View
212
Download
0
Category
Preview:
DESCRIPTION
Estevao
Citation preview
O exército como Estado e os indígenas como agentes: incursões iniciais.
Autor: Estêvão Barros Chaves
Orientador: Piero Camargo Leirner
Graduação em Ciências Sociais da UFSCar.
Resumo:
Este trabalho é o início de uma discussão que visa se tornar um projeto de mestrado. Mediante isto, é preciso dizer nas primeiras linhas que aquilo que se segue é uma primeira tentativa de delimitar etnograficamente o objeto, buscando bibliografia um vislumbre do que ainda não foi discutido na produção antropológica da região. Para tanto, buscarei articular a noção de Estado a partir de uma instituição específica, o exército, e seus efeitos, como por exemplo na hierarquia e no jogo étnico regional.
Palavras-chave: etnologia; exército; Estado; Alto rio Negro; São Gabriel da Cachoeira.
A região a ser discutida e estudada se localiza no Alto rio Negro. A pesquisa
almejará um trabalho etnográfico primordialmente na cidade de São Gabriel da
Cachoeira (daqui em diante SGC), mas não necessariamente se restringirá a ela; isso
apenas o campo responderá. Ali a população é majoritariamente indígena, mas mantém
uma relação de longa duração com os brancos, relação imprescindível para a discussão
já que ela produziu efeitos importantes para os indígenas, a cidade em si sendo um
deles.
A escolha dessa cidade não é aleatória. Segundo a bibliografia da região e
conversas estabelecidas com antropólogos que estão pensando relações entre indígenas
e Estado na região (me refiro a Geraldo Andrello e Piero Leirner, da UFScar)
evidenciou-se mais uma do que pode ser uma série de transformações na relação entre
brancos e indígenas de lá. A discussão, entretanto, não recairá somente sobre o Estado
em si; antes realizar-se-á uma pesquisa que busque evidenciar a relação entre a
população nativa e o Estado que ali se impõe cotidianamente.
O antropólogo, logo que chega em SGC, pode perceber uma forte presença do
Estado, seja nas fundações e instituições do governo federal (como Funai, ICM-Bio,
Polícia Federal, etc.) seja no Exército (distinção que surgirá logo a seguir). No entanto,
há um forte imaginário impresso localmente, tanto por parte da população indígena
quanto dos funcionários e servidores públicos de lá, de que o Estado é uma entidade
ausente na região (Leirner, 2013 [ O estado como fazenda de domesticação]). No
entanto, a bibliografia tende a mostrar que o Estado sempre esteve no primeiro plano
das agências brancas na região, que não foram nem são poucas. Uma primeira questão,
portanto, é entender como e por quê existe essa discrepância entre a visão do
antropólogo e a visão nativa acerca das conceptualizações do Estado e de suas funções
ali.
Como foco de pesquisa, buscarei enfatizar a relação entre os nativos e o Exército.
Essa escolha, assim como a escolha de SGC, não foi aleatória. Em primeiro lugar, o
Exército, como mais ou menos contingente a depender do período histórico, está
presente na região há muito tempo, sendo que a própria cidade deriva do Forte de São
Gabriel da Cachoeira, construído no século XVIII (Andrello, 2006). Para o Estado, o
“povoamento” e o processo civilizatório da região era imprescindível, já que o local é
uma importante zona fronteiriça. Diga-se de passagem, este foi um processo que esteve
numa das bases da constituição das fronteiras brasileiras, relacionado a um projeto
“civilizatório” para os índios (Souza Lima, 1998). O efeito disso é uma relação há muito
estabelecida entre brancos e indígenas. Em segundo lugar, o Exército na cidade de SGC
tem cada vez mais recrutado homens indígenas para seu contingente; segundo Leirner
(2013), de 2500 militares, 2000 são indígenas. Vejamos agora hipóteses das causas
deste fenômeno e alguns dos efeitos disto nas vidas dos indígenas, que, penso, não são
desprezíveis.
O exército em SGC faz parte do cotidiano dos nativos há muito tempo. Como já
foi dito, o Estado está, para o antropólogo, em todos os lugares que se olha na cidade,
mas para os citadinos o Estado não chegou até lá, estando à deriva do resto do país.
Anteriormente foi feita uma distinção entre os demais órgãos estatais que ali se fixaram
(Polícia Federal, ICM-Bio, FUNAI, etc.) e o exército. Em primeiro lugar, seria o caso
de se pensar, a partir de uma pesquisa de campo, se essa distinção é realmente relevante.
Observar etnograficamente as relações entre agentes estatais, ou melhor, entre agentes
estatais brancos e indígenas, seria um primeiro problema. Por exemplo, seria o caso de
se pensar se há ou não uma socialidade fundada num convívio específico entre, por
exemplo, oficiais do exército (brancos) e policiais federais, juízes, promotores, etc. É
sabido que os locais frequentados por brancos muitas vezes não coincidem com os
frequentados por indígenas. De outro lado, poderíamos perguntar se há uma socialidade
entre, por exemplo, oficiais e soldados indígenas, para além do quartel. Em outro
movimento, o deslocamento de indígenas das comunidades para as cidades em busca de
melhores condições de vida, serviços como educação, saúde e acesso a mercadorias
evidencia o deslocamento em busca de Estado. Seja nos movimentos indígenas que
procuram o diálogo com ONG’s ou com aparatos estatais de proteção à terra e da
população em si (Andrello, para uma detalhada descrição desses movimentos), seja na
simples busca por serviços e por empregos públicos (agentes de saúde ou professor, por
exemplo), a população indígena se desloca para o Estado, ou pelo mesmo através do que
entendemos por Estado.
Exemplificando essa “busca por Estado”, Lasmar (2002) mostra que os indígenas
que obtém mais prestigio são aqueles empregados pelo exército. Eles passam a ter um
salário regular e podem ajudar os familiares e comprar mercadorias, construir suas casas
e se estabelecer na cidade. A autora mostra também que muitas mulheres preferem se
relacionar e se casar com os brancos, principalmente aqueles que fazem parte do
contingente militar. Esse último fenômeno possui inúmeras variantes, mas uma delas é
justamente a certeza de ter-se um emprego estatal, estável e com um bom rendimento
em relação ao contexto.
Não obstante, os indígenas que passam a fazer parte do contingente militar
assumem geralmente a condição de praças, que é ao mesmo tempo transitória e
subordinada à dos oficiais brancos. Essa relação hierárquica que se estabelece possui
duas facetas, uma de divergência e uma de convergência. Lembrando que esse trabalho
busca iniciar essa discussão, é preciso que se faça um estudo etnográfico para ir mais a
fundo na questão. Mesmo assim, vamos aos efeitos dessa relação, que, enfim, situa-se
no âmbito do comando-obediência.
O primeiro efeito, divergente, coloca ao indígena duas estruturas hierárquicas
diferentes. Ao deixar para trás a vida em comunidade e passar a viver na cidade e ser
parte do contingente militar, o indígena deixa em “stand-by” também uma hierarquia
própria da região – entre clãs, etnias, etc - para se adaptar a outra, militar. A primeira,
hierarquia tradicional, remete a uma série de versões de um mito de origem em que se
pauta um “age class system”, entre irmão mais velho e irmão mais novo, relação esta
literal e mítica. Explico: a origem faz referência a uma cobra-canoa, que emerge do lago
de leite (que às vezes é situado na Baía de Guanabara, às vezes na Foz do Amazonas),
que em seu ventre gesta uma humanidade em constante transformação, e, conforme
sobe o rio Negro vai dando origem às diferentes etnias que habitam a região, brancos
inclusive. As transformações, bem como a ordem de saída da humanidade dessa
condição primordial, são condições prístinas para se pensar nessa relação entre irmãos
mais velhos e mais novos. . No entanto, diversas versões dessa origem são conflitantes,
e um complexo jogo de alianças, crescimento populacional e narrativas míticas às vezes
“torce” o que seria essa hierarquia fixa. Um desses pontos seria justamente uma mais
ampla estratégia de aliança e relação com os brancos, que, embora sejam na visão nativa
“os mais novos dentre os saídos da cobra” (Andrello, 2005), adquiriram uma posição
paralela capaz de provocar uma posição hierarquicamente concorrente.
Assim, ao entrar para o exército, as diferenças étnicas (e portanto míticas) podem
também ser repensadas. Este é um dos pontos que pretendemos ver com a pesquisa. De
outro lado, é preciso salientar que essas relações teriam, como contrapartida branca,
uma visão em que o sistema regional “deveria ser” obliterado:
Quando se pergunta a um ofcial como é que ficam as relações hierárquicas inter-indígenas (Andrello, 2006) que precedem o serviço militar, a resposta é clara e convergente: “Aqui só tem a hierarquia militar; não tem branco, negro ou amarelo, é todo mundo verde-oliva”. Suspeito que isso não seja tão exato assim, mas, em todo caso, é um militar dizendo que as relações militares claramente encompassam as indígenas (sequer as transformam em um híbrido, aquilo simplesmente se converte para a cadeia de comando à velocidade da luz). (Leirner, 2013)
E disso surge o segundo efeito, convergente, e ele também se refere ao mito de
origem. A cobra-canoa também teria dado origem ao homem branco, mas este saiu do
Uaupés devido à sua agressividade, que teria provocado seu isolamento. Antes disso,
porém, brancos e índios deveriam escolher: de um lado a espingarda e as mercadorias,
de outro o arco e flecha e os objetos rituais (de festa). Os indígenas, mediante uma
escolha equivocada, ficaram com os objetos rituais e com o arco e a flecha enquanto os
brancos ficaram com a espingarda e as mercadorias. Isto nos remete a uma versão do
mito da má-escolha, presente em várias versões ameríndias. Uma de nossas ideias seria
ver justamente como isto é repensado em função dessas relações que hoje se colocam
justamente com indígenas servindo ao exército, que, no mais, é uma “força armada”.
Cabe, pois, buscar entender como os indígenas encaram essa dupla relação de
hierarquia mais profundamente, as relações sociais que as envolvem e como o Estado,
ou sua ausência, propiciam à população uma mudança paradigmática não apenas na
relação geracional dos indígenas, mas também nas relações interpessoais e na própria
noção de pessoa, presumindo que estar na cidade e estar na comunidade produza
estratégias diferentes tanto de alianças quanto de relações paralelas com os brancos.
Além da questão da hierarquia, há outras questões que seriam interessantes para se
pensar o que está acontecendo em SGC. Como observar um regime de alteridade
quando os indígenas mais velhos acusam os mais jovens de estarem “se tornando
brancos”? O que pode resultar de uma situação onde indígenas são Estado (assumindo
que eles considerem Estado os postos de cargos públicos)?
É claro que o Estado categorizar os indígenas enquanto alteridade não tem o
mesmo sentido prático e simbólico de quando o inverso ocorre, o Estado sendo
categorizado pelos indígenas como Outro. É preciso observar as relações entre um e
outro, visando entender uma dinâmica que tem afetado significativamente a dinâmica
regional.
A pesquisa, portanto, buscará no encontro entre Estado e indígenas (mais
especificamente no encontro entre exército e indígenas) compreender como se produz
hierarquia e como se produz alteridade. Esse encontro, já evidenciado e estudado, muda
o sentido de suas relações espontaneamente e periodicamente, mudando sujeitos,
instituições, políticas e principalmente categorias.
Referências Bibliográficas
Andrello, G. Politica indígena no rio Uaupés: hierarquias e alianças. 2008.
_________. Cidade do Índio. São Paulo: Ed. UNESP, 2006.
Lasmar, C. De volta ao Lago de Leite – a experiência da alteridade em São Gabriel da
Cachoeira. Tese de doutorado – UFRJ. Rio de Janeiro, 2002.
Leirner, P. O Estado como fazenda de domesticação. Revista de Antropologia da
UFSCar, 2013.
Lima, A. C. Souza. Um grande cerco de paz. Petrópolis, Vozes, 1998
Hugh-Jones, S. The palm and the Pleiades: initiation and cosmology in Northwest
Amazonia. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
Recommended