementos de um conjunto brumoso, ou
discreto; mas elas se consolidam, ganham consistncia. nesta medida tambm que elas tm efeitos,
como reorganizar as funes e reajuntar as foras. Para melhor apreender o mecanismo de uma tal
aptido, pode-se fixar certas condies de homogeneidade e considerar, primeiramente, marcas ou
matrias de uma mesma sorte: por exemplo, um conjunto de marcas sonoras, o canto de um pssaro. O
canto do Tentilho tem normalmente trs frases distintas: a primeira, de quatro a quatorze notas, em
crescendo e diminuio de freqncia; a segunda, de duas a oito notas, de freqncia constante mais
baixa que anteriormente; [407] a terceira, que termina numa fioritura ou num ornamento
complexo. Ora, do ponto de vista da aquisio, esse pleno-canto (full song) precedido por um sub-
canto (sub-song) que, nas condies normais, implica uma posse da tonalidade geral, da durao deconjunto e do contedo das estrofes, e at uma tendncia a terminar numa nota mais alta28. Mas a
organizao em trs estrofes, a ordem de sucesso dessas estrofes, o detalhe do ornamento no esto
dados; dir-se-ia precisamente que o que falta so as articulaes de dentro, os intervalos, as notas
intercalares, tudo o que faz motivo e contraponto. A distino do sub-canto e do pleno-canto poderia
ento ser apresentada assim: o sub-canto como marca ou placa, o pleno-canto como estilo ou motivo, e
a aptido a passar de um a outro, a aptido de um a se consolidar no outro. especialmente bvio que o
28Sobre o canto do tentilho, e a distino dasub-songe daful song, cf. Thorpe,Learning and Instinct in Animals[1956],pp. 420-426.
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isolamento artificial ter efeitos bem diferentes conforme ela sobrevenha antes ou depois da aquisio
das componentes do sub-canto.
Porm, o que nos ocupa neste momento antes saber o que se passa quando essas componentes
efetivamente se desenvolveram em motivos e contrapontos de pleno-canto. A ento, samos
necessariamente das condies de homogeneidade qualitativa que havamos nos concedido. Pois,
enquanto se fica nas marcas, as marcas de um gnero coexistem com as de outro gnero, sem mais: sons
coexistem com cores, com gestos, silhuetas do mesmo animal; ou ento os sons desta espcie coexistem
com os sons de outras espcies, s vezes bem diferentes porm localmente vizinhas. Ora, a organizao
de marcas qualificadas em motivos e contrapontos vai necessariamente acarretar uma tomada de
consistncia, ou uma captura de marcas de outra qualidade, uma aglutinao mtua de sons-cores-
gestos, ou ento de sons de espcies animais diferentes... etc. A consistncia se faz necessariamente deheterogneo a heterogneo: no porque haveria nascimento de uma diferenciao, mas porque os
heterogneos que se contentavam em coexistir ou em se suceder esto agora pegos uns nos outros, pela
consolidao de sua coexistncia e de sua sucesso. que os intervalos, os intercalares e as articulaes,
constitutivos dos motivos e contrapontos na ordem de uma qualidade expressiva, envolvem tambm
outras qualidades de outra ordem, ou ento qualidades da mesma ordem, mas de outro sexo ou at de
outra espcie animal. Uma cor [408] vai responder a um som. No h motivos e contrapontos de uma
qualidade, personagens rtmicos e paisagens meldicas em tal ordem, sem constituio de uma
verdadeirapera maqunicaque rene as ordens, as espcies e as qualidades heterogneas. O que
chamamos maqunica precisamente essa sntese de heterogneos enquanto tal. Enquanto esses
heterogneos so matriasde expresso, dizemos que sua prpria sntese, sua consistncia ou sua captura,
forma um enunciado, uma enunciao propriamente maqunica. Os vnculos variados nos quais
entram uma cor, um som, um gesto, um movimento, uma posio, numa mesma espcie e em diversas
espcies, formam outras tantas enunciaes maqunicas.Voltemos ao Scenopoeetes, o pssaro mgico ou de pera. Ele no tem cores vivas (como se
houvesse inibio). Mas seu canto, seu ritornelo, se ouve de bem longe (seria uma compensao, ou ao
contrrio o fator primrio?). Ele canta sobre sua vareta de cantar (singing stick), cip ou ramo, bem
debaixo da cena que preparou (display ground), marcada pelas folhas cortadas e viradas, que fazem
contraste com a terra. Ao mesmo tempo que canta, ele descobre a raiz amarela de certas penas sob seu
bico: torna-se visvel ao mesmo tempo que sonoro. Seu canto forma um motivo complexo e variado,
urdido com suas notas prprias, e com as de outros pssaros que ele imita nos intervalos29. Forma-se
29A.J. Marshall,Bower birds, The Clarendo Press, Oxford [1954].
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ento um consolidado que consiste em sons especficos, sons de outras espcies, matiz das folhas, cor
de garganta: o enunciado maqunico ou o agenciamento de enunciao do Scenopoeetes. Numerosos
so os pssaros que imitam o canto dos outros. Mas no certo que a imitao seja um bom conceito
para fenmenos que variam conforme o agenciamento no qual entram. Osub-songcontm elementos
que podem entrar em organizaes rtmicas e meldicas distintas daquelas da espcie considerada, e
assim fornecer no pleno-canto verdadeiras notas forasteiras ou anexadas. Se certos pssaros como o
tentilho parecem refratrios imitao, na medida em que os sons forasteiros que eventualmente
sobrevm em seusub-songso eliminados da consistncia do pleno-canto. Ao contrrio, nos casos em
que frases anexadas encontram-se pegas no pleno-canto, pode ser que haja agenciamento inter-especfico
do tipo parasitismo, mas tambm porque o prprio agenciamento do pssaro efetua os contrapontos de
sua melodia. Thorpe no se engana ao dizer que h nisto um problema de ocupao de freqncias,[409] como nas rdios (aspecto sonoro da territorialidade)30.Trata-se menos de imitar um canto do que
ocupar freqncias correspondentes; pois pode ser vantajoso, ora reter-se numa zona bem determinada,
quando alis os contrapontos esto assegurados, ora ao contrrio ampliar ou aprofundar a zona para
assegurar a si mesmo os contrapontos e inventar os acordes que permaneceriam difusos, como naRain-
forest[Selva tropical], onde se encontra precisamente o maior nmero de pssaros imitadores.
Do ponto de vista da consistncia, as matrias de expresso no devem ser vinculadas apenas
sua aptido a formarem motivos e contrapontos, mas aos inibidores e aos desencadeadores que agem
sobre elas, e aos mecanismos de inatidade ou de aprendizagem, de hereditariedade ou de aquisio que
as modulam. S que o erro da etologia reter-se numa repartio binria desses fatores, mesmo e
sobretudo quando se afirma a necessidade de levar em conta os dois de uma s vez, e de mistur-los em
todos os nveis de uma rvore de comportamentos. Ao invs disso, seria preciso partir de uma noo
positiva apta a dar conta do carter bem particular que o inato e o adquirido ganham num rizoma, e
que seria como que a razo de sua mistura. No em termos de comportamento que se a encontrar,mas em termos de agenciamento. Certos autores acentuam os desenrolamentos autnomos codizados
em centros (inatidade); outros acentuam encadeamentos adquiridos regulados por sensaes perifricas
(aprendizagem). Mas j Raymond Ruyer mostrava que o animal antes assaltado por ritmos musicais,
por temas rtmicos e meldicos que no se explicam nem pela codizao de um disco de fongrafo
gravado, nem pelos movimentos de execuo que os efetuam e os adaptam s circunstncias31. Seria
mesmo o contrrio: os temas rtmicos ou meldicos precedem sua execuo e sua gravao. Primeiro
30Thorpe, p. 426. Os cantos colocam, a este respeito, todo um outro problema que o dos gritos, que so freqentementepouco diferenciados, e semelhantes entre diversas espcies.
31Raymond Ruyer,La gense des formes vivantes, cap. VII.
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haveria consistncia de um ritornelo, de uma melodiazinha, seja sob forma de melodia mnmica, que
no teria necessidade de ser inscrita localmente num centro, seja sob forma de motivo vago, que no
teria necessidade de ser j pulsado ou estimulado. Uma noo potica e musical como a do Natal no
lied, ou em Hlderlin, ou ainda em Thomas Hardy talvez nos ensinaria mais do que as categorias um
pouco insssas e embaralhadas de inato e de adquirido. Pois, desde que haja agenciamento territorial,
pode-se dizer que o inato ganha [410] uma figura bem particular, pois ele inseparvel de um
movimento de descodificao, pois ele passa margem do cdigo, contrariamente ao inato do meio
interior; e a aquisio tambm ganha uma figura bem particular, pois ela territorializada, ou seja,
regulamentada sobre matrias de expresso, no mais sobre estmulos do meio exterior. O natal
precisamente o inato, mas o inato codificado, e precisamente o adquirido, mas o adquirido
territorializado. O natal essa nova figura que o inato e o adquirido ganham no agenciamentoterritorial. Donde o afeto prprio ao natal, tal como ele ouvido no lied, de estar sempre perdido, ou
reencontrado, ou de tender para a ptria desconhecida. No natal, o inato tende a se deslocar: como diz
Ruyer, de certa sorte ele est mais frente,a jusantedo ato; ele concerne menos ao ato ou ao
comportamento do que s matrias mesmas de expresso, percepo que as discerne, as seleciona, ao
gesto que as erige, ou que as constitui por si mesmo (eis por que h perodos crticos em que o animal
valoriza um objeto ou uma situao, impregna-se de uma matria de expresso, muito antes de ser
capaz de executar o comportamento correspondente). Isso no dizer, entretanto, que o
comportamento esteja entregue aos acasos da aprendizagem; pois ele est predeterminado por esse
deslocamento, e acha em sua prpria territorializao regras de agenciamento. O natal consiste, ento,
numa descodificao da inatidade e numa territorializao da aprendizagem, uma sobre a outra, uma
com a outra. H uma consistncia do natal que no se explica por uma mistura de inato e de adquirido,
pois ele, ao contrrio, d conta dessas misturas no seio do agenciamento territorial e dos inter-
agenciamentos. Em suma, a noo de comportamento que se revela insuficiente, demasiado linearrelativamente de agenciamento. O natal vai daquilo que se passa no intra-agenciamento at o centro
que se projeta pra fora; ele percorre os inter-agenciamentos, ele vai at as portas do Cosmos.
que o agenciamento territorial no separvel das linhas ou coeficientes de
desterritorializao, das passagens e dos revezamentos para outros agenciamentos. Freqentemente se
estudou a influncia de condies artificiais sobre o canto dos pssaros; mas os resultados variam, de um
lado, com as espcies, de outro, com o gnero e o momento dos artifcios. Muitos pssaros so
permaveis ao canto de outros pssaros, quando levados a ouvirem-no durante o perodo crtico, e
reproduzem em seguida esses cantos forasteiros. Todavia, o tentilho parece bem mais devotado s suas
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prprias matrias de expresso e, mesmo exposto a sons sintticos, ele guarda um sentido inato de sua
prpria tonalidade. Tudo depende tambm do momento em que se isola os pssaros, aps ou antes do
perodo crtico; pois, no primeiro caso, os tentilhes desenvolvem um [411] canto quase normal, ao
passo que, no segundo, os sujeitos do grupo isolado, que s podem ouvir uns aos outros, desenvolvem
um canto aberrante, no especfico e, todavia, comum ao grupo (cf. Thorpe). que, de toda maneira,
preciso levar em conta efeitos da desterritorializao, da des-naturalizao, sobre tal espcie e em tal
momento. Cada vez que um agenciamento territorial pego num movimento que o desterritorializa
(em condies ditas naturais ou, ao contrrio, artificiais), dir-se-ia que uma mquina se desencadeia.
bem a diferena que gostaramos de propr entremquinaeagenciamento: uma mquina como que
um conjunto de pontas que se inserem no agenciamento em vias de desterritorializao, para traar as
variaes e mutaes dele. Pois no h efeitos mecnicos; os efeitos so sempre maqunicos, isto ,dependem de uma mquina aferrada ao agenciamento e liberada pela desterritorializao. O que
chamamos deenunciados maqunicosso esses efeitos de mquina que definem a consistncia em que
entram as matrias de expresso. Tais efeitos podem ser bem diversos, porm jamais so simblicos ou
imaginrios, eles sempre tm um valor real de passagem e de revezamento.
Em regra geral, uma mquina se aglutina no agenciamento territorial especfico, e abre-o sobre
outros agenciamentos, faz com que ele passe pelos inter-agenciamentos da mesma espcie: por exemplo,
o agenciamento territorial de uma espcie de pssaro se abre sobre seus inter-agenciamentos de cortjo
ou de gregaridade, em direo do parceiro ou do socius. Mas a mquina pode igualmente abrir o
agenciamento territorial de uma espcie sobre agenciamentos inter-especficos, como no caso dos
pssaros que tomam cantos forasteiros, e com mais forte razo nos casos de parasitismo32. Ou ainda, a
mquina pode transbordar todo agenciamento para produzir uma abertura sobre o Cosmos. Ou ento,
inversamente, em vez de abrir o agenciamento desterritorializado sobre outra coisa, ela pode produzir
um efeito de fechamento, como se o conjunto casse e girasse numa sorte de buraco negro: o que seproduz em condies de desterritorializao precoce e brutal, e quando as vias especficas, inter-
especficas e csmicas encontram-se barradas; a mquina produz ento efeitos individuais de grupo,
girando em roda, como no caso dos tentilhes precocemente isolados, cujo canto empobrecido,
simplificado, exprime no mais do que a ressonncia do buraco negro em que eles esto pegos.
importante reencontrar aqui essa funo [412] buraco negro, pois ela capaz de fazer com que se
compreenda melhor os fenmenos de inibio, e de romper por sua vez com um dualismo inibidor-
32Especialmente sobre as Vivas (Viduinae), pssaros parasitas que tm um canto territorial especfico e um canto decortjo que elas aprendem de seu hospedeiro adotivo: cf. J. Nicolai,Der Brutparasitismus der Viduinae, Z. Tierps., XXI,1964.
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desencadeador, demasiadamente estrito. Com efeito, os buracos negros fazem parte dos agenciamentos
tanto quanto as linhas de desterritorializao: vimos anteriormente que um inter-agenciamento podia
comportar linhas de empobrecimento e de fixao, que conduzem a um buraco negro, prontas pra
serem revezadas por uma linha de desterritorializao mais rica ou positiva (assim, a componente
raminho de grama, entre os Tentilhes-da-Austrlia, cai num buraco negro e se faz revezar pela
componente ritornelo33). Assim, o buraco negro um efeito de mquina nos agenciamentos, que est
num vnculo complexo com os outros efeitos. Pode ocorrer que processos inovadores tenham
necessidade, para se desencadearem, de cair num buraco negro que faz catstrofe; estases de inibio se
associam a desencadeamentos de comportamentos-encruzilhadas. Em contrapartida, quando os buracos
negros ressoam juntos, ou quando as inibies se conjugam, fazem eco, assiste-se a um fechamento do
agenciamento, como que desterritorializado no vazio, em vez de uma abertura em consistncia: comopraqueles grupos isolados de jovens tentilhes.As mquinas sempre so chaves singulares que abrem ou
que fecham um agenciamento, um territrio. Mais ainda, no basta fazer intervir a mquina num
agenciamento territorial dado; ela intervm j na emergncia das matrias de expresso, isto , na
constituio desse agenciamento, e nos vetores de desterritorializao que to logo o trabalham.
A consistncia das matrias de expresso remete, pois, por um lado, aptido delas a formarem
temas rtmicos e meldicos, e por outro, potncia do natal. E h, por fim, um outro aspecto, que o
vnculo bem especial delas com o molecular (a mquina nos pe justamente nesta via). As prprias
palavras matria de expresso implicam que a expresso tem com a matria um vnculo original.
medida que elas ganham consistncia, as matrias de expresso constituem [413] semiticas; mas as
componentessemiticasno so separveis de componentesmateriais, e esto singularmente aferradas a
nveis moleculares. Toda a questo, portanto, saber se o vnculo molar-molecular no ganha aqui uma
figura nova. Com efeito, pde-se distinguir, em geral, combinaes molar-molecular que variam
bastante conforme a direo seguida. Em primeiro lugar: os fenmenos individuais do tomo podementrar em acmulos estatsticos ou probabilitrios que tendem a apagar sua individualidade, j na
molcula, depois da macro-molcula etc., compondo comunicaes diretas de indivduos de ordens
diferentes34.Em segundo lugar: bem se v que a diferena no est entre individual e estatstico; de fato,
33O jeito pelo qual um buraco negro faz parte de um agenciamento aparece em numeros exemplos de inibio, ou defascinao-xtase, e especialmente no exemplo do pavo: O macho ostenta a cauda (...), da ele inclina sua cauda prafrente e, pescoo ereto, indica o solo com seu bico. A fmea acorre e debica buscando, na regio precisa do sol, onde sesitua o ponto focal determinado pela concavidade das plumas que organizam a cauda. O macho, de certa maneira, faz
sua cauda espelhar uma comida imaginria (Eibl-Eibesfeldt, p. 109). Porm, assim como o raminho de grama dotentilho no um vestgio ou um smbolo, o ponto focal do pavo no um imaginrio: um conversor deagenciamento, passagem para um agenciamento de cortjo, aqui efetuado por um buraco negro.
34Raymond Ruyer,La gense des formes vivantes, pp. 54 sq.
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trata-se sempre de populaes, a estatstica incide sobre fenmenos individuais, bem como a
individualidade anti-estatstica s opera por populaes moleculares; a diferena est entre dois
movimentos de grupo, como na equao de dAlembert, onde um grupo tende para estados cada vez
mais provveis, homogneos e equilibrados (onda divergente e potencial retardado), mas o outro grupo
para estados de concentrao menos provveis (onda convergente e potencial antecipado)35. Em terceiro
lugar: as foras internas intra-moleculares, que conferem a um conjunto sua forma molar, podem ser de
dois tipos, ou ento relaes localizveis, lineares, mecnicas, arborescentes, covalentes, submetidas s
condies qumicas de ao e de reao, de reaes encadeadas, ou ento ligaes no localizveis,
supralineares, maqunicas e no mecnicas, no covalentes, indiretas, operando pordiscernimento ou
discriminaoestereoespecfica antes que por encadeamento36.
H nisso vrias maneiras de enunciar uma mesma diferena, mas essa diferena parece muitomais ampla que aquela que buscamos: ela concerne, com efeito, matria e vida, ou at melhor, j que
s h uma nica matria, ela concerne a dois estados, duas tendncias da matria atmica (por exemplo,
h ligaes que imobilizam, um relativamente ao outro, os tomos associados, e outras ligaes que
permitem uma livre rotao). Caso se enuncie a diferena sob sua forma mais geral, dir-se- que ela se
instaura entre sistema estratificados, sistemas de estratificao, de um lado, e, de outro, conjuntos
consistentes, [414] auto-consistentes. Mas, justamente, a consistncia, longe de estar reservada a formas
vitais complexas, j concerne plenamente ao tomo e s partculas mais elementares. H sistema de
estratificao codificado cada vez que houver, no sentido horizontal, causalidades lineares entre
elementos; e, verticalmente, hierarquias de ordem entre agrupamentos; e, pra fazer tudo ficar junto em
profundidade, uma sucesso de formas enquadrantes, cada qual informando uma substncia, e por sua
vez servindo de substncia a outra. Essas causalidades, essas hierarquias, esses enquadramentos,
constituiro tanto um estrato quanto a passagem de um estrato a outro e as combinaes estratificadas
do molecular e do molar. Falar-se-, ao contrrio, de conjuntos de consistncia, quando se estiver diantedos consolidados de componentes bastante heterogneas, dos curto-circuitos de ordem ou at das
causalidades ao inverso, das capturas entre materiais e foras de outra natureza, em vez de uma sucesso
regulamentada formas-substncias: como se umfilo maqunico,uma transversalidade desestratificante
pas
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