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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGENS E CULTURA
Os Aikewára e a Mídia:
Relações de poder, cultura e mediação.
Maurício Neves Corrêa
Belém-Pará
2013
Maurício Neves Corrêa
Os Aikewára e a Mídia:
Relações de poder, cultura e mediação.
Dissertação apresentada à Banca
examinadora da Universidade da
Amazônia. Mestrado em Comunicação
Linguagens e Cultura. Linha de
pesquisa: Linguagem e Análise
Discursiva de Processos Culturais.
Orientadora: Profª. Drª. Marisa Mokarzel
Belém-PA 2013
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sílvia Helena Vale de Lima –CRB-2/819
306.08 C824a Corrêa, Maurício Neves. Os Aikewára e a mídia: relações de poder, cultura e
mediação / Maurício Neves Corrêa. – Belém, 2013. 122f. il. Dissertação (Mestrado) -- Universidade da Amazônia,
Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura, 2013.
Orientador: Profª. Drª. Marisa Mokarzel.
1. Sociedade indígena. 2. Cultura indígena-novas tecnologias. 3. Aikewára-mídia. 4. Índios Aikewára-inclusão digital. I. Mokarzel, Marisa. II. T.
Maurício Neves Corrêa
Os Aikewára e a Mídia:
Relações de poder, cultura e mediação.
Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________________________
Presidente/orientador: Profª Drª Marisa Mokarzel (UNAMA)
_____________________________________________________________________
Professora Drª Maria do Rosário V. Gregolin (UNESP/Araraquara)
_____________________________________________________________________
Professor DrºAgenor Sarraf (UFPA)
_____________________________________________________________________
Professor Drº Nilton Milanez(UESB)
Resultado _____________________________________________________________
Belém, __________/ _________/ 2013
Dedico este trabalho às crianças da Terra Sororó e à
Arihêra Suruí e os ou 32 Aikewára que resistiram.
AGRADECIMENTOS
Agradeço às energias boas que me envolvem, estas bolinhas de luz que
não posso ver, mas posso sentir.
À minha orientadora, que me levantou quando eu estava em fragmentos
e pouco a pouco foi me pincelando com leveza. A Marisa cerziu minha
dissertação com delicadeza, com todo cuidado para as agulhas não
machucarem. Sempre quando eu, exasperado, corria até ela, me recebia com
um sorriso e um abraço que me deram a paz e a confiança para terminar esta
etapa, passar por este Caminho.
À Arihêra Suruí, por ter divido comigo suas histórias e confiado a mim o
trabalho de registrá-las. Eu nunca vou esquecer. Lembro todos os dias da
Terra Sororó e daquela senhora doce, que apesar de tudo o que sofreu, me
ensinava os caminhos da floresta com ternura e carinho. Um dia vamos nos
reunir novamente e sob o céu estrelado, olhar mais uma vez o Tapi’i’rapé...
Às crianças Aikewára, pelo olhar, que eu guardo e me faz sonhar com
um mundo melhor.
Aos Karuwara.
Aos meus amigos Umassú, Api, Murué, Moreyru, Tonin, Taraí, Sari,
Hércules, Tiapé, Sawarapi, Arikassu, Maria e Nego.
À Rosario, por tudo que me ensinou. Tentei mil coisas e palavras para
colocar aqui, mas nada parece suficiente. Ela é uma fada? Uma bruxinha do
bem? Ela existe mesmo? Lembro que um dia desses qualquer, normal, chato,
eu tava numa plateia todo murcho com a vida. Escutei uma voz forte... Depois
veio o raio, cheio de luz e de força. Naquele dia, ainda tinha dúvida do que
queria ser quando crescer. Quando eu ficar com o pescoço mais firme, quero
ser parecido com a Rosario e aprender mais e mais com seus poderes, seus
saberes e os seus cuidados de si e dos outros. As pessoas, os alunos que ela
cuida no Brasil inteiro voando com suas asinhas e seus livros...
Ao Nilton, pelas conversas que tivemos e pelos ensinamentos sobre a
imagem em movimento. O Nilton além de ser um amigo é uma referência e
uma inspiração.
Ao professor Agenor que foi fundamental neste trabalho. Devo a ele
muitas das leituras e dos pensamentos que dialogam nesta pesquisa. Agora eu
vejo como aquelas aulas até meia noite foram preciosas.
Às professoras do mestrado; a querida Neusa, à Andréa e à Wilma .
À Alda Costa por todos os momentos que dividimos, seja na aldeia ou na
Universidade.
A todos os professores desde o jardim até a graduação.
À Universidade da Amazônia, por toda a trajetória que tive na instituição,
desde a graduação até o mestrado.
À Capes por todo o apoio.
À Fidesa.
Ao Michael Foucault, por tudo que escreveu e pelas aulas ditas e
escritas.
Aos meus amigos que me aturaram e deram força nestes dias, noites e
madrugadas, felizes ou tristes: Larissa, Vivian, Adelaide, Tiago, Andréa,
Angelina, João, Vanessa, Laura, Carol, Carla, Gabriela, Phellippey, Paulo,
Rodolfo, Andreh Igor, Eliezer, Rodrigo Ig, Spok, Márcia, Kamila, Daniela,
Renata, Michelle, Nassif,Wilton, Thais, Andrei, Rafael, Roberta, Victor e Néia.
Ao Élito BG, por ter emprestado a sua voz aos Aikewára.
Aos meus colegas de turma no mestrado.
Ao querido Ricardo Catete in memorian. É tão estranho você ter partido!
Ricardo foi o melhor aluno, o amigo da turma, em todos os trabalhos, tem um
pouco dele. Foi um privilégio para todos nós do mestrado ter convivido com
uma pessoa tão boa e talentosa. Ricardo, agradeço por ter te conhecido e visto
as apresentações mais bonitas e criativas que só você sabe fazer.
Aos amigos do grupo de projeto de pesquisa Narrativas Orais Tupi na
Amazônia Paraense: performatividade: Adriana Azevedo Joel Pantoja,
Valquíria Lima por tudo o que passamos nestes anos.
Ao Pedro Leal, meu amigo, parceiro de todas as horas. O Pedrinho
estava sempre lá. Os filmes e tudo o que produzimos é marcado pela
criatividade e a bondade do Pedrinho. Obrigado, irmãozinho, por cuidar de
todos nós. Que este coração imenso continue sempre assim, cheio de luz!
À Shirley Penaforte, por todas as conversas e pela grande amizade que
construímos ao longo destes anos. Ela me perturba, me enche, mas é
“brodi”(tá nem sempre). Te adoro Penafraca!
À Dilza, o Rodrigo, a Karol e à pequena Juliana, por cuidarem do papai e
por tudo o que vivemos.
Ao meu padrinho Tadeu, ao Rodrigo, à Sol, à Raiara, ao tio Jr, ao tio
Mário.
Ao meu primo Kléber, que partiu deste plano, mas que me deixou tantas
coisas boas. Guardo comigo com todo cuido a suas palavras e a sua alegria.
Muito obrigado, meu primo, meu irmão, pelo amor que nos une esteja você
onde estiver.
Aos meus compadres por todos estes anos de amor e amizade e por
terem nos presenteado com bebezinha mais linda e amada.
À minha afilhada Maria Cecília, que eu tanto amo.
Ao meu primo Gil, meu irmão, que dividiu comigo esta jornada na Aldeia.
Esta pesquisa não seria possível sem ele. Obrigado por estar comigo neste
momento tão especial.
À minha querida Lariza. O tempo que passamos juntos está vivo no meu
sorriso. Obrigado por cada segundo! Por ter segurado a minha barra no
momento mais difícil. Nossos caminhos se separaram, mas o carinho vai durar
até o silêncio me abraçar. Obrigado pelo amor...
À minha avó Lindalva, por seu grande coração. Por ter cuidado de mim
com tanto amor, por ter estado ao meu lado quando ninguém acreditava em
mim. Minha vó amada.
Ao meu pai, não existe homem que eu mais admiro. O nosso amor é tão
forte, que nada o abala. Obrigado, papai, por todo o incentivo, por todo o
carinho, por todo aprendizado. Ele não usa capa, mas é meu herói. Obrigado
por ser essa pessoa que tu és, firme como um aço e doce e tolo como uma
criança. Te amo.
À minha avó Ivone, porque, independentemente do que aconteça, eu
sempre vou estar protegido pelo carinho e pelo amor do colo da minha avó,
minha votitinha. E todos os dias, mesmo quando eu não estou com ela, ainda
posso sentir a vovó fazendo tranças no meu cabelo e dizendo que tá hora de
cortar. Eu a amo tanto, tanto! Se eu pudesse, passava todos os dias ao lado
dela. Obrigado por todos estes anos de amor! Obrigado pela dedicação, por
gostar tanto de mim, por me embalar, pelos cuidados que só a senhora
tem comigo!
À minha mãe, porque ela é minha voz, meu horizonte. Não houve
pessoa que sofreu mais e vibrou mais comigo. Ela é a minha poesia eu rego as
flores que ela espalha pelo caminho, sempre cuidando do seu jardim. Protejo
os sonhos dela, porque eu sonho junto. Obrigado por abrir as portas de casa
pra mim, obrigado por me amar e pela paciência! Por me abraçar e me acolher.
Obrigado por tudo que você me ensinou e até pelos espinhos do caminho. Vou
estar sempre ao seu lado regando seus sonhos e suas flores...
“Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão”
Eu te amo minha mãe.
RESUMO Esta pesquisa analisa os resultados do projeto Crianças Suruí-Aikewára: entre a tradição
e nas novos tecnologias na escola e a relação dos Aikewára com a mídia. Uma nova
frente de contato a que está exposto o povo indígena Aikewára: a chegada nada pacífica
da mídia a Terra Indígena Sororó. Os enfrentamentos teóricos precisam chegar a esta
nova fronteira, que não pode desconsiderar a história e os aspectos econômicos a que
está submetida esta sociedade e que já foram bastante discutidos pela antropologia, mas
que devem ir um pouco além, porque falam a partir de uma realidade midiatizada, que
demanda novas categorias de análise. O objetivo deste trabalho é compreender, a partir
da análise das relações de poder da Análise do Discurso e dos estudos de mediação
propostos pelos Estudos Culturais e dos estudos de Fricção Interétinica, como se
constitui a história do presente entre os Aikewára e a chegada sistemática e violenta dos
meios de comunicação, mas mostrar que existe pontos de fuga, de produções de novos
sentidos, como o projeto Crianças Suruí-Aikewára.
Os Aikewára, também conhecidos como Suruí do Pará e Suruí-Aikewára, são índios
castanheiros que moram no sudeste do Pará entre os municípios de São Domingos e São
Geraldo do Araguaia. “Suruí” foi uma denominação imposta pelo não índio. Este
povo tupi vive na Terra Indígena Sororó, um grande quadrado de floresta preservado em
meio à devastação.
Em meados dos anos de 1960, os índios Aikewára sofreram uma grande depopulação
após o contato sistemático com a população das cidades vizinhas e chegaram a 33
índios. Apesar de duramente perseguidos por fazendeiros e madeireiros da região, além
de surtos de gripe e varíola, os Aikewára resistiram. Houve muita interferência por parte
dos não-índios, neste processo, que procuraram alterar suas práticas religiosas, sua
alimentação, suas regras matrimoniais, etc. Este momento mudou definitivamente o
rumo da história e da cultura desta sociedade indígena. Segundo o último senso da
Aldeia, os Aikewára somam mais de 300 índios, sendo que a maioria são crianças e
jovens.
Palavras-Chave: Discurso, Cultura, Aikewára,Sociedades indígenas.
ABSTRACT
This study analyzes the results of the project “Children Suruí-Aikewára: between
tradition and the new technologies in school” and the Aikewára relationship with media.
A new front of contact that it is exposed to the Native American people Aikewára: the
arrival of the media to nothing peaceful to the Sororó land. Clashes theorists need to
reach this new frontier, they cannot ignore the history and economics that is subject to
this company and have already been extensively discussed by anthropology, but that
should go a little further, because they speak from a reality mediatized, which requires
new categories of analysis. The objective of this work is to understand, from the
analysis relations of power of discourse analysis and studies of mediation proposed by
cultural studies and studies Friction Interétinica, as is the history of this Aikewára
between arrival and systematic and violent of the media, but show that there is
vanishing points, productions of new meanings, as the project Children Suruí-Aikewára.
The Aikewára, also known as Pará Suruí and Suruí-Aikewára, chestnuts are Native
People to live in southeast Pará between the cities of Santo Domingo and Sao Geraldo
do Araguaia. "Suruí" was a name imposed by no-native. This Tupi people living in
Sororó Land, a large square of forest preserved amid the devastation.
In mid-1960, the Aikewára suffered a great depopulation after systematic contact with
the population of nearby towns, and arrived to 33 Aikewára. Although harshly
persecuted by ranchers and loggers in the region, as well as outbreaks of influenza and
smallpox, the Aikewára resisted. There was too much interference by non-native, in this
case, which sought to change their religious practices, their food, their marriage rules,
etc.. This moment has definitely changed the course of history and culture of this Native
American society. According to the last census of the village, the Aikewára total more
than 300 Indians, most of whom are children and youth.
Key Words: discourse, culture, Aikewára, Native American People .
SUMÁRIO
Apresentação Capítulo 1 - Novas frentes de contato entre os índios Aikewára: Modernidade, Ficção e Poder 1.1. Modernização/coloniedade na Amazônia Brasileira: progresso, devastação e guerra 1.1.1 Modernidade/colonialidade: conceitos e debates 1.1.2 As antenas de TV, o cinema e as estradas: a memória imagética uma moderna Amazônia colonial à flor da Terra
1.3 Os Aikewára e a Terra Indígena Sororó: nas fronteiras do fogo 1.4 As memórias subterrâneas: Cabral, a bíblia, os vírus, as bombas e as roupas chegam. O violento processo de hibridização Aikewára. 1.5 Umassú e as casas da Terra Sororó 1.6 O projeto Crianças Suruí-Aikewára: entre as tradições e as novas tecnologias na
l Capítulo 2 - Os Aikewára, a floresta e uma filmadora: a construção do cinema da Casona. 2.1 Entre histórias, castanha e estrelas. 2.2 Novas tecnologias e suas possibilidades. 2.2.1 A oficina de nutrição. 2.3 O primeiro filme Aikewára. 2.4 O cinema da Casona
2.5. Convergências e divergências: a produção audiovisual na aldeia. 2.6 O Sapurahai Karuwara. 2.7 As novas tecnologias e a apropriação 2.7.1 A oficina de fotografia. 2.7.2 A ultima viagem Capítulo 3 Memória, identidade e mídia: os Aikewára na imagem em movimento. 3.1 As produções de verdade e o combate na mídia. Os Aikewára: estrelas de TV?
3.2 Silenciamentos da televisão.
Considerações finais Referências
14
23
25
28
30
43
50
53
59
60
64
69
70
73
76 83
89
91
94
98 107
112
39
116 119
ÍNDICE DE FIGURAS Imagem 01. Cena do filme Bye, Bye Brazil
Imagem 02. Cenas do filme “coluna norte”
Imagem 03. Cena do filme coluna norte
Imagem 04. Cena do filme “a transamazônica” 1970.
Imagem 05 cena do filme Bye,Bye Brazil
Imagem 06. Mapa1 Fonte Google Earth
Imagem 07. Mapa 2: fonte Google Earth
Imagem 08. BR-153 cortando a Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa
Imagem 09 . Terra Sororó
Imagem 10. A sala de Ahirhêra. Foto Monica Cruvinel
Imagem 11. Umassú em sua casa mesmo. Foto Maurício Neves.
Imagem 12. Casas da Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa
Imagem 13. Cartaz Aikewára
Imagem 14. Desenho Aikewára sobre o Tapi’i’rapé
Imagem 15. O Guerreiro Aikewára, Mutum e Ywyratynga.
Imagem 16. Terra Indígena Sororó
Imagem 17. Cena do filme “a Comida Aikewára”.
Imagem 19. Oficina de Culinária Aikewára: Take do filme “A comida Aikewára”
Imagem 20. Cartaz do filme " A comida Aikewára"
Imagem 21: A nova Aldeia. Foto Gilvandro Xavier
Cinema da Casona 22. Foto Gilvandro Xavier
Imagem 23. Sapurahai Foto Gilvandro Xavier
Imagem 24. Cartaz a rede Aikewára
Imagem 25. cartaz tapi’i’rapé
Imagem 26. Oficina de Narrativas orais.
Imagem 27. Cena do filme Tapi’i’rapé.
Imagem 28 . Menino Aikewára
Imagem 29. Serra das Andorinhas. Foto Mônica Cruvinel
Imagem 30. Casa do Karuwara. Lariza Gouvêa
Imagem 31. Cena do Sapurahai Karuwara
Imagem 32. Murué e Iwatinywwa. Foto Vivian Nery.
Imagem 34: Oficina de fotografia
31 34
34 35 37 40 40 41 42 43 51
52 55
60 61
62 67 68 69 72
73 75 76 78
81 82 83 85 86 88 90 91
Imagem 35. Foto registrada durante a oficina de fotografia. Foto Takari Suruí
Imagem 36. Pintura Aikewára. Foto Risé Suruí
Imagem 37. A coordenadora Ivânia Neves e a bolsista Lariza Gouvêa com as crianças do projeto Imagem 38. Grafismo Aikewára. Cena do trailer dos filmes dos Aikewára.
Imagem 39. Guerreiro Aikewára. Desenho Sari Suruí.
Imagem 40. Aikewára na em Sororó http://img.socioambiental.org/v/publico/aikewara/surui_6.jpg.html Imagem 41. Aikewára pintado. Foto Sari Suruí.
Imagem 42. Aikewára na década de 1970 :fonte pibsocial
Imagem 43. Cena do filme a Comida Aikewára
Imagem 44 . cena do filme Sapurahia
Imagem 45. Sapurahai. Foto Alda Costa
Imagem 46. Os Aikewára no Jornal Nacional
Imagem 47. Taraí no JN
Imagem48. Cena do JN
Imagem 49. Cena do JN
Imagem 50. Foto Gilvandro Xavier
Imagem 51. Takes JN.
Imagem 52. Umassú no JN
92 93
94 95
100
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102 103
104 104
105 108 109 110 110 113
114 114
14
Apresentação
Se só houvesse submissão, não haveria produção
de novos sentidos.
Rosario Gregolin
Arihêra Suruí, uma senhora do povo indígena Aikewára, disse certa vez, numa
de nossas longas conversas, que ela queria guardar uma história de sua mãe num filme.
Ela contou que queria que a neta da neta dela soubesse como se fazia a rede tradicional
antigamente. Arihêra supunha, que apesar de eles terem boa memória, assim ela poderia
guardar esta história, para eles não perderem mais.
No ano de 2010, durante a realização do projeto “Crianças Suruí-Aikewára:
entre a tradição e as novas tecnologias na escola”, várias vezes estive com os índios
Aikewára, na Terra Indígena Sororó. Durante este período pude conhecer um pouco da
história deste povo, em várias conversas com Arihêra, pude compreender o porquê da
preocupação dela em “guardar” suas histórias em vídeos.
A história recente dos Aikewára é profundamente marcada pelo contato deles
com as populações das sociedades vizinhas. Esta integração deles ao mundo ocidental
foi violenta, e mesmo no presente, ainda é tensa, conflituosa. As práticas culturais deste
povo foram profundamente alteradas, quando sistematicamente foram inseridos na
nossa sociedade.
Em meados dos anos de 1960, quando se estabeleceu o contato, os Aikewára
sofreram uma grande depopulação, chegaram a 33 índios. Apesar da implacável
perseguição por fazendeiros e madeireiros da região, além de surtos de gripe e varíola,
os Aikewára resistiram. Houve muita interferência por parte dos não índios, neste
processo, que procuraram alterar suas práticas religiosas, sua alimentação, suas regras
matrimoniais, etc. Este momento mudou definitivamente o rumo da história e da cultura
desta sociedade indígena.
Isto explique talvez, as motivações de Arihêra em querer guardar suas memórias,
pois novas formas de subjetivação estão em funcionamento na aldeia Aikewára. Este
trabalho, que começo a tecer, é resultado da pesquisa que eu e um grupo interdisciplinar
de pesquisadores fizeram entre eles, com o objetivo de buscar pontos de fuga e
resistência, estratégias de apropriação da cultura Aikewára pelas novas tecnologias da
informação.
15
Na primeira metade do século XX, as pesquisas com sociedades indígenas, no
Brasil, passaram a se delinear pelo estudo das línguas indígenas, que ainda hoje
privilegiam os aspectos descritivos das línguas, na linguística e pelas abordagens das
teorias culturais, que num primeiro momento, produziram uma série de trabalhos
voltada para os aspectos estruturais destas sociedades, preocupados com as estruturas
sociais, relacionadas à organização do parentesco e à religião, profundamente
influenciadas pela antropologia estrutural.
Havia pouca preocupação em entender como acontecia o contato entre as
sociedades indígenas e a sociedade envolvente. A maior parte destes trabalhos ignorava
o estado de guerra em que se desenhavam estas fronteiras. Não é e nunca foi pacífico o
contato e esta situação não é uma particularidade das terras baixa da América do Sul.
Nas Cruzadas da Idade Média ou no Iraque de nossos dias, a belicosidade do contato
está nas armas, mas também encontra um campo de batalha nada pacífico no campo
discursivo e a mídia ocupa um papel vital nestas relações, legitimando discursos,
silenciando outros.
A partir dos anos de 1950, os trabalhos realizados por Roberto Cardoso de
Oliveira e toda a geração de pesquisadores que ele orientou e influenciou, procuraram
mostrar que além dos aspectos estruturais, tão caros aos primeiros estudos de
antropologia realizados sobre as sociedades indígenas, as frentes de contato a que elas
foram submetidas deveriam ser compreendidas com novas ferramentas de análise. As
definições importadas da Europa de “aculturação” ou “mudanças culturais” passaram a
ser contestadas por RCO1 e não davam conta das singularidades que o contato
representava nas histórias destes povos. É a partir desta perspectiva que tem início uma
das mais importantes e discutidas definições da antropologia brasileira: a fricção
interétnica.
Chamamos de “fricção interétnica” o contato entre grupos tribais e
segmentos da sociedade brasileira, caracterizados por seus aspectos
competitivos, assumindo este contato muitas vezes proporções
“totais”, isto é, envolvendo toda a comunidade tribal e não-tribal que
passa a ser moldada pela situação de fricção interétnica. Entretanto,
esta situação pode apresentar as mais variadas configurações, todas
elas definidas pelas características anteriormente mencionadas. Desse
modo, de conformidade com a natureza socioeconômica das frentes de
expansão da sociedade brasileira, as situações de fricção apresentarão
aspectos específicos. (CARDOSO DE OLIVEIRA: 1996, 174)
1 RCO é uma abreviação usual em livros e artigos de antropologia para Roberto Cardoso de Oliveira
16
No final dos anos de 1950, com o objetivo de sistematizar a análise sobre o
processo de contato entre os índios da Amazônia e a sociedade nacional, RCO
organizou, pelo Museu Nacional, o projeto Estudos de Áreas de Fricção Interétnica.
Deste projeto fizeram parte Roque de Barros Laraia e Roberto DaMatta. Os dois se
destinaram a estudar os índios do Médio Tocantins, envolvidos com indústria extrativa
da castanha. Laraia se dedicou a dois grupos Tupi: os Suruí-Aikewára e os Assurini e
Roberto DaMatta a um grupo Jê, os Gavião-Parakatejê . Deste trabalho resultou o livro
Índios e Castanheiros: a empresa extrativa do Médio Tocantins (Laraia e DaMatta,
1978).
Contactados sistematicamente no século XX, os Assurini e os Parakatejê
mantiveram relações com a sociedade nacional nos anos de 1920, enquanto os Aikewára
se mantiveram arredios até 1952 (Laraia & DaMatta,1978:45). Seus contingentes
populacionais já eram pequenos, mesmo antes do contato, em função de divisões
internas e guerras com outros grupos indígenas. Com o contato, o número de mortes
levou estes povos indígenas a um continente populacional de menos de 40 índios em
cada grupo.
Embora a extração da castanha, realizada pelos três grupos, constituísse o
principal atrativo da sociedade nacional, o contato se deu de formas diferentes: Os
Parakatejê se assumiram como os donos de seus castanhais, enquanto os Asuriní e os
Aikewára acabaram sob o julgo dos comerciantes. De qualquer forma, embora hoje os
Parakatejê sejam considerados os “índios ricos” da região, o resultado visível, àquela
época, não os colocava em uma situação de miséria muito diferente. O cenário era tão
caótico no início dos anos de 1960, que DaMatta e Laraia chegaram a anunciar o
extermínio destas sociedades.
Dos três grupos, o que menos sofreu com brigas internas foram os Aikewára. A
estabilidade do grupo proporcionava uma reação mais amistosa diante dos estranhos. A
resistência ao contato se devia mais ao receio do cacique Musena e só a partir de sua
morte, em 1952, eles se aproximaram da sociedade nacional (Laraia &.DaMatta, 1978:
81/85).
A contribuição de Índios e Castanheiros (Laraia &.DaMatta, 1978) ao projeto
Estudos de Áreas de Fricção Interétnica, deixa ver como contatos interétnicos, ainda
que sejam estabelecidos por uma mesma frente econômica, não são regidos por uma
sequencia linear de acontecimentos. RCO conclui no prefácio da primeira edição
(Laraia & DaMatta, 1978, 46):
17
[n]este processo de integração ou de marginalização econômica,
Roque de Barros Laraia e Roberto da Matta mostram qual o papel de
duas variáveis importantes da situação de fricção interétnica: o caráter
específico da frente nacional que encontrou e submeteu as populações
indígenas; e o caráter da cultura tribal alcançada por esses segmentos
da sociedade em expansão.
A análise aqui apresentada está num espaço teórico que muito se aproxima da
definição de fricção interétnica, já que trata de uma nova frente de contato: a chegada
nada pacífica da eletricidade e da Mídia à Terra Indígena Sororó. Os enfrentamentos
analíticos precisam chegar a esta nova fronteira, que não pode desconsiderar a história e
os aspectos econômicos a que está submetida esta sociedade, mas que devem ir um
pouco além, porque falam a partir de uma realidade midiatizada, que demanda novas
referências teóricas.
Nos nossos dias, o pensamento ocidental pôde multiplicar os lugares de onde se
olha para estas relações. Durante a maior parte do tempo, a história destas relações de
contato dos povos indígenas foi oficializada por um único foco narrativo, hoje, no
entanto, além dos trabalhos de alguns pesquisadores não índios, alguns poucos
indígenas já chegaram às universidades e começam a mudar a direção das pesquisas.
Por outro lado, as atuais teorias da cultura, ainda que continuem irradiadas pela Europa
e pelos Estados Unidos, já construíram novos caminhos e é possível falar em
Antropologia Brasileira ou Estudos Culturais Latino-Americanos.
No ano de 2009, foi aprovado o projeto “Crianças Suruí Aikewára: entre a
tradição e as novas tecnologias na escola, coordenado pela linguista e antropóloga
Ivânia Neves e pela jornalista Alda Costa, professoras doutoras da Universidade da
Amazônia (Unama), o projeto foi um dos selecionados pelo Criança Esperança da Rede
Globo em parceria com a UNESO. O projeto atendeu mais de 100 jovens entre 5 e 18
anos. Ao longo do projeto foram produzidos 6 filmes e 3 livros didáticos para escola
Aikewára. O objetivo destes materiais era conciliar a tradição cultural dos Aikewára
com as novas tecnologias, de tal maneira, que servissem de apoio à estrutura de ensino.
Também foi criado o “aikewara.blogspot.com” além de uma série de artes, banners e
cartazes.
Fui um dos bolsistas selecionados para participar deste projeto, e entre o final de
2009 e o início de 2011, várias vezes estive em Sororó. Participei intensamente na
elaboração destes materiais. Por ter uma formação em Comunicação Social, com
habilitação em Jornalismo, dirigi e co-dirigi os filmes, além de ter participado
ativamente na edição dos livros e na construção do Blog. Por ser um projeto de pesquisa
18
e extensão de uma universidade, havia uma preocupação acadêmica e social na
elaboração destas materialidades.
O projeto alcançou segundo alguns Aikewára, como Tonin Suruí, um resultado
muito positivo: “As crianças começaram a valorizar mais a nossa cultura depois que
vocês chegaram com esses filmes, não só elas, mas toda a aldeia”. Relatou o jovem
Aikewára, numa de minhas viagens à aldeia. O que motivou a existência deste projeto
foi a situação em que os Aikewára se encontravam à época. Muitas casas em Sororó, já
possuíam televisões e outros equipamentos como o rádio, mas quase nada da cultura
Aikewára havia sido (re)produzido ou transportado para estas materialidades. Isto criava
um conflito entre as gerações, uma crise de identidade, por todo o processo de contado.
As crianças de Terra Sororó estavam expostas a estes dilemas.
É importante deixar claro, nunca tivemos a pretensão de resgatar a cultura
Aikewára, ela nunca esteve perdida. O nosso objetivo era valorizar esta cultura através
destes filmes e livros. Nossa intenção era pensar numa mediação das tradições
Aikewára com estas novas tecnologias, que já eram uma realidade na Aldeia. Não
fomos nós que levamos a primeira televisão à Sororó, tão pouco, este processo é
necessariamente maléfico. O uso destas tecnologias é que vai determinar seus impactos,
benefícios ou degradações.
Esta integração violenta dos Aikewára tem como um dos principais focos de
conflito as mídias. Analisar as estratégias, as tácticas Aikewára a partir da mídia é o
objetivo deste trabalho, um relato de pesquisa, onde analisarei como os saberes
produzidos pelas materialidades midiáticas, criam poderes que alteram as relações como
as práticas de si, remodelando as manifestações, os corpos e as identidades. Como as
relações de poder agem, silenciando ou dando escuta aos Aikewára. Proponho uma
arquegenealogia da construção das identidades Aikewára a partir das produções
midiáticas produzidas pelo projeto e por outras instituições. Para Foucault (2007:172):
A genealogia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição
dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um
empreendimento para libertar da sujeição os saberes históricos, isto é,
torná−los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um
discurso teórico, unitário, formal e científico. A reativação dos saberes
locais − menores, diria talvez Deleuze − contra a hierarquização
científica do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder, eis o
projeto destas genealogias desordenadas e fragmentárias. Enquanto a
arqueologia é o método próprio à análise da discursividade local, a
genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim
descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta
discursividade. Isto para situar o projeto geral.
19
Segundo Gregolin (2007): “Tendo como ponto central a arquegenealogia de
Michel Foucault, o discurso é tomado como uma prática social, historicamente
determinada, que constitui os sujeitos e os objetos”. As produções da mídia da/sobre a
sociedade Aikewára, materialidades discursivas construídas historicamente, colocam em
circulação identidades, estereótipos, geram novos efeitos de sentido.
A partir desta perspectiva teórica, esta arquegenealogia, aqui proposta, em
colocar em luta os saberes produzidos pelas diversas produções da mídia sobre o povo
Aikewára, observando o lugar histórico de onde eles falam. De que forma os saberes
desta cultura são tratados pelas produções não ficcionais como reportagens e
documentários? Para Gregolin (2008:12), a função do arquegenealogista é “interpretar
ou fazer a história do presente”. Este procedimento consistiria em mostrar que “as
transformações históricas foram as responsáveis pela nossa atual constituição como
sujeitos objetiváveis por ciências, normalizáveis por disciplinas”.
Este trabalho fala de um lugar ainda novo em relação às sociedades indígenas,
pois procura compreender, a partir da análise das relações de poder da Análise do
Discurso e dos estudos de mediação propostos pelos Estudos Culturais e pelo projeto de
fricção Interétnica da Antropologia Brasileira, como se constitui a história do presente
entre os Aikewára e a chegada sistemática e violenta dos meios de comunicação. Mas,
além disto, a motivação é mostrar que existe a fuga e não apenas a submissão, é mostrar
que apesar de toda a perseguição e violência deste processo, foi possível a cultura
Aikewára se apropriar de novas tecnologias para se fortalecer.
A difícil conciliação entre autores de diferentes correntes é um exercício penoso,
porém, todas estas correntes estão empenhadas em estudar os sujeitos e formas de
deslocar as histórias do centro, colocar em dúvida as estratégias de dominação e apontar
para novos rumos na margem, outras histórias que possibilitem a fuga, a resistências.
O primeiro capítulo é dedicado a analisar como a história do presente, se
(re)produz na Terra Sororó, na Amazônia Brasileira, uma região que a partir de uma
modernização/colonização ocorrida a partir da metade do século XX é rasgada por
estradas e grandes projetos. A partir do Pensamento Liminar, proposto por Walter
D.Mignolo, apresento uma modernização amazônica como a outra face da colonização
da região. A partir da análise de alguns vídeos produzidos pelo Estado Brasileiro para
publicizar seus projetos na região, apoiado pela analítica do poder de Michel Foucault e
pelos dos estudos de Mídia e Discurso de Maria do Rosario Gregolin, mostro como a
mídia participou deste processo, produzindo efeitos de sentido que legitimavam a
modernização/colonização.
20
A partir das memórias subterrâneas das narrativas orais Aikewára, mostro como
este povo indígena se viu neste processo de modernização/colonização da Amazônia,
pelo o qual a Terra Sororó passou. Como se deu fricção interétnica entre eles e a
sociedade nacional. Seria a mídia uma frente de fricção? Procuro analisar como as
novas frentes de contato entre os Aikewára e a sociedade envolvente são mediadas e.
em que condições de produção elas se estabelecem. Termino o capítulo com a chegada
da eletricidade à aldeia e suas consequências imediatas.
No segundo capítulo, vou fazer um relato de pesquisa, meus primeiros contatos
com os Aikewára, as motivações, o objetivos e as conclusões do projeto Crianças Suruí-
Aikewára: entre a tradição e as novas tecnologias na escola. Como se deu a criação do
cinema Aikewára e quais os desafios enfrentados, tanto na parte cultural como criativa.
Utilizo os estudos de Jesus Martin-Barbero sobre as mediações e as novas
tecnologias e procuro mostrar de forma empírica a apropriação de novas tecnologias
pela cultura. Como foi possível à cultura Aikewára se apropriar de vídeos, CDs livros e
outras materialidades para negociar as fronteiras de identidade.
No capítulo a partir das análises de Mídia, Discurso e identidade de Rosário
Gregolin e das considerações de Michel Foucault sobre poder e discurso, além dos
estudos de imagem e memória de J.Jacces Courtine e Nilton Milanez , analiso como as
materialidades produzidas pelo projeto e por outras mídias, colocaram novas formas de
funcionamento de poder em ação, dando novas formas de negociação dos Aikewára
com suas identidades a sua própria cultura. Como se dá o embate neste campo, no que
diz respeito às identidades Aikewára. Procurei analisar qual o impacto dos filmes, sobre
a cultura Aikewára e as estratégia que este povo usa para resistir às pressões impostas
pelos efeitos de sentido veiculados pelas mais diferentes mídias. O que foi silenciado e
o que ganhou escuta na mídia?
Este trabalho de pesquisa que apresento faz parte de um projeto maior e outros
pesquisadores participaram deste processo. Então, divido com eles a autoria da
pesquisa, um grupo de pessoas preocupadas em fazer pesquisa na Amazônia, mas de dar
a estas pesquisas um sentido social, ao longo desta dissertação, trarei suas vozes ao
texto. Este é um trabalho em conjunto, e agora, começo meu exercício de memória e
análise.
Existe uma inquietude de minha parte com tantas questões perturbadoras na
região Amazônica. Uma brutal desigualdade social, que ainda hoje, atualiza o sistema
colonial, enquanto a floresta queima. Esta inquietação é minha motivação, seja como
21
jornalista ou como pesquisador. As estratégias dos sujeitos amazônicos para enfrentar as
dificuldades nesta região tão grande como plural me levam a escrever, filmar, produzir.
22
23
Capítulo I
Novas frentes de contato entre os índios Aikewára:
Modernidade, Ficção e Poder.
Pensando a mídia como prática discursiva, produto de linguagem e processo
histórico, para poder apreender o seu funcionamento é necessário analisar a
circulação dos enunciados, as posições de sujeito aí assinaladas, as
materialidades que dão corpo aos sentidos e as articulações que esses
enunciados estabelecem com a história e a memória. Trata-se, portanto, de
procurar acompanhar trajetos históricos de sentidos materializados nas
formas discursivas da mídia.
(Rosário Gregolin)
A mídia tornou-se nos últimos anos, um dos principais palcos de batalha entre os
Aikewára e a sociedade envolvente, a chegada das parabólicas, foi mais um dos
aspectos da fricção interétnica entre eles e a sociedade nacional, na medida em que foi
um importante dispositivo de conflito das práticas culturais e das negociações das
identidades. A partir da Análise do Discurso, com o método arquegenalógico proposto
por Michel Foucault e os estudos de mídia e discurso de Rosário Gregolin podemos
enxergar, através da névoa inteligível dos discursos, como o poder funciona através de
efeitos de sentido que alteram as identidades, os corpos, as práticas. As produções
discursivas midiáticas estão permeadas de relações de poder. Segundo Foucault
(2007:101):
[...]existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam
e constituem o corpo social e que estas relações de poder não podem
se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma
acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso. Não há
possibilidade de exercício do poder sem uma certa economia dos
discursos de verdade que funcione dentro e a partir desta dupla
exigência. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só
podemos exercê−lo através da produção da verdade.
Michel Foucault (2005:35) concebe o poder “como uma coisa que circula”, e só
“funciona em cadeia”. Para o autor, o poder não é uma riqueza que pode ser
conquistada, nem é um privilégio de poucos. “O poder se exerce em rede e, nessa rede,
não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse
poder e também de exercê-lo.” É neste movimento de poderes, o lugar das táticas, das
estratégias, a partir das produções de verdade.
Os sujeitos, não são passivos do poder, são seus fiadores, “jamais eles são o alvo
inerte ou consentidor do poder, são sempre seus intermediários.” Foucault (2005). “Em
24
outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles”. Há, no poder,
circulação e funcionamento, uma engrenagem inteligível e combativa de produção de
verdade. O poder não é uma teia estável de produções de sentindo. Para Foucault
(2007:142) “Na medida em que as relações de poder são uma relação desigual e
relativamente estabilizada de forças, é evidente que isto implica um em cima e um em
baixo, uma diferença de potencial”.
Está dialógica cima/baixo, desigual e relativamente estabilizada, vai permitir os
espaços de luta e resistência, que são múltiplos. Há sempre a perspectiva de o jogo virar.
Nos embates provocados pela mídia, está uma relação constante nas construções das
identidades, o silenciado pode, por motivos diversos da história, falar. As relações de
poder nos seus limites de desigualdade relativamente estabilizada permitem o constate
vai e vem de produções de verdade. Então, um grupo de sujeitos pode, nas movências
históricas, ter sua posição discursiva (re)vista.
Na história do Brasil, nas últimas décadas, a situação dos povos indígenas e a
questão ambiental exemplificam as transitoriedades do poder. Existe uma série de
produções de verdade que os legitimam como os “guardiões da floresta”, mas em outros
momentos, a corrente de “inimigos do progresso” é que ganha força. Estas duas
correntes coexistem de forma desigual e relativamente estabilizada no mesmo momento
histórico, elas se tencionam e se invertem. Gregolin (2007:5) diz que:
[...]em um momento histórico, há algumas ideias que devem ser
enunciadas e outras que precisam ser caladas. Silenciamento e
exposição são duas estratégias que controlam os sentidos e as
verdades. Essas condições de possibilidade estão inscritas no discurso
– elas delineiam a inscrição dos discursos em formações discursivas
que sustentam os saberes em circulação numa determinada época.
Tomando como referência as condições de possibilidade da história e a
circulação do poder, pretendo compreender como a relação entre a mídia e os Aikewára
se estabeleceu. Sem perder de vista que, apesar de suas singularidades históricas, eles
fazem parte de uma ordem social, e que, assim como outros povos indígenas, eles
estiveram no meio do caminho do “progresso” na Amazônia.
Neste primeiro capítulo, analiso como a construção de rodovias e a instalação de
uma rede nacional de televisão e cinema, interferiu nos rumos da história Aikewára.
Este povo passou por um violento processo de hibridização com a sociedade nacional,
que sob o pretexto da “modernização” e do “progresso” da Amazônia, começou um
corrida colonialista sobre a região.
25
1.1 Modernização/coloniedade na Amazônia Brasileira: progresso,
devastação e guerra
A eletricidade chegou à Terra Sororó, sistematicamente, a partir do ano de 2009,
quando a maioria dos Aikewára adquiriu televisão e antena parabólica, mesmo assim,
muito antes disto, eles já possuíam o contato com a TV, uma bomba que gerava
eletricidade e havia algumas televisões em Sororó, mas eles se reuniam em grandes
grupos para assistir. O que significa que eles conheciam os discursos que circulavam na
mídia sobre eles. Como frequentam as cidades vizinhas, conheciam bem as fronteiras
culturais e suas tensões e pela presença de missionários religiosos e da escola em
Sororó, os Aikewára já entendiam as expectativas dos não índios em relação a eles.
A experiência entre eles, que aconteceu a partir de um projeto de novas
tecnologias, além de me mostrar como administravam suas fronteiras culturais,
necessariamente me fez refletir sobre a importância das produções da mídia entre as
sociedades indígenas e sobre a importância da (re)produção de estereótipos dos
indígenas nesta tensão de produções de verdade. Para Gregolin:
Na sociedade contemporânea, a mídia é o principal dispositivo
discursivo por meio do qual é construída uma “história do presente”
como um acontecimento que tensiona a memória e o esquecimento. É
ela, em grande medida, que formata a historicidade que nos atravessa
e nos constitui, modelando a identidade histórica que nos liga ao
passado e ao presente. (2007:11)
Existe uma produção de discursos sobre os indígenas brasileiros que chega pelos
meios de comunicação massiva e pelas redes sociais e contribui para as formulações que
a sociedade brasileira faz sobre as identidades indígenas. Nas primeiras atividades do
projeto, fizemos um levantamento dos filmes produzidos pelo cinema brasileiro
comercial sobre temáticas indígenas no Brasil. Fora do circuito alternativo, encontramos
alguns poucos filmes produzidos a partir de romances famosos na literatura brasileira
como “O Guarani” e “Iracema” de José de Alencar.
A realidade do Brasil é bem diferente do que acontece nos Estados Unidos, onde
há um número significativo de produções que abordam as histórias da conquista do
Velho Oeste do país e a dizimação dos “vilanescos caras vermelha”. Segundo Shohat e
Stam (2006), aproximadamente um quarto da produção de filmes longa-metragem
americanos entre 1926 e 1967 foram sobre a temática de faroeste.
26
De uma maneira geral o faroeste hollywoodiano virou a história de
ponta-cabeça ao apresentar os índios como intrusos em suas próprias
terras, criando assim uma perspectiva paradigmática... Raramente os
faroestes mostram os índios vivendo de maneira pacata no ambiente
doméstico, embora a expansão para o Oeste tenha destruído, de modo
brutal justamente esse estilo de vida, bem como os costumes desses
nativos. (SHOHAT E STAM: 2006:177)
Se por um lado, os filmes dos Estados Unidos abordam estas histórias, mesmo
que glorificando, em muitos casos, o genocídio a que as populações indígenas de lá
foram submetidas e invertendo os papéis, no cinema brasileiro, há um silenciamento
bem mais evidente destas histórias de genocídio e colonização. A indústria cultural
brasileira, historicamente, invisibiliza as histórias indígenas.
Há também em circulação em diversas partes do mundo, disponibilizados pela
indústria cultural, uma série de documentários produzidos por redes internacionais de
comunicação voltadas para os povos Incas, Maias e Astecas. Estes impérios pré-
colombianos causam muito interesse por parte tanto da mídia quanto das publicações
didáticas, mesmo no Brasil. É muito possível que uma criança brasileira receba mais
informações sobre estes povos do que sobre as populações que habitavam as regiões em
que moram.
Em relação à programação televisa brasileira, a situação não é tão diferente, mas
atualmente, tanto em canais comerciais como nas TV públicas, já se produziu uma série
de documentários e reportagens sobre sociedades indígenas. Há personagens indígenas
célebres na teledramaturgia brasileira, mas isto não significa que nestas produções, de
fato, as sociedades indígenas ganharam um espaço de escuta. Basta lembrar que os
personagens indígenas normalmente são interpretados por atrizes e atores brancos.
As produções audiovisuais também estão fortemente presentes na rede social
YouTube e algumas delas estão voltadas para as sociedades indígenas Tupi da
Amazônia. Neste novo espaço de construção de sentidos, a priori, as condições são mais
democráticas, já que todos os usuários da web podem postar seus filmes. Mas isto não
significa que estas produções não estejam filiadas a redes de memória que circulam nos
meios massivos e talvez a diferença esteja no fato de mais pessoas terem a possibilidade
de produzir conteúdos. Numa rápida pesquisa, há vários filmes postados produzidos por
indígenas e por não índios. Não podemos, no entanto, acreditar que por serem
indígenas, estes novos produtores não vão também reforças os estereótipos construindo
historicamente sobre suas sociedades.
Em relação aos Aikewára, a relação que estabelecem com a produção
audiovisual é um pouco diferente. A partir da publicidade que eles ganharam com o
27
projeto, uma série de reportagens sobre eles, além dos filmes, livros e o blog
aikewara.blogspot.com foi produzida. Esta condição gerou novos efeitos de sentido e de
verdade tanto entre eles mesmos, mas também sobre o que pensa sobre esta sociedade
além dos muros de Sororó. Nos movimentos da história, parte de suas memórias
subterrâneas ganharam escuta na mídia.
Neste novo momento, o processo de contato com a sociedade envolvente ganhou
novos contornos nas desiguais e relativamente estabilizadas relação de poder. É
importante destacar o movimento e as lutas deste povo na administração da produção de
verdades através da mídia. Contudo é preciso buscar a história do presente entre os
Aikewára, para entender quais os papéis da mídia nos caminhos desta sociedade, como
os discursos, a partir da mídia, silenciaram ou/e legitimaram a violência, ou em outro
momento histórico, fizeram o oposto.
Os Aikewára estão inseridos numa narrativa maior, para entender os processos
que levam ao contato sistemático, é preciso tratar a Terra Indígena Sororó, não como
uma ilha, mas sim como um lugar que esteve atravessado por conflitos que mudaram o
próprio desenho do país e da Amazônia Brasileira. É significativo assinalar que a mídia,
mesmo antes de se estabelecer na aldeia, esteve nesta história do presente, legitimando
processos de dominação e silenciamento.
Um dos aspectos mais importantes nos estudos sobre as sociedades e os sujeitos
Indígenas nesta situação de Fricção Interétnica é entender quais os discursos e de como
seus funcionamentos legitimaram a “conquista da Amazônia” a partir da metade do
século passado, momento em que se estabelece o contato sistemático entre várias
sociedades indígenas da região, inclusive os Aikewára, e a sociedade envolvente. A
bandeira da modernização/progresso da região é talvez, a grande justificativa, para a
sociedade em geral, desta invasão, enquanto a integração/colonização verdadeiro
objetivo.
Segundo Foucault (2005:29) “Somos submetidos pelo poder à produção da
verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade”. O exercício de
legitimação desta invasão da Amazônia foi uma composição orquestrada por vários
setores da sociedade brasileira: governo, mídia, capital nacional, capital estrangeiro e
imigrantes em busca de uma “vida melhor”. A modernidade/colonialidade, travestida de
progresso/integração, teve um grande número de produções de verdade para autorizar a
violência e a devastação. Como aconteceu este processo é o que pretendo discutir nos
próximos tópicos.
28
1.1.1 Modernidade/colonialidade: conceitos e debates.
O que é ser moderno? Esta pergunta certamente rende debates e teses
infindáveis, e talvez divida epistemologias como grãos de areia, de tão variadas
respostas. É possível, no entanto, fazer alguns recortes. Alguns autores vão se debruçar
sobre os estudos da modernidade, e pretendo cerzir algumas de suas definições para
subsidiar o debate da modernidade Amazônica. Para Bruno Latour (2009:15):
A modernidade possui tantos sentidos quantos forem os pensadores ou
jornalistas. Ainda assim, todas as definições apontam, de uma forma
ou de outra, para a passagem do tempo. Através do adjetivo moderno,
assinalamos um novo regime, uma aceleração, uma ruptura, uma
revolução do tempo. Quando as palavras “moderno”, “modernização”
e “modernidade” aparecem, definimos, por contraste, um passado
arcaico e estável. Além disso, a palavra encontra-se sempre colocada
em meio a uma polêmica, em uma briga onde há ganhadores e
perdedores, os Antigos e os Modernos. “Moderno”, portanto, é duas
vezes assimétrico: assinala uma ruptura na passagem regular do
tempo; assinala um combate no qual há vencedores e vencidos.
Apesar de infindáveis conceitos do que é ser “moderno”, existe certa
recorrência nas definições. A questão do tempo, certa altura, talvez tenha feito mais
sentido, porém, existe um moderno mais moderno? O pós-moderno? O moderno pode
ser velho, no que diz respeito exclusivamente ao tempo? Tentar alcançar o moderno
como passagem de tempo é como tentar tocar no horizonte, a caminhada vai ser longa,
mas circular, sem de fato conseguir tocar na linha. Isto se deve ao fato, de que o
moderno, pressupõe o novo. Então o enunciado “o antigo tempo moderno” só se
estabelece como metáfora ou antítese.
O moderno pressupõe o tradicional ou antigo. Como Latour expõe existe uma
batalha entre eles como vitoriosos e derrotados. A tentação de olhar a modernidade por
este prisma é grande, mas logo se exaure, pois esta não seja, talvez, uma batalha de
exclusões, mas sim de choques equilibrados, que não se excluem, mas se misturam, sem
se fundirem ou se anularem, uma luta sem fim e sem vencedores.
... não podemos mais assinalar a flecha irreversível do tempo nem
atribuir um prêmio aos vencedores. Nas inúmeras discussões entre os
Antigos e os Modernos, ambos tem hoje igual número de vitórias, e
nada mais nos permite dizer se as revoluções dão cabo dos antigos
regimes ou os aperfeiçoam (LATOUR :2009:15)
29
Não adianta tentar buscar o moderno no horizonte do tempo, mas é possível
entender a modernidade como uma projeto político de dominação, que inclusive
atravessa o tempo como um raio-x. D. Mignolo (2003:80) apresenta estudos muito
consistentes sobre a modernidade como desenho político “a colonialidade é constitutiva
da modernidade”, no que ele define como “pensamento liminar”:
... visto da perspectiva subalterna, o lócus fraturado da enunciação
define o pensamento liminar como uma reação à diferença colonial.
“Nepantla”, palavra cunhada por um falante de Nahuatl na segunda
metade do século 16, é outro exemplo do pensamento liminar . “Estar
ou sentir-se entre”, como se poderia traduzir a palavra, pôde sair da
boca de um ameríndio, não de um espanhol (cf Mignolo,1995b). A
diferença colonial cria condições para situações dialógicas nas quais
se encena, do ponto de vista subalterno, uma enunciação fraturada,
como reação ao discurso e à perspectiva hegemônica. Assim o
pensamento liminar é mais do que uma enunciação híbrida. É uma
enunciação fraturada em situações dialógicas com a cosmologia
territorial e hegemônica (isto é, ideologia, perspectiva). (2003:11)
Para o autor, o desenho do sistema mundial moderno começa com as grandes
navegações ibéricas,“a conexão do Mediterrâneo com o Atlântico através de um novo
circuito comercial, no século 16, lança as fundações tanto para a modernidade quanto
para a colonialidade”. As relações de trabalho, econômicas e sociais desta nova ordem,
um “moderno sistema mundial” começam a se desenhar neste momento, mas segundo
D. Mignolo (2003:80), é preciso repensar este modelo:
A necessidade de concebê-lo como um sistema mundial
colonial/moderno e de contar as histórias não apenas a partir do
interior do mundo “moderno, mas também a partir de suas fronteiras.
Estas não são apenas contra-histórias ou histórias diferentes, são
histórias esquecidas que trazem para o primeiro plano, ao mesmo
tempo uma nova dimensão epistemológica da, e a partir da margem do
sistema mundial colonial/moderno, ou se quiserem, uma
epistemologia da diferença colonial que é paralela a epistemologia do
mesmo.
Este trabalho, para trazer estas histórias esquecidas, das margens, recorta esta
epistemologia colonialidade/modernidade como faces da mesma moeda. O
colonialismo, no Brasil, não se extingue no grito do Ipiranga de Dom Pedro I. Este
processo não seria muito mais a independência dos portugueses no Brasil? As teias do
colonialismo na América Latina mudaram para as mãos de uma elite euro-americana,
que depois ganhou outro contorno, mas manteve as práticas de colonialidade, o que
segundo D. Mignolo (2003:129) não deve ser confundido como o período colonial.
30
A colonialidade do poder deve ser distinguida do período colonial,
que se estende na América Latina do início do século 16 ao início do
século 19, quando o Brasil e a maioria dos países de língua espanhola
conquistam a independência da Espanha e de Portugal e começaram a
constituir-se em estados-nações. O colonialismo, como observa
Quijano, não se extinguiu com a independência porque a colonialidade
do poder e do saber mudou de mãos, por assim dizer, subordinou-se à
nova e emergente hegemonia epistemológica: não mais a Renascença,
mas o iluminismo.
Mas, como o autor apresenta, este processo não acabou, como podemos ver no
caso da modernização dos povos indígenas e em muitas outras histórias do continente, a
moeda colonialidade/modernidade continua a se atualizar. Somos constituídos desta
memória, afinal, as Américas são conhecidas ideologicamente e politicamente como o
“novo mundo”. Estes continentes, mais do qualquer tecnologia, são a grande “invenção”
da modernidade, mas o moderno não se impõe sem luta e esta luta não é contra o
“antigo” ou contra as “tradições”, mas sim uma luta pelo poder, uma batalha para
desautorizar saberes e eleger outros sob o pretexto de uma lógica, legitimada por
instituições e pessoas, uma luta pela subjetivação dos sujeitos, suas práticas e seu
próprio corpo.
As “novas” tecnologias, sobretudo as da informação, hoje, talvez sejam a ultima
fronteira da modernidade. É importante notar o como o termo/conceito modernidade é
flutuante e progressivo. Os Aikewára, hoje estão nesta “ultima fronteira” da
modernidade, e a mídia ocupa agora um papel vital na relação desta sociedade com o
seu entorno. Não apenas pelo que causa entre eles na aldeia, mas também de como ela
legitima ou agride os discursos sobre os povos e a floresta.
1.1.2 As antenas de TV, o cinema e as estradas: a memória imagética uma
moderna Amazônia colonial à flor da Terra
Bye bye, Brasil
A última ficha caiu
Eu penso em vocês night and day
Explica que tá tudo okay
Eu só ando dentro da lei
Eu quero voltar, podes crer
Eu vi um Brasil na tevê
Peguei uma doença em Belém
Agora já tá tudo bem
Mas a ligação tá no fim
Tem um japonês trás de mim
Aquela aquarela mudou
(Chico Buarque)
31
A epígrafe acima é um trecho da música Bye,bye Brasil, composta por Chico
Buarque de Holanda, retrata um momento da história do Brasil, quando a televisão e as
estradas buscavam unir o país. A época é a década de 1970 e o enunciado “Eu vi um
Brasil na tevê”, reproduz um discurso muito forte neste período, em que se estabelecia
uma rede nacional de telecomunicações, patrocinada pelo governo brasileiro. Era o
tempo dos generais e o Brasil vivia sob o julgo da ditadura militar. Uma das principais
estratégias de dominação dos ditadores era justamente a integração do país por meio das
telecomunicações, que neste período estavam sob censura e se restringiam a veicular
assuntos de interesse do governo. Para Souza:
Com a censura, os telejornais se restringiam a exibir
reportagens internacionais e institucionais. Na televisão,
o Brasil era um país lindo, em paz e dinâmico. O próprio
presidente na época, Emílio Garrastazu Médici, afirmava
ver um país maravilhoso no Jornal Nacional. Era uma
imagem falsa, como se não existisse crise social ou
perseguição. A notícia só era divulgada se fosse liberada
pela censura.(2009:5)
A música de Chico Buarque é tema do filme,
com o mesmo nome da composição Bye, Bye
Brazil(1979) de Cacá Diegues. O filme conta a
história da “caravana holidei”, um grupo de artistas
mambembes, que cruza o Brasil fugindo das cidades
aonde o neon das televisões chegou. Segundo a
sinopse oficial da obra “fazendo espetáculos para
camponeses, cortadores de cana, índios etc., sempre
fugindo da concorrência da televisão. O grupo
atravessa a Amazônia até chegar a Brasília, vivendo
diversas aventuras pelas estradas do país”.
Na imagem, o caminhão da caravana holidei
trafega pela Rodovia Transamazônica, com o
objetivo de chegar até Altamira, de acordo com o
filme a “terra das oportunidades”. Pode-se notar a
estrada ainda sem asfalto e a personagem se
protegendo sol com sua sombrinha cruzando recém-
aberto caminho.
O filme retrata este período da integração
Imagem 01. Cena do filme Bye, Bye Brazil
32
nacional promovida pelo governo militar, como forma de controle e colonização,
apoiado de silenciamento do momento que o Brasil atravessava. Em nome do progresso,
florestas caíam dando lugar a cidades e estradas. Junto com estas estradas, vinham as
antenas de TV, que neste momento, alteravam as práticas sociais e inibiam as produções
locais, em nome de uma unidade nacional, maquiada pela TV como um “país lindo” nas
palavras do próprio presidente militar Médici.
A estruturação da televisão no Brasil, como rede nacional, por meio
de microondas, deve-se ao sistema consolidado durante o período do
regime militar, mais precisamente no final dos anos 60. Entretanto, o
interesse do governo militar não era o progresso do país, como se
pregava. Naquele momento se estruturava um sistema de poder das
emissoras de TV e um controle que perdura até hoje.
(SOUZA:2007:30)
A nacionalização da televisão e até mesmo a sua concepção estão intimamente
relacionadas ao poder governamental. É preciso olhar com atenção como se dá o
processo e o funcionamento de uma rede nacional de telecomunicações e quais seus
impactos, já que representava um poderoso legitimador de discursos pró
desenvolvimento. Esta movimentação em relação às sociedades tradicionais da
Amazônia, fazia da mídia, neste momento, mais uma frente de Fricção Interétnica
(RCO).
A história dos Aikewára está diretamente pautada a este processo de ocupação
que o governo militar promoveu na Amazônia, mas este projeto, porém não iniciou com
os militares. A rodovia Belém-Brasília, também conhecida como Transbrasiliana ou BR-
153, começou a ser construída ainda em 1960, durante a administração de Juscelino
Kubitschek, mas sua conclusão aconteceu em 1974, já durante o governo militar. A rodovia
se estende Marabá, no sudeste paraense, até Aceguá no Rio Grande do Sul. Outra rodovia
construída no mesmo período é a BR-230, também conhecida como Rodovia
Transamazônica, liga o estado da Paraíba ao Amazonas e atravessa horizontalmente o
estado do Pará. Esta BR também passa pelo município de Marabá. Estas rodovias e toda
a rede sentidos que se estabeleceram junto com elas mudaram a forma de vida
econômica e cultural nesta região.
Com as estradas vieram também os conflitos com os povos que moravam na
floresta. É neste cenário que Roberto Da Matta e Roque de Barros Laraia fizeram sua
pesquisa com os índios castanheiros. Esta modernização está diretamente relacionada ao
pensamento liminar. Não seria este processo uma atualização do discurso colonial e
33
estas construções justificadas pelo “desenvolvimento e progresso” não seriam novas
práticas de colonialidade?
A seguir uma sequência de cenas do filme Coluna Norte do período do governo
de Juscelino Kubichek. O filme foi patrocinado pela indústria automobilística e mostra a
construção da rodovia Belém-Brasília. A obra exalta a conquista do “pesadelo verde” da
floresta Amazônica.
O filme usa de várias práticas discursivas para justificar a construção da rodovia.
Há uma seleção de imagens, sons e palavras que buscam emocionar o espectador. A
trilha, a narração ufanista e bem pontuada, criam um clima épico. Os enquadramentos
das cenas foram pensados para exaltar a conquista dos sujeitos que no filme o narrador
chama de “pioneiros”. Os discursos da modernização e da integração da Amazônia
estão fortemente exacerbados na produção. A seguir um trecho do texto do filme:
A primeira árvore tombada... Um areal de rios, um mundo de sagas e
mistérios. Um pesadelo cheio de duendes e ameaças separava o norte
e o coração do Brasil. A estrada Belém-Brasília começava. Vinde
meus filhos de desteimar! Segue em ordem. Nossas armas preparadas,
vossos machados de gume cortante. Pioneiros, oh pioneiros! (coluna
do norte)
Imagem 02. Cenas do filme “coluna norte”
34
A imagem ao lado mostra o ônibus da
Mercedes-Benz, produzido no Brasil segundo o
filme. Podemos notar, no enquadramento da
placa, um dos discursos mais difundidos pelo
governo JK: a integração nacional. a película
trabalha com memórias discursivas de conquista
e retoma ideias coloniais:
Por acaso as raças mais velhas hesitaram? Ou lá, no além mar,
esmoreceram e encerram sua missão fatigados? Retomamos nós o
perene fardo a tarefa e a lição... (COLUNA NORTE)
O discurso colonial é atualizado, uma memória da atualidade, como a outra
moeda da modernidade da Amazônia, a conquista do desconhecido. Sobre a memória
discursiva Courtine esclarece:
Toda produção discursiva se efetua em determinadas condições
conjunturais de produção e remete, põe em movimento e faz circular
formulações anteriormente já enunciadas, como um efeito de memória
na atualidade de um acontecimento. (1981:78)
A obra também faz clara alusão aos filmes de velho-oeste americanos. Em vários
enunciados do filme como “Nítido vos vejo jovens do oeste, a caminhar com os mais
avançados!”. Estes enunciados retomam memórias do cinema estadunidense, afinal
estas produções eram muito difundas neste período como já dito. Estes discursos
permaneceram fortes e foram bastante afirmados também durante o governo militar,
com outras materialidades audiovisuais produzidas.
A memória das imagens é uma genealogia como diria Courtine, no que ele
define como intericonicidade. O governo militar vai recorrer a estas narrativas
audiovisuais, em busca de algumas memórias, que vão ecoar no imaginário dos sujeitos,
que recorrerão a sua própria lembrança, permeada por filmes hollywoodianos de
faroeste e por filmes documentários ufanistas brasileiros de colonização. Sobre a
intereconicidade Courtine explica:
O campo da fala Pública está atravessado, saturado por imagens nas
quais percebemos, ao mesmo tempo, a força de seu impacto e a
instantaneidade de sua obsolescência. É crucial compreender como
elas significam, como uma memória de imagens as atravessa e as
organiza, ou seja, uma interconicidade que lhes atribui sentidos
Imagem 03. Cena do filme coluna norte
35
reconhecidos e partilhados pelos sujeitos políticos que vivem na
sociedade, no interior da cultura visual. (2008:17)
Para Milanez:
... olhar para a imagem sob o efeito da intericonicidade é de uma
arqueologia do imaginário humano, construída não sobre a
cristalização homogeneizante de uma imagem única, mas sobre o
movimento dos deslocamentos, sucessão, interposições, apagamentos,
reestruturações de imagens que existem sob a batuta da regência dos
movimentos nem sempre harmônicos da história.(2011:39)
Os discursos apoiados por técnicas de produção imagética, colocam em
funcionamento a memória e o desejo, como veremos nas próximas analises. A
continuidade ao projeto de colonização da Amazônia continuou a legitimar o corte na
Amazônia pelas produções audiovisuais. A imagem a seguir é uma compilação de cenas
de um documentário cinevideo sobre a construção de outra rodovia que corta a mesma
região; a transamazônica.
O filme fala sobre uma visita do presidente/ditador Médici a Altamira para
marcar o início da construção da estrada. Imagens, sons e palavras muito parecidos com
as do vídeo anterior aparecem aqui: “A colonização da Amazônia é dificultada pela
escassez relativa de transportes... A transamazônica é um passo imenso no sentido da
ocupação racional de uma área que se caracteriza por um vazio demográfico só
comparável ao das desoladas regiões polares.” A narração ufanista, mais uma vez fala
em colonização, numa região sem pessoas, silenciando os povos já viviam por entre a
mata.
Imagem 04. Cena do filme “a transamazônica” 1970.
36
As imagens das árvores derrubadas ao som de batucadas e trompetes épicos,
produzem sentidos de vitória do homem sobre a natureza selvagem, a conquista.
Homens trabalhando, nordestinos (segundo o filme), tombando as enormes castanheiras
com seus machados, também se encontram. A Amazônia é novamente apresentada
como a terra sem dono, ávida por entregar suas riquezas ao homem pioneiro. O filme se
apoia no discurso que Médici fez em Altamira e fala dos desafios enfrentados pelo país:
“Dois desses problemas referidos na fala do chefe do estado são: o homem sem terras
do nordeste e a terra sem homens da Amazônia”. Novamente existe o silenciamento dos
povos amazônicos, seja os indígenas, ou mesmo as pessoas das cidades da região. Os
dois filmes, procuram convocar o nordestino para colonizar a Amazônia, mas, em
ambos, o estereótipo deste nordestino aparece na figura do homem simples, sem camisa
e de chapéu cortando as árvores, mas com a promessa de um futuro de riquezas e
conquistas.
O governo na verdade convocava o nordestino como a mão de obra subalterna, e
muito dificilmente, estas pessoas que vieram para a Amazônia, alcançaram riquezas,
não houve uma repartição justa nesta invasão, mas sim as bases de uma
reprodução/atualização do pacto colonial, que cortou a floresta indiscriminadamente,
sem se preocupar com as populações que lá moravam, nem com o desenvolvimento das
pessoas que vieram trabalhar nas estradas. Uma elite nacional, e multinacional foi quem
realmente lucrou com esta invasão, que até hoje ainda se estabelece em nome do
progresso como se observa em grandes projetos contemporâneos como a construção da
hidroelétrica de Bello Monte.
As cidades que surgiram ao redor destes projetos, possuem altos incides de
desigualdades sociais e violência se comparadas as grandes metrópoles brasileiras, ou
mesmo aos municípios do sul e sudeste do país. Mas no filme, apoiado pela linguagem
de efeito de verdade do documentário existe o seguinte enunciado: “A transamazônica
será uma vereda aberta ao nordestino para a colonização de uma região rica em vales
férteis e promissoras jazidas minerais.”
O filme Bye Bye Brasil, faz uma crítica a estas políticas do governo, e traz
enunciados que revelam alguns discursos muito circulados à época. Na cena, Lorde
Cigano, personagem do ator José Wilker, conversa com um caminhoneiro (homem de
bigodes à esquerda), num bar de beira de estrada sobre a Altamira e a construção da
transamazônica:
Caminhoneiro: - Altamira!
Lorde Cigano: - Como é que chama o lugar?
37
Caminhoneiro:- Altamira! é o centro da transamazônica tem
gente do Brasil inteiro indo pra lá pra trabalhar na estrada e
depois comprar terra. Abacaxi lá é do tamanho de uma jacá, e
as árvores do tamanho de um arranha-céu.
Lorde Cigano: - Exagero!
Caminhoneiro:- Não, to falando sério! Tem minério, pedra
preciosa, tudo ali à flor da terra. Floresta Amazônica! Nuca
ouviu falar?
Lorde Cigano: Já, mato puro né! E os índio? Tem muito índio
lá?
Caminhoneiro:- Tinha! Mas a maioria o pessoal já acabou
com eles, tinha vez que o pessoal me enchia o saco, mas
perdia mesmo a paciência e pegava o avião e jogava umas
bananas de dinamite em cima da aldeia dos índios (risos). Ai,
a “cabocada “saia toda pro meio do mato, mão na cabeça,
pensando que era o fim do mundo, entendeu... Depois que
fizeram a estrada, que lá virou lugar de branco, dinheiro pra
todo mundo, todo mundo é rico.
Lorde Cigano: - Morando no meio do mato eles não devem
ter muito onde gastar tanta riqueza.
O discurso de progresso da região é mais uma
vez retomado, atualizando os discursos da
modernidade/colonialidade. Como está filiado a outros
interesses, o filme não silencia a questão das sociedades indígenas como os filmes
ligados aos governos JK e militar, mesmo que tenha sido produzido durante o período
militar, quando havia censura, o longa revela as chacinas ocorridas na Amazônia,
utilizando a ironia e a denúncia. A “caravana holidei” faz a viagem em busca de
oportunidades, mas o que encontra em Altamira é um cenário de violência e miséria.
As produções audiovisuais, eram muito importantes naquele período, daí o
motivo de analisar estes vídeos, pois naquele momento histórico, certo enunciados
ganhavam força, reprimiam os conflitos, como já vimos, o Brasil que era apresentado ao
grande público, como um país maravilhoso, vivendo um milagre econômico e se
integrando através das estradas e da Televisão ou mesmo o cinema. Mas, estas
informações eram monitoradas e controladas pelo governo e por grupos empresariais,
midiáticos ou não. Muito provavelmente, boa parte da população brasileira sequer
tivesse esta informação, do que realmente ocorria na Amazônia. E justamente neste
período, segundo Ortiz (1988:14) que o cinema e a televisão vão se consolidar como
meios de comunicação de “massa”, os cine-documentários eram exibidos antes do
filmes no cinema, só para se ter ideia, segundo Ortiz2, na década de 1970 as salas de
cinema espalhadas pelo país contavam com mais de 200 milhões de espectadores por
2 Pesquisa disponível no endereço http://oca.ancine.gov.br/media/SAM/Informes/2012/Informe-anual-
2012-preliminar.pdf
Imagem 05 cena do filme Bye,Bye
Brazil
38
ano, para efeito de comparação segundo dados3 da Agência Nacional do cinema
ACINE, em 2011 pouco mais de 146 milhões de pessoas compareceram aos cinemas
brasileiros, levando em consideração que a população brasileira praticamente dobrou
dos anos de 1970 pra cá, podemos supor que o alcance do cinema era muito mais
abrangente :
Reconhece-se ainda a importância dos meios de comunicação de
massa, sua capacidade de difundir ideias, de se comunicar diretamente
comas massas, e, sobretudo, a possibilidade que têm em criar estados
emocionais coletivos. Com relação a esses meios, um manual militar
se pronunciava de maneira inequívoca: “bem utilizados pelas elites
constituir-se-ão em fator muito importante para o aprimoramento dos
componentes da Expressão Política: utilizados tendenciosamente
podem gerar e incrementar inconformismo”. O Estado deve,
portando, ser repressor e incentivador das atividades culturais.
(ORTIZ:1988:116)
Para Souza:
A televisão passava a ser peça chave na estrutura de domínio. É neste
cápitulo da história da TV que a atuação do regime militar, até então
discreta, indireta, torna-se completamente explicita e deixa claro que o
governo tem um projeto “a televisão no Brasil tornou-se a partir da
década de 60 o suporte dos discursos que identificam o Brasil para o
Brasil...”(2002:30)
O Jornal Nacional, primeiro programa exibido pela rede de microondas no Brasil
e consequentemente o primeiro produto televiso exibido para todo o território nacional,
apresentava em suas primeiras edições a logo “integrado o Brasil através da notícia” o
jornal compactuava com o plano militar, por motivos econômicos e políticos; além de o
governo ser o principal cliente das empresas da mídia no Brasil, uma emissora de
televisão, como já dito, por exemplo, precisa de uma concessão do congresso nacional
para poder funcionar. Ortiz (1988:118) esclarece que tanto os empresários da mídia
quanto os militares, tinham interesses na integração do país, mas por motivos diferentes
“...os militares propõem a unificação da política das consciências, os empresários
sublinham o lado da integração do mercado”.
Quais os impactos das produções de mídia e das construções das estradas na
Terra Indígena Sororó? Nos próximos tópicos vou mostrar como os Aikewára estão
diretamente envolvidos neste processo de colonização da Amazônia e as consequências
da ocupação da “terra sem homens”, como diz o vídeo do governo militar. O que eles
calaram é que por entre as árvores derrubadas, eles derrubaram pessoas...
3 ORTIZ (1988:125)
39
1.3 Os Aikewára e a Terra Indígena Sororó: nas fronteiras do fogo
e Tocantins no sudeste do Pará, existe uma grande área
verde preservada em meio à devastação. Este lugar é conhecido
como terra Sororó, lar dos índios Aikewára.
Depois de tempos difíceis quando apenas 33 índios
mantiveram a chama da cultura Aikewára viva, a floresta e eles
ameaçados pelo fogo forasteiro resistiram. Hoje mais de 300
Aikewára vivem entre os troncos firmes dos castanhais da terra
indígena Sororó. Entre histórias, castanhas e estrelas...
(trecho do filme Tapi’i’rapé: O caminho da Anta)
Segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas (IBGE), publicados em agosto de 2012, existem no Brasil, 305 etnias, e 274
línguas indígenas. Os números desta pesquisa divergem com boa parte dos trabalhos
acadêmicos que davam conta 238 povos indígenas e suas 180 línguas nativas. Segundo
o IBGE, a maior parte destes povos vive na Amazônia e 200 povos Tupi, portanto, a
maior concentração destas sociedades, vive na região. Definir o que é uma sociedade
Tupi não é uma tarefa simples:
O nome “tupi” pode ser usado em três níveis de abrangência. No
sentido mais estrito, é o nome da língua falada pelos indígenas do
litoral, quando chegaram os europeus. Em outro nível, este nome é
agregado ao nome “guarani”, para denominar uma família linguística,
a tupi-guarani, da qual faz parte a referida língua litorânea. E, num
nível ainda mais elevado, “tupi” é o nome de um tronco linguístico,
além de outras mais. É, pois, necessário cuidar para que não se
confundam os diferentes sentidos do termo “tupi”. (MELATTI:
2007,61)
Os Aikewára, um povo Tupi que vive no sudeste do Pará, uma região permeada
por conflitos pela terra. Uma região impulsionada pela mineração, pecuária e por
madeireiras. Cidades crescem e florestas caem, o verde dá lugar ao cinza, e apesar de
toda “riqueza“ produzida pela devastação, com o enriquecimento de alguns, as
desigualdades sociais são evidentes, fortes. Houve e há muitas tensões sob aquela
região, e os Aikewára, estão nas fronteiras destes conflitos.
Os Aikewára, também conhecidos como Suruí, vivem na Terra Indígena Sororó
no sudeste do Pará, entre os rios Araguaia e Tocantins. Entre os Municípios de São
Domingos e São Geraldo do Araguaia. Nos mapas da página seguinte, nota-se a posição
de uma Terra Sororó preservada em às áreas cinzas.
40
Nos mapas podemos ver Sororó, o maior ponto verde da região. Como podemos
ver no mapa, a Terra Sororó é uma área relativamente pequena, a menor aldeia do Pará.
A terra não faz fronteira com nenhum rio.
Imagem 06. Mapa1 Fonte Google Earth
Imagem 07. Mapa 2: fonte Google Earth
41
No mapa 2 nota-se a rodovia transbrasiliana, também conhecida como Belém-
Brasília. Como já dito, esta rodovia, foi fundamental no processo de
colonização/modernização da Amazônia. Os “pioneiros” cruzaram por estes caminhos,
mas nesta terra, tinham pessoas...
Como Sororó é cortada pela BR-153, a Belém-Brasília, é permeada por todos as
complicações que vimos no tópico anterior. Esta é uma situação bastante difícil de
administrar, já que a rodovia causa muitos transtornos, em suas margens é comum haver
queimadas, segundo relatos dos Aikewára, os motoristas jogam pontas de cigarro acesas
e assim iniciam o fogo. Sororó está cercada por fazendas, é notável quando
atravessamos a BR-153, que até o clima muda. Na foto, observa-se as margens com
mato, mas na época das secas, esta vegetação costuma secar, devido também o contado
com o asfalto, o que facilita queimadas.
Imagem 08. BR-153 cortando a Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa
42
O mapa acima foi confeccionado por um grupo de jovens Aikewára e recebeu
um tratamento por nós. É muito interessante a precisão com a qual desenharam a Terra
Sororó, basta olhar os outros mapas nas páginas anteriores. Além da precisão e do
conhecimento apurado que eles tem da região, chama a atenção as partes vermelhas no
mapa, elas indicam as queimadas. Podemos obsevar como os vermelhos se concentram
nas fronteiras, e principalmente as margens da rodovia e das fazendas. Sororó é
ameaçada pelo fogo vindo das queimadas e das fazendas vizinhas.
Mas como esta situação se inscreveu? Nos próximos tópicos vou analisar
algumas narrativas orais Aikewára que dão conta da história deste contato. Por hora,
quero destacar que a Terra Sororó, está localizada bem perto da transamazônica, as duas
rodovias se cruzam em Marabá, os Aikewára estavam no rodo da
modernização/colonialidade da Amazônia. Instaurou-se a partir destas obras o processo
de Fricção Interétnica entre eles e a sociedade Nacional.
Imagem 09 . Terra Sororó
43
1.4 As memórias subterrâneas: Cabral, a bíblia, os vírus, as bombas e
as roupas chegam. O violento processo de hibridização Aikewára.
Os Aikewára, a partir de tudo que ocorrera no projeto “Crianças Suruí-
Aikewára: entre a tradição e as novas tecnologias na escola”, intensificaram as
mediações entre as novas tecnologias e o seu projeto, que chamarei de projeto de
midiamento Aikewára. Uma proposta que se aproveitou do projeto “Crianças Suruí-
Aikewára: entre a tradição e as novas tecnologias na escola”, mas, que ganhou outros
aspectos, estes planejados e executados por eles, com ou sem a nossa interferência.
Este período de convivência
entre eles nos deu acesso a uma
infinidade de experiências que nos
permitem olhar para novos espaços
desta eterna relação de contato
conflituoso que estabelecem com a
sociedade envolvente. Estávamos em
Sororó, para tentar munir os
Aikewára de ferramentas para tornar
esta negociação mais justa. Mas, o
que às vezes nos esquecíamos, era
que para eles, nós também éramos da
sociedade envolvente.
Durante as viagens a Terra
Sororó, a equipe do projeto ficava
hospedada na casa de Arihêra e
Umassú Suruí. Na sala, entre cocás e
flechas, havia um aparelho de
televisão, bem como um conjunto de sofás, uma estante e uma geladeira. Numa primeira
vista neste lugar, percebemos as hibridizações culturais da sociedade Aikewára. Arihêra
faz parte do grupo de sobreviventes à depopulação. Ainda bem jovem, no final dos anos
de 1960, ela foi fundamental no processo de reestruturação social deste povo, sua
liderança é muito importante, ela procura preservar as tradições de seu povo.
Imagem 10. A sala de Ahirhêra. Foto Monica Cruvinel
44
Casada com Umassú Suruí e mãe de 04 filhos, ela hoje é também uma das
principais lideranças Aikewára. Talvez a pessoa mais autorizada para falar sobre a
cultura Aikewára. Foi graças a ela que a rede tradicional Suruí não desapareceu. Arihêra
é a grande cozinheira da aldeia. Em sua casa, a comida tradicional Suruí nunca deixou
de ser servida. Dona de uma habilidade performativa privilegiada, ela é uma das
principais contadoras das histórias Aikewára.
O motivo de usar estas narrativas orais Aikewára como corpus de análise, é dar
escuta a esta memória em oposição à memória oficial, que silencia a história dos
Aikewára. A oralidade entre estes índios é muito importante, a escrita não faz parte da
cultura dos mais velhos, apenas alguns jovens a dominam, e a língua escrita que lês
utilizam é o português. Para Michel de Certeau (2002, 31)
No Ocidente moderno não há mais um discurso recebido que articule
esse papel, mas um movimento que é uma prática: escrever. A origem
não é mais aquilo que se narra, mas atividade multiforme e
murmurante de produtos do texto e de produzir a sociedade como
texto. O “progresso” é de tipo escriturístico. De modo os mais
diversos, define-se, portanto pela oralidade (como oralidade) aquilo de
que uma prática “legítima” – científica, política, escolar etc. – deve
distinguir-se. “Oral” é aquilo que não contribui para o progresso, e,
reciprocamente, “escriturístico” aquilo que se aparta do mundo
mágico das vozes e da tradição. Com tal separação se esboça uma
fronteira (e uma frente) da cultura ocidental.
Várias foram as narrativas orais contadas por Arihêra e Umassú durante o
período do projeto. Dentre elas, se destacava a história do contato. De como havia sido
traumático para eles, que viveram a depopulação e perderam a maior parte das pessoas
que conheciam neste processo. Arihêra conta:
Morreu muita gente, o Umassú ainda era mole, bem pequeno. Morreu
a tia, morreu a mãe dele. Foi a gripe... O pai já tinha morrido, o
fazendeiro matou. Mas, naquele tempo a gente ainda era brabo, o
padre ainda não tinha amansado nós...
Em nossas longas conversas, na casa do casal, Arihêra e Umassú usavam uma
expressão de tempo que marcava a época anterior ao contato, “no tempo em que eram
brabos” e não haviam sido “amansados” pelo padre. Andavam livres pela floresta. “Ai,
os Kamará vieram” relembra Umassú. Os Aikewára não entendiam bem o que eles
queriam, até que vieram as balas. Ele conta que seu pai foi assassinado por fazendeiros
da região, quando ele ainda era um bebê. Arihêra acrescenta à narrativa uma
particularidade que desperta muita atenção dos Aikewára, dizendo que nesta fase da
vida “Umassú ainda era mole!”.
45
Esta nova sociedade Aikewára que nasceu a partir da depopulação, está bastante
atravessada pela história destes índios mais velhos. A história da resistência, depois da
década de 60, em certa medida, também estava “mole”. É importante compreender que
estas histórias funcionam num tempo próprio, os Aikewára, não mediam o tempo em
anos, meses. Só com muita convivência é que aprendi a interpretar estas histórias, sem
me ater a este tipo de cronologia. Presumimos está datação pelo o que a história oficial
nos diz, mas os Aikewára marcam este tempo de outra forma, um antes dos Kamará, ou
então “no tempo que éramos brabos”.
Mussená, o capitão, forma como hoje eles denominam a liderança, preparou a
resistência e um grupo de guerreiros foi vingar as mortes com flechas. A guerra entre os
Aikewára e seus vizinhos Kamará havia começado. O interesse da sociedade
envolvente, segundo eles, era fazer uso das terras em que os Aikewára viviam. Em
clara desvantagem bélica, os Aikewára entraram floresta adentro, mas foram
perseguidos. O progresso chegava com as estradas derrubando a floresta.
Arihêra e Umassú contam com muita tristeza que algumas crianças, neste
período, sobretudo os bebês recém-nascidos, tiveram que ser deixados para trás. Como
choravam com fome, ou com frio, ficava fácil através do choro encontrar a posição
deles. Os dois são categóricos em afirmar “doía muito” abandonar as crianças e que eles
ficavam com medo que os Aikewára acabassem.
A igreja católica se envolveu no conflito e conseguiu apaziguar a situação.
Todos os mais velhos sempre falam no Padre, que os ajudou, trata-se do Frei Gil
Gomes, que trabalha na região, nesta época. Arihêra conta que o Padre “amansou” os
Aikewára, que significava, entre outras coisas, ensinar o português e possibilitar que os
Aikewára conseguissem compreender um pouco melhor o que estava acontecendo,
inclusive a desvantagem bélica em que se encontravam. A Igreja Católica, de certa
forma, conseguiu se colocar entre os índios e a sociedade envolvente “O padre não
deixava eles matarem a gente”, conta Arihêra.
Mas, as mortes não cessaram. Ela conta que a gripe matou boa parte dos que
sobreviveram ao conflito armado e restaram apenas 33 Aikewára. Umassú diz que
perdeu, nesta época, sua mãe e suas tias, já Arihêra perdeu o primeiro marido. Mussena,
que até hoje é considerado pelos Aikewára uma das principais personagens de sua
história, morreu neste surto de gripe. Sem os relatos Aikewára, seria bem difícil
conhecer esta versão da história. Para Michael Pollak (1989. P.3):
Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das
minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias
subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e
46
dominadas, se opõem à "memória oficial", no caso a memória
nacional. Num primeiro momento, essa abordagem faz da empatia
com os grupos dominados estudados uma regra metodológica e
reabilita a periferia e a marginalidade.
Segundo eles, após este período, houve certa calmaria, e os 33 que resistiram,
apesar de todas as perdas começaram a se reestruturar, até que o exército brasileiro
chegou a Terra Sororó para “caçar terroristas”. Umassú conta que só não foi morto
pelos soldados quando andava pelos arredores da aldeia, porque começou a falar Tupi e
eles perceberam que ele era índio. Ele conta que eles procuravam no mato outros
kamará.
Os eventos sobre o exército relatados pelo casal falam do que ficou conhecido
como um dos principais movimentos de libertação da América Latina, a “Guerrilha do
Araguaia”. A Terra Indígena Sororó fica entre os municípios de São Geraldo do
Araguaia e São Domingos do Araguaia no sudeste do Estado do Pará. A Terra Sororó
faz parte da área onde os guerrilheiros se escondiam da repressão do Estado Brasileiro.
Ou seja, os Aikewára, por sua localização geográfica, estavam no epicentro deste
combate. O conhecimento dos índios sobre a região dos conflitos era estratégico para o
Exército. A Guerrilha do Araguaia foi segundo Nascimento (2000:16):
Movimento político radical, ocorrido na região Sul e Sudeste do
estado do Pará, limitando-se com o norte do estado de Tocantins (à
época estado de Goiás) e oeste do estado do Maranhão. Na parte
relativa à divisa do Pará com o estado do Tocantins essa região é
conhecida como Bico do Papagaio. Aqui, militantes do PCdoB
(Partido Comunista do Brasil) e as Forças Armadas, sob a liderança do
Exército, entraram em combate pelo controle desta área estratégica,
num ambiente político caracterizado pela prevalência de um Estado na
sua modalidade ditatorial-militar (1964-1985).
Após este evento, Umassú conta que a convivência com os soldados se tornou
cada vez mais intensa. Eles foram induzidos a entregar as pessoas com quem eles já
mantinham relações de amizade: os guerrilheiros. Umassú continua “A gente era amigo
deles, trocávamos farinha por roupa e outras coisas. Não sabíamos que eles eram
terroristas”.
Vale ressaltar que Umassú e Arihêra não entendem o que concebemos como
“terrorista” Em uma de nossas conversas, Arihêra via, na TV, uma notícia sobre ataques
terroristas no Oriente Médio. Ela então me pediu para explicar-lhe o que era um
terrorista. Arihêra demonstrava muita curiosidade em saber sobre os terroristas. O jornal
seguia, ela não tirava os olhos da televisão, localizada bem ao centro de sua sala.
47
A reportagem acabou, mas as perguntas de Arihêra cresciam: “Esses terroristas
da TV são iguais aos que vieram aqui? Por que isso acontece?”. Os questionamentos se
combinavam a sua expressão facial, que nesse momento aparentava intranquilidade. O
tom de suas perguntas era melancólico. Arihêra começou a deixar claro que ela possuía
uma memória muito forte sobre a palavra “terrorista”, embora ela não entendesse direito
o que na concepção dos Kamará, era um terrorista.
Ela revela que a palavra “terrorista” já foi diversas vezes pronunciada em sua
aldeia pelo Exército brasileiro. “Eles vinham e mandavam a gente procurar outros
kamará no meio do mato. Por que eles faziam isso?” indaga Arihêra. Ela conta que isso
aconteceu durante os conflitos da Guerrilha do Araguaia, quando os índios Aikewára,
em função de seus conhecimentos sobre os caminhos da floresta, foram “convocados”
pelos soldados a guiarem as tropas em meio à mata, na perseguição aos guerrilheiros.
Assim que os Guerrilheiros foram fuzilados pelos soldados, os índios entraram
em pânico. Eles não entendiam por que os soldados estavam fazendo aquilo. “Eu
pensava que eles eram amigos”, revela Umassú. Ele conta que seu cunhado, Warini, até
hoje tem pesadelos com estas cenas: “Depois disso ele nunca foi o mesmo”.
Segundo Umassú, os soldados obrigaram, através da força bélica, os índios a
trabalharem para eles. Além de mostrar a posição onde estavam os guerrilheiros, eles
eram obrigados a transportar os cadáveres dos guerrilheiros. Isto teria gerado traumas
psicológicos profundos em muitos Aikewára, dois deles ficaram parcialmente surdos em
função do barulho dos tiros.
Após este período, os Aikewára aparentemente encontraram a paz, um esforço
de antropólogos e da Igreja Católica conseguiu fazer a demarcação da Terra Sororó.
Pelo número reduzido de Aikewára vivo à época, restou apenas um pequeno quadrado
de floresta, não há um rio e muitos lugares sagrados ficaram de fora desta demarcação.
A Terra Sororó é a menor terra indígena do estado do Pará. Assim, sistematicamente, a
partir deste contato sistemático começou o violento processo de hibridização Aikewára.
Sobre esta situação tão recorrente nas histórias dos povos indígenas, afirma Neves
(2009: 141):
Muitas sociedades indígenas vivem nas fronteiras culturais e históricas
do Ocidente. A forma como reagem a este contato muitas vezes gera
uma série de dificuldade com suas próprias tradições. Nestas
fronteiras, a negociação com o futuro às vezes toma proporções
dramáticas, pois produz uma sensação de não pertencimento, isto é,
não pertencem nem a uma sociedade indígena, nem conseguem
inserção no mundo ocidental.
48
Esta fronteira se manifesta simbolicamente com mais evidência entre os
Aikewára mais jovens. A língua em que eles mais se comunicam é o português, poucos
deles são fluentes em Tupi, a língua materna Aikewára, embora como já dito, eles
entendam bem a língua. Certas práticas sociais estavam muito comprometidas com as
influências das relações da fronteira. Um bom exemplo é o grafismo indígena, que na
Terra Sororó, durante muito tempo foi renegado por boa parte dos índios e quase
desapareceu, de certa forma poderia ser perigoso se pintar, sobretudo pelo intenso
trânsito deles nas cidades vizinhas, eles estão conectados para conseguir certos serviços
como atendimentos médico. Ainda hoje há uma animosidade entre eles e parte de seus
vizinhos. Muitos índios mais jovens preferiam se vir com roupas bonitas a pintados de
jenipapo e carvão. De certa forma, o contato sistemático gerou uma crise de identidade
entre os Aikewára. Hall esclarece (1999:13):
A identidade torna-se uma “celebração móvel”, formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam
(...) à medida que os sistemas de significação se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiantes de
identidades possíveis).
As identidades multifacetas, entre os Aikewára. Certas máscaras esperavam o
momento certo de serem usadas. Retomando a cena da sala híbrida de Arihêra podemos
fazer algumas análises sobre estas questões. Primeiramente é preciso observar o
processo que levou a TV e o sofá até este lugar. Para que o neon televisivo chegasse à
sala, foi necessário um conflito de interesses e poderes entre os Aikewára e o
“ocidente”. Segundo Hall:
O hibridismo não se refere a indivíduos híbridos, que podem ser
contrastados com “os tradicionais” e “modernos” como sujeitos
plenamente formados. Trata-se de um processo de tradução cultural,
agonístico uma vez que nunca se completa, mas que permanece em
sua indecidibilidade. ( 2006 p.74)
Como Hall esclarece o processo de hibridismo é agonístico e contínuo, a sala de
Arihêra não é um contraste entre o tradicional e o moderno, mas sim a indecisão,
indecisão entre a tradição e a modernidade, esta bifurcação que é conflituosa. O volume
da televisão se estiver alto, muito incomoda Arihêra, a TV é mais decorativa e poucos
são os assuntos que lhe chamam a atenção. Muitos Aikewára, porém já desenvolvem
outra relação e assistem às novelas brasileiras e aos jogos de futebol com muito
interesse. Segundo Bhabha (apud Hall) o hibridismo representa(2006: 75):
49
momento ambíguo e ansioso de ... transição, que acompanha
nervosamente qualquer modo de transformação social, sem a promessa
de um fechamento celebrativo ou transcendência das condições
complexas e até conflituosas que acompanham o processo... [Ele]
insiste em exibir ... as dissonâncias a serem atravessadas apesar das
relações de proximidade, as disjunções de poder ou posição a serem
contestadas; os valores éticos e estéticos a serem “traduzidos”, mas que
não transcenderão incólumes o processo de transferência .
As transformações na sociedade Aikewára, muito mais do que conflituosas e
tensas, foram e são violentas, bélicas. A história do contato, da guerrilha e do
“amansamento” da construção das rodovias é uma história de guerra. As memórias
subterrâneas de Arihêra e Umassú mostram, que a paz que veio que com as roupas
custou a vida de boa parte de seu povo e isto deixa sequelas. Termos como “hibridismo”
e “mestiçagem” podem sugerir num primeiro momento uma relação de paz e harmonia,
mas como se vê no caso Aikewára, estas transições são acompanhadas da violência de
uma guerra. Segundo Foucault(2007: 05):
A historicidade que nos domina é belicosa e não lingüística. Relação
de poder, não relação de sentido. A história não tem “sentido” o que
não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é
ininteligível e deve ser analisada em seus menores detalhes, mas
segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas.
Os Aikewára, neste movimento de luta usaram muitas estratégias de resistência,
num primeiro momento com flechas, mas depois da evidente superioridade de armas
Kamará tiveram que agir nas brechas. Um grande desafio foi resistir às doenças trazidas
pelos vizinhos, com boa parte da aldeia morrendo de gripe, estabelecer uma boa relação
com os médicos e a igreja foi providencial para que um grupo, mesmo pequeno
resistisse. Mas as relações de poder se estabelecem, e paga-se um preço: estes conflitos
alteraram a maioria das práticas culturais Aikewára. “Cabral”, quase 500 anos depois
chegara a Terra Sororó, trazendo a “modernidade”.
Retomando o Pensamento Liminar, de D.Mignolo podemos ver funcionar a
moeda colonialidade/modernidade, mas, como o autor apresenta, este processo não
acabou, como podemos ver no caso dos Aikewára e em muitas outras histórias do
continente, a moeda colonialidade/modernidade continua a se atualizar. Somos
constituídos desta memória, afinal, as Américas são conhecidas ideologicamente e
politicamente como o “novo mundo”. Estes continentes, mais do qualquer tecnologia,
são a grande “invenção” da modernidade, mas o moderno não se impõe sem luta.
As “novas” tecnologias, sobretudo as da informação, hoje são a ultima fronteira
da modernidade. É importante notar o como o termo/conceito modernidade é flutuante e
50
progressivo. Os Aikewára, hoje estão nesta “ultima fronteira” da modernidade, e a
mídia ocupa agora um papel vital na relação desta sociedade com o seu entorno. E foi,
justamente, quando o projeto “Crianças Suruí-Aikewára: entre a tradição e as novas
tecnologias na escola” chegou, que algumas possibilidades de acesso mudaram.
1.5 Umassú e as casas da Terra Sororó
Os Aikewára contam que os tempos depois do contato sistemático e da guerrilha
conseguiram estabelecer certa paz, as taxas de natalidade aumentaram, e hoje mais de
300 Aikewára habitam Sororó. Mas, esta sociedade vive uma tensa negociação nas
fronteiras entre suas tradições e a modernização.
A televisão, o celular, o rádio e outras tecnologias de comunicação se
estabelecem no cotidiano da aldeia como nunca antes. Toda casa Aikewára possui um
aparelho de televisão, e isto é um fato recente. Segundo relatos da escritora Murué Suruí
(sobre a autora falarei mais nos próximos capítulos) estas tecnologias eram mais raras
até pouco tempo atrás. Por volta de 2006 só havia uma televisão na aldeia e ela ficava
na “Casona”. O celular também é recente e se populariza cada vez mais entre eles,
mesmo que em Sororó não exista sinal, apenas uma operadora funcione em alguns
pontos específicos da Aldeia, e isto apenas algumas vezes. Mas, eles utilizam o aparelho
em suas viagens.
O comércio é outro fator de negociação, os Aikewára, comercializam a castanha,
e é este fruto sua principal fonte de renda. Alguns índios são funcionários públicos e
ocupam cargos como professor e enfermeiro, esta condição de funcionalismo se torna
cada vez mais comum entre eles. O dinheiro já é muito importante em Sororó, os
funcionários gozam até mesmo de certo status. Os mais velhos recebem aposentadoria.
Esta intensa relação com o capitalismo é resultado deste processo de
modernização/colonialidade que os Aikewára estão expostos.
Estas práticas, contudo, não acabaram com a relação deles com a floresta, a caça
e o extrativismo ainda continuam como parte de cotidiano. Eles podem tanto comprar
frango no supermercado de São Geraldo ou caçar um porcão do mato na floresta, muito
embora o segundo seja preferência para a maioria. O grande problema da caça é que ela
esta ficando cada vez mais rara, o aumento populacional somado ao pequeno pedaço
demarcado e as constantes queimadas as margens da rodovia tornam escassos estes
51
recursos. A alimentação é uma das principais marcas da cultura e da identidade de um
povo, com os Aikewára não é diferente, mesmo que muitos produtos do supermercado
caiam no gosto deles, as comidas da caça na floresta, marcam sua identidade.
O projeto “Crianças Suruí-Aikewára: entre a tradição e as novas tecnologias na
escola”, começara nestas condições, mas houve algumas mudanças alheias ao projeto
que ocorreram durante a sua realização. A mudança para a aldeia nova, com casas de
alvenaria foi um processo muito importante, mudou bastante as relações dentro de
Sororó. Os Aikewára, não moravam tão perto uns dos outros antes. A aldeia, da forma
que foi projetada pelo governo, acabou por criar esta situação. Os Aikewára tentaram
conciliar este novo tipo de habitação construindo casas tradicionais por de trás das casas
novas. Umassú diz que as casas tradicionais é que são suas “casas mesmo”.
Certa vez, numa de nossas conversas, Umassú soube através do Jornal Nacional
que um edifício havia desabado em Belém. Este tema era motivo de muito debate entre
eles, por causa das novas construções em alvenaria. Umassú e Arihêra diziam que as
casas novas não prestavam e podiam cair. Contei a eles a história dos três porquinhos,
Umassú retrucou e disse que nunca uma casa de madeira tradicional caíra na Terra
Sororó, mas que ele sempre via no jornal, as casas dos Kamará caindo, e que essa
histórias dos três porquinhos estava errada. “Casa boa é a minha, não cai!”. Os
Aikewára divergem muito sobre como estas construções foram feitas, eles contestam a
Imagem 11. Umassú em sua casa mesmo. Foto Maurício Neves.
52
qualidade e a forma como os cômodos foram distribuídos. “Nossas casas não são
assim”.
Umassú reforça ainda mais seu argumento, quando revelou que um bloco de
concreto de uma das casas novas desabou numa ventania”Quando venta muito ou chove
nós não fica lá não”. Conta ele, se referindo sobre as casas novas. Mas então por que os
Aikewára aceitaram estas novas construções? Podemos apontar vários motivos. Não
foram todos que receberam estas casas novas, a ordem de escolha foi pela idade, ou
seja, os mais velhos foram os escolhidos. Esta novidade estava relacionada ao
“progresso”. Isto, não quer dizer que não exista o choque.
O hibridismo é antes de tudo um embate, um embate sem solução, sem
vencedores, pelos menos na subjeção. Quem é exposto a este processo e se recusa a
participar, desta batalha de relações de poder, só tem duas saídas evidentes; a morte ou
exílio. Este processo embora vertical, não exime, mesmo quem está no conforto da
superioridade militar e tecnológica. A Europa por exemplo, ao tempo da conquista dos
outros continentes, também passa a se hibridizar com eles, e consequentemente, as
práticas culturais são alteradas. O que não quer dizer que os benefícios e as perdas
sejam iguais, pelo contrário, elas são a desigualdade materializada, para quem fica na
ponta de baixo da escada.
Imagem 12. Casas da Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa
53
Na Amazônia paraense, na fronteira dos Aikewára, isto não é diferente. E os
Aikewára, ao se apropriarem de novos saberes criam novos poderes. O poder como
concebe Foucault, não é uma estrutura sólida, mas sim dispersa de estruturas, flutuante
e inteligível. O poder usa suas táticas, e a coerção, a punição e a repressão estão longe
de ser a única forma de poder. Os poderes tem que oferecer algo em troca. Segundo
Foucault:
Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por
meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à
maneira de um grande super−ego, se apenas se exercesse de um modo
negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos
positivos a nível do desejo − como se começa a conhecer − e também
a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi
possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto
de disciplinas militares e escolares. E a partir de um poder sobre o
corpo que foi possível um saber fisiológico, orgânico. O enraizamento
do poder, as dificuldades que se enfrenta para se desprender dele vêm
de todos estes vínculos. E por isso que a noção de repressão, à qual
geralmente se reduzem os mecanismos do poder, me parece muito
insuficiente, e talvez até perigosa. (2007: 148/149)
Estas novas formas de saber, entre os Aikewára, criam novos poderes. A relação
deles com estas novas práticas e tecnologias muda um pouco a verticalidade. Estas
fronteiras são muito mais difíceis de conciliar aos mais velhos, que por outro lado
aproveitam as intervenções dos não-Aikewára, para se apropriar de suas tecnologias. O
processo bélico do contado, encontrou outros espaços de luta menos violentos apenas
fisicamente, mas condições um pouco, mais “justas”.
1.6 O projeto Crianças Suruí-Aikewára: entre as tradições e as novas
tecnologias na escola.
Ainda que existam sociedades isoladas dentro da Amazônia, no
Brasil, a maioria dos povos indígenas mantém relações efetivas com a
sociedade envolvente. Já estabelecem, portanto, uma fronteira
cultural com as instituições ocidentais (igreja, escola, televisão,
rádio, secretarias públicas, ONGs, entre outras). Nascidas dentro
deste cenário, grande parte das crianças indígenas se constitui nestas
fronteiras.
Ivânia Neves
54
Conciliar as tradições Aikewára com as novas tecnologias para assim criar um
material diferenciado para escola Aikewára, este era o objetivo do projeto Crianças
Suruí-Aikewára: entre as tradições e as novas tecnologias na escola, uma realização da
Universidade da Amazônia - Unama em parceria com Fidesa. A linguista e antropóloga
Ivânia Neves, idealizadora do projeto, estudiosa das narrativas orais Tupi, com uma
série de trabalhos publicados sobre o tema, desenvolveu metodologias para estudos
deste gênero. Neves, no entanto, acredita no uso didático destas narrativas, sobretudo
apoiadas sob um suporte audiovisual.
Em 2004, quando finalizei meu mestrado e já começava a desenhar
um projeto de doutorado, fiz uma promessa: assim que terminasse esta
fase mais acadêmica, meu primeiro projeto como pesquisadora seria
com os Aikewára.
Historicamente, alunos universitários de diferentes níveis costumam
realizar pesquisas com sociedades indígenas e depois de concluídos os
seus trabalhos, nunca mais retornam.
Os próprios índios Aikewára tem várias histórias para contar desta
situação. Há, inclusive pesquisadores que publicaram livros sobre eles
e que aprovaram projetos com verbas bem generosas, sem dar nenhum
retorno a esta sociedade. (NEVES:2011:20)
Ao fim de sua tese de doutoramento “A invenção do Índio e as Narrativas Orais
Tupi”, a pesquisadora começou a elaborar o projeto Crianças Aikewára. Neves
trabalhava com os Aikewára desde seu mestrado, as experiências que teve com este e
outros povos indígenas a fez perceber da necessidade de conciliar as tradições indígenas
com as novas tecnologias:
As crianças Aikewára, bem cedo, são expostas à escola ocidental, e às
novas tecnologias da informação (televisão, telefonia celular,
internet), o que é natural para quem vive nas fronteiras culturais. O
problema é que grande parte destas crianças só tinha acesso às
produções culturais do ocidente e o conhecimento produzido pelos
povos indígenas ficava do lado de fora do seu universo de mediações. O principal desafio deste projeto é traduzir a cultura Aikewára para
registros escritos e audiovisuais, respeitando suas singularidades.
Nosso objetivo é contribuir com a construção de um currículo escolar
que traduza a cultura tradicional desta sociedade e favoreça a
efetivação de uma escola indígena realmente diferenciada. Estamos,
juntos com eles, encontrando estratégias para que possamos nos
apropriar das novas tecnologias da informação e lhes dar um
significado social dentro da história Aikewára do
presente(NEVES:2011)
O projeto foi estruturado em oito oficinas que ocorreram ao longo do ano de
2010. Estas oficinas abordavam vários temas, como fotografia, narrativas orais,
culinária, astronomia, dentre outras. O objetivo destas oficinas era elaborar materiais
didáticos e envolver as crianças da Terra Sororó na busca de mediar as tradições com a
55
novas tecnologias. No final do ano de 2009, as professoras da Universidade da
Amazônia, Ivânia Neves e Alda Costa conseguiram para realização do projeto Crianças
Suruí-Aikewára: entre a tradição e as novas tecnologias na escola o financiamento do
projeto “Criança Esperança”, uma parceria da Rede Globo com A Unesco - Órgão das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. O objetivo do “Criança
Esperança” é garantir os direitos da criança e do adolescente. Para isto todos ao anos a
Rede Globo, faz uma mobilização social, enquanto a Unesco seleciona e distribui o
dinheiro arrecado para os projetos selecionados. Sobre a Rede Globo e seus significados
e poderes no decorrer do projeto “Crianças Suruí-Aikewára: entre as tradições e nas
tecnologias na escola” falarei mais à frente, mas como já dito, a Rede Globo, ocupou
um papel bem diferente em relação ao Aikewára, mesmo que indiretamente, silenciando
o que realmente ocorria na Amazônia, ou diretamente, ajudando a alterar as práticas
culturais Aikewára.
O cartaz faz a apresentação do projeto, mostrando algumas das atividades
realizadas na Aldeia. Várias materialidades foram produzidas pelo projeto; 6 DVDs de
Imagem 13. Cartaz Aikewára
56
filmes sobre a cultura Aikewára, 3 livros, 1 blog, 1 CD de músicas, vários cartazes,
camisetas, calendários. Todas estas produções procuravam fazer uma apropriação das
tradições Aikewára pelos diferentes formatos midiáticos que utilizamos. É evidente que
houve conflitos em diversas situações, mas no geral, os resultados destas materialidades
foram muito bem recebidos pelos Aikewára, que aproveitaram para lançar uma época de
valorização de sua cultura, como veremos no próximo capítulo. É importante destacar
que alguns produtos, como o próprio cartaz foi produzido com objetivo tanto de
divulgar o projeto fora da aldeia, como de fortalecer a identidade Aikewára. Isto era
também uma revindicação deles.
O projeto Crianças Suruí Aikewára tinha como meta conciliar as tradições da
sociedade Aikewára com as novas tecnologias, com o intuito de criar um material
didático diferenciado para escola Aikewára. Segundo Corrêa:
Havia um grande problema em relação ao Audiovisual na terra
Sororó: praticamente todas as casas possuem televisão, porém, antes
do projeto, quase nada da cultura Aikewára tinha sido transportado
para esta mídia.
Esta ausência, somada a outros fatores oriundos com contato com a
sociedade envolvente, estava causando um problema de diálogo entre
gerações além de uma crise de identidade cultural. Muitas crianças
estavam perdendo a vontade de ser índio, já encontravam dificuldade
com a língua tupi. Alguns possuíam dois nomes, um indígena e outro
“kamará”, expressão que eles usam para designar os não-índios.
Assim as meninas Teassu e Taraí, são chamadas de Léia e Talita
respectivamente. (CORRÊA 2010: 6)
Antes de analisar estes processos de mediação é preciso reconhecer duas coisas;
é um processo tenso, há uma luta agonística entre estes espaços, e esta tensão se estende
até mesmo entre os Aikewára e a equipe do projeto, por toda a história de guerra deles
com a sociedade que os envolve e pelo seu próprio processo de modernização. É preciso
reconhecer também, o papel das relações de poder nesta mediação/recepção. A história
recente deste povo está intimamente ligada às mediações entre eles e a sociedade
envolvente nas fronteiras culturais, e a mídia é muito importante neste processo.
Como o próprio nome parece indicar, as mídias desempenham o papel
de mediação entre seus leitores e a realidade. O que os textos da mídia
oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao leitor
produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a
realidade concreta. (GREGOLIN: 2003,97).
A mídia faz circular discursos e remexer e atualizar memórias. E como Gregolin
afirma, o papel de mediação da mídia entre as representações simbólicas e o leitor
interfere na sua relação com a realidade. No caso dos Aikewára não é diferente. O
57
diálogo entre as gerações fica prejudicado pelos conflitos desta fronteira. Quando Mihó,
o Pajé dos Aikewára, um dos 33 índios sobreviventes à depopulação, vai contar uma
história da cultura Aikewára, as crianças tem muita dificuldade de compreender, muitas
sequer entendem o que ele fala.
Podia parecer aos jovens Aikewára muito mais atraente um filme na TV, do que
o velho pajé falar em Tupi pouco compreensível a eles, antigas histórias de seu povo.
Como a cultura tradicional podia competir com as novas e até certo ponto
desconfortáveis identidades, sob o ponto de vista dos mais velhos, que surgiam com o
contato. Era preciso que a cultura Aikewára se deslocasse e fosse lutar no terreno
adversário. Para Martín-Barbero (2004: 192):
As tecnologias não são meras ferramentas dóceis e transparentes e não
se deixam usar de qualquer modo, são em última instância a realização
de uma cultura, e dominação das relações culturais. Mas o redesenho é
possível, se não como estratégia, ao menos como tática, no sentido
que lhe dá M. de Certeau: o modo de luta daquele que não pode se
retirar para o seu lugar e vê-se obrigado a lutar no terreno do
adversário.
Quando os filmes do projeto e a rede Globo produziram materiais em que os
Aikewára puderam se reconhecer na TV, o efeito foi extremante positivo. Houve uma
verdadeira remexida na cultura daquela sociedade. Depois de se verem, os Aikewára
mais novos exibiram muita vontade valorizar mais sua cultura. Isto foi uma ação
afirmativa de sua própria cultura. Segundo Martín-Barbero (2004:19):
A apropriação, ao contrário, se define pelo direito e capacidade de
fazer os nossos modelos e as teorias, venham de onde venham,
geográfica e ideologicamente. Isso implica não só a tarefa de ligar,
mas também a mais arriscada e fecunda de redesenhar os modelos
para que caibam nossas diferentes realidades, com a conseqüente e
inapelável necessidade de fazer leituras oblíquas desses modelos,
leituras “fora de lugar”, a partir de um lugar diferente, a partir de um
lugar diferente daquele no qual foram escritos.
Na medida em que os índios se apropriam de recursos tecnológicos para
fortalecer sua cultura, redesenham modelos de diálogo entre seu próprio povo, e entre a
sociedade evolvente. De certo modo, esta negociação fica mais justa.
58
59
Capítulo II
Os Aikewára, a floresta e uma filmadora:
a construção do cinema da Casona.
Antes de começar este relato de pesquisa, é preciso fazer algumas considerações:
a cultura Aikewára, embora marcada pela Fricção Interétnica, por todos os conflitos
que ocorreram e ocorrem, é bem maior que estas histórias, existem outros aspectos tão
importante o quanto. Outra coisa que preciso esclarecer é o motivo de, de certa forma,
fazer uma autoanálise. Penso que a maior contribuição deste trabalho é o processo de
busca por maneiras de negociar, outras formas de fazer comunicação, ou mesmo
educomunicação, para valorizar os saberes, os poderes, as práticas de si dos sujeitos que
estão à margem e fora do centro, das grandes universidades, escolas ou empresas de
comunicação.
Não vou relatar aqui um conto, embora em alguns momentos a tentação exista,
também não é um relato de drama como em alguns momentos pode parecer. Esta
narrativa autoanalítica exige um esforço muito tortuoso, mas espero que, esta pesquisa,
mesmo com seus evidentes problemas possa incentivar outros pesquisadores, outras
sociedades tradicionais a buscarem alternativas de resistência e mais que isso, se
apropriar de saberes para valorizar as culturas e as identidades dos povos da Amazônia.
Pode ser pretensão, mas, é um esforço de minha parte e do grupo de pesquisadores e dos
Aikewára parceiros neste projeto.
Então, por este motivo, na primeira parte deste capítulo me detenho em fazer um
relatório de produção, de que estratégias utilizamos para produzir as materialidades
como, sobretudo os filmes. Num segundo momento, a partir da Análise do Discurso,
faço a análise das materialidades produzidas pelo projeto e pela mídia, e como a partir
destas produções os Aikewára negociaram identidades.
Não deixa de ser uma grande jornada minha história entre os Aikewára, uma
jornada que não foi fácil, foi agonística. No primeiro momento, logo depois de ser
selecionado como bolsista do projeto, veio a primeira viagem. O objetivo desta primeira
ida a Terra Sororó no Estado do Pará, era comunicar aos Aikewára a aprovação do
projeto. Os caminhos que levam até lá são complicados, muitas horas dentro de um
carro seguindo por estradas, algumas bem esburacadas. Perto de Sororó, o clima começa
a mudar e o calor intenso do sudeste paraense é atenuado. Isto acontece porque a
60
floresta Amazônica, ali ainda está de pé, na terra deles, diferente do deserto em que se
transformou boa parte da região.
2.1 Entre histórias, castanha e estrelas.
Na tradição Tupi, é recorrente que o universo seja compreendido a partir de
caminhos: caminho das estrelas, caminho da água, caminho do vento, do fogo. Neste
capítulo, para descrever os caminhos que percorri entre eles, vou retomar algumas de
suas narrativas orais, que foram o principal ponto de partida do projeto Crianças Sururí-
Aikewára, mas também, é necessário que estas histórias sejam percebidas como a
versão da história contada pelo lugar de fala desta sociedade, não como uma lenda, um
mito.
Em “Intercessão de Saberes nos céus Suruí” (2004) Ivânia Neves, em suas
análises, explica que, nesta terra, os mais velhos ensinam a olhar o céu de uma forma
diferente, onde a anta e outros animais brilham dando forma a desenhos nas estrelas.
Para os povos Sumérios e Gregos, na antiguidade, estes desenhos estavam presos
no firmamento e eles os chamavam de
constelações. Retomando esta memória, os
astrônomos contemporâneos identificam este
aglomerado de estrelas como a galáxia da Via
láctea, e, dentro da cosmologia ocidental de hoje, o
que vemos na Terra é apenas um dos braços desta
galáxia, já que o Sistema Solar está no meio dela.
Para os Aikewára, esta região do céu é
chamada de Tapi’i’rapé o Caminho da Anta. Na tradição desta sociedade há uma
narrativa que explica a criação desta grande mancha de estrelas no céu. Neves (2004:
109) registrou a seguinte versão da história deste caminho, narrada por Apí Suruí, em
2003, na Terra Indígena Sororó.
Tapi’i’rapé brilha nos céus Suruí
Isso aconteceu há muito tempo, na época em que nós éramos
brabos...
Os animais estavam cuidando de suas vidas na floresta, como sempre
faziam. De repente, ouviram um canto muito bonito vindo do céu.
Mas, como a maioria não voava, pensaram logo em construir uma
escada. Alguns animais, dentre eles a anta, lançaram suas flechas em
direção ao céu, mas não conseguiam acertar uma atrás da outra para
Imagem 14. Desenho Aikewára sobre o
Tapi’i’rapé
Fonte: História dos Índios Aikewára
61
montar a escada. Então, lembraram-se do tatu, ele era considerado o
melhor atirador, um craque. O tatuzinho veio e com suas flechas
conseguiu fazer o caminho para o céu e todos os animais foram ver de
perto o pássaro cantar.
Na hora de voltar, todos procuraram o caminho, mas
agoniados, entraram ao mesmo tempo. Quando a anta foi entrando,
pelo peso da bicha as flechas se partiram. Alguns animais caíram na
floresta e viraram caça pra gente comer. Outros ficaram no céu,
presos no caminho da anta. Esse caminho, assim cumprido, branco de
estrela ficou conhecido entre nós como o Tapi’i’ra rape, O caminho
da Anta. Depois disso outros animais voltaram a brilhar no céu junto
com Sahy e Sahy-Tatawai. (NEVES: 2004, 109)
Contam os mais velhos que há muito
tempo uma grande água tomou conta
daquela região e que apenas um guerreiro
sobreviveu no topo da Serra das
Andorinhas. Dois pássaros Mutum e
Ywyratynga, um pássaro preto e um branco
ajudaram este homem a sobreviver. Quando
a água baixou, Mutum e Ywyratynga
viraram mulheres e casaram com o guerreiro. Desta união nasceu a sociedade que habita
esta terra onde a floresta ainda resiste. Desta união nasceram os Aikewára, um povo
indígena Tupi.
E o valente guerreiro Aikewára, único sobrevivente da terrível
enchente entrou na pedra com a ywyratynga e o mutum, que agora
eram mulheres. Casou-se com as duas e fizeram muitos filhos. E
foi assim que, quando as nuvens e a água foram embora e o sol
começou a brilhar, todo o nosso povo renasceu e voltou a crescer.
O nosso povo Suruí Aikewára!! (Suruí: 2011:44)
Os saberes Aikewára estão trançados com suas narrativas orais, considero as
coloções de Neves (2009), e não classificarei estes conhecimentos como um “saber
mítico”, mas sim como parte da história deste povo. Existe segundo Neves, um disposto
de controle e sileciamento através da hierarquização do conhecimento indígena pelo
ocidente, enquanto os povos Europeus e seus descendentes tem história, os povos
indígenas tem mitos, lendas. As narrativas orais, mais do que uma categoria de análise,
são muito da cultura tradicional Aikewára.
Imagem 15. O Guerreiro Aikewára, Mutum e
Ywyratynga.
Fonte: História dos índios Aikewára
62
Classificar o conhecimento como “saber mítico” é um dos dispositivos
da ordem discursiva do Ocidente mais eficaz de silenciamento das
culturas indígenas. Se no início da colonização esta foi uma ordem
imposta pelo sistema colonial, hoje esta distinção é administrada pelas
universidades, pelos centros de pesquisa e, claro, pela mídia e pelas
escolas do Brasil. Mas felizmente, aos poucos, esta situação já começa
a mudar na produção científica brasileira, ainda que a grande maioria
dos pesquisadores continue exigindo um rigor metodológico
cartesiano em relação ao conhecimento indígena. (Neves:111:2009)
Da primeira vez que fui até esta aldeia, sabia que este povo havia passado por
grandes dificuldades num passado recente como visto no primeiro capítulo. O motivo
era o contato com a sociedade que os envolve. Muitos morreram, mas os poucos que
viveram, restabeleceram sua sociedade. Hoje mais de 300 Aikewára, a maioria crianças,
mora na Terra Indígena Sororó. Por todos estes conflitos, não se pode imaginar que a
relação deste povo com os Kamará seja pacífica.
Depois de algumas reuniões entre as coordenadoras do projeto Ivânia Neves e
Alda Costa, além de mim, do outro bolsista, o relações públicas Gilvandro Xavier Jr,
ficou decidido que na primeira viagem, iríamos eu, Gilvandro e Ivânia. Devo confessar
que da primeira vez que cruzei os portões da Terra Sororó, estava bastante nervoso, os
Aikewára já sabiam de nossa visita e o motivo dela, pois a FUNAI - Fundação Nacional
do Índio, já havia comunicado a eles.
Imagem 16. Terra Indígena Sororó
Foto: Amanda Cecília
63
Os portões e os muros de Sororó são verdes, há uma guarita e alguns dizeres.
Apenas uma corda veda o portão e é bem fácil desfazer nó que separa a problemática
Rodovia, da estrada de piçarra dos Aikewára. Da primeira vez que paramos o carro
nestes muros, depois de uma longa viagem de mais de 8 horas de carro, por volta de
umas 16h, o clima estava ameno, e só se ouvia o barulho da floresta.
O enunciado “Evite parar dentro desta área”, dá indícios do clima de hostilidade
que há em torno da Terra Indígena. Nesta região, às redondezas de Sororó, encontram-
se várias fazendas e colonos e as fronteiras geográficas nem sempre são respeitadas.
Nós estávamos lá com o aval deles e da FUNAI, esta condição era confortável, mas nem
por isso deixava de ser tenso entrar na Terra Sororó pela primeira vez. O impacto é
grande, tanto para quem entra, como para os Aikewára, é um percurso de incertezas.
Nos primeiros metros na aldeia, alguns Aikewára nos acenaram e riram para nós.
Kamará, como já dito, é como os Aikewára chamam os não índios homens, às
mulheres, chamam kamará-Kusó. Neste início, havia uma grande curiosidade na Terra
Sororó: alguns kamarás de Belém chegaram à aldeia propondo fazer filmes sobre a
cultura Aikewára. Quando paramos o carro, perguntamos onde era a casa de Arihêra,
uma das indígenas mais velhas e mais respeitadas deste povo. Uma liderança entre eles.
Perguntamos também por Mairá, que havia sido o cacique até 2004.
Assim que chegamos à casa de Arihêra, vários Aikewára nos cercaram curiosos.
Eles observavam tudo, da nossa roupa à forma como nós falávamos, tentavam ver por
dentro da janela do carro peliculado. Logo Mairá chegou e fomos ter uma reunião na
escola da aldeia. Eles estavam tímidos e se escondiam. Percebi que alguns duvidavam
de algumas de nossas palavras. Arihêra e Mairá tomaram a frente da reunião e
debatemos os vários aspectos do projeto, como o tema dos filmes e dos livros. A escola
começou a ficar cheia e outras lideranças também entraram no debate. Eles explicaram
que Mahu Suruí, irmão de Mairá, agora era o cacique, mas não estava lá naquele dia.
Mesmo assim, decidimos em conjunto com eles, que iniciaríamos as atividades
na aldeia em março de 2010. Ficou definido que a primeira oficina seria sobre a comida
Aikewára, e uma nutricionista iria junto com a gente visitá-los. O motivo de escolher
esta oficina para iniciar o projeto era definir o cardápio do projeto. Lanches seriam
servidos durante as atividades do projeto. A parte isto, a comida é um dos principais
traços de uma cultura, e queríamos respeitar as tradições da comida Aikewára.
Assim que a reunião acabou, despedimo-nos do grupo que estava na escola e
fomos dar uma volta pela aldeia com Mairá. Todas as casas de Sororó estavam pintadas
com números de campanhas política. Mairá havia sido candidato às eleições municipais
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de São Geraldo ao cargo de vereador. E, embora todos os eleitores Aikewára tenham
votado nele, não conseguiu se eleger.
Saímos da aldeia quase ao anoitecer, minhas primeiras impressões dos Aikewára
foram de que eles eram um povo muito calmo, e até tímidos. Mas eu ainda estava tenso,
apesar da recepção positiva. Eles me lembravam bastante as pessoas que vivem em
áreas rurais dos estados do Pará e do Amapá, apesar da diferenças, havia muitas
semelhanças entre eles. Então, com o projeto aprovado por eles, voltamos a Belém, para
cuidar dos preparativos para a produção dos filmes e dos livros Aikewára.
2.2 Novas tecnologias e suas possibilidades.
Quando fomos a Sororó pela primeira vez, o projeto de fato, ainda não tinha
começado. Aquela primeira visita serviu para comunicá-los e definir alguns tópicos.
Assim que a primeira parcela da verba do projeto foi liberada, iniciamos a montagem da
nossa sala de pesquisa e produção. A equipe fixa do projeto contava com as duas
coordenadoras mais três bolsistas, outras pessoas também participaram do projeto, seja
através das oficinas ou da produção dos materiais.
Considero significativo assinalar que, apesar de recursos, até certo ponto
limitados, conseguimos equipamentos razoavelmente eficientes e baratos. Pesquisadores
também são sujeitos históricos e em 2010, já se vivia o período da “democratização”
das novas tecnologias. Adquirir uma filmadora de alta resolução, que possibilitasse a
produção de filme com qualidade digital e em HD, custou menos de U$ 2.000 (dois mil
dólares). No começo dos anos 2000, com a verba que foi disponibilizada, este projeto
como foi concebido, seria impossível de se realizar.
Como já dito, a intenção deste projeto era conciliar as novas tecnologias com a
cultura indígena e assim criar um material didático diferenciado para a escola Aikewára.
A parte que me coube neste projeto foi no mínimo desafiadora: fazer os filmes curta-
metragem sobre as tradições e a cultura Aikewára. Jornalista recém-formado, havia
trabalhado por dois anos na TV Cultura do Pará e participado da edição e produção de
alguns curtas e mini-documentários, já possuía certa experiência com produções
audiovisual. Mas, sem dúvida, nenhuma de minhas experiências nesta área se
comparava ao desafio na Terra Sororó.
De certa forma, nem mesmo meu corpo estava pronto para este trabalho. Era um
choque muito grande para mim, além das diferenças culturais, era um desafio físico
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muito grande. Meu corpo carregava os sotaques da cidade, e enfrentar o mato era
demasiado penoso. Havia um grande receio de minha parte no enfrentamento destas
barreiras.
Nesta segunda viagem, quando demos início às oficinas, a equipe do projeto era
formada por Ivânia dos Santos Neves, coordenadora do projeto e pelos três bolsista. A
oficina de nutrição foi a primeira, pretendíamos usar muitos alimentos produzidos em
Sororó, como o cupuaçu e o leite da castanha. Tudo isto supervisionado pela
nutricionista que dava dicas de uma alimentação saudável e pelas Aikewára mais
velhas, que ensinavam um pouco sobre a alimentação tradicional Aikewára.
Nesta viagem, também foram feitas as fichas de cadastro das crianças e jovens
que participaram do projeto o que foi muito importante, pois assim pudemos organizar
com precisão os participantes das atividades mais especificas na escola.
Neste período, o governo estadual começou a construir 30 casas populares em
Sororó. O contraste entre as casas tradicionais, de madeira com telhado de palha, e as
casas que estavam em construção demandava uma nova ordem em nosso olhar. Aquelas
construções materializam uma nova fase da história do presente desta sociedade.
Nesta segunda viagem, eles estavam mais familiarizados com a equipe do
projeto e participar do “Criança Esperança” era uma acontecimento que se materializava
diante de nossa presença. E assim, quando entramos na aldeia, escutava-se uma gritaria:
“Os kamará chegaram!”. As crianças, mais à vontade que os adultos, corriam ao redor
do carro. Parecia uma festa e elas entendiam de certa forma, que seriam os atores
principais. Havia, certamente, muita curiosidade, por parte delas.
Como já dito, a primeira parada foi na casa de Arihêra e Umassú, grandes
lideranças dentro do grupo. Ele já foi cacique e ela é a grande mestra de saberes dos
Aikewára, como se fosse a mãe de toda aldeia. Em todas as viagens à Sororó, a equipe
do projeto ficou hospedada na casa deles. Arihêra e Umassú nos tratavam como se
fôssemos da família deles. A relação entre nós e eles se intensificou a cada viagem e
eles foram decisivos para a realização das atividades do projeto. Pelo menos entre os
Aikewára foi fundamental estabelecer esta relação de afeto, precisávamos de confiança
entre nos e eles para fazer algumas produções. O sujeitos não revelam coisas a qualquer
pessoa e no caso da cultura Aikewára, a desconfiança é um traço forte, até por tudo que
eles já passaram.
À noite, depois de resolvidas as questões relacionadas à infraestrutura,
realizamos uma grande reunião, com todos os Aikewára. Mahú, o cacique, pediu que a
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equipe explicasse o projeto. Ele se mostrava muito satisfeito, apesar de tímido, aliás,
essa é uma característica da maioria dos Suruí no primeiro contato.
Casona é o nome que dão à maior edificação da aldeia. Feita de
alvenaria e coberta com telhas de barro, é dividida em dois espaços. A
parte da frente, que é maior é o espaço reservado para as reuniões do
grupo e para algum evento especial. Ao fundo existem dois
compartimentos fechados: um pequeno escritório, onde guardam o
computador, a televisão e os documentos do grupo e uma cozinha.
(Neves:2004:45).
No final da reunião, depois do lanche e todas as explicações, a equipe do projeto
se encontrou com alguns índios mais velhos para observar o céu. Miho, Arikassú e
Akasá sabiam que a professora Ivânia Neves havia realizado uma pesquisa sobre o céu
Aikewára, por isso sempre faziam questão de nos mostrar a localização das
constelações. Este momento foi importante, porque muitas crianças nos acompanharam
e a maioria aparentemente não conhecia as constelações.
Quando retornamos para casa, Umassú armou quatro redes, uma ao lado da
outra, como estabelece a tradição Aikewára. A casa Suruí é confortável, com telhado de
palha, chão de terra batida e paredes de madeira. Mesmo no calor amazônico, por sua
arquitetura adaptada à natureza, a temperatura dentro, é agradável. Apesar de ainda
morarem nas casas tradicionais, neste período, em algumas delas, já havia energia
elétrica, televisão e geladeira. De noite, na casa de Arihêra, a TV sintonizava a novela
das 20h.
Pela manhã, a professora Ivânia Neves começou a fazer o cadastro das crianças e
dos jovens que participariam do projeto. As fotografias e os preenchimentos das fichas
ocorriam e este momento foi importante porque eles tiveram os primeiro contatos com
os equipamentos. Enquanto filmava o processo de elaboração das fichas várias crianças
me cercavam, curiosas para filmar. Ainda não tínhamos tido a nossa Briga de Galo
(Geertz:1978), e este processo de aceitação começava a entrar em curso:
Olhar as dimensões simbólicas da ação social – arte, religião, ideologia,
ciência, lei, moralidade, senso comum – não é afastar-se dos dilemas
existenciais da vida em favor de algum domínio empírico de formas
não-emocionalizadas; é mergulhar no meio delas. (1978:40)
Durante a realização do cadastro, as crianças, mesmo depois que concluíam suas
fichas, permaneciam entre nós. Arihêra traduzia o significado dos nomes das crianças.
O dela traduzido para o português significa “jabuti”. Chicão Suruí, um Aikewára que
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fez curso de cinegrafista em Belém assumiu a filmadora durante parte da elaboração das
fichas dos menores de 10 anos.
Em pouco tempo, grande parte dos meninos e meninas Suruí rodeavam a equipe.
Muitos deles curiosos olhavam fixamente a máquina fotográfica e o computador em que
descarregávamos as fotos. Outros ainda meio tímidos se exibiam para filmadora. Boa
parte deles começou a brincar.
O projeto previa a participação de crianças e adolescentes entre 05 e 18 anos. A
realidade deles, no entanto, forneceu outro indicativo, pois para eles, pelo menos até
2011, só havia crianças e adultos e o que definia estes dois períodos da vida era o
casamento e a maternidade. Então, durante o projeto, algumas meninas Aikewára, entre
13 e 16 anos, casaram e deixaram de ser criança. Num primeiro momento, não podiam
mais participar de um projeto para crianças, mas, elas encontraram estratégias para
continuar e passaram a envolver seus companheiros nas atividades do projeto. Este é
uma situação, que já impõe um conflito, é preciso lembrar, que nós como pesquisadores,
também somos sujeitos históricos, com nossa própria ordem de olhar, embora a nossa
intenção fosse conciliar estes conflitos, a esta altura, ainda estávamos enfrentando as
adequações necessárias ao relacionamento entre culturas diferentes, ajustando os
contratos desta fricção interétnica, RCO (1996, 174).
Quando comecei a filmar, algumas crianças passaram a desenhar no quadro da
escola. Pude observar que, apesar de quase toda casa possuir os espetos de antena e a
luz neon das telas de TV, não havia, nestes desenhos, referências diretas à cultura
televisiva. Ou seja, nada de cartoons americanos ou animes japoneses, o que se via no
quadro era a onça, o sol, a anta, o jabuti, os animais e as coisas da floresta.
Imagem 17. Cena do filme “a Comida Aikewára”.
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Isto chama muita atenção, embora o próprio cartaz do projeto fixado ao quando,
talvez tenha exercido certa influência. As crianças Aikewára, ao desenharem aqueles
animais, sem que um pedido formal de minha parte tivesse sido feito, começaram a
mostrar em frente às câmeras, o que aparentemente elas queriam ver nos filmes, o
objeto de desejo: os animais e suas histórias. Eles estavam a marcar uma posição, um
discurso que atravessaria as materialidades produzidas pelo projeto, a partir do desejo
deles.
O desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que –
isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação,
mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar (FOUCAULT,2008: 10).
Naquele momento, alguns Aikewára já se deixavam filmar, com toda
naturalidade. Neste sentido destacam-se Hércules Suruí e Tuá Suruí, que além de
naturalidade, incentivavam os outros a desenhar e mostrar seus desenhos para
filmadora.
Sariwawag Suruí, ou Sari, como gosta de ser chamado, um menino de 12 anos à
época, iniciou outra ação deste projeto audiovisual de construção do cinema Aikewára.
Ele reuniu outros meninos e, juntos, começaram a fazer acrobacias para filmadora. Não
satisfeito apenas com os movimentos, condição que depois eu viria a entender melhor
durante o Sapurahai, dança e música tradicional Aikewára, entrou na escola e começou
a cantar uma música Aikewára. Com a ajuda de Tuá, uma das meninas que casou
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durante o projeto, formaram um coral Suruí.As crianças eram o principal motivo para
estarmos na Terra Sororó, e a participação delas nos filmes era fundamental. Estas
filmagens foram utilizadas nas produções do projeto.
2.2.1 A oficina de nutrição.
A imagem ao lado é uma cena do filme
“A comida Aikewára”, nela, Maria e Arihêra
contam o que os Aikewára comem e o que eles
não comem.Assim que a nutricionista chegou, as
atividades do cadastro foram suspensas e os
trabalhos se concentraram na realização da
primeira oficina. Arihêra, Maria, Hóy e outras
índias substituíram os mais novos nas lentes.
Havia começado a oficina de nutrição, que previa
a elaboração do cardápio a ser servido durante o
projeto, a partir da comida tradicional Aikewára,
além de dicas de boa alimentação. O motivo
desta oficina, como já dito, era respeitar durante
a realização do projeto as tradições da culinária
Aikewára. O papel da nutricionista era
fundamental, pois ela montaria um cardápio
saudável e balanceado a partir das tradições
Aikewára.
A nutricionista começou a oficina
perguntando o que eles comiam. Arihêra
começou a responder: “Porcão, Jabuti, mandioca,
acará, castanha, cupuaçu, frango, batata...”. Em
seguida, passaram a falar sobre o que não
comem, então perguntou-se o que eles não
comem, ou pelo menos não comiam tradicionalmente: carne de vaca e de macaco.
Segundo Arihêra, quando comem macaco, o corpo fica mole, com preguiça. Quando a
nutricionista perguntava se plantavam certa fruta ou verdura e a resposta era positiva,
elas ficavam muito contentes, respondiam com um cantado “têm!”. Já quando não tinha,
surgia um “têm não” com uma expressão um pouco triste.
Imagem 19. Oficina de Culinária Aikewára: Take do filme
“A comida Aikewára”
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Ivânia Neves perguntou se eles tinham alguma narrativa sobre alguma comida
como a castanha. Arihêra, que sempre sorria e se esforçava para falar em português,
para responder, mudou sua expressão e séria, começou a falar em Aikewára. Mayron
Suruí, uma Aikewára adulto e fluente nas duas línguas precisou traduzir suas palavras e
segundo ela, quando o Karuawa, ou seja, os espíritos dos antepassados criaram o
mundo, as comidas já estavam aqui. Além de montar o cardápio, começava a procura de
estratégias para recolher as narrativas.
Também, nesta segunda viagem, Maria Suruí e um grupo de mulheres
começaram a desenhar os grafismo Aikewára, em folhas de papel em branco. Em
conversas com a equipe do projeto, Maria propôs que fizéssemos um registro sobre o
grafismo. Destes desenhos nasceu o Livro “Sentidos da Pele Aikewára”, sobre ele
comentarei mais a frente.
Boa parte dos fatos narrados sobre nesta viagem estão no filme A Comida
Aikewára, primeira produção audiovisual do projeto, e também a primeira neste
formato, sobre os Aikewára. Eles revelaram que algumas filmagens sobre eles já haviam
sido realizadas, mas não chegaram a retornar à aldeia, nem as equipes de produtores,
nem as produções. Havia umas imagens de dança em Sororó, mas que não já existiam
mais. Ainda nesta viagem, Umassú, me levou à sua roça, para que eu filmasse, mas foi
bem difícil fazer estas imagens, o terreno era irregular e eu quase não conseguia ficar
em pé, havia mato por todos os lados.
Umassú parecia flutuar e nossas condições marcavam nossos diferentes lugares
de fala e mesmo de corpo-cultura. A viagem chegava ao fim. Na despedida muitos
Aikewára ficaram tristes, mesmo com a nossa promessa de que voltaríamos. O roteiro
destas filmagens era a espontaneidade das ações, não havia um tema definido, apesar de
nós termos definido atividades, não estabelecemos um roteiro de produção, só de
edição.
2.3 O primeiro filme Aikewára.
A surpresa, é que apesar de todos os machucados que ganhei entrando no mato,
alguns aspectos da cultura Aikewára eram muito familiares. Belém do Pará é a cidade
onde eu nasci e vivi boa parte da minha vida. Apesar de todas as características
metropolitanas da cidade cheia de prédios, Belém ainda guarda muito da cultura dos
povos indígenas. Certos momentos, nestes primeiros contatos, tinha a impressão de
estar na Cabanagem, bairro da periferia da cidade. Belém é uma cidade cercada por
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floresta. No entanto estas familiaridades não mudavam o estranhamento, é outra cultura.
Os Aikewára se divertiam muito com a falta de habilidade em andar pela Aldeia que nós
exibíamos. Isto de certa forma ajudou a aproximação entre eles e a equipe do projeto.
Os desafios de fazer uma produção deste tamanho sobre outra cultura são
demasiados. Não é pacífico, nem ameno. Existe um choque, um atrito, é outra forma de
agir, de ser. O simples fato de passar alguns dias na aldeia exige um esforço, até mesmo
físico muito grande. Os horários são diferentes. Coisas do cotidiano como tomar banho,
ir ao banheiro e até mesmo dormir, são práticas diferentes.
Outro aspecto muito importante neste meu lugar de fala é a minha formação.
Como jornalista, exercia métodos peculiares na hora da condução do meu trabalho. O
tempo de coletar informações, a forma de abordagem, de como conduzir as entrevistas,
a própria presença da filmadora. Apesar de algumas leituras, de pesquisa de campo e
etnografia, minha forma de conduzir as filmagens era um pouco diferente da abordagem
de antropólogos ou linguistas, embora na equipe, houvesse pesquisadores com esta
formação que subsidiaram meu trabalho. Existia ainda em mim, um traço que foi
bastante atenuado ao decorrer das viagens, o imediatismo jornalístico, uma pressa em
função do tempo bastante escasso das produções diárias na TV, mas na aldeia a lógica
era outra, levei um tempo de adaptação, é outro tempo o que circula em Sororó.
A equipe era interdisciplinar, porém meu lugar de fala era a partir da perspectiva
jornalística de produzir materiais, produtos de mídia e minha participação foi marcada
por coisas práticas como a presença da filmadora, a preocupação com cargas de bateria,
mas o foco era principalmente possibilitar a interlocução entre eles e o trabalho que
estávamos desenvolvendo. Entendia que alguns destes filmes fariam mais sentido
apenas entre eles e que outros poderiam ser postados no YouTube, por exemplo. Mas
entre eles havia também o desejo de criar estes materiais apresentando sua cultura para
os outros. Alguns filmes com vários minutos de dança e canto Aikewára, não
repercutiam nem mesmo entre os outros membros da equipe do projeto. Então, lidava
com decisões difíceis de serem tomadas.
A proposta do projeto não era levar o audiovisual a Terra Sororó, pois quase
todas as casas da aldeia, em 2010, já possuíam televisão e muitas até tinham aparelhos
de DVD. O acontecimento novo era que os Aikewára, apesar de já terem sido filmados
antes do projeto, nunca tinham visto um filme, quer dizer uma produção editada, no
formato não bruto, em que eles eram os protagonistas. A maioria das filmagens dos
Aikewára nunca foi exibida na Aldeia. O único registro audiovisual que eles tinham
deles, era um material não editado e breve de uma dança.
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Os Aikewára ainda estavam em processo de se acostumar com a presença da
filmadora, embora essa ideia os agradasse muito. Outra coisa que não pude deixar de
notar, não só entre as crianças, mas também na maior parte dos índios da aldeia, era que
eles vestiam-se como nós. Aliás, antes de serem filmadas ou fotografadas, as crianças
procuravam vestir a roupa mais bonita. Na primeira viagem, nenhum Aikewára se
pintou para aparecer no vídeo. Naquele momento, para eles, a melhor forma de aparecer
era com a melhor roupa que tivessem.
Imagem 20. Cartaz do filme " A comida Aikewára"
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Editar “A Comida Aikewára” foi muito desafiador, que tipo de narrativa usaria?
Era hora de pegar o material das filmagens e fazer a edição. Este processo aconteceu no
Laboratório de Comunicação da Universidade da Amazônia – Unama e contou com a
participação de Pedro Leal, o editor de imagens e de animação deste e todos os filmes
Aikewára.
Fizemos o roteiro do filme A comida Aikewára. Este filme faz uma apresentação
do projeto aos índios, mas o tema central é a culinária tradicional Aikewára. Arihêra e
as outras índias mais velhas apresentam o que os Aikewára comem e o que faz mal. O
coral de Sari viera a se tornar o primeiro registro audiovisual editado em formato de
narrativa, a ser exibido para toda a Aldeia. Eles cantando Ipirá, o peixe, que iniciam o
filme. Escolhemos começar com a música, por que este é um dos elementos mais
importantes da cultura Aikewára, e também por falava do Ipirá, que relacionava com o
tema do filme. Aquela música foi fundamental para marcar uma identidade Aikewára no
vídeo. Assim que terminamos a produção, alguns meses depois, voltamos a Sororó para
mostrar os resultados.
2.4 O cinema da Casona
Imagem 21: A nova Aldeia. Foto Gilvandro Xavier
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Então, voltamos pela terceira vez a Terra Sororó. O portão e guarita esverdeados
aquela altura já eram familiares. No caminho, Mahu, o cacique da aldeia foi o primeiro
a dar boas vindas. Depois nós fomos até a casa de Arihêra, mas quando chegamos,
houve uma informação de que ela havia se mudado.
As novas casas surgiam na frente do carro. Eram de alvenaria, bem ao estilo das
casas erguidas pelo governo pelos projetos de habitação. Boa parte dos Aikewára
morava nestas casas agora. Elas foram construídas uma ao lado da outra, de tal maneira
que formavam um grande círculo. No centro, uma nova Casona foi erguida, mas ao
contrário da anterior, era feita de madeira e palha, seguindo o estilo da arquitetura
Aikewára.
Nossa presença causava um estado de euforia, aproximavam para ver os
visitantes, que já não eram mais desconhecidos. Acenávamos do carro e recebíamos
sorrisos de volta. Enfim, paramos na casa nº 22, a casa de Arihêra e Umassú. Assim que
sai do carro, falei com Umassú, que perguntou por que demoramos a voltar. Eu sorri,
disse que logo que chegamos, procuramos a casa dele, como ele havia pedido na viagem
anterior. Depois fomos levados até Arihêra. Ela estava sentada nos fundos da casa
pintando seu cabelo com jenipapo.
Após um tempo de conversa, Umassú mostrou a casa que eles estavam
construindo para gente ficar durantes nossas estadias em Sororó. Como haviam
prometido, os Aikewára construíram atrás da casa de Arihêra, uma casa para
hospedarem a equipe. A diferença é que esta casa era uma casa tradicional, ou seja, de
madeira com o teto de palha.
Depois de sair da casa de Arihêra, descarregamos alguns equipamentos na
casona. Dentre todos os objetos que saiam do carro, o que mais os atraia era uma tela de
LCD. Mairá não escondia a felicidade, eles brincavam dizendo que iam assistir a copa
no telão. Mas, na verdade, o que eles mais ansiavam, era ver os Aikewára naquela
televisão. Combinamos que a exibição do filme seria na noite seguinte, pois teríamos
que passar o dia em São Geraldo para comprar mantimentos.
Um clima festivo nos esperava logo Ivânia Neves explicou que a nova oficina
era de narrativas orais dos Aikewára, mais especificamente sobre a “Festa no Céu”, a
história de como os animais subiram no céu e formaram as constelações. A ofina
começaria após a exibição do filme e continuaria nos dias seguintes.
75
Assim, por volta das 19h, começamos a preparar a Casona para exibição do
vídeo. A televisão grande e o aparelho DVD foram alojados numa mesa que Tiapé Suruí
havia feito pela manhã. A caixa de som e um microfone também foram para Casona,
que esta altura mais parecia uma sala de cinema.
Aos poucos o lugar ia ficando cheio, as crianças se alojavam bem na frente da
TV sentadas no chão, os mais velhos disputavam um espaço pelas extremidades, muitos
traziam cadeiras de suas casas. Assim que o microfone foi ligado, os Aikewára
pareceram apreciar bastante a novidade, principalmente Mahú e Mairá, que agora
podiam falar para todos com suas vozes amplificadas. Depois de tudo ajustado
finalmente a abertura do filme aparecia na tela.
Posteriormente, ainda nos créditos, a música Aikewára ecoava da caixa de som
para toda casona. Todos estavam muito impactados, não era a primeira vez que
assistiam a um filme na TV, mas era a primeira vez que eles se viam, o coral de Sari
fazia todos eles cantarem baixinho. Os Aikewára se concentravam naquele vídeo, um
misto de felicidade, emoção e euforia tomava conta deles. Até que chegou a parte que
Arihêra surge nas imagens. Ela contava o que eles comem.
Depois da exibição do filme, os Aikewára estavam muito felizes. Os índios mais
novos passavam por nós cantando suas músicas. De repente, aquelas músicas
Cinema da Casona 22. Foto Gilvandro Xavier
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Imagem 23. Sapurahai Foto Gilvandro Xavier
tradicionais eram entoadas por crianças em todos os cantos da aldeia. O vídeo havia
mexido profundamente com os Aikewára, eles estavam orgulhosos daquilo, e agora
queriam mais. Mairá anunciou que eles fariam um Sapurahai, uma festa em que
cantariam e dançariam suas músicas tradicionais. Houve um pedido deles para que isto
fosse filmado e virasse um filme. As crianças, a partir daí começaram a fazer
competições de canto afim de ver quem cantava mais alto.
2.5. Convergências e divergências: a produção audiovisual na aldeia.
Os dias que seguiram a exibição do filme foram bastante movimentados. Os
Aikewára prepararam uma série de eventos que eles queriam ver nos filmes. Em
diversos pontos da Aldeia, havia alguém pedindo para ser filmado exibindo detalhes da
cultura Aikewára.
As crianças continuavam a passar por nós cantando suas músicas, e dessa vez,
elas não queriam aparecer com roupas bonitas, elas queriam aparecer pintadas com os
grafismos corporais Aikewára como podemos observar na imagem. Em quase todas as
casas, os Aikewára estavam se pintando. Os animais e as árvores, histórias pintadas
ganhavam forma em seus copos, através das pinturas feitas com jenipapo, urucum e
carvão.
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No entardecer eles se reuniram, Mihó, começara a cantar. O guerreiro Arikassu
comandava os índios no centro da Aldeia, eles começaram a dançar. Era visível a
felicidade deles ao fazer este Sapurahai. Todos queriam que a cultura Aikewára fosse
registrada em vídeo, mas, muito mais importante do que o registro era o encantamento
das crianças com estas práticas, isto chegava a emocionar os mais velhos. A imagem
revela uma mudança substancial em relação ao primeiro filme. Durante toda a tarde eles
dançaram e cantaram. Diversas músicas e formas de danças foram gravadas. Mais tarde
esta festa daria origem ao filme “Sapurahai”, um vídeo com 18 músicas e danças
Aikewára. A construção desta identidade Aikewára a partir dos vídeos só vai se
intensificar com o decorrer das produções. Sem perceber talvez, minha “briga de galo”
com os Aikewára havia se desenrolado. Um projeto dos mais velhos de ensinar os
jovens, talvez, seja a grande diferença, a grande virada, quem é mais autorizado a
repassar estas práticas? Este muito provavelmente seja o grande desafio de conciliar as
cultura tradicional e a escola, na lógica pedagógica das escolas ocidentais, não há
espaço para esta integração dos mais velhos, mas numa sociedade como a dos
Aikewára, diversos saberes e conhecimento são repassados por este diálogo, não só
éticos e domiciliares, mas cosmológicos e históricos.
Esta festa sugerida por eles estava intimamente ligada ao filme A comida
Aikewára. Eles queriam novas formas de representação a partir dos filmes. Parte da
equipe do projeto retornou à Belém, mas Gilvandro Xavier e eu ficamos e passamos
mais alguns dias para fazer mais filmagens e fotos como estava acertado desde as
reuniões em Belém. Estes dias foram preciosos e os Aikewára, por todos os lados
contavam mais histórias, queriam filmes disso e daquilo, a partir deste momento, foi
muito mais restrito ao processo de edição, nosso controle sobre estas produções. Não
quero dizer que estes materiais ficaram livres do nosso olhar, mas, eles refletiam bem
mais a visão deles do que A comida Aikewára. Infelizmente era impossível, diante de
tantas horas de filmagem, fazer um filme de todas as histórias que eles contavam.
Muitas narrativas foram recolhidas neste momento. Foi um consenso entre nós e eles,
que os próximos vídeos seriam feitos desta forma, já que os mais velhos estavam
empenhados em revelar suas histórias e performances para criar estes materiais.
Um pouco antes do Sapurahai começar, os índios Arihêra, Maria e Arikassu
ensinam as crianças a fazer a Tekwaeté, a rede Aikewára. Este momento foi o ponto de
partida para outro vídeo que fala sobre a rede. O filme mostra o trançado dos fios, que
guarda toda beleza e delicadeza de sua cultura. Arihêra conta histórias sobre a rede:
78
Imagem 24. Cartaz a rede Aikewára
Maurício, minha mãe ensinava eu. Me ensinava pra afiar algodão. Aí ela fazia a rede
também. Aí ela falou pra mim assim:
-Você não deve!
- Você não deve passar por cima dele não!
- Por que não pode?
- Não, faz mal. Assim ela vai ficar malfeita, ela falou pra mim. (Arihêra Suruí)
79
Os saberes Aikewára, como a produção em curso ganhavam um poderoso aliado.
Muitas crianças estavam presentes de olhos atentos para aprender a fazer a rede. Ficava
clara que não deixava de ser uma descoberta para estes jovens. Umassú em uma de
nossas conversas disse que as crianças não queriam mais ser “índio”. As materialidades
iam se entrelaçando, o cartaz “a rede Aikewára” foi produzido para divulgar o filme,
tanto em espaços fora quanto na aldeia, vale destacar que todos os filmes, eram lançados
primeiro lá, só depois em Belém. Algumas produções como “A Festa no Céu” e
Sapurahai, foram lançados somente em Sororó. As produções que lançávamos iam
convergindo em várias mídias como a impressa, a foto, as artes, os vídeos. Segundo
Henry Jenkins:
A convergência não ocorre por meio de aparelhos, por mais
sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos
cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais
com outros. Cada um de nós constrói a própria mitologia pessoal, a
partir de pedaços e fragmentos de informações extraídos do fluxo
midiático e transformados em recursos através dos quais
compreendemos nossa vida cotidiana. (2009:30)
A nossa presença na aldeia era muito requisitada pelos Aikewára para mostrar,
suas tradições ou ainda suas novas tradições, um novo projeto a ser implementado neste
novo tempo. Arihêra, já não vai mais afiar algodão, o fios da rede vem do
supermercado, não existe mais floresta o suficiente para esta prática. É neste sentido que
eles acabavam utilizando a nossa presença para conduzir o projeto, projeto este que era
um pouco diferente do que propúnhamos. Não imaginávamos que os impactos seriam
tão extensos. A nossa ida era o começo de um projeto maior, não para nós, mas para
eles, entre eles.
Este projeto peculiar Aikewára se manifestaria algumas vezes em desacordo com
o nosso. Um exemplo disto era a relação que alguns Aikewára mantinham com a igreja
evangélica, Mairá um dos caciques inclusive é evangélico. Certas ações como traduzir
canções evangélicas para a língua Aikewára, não eram apoiadas por nós, e nem eles
queriam este apoio, mas este era um conflito velado que ficava no ar como uma mina.
Havia uma animosidade, e cada vez mais eu percebia que o processo de hibridização
Aikewára ainda era forte e agonístico, e que mesmo eu e minha equipe estávamos numa
fronteira muito tênue e perigosa, apesar de todas as mediações. A interferência da igreja
evangélica não era bem vista por boa parte da aldeia, por toda interferência que ela
podia causar. Naquele momento, embora nunca tenham relatado nada era notável o
desconforto com esta situação.
80
Os dias se seguiram em Sororó com uma intensa movimentação, e começávamos
a ver os limites do processo de filmar na floresta. Certa vez, instigados por Umassú e
Warini Suruí, fomos até a aldeia velha, lugar onde os Aikewára moravam na época após
o contato. Lá a mata é bem mais fechada do que na Aldeia nova. Fomos de carro, e na
volta ele atolou numa ponte e ficou bem perto de cair num igarapé. Umassú foi
rapidamente chamar os outros Aikewára para ajudar, mas ele esclareceu que levaria
mais de meia hora para chegar à aldeia.
Ficamos, eu, Gilvandro Xavier e Warini presos ali numa pequena trilha no meio
mato. Warini, embora seja um Aikewára e esteja familiarizado com este ambiente, já é
idoso e também é um pouco surdo, a situação era de certa forma perigosa e ainda
começou a chover. Vários insetos começaram a ferrar nossas peles e todas as tentativas
de tirar o carro do atoleiro eram mal sucedidas, e o carro só afundava mais.
Cerca de 1h depois da partida de Umassú, Api Suruí e seu filho apareceram no
meio do mato com um burro, eles estavam caçando. Tentaram ajudar, mas também foi
em vão. Até que cerca de 1h e 30 minutos depois surgiu um pequeno comboio de 5
Aikewára liderados por Tiapé Suruí. Com a ajuda deles conseguimos tirar o carro do
atoleiro.
Acredito que a partir deste episódio, apesar de já estarmos totalmente integrados a
eles, nossa relação ficou ainda mais forte. Todos na aldeia se divertiam com a nossa
história de pânico no meio do mato. Até alguns Aikewára que não costumavam ser tão
amistosos com a gente, agora falavam com admiração, talvez, por alguns deles terem
nos salvado e se divertissem pela nossa inabilidade de querer ir à aldeia velha de carro.
“Só da pra ir de carro lá no verão que é seco, no inverno o carro atola”, esta frase virou
piada entre eles, e nosso conceito subia cada vez mais. Depois de mais uns dias em
Sororó, nossa viagem chegara ao fim, na despedida Arihêra lagrimava, e de certo forma
nós também.
As próximas viagens mostrariam a repercussão dos filmes e outras materialidades
produzidas por nós. A Festa no Céu, filme que contava a história das constelações
Aikewára e A rede Aikewára foram exibidos assim que houve os nosso retorno. A Rede
ao ser exibida, foi aclamada, mas A Festa no Céu apresentou um problema, tanto para
nós quanto para eles; a linguagem. Ele fora narrado por Mihó Suruí, o Pajé da Aldeia e
por Arihêra. Este filme foi narrado em Tupi Aikewára, e foi muito complicado legendá-
lo mesmo com um grupo de estudantes Aikewára fluentes em português ajudando, esta
tradução não foi adequada houve muita confusão com certas palavras na hora de
traduzir, vale destacar que a legenda foi um pedido deles. O filme também não
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funcionou bem quando foi exibido em Belém para um público restrito. Os Aikewára,
Ivânia Neves e eu decidimos fazer outra versão, substituindo Mihó por Api Suruí, um
senhor exímio contador de histórias e caçador, já que Mihó estava meio cansado e sem
voz.
Api, embora tenha pedido para colocar legenda, preferiu narrar o filme em
português. Este conflito entre o Tupi e o Português é um dilema para eles, mas o Api se
esforçou muito para transportar a performatividade típica dos narrados Aikewára para o
filme que mais tarde viraria a obra Tapi’i’rapé: O caminho da Anta.
Imagem 25. cartaz tapi’i’rapé
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Esta dicotomia linguística faz refletir sobre certas barreiras, até onde vai a
tradução e qual o sentido de traduzir o Aikewára para o povo Aikewára? Eles de fato
são bilíngues e o português como o tupi estão numa luta constante. As crianças pouco
falam o Tupi, pelo menos na nossa frente, mas uma coisa é certa, quando os pais e os
avós brigam com eles, fazem isto em Tupi e eles entendem. Um espaço muito
importante é a música, a esta altura orgulho dos Aikewára, os Sapurahai são em Tupi.
Os Sapuharai tem uma narrativa, contam uma história, daí talvez, o
estranhamento de Mihó, inclusive para os outros Aikewára, contar a história sentado.
Esta história, tradicionalmente é cantada. Da primeira vez que tentamos filmar foi
durante a oficina de narrativas orais. Fizemos a experiência de Mihó contar a história
para as crianças enquanto eles realizavam as atividades de materializar os animais que
aparecem na Festa no Céu em argila, esta atividade foi idealizada por Monica Cruvinel,
como uma metodologia de ensino das narrativas.
Na noite anterior, a este evento, foi a exibição do filme “A comida Aikewára”,
logo depois, os mais velhos contaram esta e outras histórias no microfone, e as crianças
ficaram concentradas, talvez muito por causa do próprio microfone e do clima que se
criava. Quando Mihó foi contar a história pela manhã e sem microfone, eles não se
aquietaram para prestar atenção. Então decidimos em conjunto com eles filmar Mihó e
Aihêra em separado das crianças.
Imagem 26. Oficina de Narrativas orais.
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Isto, talvez se explique, pelo fato da movimentação da cultura Aikewára depois do
contato. É muito provável que a forma como eles falam em Tupi, tenha sido
sensivelmente alterada após o contato sistemático. Quando fomos traduzir, com o grupo
de jovens Aikewára, era preciso que Arihêra, explicasse, em Tupi o que Mihó queria
falar, a narrativa da festa no céu, como já dito, é contada durante um Sapurahai na
cultura tradicional. Ou seja, o que Mihó
fez foi uma adaptação em Tupi, de uma
história que nesta língua é contata
através de Sapurarai. Api, quando fez
uma versão em português, não encontrou
tantas dificuldades, já que não lhe faltara
e melodia e nem a dança como no caso
de Mihó. O Sapurahai se fossemos
traduzir de forma mais próxima para o
português seria como uma ópera, um
musical. Segundo Shohat e Stam:
Outros filmes oferecem uma simbiose
entre a oralidade e a música, apontando para
a possibilidade de uma estética renovada na
qual a música não é subordinada à imagem e
à diegesis, mas forma um tipo de matriz
central da qual surge o filme. A música
desempenha assim, o papel que ela tem na
vida comunitária, onde é uma presença
estimulante e ao mesmo tempo artística,
espiritual e prática.(2006:419/420)
O tema do filme Tapi’i’rapé: o
caminho da Anta é as constelações
Aikewára, fala de como os animais
subiram ao céu por uma escada de
flechas, mas caíram quando a Anta, que
era muito pesada, partiu a escada. Assim
a Anta, o Veado, a Onça e o Jabuti
formaram as constelações. A cena ao
lado, retirada filme, mostra um pouco de
como foi estruturado. A legenda foi
muito requisitada por um grupo
Imagem 27. Cena do filme Tapi’i’rapé.
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Aikewára, que domina o português. Maíra instituiu muito no legendado, mesmo nas
coisas narradas em português, porque segundo eles os ajudaria a decorar.
Este filme combinou a narrativa de Api com animações dos desenhos feitos pelas
crianças. As animações foram muito especiais para eles, ficaram muito contentes ao ver
seus desenhos se “mexerem”. Assim que acabou a exibição do filme, as crianças
correram para olhar o céu e identificar suas constelações. Esta viagem foi marcada pela
presença de equipe da Rede Globo, que gravou uma reportagem sobre o projeto para o
jornal Nacional, mas esta história e outras, abordarei nos próximos tópicos.
Trabalhar estas narrativas, no formato audiovisual era um grande desafio e o
maior objetivo do projeto “Crianças Suruí Aikewára: entre a tradição e as novas
tecnologias na escola era usar estas materialidades” para mediar a cultura e a tecnologia.
Compartilho das colocações de Shohat e Stam que este tipo de trabalho é:
...uma tentativa de evitar as hierarquias antropológicas comuns tanto
entre cientista/antropólogo/cineasta quanto entre o objeto de estudo e
o espetáculo. Ao mesmo tempo, a mídia indígena não deve ser vista
como uma solução mágica, seja dos problemas concretos das
populações nativas, seja das aporias da antropologia. (2006:71)
Houve um intervalo, um tempo para organizar os materiais recolhidos, ai as
atividades se cocentravam mais em Belém. Apesar de o nosso equipamento ser
relativamente limitado, oferecias boas possibilidades de produção. Todas as
materialidades eram pensadas cuidadosamente para valorizar, mas sem agredir as
tradições.
2.6 O Sapurahai Karuwara.
O Karuwara é uma festa espiritual que é realizada de quatro em
quatro anos, depois das queimadas das roças. Para nós, povo
Aikewára é muito importante realizar essa festa, porque o Karuwara
é o espírito dos nossos antepassados.
Murué Suruí
As ultimas filmagens que fiz em Sororó aconteceram durante o Sapurahai
Karuwara. Esta é a principal festa dos Aikewára, portanto um filme sobre ela causava
muita expectativa por parte deles. Neste momento, os Aikewára passavam por uma
espécie de ebulição cultural e antigas tradições começavam a tomar seus corpos outra
vez. Eles se preparam adornados pelos seus grafismos e adereços.
Os meninos para as festividades, resolveram furar o beiço como os antigos
faziam. Esta tradição estava esquecida, mas parece que a lógica agora era outra, os
85
meninos da Terra Sororó estavam empenhados em
aprender o máximo das antigas práticas, e mesmo
transformar seus corpos, como uma memória
corporal dos tempos antigos, antes do contato. Este
período Havaí se tornado para eles uma referência,
uma nostalgia do que eles não viveram. Os mais
velhos, eram vistos agora como grandes mestres e as
crianças estavam ávidas para aprender. A imagem ao
lado é um recorte das filmagens do Karuwara,
podemos observar o beiço furado e com um espinho.
Estas filmagens sem dúvida foram as mais difíceis, por vários motivos. O
primeiro era a importância da festa, pois ela abrangia profundamente a religiosidade e
ao mesmo tempo era uma das manifestações culturais mais importantes. Entender este
Sapurahai é um exercício que excede um pouco os limites das fronteiras.
Como dito na epígrafe, o Karuwara é os espíritos dos antepassados, são uma
entidade plural, que segundo os Aikewára vivem no topo da Serra das Andorinhas, um
lugar sagrado para eles, embora tenha ficado fora da demarcação da Terra Sororó. Vale
lembrar que segundo a história da origem dos Aikewára relatada no começo do capítulo,
foi lá que o índio guerreiro sobreviveu a uma grande enchente e casou com dois
pássaros que viraram mulheres Mutum e Ywyratynga4. A Serra das Andorinhas fica a
alguns quilômetros de Sororó, e é um lugar muito importante para eles, que demonstram
muita tristeza por ela ter ficado fora de suas terras.
4 Suruí, Murué, 2011. Histórias dos índios Aikewára
Imagem 28 . Menino Aikewára
Imagem 29. Serra das Andorinhas. Foto Mônica Cruvinel
86
Um dos elementos mais importantes da festa é a casa do Karuwa, uma
construção de folha e madeira. Segundo Murué Suruí 2010 “Alguns homens da aldeia
fazem uma casa igualzinha as dos antepassados para que durante a festa, os espíritos se
reúnam dentro da casa para assistirem a dança.”. A casa, segundo ela é “uma réplica da
casa do Karuwara lá na Serra das Andorinhas”. Na imagem abaixo podemos ver a casa
que eles constroem para o Sapurahai.
O Sapurahai Karuwara exige uma série de regras, e estas regras seriam um
desafio para as filmagens, existem algumas interdições que poderiam entrar em conflito
com um documentário, se mal exploradas, poderiam interferir nos sentidos do
Sapurahai. Segundo Murué Suruí (2010):
-Todos os homens participantes tem que entrar na casa dos Karuwara
antes e depois da dança para guardar os enfeites e também para o pajé
cantar e falar os nomes que estão lá dentro. Depois que ele termina a
cantoria todos os mais velhos ficam contando as histórias, como foram
as suas caçadas, as suas aventuras. Isso, só até os espíritos se retirarem
da casinha e irem até a sua moradia oficial, que é na Serra das
Andorinhas, dentro de uma enorme pedra, que é uma gruta. Depois
disso todos saem e vão caçar e pescar;(aikewara.blogspot.com)
Alguns procedimentos incluíam inclusive nós, as danças ocorriam duas vezes
por dia, a primeira nos primeiro raios de sol, logo ao amanhecer. Assim que começava
ninguém na aldeia poderia estar dormindo, e isto se aplicava a gente também. Então, até
mesmo antes de amanhecer, Arihêra nos acordava. Ela batia na nossa porta em tom de
Imagem 30. Casa do Karuwara. Lariza Gouvêa
87
brincadeira chamando “acordada Kamará preguiçoso, o Karuwara vai começar”.
Segundo Murué (2010) o Karuwara tem as seguintes regras:
- Durante a festa não pode ter relações sexuais, porque a pele das duas pessoas ficam
manchadas de branco e todos ficam sabendo o que eles fizeram;
-Quem começou a dançar não pode faltar a nenhuma dança, tem que ir até o fim, que é
quando a pintura do corpo do pajé sair completamente;
-Não pode deixar cocar e nem maracá cair.
-Todos da aldeia tem que acordar antes da dança começar.
-Não pode ficar sozinho em casa e nem deixar criança brincar atrás da casa e
principalmente na dos Karuwara.
-As mulheres são proibidas de entrar na casinha dos Karuwara, assim como as
criancinhas.
-Só são permitidas para as mulheres um tipo de pintura, é da inamuí(pássaro jaó);
-Quem desobedecer essas regras corre o risco de acontecer uma tragédia com ele e com
sua família;
-A pintura dos homens é de animais, esse ano a pintura foi de porcão;
-A pintura do pajé é sempre de kururu(sapo).
Algumas destas regras se aplicavam a nós, como o estar acordado. Outras eram
adaptadas por eles. E é claro, no meu caso, que filmava o Sapurahai, algumas passagens
não podiam ser ignoradas, por exemplo, coube a mim, embora não tivesse dançando,
registrar todas as danças. Os Aikewára me explicaram que, já que eu havia começado,
teria que acompanhar, como se o registro, agora fizesse parte da festa. Este é um dado
muito importante, era preciso respeito às tradições, enquanto estive na aldeia, em todos
os momentos do Karuwara as filmagens aconteceram.
Um debate muito polêmico entre estas regras e as filmagens aconteceu em
relação às imagens da casa do Karuwara. Como vimos “As mulheres são proibidas de
entrar na casinha dos Karuwara, assim como as criancinhas”. Então, o que fazer com as
imagens de dentro da casa? No primeiro momento, eu e um grupo de Aikewára
queríamos colocar estas imagens na edição do documentário sobre a festa, mas a
professora Ivânia Neves, não concordava. Para ela se existe esta interdição nas regras é
porque não se deve mostrar, isto poderia interferir de forma negativa. O mistério do que
ocorre dentro da casa deve ser preservado, afinal isso faz parte das tradições.
Quando refleti sobre isto, realmente dei razão à professora. Este talvez seja um
ponto em que percebemos mais nitidamente as diferenças entre a lógica dos métodos de
88
um recorte da antropologia, que eu, mesmo estudando alguns autores, não dominava por
completo e o método jornalístico, que tudo quer mostrar, pelo menos num primeiro
momento. Repito que este é um ponto muito importante neste processo de criação, o
efeito de mostrar as imagens de dentro da casa do Karuwara poderia ser muito danoso e
exigia uma reflexão maior.
Muito provavelmente, se uma equipe de documentaristas que não tivesse um
trajeto de pesquisa entre eles fosse filmar, as imagens seriam divulgadas, isto porque os
próprios Aikewára, insistiam que estas imagens deveriam ser mostradas. Eles só se
convenceram, quando umas imagens feitas por uma máquina fotográfica que havia na
aldeia começaram a circular entre as mulheres e um bebezinho ficou com medo do que
viu e toda vez que escutava a
música, caia no choro.
O principal argumento
deles era que queriam guardar tudo
para as futuras gerações. Mas,
depois do ocorrido, concordaram
em não colocar as imagens no
filme, embora tenham pedido uma
cópia das imagens brutas de dentro
da casa, que guardariam como
uma cópia interditada.
O Sapurahai acontecia duas
vezes por dia, e cada apresentação
durava por volta de 2 horas. Ele
começa com os homens e os
meninos se enfileirando na frente
da casa do karuwara, esta ordem é
por idade. Depois eles entram para
pegar seus cocas de ficam dentro
da casa, lá eles cantam aos
espíritos. Ao saírem formam os
círculos de dança já com a presença das mulheres. Alguns mais velhos jogam o fumo
nas mulheres, segundo eles para proteger das doenças. O Sapurahai começa parecido
como antes havia iniciado, mas agora com os homens indo deixas seus adereços dentro
da casa.
Imagem 31. Cena do Sapurahai Karuwara
89
2.7 As novas tecnologias e a apropriação
A comunicação se tornou para nós questão de mediações mais do que
meios, questão de cultura e, portanto, não só de conhecimentos, mas
de re-conhecimento. Um reconhecimento que foi, de início, operação
de deslocamento metodológico para re-ver o processo inteiro da
comunicação a partir de seu outro lado, o da recepção, o das
resistências que aí têm seu lugar, o da apropriação a partir de seus
usos. Porém num segundo momento, tal reconhecimento está se
transformando, justamente para que aquele deslocamento não fique
em mera reação ou passageira mudança teórica, em reconhecimento
da história: reapropriação histórica do tempo da modernidade latino-
americana e seu descompasso encontrando uma brecha no embuste
lógico com que a homogeneização capitalista parece esgotar a
realidade do atua.
(Martín-Barbero)
As viagens do projeto, intensificaram a apropriação dos Aikewára por aquelas
tecnologias que eles já tinham entrado em contato e uso. Murué Suruí é neta de Arihêra,
e possui uma criatividade evidente para narrar histórias. A jovem Aikewára é profunda
conhecedora das Histórias dos Aikewára. Murué é casada com Tiapé Suruí e mãe de
Iwatinywwa. Murué, nesta época tinha 20 anos. Segundo Neves e Gouvêa, apud Suruí:
Seu nome significa uma fruta da floresta,que tem polpa doce e casca
dura. O que, de certa forma traduz a Murué...
Às vezes, tropeça encabulada diante da lente das filmadoras. Mas, é
bem segura em sua escrita, que fortemente reproduz com detalhes as
narrativas que os mais velhos contam, as história de seu povo, de sua
cultura.
Atualmente, Murué está conectada ao twwiter e, com seus textos,
colabora no do aikwara.blogspot.com. (2011:48)
Arihêra conta que desde que Murué era criança, sempre gostou das histórias de
seu povo, sempre faz pesquisas sobre as narrativas com os mais velhos. Sua
participação nas atividades do projeto foi muito importantes, pois Murué ao lado de seu
marido, apesar da juventude, são duas das principais lideranças entre os Aikewára.
Além do livro Murué, que falarei nas próximas páginas, ela também escreve para o
aikewara.blogspot.com. Além disto, também é co-roteirista do filme do Karuwara.
Murué se envolveu nas atividades do projeto desde o começo, ela sugeria
atividades o tempo todo, era uma das principais mediadoras entre nós e eles. O seus
conhecimentos sobre as narrativas ajudavam muito, e ela quase sempre acompanhava a
equipe durante as filmagens das narrativas. Nas gravações do caminho da Anta ela
estava ao nosso lado, e no Sapurahai Karuwara, Murué é quem narra o documentário,
numa fala que ela mesmo elaborou.
90
Havia um computador parado na casona velha, Murué solicitou esta máquina
emprestada com o objetivo de escrever um livro, já que Ivânia Neves, ao perceber o
talento de Murué na escrita, pediu que escrevesse algumas histórias sobre os Aikewára.
Entusiasmada com esta possibilidade, Murué começou a dar um tratamento literário às
Narrativas contadas por sua avó Arihêra. As lideranças
Aikewára a apoiaram.
Durante meses entre nossas viagens à Sororó, Murué
escreveu histórias que ouvira sua vida inteira dos mais velhos.
Estes escritos deram origem ao livro “Histórias dos Índios
Aikewára”. À época ela cursava o ensino médio em Sororó, e
posteriormente iniciou sua graduação no terceiro grau
indígena. A escritora fez a seleção de seis histórias que são: A
origem da noite, Kunumy Way: o menino de rabo, o Caminho
Imagem 32. Murué e Iwatinywwa. Foto Vivian Nery.
91
da Anta, o Urubu e por fim A Ywyratynga e o Mutun. Para Neves e Gouvêa apud Suruí:
As narrativas orais fazem parte da vida de todos os povos indígenas da
América. Entre os Aikewára, estas histórias também atravessam
gerações.
É através destas narrativas que eles explicam sua forma de
compreender o universo: como surgiram as estrelas, o nascimento do
povo Aikewára, a história do menino que nasceu com rabo, a vida dos
animais...
Mas, estas histórias vão além, bem além da palavra falada. Primeiro, é
preciso saber que nem todos conseguem contá-las... A narradora ou o
narrador tem que ser respeitado pelos Aikewára.(2011:2)
A produção deste livro é um dos aspectos mais significativos do projeto. Uma
escritora Aikewára escreveu suas histórias num livro didático destinado à escola
Aikewára. Ela não escondeu a emoção ao ver o livro editado, que além de suas
narrativas, contava com desenhos das crianças Aikewára. Embora não queria me
debruçar na análise deste livro neste momento, este processo é importante:
Aí tem como surgiu a noite, como o povo Aikewára surgiu depois do
dilúvio e tem também a história de uma criança que nasceu com rabo.
Tem a história da mulher grávida que o urubu raptou. São histórias
que eu desde criança venho ouvido com minha avó, ela sempre me
contava. Tem várias outras histórias, aí tem um pouco do que já ouvi.
Murué Suruí (Fundação Nazaré, diálogo aberto:2011)
2.7.1 A oficina de fotografia.
A oficina de fotografia, ministrada
pela bolsista do projeto Lariza Gouvêa,
também é um avanço nesta outra etapa, em
que começávamos a passar as produções do
projeto para os próprios Aikewára. Esta era
uma preocupação de nossa parte. Gouvêa
idealizou esta oficina para que os próprios
Aikewára revelassem o seu olhar sobre sua
cultura a partir da fotografia. Para ela era
mais legítimo que eles mesmos, realizassem
este trabalho. A foto ao lado retrata o foto
varal com as fotos realizadas durante a
oficina. As fotos foram impressas e cada
criança ficou com a sua foto.
Imagem 34: Oficina de fotografia
92
Após esta oficina, a maioria das fotografias do projeto foi de autoria dos próprios
Aikewára. Gouvêa explica:
A cena parecia de qualquer pessoa se preparando para sair em uma
foto, se arrumando, ajeitando a roupa, querendo ficar bonito, mas no
caso dos índios Aikewára as roupas que faziam questão de vestir eram
suas pinturas corporais. No ato inverso de vestir, os índios despiram-
se para as lentes da máquina digital que eles próprios controlavam,
vestiam o que lhes dava orgulho, seus araraus, arco e
flecha...(2011:44)
A oficina foi estruturada para que todas as crianças pudessem aprender como
manusear a máquina fotográfica, que era de um modelo recente e digital, o que
facilitava muito o manuseio do equipamento. Os participantes foram divididos em
turnos e dias diferentes, com Gouvêa supervisionando o processo. As crianças
aprendiam a manusear e tinham um determinado tempo, por volta de 20 minutos para
um grupo de mais ou menos 5 crianças para registrar o que elas quisessem.
A imagem é de autoria de Takari Suruí. O menino que tinha 7 anos nesta época,
se revelou, um grande fotógrafo. O interessante nesta imagem o observar o ângulo de
cima para baixo, é a visão de uma criança. Fora isso há também a espontaneidade da
mulher de ser fotografada por alguém conhecido. Eles ficavam muito satisfeitos de
Imagem 35. Foto registrada durante a oficina de fotografia. Foto Takari Suruí
93
observar as crianças registrando este momentos. Como Gouvêa (2011) esclarece, quem
melhor do que o Aikewára para fotografar o Aikewára. Muitas fotos só foram possíveis
porque foram feitas pelos próprios Suruí.
A próxima foto é um exemplo disto, de autoria de Risé Suruí, a foto foi
registrada no momento que Inemorol Suruí, irmã de Risé era pintada por Teassu Suruí
para o Sapurahai Karuwara. Não fosse a irmã a autora deste retrato, dificilmente ele
existiria, já que as meninas da idade dela, não costumavam se expor assim frente as
câmeras . Os Aikewára estavam começando a se apropriar da tecnologia em si, e esta
oficina, até o momento havia criado novas possibilidades do uso destes recursos.
Martín-Barbero (2004) conceberia este tipo de apropriação como uma “luta no terreno
adversário”. Os Aikewára viviam um momento de valorização de sua cultura, por todas
as atividades e do próprio envolvimento deles, os impactos nas tradições Aikewára eram
visíveis. Basta olhar como mudou entre os jovens a forma que eles queriam se ver
representados, e a posição que eles passaram a marcar.
Imagem 36. Pintura Aikewára. Foto Risé Suruí
94
2.7.2 A ultima viagem
A imagem acima foi tirada durante a última viagem que fizemos a Terra
Indígena Sororó. As duas ultimas viagens do projeto não tiveram como objetivo a
produção de novos materiais, mas sim a entrega do que fora produzido. Nesta viagem
entregamos os DVDs dos filmes para todas as famílias alem de calendários e camisetas.
Embora nesta derradeira passagem, eu não participasse da entrega, já que fiquei
doente e praticamente não sai da casa de Arihêra, Lariza Gouvêa e Ivânia Neves me
relataram que assim que os filmes foram entregues, a aldeia ficou vazia, todos foram
para suas casas assistir. Apesar dos lançamentos já terem sido realizados em Sororó, foi
nessa viagem que cada família recebeu sua cópia.
Para eles havia tristeza com relação ao encerramento do projeto, mas também
uma felicidade por rever tudo o que foi feito e como a relação das crianças com a
cultura Aikewára havia mudado. Quando os filmes do projeto e a Rede Globo, com sua
reportagem produziram materiais em que os Aikewára puderam se reconhecer na TV, o
efeito foi extremante positivo. Houve uma verdadeira remexida na cultura daquela
sociedade. Depois de se verem, os Aikewára mais novos exibiram muita vontade
valorizar mais sua cultura, claro que não podemos deixar de lado todas as relações de
poder que atravessam estes movimentos. A mídia, a televisão, causa um encantamento,
e a TV Globo, a maior e com mais audiência emissora do país seduz muito, por todo o
Imagem 37. A coordenadora Ivânia Neves e a bolsista Lariza Gouvêa com as crianças do projeto.
95
seu poder e alcance. Mas este processo não deixa de ser uma ação afirmativa da própria
cultura Aikewára.
A mídia que antes interferia de forma a mudar os hábitos da cultura tradicional
deste povo, agora faz exatamente o oposto, com a apropriação deles por ela. A cultura
Aikewára é valorizada com o surgir do “cinema Aikewára” ou da “TV Aikewára”. A
tradição indígena hibridizada com as novas tecnologias faz com que a cultura
tradicional conquiste novos espaços em outros meios de representações. Para Gregolin
(2007, 11):
Seria redutor entender que há apenas passividade diante do
agenciamento coletivo da subjetividade; pelo contrário, há pontos de
fuga, de resistência, de singularização. Não há, nos discursos da
mídia, apenas reprodução de modelos – ela também os reconstrói,
reformata, propõe novas identidades.
O grafismo Aikewára, que antes do projeto encontrava certa resistência de
alguns índios, após as filmagens foi eleito por eles como uma de suas maiores
expressões culturais. A forma preferida dos Aikewára aparecerem nas filmagens, são
pintados com grafismos. Quando nas filmagens trocam as roupas pelo grafismo, estão
afirmando a identidade Aikewára, marcando uma posição.
O índio Umassú Suruí, conta que o projeto chegou na hora certa, segundo ele as
crianças não queriam mais ser índio, mas quando se viram na tela, cantando, e pintadas,
alguma coisa mudou. “Isso foi bom, porque valorizou nossa cultura”, conta Umassú.
Imagem 38. Grafismo Aikewára. Cena do trailer dos filmes dos Aikewára.
96
Para Arihêra, as filmagens foram muito importantes para o seu povo, ela fala que
suas histórias vão ficar registradas paras próximas gerações. “Se eu morrer, os netos de
meus netos vão poder saber da nossa cultura, por isso é que eu gosto dos filmes”. Ela
lamenta que não tenha registros de vídeo dos tempos antigos. Assim os mais novos não
puderam ver e ouvir o que falam os índios de outros tempos.
Sobre as sociedades que não utilizam a escrita como a nossa sociedade concebe,
como era o caso dos Aikewára antes do contato, Pierri Lévy (1999) reflete “A morte de
um velho é uma biblioteca em chamas”. Entre os Aikewára, ainda encontramos uma
geração anterior à letra ocidental, embora o grafismo seja uma história pintada no corpo,
e a forma como eles se expressam, é a partir de suas narrativas orais, que na verdade são
um processo de audiovisual, que envolve a palavras falada, mas também conta como os
gestos, com as onomatopeias. A mera transcrição mutila as narrativas, pois deixa de
lado a performance do narrador. Este é um dos motivos do sucesso dos filmes ao ajudar
uma cultura indígena a se afirmar. Além de preservar uma “biblioteca viva”, mostra-se
também a forma como ela se expressa. Talvez, o maior mérito do projeto tenha sido o
de melhorar o diálogo entre as gerações Aikewára, que a partir das produções,
mostraram um desejo por suas tradições.
97
98
Capítulo III
Memória, identidade e mídia:
os Aikewára na imagem em movimento.
Mas, se se quiser manter aberta a relação entre a linguagem e o
visível, se se quiser falar não de encontro a, mas a partir de sua
incompatibilidade, de maneira que se permaneça o mais próximo
possível de uma e de outro, é preciso então pôr de parte os nomes
próprios e meter-se no infinito da tarefa. É, talvez, por intermédio
dessa linguagem nebulosa, anônima, sempre meticulosa e repetitiva,
porque demasiado ampla, que a pintura, pouco a pouco, acenderá suas
luzes
Michael Foucault
Os Aikewára mediaram novas identidades a partir das materialidades produzidas
pelo projeto. Havia uma memória discursiva (Courtine:1981) sobre o que é ser “índio”
ou mesmo o que é “ser” Aikewára. Esta memória se (re)atualiza na materialidade da
imagem. Do primeiro filme ao último, há uma construção/atualização de identidades
Aikewára. É importante retomar esta questão, neste momento, já que a
construção/atualização destas identidades vai continuar em fluxo, mesmo após o
encerramento do projeto. Quero retornar as imagens dos Aikewára antes do filme “A
Comida Aikewára” ser reproduzido em Sororó, e até antes do projeto, quando havia
imagens dos Aikewára vestidos com seus grafismos num período anterior a 2010.
A construção destas identidades, nestas batalhas de agendamentos e exclusões da
subjetividade nestas materialidades audiovisuais obedece a uma ordem discursiva
produzida historicamente, mas esta ordem não é absoluta. As brechas do discurso dão
pontos de fuga, dispersões antirrobotizadas a despeito de um organograma midiático,
que até então era apenas vertical.
As identidades são multifacetadas como concebe Gregolin (2008:88), não existe
uma identidade fixa, completa e envolta em si como um calvário ou uma virtude. Para
Foucault (2007), as identidades se apresentam como máscaras, uma paródia orquestrada
por relações de poder. A busca destas máscaras neste processo genealógico, Foucault
(2007) refletindo Nietzsche, concebe: “A genealogia é a história como um carnaval
organizado”. Há, portanto, uma pluralidade na questão identitária e com as sociedades
indígenas não é diferente:
Outro uso da história: a dissociação sistemática de nossa identidade. Pois esta
identidade, bastante fraca contudo, que nós tentamos assegurar e reunir sob
uma máscara, é apenas uma paródia: o plural a habita, almas inumeráveis
nela disputam; os sistemas se entrecruzam e se dominam uns aos outros.
Quando estudamos a história nos sentimos "felizes, ao contrário dos
metafísicos, de abrigar em si não uma alma imortal mas muitas almas
99
mortais". E, em cada uma destas almas, a história não descobrirá uma
identidade esquecida, sempre pronta a renascer, mas um sistema complexo de
elementos múltiplos, distintos, e que nenhum poder de síntese
domina.(FOUCAULT:2007:35)
Perceber este sistema complexo de elementos múltiplos nas identidades
Aikewára é um exercício complexo. Muitos discursos são fixados nas relações de
sentido, que buscam estereótipos: o índio selvagem, ou então o bom selvagem
estabelecido pela literatura romântica, o índio antropofágico e até mesmo a perigosa
ideologia de homogenialização histórica que carrega o ser “índio”. Então, estes
estereótipos, exigiram dos Aikewára, estratégias de fuga e luta. Quando foram
contatados pela sociedade envolvente, os Aikewára tiveram suas práticas culturais
alteradas, e tiveram que incorporar, novos elementos como as roupas a sua cultura.
O que começara a surgir nestes vídeos, não era uma identidade Aikewára pura,
mas um novo lugar de luta e resistência, e este lugar é plural, várias novas identidades
apareceriam a partir dali, e isto não quer dizer que outras identidades foram excluídas.
Várias máscaras habitam um sujeito, algumas só esperando a festa certa para serem
usadas. Para Foucault:
A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes
de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em dissipá−la; ela não
pretende demarcar o território único de onde nós viemos, essa primeira pátria
à qual os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela pretende fazer
aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam. Essa função é o
contrário daquela que queria exercer, segundo as Considerações
Extemporâneas, a "história−antiquário".(2007:35)
A pesquisa com os povos indígenas, nesta perspectiva da história
genealogicamente dirigida, não deve procurar achar a raiz de uma identidade pura e
estereotipada de um “índio”. Ao contrário, deve dissipar estes conceitos em meio à
pluralidade e as descontinuidades históricas. Existe uma memória imagética na história
das identidades das sociedades indígenas, construída em boa parte através das
(re)produções dos filmes, documentários, reportagens. Mas acima disto existe uma
memória destes povos, com os Aikewára não é diferente. Várias histórias de tempos
descontínuos e plurais.
Alguns dos objetivos do projeto, creio eu, só foram alcançados, porque existia
uma memória no imaginário das crianças, uma construção do que era ser Aikewára.
Nossa imaginação não é só linguística, e sim audiovisual também. Entre os Aikewára,
que possuem uma cultura de narrativas orais performáticas, ao mesmo tempo em que se
integram aos filmes, jornais e novelas, a memória, pode ser entendida, porque não dizer,
100
como espaço de criatividade e desejo,. Alguns aspectos desta memória já se
materializavam.
O menino Sari, por exemplo, queria ver representada a cultura Aikewára em
seus desenhos. Ele então pinta o índio guerreiro de história de mutum e ywrantynga. A
representação do índio traz um Aikewára em pleno seu porte e pintura corporal.
Grafismos como este seriam presenciados depois nos filmes que viriam a ser
produzidos. Mas, não existe só uma forma de pintar e nem de reconhecer este índio
Guerreiro. Umassú, revela que na época antes do contato, não havia pintura no rosto, e
que este procedimento é influência de outros povos indígenas.
Imagem 39. Guerreiro Aikewára. Desenho Sari Suruí.
101
A própria cosmologia Aikewára revela esta pluralidade, os Karuwara, os
espíritos dos antepassados Aikewára, foram uma espécie de entidade plural. Assim
quando os Aikewára falam do Karuwara, eles estão falando de um passado de múltiplos
espíritos, então estas representações mudam, cada espírito teria sua própria máscara, sua
própria identidade. O próprio nome Aikewára, significa em português, “Nós” ou “A
gente”.
É evidente que não foi no projeto a primeira vez, desde o contato, que os
Aikewára fizeram um Sapurahai pintados. Mas esta não era uma imagem recorrente,
nem nas publicações da mídia, nem nas próprias fotos que eles nos mostraram durante
nossa estadia na Aldeia e segundo relatos deles, está não era uma prática muito
recorrente, se pintar para dançar. Este procedimento é necessário para traçar uma pista
dos caminhos de memória. Algumas crianças sequer sabiam, as músicas e os passos.
Imagem 40. Aikewára na em Sororó http://img.socioambiental.org/v/publico/aikewara/surui_6.jpg.html
102
A imagem acima foi feita na década de 70 do século passado, e é uma das
imagens que está no site Povos Indígenas no Brasil. De autoria do antropólogo Roque
de B. Laraia, a foto retrata dois Aikewára pintados com grafismos, o adulto está pintado
com o “rastro do porcão”, nome deste grafismo em português, segundo os Aikewára:
O porcão, é uma das caças preferidas entre os Aikewára. Este animal é
muito importante na cultura deles. Durante o último Sapurahai
Karuwara, a mais importante festa espiritual Aikewára, os homens se
pitaram com o grafismo do “rastro do porcão”(Neves &
Corrêa:2011:29)
Alguns aspectos são muito interessantes nesta imagem, o primeiro diz respeito à
forma como o grafismo do rastro do porcão está representado, sensivelmente distinto da
maneira que os Aikewára se pintavam à época do projeto. Como podemos ver na
imagem a abaixo os traços mudam um pouco Enquanto na primeira, os traços são
horizontais, na segunda são verticais. Havia a memória deste grafismo, e houve sua
atualização, a cultura e a identidade não são inércia, mas sim movimento. Este grafismo
é muito representativo, estava também no desenho de Sari do Guerreiro Aikewára.
Imagem 41. Aikewára pintado. Foto Sari Suruí.
103
A foto de Laraia, é a única foto antiga, do tempo próximo ao contato, dos
Aikewára pintados que encontramos em nossas pesquisas. Isto não quer dizer que não
existam outras, mas, este tipo de registro não é recorrente. A maioria das fotos que
encontramos antes à realização do projeto retratam os Aikewára vestidos como kamará.
Havia de certa forma uma interdição velada ao grafismo, já que esta prática era
conflituosa com a inserção deles entre a sociedade envolvente.
O grafismo está relacionado às práticas espirituais deste povo, as festas e as
guerras. Existe regra na utilização, alguns são destinados aos homens e outros à
mulheres. O grafismo está “cheio de sentidos” (Neves:2011:20) são práticas
discursivas, contam uma história. Segundo Corrêa e Neves (2011:13) “Cada pintura
possui seu significado e tem sua função”. Alguns grafismos só devem ser usados em
determinadas ocasiões, como as festas espirituais: “Existe também uma diferença entra
as pinturas femininas e as masculinas. Alguns grafismos são extremamente úteis na hora
de caçar”. Para Neves e Corrêa:
O grafismo Aikewára também é uma demonstração de afeto entre os
índios. As mães pintam os filhos, as mulheres os maridos, as irmãs se
pitam, até mesmo os amigos se pitam uns aos outros. Entre os
Aikewára há este sentimento de fraterno, que se faz presente também
no ato de pintar “o outro”. (2011)
E justamente, eram estas práticas que estavam em negociação aos sobreviventes
do contato sistemático, será que os sentidos da pele Aikewára eram conciliáveis aquele
tempo com instituições como a igreja e o exército? Esta foi uma memória que foi
silenciada por anos, mas que se reconfigurou. As relações de poder permitem a virada
ou a readequação do jogo.
Imagem 42. Aikewára na década de 1970 :fonte pibsocial
104
Esta outra foto a imagem da página anterior, contemporânea à foto de Laraia, já
mostra uma imagem mais recorrente. Não quero dizer que em todo este tempo não
houve um Sapurahai em que todos estivessem pintados, embora os segundo os relatos
deles de que esta realmente era uma prática interditada, Umassú conta que eles pouco se
pintavam. Quero me deter neste momento na construção e na (re)construção destas
identidades a partir da imagem.
A imagem ao lado foi
retirada do filme “A comida
Aikewára”, as crianças
estavam fazendo o primeiro
Sapurahai. Neste momento a
forma como eles se
identificavam no filme era
com a roupa Kamará mais
bonita. Poucas crianças
sabiam, ou pelo menos
demonstravam saber cantar a música. E é claro, o filme ainda não tinha sido exibido
nem causado todos os impactos relatados no segundo capítulo.
Esta cena acima do filme Sapurahai, a mudança na forma como eles se
representaram. Podemos ver aqui, que eles já estão pintados com seus grafismos e estão
com alguns outros adereços. A partir daqui os Aikewára vão marcar esta nova posição
na imagem. Esta cena foi registrada poucos dias depois a exibição de “A Comida
Imagem 43. Cena do filme a Comida Aikewára
Imagem 44 . cena do filme Sapurahia
105
Aikewára”. Esta Sapurahai foi idealização deles, e criou-se então, entre as crianças uma
tradição de cantar e dançar na história recente Aikewára. Segundo relatos de Murué
Suruí, até novas danças foram apresentadas e conduzidas pelos mais velhos, que
explicavam e orientavam tudo de perto. Esta festa foi criada exclusivamente para o
filme, e depois da exibição do primeiro filme, as crianças passavam por nós cantando.
Podemos notar ai já a presença do grafismo, mesmo que de forma tímida comparada
aos momentos seguintes. Estes efeitos de sentido produzidos pelos discursos
veiculados pelos filmes possibilitavam os Aikewára a construir, a vestir estas máscaras
de identidade antes interditadas veladamente. Afinal o projeto tinha como o objetivo
conciliar estas tradições com as novas tecnologias. E o cinema Aikewára estava
remexendo com duas coisas muito importantes: o desejo e a memória. O desejo pela
arte, talvez, eles seriam os protagonistas do filme. E a memória, a memória dos mais
velhos a reativar coisas que o tempo havia interrompido.
A foto acima marca um momento muito importante neste processo de construção
da imagem Aikewára. Este Sapurahai foi realizado no dia da visita de uma equipe da
Rede Globo a Sororó. O motivo da visita era justamente o projeto, que recebia o apoio
do Criança Esperança, um projeto da TV Globo. A reportagem seria exibida no Jornal
Nacional (JN), o principal telejornal da emissora e o de maior audiência do Brasil. Este
Sapurahai contou com muito mais integrantes do que o anterior. Eles se despiram para
as câmeras como nunca haviam feito e nem fariam mais. Talvez por causa do poder da
TV Globo, e como eles tinham a consciência desse poder de alcance, talvez quisessem
aparecer desta forma para o resto do Brasil. Foi o único Sapurahai em que as meninas
mais novas não usavam cobertura sobre os seios.
Aqui chegamos ao ponto máximo levando em conta o cima/baixo da projeção
dos Aikewára na Mídia, era o mais alto que se podia chegar, pelo menos em alcance no
Brasil. Em quase todas as materialidades da análise do trabalho a partir deste ponto, os
Imagem 45. Sapurahai. Foto Alda Costa
106
Aikewára vão tomar como representação de sua identidade, esta imagem que se
fortaleceu a partir dos filmes criados por nós e por eles e da reportagem da Rede Globo.
Rosário Gregolin(2008) explica que as contribuições de J-J Courtine são
fundamentais neste processo de análise, pois propõe uma semiologia histórica. Esta
elaboração, segundo a autora foi proposta por Courtine nas análises do discurso político
e abordando as transformações, para Gregolin: “decorrentes do advento das técnicas
audiovisuais de comunicação, principalmente da televisão, que provocam a
“espetacularização da política”:
A semiologia histórica proposta por Courtine nos mostra que, por
movimentos de intereconicidade, as imagens travam um embate com a
memória, fazem deslizar a tradição e instauram outros sentidos: nessa tensão
dialética entre o dado e o novo as significações fulguram como um lampejo
que só pode ser apanhado na transitória aparição do acontecimento
discursivo. (GREGOLIN:2008:21)
Para Milanez:
a intericonicidade, levando em consideração o próprio corpo do
sujeito analista e as intervenções que sofre ao longo da história,
caracterizando posições ao mesmo tempo individuais e coletivas,
reflete ecos de nossa cultura, inscrevendo a imagem em uma série ao
aceitar participar do catálogo de memórias das imagens dos
indivíduos.(2011:257)
Articular as contribuição de semiologia histórica e interconicidade, mune as
analises de materialidades audiovisual de importantes ferramentas analíticas. Segundo
Courtine (2008:18), o investimento deve consistir em compreender “formas inéditas de
dominação que se elaboram neste momento de discursividades liquidas e em apreender
os efeitos, ao mesmo tempo políticos e psicológicos, sobre os sujeitos que somos”.
Sobre a intereconicidade Courtine explica:
Portanto, a noção de intericonicidade é uma noção complexa, porque
ela supõe a relação de uma imagem externa, mas também interna. As
imagens de lembranças, as imagens de memória, as imagens de
impressão visual armazenadas pelo indivíduo. Imagens que nos façam
ressurgir outras imagens, mesmo que essas imagens sejam apenas
vistas ou simplesmente imaginadas. O que me parece importante, é
que isso coloca a questão do corpo bem no centro da análise. (Coutine
apud Milanez 95: 2006)
Nesta pesquisa, analisar-se o funcionamento da intericonicidade na memória de
imagens forjada pelas produções midiáticas, verbais e não verbais sobre os Aikewára.
Para Courtine (2008:25) “Quando nos questionamos sobre o impacto do “quarto poder”,
sobre seus efeitos de massa, evocamos frequentemente sua potência eufórica da
107
diversão”. Existe um fascínio quase mágico provocado pelas linguagens de vídeo, mas
alerta Courtine: “é chegado o tempo de analisar quais são seus constituintes necessários
e seu eco disfórico: o governo pelo medo. É chegado o tempo de resistirmos a este
governo”.
3.1 As produções de verdade e o combate na mídia. Os Aikewára:
estrelas de TV?
Algumas descontinuidades, repartições na história do presente Aikewára
precisam ser destrinchados com atenção. As produções midiáticas sobre eles no tempo
do projeto eram de conciliação, de valorização de sua cultura, mediadas por táticas bem
organizadas e por instituições ou aparelhos ideológicos dotados de estratégias muito
eficientes de produção de verdades; a televisão e a academia. Uma série de reportagens
exaltando a cultura e as histórias dos Aikewára foram produzidas, o que foi muito
importante pra eles em vários aspectos. Mas, o poder circula, funciona e não é de
propriedade nem mesmo dos aparelhos, o que não quer dizer que eles não o exerçam.
Existe uma pressão preenchida pelas relações de poder, que se constituem
historicamente, organizando estratégias de dominação, a fim de silenciar ou autorizar
discursos.
Daí a idéia de descrever estas dispersões; de pesquisar se entre esses
elementos, que seguramente não se organizam como um edifício
progressivamente dedutivo, nem como um livro sem medida que se
escreveria pouco a pouco através do tempo, nem como a obra de um
sujeito coletivo; não se poderia detectar uma regularidade: uma ordem
em seu aparecimento sucessivo, correlações em sua simultaneidade,
posições assinaláveis em um espaço comum, funcionamento
recíproco, transformações ligadas e hierarquizadas. Tal análise não
tentaria isolar, para descrever sua estrutura interna, pequenas ilhas de
coerência; não se disporia a suspeitar e trazer à luz os conflitos
latentes; mas estudaria forma de repartição. (FOUCAULT: 2005: 42)
A repartição, a história descontinua, é nas entrelinhas que as relações de poder
que produzem os efeitos de sentido e de verdade, vão encontrar seu espaço de diálogo e
luta. Há todo um esforço para visualizar um projeto maior, um poder mais sólido. A
mídia ou até mesmo os Aikewára como um prédio fixo ou sujeitos ligados por mesmas
convicções, unidos por um poder ou ideal comum. Mas o máximo que podemos fazer
nestas análises é enxergar através de uma névoa de discurso inteligíveis, de pequenos
108
fragmentos e de suas táticas para produzir efeitos. É claro que existe uma aparente linha
de condução, mas subjetivação é curva, não reta.
...a construção identitária é a montagem de um quebra-cabeças cujo
desenho total não conhecemos e no qual faltam peças. Por isso, as
práticas discursivas de produção identitária são muito mais o trabalho
de um bricoleur, que constrói todo tipo de coisas com os materiais que
tem à mão. Se na fase sólida do capitalismo a identidade era erigida a
partir das idéias de Estado e de classe, vivemos hoje a fase líquida, na
qual todas as instituições perderam a força. Vivemos a “modernidade
líquida”, nossas identidades devem ser cambiantes pois a
inflexibilidade (em todos os aspectos da vida) é condenada, os
“projetos de vida sólidos” são abominados. (GREGOLIN:2008:
88/89)
Segundo relatos de Maria Suruí, os Aikewára, logo após a exibição da
reportagem do Jornal Nacional ficaram em êxtase, por motivos variados, por se
afirmarem diante do veiculo de comunicação de maior alcance do país, um pouco pela
fama talvez, por verem valorizado aspectos de sua cultura . As pessoas, segundo ela
gritavam pelos cantos da Terra Sororó. Os meninos e as meninas fizeram um Sapurahai
para comemorar a exibição. A matéria do JN
teve este efeito de produção de verdade, de um
povo Aikewára em pleno restabelecimento de
sua cultura, conciliando tudo em paz e
harmonia, seja como a floresta ou com a
modernidade. Esta não deixar de ser uma
verdade, ela por si só é uma necessária utopia
ao bem estar. Junto com ela, existem outras
verdades, tão utópicas e necessárias ao
equilíbrio das relações de poder. A mídia, e a
sua mediação é protagonista nestas relações:
Esse efeito de “história ao vivo” é produzido pela
instantaneidade da mídia, que interpela
incessantemente o leitor através de textos verbais e
não-verbais, compondo o movimento da história
presente por meio da ressignificação de imagens e
palavras enraizadas no passado. Rememoração e
esquecimento fazem derivar do passado a
interpretação contemporânea, pois determinadas
figuras estão constantemente sendo recolocadas em
circulação e permitem os movimentos
interpretativos, as retomadas de sentidos e seus
deslocamentos. Os efeitos identitários nascem dessa
movimentação dos sentidos.(Gregolin:2007:11)
Imagem 46. Os Aikewára no Jornal Nacional
109
A reportagem dos Aikewára no JN começa com uma chamada dos âncoras
Willian Bonner e Fátima Bernardes falando dos 25 anos do Criança Esperança e dos
desafios do projeto Crianças Suruí-Aikewára. Logo após há uma sequência de imagens
que são acompanhas com a música Aikewára no fundo. A primeira delas é imagem
nº46. A reportagem começa sua narrativa dando o destaque aos mais velhos. É a voz
deles cantando que fica como a trilha dos primeiros segundos. Vários efeitos de sentido
sobre as tradições Aikewára começam a tomar corpo no discurso da matéria. Segundo
Gregolin (2007): “Tendo como ponto central a arquegenealogia de Michel Foucault, o
discurso é tomado como uma prática social, historicamente determinada, que constitui
os sujeitos e os objetos.”. A narração iniciava com o seguinte texto de Poliana Brito a
repórter:
A história da floresta na pele dos índios. O preto do jenipapo, o
vermelho do urucum, cada traço é herança para os mais novos.
“Minha mãe que me ensinou. Aí eu fui aprendendo, aprendendo e
ensinando pras outras”, disse Taraí, de 10
anos.(BRITO:JN:06/08/2011)
A menina Taraí Suruí que na Aldeia é mais conhecida como Talita, na hora de
se apresentar a repórter fez questão de marcar sua identidade Aikewára, nada de nome
Kamará. A intenção dos Suruí e da própria reportagem era incentivar as tradições,
histórias da floresta na pele Aikewára. As tradições passadas de geração para geração.
Discursos que circularam toda a reportagem e também alguns filmes do projeto.
Segundo Neves (2011:pág) “Taraí falava agora de uma outra posição e queria marcar
sua identidade indígena. Seu corpo estava vestido de jenipapo e urucum, bem diferente
dos modelos ocidentais que via na televisão...”
Imagem 47. Taraí no JN
110
As passagens de uma cena para outra na reportagem, sempre procuravam
mesclar as imagens dos mais velhos, seguidos pelas crianças sempre reforçando a
passagem das tradições. Assim o texto continuava: “E eles retribuem os ensinamentos.
A pintura é a roupa mais bonita! A preparação para um dia de festa.”. Que efeitos de
sentido este enunciado provocou nos Aikewára, levando em consideração o local de
onde ele fala? A mídia, através deste meio fortíssimo que é TV Globo, estava
legitimando uma prática e por que não discursiva, outrora interditada, silenciada.
A cena da menina pintando o seu avó que surge simultânea com o enunciado “E
eles retribuem os ensinamentos”, causa certa comoção. Tudo está muito bem editado,
uma narrativa que só valoriza o desejo por essa cultura tão bonita, e mesmo o insensível
as causas indígenas tem grandes possibilidades de achar a cena aprazível. Aos Aikewára
mais velhos o Ethos da sabedoria de seus domínios, a consagração de uma geração de
mais de que sobreviventes; guardiões, mestres. “O conhecimento vira livro e a vida na
aldeia é transformada em filme, estrelas de TV.”
Imagem48. Cena do JN
Imagem 49. Cena do JN
111
A marcante Sapurahai, na matéria do Jornal Nacional da TV Globo, teve uma
representação relativamente pequena. Mas ainda assim é forte como memória e como
identidade. A narrativa de um Sapurahai é muito difícil de conciliar com uma
reportagem, são formatos antagônicos, o Sapurahai, neste formato muito dificilmente
vai ir além de uma alegoria. O texto jornalístico de televisão trabalha em menor escala e
em menor tempo, não é uma que prática focalize o coletivo, sempre se busca a palavra
de uma personagem. De qualquer forma, um vídeo foi produzido pelo projeto,
contemplando este Sapurahai. O filme é esta disponível no site YouTube e é a
materialidade midiática mais acessada na Internet produzida sobre os Aikewára pelo
projeto. Este Sapurahai do dia em que a equipe do JN esteve em Sororó foi muito
representativo, segundo Neves:
Puxados por Arikassú, que exibia um belíssimo ararau, entraram os
homens dançando. Todos pintados de Sawara Pixum - Onça Preta. A
força da cultura Aikewára se materializava em seus corpos pintados,
no movimento que faziam com os maracás e principalmente, no
movimento dos pés...
Quando os Aikewára entraram na praça central da aldeia, tudo
parou.(2010)
Para Neves (2010:32) “Todos sabem bem o poder mítico da Rede Globo no
Brasil. E é muito importante que a matéria tenha traduzido nossa forma de pensar a
realidade das sociedades indígenas atualmente, sociedades que vivem nas fronteiras.” A
reportagem Do JN abriu novas possibilidades de negociação, deu visibilidade aos
conflitos das fronteira de identidade. Ele em si, é uma das produções de verdade. “Os
efeitos identitários nascem dessa movimentação dos sentidos.” Gregolin (2007). Esta
movimentação tem seus benefícios, não é só prejudicial, ela é as duas coisas se
alternando e coexistindo num constante choque de forças semelhantes, onde a diferença
entre o vencedor e o vencido é decidido muito mais pelo fluxo do funcionamento
inteligível do poder, do que por um projeto ou desejo de uma instituição ou mesmo de
um sujeito. A melhor estratégia deve prevalecer, mas como se vencer um luta que não
acaba e tem sua repartição flutuante. Para Foucault:
A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as
raízes de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em
dissipá−la; ela não pretende demarcar o território único de onde nós
viemos, essa primeira pátria à qual os metafísicos prometem que nós
retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as descontinuidades
que nos atravessam. (2007:34)
112
A identidade segundo Foucault (2007) é uma máscara, uma paródia “o plural a
habita, almas inumeráveis nela disputam; os sistemas se entrecruzam e se dominam uns
aos outros”. Estes sistemas além dos evidentes conflitos são simultâneos, o que vai
definir qual máscara um sujeito vai usar ou vão lhe atribuir é uma posição flutuante na
história do presente. Outras vozes se erguem para colocar em combate a identidade
Aikewára na mídia. Para Gregolin:
Ao mesmo tempo, há uma tensa relação entre a mídia e seus leitores: a
subjetividade é fabricada e modelada no registro social, mas os
indivíduos vivem essa subjetividade tensivamente, reapropriando - se
dos componentes fabricados e produzindo a singularização, criando
outras maneiras de ser. Se só houvesse submissão, não haveria
produção de novos sentidos. Acontece que não há agenciamento
completo das subjetividades, mas um permanente entrelaçamento
móvel entre as forças de territorialização e as de desterritorialização,
ambas agindo e provocando contradições.(2007:
A mídia para o bem e para o mal é uma das principais peças deste jogo de
negociação. Como bem mostra o caso dos Aikewára, a mídia ocupou papéis muito
benéficos e outrora destrutivos. Se foi muito bom para a tradição Aikewára ver a rede
Globo mostrando um pouco de sua cultura no Jornal Nacional, durante muito tempo,
suas novelas causavam o efeito reverso, o fato de eles participarem de um projeto
apoiado pelo “Criança Esperança” gerou uma imagem positiva deles nas cidades
próximas.
3.2 Silenciamentos da televisão.
Uma das repercussões da reportagem está na fala de Maria Suruí, e partir do que
ela disse sobre a reportagem, nos fez perceber que os próprios Aikewára entendiam os
interesses midiáticos diante de sua cultura. Maria não nasceu Aikewára, é negra e não
apresenta traços indígenas, mas foi integrada ao grupo ainda muito nova, quando passou
a viver com Arikassu e com ele teve dez filhos. Ela foi responsável por manter viva a
tradição do grafismo corporal e é considerada por eles uma das grandes mães da aldeia.
No final da matéria, ela comentou: “Eu sabia que eles não iam me filmar. Se
fosse a equipe só do projeto eu apareceria, mas nesta televisão aí, tem que ser índio
puro!” Existe uma produção de discursos sobre os indígenas brasileiros que chega pelos
meios de comunicação massiva e pelas redes sociais e contribui para as formulações que
a sociedade brasileira faz sobre as identidades indígenas.
A fala de Maria Suruí deixa ver um dos fios desta memória discursiva que se
construiu no Brasil sobre as populações indígenas, a ideia de que existem “índios
113
puros”. Outro indicio desde silenciamento, deve-se a exclusão de Hércules Suruí da
reportagem. O menino apesar de possuir o estereótipo indígena, não possui um nome
Aikewára. A jornalista Poliana Brito, insistiu comigo em saber um nome Aikewára, ela
contou o caso de Taraí, que também é chamada de Talita. No caso de Hércules, não
havia outro nome, ele foi entrevistado, mas na edição que foi ao ar não estava presente.
Suponho, que a falta de um nome indígena, tenha sido o motivo. Na imagem , podemos
a entrevista de Hércules, a única das entrevistas que não foi ao ar.
Outros aspectos de silenciamento estão presentes na reportagem, sobre tudo no
que diz respeito à hibridização Aikewára. A jornalista faz uma visita a uma casa
Aikewára e explora as conciliações que eles fizeram para se adaptar as casa de alvenaria
que o governo construiu em Sororó:
Fazer esse casamento entre as tradições indígenas e a modernidade
nem sempre é um desafio. Muitas vezes ele acontece naturalmente.
Olha que curioso: o governo deu casas de alvenaria para os índios.
Dentro delas eles têm televisão, freezer, eletrodomésticos. Mas, aos
poucos, foram levando palha e madeira e, ao atravessar uma porta, se
encontra uma antiga oca, onde eles passam a maior parte do tempo,
inclusive dormem e cozinham no fogão a lenha.(brito:2010)
Imagem 50. Foto Gilvandro Xavier
114
Como vimos no primeiro capítulo, esta conciliação não foi nada simples, o
processo de hibridização Aikewára, foi causado por frentes de Fricção Interétnica. E
este processo foi violento, não pacífico, nem mesmo simples. Dentro de uma mesmo
reportagem, encontramos o poder funcionado, em suas relações de produção de verdade
nem sempre conciliadas.
A reportagem e assim como o projeto, foram financiados pela TV Globo, a
mesma emissora que ajudou na Modernização/colonização da região onde os Aikewára
vivem. Não existe uma bondade, nem uma maldade extrema na mídia, mas sim
interesses, relações de poder. Vejamos no caso apenas da reportagem, vários vozes
falam, ao mesmo tempo em que se propõe valorizar a cultura indígena, procura-se
valoriza-la a partir de um estereótipo de indígena puro, e talvez, se romantize um pouco
a história de guerra e de lutas deste povo.
O encerramento da matéria, retoma a valorização da cultura Aikewára, e cita os
problemas que os Aikewára passaram na história do contato. “A preocupação de
Arihêra e dos outros índios mais velhos da aldeia é não deixar que um passado triste
volte e se torne presente. Na década de 60, restavam poucos suruí aikewara”. Takes com
Imagem 51. Takes JN.
Imagem 52. Umassú no JN
115
olhares apreensivos dos mais velhos e depois as crianças, fazer o plano de imagens
desta passagem. A reportagem termina com o seguinte enunciado: Um dos índios
enxerga nas crianças o futuro de seu povo e, diariamente, dá a mesma mensagem pra
todas elas: "Tem que ser aikewara com convicção".
Segundo Martin-Barbero (2007) “São procedimentos de controle, de exclusão,
de ritualização dos discursos que atravessam de parte a parte a comunicação maciça, os
dispositivos da massmidiação.”. Como vimos, apesar de novas negociações, alguns
aspectos da identidade indígena não são (re)avaliados pelos meios de comunicação, os
estereótipos, são em grande parte a imagem que interessa, mas o poder, como já dito
funciona. Os sentidos desta produção,foram muito profundos, um ponto de fuga, para
uma sociedade silenciada, segundo relatos deles mesmo, na mídia em outro momentos
históricos.
116
Considerações finais
Eu quero que a neta da minha neta saiba as histórias da minha mãe.
Arihêra Suruí
O projeto chegou ao fim, e novos rumos da história recente Aikewára
começaram a tomar outros contornos. Os problemas por eles enfrentados continuam,
como queimadas em suas terras e a demarcação de área maior para Terra Sororó. A
nossa história entre eles chegou ao fim, por relações conflituosas com a nossa presença
na aldeia e o interesse obscuro, nebuloso de algumas instituições e algumas lideranças
Aikewára.
Não posso negar que os desafios enfrentados por nós forem penosos, doloridos,
para ambos os lados. Mas, suponho que o grande objetivo deste projeto, a despeito de
todos os problemas, foi alcançado. A conciliação, o diálogo, a mediação. As crianças e
os mais velhos puderam melhorar a relação com uma memória silenciada por um
processo histórico de violência, de guerra, e fazer uso de identidades que os colocaram
numa buscar por tradições adormecidas.
Mas, esta história, além de dolorida é também, bonita, delicada. Quando as
crianças se pintaram, reconheceram os desenhos no céu, marcaram uma posição de ser
Aikewára, todo o esforço foi justificado. Arihêra conta que ela não vai mais deixar de
contar as histórias, que isso é a sua cultura e que eles não podem perder isso. Arihêra
quer que a neta de Yatinhua, filha de Murué, saiba as histórias do antepassados.
Como vimos ao longo desta pesquisa, existem pontos de fuga, como diz Rosario
Gregolin na epígrafe que abre este trabalho. Os Aikewára deram seguimento nestas
produções, mesmo sem a nossa participação, e os materiais produzidos pelo projeto são
motivo de grande orgulho para eles, que os exibem sempre em suas viagens. O cinema
da casona, foi um movimento importante, que remexeu e subverteu estruturas na Terra
Sororó e alimentará lembranças dos Aikewára na busca conflituosa pelas mediações nas
fronteiras de identidade.
Umassú Suruí, conta que o projeto chegou na hora certa, segundo ele as crianças
não queriam mais ser índio, mas quando se viram na tela, cantando, e pintadas, alguma
coisa mudou. “Isso foi bom, porque valorizou nossa cultura, eu fico muito feliz em ver
as crianças se pintando, correndo. Agora que tem muita criança, é bom”.
Para Arihêra, as filmagens foram muito importantes para o seu povo, ela fala que
suas histórias vão ficar registradas paras próximas gerações. “Se eu morrer, os netos de
meus netos vão poder saber da nossa cultura, por isso é que eu gosto dos filmes”. Ela
117
lamenta que não tenha registros de vídeo dos tempos antigos. Assim os mais novos não
puderam ver e ouvir o que falam os índios de outros tempos.
Contudo é preciso olhar com muito cuidado pra estes processos; primeiramente
existe uma pretensão por boa parte de pesquisadores, em achar que resgataram a “pura”
cultura indígena. Não houve resgate. Como poderia se resgatar o que não está perdido,
afinal são os pesquisadores que ensinam as sociedades indígenas a fazer o grafismo ou
outras expressões de sua cultura? A memória, as identidades estavam lá, spo esperando
as condições adequadas para se expressarem.
Houve sim, uma valorização das tradições Aikewára, mas não se pode
superestimar estes procedimentos. Trata-se de um processo de mediação/apropriação
muito valioso e importante na negociação entre os Aikewára e a sociedade nacional.
Quando analisa as sociedades tradicionais amazônicas Morkazel (2006) diz: “há
superposições visuais que se colam às imagens importadas que chegam veiculadas pela
televisão, frustrando qualquer pretensão de pureza cultural.” Ou seja, o próprio cinema
Aikewára, já traz em sua gênese estas imagens, embora ele tenha a pretensão de trazer
outras imagens, as memórias subterrâneas da floresta. De acordo com Sarlo (1997:121):
Sabemos então que, assim como não existe uma única cultura
legítima, em cuja cartilha todos devem aprender a mesma lição,
tampouco existe uma cultura popular tão sábia e poderosa que possa
ganhar todos os confrontos com a cultura de massa, fazendo com os
produtos da mídia uma colagem livre e orgulhosa, nela inscrevendo
seus próprios sentidos e apagando os sentidos e idéias dominantes na
comunicação de massa. Ninguém pode fazer uma operação tão a
contrapelo nas horas vagas, enquanto assiste à televisão.
É preciso reconhecer as relações de poder (Foucault: 2007), a recepção/mediação
não esta livre do poder. Existe uma enorme diferença estrutural entre as produções da
grande mídia e alguns filmes independentes. As culturas populares até se apropriam das
tecnologias da mídia, mas não há como ignorar a diferença de recursos e de alcance dos
grandes meios de comunicação. No entanto, na brecha do discurso é possível fazer
muita coisa.
Os Aikewára vão continuar seus processos de negociação, “caracterizados por
seus aspectos competitivos” (CARDOSO DE OLIVEIRA: 1996, 174). Esta é uma
constante e um acordo definitivo nunca vai chegar. Isto não quer dizer que tudo seja dor
e guerra e que conquistas e sorrisos não aconteçam, pois estamos falando de uma
sociedade humana. A história dos Aikewára é uma história latino-americana, brasileira,
amazônica. E como tal, não pode fugir de sua gênese, todos nós neste continente fomos
118
forjados em histórias de lutas e guerras. Constantemente negociamos a nossa cultura,
que é resultado de imposições, mesmo nas grandes metrópoles.
Certos seguimentos da sociedade, parte da mídia inclusive contribui para que os
povos indígenas sejam só um. Para que os Aikewára sejam um só índio, uma só
identidade, de preferência selvagem, ou bom selvagem, mas sempre exótico, mas eles se
chamam de Aikewára: “Nós, A gente”. Mas, neste jogo de mediação entre eles e
sociedade envolvente, os Aikewára conseguiram a partir dos vídeos um novo meio de
negociar suas identidades, de valorizar sua cultura tradicional, que esta longe de ser
formada por elementos fixos, puros. Mas, sobretudo, eles conseguiram uma forma de
procurar outras formas de negociação entre eles.
A cultura e a identidade Aikewára, mesmo marcadas por estes conflitos, que
inclusive aconteceram entre eles e nós, são bem maiores do que as relações de contato
de Fricção. Retomando a primeira epígrafe novamente “Se só houvesse submissão, não
haveria produção de novos sentidos.” Encerro esta pesquisa, com a certeza de que
mesmo que em condições desiguais, é possível a produção de novos sentidos a partir de
estratégias de apropriação de recursos tecnológicos e midiáticos, para deixar que o
poder funcione na contramão da ordem estabelecida. Toda ordem é desigual e injusta
pode ser densa, pesada, mas ainda assim deformá-la, mesmo que apenas algumas parte é
possível.
119
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