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TERRITORIALIZAÇÃO DO USO DAS LÍNGUAS NO MUNICÍPIO DE SÃO
GABRIEL DA CACHOEIRA-AM.
Rosilene Campos Magalhães Gomes – Universidade Federal do Amazonas rmagalhaesgomes@hotmail.com1
Ivani Ferreira de Faria-Universidade Federal do Amazonas2 ivanifaria@ig.com.br
RESUMO
O presente artigo aborda sobre
americano como configuração de estratégia e soberania, ocasionando um grande número de
indígenas catequizados. Como forma de fixar e unificar sua língua oficial, em detrimento das
outras, levando ao extermínio das diversidades de línguas nativas, em prol da criação da noção
básica de estado-nação, imposta a territórios conquistados ou anexados.
Grande parte desse poder se estabeleceu pelos missionários, cujo objetivo consistia também na
afirmação de centros de concentração onde os indígenas eram localizados, instruídos na religião
e em rudimentos de agricultura e iniciados na prática de um trabalho. Assim como, pelos os
colonizadores, que buscavam garantir o rendimento econômico da colônia, importante para
Portugal com a exploração de mão de obra indígena e expansão sobre o território.
Entretanto, os povos indígenas sempre se constituíram em ameaça ao processo de colonização,
nunca se curvaram diante da violência institucionalizada e desestruturação da organização social
e política da cultura totalizadora do nosso país, as quais são e foram vítimas. Um grande número
desses povos passou por um terrível dilema, ou se submetiam ao colonizador, ou então, se
internalizavam na floresta e lutavam contra o poder estatal. Assim, muitos deles foram e são
perseguidos, condenados a viver na “clandestinidade”, em muitas cidades, e submetidos a um
silêncio atroz.
Todo o processo de colonização é marcado por conflitos, controvérsias e perdas imensuráveis
para os povos indígenas que levaram também ao desaparecimento de algumas línguas e seus
territórios, porém ainda hoje no Brasil reúne uma das maiores diversidade linguística e cultural,
sendo a Amazônia Legal sua maior concentração em diferentes territórios.
De acordo com Freire (2004) a região que comporta a maior diversidade linguística do mosaico do
continente americano, é a Pan-Amazônia com um território de 7.275.300 km², que representa
44,5% da America do Sul. Nesse espaço a diversidade se torna importantíssima não somente ao
número elevado de línguas, mas seguidas de suas etnias e de suas singularidades de umas com
as outras.
No presente século, alguns autores como Rodrigues (1986, 1993) e Freire (2004) ao esboçarem
sobre um panorama atual das línguas indígenas na Amazônia consideram um percentual de
aproximadamente 240 a 181 línguas indígenas, representadas entre 52 a 43 famílias linguísticas,
algumas dessas famílias participam de agrupamentos genéticos mais abrangentes. Estas línguas
estão agrupadas e distribuídas em dois troncos linguísticos, Macro-Jê e Tupi, e 13 famílias.
Rodrigues (1986, 1993) argumenta que, existam ainda línguas isoladas que não fazem relação
com nenhum desses troncos ou famílias, mas que necessita ser pesquisada.
Como apresenta Domingues (2011), uma das maiores áreas de ocorrência de povos indígenas
em situação de isolamento voluntário do mundo, está geograficamente localizado na região de
fronteira do Estado do Acre com o Peru, fazendo parte de um grande corredor regional entre a
expansão econômica emanada do Brasil, Peru e Bolívia por via fluvial. Os territórios desses povos
aos poucos foram se reduzindo, cabendo-lhes às áreas de cabeceira dos grandes rios e de seus
afluentes da região do Oeste amazônico, entre eles o Ucaiali, Juruá, Purus, Javari e Madre de
Dios. Sobre este ponto, Ribeiro assinala que “esses grupos indígenas, classificados como
isolados, [...] Seu modo de ser só se explica pela contingência de uma vida de fugas, correrias e
lutas que lhes foi imposta e que afetou profundamente sua forma de vida e o funcionamento de
suas instituições” (RIBEIRO, 1996, p.268).
Uma das riquezas e importância para a história do Brasil é a língua geral amazônica ou
nheengatu, em muitos casos ela também foi chamada de tupinambá, um termo muito usado ao
longo de todo o litoral, em decorrência a expressão lexicalizada da língua geral que acabou
impondo dois referentes distintos e precisos: a língua que se propagou pelas bandeiras paulistas
e, a língua que solidificou na Amazônia.
Na tentativa de esclarecer essa distinção Aryon Rodrigues (1986) propôs chamar a primeira de
língua geral paulista (LGP), e a segunda de língua geral amazônica (LGA). Em virtude, de várias
denominações atribuídas pelos europeus de acordo com momento histórico e o espaço geográfico
ocupado por eles, ocasionando que diversas línguas indígenas fossem registradas sem o cuidado
etnográfico e ortográfico. Acarretando que uma mesma língua recebesse vários nomes.
Durante séculos a língua geral amazônica predominou sobre esse território de aproximadamente
700 línguas indígenas. Heranças transmitidas através da tradição oral e de diversos tipos de
narrativas.
Quando os europeus realizaram as primeiras viagens exploratórias pelo rio Amazonas nos
séculos XVI e XVII, deparou-se com essa diversidade de línguas faladas, de famílias e troncos
linguísticos diferentes. Os relatos são descritos nas duas maiores expedições realizadas ao longo
do rio Amazonas no século XVI, sendo a primeira, desbravada por Orellana (1541-1542) e a
segunda por Ursúa/Aguirre (1560-1561). Seguidas pelo Pedro Teixeira em 1639, durante uma de
suas expedições localizou mais de 150 povos indígenas e todos com línguas diferentes. No século
seguinte, foram acrescentando novos grupos linguísticos ao já existente.
Ao nos depararmos com diversas línguas em uma mesma comunidade ou povos, ainda mais
sendo línguas indígenas, elas não aparecem como natural/comum para as demais pessoas, mas
para a grande maioria dos povos indígenas é natural, pois já estão habituados a conviver com
essa diversidade linguística como é o caso do município de São Gabriel da Cachoeira no
Amazonas.
Falar sobre a territorialização das línguas indígenas nesse município amplamente indígena é
debruçar-se sobre os caminhos da socialização dessas línguas, que são representadas por 23
povos pertencentes a cinco famílias linguísticas Tukano Oriental, Aruak, Yanomami, Japurá-
Uaupés (Maku)3 e Tupi (Nheengatu falado pelos povos Baré, Werekena e parte dos Baniwa do
3Existe uma discussão entre os Hupdha, Yu Hupdha e Dâw e a Saúde Sem Limites sobre a mudança do nome da família linguística
baixo rio Içana), falantes de 20 línguas indígenas.
Os povos indígenas têm questões culturais de identidade muito especificas quanto à língua: as
formas de educação, dos conhecimentos e das práticas tradicionais, do patrimônio cultural e
genético em suas terras, sem mencionar a visão de mundo destes povos. A região com maior
diversidade linguística e cultural das Américas (figura 01).
Figura 01: Ilha de Adana, São Gabriel da Cachoeira.
Fonte: Foto de Paulo Lira, 2004.
OCUPAÇÃO E OS PRIMEIROS CONTATOS COM OS POVOS INDÍGENAS E SUAS
LÍNGUAS NA REGIÃO DO ALTO RIO NEGRO
Segundo fontes históricas as primeiras notícias sobre a existência da bacia do rio Negro sucedeu
no século XVI dos relatos de Philip Von Hutten e Hernan Perez de Quesada (1538-1541), que
efetivaram uma viagem pelo rio Orinoco desde a costa atlântica à procura do El Dorado (terra rica
em ouro que supostamente ficaria na Serra Parimá), já assinalavam a existência do rio Uaupés,
afluente superior do rio Negro (CABALZAR e RICARDO, 2006).
Em 1542, quando Francisco Orellana desceu pela primeira vez o rio que viria a ser chamado de
denominada anteriormente como Maku para Japurá-Uaupés, devido à forte conotação pejorativa atribuída ao termo. Por esse motivo usaremos o nome Japurá-Uaupés.
Amazonas, frei Gaspar, escrivão da expedição, referiu-se ao rio de “água negra como tinta”, esses
relatos ainda não fazem referencias a população indígena desse rio. Mas somente em 1639 a foz
do rio Negro foi identificada e descrita com mais detalhes pela expedição de Pedro Teixeira, que
subiu o Amazonas até Quito e voltou com o padre jesuíta Cristóbal de Acuña, sendo enviado para
Belém com a missão de relatar suas impressões sobre a região e seus habitantes.
Os primeiros contatos diretos com os indígenas ocorreram já no século XVII, principalmente
liderados por portugueses que penetravam o rio Negro à caça de escravos. Durante esse
momento, povos do Alto Rio Negro teriam entrado em contato, via comercio intertribal, com
objetos da cultura europeia (facas, machados, etc.), ou seja, significa que possivelmente já
sabiam da existência dos brancos mesmo antes de tê-los visto face a face.
Nessa ocasião os portugueses, já evidenciavam os indígenas do rio Negro sendo numerosos e
desejavam capturá-los para servirem de escravos. O Cristóbal de Acuña apontou a presença de
doze tribos no baixo curso deste rio. Em meados do século XVII, houve um decréscimo da
população indígenas no baixo Amazonas, em virtude, da epidemia de varíola e da escravidão,
sendo mais evidenciados pelos Tupinambá, gerando uma grandiosa carência de mão de obra
para o trabalho nas fazendas e na coleta das “drogas de sertão”. Esse fato acarretou na
penetração pelo rio Negro e Amazonas de colonos e missionário vindos de São Luiz e de Belém
em busca de capturar escravos indígenas e massacrando os que resistiam: eram as tropas de
resgate e as guerras justas. 4
O resultado dessa longa guerra foi uma drástica redução da população indígena no Médio Rio
Negro ocasionando a fuga e a dispersão daqueles que sobreviveram para locais distantes na
busca de evitar os massacres e violência dos portugueses, que abriram passagem pelo rio Negro
e infelizmente conseguiram alcançar a região do Alto Rio Negro e seus principais afluentes, como
o Uaupés, o Içana e o Xie, ainda muito povoados e praticamente não atingidos pelos brancos.
Na segunda metade do século XVII, se dava a chegada mais intensiva de missionários jesuítas e
expedições de apresamento. Os jesuítas estabeleceram algumas missões no rio Negro, primeiro
temporárias e depois permanentes. E posteriormente com os missionários salesianos e suas
construções que se consolidaram em quatro grandes centros distribuídos geograficamente: São
Gabriel da Cachoeira, Taracuá, Pari-Cachoeira e Içana. Todo esse aparato contribuiu para que as
diversidades culturais e linguísticas dos povos fossem aos poucos sendo dominados.
A ocupação mais antiga historicamente desde tempos imemoriais no território do Alto Rio Negro
são de três povos que pertencem a três famílias linguísticas distintas, Tukano Oriental, Aruak,
Japurá-Uaupés (Maku). Movimentos migratórios sucessivos situaram progressivamente esses
grupos nos territórios onde eles se encontram hoje, sendo sobreviventes de grupos de origens
4 Tropas de resgate – mandadas para punir tribos hostis, que tivessem atacado os europeus sem provocações. Foram encarregadas
de capturar e tomar como escravos o maior número possível de índios, já a Guerra Justas – era a troca de bens europeus por cativos com os chefes de tribos amigas que efetuavam expedições para fazer escravos (CABALZAR E RICARDO, 2006, p.74-75).
cultural e linguística distintas.
Segundo Nimuendaju (apud BUCHILLET, 1993; FARIA, 2007) a primeira seria fundada por grupos
de seminômades de cultura rudimentar, são caçadores e coletores da floresta que desconheciam
a agricultura, semelhante aos Japurá-Uaupés (Maku) atuais. A segunda teria surgido do norte
(Alto Orenoco e Alto Guiana) na fronteira entre Venezuela e a Colômbia, composta por grupos de
origem Aruak, pertencentes a uma cultura mais desenvolvida, vivendo ao longo dos rios em suas
grandes casas comunais (malocas). Os do rio Içanas: Manáo, os Baré e os Baniwa, seriam os
seus dessedente cuja migração fora evidenciada pelos toponímios em Aruak, pelos rios da região
sendo ocorrido no início da era cristã. A terceira adentrou do oeste (Napo-Putumayo),
caracterizada por indígenas de fala Tukano e portadores de uma cultura menos desenvolvida do
que a dos Aruak. Porém, outra invasão dos Aruak teria surgido no século XVIII: os Tariano,
originários do Aiary, durante inúmeras guerras, teriam desalojado os Tukano de Iauareté e
Ipanoré.
Essas ondas migratórias teriam causado, gradualmente, uma mestiçagem cultural na região: os
Tukano teriam sido influenciados pelos Aruak; os Tariano adotaram a língua Tukano; alguns clãs
Baniwa adotaram a língua Cubeo e numerosos Japurá-Uaupés (Maku) foram assimilados pelos
Tukano e Aruak.
De acordo com Nimuendaju (apud BUCHILLET,1993; FARIA, 2007, p.118-119) certos subgrupos
Aruak atuais seriam antigos Japurá-Uaupés que teriam sido Aruakizados nesse processo.
Entretanto, há certos questionamentos sobre suas evidências linguísticas por alguns
pesquisadores ou originárias da história oral dos grupos indígenas da região. WRIGHT (apud
FARIA, 2007) diverge da origem Japurá-Uaupés (Maku) dos Hohodene, citando que, de acordo
com a história oral, semelha da origem dos mais antigos Aruak do rio Içana. Diverge, ainda, da
data de chegada dos Aruak à região, pois evidências dos petroglifos localizados nas cachoeiras
do rio Içana e da tradição oral assinalam que a ocupação dos Aruak teria acontecido em tempos
pré-históricos.
De acordo com as tradições orais indicam que os índios Tukano teriam surgido do leste e não do
oeste do Brasil.
Dois aspectos importantes na diversidade linguística da região desses povos indígenas estão
representados por meio da territorialidade da Floresta e dos rios. Como é o caso dos indígenas
Tukano Oriental e Aruak vivem em comunidades dispersas ao longo dos rios e seus tributários
navegáveis, por isto, são chamados “índios do rio”. E os da floresta são denominados de “índios
do mato”, como é o caso dos Japurá-Uaupés (Maku).
A língua está relacionada com a identidade, desta forma, as diversidades linguísticas favorecem
as uniões matrimoniais, sendo assim, os casamentos se realizam entre pessoas de fala diferente.
Esse fato não é barreira para a relação indígena no Alto Rio Negro, mas ao contrário, pode
reafirmá-la por meio das relações de parentesco (fala a mesma língua) e alianças matrimoniais
(fala diferente). Essa organização social está pautada em unidade de descendência patrilinear,
patrilocal e exogâmicos as quais obedecem à disposição hierárquica dos sibs.
O sibs5 é definido como grupos de descendência unilinear, cujos membros se consideram
descendentes de ancestrais comuns, mas não podem estabelecer uma relação genealógica real.
Ele também estabelece diferenciações entre tribo e fratria. Tribo refere-se mais ou menos a uma
identidade comum de língua, descendência e costumes. E Fratria é uma associação de sibs que
estão muitos ligados por regras de exogamia, pela residência comum ao longo do mesmo rio, por
uma tradição de origem e descendência comuns, por uma ordem de hierarquia que confere a
cada sib seu lugar na escala social e, finalmente, por uma série de cerimônias, tanto solene
quanto seculares.
Esclarece a mitologia que os sibs de uma fratria são componentes das partes de uma única cobra
grande (Sucuri) que se dividiu; o sibs que corresponde à cabeça seria o mais importante da fratria
e os demais sibs formariam em ordem decrescente o restante da hierarquia. Seguindo o mito de
origem, entende-se que existiu uma hierarquização dos povos indígenas dentro dos grupos
linguísticos Tukano Oriental, Aruak e Japurá-Uaupés (RAMOS, 1980).
A REGIÃO NO ALTO RIO NEGRO E SEUS POVOS INDÍGENAS
A pesquisa situa-se no Noroeste do Estado do Amazonas no município de São Gabriel da
Cachoeira, região do Alto Rio Negro. O município em pauta fora criado em 1891, pela Lei Estadual
Nº10, como território desconexo de Barcelos. É extinto e reintegrado a Barcelos em 1930. Com o
Decreto Lei Estadual Nº 226, em 1935, sendo estabelecido definitivamente como município. Em
1968, pela Lei Federal Nº 5.449, o município é enquadrado como Área de Segurança Nacional.
Sua extensão territorial é de terras indígenas, com 95% já homologadas.
Há de se ressaltar que o município constitui-se em Terras Indígenas do Alto Rio Negro, Médio Rio
Negro I e II, Yanomami, Uneiuxi, Téa, Apapóris e em processo de demarcação Cué-
cué/Marabitanas e Balaio. Apenas a sede do município não é Terra Indígena (figura 02).
5 GOLDMAN apud FARIA, Ivani, op.cit., p.120-122.
Figura 02: Mapa do Município de São Gabriel da Cachoeira.
Fonte: Ivani Ferreira de Faria, 2007.
O município ocupa uma área de 112.255 Km2, representando 6,95% do Estado do Amazonas,
com altitude de 90 metros acima do nível do mar. Cortado por numerosos rios tributários do rio
Negro, entre os quais são: Xié, Içana, Waupés, Ayari, Papuri entre outros. Faz limites com os
municípios de Santa Isabel do Rio Negro, Japurá e com a Colômbia e Venezuela. O clima
predominante quente e úmido. Sua população total é de 37.896 habitantes (IBGE, 2007).
O ambiente da pesquisa foi escolhido por ser São Gabriel da Cachoeira o município da região do
Alto Rio Negro, mais plurilíngue e um dos mais indígenas do Brasil, onde 73,04% da população
são indígenas. O município é constituído por 23 povos pertencentes a cinco famílias linguísticas
Tukano Oriental, Aruak, Yanomami, Japurá-Uaupés (Maku) e Tupi (Nheengatu falado pelos povos
Baré, Werekena e parte dos Baniwa do baixo rio Içana), falantes de 20 línguas indígenas, cuja
territorialidade das línguas se configura pelas principais bacias dos três rios mais importantes da
região: rio Negro e Xié predomina a língua Nheengatu, no rio Içana e seus afluentes a língua
Baniwa e o rio Waupés a língua Tukano. Em cada um desses rios há uma forte relação linguística
e cultural que esses povos mantém entre si, enquanto o povo Yanomami habita ao norte do
território de São Gabriel da Cachoeira, fronteira com Venezuela.
Mediante a essa diversidade e pluralidade linguística foi criada a Lei Municipal nº 145 de 2002,
regulamentada pela Lei nº 210 de 31de Outubro de 2006 de co-oficializão de três línguas
indígenas: Nheengatu, Tukano e Baniwa. Foram co-oficializadas por serem as três mais faladas
na região do rio Negro e sendo as principais línguas indígenas mais entendidas no município.
A população majoritariamente sempre foi indígena, mas no transcorrer do tempo os povos
indígenas, assim como suas línguas, foram perdendo seu espaço na cidade. Mesmo com a lei de
co-oficialização, o maior pluralismo linguístico das Américas e ainda, o município sendo
considerado o mais indígena do país, a diglossia6 está caracterizada na sede do município, por
meio da relevante presença dos não-indígenas falantes da língua portuguesa representados
principalmente pelos militares, por estarem em uma faixa de fronteira e os imigrantes nordestinos
que controlam de forma oligárquica o comércio do município.
Entretanto, esse fato se torna contraditório com relação às comunidades indígenas onde as
línguas indígenas são abertamente faladas. Sendo assim, existem bairros predominantemente
indígenas e lugares onde as línguas também são francamente faladas como forma de resistência
e valorização das mesmas, mesmo por que, a cidade é uma extensão das relações e
territorialidade das comunidades denominada como interior.
Diante disso, estamos buscando através desta pesquisa compreender a territorialização das
línguas indígenas na sede do município, por meio da identificação dos lugares de uso e
representação das línguas, analisando a territorialização das mesmas no meio urbano e
verificando quais os mecanismos usados pelos povos, setor público e sociedade civil organizada
para valorização e manutenção das línguas, uma vez que, a língua para os povos indígenas do
Alto Rio Negro é um dos elementos mais fortes de identificação cultural, ressaltando um dos
principais fatores da integração destes povos em um único território, no caso da Terra Indígena
demarcada e a exogamia linguística entre os Aruak e os Tukano Oriental.
Compreender estes espaços de uso e reprodução torna-se fundamental para entender os
instrumentos de valorização das línguas ao mesmo tempo em que a diglossia ainda impera no
município.
TERRA E TERRITÓRIO PARA OS POVOS INDÍGENAS
6Existência de dois falares ou dois dialetos distintos em uma mesma comunidade, esp. por razões de estratificação social, em que uma
das formas se sobrepõe à outra. Segundo Françoise Gardews, em seu livro Multilinguismo, existe uma relação hierárquica em que uma
língua padrão é um registro dominante, e outro registro ou vários outros são dominados.
Compreender território nos conceitos de Haesbaert (2009) é tentar olhar um espaço que não pode
ser considerado nem estritamente natural, nem unicamente político, econômico ou cultural. Ele só
poderia ser idealizado através de uma perspectiva integradora entre as diferentes dimensões
sociais (e da sociedade com a própria natureza). Dessa forma, o autor trabalha com a ideia de
território a partir da concepção de espaço como um híbrido, seja entre o mundo material e ideal,
seja entre natureza e sociedade, em suas múltiplas esferas: econômica, política e cultural.
A noção de imbricação vista por Haesbaret é múltipla e nunca indiferenciada do espaço
geográfico, o território passa a ser idealizado a partir de múltiplas relações de poder, do poder
mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem
mais estritamente cultural.
A territorialidade indígena constrói-se pela memória coletiva da sua relação com o território, com a
dimensão simbólica, que contem um principio espiritual, dando-lhe profundidade e consistência
espaço-temporal, algo além de um simples território:
Para os ‘hegemonizados’ o território adquire muitas vezes tamanha força que combina com intensidades iguais: funcionalidades (recurso) e identidade (símbolo). Assim, para eles literalmente, retomando Bonnemaison e Cambrézy (1996), ‘perder seu território é desaparecer’. O território, neste caso, ‘não diz apenas à função ou ao ter, mas ao ser’ (HAESBAERT, 2004, p. 4).
Para os indígenas, terra é um mosaico de recurso materiais, morais e espirituais; seu território,
além de conter dimensões sociopolíticas, assim como, uma ampla dimensão cosmológica, onde
se expressa à importância da fala na sobrevivência física e cultural, pois fazem parte da memória
coletiva. As lembranças dos relatos no passado dá forte valor sentimental a certos lugares, como
os mitos religiosos ou políticos.
As reivindicações dos movimentos indígenas e suas relações com a terra são bem diferentes da
concepção dos brancos, pois para eles a terra tem valor de uso, para o sustento e é território
ancestral.
Reivindicamos uma terra nossa, onde viviam nossos avós. É de grande importância que a gente tenha esta terra contínua, pois muitos brancos falam que área é muito grande. Mas não dependemos de um mercado para comprar o que comer. Nós temos que caçar, andar no mato, no igarapé um dia, dois de distância pra colher o alimento. Sem a terra o índio morre de fome
7.
A terra coletiva e a projeção do futuro:
7 José, Bonifácio. Entrevista concedida pelo representante da OIBI para Ivani F. de Faria. Manaus, 06 maio 1993.
Acho que o governo, demarcando estas ilhas, continua nesse caso, com uma visão simplista de que o índio e um pedaço de terra sobrevivem. É uma ilusão e até um preconceito. (...) será que valeria a pena demarcar uma terra pra cada grupo no Alto Rio Negro? Isto não teria mais sentido porque lá a tendência, a vontade do pessoal é uma luta conjunta. Se tornou uma classe social, os índios, se tornou um status que precisa se unificar. Unificar não significa engolir o outro, se submeter, acabar com a cultura do outro. É você ser capaz de lidar com esta diversidade, mas ao mesmo tempo ter objetivos comuns. Quer dizer que, nesse sentido, seria inviável, seria até autodestrutivo você lutar por uma demarcação de terras por grupos. Poderia ser assim no passado, pois havia uma situação diferente, onde às vezes havia brigas e rixas internas. Eu acho que a tradição e a cultura não podem ser vistas como uma coisa parada. Elas evoluem. Acho que é um direito que se tem. (...) as catorze ilhas impossibilitam a forma de vivência mais normal, mais natural e mais viável para os índios. A terra contínua é a única condição que os povos indígenas têm de não deixar a história correr para aquilo que no caso, Hélio Jaguaribe quer: que a questão indígena se resuma em ter um pedaço de terra definido. As pressões vêm, as invasões vêm. Você fica ali encurralado, não tem opção. Aí você vai se entregar e integrar. Ao passo que se você tiver o território, você tem inúmeras possibilidades de construir seu universo, o seu mundo. Com as relações que você quiser construir com qualquer que seja a outra sociedade
8
As comunidades indígenas do Alto Rio Negro, assim como outros indígenas, sofreram influências
dos aspectos socioculturais da sociedade envolvente, e principalmente do Estado, em sua
concepção simplista de limitar o conceito indígena de terra, a um simples pedaço da superfície do
território, um bem que adquiriu valor de troca, uma mercadoria. Os indígenas viram seu território
sendo reorganizado de diversas maneiras, sempre com o objetivo de consentir às necessidades
político-econômicas da sociedade envolvente, em prejuízo das necessidades das comunidades
indígenas.
Conforme Faria (2003, p.105-106) o termo território não existe no vocábulo de nenhuma língua
indígena do Alto Rio Negro:
Por isso, quando o índio fala território, a pronuncia é em português. Terra é Diita em Tukano e Hipai em Baniwa. O termo território só entrou no vocabulário indígena após o contato. Antes não se pensava e não precisava pensar nisto. A leitura indígena do conceito de território é uma evolução do conceito de terra que adquiriu um cunho político conjuntamente com a ideia de limite [...] território significa terra contínua com autonomia e soberania, onde vivem com seus distintos costumes, histórias e filosofias. A autonomia e soberania referentes ao território consistem em um sistema de autogoverno, em que o poder de decisão, de planejar o futuro está nas mãos das próprias nações indígenas. A autonomia reivindicada deve partir da realidade indígena vigente, ou seja, planejar, desenvolver mecanismos e estratégias socioeconômicas no território que possibilitem a sobrevivência física a partir dos seus referenciais de modo a permitir também a preservação cultural.
Para os povos indígenas, não importa que o Estado utilize os termos povos, etnias ou grupos,
área, terra ou território indígena, pois eles têm consciência do que são e do que querem.
Isso só vez demonstrar suas incessantes lutas em decorrência aos acontecimentos sofridos desde
8 José, Bonifácio, op. cit.,
os primeiros contatos dos colonizadores nesse território do Alto Rio Negro, uma luta pela
reconquista da Terra que durou 498 anos. Tendo fim juridicamente em 1970 sendo concluída em
1988 a homologação e regularização da Terra Indígena do Alto Rio Negro, por meio dos esforços
da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro), conjuntamente com a
COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e ONG`s indigenistas
e ambientalistas, nas próximas paginas abordaremos mais sobre essas instituições (FARIA,
2003).
Após a conquista pela primeira condição de sobrevivência dos povos em sua terra, outros fatores
associados a ela vão sendo revitalizados e novos sendo incorporados como: projetos
educacionais voltados para a valorização das línguas e culturas tradicionais, como o aprendizado
primeiramente nas línguas nativas e num segundo momento em português. A valorização das
línguas só veio ganhar importância na década de 90, quando se começou a discutir a
implementação da educação escolar indígena dos povos do Alto Rio Negro.
METODOLOGIA E RESULTADOS PRÉVIOS
A base conceitual da pesquisa está centrada nos conceitos de Território, Geografia Linguística,
Língua e Identidade Indígena. Utilizar-se de procedimentos metodológicos da pesquisa
participante com levantamento de fontes primarias e secundarias.
Como parte do trabalho, demos prosseguimento à pesquisa de campo. Desta forma, o trabalho de
campo está sendo realizado, tendo como objeto de estudo pessoas a partir de 18 anos e que
residem na área urbana do município. A realização da primeira prática de campo foi em janeiro de
2012, sendo realizada a primeira visita presencial ao município. Nessa oportunidade, procuramos
ter um contato direto com as pessoas e a cultura local e moradores dos bairros, juntamente com
os feirantes. Além de conhecer um pouco mais sobre as questões territoriais plurilíngue da região.
Nossa primeira entrevista foi com perguntas abertas e semi-estruturadas sendo desempenhada
em dois bairros: o da Praia e o Dabaru. O primeiro bairro foi escolhido em virtude de ser o primeiro
bairro do município, e o segundo em decorrente ao seu desígnio: de acomodar pessoas vindas de
comunidades e indígenas que viviam em torno de São Gabriel. Além da feira municipal.
Um dos objetivos dessas entrevistas e verificar como/quais línguas indígenas estão sendo mais
faladas pelos indígenas para então produzirmos um registro cartográfico das línguas nos bairros.
Juntamente verificar o que as políticas públicas existentes nas esferas federal, estadual e
municipal estão fazendo em prol dessas línguas.
É nesse cenário de conjunto de fatores interdependentes e diferenciados, se relacionando entre
si, que forma um todo unitário que está sendo desenvolvido o estudo sobre a Territorialidade do
uso das línguas (figura 03).
Figura 03: Mapa das Etnias do Alto e Médio Rio Negro
Fonte: FOIRN/ISA, 2006.
Considerações Finais
A redução para 240 a 180 línguas indígenas nos últimos 500 anos foi o efeito de um processo
colonizador extremamente violento e continuado, o qual ainda perdura, não tendo sido
interrompido nem com a independência política do país no início do século XIX. Embora
reconheçam os direitos fundamentais dos povos indígenas, após grande revindicações e inclusive
direitos linguísticos. Entretanto, com as relações entre a sociedade majoritária e as minorias
indígenas pouco mudou.
Essa redução é uma grave ameaça ao desaparecimento que incide sobre a maioria das línguas
indígenas, estudos e documentação científica sobre essas questões requer ser mais abrangida
como um todo por nos brasileiro, indígenas ou não. Desta forma, a experiência que está sendo
desenvolvida nos coloca um desafio de produzir, juntamente com os indígenas que vivenciam o
ambiente do município de São Gabriel da Cachoeira, um instrumento capaz de fortalecer cada vez
mais as suas línguas indígenas.
Referências Bibliográficas
CABALZAR, A. & RICARDO, C. A. Povos Indígenas do Rio Negro: uma introdução à socioambiental do noroeste da Amazônia brasileira. 3 Ed. rev. São Paulo. ISA – Instituto
Socioambiental; São Gabriel da Cachoeira, AM: FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, 2006. FARIA, I. F. Ecoturismo Indígena Território, Sustentabilidade, Multiculturalismo: princípios para a autonomia. São Paulo: USP, 2007. Tese de Doutorado. (Doutorado em Geografia), Departamento
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