Trabalho Latinoamericana - Clarissa Pereira

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trabalho latinoamericana

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE LETRAS, FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

DISCIPLINA LITERATURA LATINOAMERICANA II – 2014

O ensaio como posição identitária na literatura latinoamericana

Clarissa Xavier Pereira - 8568398

I

O ensaio se caracteriza por não se sujeitar a nenhum forma definida de

antemão, o que o define é a sua realidade subjetiva direta, sem a máscara do

personagem que é comum aos demais gêneros literários. Não havendo um

personagem que media o discurso entre a escrita e a leitura, supõe-se uma relação

direta do autor com o seu próprio nome o que, portanto, convoca uma

responsabilidade para esse nome, e logo uma representatividade desse nome em

um contexto de publicação que se configura a partir da cena pública. Diz César

Aira, em El ensayo y su tema que, diferentemente da novela, o ensaio existe antes

mesmo de ser escrito, posto que seu tema é anterior ao resultado do trabalho do

ensaísta e o encontro do tema é por si encontrar-se com o ensaio, de tal modo que

é isto propriamente o que o diferencia de um simples relato de opinião por parte do

autor; isto é, o fato de que o ensaio está, de alguma maneira, escrito antes da

própria escrita, o “objetiviza”.

A liberdade do ensaio, muito elaborada por Aira em seu texto, utiliza-se

basicamente de duas premissas: primeiramente é necessário ao ensaísta, ao

iniciar sua tarefa, o trabalho de livrar-se das máscaras. Tais máscaras seriam os

personagens que os escritores criam para dar vozes a diferentes experiências que

ecoariam posições alinhadas; o ensaísta, no entanto, deve despir-se de artefatos

polifônicos úteis à construção de enredos na literatura, posto que aquilo que fala

parte de uma posição única e pessoal. O ensaio, enquanto gênero, pede portanto

uma enunciação subjetiva, alguém que diga "eu" e use um tom por vezes coloquial,

convidativo ao diálogo. É como a voz de um sujeito que garante que o que diz é

espontâneo e improvisado. O segundo fator que gera o caráter liberto do ensaio

está no fato de que o gênero não é previamente condicionado a nenhum código de

escrita definido, ou como define Adorno, é uma forma precisamente marcada pelo

condicionamento lúdico.

O ensaio, portanto, é um espaço discursivo aberto, que supõe uma relação

estreita entre o sujeito que fala e sua experiência com o mundo – na qual está

irreversivelmente diluída a sua relação com a linguagem, uma vez que o ensaio

carrega sempre em primeiro plano a questão que aborda diante de uma busca

textual que empreende para alcançá-la. O ensaio se alinha aos demais gêneros

literários por sua tendência, se não metalinguística, pelo menos autorreflexiva, ao

instituir um contexto de fala precisamente marcado pelo tempo, local e sujeito da

enunciação, e ao mostrar-se ancorado promover a reflexão sobre a própria posição

do que é dito diante de seu tema. Tal ancoragem parece metaforizar algo que se

opõe à liberdade defendida como característica primária do ensaio e, no entanto,

funciona de maneira contrária: o ensaísta se autodetermina enquanto sujeito

operante do texto, passando com isso a depender dele, e não do desenvolvimento

próprio do tema, o rumo que o ensaio tomará. Deste modo é possível aproximar-se

ou distanciar-se do tema, acoplá-lo a outros ou abandoná-lo, e ainda assim é

possível prosseguir o texto, sendo apenas necessária a continuação da fala.

Para Adorno a forma do ensaio está bastante relacionada à filosofia,

enquanto gênero que questiona e desenvolve um tema buscando a verdade sobre

ele; e ao mesmo tempo relaciona-se à ciência, por instituir um sujeito. O ensaio

seria um gênero híbrido cujo desenvolvimento é exatamente o contrário do tratado.

Sobre seu caráter filosófico, consta-se que argumentação é uma permanente

busca, não opera o caminho indutivo ou dedutivo, caminha livremente, num

sistema de desvios, o que soma-se ao modo de produzir discurso científico na

instauração de um sujeito que se afirma enquanto investigador daquilo que busca

encontrar por meio de palavras.

II

Consideramos as definições de César Aira e Adorno das quais decorre que

o ensaio é o espaço da liberdade e da felicidade, no qual os temas são

construídos, mesmo em sua seriedade, através de uma forma lúdica; nesse

sentido faremos uma aproximação do gênero com a construção da identidade

latino-americana na literatura conduzida por alguns de seus ensaístas. Em

“Exotismo”, outro texto de Aira, é possível percebermos os valores de criação e

alcance do pensamento literário naquilo que está mais intimamente ligado à

literatura latino-americana: sua própria identidade. Deste modo, o caráter territorial

no qual a literatura se insere não é reduzido a sua mera temática: para Aira é

necessário entrever que a ideia de terra está intimamente ligada à ideia de homem.

A terra, que se torna material criador do homem que a habita e descreve, é

também algo que delimitará o perímetro do tratamento formal na criação literária. O

homem, enquanto agente materialmente feito de terra, se verá em conflito com

algumas ideias que o irromperão, como um campo de força no qual deseja ora

distanciar-se daquilo que lhe é matéria, ora camuflar-se como quem deseja ser

ainda mais a terra do que a própria geografia descreve.

No início do texto de Aira a citação de Montesquieu elabora uma ideia da

nacionalidade que ocorre por acaso ao homem, este é um posicionamento

constante que encontramos em outros ensaístas, como Saer, e nas cartas de

Cortázar acerca do debate entre localismo e cosmopolistismo. Tal questão

perpassa a produção literária latino-americana, e é mais recorrente nos autores do

“boom latinoamericano”. No trecho recuperado de Montesquieu a ideia principal é

de que se é em primeiro lugar "um homem", e que tudo aquilo que decorre de ter

nascido num determinado local é pura casualidade, eximindo-se assim o “homem”

de seus condicionamentos culturais e locais, por pertencer a uma cultura que se

pensa centrada nele. Para confrontar essa ideia, Aira usa a metáfora de uma

espiral – o distanciamento deste homem centrado em si seria, em realidade, um

desapego que surge centralizado em Paris (a imagem do homem seria, nesse

sentido, a imagem de uma cidade central europeia na qual os regionalismos

aparentemente estão dissolvidos) e que vai assim circundando demais países que

possuem uma cultura então flutuante, passível de ser apreendida por este cidadão

do mundo que se finca no centro cultural simbolizado pela capital francesa. Deste

modo, Montesquieu, enquanto "pai fundador do Homem", cria uma novela exótica

que se dá a partir da utilização de personagens persas, que por não serem

europeus podem descrever a Europa a partir de sua visão distanciada, de uma

visão que não só consegue ver o continente europeu, como sobretudo (ad)mirá-lo

de maneira que um europeu jamais faria, por estar numa condição de

estranhamento estrangeiro. Diz Aira que a visão decorrente desta forma de

“mirada” passa, depois de Montesquieu e seus persas, a ser pressuposto da

ciência e da arte, sendo necessária para tais áreas essa mesma visão que o autor

busca para ver algo com olhos despidos de condicionamentos cotidianos e de

estar em contato direto com o objeto de estudo, o contato deve ser tal qual o

primeiro.

Não opondo-se inteiramente a Montesquieu, o estrangeiro – aquele que não

pertence ao que descreve e por isso o narra com distanciamento e estranhamento

– é justamente para Aira a constituição da própria ideia de escritor, que opera

descobertas para assim investigar o mundo que é matéria de sua escrita. No

entanto, há algumas definições que põem esse comportamento em categorias

pouco propositivas; seria então o "viajero" aquele que apenas empreende a tarefa

de descrever algo já previamente posto, sem que nada de maior descoberta possa

dizer sobre aquilo que verificou e descreveu, para conhecer as coisas que sobre as

quais trata o “viajero”: uma vez que "sólo hay que ir a verlas", não havendo em tal

comportamento a investigação do universo do unheimlich que o escritor

empreende em sua tarefa. O escritor “viajero” está na parábola de Borges sobre

porque não há camelos no Alcorão: não há porque tê-los se não para que

reconheçamos o cenário enquanto parte de um deserto do oriente médio – uma

função desnecessária. Escrever o Alcorão com muitos camelos seria próximo do

comportamento de alguns escritores latino-americanos, viciados após o “boom” em

repetir o sucesso daquilo que vende a literatura que os torna escritores

profissionais, descrevendo o continente a partir da expectativa distanciada e pouco

abarcadora daqueles que estão fora da América Latina. Escritores passam a

descrever repetidamente este território da forma como europeus o reconheceriam,

ou seja, através de acontecimentos “inacreditáveis” e fantásticos, de suas florestas

exuberantes, do seu suposto exotismo. Ora, é certo que a América Latina não é

exótica para os latino-americanos, posto que o exótico é precisamente aquilo que

difere do que vemos no dia-a-dia. Uma literatura latino-americana passível de

repetir o sucesso de mercado, logo, apenas atende a expectativa de olhar dos

leitores europeus, fornecendo-lhes nossos "camelos” e confortando este leitor com

nosso imaginado exotismo. A questão, portanto, que aqui busco pensar, não é se

de fato a literatura desta parte do continente está fadada a ter suas peculiaridades

repetidas com exagero, e se isso demonstra um comprometimento do escritor com

ela, mas que existe algo conhecido por “costumes do mundo ocidental”, muito

centrado na Europa e nos países colonizadores, que se autodefinem por

características cosmopolitas, por uma cultura que está supostamente acima de

enraizamentos culturais, e que se finca num “local” desprovido de localismo. São

essas culturas que se posicionam numa espécie de ponto neutro cultural e definem

todas as restantes como a partir do mito do exotismo.

Aira conclui seu ensaio pensando na literatura como algo que fala sempre

do ponto de vista de alguém, que a despeito da “casualidade” de sua origem, está

constantemente no exercício de seu azar local, e nunca do ponto de vista “do

homem”; se formos pensar no homem de Monstesquieu, observamos que é um

homem cujo exotismo de sua sociedade é querer-se culturalmente cosmopolita,

vemos que ele é a própria cidadania parisiense construída por todos os seus

pressupostos. De tal modo que mesmo pensar numa literatura produzida por

Homens sem local incorre no localismo.

III

Juan José Saer, no ensaio “La selva espesa de lo real”, cita Hölderlin

quando este afirma que “a través del progreso de la cultura el elemento

propiamente nacional será siempre el de menor provecho” - tal ideia é muito

próxima daqueles que, no conflito entre localismo e cosmopolitismo, se definem

pelo segundo. Nesta concepção de progresso cultural, aquilo que é tido por

nacional, ou seja, o resultado de uma subtração que de algum modo

desvencilharia cultura de contexto local, operaria a sublimação do que é nacional

em prol de algo supostamente "maior", isto é, de uma espécie de cultura

pertencente a todos os cidadãos do mundo, oriunda da experiência de ser

“humano”. Esse pensamento leva o país de origem do escritor a outra condição, o

território não tido como uma cadeia de referências que tece sua linguagem, mas

como um mero acidente geográfico, aquilo que Aira definiu como “azar local”, e o

que, no entanto, para ele seria o pleno contexto de exercício da escrita. Saer, na

direção oposta de Aira, diz não poder falar como o argentino que é, apenas como

escritor:

“no escribo para exhibir mi pretendida argentinidad, aunque la

expectativa de muchos lectores, especialmente argentinos, se

sienta frustrada. No hablo como argentino sino como escritor. La

narración no es un documento etnográfico ni un documento

sociolófico, ni tampoco el narrador es un término medio individual

cuya finalidad sería la de representar a la totalidad de una

nacionalidad”

O escritor, portanto, descreve duas correntes da literatura latino-americana

que, segundo ele, incorreriam em tentativas de fabricar uma impressão de

totalidade daquilo que representa como território e cultura da América Latina. A

primeira corrente, denominada de “vitalismo”, trata-se de um pensamento

europeizante no qual o sujeito latino-americano é o bom selvagem do realismo

fantástico, cuja vida é determinada pela natureza exuberante e demais

posicionamentos da geografia física. O vitalismo de fato foi um pensamento

desenvolvido pela ciência europeia do século XVIII para explicar através de

fenômenos geográficos e biológicos o desenvolvimento cultural de alguns povos,

em alguns momentos denotando a fatores como o calor o suposto fracasso

civilizatório de povos indígenas ou colonizados. Portanto, a repetição de um

comportamento inconstante por parte dos personagens pertencentes aos enredos

da literatura aqui produzida, unida aos cenários típicos, reavivaria no colonizador

uma ideia do exotismo que ele pensa já saber acerca dos povos viventes na

América Latina. Há uma segunda corrente, chamada de voluntarismo, que diz ele

surgir como “consecuencia de nuestra miseria politica y social”, que seria o uso da

literatura como instrumento de mudança, o autor rebate tal corrente afirmando que

a literatura não está a serviço da mudança social – que a mudança deve existir, de

fato, mas não é papel da literatura que a realize.

Segundo Saer não é função do escritor descrever a América Latina, haja

vista que cabe ao escritor operar descobertas, e uma vez que já sabe o que é

aquilo que descreverá descrevê-lo ainda assim incorre numa tautologia. Ora, o

pensamento tautológico reverte o próprio sentido do ensaio: sabe-se algo que é

uma questão, não um postulado, e no entanto, por isso mesmo, é necessário que

se rumine aquilo que já se tem como dado para que a questão seja lançada sob

outras luzes e desenvolvida por outros meios. Saber-se latino-americano não

significa conhecer-se amplamente, é necessário dialogar e se reconstruir

constantemente enquanto identidade. Tanto é que é por este mesmo motivo que

existe o ensaio de Saer – para confrontar ideias europeizantes errôneas e

panfletárias simplificadoras acerca uma identidade latino-americana que, em vários

momentos, como apontou o ensaísta, não dá conta de promover o seu

autoquestionamento e aprofundar-se em si.

IV.

No texto “Una literatura sin atributos” Saer descreve um homem que está

por trás de um discurso e que por conseguinte acaba se convertendo no próprio

discurso, como sinal de algo extremamente “individualizado em cuanto al estilo”, a

partir de então é possível interpretar o sujeito tornando-se a sua própria pátria –

ainda que carregue todas as determinações negativas de um discurso fundado

num nacionalismo, a exigência de um discurso que de si não sai não parece

promissora.

É impossível deixar de perceber que os dois ensaístas estudados se

preocupam prioritariamente com as posições acerca da identidade territorial

latinoamericana a partir do modo como elas reverberam na literatura, criando então

sujeitos que elaboram determinados pensamentos políticos, e que, ao descrever

narrativas, tornam-se literários. De todo modo, vemos que as duas visões

pretendem estabelecer processos diante dos quais a concepção de América Latina

não esteja submetida à visões colonizadoras; ambos pretendem refletir a posição

do escritor centrada em sua experiência, o que significa, tanto em Aira com seu

escritor de indissociável “azar nacional”, quanto em Saer, no qual o sujeito da

escrita acaba se tornando o próprio país que o origina, um escritor que vê aquilo

que descreve pelos próprios olhos, em sua privilegiada intimidade de quem está

tecendo narrativas afinadas à sua consciência daquilo que entrevê no mundo. Este

escritor, nas duas concepções, é importante para ser um autor da literatura

latinoamericana posto que é alguém cuja autoria não busca marcas em terras

longínquas, nas quais o sujeito centrado determina aquilo que é identitário acerca

de identidades nacionais que não conhece.

V. Bibliografia

ADORNO, Th. “El ensayo como forma”. Notas de literatura. Barcelona: Ariel, 1962.

AIRA, César. “El ensayo y su tema”. in: Boletin del Centro de Estudios de Teoria y

Crítica literária. Rosario, Universidade Nacional de Rosario, 2001.

_________. “Exotismo”, in: Boletin del Centro de Estudios de Teoria y Crítica

literária. Rosario, Universidade Nacional de Rosario, 1993.

SAER, Juan José. “La selva espesa de lo real”, 1979.

______________. “Una literatura sin atributos”, 1980.

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