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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGENS E CULTURA

Os Aikewára e a Mídia:

Relações de poder, cultura e mediação.

Maurício Neves Corrêa

Belém-Pará

2013

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Maurício Neves Corrêa

Os Aikewára e a Mídia:

Relações de poder, cultura e mediação.

Dissertação apresentada à Banca

examinadora da Universidade da

Amazônia. Mestrado em Comunicação

Linguagens e Cultura. Linha de

pesquisa: Linguagem e Análise

Discursiva de Processos Culturais.

Orientadora: Profª. Drª. Marisa Mokarzel

Belém-PA 2013

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sílvia Helena Vale de Lima –CRB-2/819

306.08 C824a Corrêa, Maurício Neves. Os Aikewára e a mídia: relações de poder, cultura e

mediação / Maurício Neves Corrêa. – Belém, 2013. 122f. il. Dissertação (Mestrado) -- Universidade da Amazônia,

Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura, 2013.

Orientador: Profª. Drª. Marisa Mokarzel.

1. Sociedade indígena. 2. Cultura indígena-novas tecnologias. 3. Aikewára-mídia. 4. Índios Aikewára-inclusão digital. I. Mokarzel, Marisa. II. T.

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Maurício Neves Corrêa

Os Aikewára e a Mídia:

Relações de poder, cultura e mediação.

Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura

BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________________________________________

Presidente/orientador: Profª Drª Marisa Mokarzel (UNAMA)

_____________________________________________________________________

Professora Drª Maria do Rosário V. Gregolin (UNESP/Araraquara)

_____________________________________________________________________

Professor DrºAgenor Sarraf (UFPA)

_____________________________________________________________________

Professor Drº Nilton Milanez(UESB)

Resultado _____________________________________________________________

Belém, __________/ _________/ 2013

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Dedico este trabalho às crianças da Terra Sororó e à

Arihêra Suruí e os ou 32 Aikewára que resistiram.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço às energias boas que me envolvem, estas bolinhas de luz que

não posso ver, mas posso sentir.

À minha orientadora, que me levantou quando eu estava em fragmentos

e pouco a pouco foi me pincelando com leveza. A Marisa cerziu minha

dissertação com delicadeza, com todo cuidado para as agulhas não

machucarem. Sempre quando eu, exasperado, corria até ela, me recebia com

um sorriso e um abraço que me deram a paz e a confiança para terminar esta

etapa, passar por este Caminho.

À Arihêra Suruí, por ter divido comigo suas histórias e confiado a mim o

trabalho de registrá-las. Eu nunca vou esquecer. Lembro todos os dias da

Terra Sororó e daquela senhora doce, que apesar de tudo o que sofreu, me

ensinava os caminhos da floresta com ternura e carinho. Um dia vamos nos

reunir novamente e sob o céu estrelado, olhar mais uma vez o Tapi’i’rapé...

Às crianças Aikewára, pelo olhar, que eu guardo e me faz sonhar com

um mundo melhor.

Aos Karuwara.

Aos meus amigos Umassú, Api, Murué, Moreyru, Tonin, Taraí, Sari,

Hércules, Tiapé, Sawarapi, Arikassu, Maria e Nego.

À Rosario, por tudo que me ensinou. Tentei mil coisas e palavras para

colocar aqui, mas nada parece suficiente. Ela é uma fada? Uma bruxinha do

bem? Ela existe mesmo? Lembro que um dia desses qualquer, normal, chato,

eu tava numa plateia todo murcho com a vida. Escutei uma voz forte... Depois

veio o raio, cheio de luz e de força. Naquele dia, ainda tinha dúvida do que

queria ser quando crescer. Quando eu ficar com o pescoço mais firme, quero

ser parecido com a Rosario e aprender mais e mais com seus poderes, seus

saberes e os seus cuidados de si e dos outros. As pessoas, os alunos que ela

cuida no Brasil inteiro voando com suas asinhas e seus livros...

Ao Nilton, pelas conversas que tivemos e pelos ensinamentos sobre a

imagem em movimento. O Nilton além de ser um amigo é uma referência e

uma inspiração.

Ao professor Agenor que foi fundamental neste trabalho. Devo a ele

muitas das leituras e dos pensamentos que dialogam nesta pesquisa. Agora eu

vejo como aquelas aulas até meia noite foram preciosas.

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Às professoras do mestrado; a querida Neusa, à Andréa e à Wilma .

À Alda Costa por todos os momentos que dividimos, seja na aldeia ou na

Universidade.

A todos os professores desde o jardim até a graduação.

À Universidade da Amazônia, por toda a trajetória que tive na instituição,

desde a graduação até o mestrado.

À Capes por todo o apoio.

À Fidesa.

Ao Michael Foucault, por tudo que escreveu e pelas aulas ditas e

escritas.

Aos meus amigos que me aturaram e deram força nestes dias, noites e

madrugadas, felizes ou tristes: Larissa, Vivian, Adelaide, Tiago, Andréa,

Angelina, João, Vanessa, Laura, Carol, Carla, Gabriela, Phellippey, Paulo,

Rodolfo, Andreh Igor, Eliezer, Rodrigo Ig, Spok, Márcia, Kamila, Daniela,

Renata, Michelle, Nassif,Wilton, Thais, Andrei, Rafael, Roberta, Victor e Néia.

Ao Élito BG, por ter emprestado a sua voz aos Aikewára.

Aos meus colegas de turma no mestrado.

Ao querido Ricardo Catete in memorian. É tão estranho você ter partido!

Ricardo foi o melhor aluno, o amigo da turma, em todos os trabalhos, tem um

pouco dele. Foi um privilégio para todos nós do mestrado ter convivido com

uma pessoa tão boa e talentosa. Ricardo, agradeço por ter te conhecido e visto

as apresentações mais bonitas e criativas que só você sabe fazer.

Aos amigos do grupo de projeto de pesquisa Narrativas Orais Tupi na

Amazônia Paraense: performatividade: Adriana Azevedo Joel Pantoja,

Valquíria Lima por tudo o que passamos nestes anos.

Ao Pedro Leal, meu amigo, parceiro de todas as horas. O Pedrinho

estava sempre lá. Os filmes e tudo o que produzimos é marcado pela

criatividade e a bondade do Pedrinho. Obrigado, irmãozinho, por cuidar de

todos nós. Que este coração imenso continue sempre assim, cheio de luz!

À Shirley Penaforte, por todas as conversas e pela grande amizade que

construímos ao longo destes anos. Ela me perturba, me enche, mas é

“brodi”(tá nem sempre). Te adoro Penafraca!

À Dilza, o Rodrigo, a Karol e à pequena Juliana, por cuidarem do papai e

por tudo o que vivemos.

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Ao meu padrinho Tadeu, ao Rodrigo, à Sol, à Raiara, ao tio Jr, ao tio

Mário.

Ao meu primo Kléber, que partiu deste plano, mas que me deixou tantas

coisas boas. Guardo comigo com todo cuido a suas palavras e a sua alegria.

Muito obrigado, meu primo, meu irmão, pelo amor que nos une esteja você

onde estiver.

Aos meus compadres por todos estes anos de amor e amizade e por

terem nos presenteado com bebezinha mais linda e amada.

À minha afilhada Maria Cecília, que eu tanto amo.

Ao meu primo Gil, meu irmão, que dividiu comigo esta jornada na Aldeia.

Esta pesquisa não seria possível sem ele. Obrigado por estar comigo neste

momento tão especial.

À minha querida Lariza. O tempo que passamos juntos está vivo no meu

sorriso. Obrigado por cada segundo! Por ter segurado a minha barra no

momento mais difícil. Nossos caminhos se separaram, mas o carinho vai durar

até o silêncio me abraçar. Obrigado pelo amor...

À minha avó Lindalva, por seu grande coração. Por ter cuidado de mim

com tanto amor, por ter estado ao meu lado quando ninguém acreditava em

mim. Minha vó amada.

Ao meu pai, não existe homem que eu mais admiro. O nosso amor é tão

forte, que nada o abala. Obrigado, papai, por todo o incentivo, por todo o

carinho, por todo aprendizado. Ele não usa capa, mas é meu herói. Obrigado

por ser essa pessoa que tu és, firme como um aço e doce e tolo como uma

criança. Te amo.

À minha avó Ivone, porque, independentemente do que aconteça, eu

sempre vou estar protegido pelo carinho e pelo amor do colo da minha avó,

minha votitinha. E todos os dias, mesmo quando eu não estou com ela, ainda

posso sentir a vovó fazendo tranças no meu cabelo e dizendo que tá hora de

cortar. Eu a amo tanto, tanto! Se eu pudesse, passava todos os dias ao lado

dela. Obrigado por todos estes anos de amor! Obrigado pela dedicação, por

gostar tanto de mim, por me embalar, pelos cuidados que só a senhora

tem comigo!

À minha mãe, porque ela é minha voz, meu horizonte. Não houve

pessoa que sofreu mais e vibrou mais comigo. Ela é a minha poesia eu rego as

flores que ela espalha pelo caminho, sempre cuidando do seu jardim. Protejo

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os sonhos dela, porque eu sonho junto. Obrigado por abrir as portas de casa

pra mim, obrigado por me amar e pela paciência! Por me abraçar e me acolher.

Obrigado por tudo que você me ensinou e até pelos espinhos do caminho. Vou

estar sempre ao seu lado regando seus sonhos e suas flores...

“Na galeria, cada clarão

É como um dia depois de outro dia

Abrindo um salão

Passas em exposição

Passas sem ver teu vigia

Catando a poesia

Que entornas no chão”

Eu te amo minha mãe.

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RESUMO Esta pesquisa analisa os resultados do projeto Crianças Suruí-Aikewára: entre a tradição

e nas novos tecnologias na escola e a relação dos Aikewára com a mídia. Uma nova

frente de contato a que está exposto o povo indígena Aikewára: a chegada nada pacífica

da mídia a Terra Indígena Sororó. Os enfrentamentos teóricos precisam chegar a esta

nova fronteira, que não pode desconsiderar a história e os aspectos econômicos a que

está submetida esta sociedade e que já foram bastante discutidos pela antropologia, mas

que devem ir um pouco além, porque falam a partir de uma realidade midiatizada, que

demanda novas categorias de análise. O objetivo deste trabalho é compreender, a partir

da análise das relações de poder da Análise do Discurso e dos estudos de mediação

propostos pelos Estudos Culturais e dos estudos de Fricção Interétinica, como se

constitui a história do presente entre os Aikewára e a chegada sistemática e violenta dos

meios de comunicação, mas mostrar que existe pontos de fuga, de produções de novos

sentidos, como o projeto Crianças Suruí-Aikewára.

Os Aikewára, também conhecidos como Suruí do Pará e Suruí-Aikewára, são índios

castanheiros que moram no sudeste do Pará entre os municípios de São Domingos e São

Geraldo do Araguaia. “Suruí” foi uma denominação imposta pelo não índio. Este

povo tupi vive na Terra Indígena Sororó, um grande quadrado de floresta preservado em

meio à devastação.

Em meados dos anos de 1960, os índios Aikewára sofreram uma grande depopulação

após o contato sistemático com a população das cidades vizinhas e chegaram a 33

índios. Apesar de duramente perseguidos por fazendeiros e madeireiros da região, além

de surtos de gripe e varíola, os Aikewára resistiram. Houve muita interferência por parte

dos não-índios, neste processo, que procuraram alterar suas práticas religiosas, sua

alimentação, suas regras matrimoniais, etc. Este momento mudou definitivamente o

rumo da história e da cultura desta sociedade indígena. Segundo o último senso da

Aldeia, os Aikewára somam mais de 300 índios, sendo que a maioria são crianças e

jovens.

Palavras-Chave: Discurso, Cultura, Aikewára,Sociedades indígenas.

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ABSTRACT

This study analyzes the results of the project “Children Suruí-Aikewára: between

tradition and the new technologies in school” and the Aikewára relationship with media.

A new front of contact that it is exposed to the Native American people Aikewára: the

arrival of the media to nothing peaceful to the Sororó land. Clashes theorists need to

reach this new frontier, they cannot ignore the history and economics that is subject to

this company and have already been extensively discussed by anthropology, but that

should go a little further, because they speak from a reality mediatized, which requires

new categories of analysis. The objective of this work is to understand, from the

analysis relations of power of discourse analysis and studies of mediation proposed by

cultural studies and studies Friction Interétinica, as is the history of this Aikewára

between arrival and systematic and violent of the media, but show that there is

vanishing points, productions of new meanings, as the project Children Suruí-Aikewára.

The Aikewára, also known as Pará Suruí and Suruí-Aikewára, chestnuts are Native

People to live in southeast Pará between the cities of Santo Domingo and Sao Geraldo

do Araguaia. "Suruí" was a name imposed by no-native. This Tupi people living in

Sororó Land, a large square of forest preserved amid the devastation.

In mid-1960, the Aikewára suffered a great depopulation after systematic contact with

the population of nearby towns, and arrived to 33 Aikewára. Although harshly

persecuted by ranchers and loggers in the region, as well as outbreaks of influenza and

smallpox, the Aikewára resisted. There was too much interference by non-native, in this

case, which sought to change their religious practices, their food, their marriage rules,

etc.. This moment has definitely changed the course of history and culture of this Native

American society. According to the last census of the village, the Aikewára total more

than 300 Indians, most of whom are children and youth.

Key Words: discourse, culture, Aikewára, Native American People .

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SUMÁRIO

Apresentação Capítulo 1 - Novas frentes de contato entre os índios Aikewára: Modernidade, Ficção e Poder 1.1. Modernização/coloniedade na Amazônia Brasileira: progresso, devastação e guerra 1.1.1 Modernidade/colonialidade: conceitos e debates 1.1.2 As antenas de TV, o cinema e as estradas: a memória imagética uma moderna Amazônia colonial à flor da Terra

1.3 Os Aikewára e a Terra Indígena Sororó: nas fronteiras do fogo 1.4 As memórias subterrâneas: Cabral, a bíblia, os vírus, as bombas e as roupas chegam. O violento processo de hibridização Aikewára. 1.5 Umassú e as casas da Terra Sororó 1.6 O projeto Crianças Suruí-Aikewára: entre as tradições e as novas tecnologias na

l Capítulo 2 - Os Aikewára, a floresta e uma filmadora: a construção do cinema da Casona. 2.1 Entre histórias, castanha e estrelas. 2.2 Novas tecnologias e suas possibilidades. 2.2.1 A oficina de nutrição. 2.3 O primeiro filme Aikewára. 2.4 O cinema da Casona

2.5. Convergências e divergências: a produção audiovisual na aldeia. 2.6 O Sapurahai Karuwara. 2.7 As novas tecnologias e a apropriação 2.7.1 A oficina de fotografia. 2.7.2 A ultima viagem Capítulo 3 Memória, identidade e mídia: os Aikewára na imagem em movimento. 3.1 As produções de verdade e o combate na mídia. Os Aikewára: estrelas de TV?

3.2 Silenciamentos da televisão.

Considerações finais Referências

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23

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43

50

53

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60

64

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70

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ÍNDICE DE FIGURAS Imagem 01. Cena do filme Bye, Bye Brazil

Imagem 02. Cenas do filme “coluna norte”

Imagem 03. Cena do filme coluna norte

Imagem 04. Cena do filme “a transamazônica” 1970.

Imagem 05 cena do filme Bye,Bye Brazil

Imagem 06. Mapa1 Fonte Google Earth

Imagem 07. Mapa 2: fonte Google Earth

Imagem 08. BR-153 cortando a Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa

Imagem 09 . Terra Sororó

Imagem 10. A sala de Ahirhêra. Foto Monica Cruvinel

Imagem 11. Umassú em sua casa mesmo. Foto Maurício Neves.

Imagem 12. Casas da Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa

Imagem 13. Cartaz Aikewára

Imagem 14. Desenho Aikewára sobre o Tapi’i’rapé

Imagem 15. O Guerreiro Aikewára, Mutum e Ywyratynga.

Imagem 16. Terra Indígena Sororó

Imagem 17. Cena do filme “a Comida Aikewára”.

Imagem 19. Oficina de Culinária Aikewára: Take do filme “A comida Aikewára”

Imagem 20. Cartaz do filme " A comida Aikewára"

Imagem 21: A nova Aldeia. Foto Gilvandro Xavier

Cinema da Casona 22. Foto Gilvandro Xavier

Imagem 23. Sapurahai Foto Gilvandro Xavier

Imagem 24. Cartaz a rede Aikewára

Imagem 25. cartaz tapi’i’rapé

Imagem 26. Oficina de Narrativas orais.

Imagem 27. Cena do filme Tapi’i’rapé.

Imagem 28 . Menino Aikewára

Imagem 29. Serra das Andorinhas. Foto Mônica Cruvinel

Imagem 30. Casa do Karuwara. Lariza Gouvêa

Imagem 31. Cena do Sapurahai Karuwara

Imagem 32. Murué e Iwatinywwa. Foto Vivian Nery.

Imagem 34: Oficina de fotografia

31 34

34 35 37 40 40 41 42 43 51

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60 61

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73 75 76 78

81 82 83 85 86 88 90 91

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Imagem 35. Foto registrada durante a oficina de fotografia. Foto Takari Suruí

Imagem 36. Pintura Aikewára. Foto Risé Suruí

Imagem 37. A coordenadora Ivânia Neves e a bolsista Lariza Gouvêa com as crianças do projeto Imagem 38. Grafismo Aikewára. Cena do trailer dos filmes dos Aikewára.

Imagem 39. Guerreiro Aikewára. Desenho Sari Suruí.

Imagem 40. Aikewára na em Sororó http://img.socioambiental.org/v/publico/aikewara/surui_6.jpg.html Imagem 41. Aikewára pintado. Foto Sari Suruí.

Imagem 42. Aikewára na década de 1970 :fonte pibsocial

Imagem 43. Cena do filme a Comida Aikewára

Imagem 44 . cena do filme Sapurahia

Imagem 45. Sapurahai. Foto Alda Costa

Imagem 46. Os Aikewára no Jornal Nacional

Imagem 47. Taraí no JN

Imagem48. Cena do JN

Imagem 49. Cena do JN

Imagem 50. Foto Gilvandro Xavier

Imagem 51. Takes JN.

Imagem 52. Umassú no JN

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104 104

105 108 109 110 110 113

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Apresentação

Se só houvesse submissão, não haveria produção

de novos sentidos.

Rosario Gregolin

Arihêra Suruí, uma senhora do povo indígena Aikewára, disse certa vez, numa

de nossas longas conversas, que ela queria guardar uma história de sua mãe num filme.

Ela contou que queria que a neta da neta dela soubesse como se fazia a rede tradicional

antigamente. Arihêra supunha, que apesar de eles terem boa memória, assim ela poderia

guardar esta história, para eles não perderem mais.

No ano de 2010, durante a realização do projeto “Crianças Suruí-Aikewára:

entre a tradição e as novas tecnologias na escola”, várias vezes estive com os índios

Aikewára, na Terra Indígena Sororó. Durante este período pude conhecer um pouco da

história deste povo, em várias conversas com Arihêra, pude compreender o porquê da

preocupação dela em “guardar” suas histórias em vídeos.

A história recente dos Aikewára é profundamente marcada pelo contato deles

com as populações das sociedades vizinhas. Esta integração deles ao mundo ocidental

foi violenta, e mesmo no presente, ainda é tensa, conflituosa. As práticas culturais deste

povo foram profundamente alteradas, quando sistematicamente foram inseridos na

nossa sociedade.

Em meados dos anos de 1960, quando se estabeleceu o contato, os Aikewára

sofreram uma grande depopulação, chegaram a 33 índios. Apesar da implacável

perseguição por fazendeiros e madeireiros da região, além de surtos de gripe e varíola,

os Aikewára resistiram. Houve muita interferência por parte dos não índios, neste

processo, que procuraram alterar suas práticas religiosas, sua alimentação, suas regras

matrimoniais, etc. Este momento mudou definitivamente o rumo da história e da cultura

desta sociedade indígena.

Isto explique talvez, as motivações de Arihêra em querer guardar suas memórias,

pois novas formas de subjetivação estão em funcionamento na aldeia Aikewára. Este

trabalho, que começo a tecer, é resultado da pesquisa que eu e um grupo interdisciplinar

de pesquisadores fizeram entre eles, com o objetivo de buscar pontos de fuga e

resistência, estratégias de apropriação da cultura Aikewára pelas novas tecnologias da

informação.

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Na primeira metade do século XX, as pesquisas com sociedades indígenas, no

Brasil, passaram a se delinear pelo estudo das línguas indígenas, que ainda hoje

privilegiam os aspectos descritivos das línguas, na linguística e pelas abordagens das

teorias culturais, que num primeiro momento, produziram uma série de trabalhos

voltada para os aspectos estruturais destas sociedades, preocupados com as estruturas

sociais, relacionadas à organização do parentesco e à religião, profundamente

influenciadas pela antropologia estrutural.

Havia pouca preocupação em entender como acontecia o contato entre as

sociedades indígenas e a sociedade envolvente. A maior parte destes trabalhos ignorava

o estado de guerra em que se desenhavam estas fronteiras. Não é e nunca foi pacífico o

contato e esta situação não é uma particularidade das terras baixa da América do Sul.

Nas Cruzadas da Idade Média ou no Iraque de nossos dias, a belicosidade do contato

está nas armas, mas também encontra um campo de batalha nada pacífico no campo

discursivo e a mídia ocupa um papel vital nestas relações, legitimando discursos,

silenciando outros.

A partir dos anos de 1950, os trabalhos realizados por Roberto Cardoso de

Oliveira e toda a geração de pesquisadores que ele orientou e influenciou, procuraram

mostrar que além dos aspectos estruturais, tão caros aos primeiros estudos de

antropologia realizados sobre as sociedades indígenas, as frentes de contato a que elas

foram submetidas deveriam ser compreendidas com novas ferramentas de análise. As

definições importadas da Europa de “aculturação” ou “mudanças culturais” passaram a

ser contestadas por RCO1 e não davam conta das singularidades que o contato

representava nas histórias destes povos. É a partir desta perspectiva que tem início uma

das mais importantes e discutidas definições da antropologia brasileira: a fricção

interétnica.

Chamamos de “fricção interétnica” o contato entre grupos tribais e

segmentos da sociedade brasileira, caracterizados por seus aspectos

competitivos, assumindo este contato muitas vezes proporções

“totais”, isto é, envolvendo toda a comunidade tribal e não-tribal que

passa a ser moldada pela situação de fricção interétnica. Entretanto,

esta situação pode apresentar as mais variadas configurações, todas

elas definidas pelas características anteriormente mencionadas. Desse

modo, de conformidade com a natureza socioeconômica das frentes de

expansão da sociedade brasileira, as situações de fricção apresentarão

aspectos específicos. (CARDOSO DE OLIVEIRA: 1996, 174)

1 RCO é uma abreviação usual em livros e artigos de antropologia para Roberto Cardoso de Oliveira

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No final dos anos de 1950, com o objetivo de sistematizar a análise sobre o

processo de contato entre os índios da Amazônia e a sociedade nacional, RCO

organizou, pelo Museu Nacional, o projeto Estudos de Áreas de Fricção Interétnica.

Deste projeto fizeram parte Roque de Barros Laraia e Roberto DaMatta. Os dois se

destinaram a estudar os índios do Médio Tocantins, envolvidos com indústria extrativa

da castanha. Laraia se dedicou a dois grupos Tupi: os Suruí-Aikewára e os Assurini e

Roberto DaMatta a um grupo Jê, os Gavião-Parakatejê . Deste trabalho resultou o livro

Índios e Castanheiros: a empresa extrativa do Médio Tocantins (Laraia e DaMatta,

1978).

Contactados sistematicamente no século XX, os Assurini e os Parakatejê

mantiveram relações com a sociedade nacional nos anos de 1920, enquanto os Aikewára

se mantiveram arredios até 1952 (Laraia & DaMatta,1978:45). Seus contingentes

populacionais já eram pequenos, mesmo antes do contato, em função de divisões

internas e guerras com outros grupos indígenas. Com o contato, o número de mortes

levou estes povos indígenas a um continente populacional de menos de 40 índios em

cada grupo.

Embora a extração da castanha, realizada pelos três grupos, constituísse o

principal atrativo da sociedade nacional, o contato se deu de formas diferentes: Os

Parakatejê se assumiram como os donos de seus castanhais, enquanto os Asuriní e os

Aikewára acabaram sob o julgo dos comerciantes. De qualquer forma, embora hoje os

Parakatejê sejam considerados os “índios ricos” da região, o resultado visível, àquela

época, não os colocava em uma situação de miséria muito diferente. O cenário era tão

caótico no início dos anos de 1960, que DaMatta e Laraia chegaram a anunciar o

extermínio destas sociedades.

Dos três grupos, o que menos sofreu com brigas internas foram os Aikewára. A

estabilidade do grupo proporcionava uma reação mais amistosa diante dos estranhos. A

resistência ao contato se devia mais ao receio do cacique Musena e só a partir de sua

morte, em 1952, eles se aproximaram da sociedade nacional (Laraia &.DaMatta, 1978:

81/85).

A contribuição de Índios e Castanheiros (Laraia &.DaMatta, 1978) ao projeto

Estudos de Áreas de Fricção Interétnica, deixa ver como contatos interétnicos, ainda

que sejam estabelecidos por uma mesma frente econômica, não são regidos por uma

sequencia linear de acontecimentos. RCO conclui no prefácio da primeira edição

(Laraia & DaMatta, 1978, 46):

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[n]este processo de integração ou de marginalização econômica,

Roque de Barros Laraia e Roberto da Matta mostram qual o papel de

duas variáveis importantes da situação de fricção interétnica: o caráter

específico da frente nacional que encontrou e submeteu as populações

indígenas; e o caráter da cultura tribal alcançada por esses segmentos

da sociedade em expansão.

A análise aqui apresentada está num espaço teórico que muito se aproxima da

definição de fricção interétnica, já que trata de uma nova frente de contato: a chegada

nada pacífica da eletricidade e da Mídia à Terra Indígena Sororó. Os enfrentamentos

analíticos precisam chegar a esta nova fronteira, que não pode desconsiderar a história e

os aspectos econômicos a que está submetida esta sociedade, mas que devem ir um

pouco além, porque falam a partir de uma realidade midiatizada, que demanda novas

referências teóricas.

Nos nossos dias, o pensamento ocidental pôde multiplicar os lugares de onde se

olha para estas relações. Durante a maior parte do tempo, a história destas relações de

contato dos povos indígenas foi oficializada por um único foco narrativo, hoje, no

entanto, além dos trabalhos de alguns pesquisadores não índios, alguns poucos

indígenas já chegaram às universidades e começam a mudar a direção das pesquisas.

Por outro lado, as atuais teorias da cultura, ainda que continuem irradiadas pela Europa

e pelos Estados Unidos, já construíram novos caminhos e é possível falar em

Antropologia Brasileira ou Estudos Culturais Latino-Americanos.

No ano de 2009, foi aprovado o projeto “Crianças Suruí Aikewára: entre a

tradição e as novas tecnologias na escola, coordenado pela linguista e antropóloga

Ivânia Neves e pela jornalista Alda Costa, professoras doutoras da Universidade da

Amazônia (Unama), o projeto foi um dos selecionados pelo Criança Esperança da Rede

Globo em parceria com a UNESO. O projeto atendeu mais de 100 jovens entre 5 e 18

anos. Ao longo do projeto foram produzidos 6 filmes e 3 livros didáticos para escola

Aikewára. O objetivo destes materiais era conciliar a tradição cultural dos Aikewára

com as novas tecnologias, de tal maneira, que servissem de apoio à estrutura de ensino.

Também foi criado o “aikewara.blogspot.com” além de uma série de artes, banners e

cartazes.

Fui um dos bolsistas selecionados para participar deste projeto, e entre o final de

2009 e o início de 2011, várias vezes estive em Sororó. Participei intensamente na

elaboração destes materiais. Por ter uma formação em Comunicação Social, com

habilitação em Jornalismo, dirigi e co-dirigi os filmes, além de ter participado

ativamente na edição dos livros e na construção do Blog. Por ser um projeto de pesquisa

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e extensão de uma universidade, havia uma preocupação acadêmica e social na

elaboração destas materialidades.

O projeto alcançou segundo alguns Aikewára, como Tonin Suruí, um resultado

muito positivo: “As crianças começaram a valorizar mais a nossa cultura depois que

vocês chegaram com esses filmes, não só elas, mas toda a aldeia”. Relatou o jovem

Aikewára, numa de minhas viagens à aldeia. O que motivou a existência deste projeto

foi a situação em que os Aikewára se encontravam à época. Muitas casas em Sororó, já

possuíam televisões e outros equipamentos como o rádio, mas quase nada da cultura

Aikewára havia sido (re)produzido ou transportado para estas materialidades. Isto criava

um conflito entre as gerações, uma crise de identidade, por todo o processo de contado.

As crianças de Terra Sororó estavam expostas a estes dilemas.

É importante deixar claro, nunca tivemos a pretensão de resgatar a cultura

Aikewára, ela nunca esteve perdida. O nosso objetivo era valorizar esta cultura através

destes filmes e livros. Nossa intenção era pensar numa mediação das tradições

Aikewára com estas novas tecnologias, que já eram uma realidade na Aldeia. Não

fomos nós que levamos a primeira televisão à Sororó, tão pouco, este processo é

necessariamente maléfico. O uso destas tecnologias é que vai determinar seus impactos,

benefícios ou degradações.

Esta integração violenta dos Aikewára tem como um dos principais focos de

conflito as mídias. Analisar as estratégias, as tácticas Aikewára a partir da mídia é o

objetivo deste trabalho, um relato de pesquisa, onde analisarei como os saberes

produzidos pelas materialidades midiáticas, criam poderes que alteram as relações como

as práticas de si, remodelando as manifestações, os corpos e as identidades. Como as

relações de poder agem, silenciando ou dando escuta aos Aikewára. Proponho uma

arquegenealogia da construção das identidades Aikewára a partir das produções

midiáticas produzidas pelo projeto e por outras instituições. Para Foucault (2007:172):

A genealogia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição

dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um

empreendimento para libertar da sujeição os saberes históricos, isto é,

torná−los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um

discurso teórico, unitário, formal e científico. A reativação dos saberes

locais − menores, diria talvez Deleuze − contra a hierarquização

científica do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder, eis o

projeto destas genealogias desordenadas e fragmentárias. Enquanto a

arqueologia é o método próprio à análise da discursividade local, a

genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim

descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta

discursividade. Isto para situar o projeto geral.

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Segundo Gregolin (2007): “Tendo como ponto central a arquegenealogia de

Michel Foucault, o discurso é tomado como uma prática social, historicamente

determinada, que constitui os sujeitos e os objetos”. As produções da mídia da/sobre a

sociedade Aikewára, materialidades discursivas construídas historicamente, colocam em

circulação identidades, estereótipos, geram novos efeitos de sentido.

A partir desta perspectiva teórica, esta arquegenealogia, aqui proposta, em

colocar em luta os saberes produzidos pelas diversas produções da mídia sobre o povo

Aikewára, observando o lugar histórico de onde eles falam. De que forma os saberes

desta cultura são tratados pelas produções não ficcionais como reportagens e

documentários? Para Gregolin (2008:12), a função do arquegenealogista é “interpretar

ou fazer a história do presente”. Este procedimento consistiria em mostrar que “as

transformações históricas foram as responsáveis pela nossa atual constituição como

sujeitos objetiváveis por ciências, normalizáveis por disciplinas”.

Este trabalho fala de um lugar ainda novo em relação às sociedades indígenas,

pois procura compreender, a partir da análise das relações de poder da Análise do

Discurso e dos estudos de mediação propostos pelos Estudos Culturais e pelo projeto de

fricção Interétnica da Antropologia Brasileira, como se constitui a história do presente

entre os Aikewára e a chegada sistemática e violenta dos meios de comunicação. Mas,

além disto, a motivação é mostrar que existe a fuga e não apenas a submissão, é mostrar

que apesar de toda a perseguição e violência deste processo, foi possível a cultura

Aikewára se apropriar de novas tecnologias para se fortalecer.

A difícil conciliação entre autores de diferentes correntes é um exercício penoso,

porém, todas estas correntes estão empenhadas em estudar os sujeitos e formas de

deslocar as histórias do centro, colocar em dúvida as estratégias de dominação e apontar

para novos rumos na margem, outras histórias que possibilitem a fuga, a resistências.

O primeiro capítulo é dedicado a analisar como a história do presente, se

(re)produz na Terra Sororó, na Amazônia Brasileira, uma região que a partir de uma

modernização/colonização ocorrida a partir da metade do século XX é rasgada por

estradas e grandes projetos. A partir do Pensamento Liminar, proposto por Walter

D.Mignolo, apresento uma modernização amazônica como a outra face da colonização

da região. A partir da análise de alguns vídeos produzidos pelo Estado Brasileiro para

publicizar seus projetos na região, apoiado pela analítica do poder de Michel Foucault e

pelos dos estudos de Mídia e Discurso de Maria do Rosario Gregolin, mostro como a

mídia participou deste processo, produzindo efeitos de sentido que legitimavam a

modernização/colonização.

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A partir das memórias subterrâneas das narrativas orais Aikewára, mostro como

este povo indígena se viu neste processo de modernização/colonização da Amazônia,

pelo o qual a Terra Sororó passou. Como se deu fricção interétnica entre eles e a

sociedade nacional. Seria a mídia uma frente de fricção? Procuro analisar como as

novas frentes de contato entre os Aikewára e a sociedade envolvente são mediadas e.

em que condições de produção elas se estabelecem. Termino o capítulo com a chegada

da eletricidade à aldeia e suas consequências imediatas.

No segundo capítulo, vou fazer um relato de pesquisa, meus primeiros contatos

com os Aikewára, as motivações, o objetivos e as conclusões do projeto Crianças Suruí-

Aikewára: entre a tradição e as novas tecnologias na escola. Como se deu a criação do

cinema Aikewára e quais os desafios enfrentados, tanto na parte cultural como criativa.

Utilizo os estudos de Jesus Martin-Barbero sobre as mediações e as novas

tecnologias e procuro mostrar de forma empírica a apropriação de novas tecnologias

pela cultura. Como foi possível à cultura Aikewára se apropriar de vídeos, CDs livros e

outras materialidades para negociar as fronteiras de identidade.

No capítulo a partir das análises de Mídia, Discurso e identidade de Rosário

Gregolin e das considerações de Michel Foucault sobre poder e discurso, além dos

estudos de imagem e memória de J.Jacces Courtine e Nilton Milanez , analiso como as

materialidades produzidas pelo projeto e por outras mídias, colocaram novas formas de

funcionamento de poder em ação, dando novas formas de negociação dos Aikewára

com suas identidades a sua própria cultura. Como se dá o embate neste campo, no que

diz respeito às identidades Aikewára. Procurei analisar qual o impacto dos filmes, sobre

a cultura Aikewára e as estratégia que este povo usa para resistir às pressões impostas

pelos efeitos de sentido veiculados pelas mais diferentes mídias. O que foi silenciado e

o que ganhou escuta na mídia?

Este trabalho de pesquisa que apresento faz parte de um projeto maior e outros

pesquisadores participaram deste processo. Então, divido com eles a autoria da

pesquisa, um grupo de pessoas preocupadas em fazer pesquisa na Amazônia, mas de dar

a estas pesquisas um sentido social, ao longo desta dissertação, trarei suas vozes ao

texto. Este é um trabalho em conjunto, e agora, começo meu exercício de memória e

análise.

Existe uma inquietude de minha parte com tantas questões perturbadoras na

região Amazônica. Uma brutal desigualdade social, que ainda hoje, atualiza o sistema

colonial, enquanto a floresta queima. Esta inquietação é minha motivação, seja como

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jornalista ou como pesquisador. As estratégias dos sujeitos amazônicos para enfrentar as

dificuldades nesta região tão grande como plural me levam a escrever, filmar, produzir.

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Capítulo I

Novas frentes de contato entre os índios Aikewára:

Modernidade, Ficção e Poder.

Pensando a mídia como prática discursiva, produto de linguagem e processo

histórico, para poder apreender o seu funcionamento é necessário analisar a

circulação dos enunciados, as posições de sujeito aí assinaladas, as

materialidades que dão corpo aos sentidos e as articulações que esses

enunciados estabelecem com a história e a memória. Trata-se, portanto, de

procurar acompanhar trajetos históricos de sentidos materializados nas

formas discursivas da mídia.

(Rosário Gregolin)

A mídia tornou-se nos últimos anos, um dos principais palcos de batalha entre os

Aikewára e a sociedade envolvente, a chegada das parabólicas, foi mais um dos

aspectos da fricção interétnica entre eles e a sociedade nacional, na medida em que foi

um importante dispositivo de conflito das práticas culturais e das negociações das

identidades. A partir da Análise do Discurso, com o método arquegenalógico proposto

por Michel Foucault e os estudos de mídia e discurso de Rosário Gregolin podemos

enxergar, através da névoa inteligível dos discursos, como o poder funciona através de

efeitos de sentido que alteram as identidades, os corpos, as práticas. As produções

discursivas midiáticas estão permeadas de relações de poder. Segundo Foucault

(2007:101):

[...]existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam

e constituem o corpo social e que estas relações de poder não podem

se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma

acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso. Não há

possibilidade de exercício do poder sem uma certa economia dos

discursos de verdade que funcione dentro e a partir desta dupla

exigência. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só

podemos exercê−lo através da produção da verdade.

Michel Foucault (2005:35) concebe o poder “como uma coisa que circula”, e só

“funciona em cadeia”. Para o autor, o poder não é uma riqueza que pode ser

conquistada, nem é um privilégio de poucos. “O poder se exerce em rede e, nessa rede,

não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse

poder e também de exercê-lo.” É neste movimento de poderes, o lugar das táticas, das

estratégias, a partir das produções de verdade.

Os sujeitos, não são passivos do poder, são seus fiadores, “jamais eles são o alvo

inerte ou consentidor do poder, são sempre seus intermediários.” Foucault (2005). “Em

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outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles”. Há, no poder,

circulação e funcionamento, uma engrenagem inteligível e combativa de produção de

verdade. O poder não é uma teia estável de produções de sentindo. Para Foucault

(2007:142) “Na medida em que as relações de poder são uma relação desigual e

relativamente estabilizada de forças, é evidente que isto implica um em cima e um em

baixo, uma diferença de potencial”.

Está dialógica cima/baixo, desigual e relativamente estabilizada, vai permitir os

espaços de luta e resistência, que são múltiplos. Há sempre a perspectiva de o jogo virar.

Nos embates provocados pela mídia, está uma relação constante nas construções das

identidades, o silenciado pode, por motivos diversos da história, falar. As relações de

poder nos seus limites de desigualdade relativamente estabilizada permitem o constate

vai e vem de produções de verdade. Então, um grupo de sujeitos pode, nas movências

históricas, ter sua posição discursiva (re)vista.

Na história do Brasil, nas últimas décadas, a situação dos povos indígenas e a

questão ambiental exemplificam as transitoriedades do poder. Existe uma série de

produções de verdade que os legitimam como os “guardiões da floresta”, mas em outros

momentos, a corrente de “inimigos do progresso” é que ganha força. Estas duas

correntes coexistem de forma desigual e relativamente estabilizada no mesmo momento

histórico, elas se tencionam e se invertem. Gregolin (2007:5) diz que:

[...]em um momento histórico, há algumas ideias que devem ser

enunciadas e outras que precisam ser caladas. Silenciamento e

exposição são duas estratégias que controlam os sentidos e as

verdades. Essas condições de possibilidade estão inscritas no discurso

– elas delineiam a inscrição dos discursos em formações discursivas

que sustentam os saberes em circulação numa determinada época.

Tomando como referência as condições de possibilidade da história e a

circulação do poder, pretendo compreender como a relação entre a mídia e os Aikewára

se estabeleceu. Sem perder de vista que, apesar de suas singularidades históricas, eles

fazem parte de uma ordem social, e que, assim como outros povos indígenas, eles

estiveram no meio do caminho do “progresso” na Amazônia.

Neste primeiro capítulo, analiso como a construção de rodovias e a instalação de

uma rede nacional de televisão e cinema, interferiu nos rumos da história Aikewára.

Este povo passou por um violento processo de hibridização com a sociedade nacional,

que sob o pretexto da “modernização” e do “progresso” da Amazônia, começou um

corrida colonialista sobre a região.

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1.1 Modernização/coloniedade na Amazônia Brasileira: progresso,

devastação e guerra

A eletricidade chegou à Terra Sororó, sistematicamente, a partir do ano de 2009,

quando a maioria dos Aikewára adquiriu televisão e antena parabólica, mesmo assim,

muito antes disto, eles já possuíam o contato com a TV, uma bomba que gerava

eletricidade e havia algumas televisões em Sororó, mas eles se reuniam em grandes

grupos para assistir. O que significa que eles conheciam os discursos que circulavam na

mídia sobre eles. Como frequentam as cidades vizinhas, conheciam bem as fronteiras

culturais e suas tensões e pela presença de missionários religiosos e da escola em

Sororó, os Aikewára já entendiam as expectativas dos não índios em relação a eles.

A experiência entre eles, que aconteceu a partir de um projeto de novas

tecnologias, além de me mostrar como administravam suas fronteiras culturais,

necessariamente me fez refletir sobre a importância das produções da mídia entre as

sociedades indígenas e sobre a importância da (re)produção de estereótipos dos

indígenas nesta tensão de produções de verdade. Para Gregolin:

Na sociedade contemporânea, a mídia é o principal dispositivo

discursivo por meio do qual é construída uma “história do presente”

como um acontecimento que tensiona a memória e o esquecimento. É

ela, em grande medida, que formata a historicidade que nos atravessa

e nos constitui, modelando a identidade histórica que nos liga ao

passado e ao presente. (2007:11)

Existe uma produção de discursos sobre os indígenas brasileiros que chega pelos

meios de comunicação massiva e pelas redes sociais e contribui para as formulações que

a sociedade brasileira faz sobre as identidades indígenas. Nas primeiras atividades do

projeto, fizemos um levantamento dos filmes produzidos pelo cinema brasileiro

comercial sobre temáticas indígenas no Brasil. Fora do circuito alternativo, encontramos

alguns poucos filmes produzidos a partir de romances famosos na literatura brasileira

como “O Guarani” e “Iracema” de José de Alencar.

A realidade do Brasil é bem diferente do que acontece nos Estados Unidos, onde

há um número significativo de produções que abordam as histórias da conquista do

Velho Oeste do país e a dizimação dos “vilanescos caras vermelha”. Segundo Shohat e

Stam (2006), aproximadamente um quarto da produção de filmes longa-metragem

americanos entre 1926 e 1967 foram sobre a temática de faroeste.

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De uma maneira geral o faroeste hollywoodiano virou a história de

ponta-cabeça ao apresentar os índios como intrusos em suas próprias

terras, criando assim uma perspectiva paradigmática... Raramente os

faroestes mostram os índios vivendo de maneira pacata no ambiente

doméstico, embora a expansão para o Oeste tenha destruído, de modo

brutal justamente esse estilo de vida, bem como os costumes desses

nativos. (SHOHAT E STAM: 2006:177)

Se por um lado, os filmes dos Estados Unidos abordam estas histórias, mesmo

que glorificando, em muitos casos, o genocídio a que as populações indígenas de lá

foram submetidas e invertendo os papéis, no cinema brasileiro, há um silenciamento

bem mais evidente destas histórias de genocídio e colonização. A indústria cultural

brasileira, historicamente, invisibiliza as histórias indígenas.

Há também em circulação em diversas partes do mundo, disponibilizados pela

indústria cultural, uma série de documentários produzidos por redes internacionais de

comunicação voltadas para os povos Incas, Maias e Astecas. Estes impérios pré-

colombianos causam muito interesse por parte tanto da mídia quanto das publicações

didáticas, mesmo no Brasil. É muito possível que uma criança brasileira receba mais

informações sobre estes povos do que sobre as populações que habitavam as regiões em

que moram.

Em relação à programação televisa brasileira, a situação não é tão diferente, mas

atualmente, tanto em canais comerciais como nas TV públicas, já se produziu uma série

de documentários e reportagens sobre sociedades indígenas. Há personagens indígenas

célebres na teledramaturgia brasileira, mas isto não significa que nestas produções, de

fato, as sociedades indígenas ganharam um espaço de escuta. Basta lembrar que os

personagens indígenas normalmente são interpretados por atrizes e atores brancos.

As produções audiovisuais também estão fortemente presentes na rede social

YouTube e algumas delas estão voltadas para as sociedades indígenas Tupi da

Amazônia. Neste novo espaço de construção de sentidos, a priori, as condições são mais

democráticas, já que todos os usuários da web podem postar seus filmes. Mas isto não

significa que estas produções não estejam filiadas a redes de memória que circulam nos

meios massivos e talvez a diferença esteja no fato de mais pessoas terem a possibilidade

de produzir conteúdos. Numa rápida pesquisa, há vários filmes postados produzidos por

indígenas e por não índios. Não podemos, no entanto, acreditar que por serem

indígenas, estes novos produtores não vão também reforças os estereótipos construindo

historicamente sobre suas sociedades.

Em relação aos Aikewára, a relação que estabelecem com a produção

audiovisual é um pouco diferente. A partir da publicidade que eles ganharam com o

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projeto, uma série de reportagens sobre eles, além dos filmes, livros e o blog

aikewara.blogspot.com foi produzida. Esta condição gerou novos efeitos de sentido e de

verdade tanto entre eles mesmos, mas também sobre o que pensa sobre esta sociedade

além dos muros de Sororó. Nos movimentos da história, parte de suas memórias

subterrâneas ganharam escuta na mídia.

Neste novo momento, o processo de contato com a sociedade envolvente ganhou

novos contornos nas desiguais e relativamente estabilizadas relação de poder. É

importante destacar o movimento e as lutas deste povo na administração da produção de

verdades através da mídia. Contudo é preciso buscar a história do presente entre os

Aikewára, para entender quais os papéis da mídia nos caminhos desta sociedade, como

os discursos, a partir da mídia, silenciaram ou/e legitimaram a violência, ou em outro

momento histórico, fizeram o oposto.

Os Aikewára estão inseridos numa narrativa maior, para entender os processos

que levam ao contato sistemático, é preciso tratar a Terra Indígena Sororó, não como

uma ilha, mas sim como um lugar que esteve atravessado por conflitos que mudaram o

próprio desenho do país e da Amazônia Brasileira. É significativo assinalar que a mídia,

mesmo antes de se estabelecer na aldeia, esteve nesta história do presente, legitimando

processos de dominação e silenciamento.

Um dos aspectos mais importantes nos estudos sobre as sociedades e os sujeitos

Indígenas nesta situação de Fricção Interétnica é entender quais os discursos e de como

seus funcionamentos legitimaram a “conquista da Amazônia” a partir da metade do

século passado, momento em que se estabelece o contato sistemático entre várias

sociedades indígenas da região, inclusive os Aikewára, e a sociedade envolvente. A

bandeira da modernização/progresso da região é talvez, a grande justificativa, para a

sociedade em geral, desta invasão, enquanto a integração/colonização verdadeiro

objetivo.

Segundo Foucault (2005:29) “Somos submetidos pelo poder à produção da

verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade”. O exercício de

legitimação desta invasão da Amazônia foi uma composição orquestrada por vários

setores da sociedade brasileira: governo, mídia, capital nacional, capital estrangeiro e

imigrantes em busca de uma “vida melhor”. A modernidade/colonialidade, travestida de

progresso/integração, teve um grande número de produções de verdade para autorizar a

violência e a devastação. Como aconteceu este processo é o que pretendo discutir nos

próximos tópicos.

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1.1.1 Modernidade/colonialidade: conceitos e debates.

O que é ser moderno? Esta pergunta certamente rende debates e teses

infindáveis, e talvez divida epistemologias como grãos de areia, de tão variadas

respostas. É possível, no entanto, fazer alguns recortes. Alguns autores vão se debruçar

sobre os estudos da modernidade, e pretendo cerzir algumas de suas definições para

subsidiar o debate da modernidade Amazônica. Para Bruno Latour (2009:15):

A modernidade possui tantos sentidos quantos forem os pensadores ou

jornalistas. Ainda assim, todas as definições apontam, de uma forma

ou de outra, para a passagem do tempo. Através do adjetivo moderno,

assinalamos um novo regime, uma aceleração, uma ruptura, uma

revolução do tempo. Quando as palavras “moderno”, “modernização”

e “modernidade” aparecem, definimos, por contraste, um passado

arcaico e estável. Além disso, a palavra encontra-se sempre colocada

em meio a uma polêmica, em uma briga onde há ganhadores e

perdedores, os Antigos e os Modernos. “Moderno”, portanto, é duas

vezes assimétrico: assinala uma ruptura na passagem regular do

tempo; assinala um combate no qual há vencedores e vencidos.

Apesar de infindáveis conceitos do que é ser “moderno”, existe certa

recorrência nas definições. A questão do tempo, certa altura, talvez tenha feito mais

sentido, porém, existe um moderno mais moderno? O pós-moderno? O moderno pode

ser velho, no que diz respeito exclusivamente ao tempo? Tentar alcançar o moderno

como passagem de tempo é como tentar tocar no horizonte, a caminhada vai ser longa,

mas circular, sem de fato conseguir tocar na linha. Isto se deve ao fato, de que o

moderno, pressupõe o novo. Então o enunciado “o antigo tempo moderno” só se

estabelece como metáfora ou antítese.

O moderno pressupõe o tradicional ou antigo. Como Latour expõe existe uma

batalha entre eles como vitoriosos e derrotados. A tentação de olhar a modernidade por

este prisma é grande, mas logo se exaure, pois esta não seja, talvez, uma batalha de

exclusões, mas sim de choques equilibrados, que não se excluem, mas se misturam, sem

se fundirem ou se anularem, uma luta sem fim e sem vencedores.

... não podemos mais assinalar a flecha irreversível do tempo nem

atribuir um prêmio aos vencedores. Nas inúmeras discussões entre os

Antigos e os Modernos, ambos tem hoje igual número de vitórias, e

nada mais nos permite dizer se as revoluções dão cabo dos antigos

regimes ou os aperfeiçoam (LATOUR :2009:15)

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Não adianta tentar buscar o moderno no horizonte do tempo, mas é possível

entender a modernidade como uma projeto político de dominação, que inclusive

atravessa o tempo como um raio-x. D. Mignolo (2003:80) apresenta estudos muito

consistentes sobre a modernidade como desenho político “a colonialidade é constitutiva

da modernidade”, no que ele define como “pensamento liminar”:

... visto da perspectiva subalterna, o lócus fraturado da enunciação

define o pensamento liminar como uma reação à diferença colonial.

“Nepantla”, palavra cunhada por um falante de Nahuatl na segunda

metade do século 16, é outro exemplo do pensamento liminar . “Estar

ou sentir-se entre”, como se poderia traduzir a palavra, pôde sair da

boca de um ameríndio, não de um espanhol (cf Mignolo,1995b). A

diferença colonial cria condições para situações dialógicas nas quais

se encena, do ponto de vista subalterno, uma enunciação fraturada,

como reação ao discurso e à perspectiva hegemônica. Assim o

pensamento liminar é mais do que uma enunciação híbrida. É uma

enunciação fraturada em situações dialógicas com a cosmologia

territorial e hegemônica (isto é, ideologia, perspectiva). (2003:11)

Para o autor, o desenho do sistema mundial moderno começa com as grandes

navegações ibéricas,“a conexão do Mediterrâneo com o Atlântico através de um novo

circuito comercial, no século 16, lança as fundações tanto para a modernidade quanto

para a colonialidade”. As relações de trabalho, econômicas e sociais desta nova ordem,

um “moderno sistema mundial” começam a se desenhar neste momento, mas segundo

D. Mignolo (2003:80), é preciso repensar este modelo:

A necessidade de concebê-lo como um sistema mundial

colonial/moderno e de contar as histórias não apenas a partir do

interior do mundo “moderno, mas também a partir de suas fronteiras.

Estas não são apenas contra-histórias ou histórias diferentes, são

histórias esquecidas que trazem para o primeiro plano, ao mesmo

tempo uma nova dimensão epistemológica da, e a partir da margem do

sistema mundial colonial/moderno, ou se quiserem, uma

epistemologia da diferença colonial que é paralela a epistemologia do

mesmo.

Este trabalho, para trazer estas histórias esquecidas, das margens, recorta esta

epistemologia colonialidade/modernidade como faces da mesma moeda. O

colonialismo, no Brasil, não se extingue no grito do Ipiranga de Dom Pedro I. Este

processo não seria muito mais a independência dos portugueses no Brasil? As teias do

colonialismo na América Latina mudaram para as mãos de uma elite euro-americana,

que depois ganhou outro contorno, mas manteve as práticas de colonialidade, o que

segundo D. Mignolo (2003:129) não deve ser confundido como o período colonial.

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A colonialidade do poder deve ser distinguida do período colonial,

que se estende na América Latina do início do século 16 ao início do

século 19, quando o Brasil e a maioria dos países de língua espanhola

conquistam a independência da Espanha e de Portugal e começaram a

constituir-se em estados-nações. O colonialismo, como observa

Quijano, não se extinguiu com a independência porque a colonialidade

do poder e do saber mudou de mãos, por assim dizer, subordinou-se à

nova e emergente hegemonia epistemológica: não mais a Renascença,

mas o iluminismo.

Mas, como o autor apresenta, este processo não acabou, como podemos ver no

caso da modernização dos povos indígenas e em muitas outras histórias do continente, a

moeda colonialidade/modernidade continua a se atualizar. Somos constituídos desta

memória, afinal, as Américas são conhecidas ideologicamente e politicamente como o

“novo mundo”. Estes continentes, mais do qualquer tecnologia, são a grande “invenção”

da modernidade, mas o moderno não se impõe sem luta e esta luta não é contra o

“antigo” ou contra as “tradições”, mas sim uma luta pelo poder, uma batalha para

desautorizar saberes e eleger outros sob o pretexto de uma lógica, legitimada por

instituições e pessoas, uma luta pela subjetivação dos sujeitos, suas práticas e seu

próprio corpo.

As “novas” tecnologias, sobretudo as da informação, hoje, talvez sejam a ultima

fronteira da modernidade. É importante notar o como o termo/conceito modernidade é

flutuante e progressivo. Os Aikewára, hoje estão nesta “ultima fronteira” da

modernidade, e a mídia ocupa agora um papel vital na relação desta sociedade com o

seu entorno. Não apenas pelo que causa entre eles na aldeia, mas também de como ela

legitima ou agride os discursos sobre os povos e a floresta.

1.1.2 As antenas de TV, o cinema e as estradas: a memória imagética uma

moderna Amazônia colonial à flor da Terra

Bye bye, Brasil

A última ficha caiu

Eu penso em vocês night and day

Explica que tá tudo okay

Eu só ando dentro da lei

Eu quero voltar, podes crer

Eu vi um Brasil na tevê

Peguei uma doença em Belém

Agora já tá tudo bem

Mas a ligação tá no fim

Tem um japonês trás de mim

Aquela aquarela mudou

(Chico Buarque)

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A epígrafe acima é um trecho da música Bye,bye Brasil, composta por Chico

Buarque de Holanda, retrata um momento da história do Brasil, quando a televisão e as

estradas buscavam unir o país. A época é a década de 1970 e o enunciado “Eu vi um

Brasil na tevê”, reproduz um discurso muito forte neste período, em que se estabelecia

uma rede nacional de telecomunicações, patrocinada pelo governo brasileiro. Era o

tempo dos generais e o Brasil vivia sob o julgo da ditadura militar. Uma das principais

estratégias de dominação dos ditadores era justamente a integração do país por meio das

telecomunicações, que neste período estavam sob censura e se restringiam a veicular

assuntos de interesse do governo. Para Souza:

Com a censura, os telejornais se restringiam a exibir

reportagens internacionais e institucionais. Na televisão,

o Brasil era um país lindo, em paz e dinâmico. O próprio

presidente na época, Emílio Garrastazu Médici, afirmava

ver um país maravilhoso no Jornal Nacional. Era uma

imagem falsa, como se não existisse crise social ou

perseguição. A notícia só era divulgada se fosse liberada

pela censura.(2009:5)

A música de Chico Buarque é tema do filme,

com o mesmo nome da composição Bye, Bye

Brazil(1979) de Cacá Diegues. O filme conta a

história da “caravana holidei”, um grupo de artistas

mambembes, que cruza o Brasil fugindo das cidades

aonde o neon das televisões chegou. Segundo a

sinopse oficial da obra “fazendo espetáculos para

camponeses, cortadores de cana, índios etc., sempre

fugindo da concorrência da televisão. O grupo

atravessa a Amazônia até chegar a Brasília, vivendo

diversas aventuras pelas estradas do país”.

Na imagem, o caminhão da caravana holidei

trafega pela Rodovia Transamazônica, com o

objetivo de chegar até Altamira, de acordo com o

filme a “terra das oportunidades”. Pode-se notar a

estrada ainda sem asfalto e a personagem se

protegendo sol com sua sombrinha cruzando recém-

aberto caminho.

O filme retrata este período da integração

Imagem 01. Cena do filme Bye, Bye Brazil

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nacional promovida pelo governo militar, como forma de controle e colonização,

apoiado de silenciamento do momento que o Brasil atravessava. Em nome do progresso,

florestas caíam dando lugar a cidades e estradas. Junto com estas estradas, vinham as

antenas de TV, que neste momento, alteravam as práticas sociais e inibiam as produções

locais, em nome de uma unidade nacional, maquiada pela TV como um “país lindo” nas

palavras do próprio presidente militar Médici.

A estruturação da televisão no Brasil, como rede nacional, por meio

de microondas, deve-se ao sistema consolidado durante o período do

regime militar, mais precisamente no final dos anos 60. Entretanto, o

interesse do governo militar não era o progresso do país, como se

pregava. Naquele momento se estruturava um sistema de poder das

emissoras de TV e um controle que perdura até hoje.

(SOUZA:2007:30)

A nacionalização da televisão e até mesmo a sua concepção estão intimamente

relacionadas ao poder governamental. É preciso olhar com atenção como se dá o

processo e o funcionamento de uma rede nacional de telecomunicações e quais seus

impactos, já que representava um poderoso legitimador de discursos pró

desenvolvimento. Esta movimentação em relação às sociedades tradicionais da

Amazônia, fazia da mídia, neste momento, mais uma frente de Fricção Interétnica

(RCO).

A história dos Aikewára está diretamente pautada a este processo de ocupação

que o governo militar promoveu na Amazônia, mas este projeto, porém não iniciou com

os militares. A rodovia Belém-Brasília, também conhecida como Transbrasiliana ou BR-

153, começou a ser construída ainda em 1960, durante a administração de Juscelino

Kubitschek, mas sua conclusão aconteceu em 1974, já durante o governo militar. A rodovia

se estende Marabá, no sudeste paraense, até Aceguá no Rio Grande do Sul. Outra rodovia

construída no mesmo período é a BR-230, também conhecida como Rodovia

Transamazônica, liga o estado da Paraíba ao Amazonas e atravessa horizontalmente o

estado do Pará. Esta BR também passa pelo município de Marabá. Estas rodovias e toda

a rede sentidos que se estabeleceram junto com elas mudaram a forma de vida

econômica e cultural nesta região.

Com as estradas vieram também os conflitos com os povos que moravam na

floresta. É neste cenário que Roberto Da Matta e Roque de Barros Laraia fizeram sua

pesquisa com os índios castanheiros. Esta modernização está diretamente relacionada ao

pensamento liminar. Não seria este processo uma atualização do discurso colonial e

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estas construções justificadas pelo “desenvolvimento e progresso” não seriam novas

práticas de colonialidade?

A seguir uma sequência de cenas do filme Coluna Norte do período do governo

de Juscelino Kubichek. O filme foi patrocinado pela indústria automobilística e mostra a

construção da rodovia Belém-Brasília. A obra exalta a conquista do “pesadelo verde” da

floresta Amazônica.

O filme usa de várias práticas discursivas para justificar a construção da rodovia.

Há uma seleção de imagens, sons e palavras que buscam emocionar o espectador. A

trilha, a narração ufanista e bem pontuada, criam um clima épico. Os enquadramentos

das cenas foram pensados para exaltar a conquista dos sujeitos que no filme o narrador

chama de “pioneiros”. Os discursos da modernização e da integração da Amazônia

estão fortemente exacerbados na produção. A seguir um trecho do texto do filme:

A primeira árvore tombada... Um areal de rios, um mundo de sagas e

mistérios. Um pesadelo cheio de duendes e ameaças separava o norte

e o coração do Brasil. A estrada Belém-Brasília começava. Vinde

meus filhos de desteimar! Segue em ordem. Nossas armas preparadas,

vossos machados de gume cortante. Pioneiros, oh pioneiros! (coluna

do norte)

Imagem 02. Cenas do filme “coluna norte”

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A imagem ao lado mostra o ônibus da

Mercedes-Benz, produzido no Brasil segundo o

filme. Podemos notar, no enquadramento da

placa, um dos discursos mais difundidos pelo

governo JK: a integração nacional. a película

trabalha com memórias discursivas de conquista

e retoma ideias coloniais:

Por acaso as raças mais velhas hesitaram? Ou lá, no além mar,

esmoreceram e encerram sua missão fatigados? Retomamos nós o

perene fardo a tarefa e a lição... (COLUNA NORTE)

O discurso colonial é atualizado, uma memória da atualidade, como a outra

moeda da modernidade da Amazônia, a conquista do desconhecido. Sobre a memória

discursiva Courtine esclarece:

Toda produção discursiva se efetua em determinadas condições

conjunturais de produção e remete, põe em movimento e faz circular

formulações anteriormente já enunciadas, como um efeito de memória

na atualidade de um acontecimento. (1981:78)

A obra também faz clara alusão aos filmes de velho-oeste americanos. Em vários

enunciados do filme como “Nítido vos vejo jovens do oeste, a caminhar com os mais

avançados!”. Estes enunciados retomam memórias do cinema estadunidense, afinal

estas produções eram muito difundas neste período como já dito. Estes discursos

permaneceram fortes e foram bastante afirmados também durante o governo militar,

com outras materialidades audiovisuais produzidas.

A memória das imagens é uma genealogia como diria Courtine, no que ele

define como intericonicidade. O governo militar vai recorrer a estas narrativas

audiovisuais, em busca de algumas memórias, que vão ecoar no imaginário dos sujeitos,

que recorrerão a sua própria lembrança, permeada por filmes hollywoodianos de

faroeste e por filmes documentários ufanistas brasileiros de colonização. Sobre a

intereconicidade Courtine explica:

O campo da fala Pública está atravessado, saturado por imagens nas

quais percebemos, ao mesmo tempo, a força de seu impacto e a

instantaneidade de sua obsolescência. É crucial compreender como

elas significam, como uma memória de imagens as atravessa e as

organiza, ou seja, uma interconicidade que lhes atribui sentidos

Imagem 03. Cena do filme coluna norte

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reconhecidos e partilhados pelos sujeitos políticos que vivem na

sociedade, no interior da cultura visual. (2008:17)

Para Milanez:

... olhar para a imagem sob o efeito da intericonicidade é de uma

arqueologia do imaginário humano, construída não sobre a

cristalização homogeneizante de uma imagem única, mas sobre o

movimento dos deslocamentos, sucessão, interposições, apagamentos,

reestruturações de imagens que existem sob a batuta da regência dos

movimentos nem sempre harmônicos da história.(2011:39)

Os discursos apoiados por técnicas de produção imagética, colocam em

funcionamento a memória e o desejo, como veremos nas próximas analises. A

continuidade ao projeto de colonização da Amazônia continuou a legitimar o corte na

Amazônia pelas produções audiovisuais. A imagem a seguir é uma compilação de cenas

de um documentário cinevideo sobre a construção de outra rodovia que corta a mesma

região; a transamazônica.

O filme fala sobre uma visita do presidente/ditador Médici a Altamira para

marcar o início da construção da estrada. Imagens, sons e palavras muito parecidos com

as do vídeo anterior aparecem aqui: “A colonização da Amazônia é dificultada pela

escassez relativa de transportes... A transamazônica é um passo imenso no sentido da

ocupação racional de uma área que se caracteriza por um vazio demográfico só

comparável ao das desoladas regiões polares.” A narração ufanista, mais uma vez fala

em colonização, numa região sem pessoas, silenciando os povos já viviam por entre a

mata.

Imagem 04. Cena do filme “a transamazônica” 1970.

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As imagens das árvores derrubadas ao som de batucadas e trompetes épicos,

produzem sentidos de vitória do homem sobre a natureza selvagem, a conquista.

Homens trabalhando, nordestinos (segundo o filme), tombando as enormes castanheiras

com seus machados, também se encontram. A Amazônia é novamente apresentada

como a terra sem dono, ávida por entregar suas riquezas ao homem pioneiro. O filme se

apoia no discurso que Médici fez em Altamira e fala dos desafios enfrentados pelo país:

“Dois desses problemas referidos na fala do chefe do estado são: o homem sem terras

do nordeste e a terra sem homens da Amazônia”. Novamente existe o silenciamento dos

povos amazônicos, seja os indígenas, ou mesmo as pessoas das cidades da região. Os

dois filmes, procuram convocar o nordestino para colonizar a Amazônia, mas, em

ambos, o estereótipo deste nordestino aparece na figura do homem simples, sem camisa

e de chapéu cortando as árvores, mas com a promessa de um futuro de riquezas e

conquistas.

O governo na verdade convocava o nordestino como a mão de obra subalterna, e

muito dificilmente, estas pessoas que vieram para a Amazônia, alcançaram riquezas,

não houve uma repartição justa nesta invasão, mas sim as bases de uma

reprodução/atualização do pacto colonial, que cortou a floresta indiscriminadamente,

sem se preocupar com as populações que lá moravam, nem com o desenvolvimento das

pessoas que vieram trabalhar nas estradas. Uma elite nacional, e multinacional foi quem

realmente lucrou com esta invasão, que até hoje ainda se estabelece em nome do

progresso como se observa em grandes projetos contemporâneos como a construção da

hidroelétrica de Bello Monte.

As cidades que surgiram ao redor destes projetos, possuem altos incides de

desigualdades sociais e violência se comparadas as grandes metrópoles brasileiras, ou

mesmo aos municípios do sul e sudeste do país. Mas no filme, apoiado pela linguagem

de efeito de verdade do documentário existe o seguinte enunciado: “A transamazônica

será uma vereda aberta ao nordestino para a colonização de uma região rica em vales

férteis e promissoras jazidas minerais.”

O filme Bye Bye Brasil, faz uma crítica a estas políticas do governo, e traz

enunciados que revelam alguns discursos muito circulados à época. Na cena, Lorde

Cigano, personagem do ator José Wilker, conversa com um caminhoneiro (homem de

bigodes à esquerda), num bar de beira de estrada sobre a Altamira e a construção da

transamazônica:

Caminhoneiro: - Altamira!

Lorde Cigano: - Como é que chama o lugar?

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Caminhoneiro:- Altamira! é o centro da transamazônica tem

gente do Brasil inteiro indo pra lá pra trabalhar na estrada e

depois comprar terra. Abacaxi lá é do tamanho de uma jacá, e

as árvores do tamanho de um arranha-céu.

Lorde Cigano: - Exagero!

Caminhoneiro:- Não, to falando sério! Tem minério, pedra

preciosa, tudo ali à flor da terra. Floresta Amazônica! Nuca

ouviu falar?

Lorde Cigano: Já, mato puro né! E os índio? Tem muito índio

lá?

Caminhoneiro:- Tinha! Mas a maioria o pessoal já acabou

com eles, tinha vez que o pessoal me enchia o saco, mas

perdia mesmo a paciência e pegava o avião e jogava umas

bananas de dinamite em cima da aldeia dos índios (risos). Ai,

a “cabocada “saia toda pro meio do mato, mão na cabeça,

pensando que era o fim do mundo, entendeu... Depois que

fizeram a estrada, que lá virou lugar de branco, dinheiro pra

todo mundo, todo mundo é rico.

Lorde Cigano: - Morando no meio do mato eles não devem

ter muito onde gastar tanta riqueza.

O discurso de progresso da região é mais uma

vez retomado, atualizando os discursos da

modernidade/colonialidade. Como está filiado a outros

interesses, o filme não silencia a questão das sociedades indígenas como os filmes

ligados aos governos JK e militar, mesmo que tenha sido produzido durante o período

militar, quando havia censura, o longa revela as chacinas ocorridas na Amazônia,

utilizando a ironia e a denúncia. A “caravana holidei” faz a viagem em busca de

oportunidades, mas o que encontra em Altamira é um cenário de violência e miséria.

As produções audiovisuais, eram muito importantes naquele período, daí o

motivo de analisar estes vídeos, pois naquele momento histórico, certo enunciados

ganhavam força, reprimiam os conflitos, como já vimos, o Brasil que era apresentado ao

grande público, como um país maravilhoso, vivendo um milagre econômico e se

integrando através das estradas e da Televisão ou mesmo o cinema. Mas, estas

informações eram monitoradas e controladas pelo governo e por grupos empresariais,

midiáticos ou não. Muito provavelmente, boa parte da população brasileira sequer

tivesse esta informação, do que realmente ocorria na Amazônia. E justamente neste

período, segundo Ortiz (1988:14) que o cinema e a televisão vão se consolidar como

meios de comunicação de “massa”, os cine-documentários eram exibidos antes do

filmes no cinema, só para se ter ideia, segundo Ortiz2, na década de 1970 as salas de

cinema espalhadas pelo país contavam com mais de 200 milhões de espectadores por

2 Pesquisa disponível no endereço http://oca.ancine.gov.br/media/SAM/Informes/2012/Informe-anual-

2012-preliminar.pdf

Imagem 05 cena do filme Bye,Bye

Brazil

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ano, para efeito de comparação segundo dados3 da Agência Nacional do cinema

ACINE, em 2011 pouco mais de 146 milhões de pessoas compareceram aos cinemas

brasileiros, levando em consideração que a população brasileira praticamente dobrou

dos anos de 1970 pra cá, podemos supor que o alcance do cinema era muito mais

abrangente :

Reconhece-se ainda a importância dos meios de comunicação de

massa, sua capacidade de difundir ideias, de se comunicar diretamente

comas massas, e, sobretudo, a possibilidade que têm em criar estados

emocionais coletivos. Com relação a esses meios, um manual militar

se pronunciava de maneira inequívoca: “bem utilizados pelas elites

constituir-se-ão em fator muito importante para o aprimoramento dos

componentes da Expressão Política: utilizados tendenciosamente

podem gerar e incrementar inconformismo”. O Estado deve,

portando, ser repressor e incentivador das atividades culturais.

(ORTIZ:1988:116)

Para Souza:

A televisão passava a ser peça chave na estrutura de domínio. É neste

cápitulo da história da TV que a atuação do regime militar, até então

discreta, indireta, torna-se completamente explicita e deixa claro que o

governo tem um projeto “a televisão no Brasil tornou-se a partir da

década de 60 o suporte dos discursos que identificam o Brasil para o

Brasil...”(2002:30)

O Jornal Nacional, primeiro programa exibido pela rede de microondas no Brasil

e consequentemente o primeiro produto televiso exibido para todo o território nacional,

apresentava em suas primeiras edições a logo “integrado o Brasil através da notícia” o

jornal compactuava com o plano militar, por motivos econômicos e políticos; além de o

governo ser o principal cliente das empresas da mídia no Brasil, uma emissora de

televisão, como já dito, por exemplo, precisa de uma concessão do congresso nacional

para poder funcionar. Ortiz (1988:118) esclarece que tanto os empresários da mídia

quanto os militares, tinham interesses na integração do país, mas por motivos diferentes

“...os militares propõem a unificação da política das consciências, os empresários

sublinham o lado da integração do mercado”.

Quais os impactos das produções de mídia e das construções das estradas na

Terra Indígena Sororó? Nos próximos tópicos vou mostrar como os Aikewára estão

diretamente envolvidos neste processo de colonização da Amazônia e as consequências

da ocupação da “terra sem homens”, como diz o vídeo do governo militar. O que eles

calaram é que por entre as árvores derrubadas, eles derrubaram pessoas...

3 ORTIZ (1988:125)

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1.3 Os Aikewára e a Terra Indígena Sororó: nas fronteiras do fogo

e Tocantins no sudeste do Pará, existe uma grande área

verde preservada em meio à devastação. Este lugar é conhecido

como terra Sororó, lar dos índios Aikewára.

Depois de tempos difíceis quando apenas 33 índios

mantiveram a chama da cultura Aikewára viva, a floresta e eles

ameaçados pelo fogo forasteiro resistiram. Hoje mais de 300

Aikewára vivem entre os troncos firmes dos castanhais da terra

indígena Sororó. Entre histórias, castanhas e estrelas...

(trecho do filme Tapi’i’rapé: O caminho da Anta)

Segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatísticas (IBGE), publicados em agosto de 2012, existem no Brasil, 305 etnias, e 274

línguas indígenas. Os números desta pesquisa divergem com boa parte dos trabalhos

acadêmicos que davam conta 238 povos indígenas e suas 180 línguas nativas. Segundo

o IBGE, a maior parte destes povos vive na Amazônia e 200 povos Tupi, portanto, a

maior concentração destas sociedades, vive na região. Definir o que é uma sociedade

Tupi não é uma tarefa simples:

O nome “tupi” pode ser usado em três níveis de abrangência. No

sentido mais estrito, é o nome da língua falada pelos indígenas do

litoral, quando chegaram os europeus. Em outro nível, este nome é

agregado ao nome “guarani”, para denominar uma família linguística,

a tupi-guarani, da qual faz parte a referida língua litorânea. E, num

nível ainda mais elevado, “tupi” é o nome de um tronco linguístico,

além de outras mais. É, pois, necessário cuidar para que não se

confundam os diferentes sentidos do termo “tupi”. (MELATTI:

2007,61)

Os Aikewára, um povo Tupi que vive no sudeste do Pará, uma região permeada

por conflitos pela terra. Uma região impulsionada pela mineração, pecuária e por

madeireiras. Cidades crescem e florestas caem, o verde dá lugar ao cinza, e apesar de

toda “riqueza“ produzida pela devastação, com o enriquecimento de alguns, as

desigualdades sociais são evidentes, fortes. Houve e há muitas tensões sob aquela

região, e os Aikewára, estão nas fronteiras destes conflitos.

Os Aikewára, também conhecidos como Suruí, vivem na Terra Indígena Sororó

no sudeste do Pará, entre os rios Araguaia e Tocantins. Entre os Municípios de São

Domingos e São Geraldo do Araguaia. Nos mapas da página seguinte, nota-se a posição

de uma Terra Sororó preservada em às áreas cinzas.

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Nos mapas podemos ver Sororó, o maior ponto verde da região. Como podemos

ver no mapa, a Terra Sororó é uma área relativamente pequena, a menor aldeia do Pará.

A terra não faz fronteira com nenhum rio.

Imagem 06. Mapa1 Fonte Google Earth

Imagem 07. Mapa 2: fonte Google Earth

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No mapa 2 nota-se a rodovia transbrasiliana, também conhecida como Belém-

Brasília. Como já dito, esta rodovia, foi fundamental no processo de

colonização/modernização da Amazônia. Os “pioneiros” cruzaram por estes caminhos,

mas nesta terra, tinham pessoas...

Como Sororó é cortada pela BR-153, a Belém-Brasília, é permeada por todos as

complicações que vimos no tópico anterior. Esta é uma situação bastante difícil de

administrar, já que a rodovia causa muitos transtornos, em suas margens é comum haver

queimadas, segundo relatos dos Aikewára, os motoristas jogam pontas de cigarro acesas

e assim iniciam o fogo. Sororó está cercada por fazendas, é notável quando

atravessamos a BR-153, que até o clima muda. Na foto, observa-se as margens com

mato, mas na época das secas, esta vegetação costuma secar, devido também o contado

com o asfalto, o que facilita queimadas.

Imagem 08. BR-153 cortando a Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa

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O mapa acima foi confeccionado por um grupo de jovens Aikewára e recebeu

um tratamento por nós. É muito interessante a precisão com a qual desenharam a Terra

Sororó, basta olhar os outros mapas nas páginas anteriores. Além da precisão e do

conhecimento apurado que eles tem da região, chama a atenção as partes vermelhas no

mapa, elas indicam as queimadas. Podemos obsevar como os vermelhos se concentram

nas fronteiras, e principalmente as margens da rodovia e das fazendas. Sororó é

ameaçada pelo fogo vindo das queimadas e das fazendas vizinhas.

Mas como esta situação se inscreveu? Nos próximos tópicos vou analisar

algumas narrativas orais Aikewára que dão conta da história deste contato. Por hora,

quero destacar que a Terra Sororó, está localizada bem perto da transamazônica, as duas

rodovias se cruzam em Marabá, os Aikewára estavam no rodo da

modernização/colonialidade da Amazônia. Instaurou-se a partir destas obras o processo

de Fricção Interétnica entre eles e a sociedade Nacional.

Imagem 09 . Terra Sororó

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1.4 As memórias subterrâneas: Cabral, a bíblia, os vírus, as bombas e

as roupas chegam. O violento processo de hibridização Aikewára.

Os Aikewára, a partir de tudo que ocorrera no projeto “Crianças Suruí-

Aikewára: entre a tradição e as novas tecnologias na escola”, intensificaram as

mediações entre as novas tecnologias e o seu projeto, que chamarei de projeto de

midiamento Aikewára. Uma proposta que se aproveitou do projeto “Crianças Suruí-

Aikewára: entre a tradição e as novas tecnologias na escola”, mas, que ganhou outros

aspectos, estes planejados e executados por eles, com ou sem a nossa interferência.

Este período de convivência

entre eles nos deu acesso a uma

infinidade de experiências que nos

permitem olhar para novos espaços

desta eterna relação de contato

conflituoso que estabelecem com a

sociedade envolvente. Estávamos em

Sororó, para tentar munir os

Aikewára de ferramentas para tornar

esta negociação mais justa. Mas, o

que às vezes nos esquecíamos, era

que para eles, nós também éramos da

sociedade envolvente.

Durante as viagens a Terra

Sororó, a equipe do projeto ficava

hospedada na casa de Arihêra e

Umassú Suruí. Na sala, entre cocás e

flechas, havia um aparelho de

televisão, bem como um conjunto de sofás, uma estante e uma geladeira. Numa primeira

vista neste lugar, percebemos as hibridizações culturais da sociedade Aikewára. Arihêra

faz parte do grupo de sobreviventes à depopulação. Ainda bem jovem, no final dos anos

de 1960, ela foi fundamental no processo de reestruturação social deste povo, sua

liderança é muito importante, ela procura preservar as tradições de seu povo.

Imagem 10. A sala de Ahirhêra. Foto Monica Cruvinel

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Casada com Umassú Suruí e mãe de 04 filhos, ela hoje é também uma das

principais lideranças Aikewára. Talvez a pessoa mais autorizada para falar sobre a

cultura Aikewára. Foi graças a ela que a rede tradicional Suruí não desapareceu. Arihêra

é a grande cozinheira da aldeia. Em sua casa, a comida tradicional Suruí nunca deixou

de ser servida. Dona de uma habilidade performativa privilegiada, ela é uma das

principais contadoras das histórias Aikewára.

O motivo de usar estas narrativas orais Aikewára como corpus de análise, é dar

escuta a esta memória em oposição à memória oficial, que silencia a história dos

Aikewára. A oralidade entre estes índios é muito importante, a escrita não faz parte da

cultura dos mais velhos, apenas alguns jovens a dominam, e a língua escrita que lês

utilizam é o português. Para Michel de Certeau (2002, 31)

No Ocidente moderno não há mais um discurso recebido que articule

esse papel, mas um movimento que é uma prática: escrever. A origem

não é mais aquilo que se narra, mas atividade multiforme e

murmurante de produtos do texto e de produzir a sociedade como

texto. O “progresso” é de tipo escriturístico. De modo os mais

diversos, define-se, portanto pela oralidade (como oralidade) aquilo de

que uma prática “legítima” – científica, política, escolar etc. – deve

distinguir-se. “Oral” é aquilo que não contribui para o progresso, e,

reciprocamente, “escriturístico” aquilo que se aparta do mundo

mágico das vozes e da tradição. Com tal separação se esboça uma

fronteira (e uma frente) da cultura ocidental.

Várias foram as narrativas orais contadas por Arihêra e Umassú durante o

período do projeto. Dentre elas, se destacava a história do contato. De como havia sido

traumático para eles, que viveram a depopulação e perderam a maior parte das pessoas

que conheciam neste processo. Arihêra conta:

Morreu muita gente, o Umassú ainda era mole, bem pequeno. Morreu

a tia, morreu a mãe dele. Foi a gripe... O pai já tinha morrido, o

fazendeiro matou. Mas, naquele tempo a gente ainda era brabo, o

padre ainda não tinha amansado nós...

Em nossas longas conversas, na casa do casal, Arihêra e Umassú usavam uma

expressão de tempo que marcava a época anterior ao contato, “no tempo em que eram

brabos” e não haviam sido “amansados” pelo padre. Andavam livres pela floresta. “Ai,

os Kamará vieram” relembra Umassú. Os Aikewára não entendiam bem o que eles

queriam, até que vieram as balas. Ele conta que seu pai foi assassinado por fazendeiros

da região, quando ele ainda era um bebê. Arihêra acrescenta à narrativa uma

particularidade que desperta muita atenção dos Aikewára, dizendo que nesta fase da

vida “Umassú ainda era mole!”.

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Esta nova sociedade Aikewára que nasceu a partir da depopulação, está bastante

atravessada pela história destes índios mais velhos. A história da resistência, depois da

década de 60, em certa medida, também estava “mole”. É importante compreender que

estas histórias funcionam num tempo próprio, os Aikewára, não mediam o tempo em

anos, meses. Só com muita convivência é que aprendi a interpretar estas histórias, sem

me ater a este tipo de cronologia. Presumimos está datação pelo o que a história oficial

nos diz, mas os Aikewára marcam este tempo de outra forma, um antes dos Kamará, ou

então “no tempo que éramos brabos”.

Mussená, o capitão, forma como hoje eles denominam a liderança, preparou a

resistência e um grupo de guerreiros foi vingar as mortes com flechas. A guerra entre os

Aikewára e seus vizinhos Kamará havia começado. O interesse da sociedade

envolvente, segundo eles, era fazer uso das terras em que os Aikewára viviam. Em

clara desvantagem bélica, os Aikewára entraram floresta adentro, mas foram

perseguidos. O progresso chegava com as estradas derrubando a floresta.

Arihêra e Umassú contam com muita tristeza que algumas crianças, neste

período, sobretudo os bebês recém-nascidos, tiveram que ser deixados para trás. Como

choravam com fome, ou com frio, ficava fácil através do choro encontrar a posição

deles. Os dois são categóricos em afirmar “doía muito” abandonar as crianças e que eles

ficavam com medo que os Aikewára acabassem.

A igreja católica se envolveu no conflito e conseguiu apaziguar a situação.

Todos os mais velhos sempre falam no Padre, que os ajudou, trata-se do Frei Gil

Gomes, que trabalha na região, nesta época. Arihêra conta que o Padre “amansou” os

Aikewára, que significava, entre outras coisas, ensinar o português e possibilitar que os

Aikewára conseguissem compreender um pouco melhor o que estava acontecendo,

inclusive a desvantagem bélica em que se encontravam. A Igreja Católica, de certa

forma, conseguiu se colocar entre os índios e a sociedade envolvente “O padre não

deixava eles matarem a gente”, conta Arihêra.

Mas, as mortes não cessaram. Ela conta que a gripe matou boa parte dos que

sobreviveram ao conflito armado e restaram apenas 33 Aikewára. Umassú diz que

perdeu, nesta época, sua mãe e suas tias, já Arihêra perdeu o primeiro marido. Mussena,

que até hoje é considerado pelos Aikewára uma das principais personagens de sua

história, morreu neste surto de gripe. Sem os relatos Aikewára, seria bem difícil

conhecer esta versão da história. Para Michael Pollak (1989. P.3):

Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das

minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias

subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e

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dominadas, se opõem à "memória oficial", no caso a memória

nacional. Num primeiro momento, essa abordagem faz da empatia

com os grupos dominados estudados uma regra metodológica e

reabilita a periferia e a marginalidade.

Segundo eles, após este período, houve certa calmaria, e os 33 que resistiram,

apesar de todas as perdas começaram a se reestruturar, até que o exército brasileiro

chegou a Terra Sororó para “caçar terroristas”. Umassú conta que só não foi morto

pelos soldados quando andava pelos arredores da aldeia, porque começou a falar Tupi e

eles perceberam que ele era índio. Ele conta que eles procuravam no mato outros

kamará.

Os eventos sobre o exército relatados pelo casal falam do que ficou conhecido

como um dos principais movimentos de libertação da América Latina, a “Guerrilha do

Araguaia”. A Terra Indígena Sororó fica entre os municípios de São Geraldo do

Araguaia e São Domingos do Araguaia no sudeste do Estado do Pará. A Terra Sororó

faz parte da área onde os guerrilheiros se escondiam da repressão do Estado Brasileiro.

Ou seja, os Aikewára, por sua localização geográfica, estavam no epicentro deste

combate. O conhecimento dos índios sobre a região dos conflitos era estratégico para o

Exército. A Guerrilha do Araguaia foi segundo Nascimento (2000:16):

Movimento político radical, ocorrido na região Sul e Sudeste do

estado do Pará, limitando-se com o norte do estado de Tocantins (à

época estado de Goiás) e oeste do estado do Maranhão. Na parte

relativa à divisa do Pará com o estado do Tocantins essa região é

conhecida como Bico do Papagaio. Aqui, militantes do PCdoB

(Partido Comunista do Brasil) e as Forças Armadas, sob a liderança do

Exército, entraram em combate pelo controle desta área estratégica,

num ambiente político caracterizado pela prevalência de um Estado na

sua modalidade ditatorial-militar (1964-1985).

Após este evento, Umassú conta que a convivência com os soldados se tornou

cada vez mais intensa. Eles foram induzidos a entregar as pessoas com quem eles já

mantinham relações de amizade: os guerrilheiros. Umassú continua “A gente era amigo

deles, trocávamos farinha por roupa e outras coisas. Não sabíamos que eles eram

terroristas”.

Vale ressaltar que Umassú e Arihêra não entendem o que concebemos como

“terrorista” Em uma de nossas conversas, Arihêra via, na TV, uma notícia sobre ataques

terroristas no Oriente Médio. Ela então me pediu para explicar-lhe o que era um

terrorista. Arihêra demonstrava muita curiosidade em saber sobre os terroristas. O jornal

seguia, ela não tirava os olhos da televisão, localizada bem ao centro de sua sala.

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A reportagem acabou, mas as perguntas de Arihêra cresciam: “Esses terroristas

da TV são iguais aos que vieram aqui? Por que isso acontece?”. Os questionamentos se

combinavam a sua expressão facial, que nesse momento aparentava intranquilidade. O

tom de suas perguntas era melancólico. Arihêra começou a deixar claro que ela possuía

uma memória muito forte sobre a palavra “terrorista”, embora ela não entendesse direito

o que na concepção dos Kamará, era um terrorista.

Ela revela que a palavra “terrorista” já foi diversas vezes pronunciada em sua

aldeia pelo Exército brasileiro. “Eles vinham e mandavam a gente procurar outros

kamará no meio do mato. Por que eles faziam isso?” indaga Arihêra. Ela conta que isso

aconteceu durante os conflitos da Guerrilha do Araguaia, quando os índios Aikewára,

em função de seus conhecimentos sobre os caminhos da floresta, foram “convocados”

pelos soldados a guiarem as tropas em meio à mata, na perseguição aos guerrilheiros.

Assim que os Guerrilheiros foram fuzilados pelos soldados, os índios entraram

em pânico. Eles não entendiam por que os soldados estavam fazendo aquilo. “Eu

pensava que eles eram amigos”, revela Umassú. Ele conta que seu cunhado, Warini, até

hoje tem pesadelos com estas cenas: “Depois disso ele nunca foi o mesmo”.

Segundo Umassú, os soldados obrigaram, através da força bélica, os índios a

trabalharem para eles. Além de mostrar a posição onde estavam os guerrilheiros, eles

eram obrigados a transportar os cadáveres dos guerrilheiros. Isto teria gerado traumas

psicológicos profundos em muitos Aikewára, dois deles ficaram parcialmente surdos em

função do barulho dos tiros.

Após este período, os Aikewára aparentemente encontraram a paz, um esforço

de antropólogos e da Igreja Católica conseguiu fazer a demarcação da Terra Sororó.

Pelo número reduzido de Aikewára vivo à época, restou apenas um pequeno quadrado

de floresta, não há um rio e muitos lugares sagrados ficaram de fora desta demarcação.

A Terra Sororó é a menor terra indígena do estado do Pará. Assim, sistematicamente, a

partir deste contato sistemático começou o violento processo de hibridização Aikewára.

Sobre esta situação tão recorrente nas histórias dos povos indígenas, afirma Neves

(2009: 141):

Muitas sociedades indígenas vivem nas fronteiras culturais e históricas

do Ocidente. A forma como reagem a este contato muitas vezes gera

uma série de dificuldade com suas próprias tradições. Nestas

fronteiras, a negociação com o futuro às vezes toma proporções

dramáticas, pois produz uma sensação de não pertencimento, isto é,

não pertencem nem a uma sociedade indígena, nem conseguem

inserção no mundo ocidental.

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Esta fronteira se manifesta simbolicamente com mais evidência entre os

Aikewára mais jovens. A língua em que eles mais se comunicam é o português, poucos

deles são fluentes em Tupi, a língua materna Aikewára, embora como já dito, eles

entendam bem a língua. Certas práticas sociais estavam muito comprometidas com as

influências das relações da fronteira. Um bom exemplo é o grafismo indígena, que na

Terra Sororó, durante muito tempo foi renegado por boa parte dos índios e quase

desapareceu, de certa forma poderia ser perigoso se pintar, sobretudo pelo intenso

trânsito deles nas cidades vizinhas, eles estão conectados para conseguir certos serviços

como atendimentos médico. Ainda hoje há uma animosidade entre eles e parte de seus

vizinhos. Muitos índios mais jovens preferiam se vir com roupas bonitas a pintados de

jenipapo e carvão. De certa forma, o contato sistemático gerou uma crise de identidade

entre os Aikewára. Hall esclarece (1999:13):

A identidade torna-se uma “celebração móvel”, formada e

transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos

representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam

(...) à medida que os sistemas de significação se multiplicam, somos

confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiantes de

identidades possíveis).

As identidades multifacetas, entre os Aikewára. Certas máscaras esperavam o

momento certo de serem usadas. Retomando a cena da sala híbrida de Arihêra podemos

fazer algumas análises sobre estas questões. Primeiramente é preciso observar o

processo que levou a TV e o sofá até este lugar. Para que o neon televisivo chegasse à

sala, foi necessário um conflito de interesses e poderes entre os Aikewára e o

“ocidente”. Segundo Hall:

O hibridismo não se refere a indivíduos híbridos, que podem ser

contrastados com “os tradicionais” e “modernos” como sujeitos

plenamente formados. Trata-se de um processo de tradução cultural,

agonístico uma vez que nunca se completa, mas que permanece em

sua indecidibilidade. ( 2006 p.74)

Como Hall esclarece o processo de hibridismo é agonístico e contínuo, a sala de

Arihêra não é um contraste entre o tradicional e o moderno, mas sim a indecisão,

indecisão entre a tradição e a modernidade, esta bifurcação que é conflituosa. O volume

da televisão se estiver alto, muito incomoda Arihêra, a TV é mais decorativa e poucos

são os assuntos que lhe chamam a atenção. Muitos Aikewára, porém já desenvolvem

outra relação e assistem às novelas brasileiras e aos jogos de futebol com muito

interesse. Segundo Bhabha (apud Hall) o hibridismo representa(2006: 75):

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momento ambíguo e ansioso de ... transição, que acompanha

nervosamente qualquer modo de transformação social, sem a promessa

de um fechamento celebrativo ou transcendência das condições

complexas e até conflituosas que acompanham o processo... [Ele]

insiste em exibir ... as dissonâncias a serem atravessadas apesar das

relações de proximidade, as disjunções de poder ou posição a serem

contestadas; os valores éticos e estéticos a serem “traduzidos”, mas que

não transcenderão incólumes o processo de transferência .

As transformações na sociedade Aikewára, muito mais do que conflituosas e

tensas, foram e são violentas, bélicas. A história do contato, da guerrilha e do

“amansamento” da construção das rodovias é uma história de guerra. As memórias

subterrâneas de Arihêra e Umassú mostram, que a paz que veio que com as roupas

custou a vida de boa parte de seu povo e isto deixa sequelas. Termos como “hibridismo”

e “mestiçagem” podem sugerir num primeiro momento uma relação de paz e harmonia,

mas como se vê no caso Aikewára, estas transições são acompanhadas da violência de

uma guerra. Segundo Foucault(2007: 05):

A historicidade que nos domina é belicosa e não lingüística. Relação

de poder, não relação de sentido. A história não tem “sentido” o que

não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é

ininteligível e deve ser analisada em seus menores detalhes, mas

segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas.

Os Aikewára, neste movimento de luta usaram muitas estratégias de resistência,

num primeiro momento com flechas, mas depois da evidente superioridade de armas

Kamará tiveram que agir nas brechas. Um grande desafio foi resistir às doenças trazidas

pelos vizinhos, com boa parte da aldeia morrendo de gripe, estabelecer uma boa relação

com os médicos e a igreja foi providencial para que um grupo, mesmo pequeno

resistisse. Mas as relações de poder se estabelecem, e paga-se um preço: estes conflitos

alteraram a maioria das práticas culturais Aikewára. “Cabral”, quase 500 anos depois

chegara a Terra Sororó, trazendo a “modernidade”.

Retomando o Pensamento Liminar, de D.Mignolo podemos ver funcionar a

moeda colonialidade/modernidade, mas, como o autor apresenta, este processo não

acabou, como podemos ver no caso dos Aikewára e em muitas outras histórias do

continente, a moeda colonialidade/modernidade continua a se atualizar. Somos

constituídos desta memória, afinal, as Américas são conhecidas ideologicamente e

politicamente como o “novo mundo”. Estes continentes, mais do qualquer tecnologia,

são a grande “invenção” da modernidade, mas o moderno não se impõe sem luta.

As “novas” tecnologias, sobretudo as da informação, hoje são a ultima fronteira

da modernidade. É importante notar o como o termo/conceito modernidade é flutuante e

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progressivo. Os Aikewára, hoje estão nesta “ultima fronteira” da modernidade, e a

mídia ocupa agora um papel vital na relação desta sociedade com o seu entorno. E foi,

justamente, quando o projeto “Crianças Suruí-Aikewára: entre a tradição e as novas

tecnologias na escola” chegou, que algumas possibilidades de acesso mudaram.

1.5 Umassú e as casas da Terra Sororó

Os Aikewára contam que os tempos depois do contato sistemático e da guerrilha

conseguiram estabelecer certa paz, as taxas de natalidade aumentaram, e hoje mais de

300 Aikewára habitam Sororó. Mas, esta sociedade vive uma tensa negociação nas

fronteiras entre suas tradições e a modernização.

A televisão, o celular, o rádio e outras tecnologias de comunicação se

estabelecem no cotidiano da aldeia como nunca antes. Toda casa Aikewára possui um

aparelho de televisão, e isto é um fato recente. Segundo relatos da escritora Murué Suruí

(sobre a autora falarei mais nos próximos capítulos) estas tecnologias eram mais raras

até pouco tempo atrás. Por volta de 2006 só havia uma televisão na aldeia e ela ficava

na “Casona”. O celular também é recente e se populariza cada vez mais entre eles,

mesmo que em Sororó não exista sinal, apenas uma operadora funcione em alguns

pontos específicos da Aldeia, e isto apenas algumas vezes. Mas, eles utilizam o aparelho

em suas viagens.

O comércio é outro fator de negociação, os Aikewára, comercializam a castanha,

e é este fruto sua principal fonte de renda. Alguns índios são funcionários públicos e

ocupam cargos como professor e enfermeiro, esta condição de funcionalismo se torna

cada vez mais comum entre eles. O dinheiro já é muito importante em Sororó, os

funcionários gozam até mesmo de certo status. Os mais velhos recebem aposentadoria.

Esta intensa relação com o capitalismo é resultado deste processo de

modernização/colonialidade que os Aikewára estão expostos.

Estas práticas, contudo, não acabaram com a relação deles com a floresta, a caça

e o extrativismo ainda continuam como parte de cotidiano. Eles podem tanto comprar

frango no supermercado de São Geraldo ou caçar um porcão do mato na floresta, muito

embora o segundo seja preferência para a maioria. O grande problema da caça é que ela

esta ficando cada vez mais rara, o aumento populacional somado ao pequeno pedaço

demarcado e as constantes queimadas as margens da rodovia tornam escassos estes

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recursos. A alimentação é uma das principais marcas da cultura e da identidade de um

povo, com os Aikewára não é diferente, mesmo que muitos produtos do supermercado

caiam no gosto deles, as comidas da caça na floresta, marcam sua identidade.

O projeto “Crianças Suruí-Aikewára: entre a tradição e as novas tecnologias na

escola”, começara nestas condições, mas houve algumas mudanças alheias ao projeto

que ocorreram durante a sua realização. A mudança para a aldeia nova, com casas de

alvenaria foi um processo muito importante, mudou bastante as relações dentro de

Sororó. Os Aikewára, não moravam tão perto uns dos outros antes. A aldeia, da forma

que foi projetada pelo governo, acabou por criar esta situação. Os Aikewára tentaram

conciliar este novo tipo de habitação construindo casas tradicionais por de trás das casas

novas. Umassú diz que as casas tradicionais é que são suas “casas mesmo”.

Certa vez, numa de nossas conversas, Umassú soube através do Jornal Nacional

que um edifício havia desabado em Belém. Este tema era motivo de muito debate entre

eles, por causa das novas construções em alvenaria. Umassú e Arihêra diziam que as

casas novas não prestavam e podiam cair. Contei a eles a história dos três porquinhos,

Umassú retrucou e disse que nunca uma casa de madeira tradicional caíra na Terra

Sororó, mas que ele sempre via no jornal, as casas dos Kamará caindo, e que essa

histórias dos três porquinhos estava errada. “Casa boa é a minha, não cai!”. Os

Aikewára divergem muito sobre como estas construções foram feitas, eles contestam a

Imagem 11. Umassú em sua casa mesmo. Foto Maurício Neves.

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qualidade e a forma como os cômodos foram distribuídos. “Nossas casas não são

assim”.

Umassú reforça ainda mais seu argumento, quando revelou que um bloco de

concreto de uma das casas novas desabou numa ventania”Quando venta muito ou chove

nós não fica lá não”. Conta ele, se referindo sobre as casas novas. Mas então por que os

Aikewára aceitaram estas novas construções? Podemos apontar vários motivos. Não

foram todos que receberam estas casas novas, a ordem de escolha foi pela idade, ou

seja, os mais velhos foram os escolhidos. Esta novidade estava relacionada ao

“progresso”. Isto, não quer dizer que não exista o choque.

O hibridismo é antes de tudo um embate, um embate sem solução, sem

vencedores, pelos menos na subjeção. Quem é exposto a este processo e se recusa a

participar, desta batalha de relações de poder, só tem duas saídas evidentes; a morte ou

exílio. Este processo embora vertical, não exime, mesmo quem está no conforto da

superioridade militar e tecnológica. A Europa por exemplo, ao tempo da conquista dos

outros continentes, também passa a se hibridizar com eles, e consequentemente, as

práticas culturais são alteradas. O que não quer dizer que os benefícios e as perdas

sejam iguais, pelo contrário, elas são a desigualdade materializada, para quem fica na

ponta de baixo da escada.

Imagem 12. Casas da Terra Sororó. Foto Lariza Gouvêa

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Na Amazônia paraense, na fronteira dos Aikewára, isto não é diferente. E os

Aikewára, ao se apropriarem de novos saberes criam novos poderes. O poder como

concebe Foucault, não é uma estrutura sólida, mas sim dispersa de estruturas, flutuante

e inteligível. O poder usa suas táticas, e a coerção, a punição e a repressão estão longe

de ser a única forma de poder. Os poderes tem que oferecer algo em troca. Segundo

Foucault:

Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por

meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à

maneira de um grande super−ego, se apenas se exercesse de um modo

negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos

positivos a nível do desejo − como se começa a conhecer − e também

a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi

possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto

de disciplinas militares e escolares. E a partir de um poder sobre o

corpo que foi possível um saber fisiológico, orgânico. O enraizamento

do poder, as dificuldades que se enfrenta para se desprender dele vêm

de todos estes vínculos. E por isso que a noção de repressão, à qual

geralmente se reduzem os mecanismos do poder, me parece muito

insuficiente, e talvez até perigosa. (2007: 148/149)

Estas novas formas de saber, entre os Aikewára, criam novos poderes. A relação

deles com estas novas práticas e tecnologias muda um pouco a verticalidade. Estas

fronteiras são muito mais difíceis de conciliar aos mais velhos, que por outro lado

aproveitam as intervenções dos não-Aikewára, para se apropriar de suas tecnologias. O

processo bélico do contado, encontrou outros espaços de luta menos violentos apenas

fisicamente, mas condições um pouco, mais “justas”.

1.6 O projeto Crianças Suruí-Aikewára: entre as tradições e as novas

tecnologias na escola.

Ainda que existam sociedades isoladas dentro da Amazônia, no

Brasil, a maioria dos povos indígenas mantém relações efetivas com a

sociedade envolvente. Já estabelecem, portanto, uma fronteira

cultural com as instituições ocidentais (igreja, escola, televisão,

rádio, secretarias públicas, ONGs, entre outras). Nascidas dentro

deste cenário, grande parte das crianças indígenas se constitui nestas

fronteiras.

Ivânia Neves

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Conciliar as tradições Aikewára com as novas tecnologias para assim criar um

material diferenciado para escola Aikewára, este era o objetivo do projeto Crianças

Suruí-Aikewára: entre as tradições e as novas tecnologias na escola, uma realização da

Universidade da Amazônia - Unama em parceria com Fidesa. A linguista e antropóloga

Ivânia Neves, idealizadora do projeto, estudiosa das narrativas orais Tupi, com uma

série de trabalhos publicados sobre o tema, desenvolveu metodologias para estudos

deste gênero. Neves, no entanto, acredita no uso didático destas narrativas, sobretudo

apoiadas sob um suporte audiovisual.

Em 2004, quando finalizei meu mestrado e já começava a desenhar

um projeto de doutorado, fiz uma promessa: assim que terminasse esta

fase mais acadêmica, meu primeiro projeto como pesquisadora seria

com os Aikewára.

Historicamente, alunos universitários de diferentes níveis costumam

realizar pesquisas com sociedades indígenas e depois de concluídos os

seus trabalhos, nunca mais retornam.

Os próprios índios Aikewára tem várias histórias para contar desta

situação. Há, inclusive pesquisadores que publicaram livros sobre eles

e que aprovaram projetos com verbas bem generosas, sem dar nenhum

retorno a esta sociedade. (NEVES:2011:20)

Ao fim de sua tese de doutoramento “A invenção do Índio e as Narrativas Orais

Tupi”, a pesquisadora começou a elaborar o projeto Crianças Aikewára. Neves

trabalhava com os Aikewára desde seu mestrado, as experiências que teve com este e

outros povos indígenas a fez perceber da necessidade de conciliar as tradições indígenas

com as novas tecnologias:

As crianças Aikewára, bem cedo, são expostas à escola ocidental, e às

novas tecnologias da informação (televisão, telefonia celular,

internet), o que é natural para quem vive nas fronteiras culturais. O

problema é que grande parte destas crianças só tinha acesso às

produções culturais do ocidente e o conhecimento produzido pelos

povos indígenas ficava do lado de fora do seu universo de mediações. O principal desafio deste projeto é traduzir a cultura Aikewára para

registros escritos e audiovisuais, respeitando suas singularidades.

Nosso objetivo é contribuir com a construção de um currículo escolar

que traduza a cultura tradicional desta sociedade e favoreça a

efetivação de uma escola indígena realmente diferenciada. Estamos,

juntos com eles, encontrando estratégias para que possamos nos

apropriar das novas tecnologias da informação e lhes dar um

significado social dentro da história Aikewára do

presente(NEVES:2011)

O projeto foi estruturado em oito oficinas que ocorreram ao longo do ano de

2010. Estas oficinas abordavam vários temas, como fotografia, narrativas orais,

culinária, astronomia, dentre outras. O objetivo destas oficinas era elaborar materiais

didáticos e envolver as crianças da Terra Sororó na busca de mediar as tradições com a

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novas tecnologias. No final do ano de 2009, as professoras da Universidade da

Amazônia, Ivânia Neves e Alda Costa conseguiram para realização do projeto Crianças

Suruí-Aikewára: entre a tradição e as novas tecnologias na escola o financiamento do

projeto “Criança Esperança”, uma parceria da Rede Globo com A Unesco - Órgão das

Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. O objetivo do “Criança

Esperança” é garantir os direitos da criança e do adolescente. Para isto todos ao anos a

Rede Globo, faz uma mobilização social, enquanto a Unesco seleciona e distribui o

dinheiro arrecado para os projetos selecionados. Sobre a Rede Globo e seus significados

e poderes no decorrer do projeto “Crianças Suruí-Aikewára: entre as tradições e nas

tecnologias na escola” falarei mais à frente, mas como já dito, a Rede Globo, ocupou

um papel bem diferente em relação ao Aikewára, mesmo que indiretamente, silenciando

o que realmente ocorria na Amazônia, ou diretamente, ajudando a alterar as práticas

culturais Aikewára.

O cartaz faz a apresentação do projeto, mostrando algumas das atividades

realizadas na Aldeia. Várias materialidades foram produzidas pelo projeto; 6 DVDs de

Imagem 13. Cartaz Aikewára

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filmes sobre a cultura Aikewára, 3 livros, 1 blog, 1 CD de músicas, vários cartazes,

camisetas, calendários. Todas estas produções procuravam fazer uma apropriação das

tradições Aikewára pelos diferentes formatos midiáticos que utilizamos. É evidente que

houve conflitos em diversas situações, mas no geral, os resultados destas materialidades

foram muito bem recebidos pelos Aikewára, que aproveitaram para lançar uma época de

valorização de sua cultura, como veremos no próximo capítulo. É importante destacar

que alguns produtos, como o próprio cartaz foi produzido com objetivo tanto de

divulgar o projeto fora da aldeia, como de fortalecer a identidade Aikewára. Isto era

também uma revindicação deles.

O projeto Crianças Suruí Aikewára tinha como meta conciliar as tradições da

sociedade Aikewára com as novas tecnologias, com o intuito de criar um material

didático diferenciado para escola Aikewára. Segundo Corrêa:

Havia um grande problema em relação ao Audiovisual na terra

Sororó: praticamente todas as casas possuem televisão, porém, antes

do projeto, quase nada da cultura Aikewára tinha sido transportado

para esta mídia.

Esta ausência, somada a outros fatores oriundos com contato com a

sociedade envolvente, estava causando um problema de diálogo entre

gerações além de uma crise de identidade cultural. Muitas crianças

estavam perdendo a vontade de ser índio, já encontravam dificuldade

com a língua tupi. Alguns possuíam dois nomes, um indígena e outro

“kamará”, expressão que eles usam para designar os não-índios.

Assim as meninas Teassu e Taraí, são chamadas de Léia e Talita

respectivamente. (CORRÊA 2010: 6)

Antes de analisar estes processos de mediação é preciso reconhecer duas coisas;

é um processo tenso, há uma luta agonística entre estes espaços, e esta tensão se estende

até mesmo entre os Aikewára e a equipe do projeto, por toda a história de guerra deles

com a sociedade que os envolve e pelo seu próprio processo de modernização. É preciso

reconhecer também, o papel das relações de poder nesta mediação/recepção. A história

recente deste povo está intimamente ligada às mediações entre eles e a sociedade

envolvente nas fronteiras culturais, e a mídia é muito importante neste processo.

Como o próprio nome parece indicar, as mídias desempenham o papel

de mediação entre seus leitores e a realidade. O que os textos da mídia

oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao leitor

produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a

realidade concreta. (GREGOLIN: 2003,97).

A mídia faz circular discursos e remexer e atualizar memórias. E como Gregolin

afirma, o papel de mediação da mídia entre as representações simbólicas e o leitor

interfere na sua relação com a realidade. No caso dos Aikewára não é diferente. O

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diálogo entre as gerações fica prejudicado pelos conflitos desta fronteira. Quando Mihó,

o Pajé dos Aikewára, um dos 33 índios sobreviventes à depopulação, vai contar uma

história da cultura Aikewára, as crianças tem muita dificuldade de compreender, muitas

sequer entendem o que ele fala.

Podia parecer aos jovens Aikewára muito mais atraente um filme na TV, do que

o velho pajé falar em Tupi pouco compreensível a eles, antigas histórias de seu povo.

Como a cultura tradicional podia competir com as novas e até certo ponto

desconfortáveis identidades, sob o ponto de vista dos mais velhos, que surgiam com o

contato. Era preciso que a cultura Aikewára se deslocasse e fosse lutar no terreno

adversário. Para Martín-Barbero (2004: 192):

As tecnologias não são meras ferramentas dóceis e transparentes e não

se deixam usar de qualquer modo, são em última instância a realização

de uma cultura, e dominação das relações culturais. Mas o redesenho é

possível, se não como estratégia, ao menos como tática, no sentido

que lhe dá M. de Certeau: o modo de luta daquele que não pode se

retirar para o seu lugar e vê-se obrigado a lutar no terreno do

adversário.

Quando os filmes do projeto e a rede Globo produziram materiais em que os

Aikewára puderam se reconhecer na TV, o efeito foi extremante positivo. Houve uma

verdadeira remexida na cultura daquela sociedade. Depois de se verem, os Aikewára

mais novos exibiram muita vontade valorizar mais sua cultura. Isto foi uma ação

afirmativa de sua própria cultura. Segundo Martín-Barbero (2004:19):

A apropriação, ao contrário, se define pelo direito e capacidade de

fazer os nossos modelos e as teorias, venham de onde venham,

geográfica e ideologicamente. Isso implica não só a tarefa de ligar,

mas também a mais arriscada e fecunda de redesenhar os modelos

para que caibam nossas diferentes realidades, com a conseqüente e

inapelável necessidade de fazer leituras oblíquas desses modelos,

leituras “fora de lugar”, a partir de um lugar diferente, a partir de um

lugar diferente daquele no qual foram escritos.

Na medida em que os índios se apropriam de recursos tecnológicos para

fortalecer sua cultura, redesenham modelos de diálogo entre seu próprio povo, e entre a

sociedade evolvente. De certo modo, esta negociação fica mais justa.

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Capítulo II

Os Aikewára, a floresta e uma filmadora:

a construção do cinema da Casona.

Antes de começar este relato de pesquisa, é preciso fazer algumas considerações:

a cultura Aikewára, embora marcada pela Fricção Interétnica, por todos os conflitos

que ocorreram e ocorrem, é bem maior que estas histórias, existem outros aspectos tão

importante o quanto. Outra coisa que preciso esclarecer é o motivo de, de certa forma,

fazer uma autoanálise. Penso que a maior contribuição deste trabalho é o processo de

busca por maneiras de negociar, outras formas de fazer comunicação, ou mesmo

educomunicação, para valorizar os saberes, os poderes, as práticas de si dos sujeitos que

estão à margem e fora do centro, das grandes universidades, escolas ou empresas de

comunicação.

Não vou relatar aqui um conto, embora em alguns momentos a tentação exista,

também não é um relato de drama como em alguns momentos pode parecer. Esta

narrativa autoanalítica exige um esforço muito tortuoso, mas espero que, esta pesquisa,

mesmo com seus evidentes problemas possa incentivar outros pesquisadores, outras

sociedades tradicionais a buscarem alternativas de resistência e mais que isso, se

apropriar de saberes para valorizar as culturas e as identidades dos povos da Amazônia.

Pode ser pretensão, mas, é um esforço de minha parte e do grupo de pesquisadores e dos

Aikewára parceiros neste projeto.

Então, por este motivo, na primeira parte deste capítulo me detenho em fazer um

relatório de produção, de que estratégias utilizamos para produzir as materialidades

como, sobretudo os filmes. Num segundo momento, a partir da Análise do Discurso,

faço a análise das materialidades produzidas pelo projeto e pela mídia, e como a partir

destas produções os Aikewára negociaram identidades.

Não deixa de ser uma grande jornada minha história entre os Aikewára, uma

jornada que não foi fácil, foi agonística. No primeiro momento, logo depois de ser

selecionado como bolsista do projeto, veio a primeira viagem. O objetivo desta primeira

ida a Terra Sororó no Estado do Pará, era comunicar aos Aikewára a aprovação do

projeto. Os caminhos que levam até lá são complicados, muitas horas dentro de um

carro seguindo por estradas, algumas bem esburacadas. Perto de Sororó, o clima começa

a mudar e o calor intenso do sudeste paraense é atenuado. Isto acontece porque a

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floresta Amazônica, ali ainda está de pé, na terra deles, diferente do deserto em que se

transformou boa parte da região.

2.1 Entre histórias, castanha e estrelas.

Na tradição Tupi, é recorrente que o universo seja compreendido a partir de

caminhos: caminho das estrelas, caminho da água, caminho do vento, do fogo. Neste

capítulo, para descrever os caminhos que percorri entre eles, vou retomar algumas de

suas narrativas orais, que foram o principal ponto de partida do projeto Crianças Sururí-

Aikewára, mas também, é necessário que estas histórias sejam percebidas como a

versão da história contada pelo lugar de fala desta sociedade, não como uma lenda, um

mito.

Em “Intercessão de Saberes nos céus Suruí” (2004) Ivânia Neves, em suas

análises, explica que, nesta terra, os mais velhos ensinam a olhar o céu de uma forma

diferente, onde a anta e outros animais brilham dando forma a desenhos nas estrelas.

Para os povos Sumérios e Gregos, na antiguidade, estes desenhos estavam presos

no firmamento e eles os chamavam de

constelações. Retomando esta memória, os

astrônomos contemporâneos identificam este

aglomerado de estrelas como a galáxia da Via

láctea, e, dentro da cosmologia ocidental de hoje, o

que vemos na Terra é apenas um dos braços desta

galáxia, já que o Sistema Solar está no meio dela.

Para os Aikewára, esta região do céu é

chamada de Tapi’i’rapé o Caminho da Anta. Na tradição desta sociedade há uma

narrativa que explica a criação desta grande mancha de estrelas no céu. Neves (2004:

109) registrou a seguinte versão da história deste caminho, narrada por Apí Suruí, em

2003, na Terra Indígena Sororó.

Tapi’i’rapé brilha nos céus Suruí

Isso aconteceu há muito tempo, na época em que nós éramos

brabos...

Os animais estavam cuidando de suas vidas na floresta, como sempre

faziam. De repente, ouviram um canto muito bonito vindo do céu.

Mas, como a maioria não voava, pensaram logo em construir uma

escada. Alguns animais, dentre eles a anta, lançaram suas flechas em

direção ao céu, mas não conseguiam acertar uma atrás da outra para

Imagem 14. Desenho Aikewára sobre o

Tapi’i’rapé

Fonte: História dos Índios Aikewára

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montar a escada. Então, lembraram-se do tatu, ele era considerado o

melhor atirador, um craque. O tatuzinho veio e com suas flechas

conseguiu fazer o caminho para o céu e todos os animais foram ver de

perto o pássaro cantar.

Na hora de voltar, todos procuraram o caminho, mas

agoniados, entraram ao mesmo tempo. Quando a anta foi entrando,

pelo peso da bicha as flechas se partiram. Alguns animais caíram na

floresta e viraram caça pra gente comer. Outros ficaram no céu,

presos no caminho da anta. Esse caminho, assim cumprido, branco de

estrela ficou conhecido entre nós como o Tapi’i’ra rape, O caminho

da Anta. Depois disso outros animais voltaram a brilhar no céu junto

com Sahy e Sahy-Tatawai. (NEVES: 2004, 109)

Contam os mais velhos que há muito

tempo uma grande água tomou conta

daquela região e que apenas um guerreiro

sobreviveu no topo da Serra das

Andorinhas. Dois pássaros Mutum e

Ywyratynga, um pássaro preto e um branco

ajudaram este homem a sobreviver. Quando

a água baixou, Mutum e Ywyratynga

viraram mulheres e casaram com o guerreiro. Desta união nasceu a sociedade que habita

esta terra onde a floresta ainda resiste. Desta união nasceram os Aikewára, um povo

indígena Tupi.

E o valente guerreiro Aikewára, único sobrevivente da terrível

enchente entrou na pedra com a ywyratynga e o mutum, que agora

eram mulheres. Casou-se com as duas e fizeram muitos filhos. E

foi assim que, quando as nuvens e a água foram embora e o sol

começou a brilhar, todo o nosso povo renasceu e voltou a crescer.

O nosso povo Suruí Aikewára!! (Suruí: 2011:44)

Os saberes Aikewára estão trançados com suas narrativas orais, considero as

coloções de Neves (2009), e não classificarei estes conhecimentos como um “saber

mítico”, mas sim como parte da história deste povo. Existe segundo Neves, um disposto

de controle e sileciamento através da hierarquização do conhecimento indígena pelo

ocidente, enquanto os povos Europeus e seus descendentes tem história, os povos

indígenas tem mitos, lendas. As narrativas orais, mais do que uma categoria de análise,

são muito da cultura tradicional Aikewára.

Imagem 15. O Guerreiro Aikewára, Mutum e

Ywyratynga.

Fonte: História dos índios Aikewára

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Classificar o conhecimento como “saber mítico” é um dos dispositivos

da ordem discursiva do Ocidente mais eficaz de silenciamento das

culturas indígenas. Se no início da colonização esta foi uma ordem

imposta pelo sistema colonial, hoje esta distinção é administrada pelas

universidades, pelos centros de pesquisa e, claro, pela mídia e pelas

escolas do Brasil. Mas felizmente, aos poucos, esta situação já começa

a mudar na produção científica brasileira, ainda que a grande maioria

dos pesquisadores continue exigindo um rigor metodológico

cartesiano em relação ao conhecimento indígena. (Neves:111:2009)

Da primeira vez que fui até esta aldeia, sabia que este povo havia passado por

grandes dificuldades num passado recente como visto no primeiro capítulo. O motivo

era o contato com a sociedade que os envolve. Muitos morreram, mas os poucos que

viveram, restabeleceram sua sociedade. Hoje mais de 300 Aikewára, a maioria crianças,

mora na Terra Indígena Sororó. Por todos estes conflitos, não se pode imaginar que a

relação deste povo com os Kamará seja pacífica.

Depois de algumas reuniões entre as coordenadoras do projeto Ivânia Neves e

Alda Costa, além de mim, do outro bolsista, o relações públicas Gilvandro Xavier Jr,

ficou decidido que na primeira viagem, iríamos eu, Gilvandro e Ivânia. Devo confessar

que da primeira vez que cruzei os portões da Terra Sororó, estava bastante nervoso, os

Aikewára já sabiam de nossa visita e o motivo dela, pois a FUNAI - Fundação Nacional

do Índio, já havia comunicado a eles.

Imagem 16. Terra Indígena Sororó

Foto: Amanda Cecília

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Os portões e os muros de Sororó são verdes, há uma guarita e alguns dizeres.

Apenas uma corda veda o portão e é bem fácil desfazer nó que separa a problemática

Rodovia, da estrada de piçarra dos Aikewára. Da primeira vez que paramos o carro

nestes muros, depois de uma longa viagem de mais de 8 horas de carro, por volta de

umas 16h, o clima estava ameno, e só se ouvia o barulho da floresta.

O enunciado “Evite parar dentro desta área”, dá indícios do clima de hostilidade

que há em torno da Terra Indígena. Nesta região, às redondezas de Sororó, encontram-

se várias fazendas e colonos e as fronteiras geográficas nem sempre são respeitadas.

Nós estávamos lá com o aval deles e da FUNAI, esta condição era confortável, mas nem

por isso deixava de ser tenso entrar na Terra Sororó pela primeira vez. O impacto é

grande, tanto para quem entra, como para os Aikewára, é um percurso de incertezas.

Nos primeiros metros na aldeia, alguns Aikewára nos acenaram e riram para nós.

Kamará, como já dito, é como os Aikewára chamam os não índios homens, às

mulheres, chamam kamará-Kusó. Neste início, havia uma grande curiosidade na Terra

Sororó: alguns kamarás de Belém chegaram à aldeia propondo fazer filmes sobre a

cultura Aikewára. Quando paramos o carro, perguntamos onde era a casa de Arihêra,

uma das indígenas mais velhas e mais respeitadas deste povo. Uma liderança entre eles.

Perguntamos também por Mairá, que havia sido o cacique até 2004.

Assim que chegamos à casa de Arihêra, vários Aikewára nos cercaram curiosos.

Eles observavam tudo, da nossa roupa à forma como nós falávamos, tentavam ver por

dentro da janela do carro peliculado. Logo Mairá chegou e fomos ter uma reunião na

escola da aldeia. Eles estavam tímidos e se escondiam. Percebi que alguns duvidavam

de algumas de nossas palavras. Arihêra e Mairá tomaram a frente da reunião e

debatemos os vários aspectos do projeto, como o tema dos filmes e dos livros. A escola

começou a ficar cheia e outras lideranças também entraram no debate. Eles explicaram

que Mahu Suruí, irmão de Mairá, agora era o cacique, mas não estava lá naquele dia.

Mesmo assim, decidimos em conjunto com eles, que iniciaríamos as atividades

na aldeia em março de 2010. Ficou definido que a primeira oficina seria sobre a comida

Aikewára, e uma nutricionista iria junto com a gente visitá-los. O motivo de escolher

esta oficina para iniciar o projeto era definir o cardápio do projeto. Lanches seriam

servidos durante as atividades do projeto. A parte isto, a comida é um dos principais

traços de uma cultura, e queríamos respeitar as tradições da comida Aikewára.

Assim que a reunião acabou, despedimo-nos do grupo que estava na escola e

fomos dar uma volta pela aldeia com Mairá. Todas as casas de Sororó estavam pintadas

com números de campanhas política. Mairá havia sido candidato às eleições municipais

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de São Geraldo ao cargo de vereador. E, embora todos os eleitores Aikewára tenham

votado nele, não conseguiu se eleger.

Saímos da aldeia quase ao anoitecer, minhas primeiras impressões dos Aikewára

foram de que eles eram um povo muito calmo, e até tímidos. Mas eu ainda estava tenso,

apesar da recepção positiva. Eles me lembravam bastante as pessoas que vivem em

áreas rurais dos estados do Pará e do Amapá, apesar da diferenças, havia muitas

semelhanças entre eles. Então, com o projeto aprovado por eles, voltamos a Belém, para

cuidar dos preparativos para a produção dos filmes e dos livros Aikewára.

2.2 Novas tecnologias e suas possibilidades.

Quando fomos a Sororó pela primeira vez, o projeto de fato, ainda não tinha

começado. Aquela primeira visita serviu para comunicá-los e definir alguns tópicos.

Assim que a primeira parcela da verba do projeto foi liberada, iniciamos a montagem da

nossa sala de pesquisa e produção. A equipe fixa do projeto contava com as duas

coordenadoras mais três bolsistas, outras pessoas também participaram do projeto, seja

através das oficinas ou da produção dos materiais.

Considero significativo assinalar que, apesar de recursos, até certo ponto

limitados, conseguimos equipamentos razoavelmente eficientes e baratos. Pesquisadores

também são sujeitos históricos e em 2010, já se vivia o período da “democratização”

das novas tecnologias. Adquirir uma filmadora de alta resolução, que possibilitasse a

produção de filme com qualidade digital e em HD, custou menos de U$ 2.000 (dois mil

dólares). No começo dos anos 2000, com a verba que foi disponibilizada, este projeto

como foi concebido, seria impossível de se realizar.

Como já dito, a intenção deste projeto era conciliar as novas tecnologias com a

cultura indígena e assim criar um material didático diferenciado para a escola Aikewára.

A parte que me coube neste projeto foi no mínimo desafiadora: fazer os filmes curta-

metragem sobre as tradições e a cultura Aikewára. Jornalista recém-formado, havia

trabalhado por dois anos na TV Cultura do Pará e participado da edição e produção de

alguns curtas e mini-documentários, já possuía certa experiência com produções

audiovisual. Mas, sem dúvida, nenhuma de minhas experiências nesta área se

comparava ao desafio na Terra Sororó.

De certa forma, nem mesmo meu corpo estava pronto para este trabalho. Era um

choque muito grande para mim, além das diferenças culturais, era um desafio físico

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muito grande. Meu corpo carregava os sotaques da cidade, e enfrentar o mato era

demasiado penoso. Havia um grande receio de minha parte no enfrentamento destas

barreiras.

Nesta segunda viagem, quando demos início às oficinas, a equipe do projeto era

formada por Ivânia dos Santos Neves, coordenadora do projeto e pelos três bolsista. A

oficina de nutrição foi a primeira, pretendíamos usar muitos alimentos produzidos em

Sororó, como o cupuaçu e o leite da castanha. Tudo isto supervisionado pela

nutricionista que dava dicas de uma alimentação saudável e pelas Aikewára mais

velhas, que ensinavam um pouco sobre a alimentação tradicional Aikewára.

Nesta viagem, também foram feitas as fichas de cadastro das crianças e jovens

que participaram do projeto o que foi muito importante, pois assim pudemos organizar

com precisão os participantes das atividades mais especificas na escola.

Neste período, o governo estadual começou a construir 30 casas populares em

Sororó. O contraste entre as casas tradicionais, de madeira com telhado de palha, e as

casas que estavam em construção demandava uma nova ordem em nosso olhar. Aquelas

construções materializam uma nova fase da história do presente desta sociedade.

Nesta segunda viagem, eles estavam mais familiarizados com a equipe do

projeto e participar do “Criança Esperança” era uma acontecimento que se materializava

diante de nossa presença. E assim, quando entramos na aldeia, escutava-se uma gritaria:

“Os kamará chegaram!”. As crianças, mais à vontade que os adultos, corriam ao redor

do carro. Parecia uma festa e elas entendiam de certa forma, que seriam os atores

principais. Havia, certamente, muita curiosidade, por parte delas.

Como já dito, a primeira parada foi na casa de Arihêra e Umassú, grandes

lideranças dentro do grupo. Ele já foi cacique e ela é a grande mestra de saberes dos

Aikewára, como se fosse a mãe de toda aldeia. Em todas as viagens à Sororó, a equipe

do projeto ficou hospedada na casa deles. Arihêra e Umassú nos tratavam como se

fôssemos da família deles. A relação entre nós e eles se intensificou a cada viagem e

eles foram decisivos para a realização das atividades do projeto. Pelo menos entre os

Aikewára foi fundamental estabelecer esta relação de afeto, precisávamos de confiança

entre nos e eles para fazer algumas produções. O sujeitos não revelam coisas a qualquer

pessoa e no caso da cultura Aikewára, a desconfiança é um traço forte, até por tudo que

eles já passaram.

À noite, depois de resolvidas as questões relacionadas à infraestrutura,

realizamos uma grande reunião, com todos os Aikewára. Mahú, o cacique, pediu que a

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equipe explicasse o projeto. Ele se mostrava muito satisfeito, apesar de tímido, aliás,

essa é uma característica da maioria dos Suruí no primeiro contato.

Casona é o nome que dão à maior edificação da aldeia. Feita de

alvenaria e coberta com telhas de barro, é dividida em dois espaços. A

parte da frente, que é maior é o espaço reservado para as reuniões do

grupo e para algum evento especial. Ao fundo existem dois

compartimentos fechados: um pequeno escritório, onde guardam o

computador, a televisão e os documentos do grupo e uma cozinha.

(Neves:2004:45).

No final da reunião, depois do lanche e todas as explicações, a equipe do projeto

se encontrou com alguns índios mais velhos para observar o céu. Miho, Arikassú e

Akasá sabiam que a professora Ivânia Neves havia realizado uma pesquisa sobre o céu

Aikewára, por isso sempre faziam questão de nos mostrar a localização das

constelações. Este momento foi importante, porque muitas crianças nos acompanharam

e a maioria aparentemente não conhecia as constelações.

Quando retornamos para casa, Umassú armou quatro redes, uma ao lado da

outra, como estabelece a tradição Aikewára. A casa Suruí é confortável, com telhado de

palha, chão de terra batida e paredes de madeira. Mesmo no calor amazônico, por sua

arquitetura adaptada à natureza, a temperatura dentro, é agradável. Apesar de ainda

morarem nas casas tradicionais, neste período, em algumas delas, já havia energia

elétrica, televisão e geladeira. De noite, na casa de Arihêra, a TV sintonizava a novela

das 20h.

Pela manhã, a professora Ivânia Neves começou a fazer o cadastro das crianças e

dos jovens que participariam do projeto. As fotografias e os preenchimentos das fichas

ocorriam e este momento foi importante porque eles tiveram os primeiro contatos com

os equipamentos. Enquanto filmava o processo de elaboração das fichas várias crianças

me cercavam, curiosas para filmar. Ainda não tínhamos tido a nossa Briga de Galo

(Geertz:1978), e este processo de aceitação começava a entrar em curso:

Olhar as dimensões simbólicas da ação social – arte, religião, ideologia,

ciência, lei, moralidade, senso comum – não é afastar-se dos dilemas

existenciais da vida em favor de algum domínio empírico de formas

não-emocionalizadas; é mergulhar no meio delas. (1978:40)

Durante a realização do cadastro, as crianças, mesmo depois que concluíam suas

fichas, permaneciam entre nós. Arihêra traduzia o significado dos nomes das crianças.

O dela traduzido para o português significa “jabuti”. Chicão Suruí, um Aikewára que

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fez curso de cinegrafista em Belém assumiu a filmadora durante parte da elaboração das

fichas dos menores de 10 anos.

Em pouco tempo, grande parte dos meninos e meninas Suruí rodeavam a equipe.

Muitos deles curiosos olhavam fixamente a máquina fotográfica e o computador em que

descarregávamos as fotos. Outros ainda meio tímidos se exibiam para filmadora. Boa

parte deles começou a brincar.

O projeto previa a participação de crianças e adolescentes entre 05 e 18 anos. A

realidade deles, no entanto, forneceu outro indicativo, pois para eles, pelo menos até

2011, só havia crianças e adultos e o que definia estes dois períodos da vida era o

casamento e a maternidade. Então, durante o projeto, algumas meninas Aikewára, entre

13 e 16 anos, casaram e deixaram de ser criança. Num primeiro momento, não podiam

mais participar de um projeto para crianças, mas, elas encontraram estratégias para

continuar e passaram a envolver seus companheiros nas atividades do projeto. Este é

uma situação, que já impõe um conflito, é preciso lembrar, que nós como pesquisadores,

também somos sujeitos históricos, com nossa própria ordem de olhar, embora a nossa

intenção fosse conciliar estes conflitos, a esta altura, ainda estávamos enfrentando as

adequações necessárias ao relacionamento entre culturas diferentes, ajustando os

contratos desta fricção interétnica, RCO (1996, 174).

Quando comecei a filmar, algumas crianças passaram a desenhar no quadro da

escola. Pude observar que, apesar de quase toda casa possuir os espetos de antena e a

luz neon das telas de TV, não havia, nestes desenhos, referências diretas à cultura

televisiva. Ou seja, nada de cartoons americanos ou animes japoneses, o que se via no

quadro era a onça, o sol, a anta, o jabuti, os animais e as coisas da floresta.

Imagem 17. Cena do filme “a Comida Aikewára”.

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Isto chama muita atenção, embora o próprio cartaz do projeto fixado ao quando,

talvez tenha exercido certa influência. As crianças Aikewára, ao desenharem aqueles

animais, sem que um pedido formal de minha parte tivesse sido feito, começaram a

mostrar em frente às câmeras, o que aparentemente elas queriam ver nos filmes, o

objeto de desejo: os animais e suas histórias. Eles estavam a marcar uma posição, um

discurso que atravessaria as materialidades produzidas pelo projeto, a partir do desejo

deles.

O desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que –

isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é

simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação,

mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos

apoderar (FOUCAULT,2008: 10).

Naquele momento, alguns Aikewára já se deixavam filmar, com toda

naturalidade. Neste sentido destacam-se Hércules Suruí e Tuá Suruí, que além de

naturalidade, incentivavam os outros a desenhar e mostrar seus desenhos para

filmadora.

Sariwawag Suruí, ou Sari, como gosta de ser chamado, um menino de 12 anos à

época, iniciou outra ação deste projeto audiovisual de construção do cinema Aikewára.

Ele reuniu outros meninos e, juntos, começaram a fazer acrobacias para filmadora. Não

satisfeito apenas com os movimentos, condição que depois eu viria a entender melhor

durante o Sapurahai, dança e música tradicional Aikewára, entrou na escola e começou

a cantar uma música Aikewára. Com a ajuda de Tuá, uma das meninas que casou

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durante o projeto, formaram um coral Suruí.As crianças eram o principal motivo para

estarmos na Terra Sororó, e a participação delas nos filmes era fundamental. Estas

filmagens foram utilizadas nas produções do projeto.

2.2.1 A oficina de nutrição.

A imagem ao lado é uma cena do filme

“A comida Aikewára”, nela, Maria e Arihêra

contam o que os Aikewára comem e o que eles

não comem.Assim que a nutricionista chegou, as

atividades do cadastro foram suspensas e os

trabalhos se concentraram na realização da

primeira oficina. Arihêra, Maria, Hóy e outras

índias substituíram os mais novos nas lentes.

Havia começado a oficina de nutrição, que previa

a elaboração do cardápio a ser servido durante o

projeto, a partir da comida tradicional Aikewára,

além de dicas de boa alimentação. O motivo

desta oficina, como já dito, era respeitar durante

a realização do projeto as tradições da culinária

Aikewára. O papel da nutricionista era

fundamental, pois ela montaria um cardápio

saudável e balanceado a partir das tradições

Aikewára.

A nutricionista começou a oficina

perguntando o que eles comiam. Arihêra

começou a responder: “Porcão, Jabuti, mandioca,

acará, castanha, cupuaçu, frango, batata...”. Em

seguida, passaram a falar sobre o que não

comem, então perguntou-se o que eles não

comem, ou pelo menos não comiam tradicionalmente: carne de vaca e de macaco.

Segundo Arihêra, quando comem macaco, o corpo fica mole, com preguiça. Quando a

nutricionista perguntava se plantavam certa fruta ou verdura e a resposta era positiva,

elas ficavam muito contentes, respondiam com um cantado “têm!”. Já quando não tinha,

surgia um “têm não” com uma expressão um pouco triste.

Imagem 19. Oficina de Culinária Aikewára: Take do filme

“A comida Aikewára”

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Ivânia Neves perguntou se eles tinham alguma narrativa sobre alguma comida

como a castanha. Arihêra, que sempre sorria e se esforçava para falar em português,

para responder, mudou sua expressão e séria, começou a falar em Aikewára. Mayron

Suruí, uma Aikewára adulto e fluente nas duas línguas precisou traduzir suas palavras e

segundo ela, quando o Karuawa, ou seja, os espíritos dos antepassados criaram o

mundo, as comidas já estavam aqui. Além de montar o cardápio, começava a procura de

estratégias para recolher as narrativas.

Também, nesta segunda viagem, Maria Suruí e um grupo de mulheres

começaram a desenhar os grafismo Aikewára, em folhas de papel em branco. Em

conversas com a equipe do projeto, Maria propôs que fizéssemos um registro sobre o

grafismo. Destes desenhos nasceu o Livro “Sentidos da Pele Aikewára”, sobre ele

comentarei mais a frente.

Boa parte dos fatos narrados sobre nesta viagem estão no filme A Comida

Aikewára, primeira produção audiovisual do projeto, e também a primeira neste

formato, sobre os Aikewára. Eles revelaram que algumas filmagens sobre eles já haviam

sido realizadas, mas não chegaram a retornar à aldeia, nem as equipes de produtores,

nem as produções. Havia umas imagens de dança em Sororó, mas que não já existiam

mais. Ainda nesta viagem, Umassú, me levou à sua roça, para que eu filmasse, mas foi

bem difícil fazer estas imagens, o terreno era irregular e eu quase não conseguia ficar

em pé, havia mato por todos os lados.

Umassú parecia flutuar e nossas condições marcavam nossos diferentes lugares

de fala e mesmo de corpo-cultura. A viagem chegava ao fim. Na despedida muitos

Aikewára ficaram tristes, mesmo com a nossa promessa de que voltaríamos. O roteiro

destas filmagens era a espontaneidade das ações, não havia um tema definido, apesar de

nós termos definido atividades, não estabelecemos um roteiro de produção, só de

edição.

2.3 O primeiro filme Aikewára.

A surpresa, é que apesar de todos os machucados que ganhei entrando no mato,

alguns aspectos da cultura Aikewára eram muito familiares. Belém do Pará é a cidade

onde eu nasci e vivi boa parte da minha vida. Apesar de todas as características

metropolitanas da cidade cheia de prédios, Belém ainda guarda muito da cultura dos

povos indígenas. Certos momentos, nestes primeiros contatos, tinha a impressão de

estar na Cabanagem, bairro da periferia da cidade. Belém é uma cidade cercada por

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floresta. No entanto estas familiaridades não mudavam o estranhamento, é outra cultura.

Os Aikewára se divertiam muito com a falta de habilidade em andar pela Aldeia que nós

exibíamos. Isto de certa forma ajudou a aproximação entre eles e a equipe do projeto.

Os desafios de fazer uma produção deste tamanho sobre outra cultura são

demasiados. Não é pacífico, nem ameno. Existe um choque, um atrito, é outra forma de

agir, de ser. O simples fato de passar alguns dias na aldeia exige um esforço, até mesmo

físico muito grande. Os horários são diferentes. Coisas do cotidiano como tomar banho,

ir ao banheiro e até mesmo dormir, são práticas diferentes.

Outro aspecto muito importante neste meu lugar de fala é a minha formação.

Como jornalista, exercia métodos peculiares na hora da condução do meu trabalho. O

tempo de coletar informações, a forma de abordagem, de como conduzir as entrevistas,

a própria presença da filmadora. Apesar de algumas leituras, de pesquisa de campo e

etnografia, minha forma de conduzir as filmagens era um pouco diferente da abordagem

de antropólogos ou linguistas, embora na equipe, houvesse pesquisadores com esta

formação que subsidiaram meu trabalho. Existia ainda em mim, um traço que foi

bastante atenuado ao decorrer das viagens, o imediatismo jornalístico, uma pressa em

função do tempo bastante escasso das produções diárias na TV, mas na aldeia a lógica

era outra, levei um tempo de adaptação, é outro tempo o que circula em Sororó.

A equipe era interdisciplinar, porém meu lugar de fala era a partir da perspectiva

jornalística de produzir materiais, produtos de mídia e minha participação foi marcada

por coisas práticas como a presença da filmadora, a preocupação com cargas de bateria,

mas o foco era principalmente possibilitar a interlocução entre eles e o trabalho que

estávamos desenvolvendo. Entendia que alguns destes filmes fariam mais sentido

apenas entre eles e que outros poderiam ser postados no YouTube, por exemplo. Mas

entre eles havia também o desejo de criar estes materiais apresentando sua cultura para

os outros. Alguns filmes com vários minutos de dança e canto Aikewára, não

repercutiam nem mesmo entre os outros membros da equipe do projeto. Então, lidava

com decisões difíceis de serem tomadas.

A proposta do projeto não era levar o audiovisual a Terra Sororó, pois quase

todas as casas da aldeia, em 2010, já possuíam televisão e muitas até tinham aparelhos

de DVD. O acontecimento novo era que os Aikewára, apesar de já terem sido filmados

antes do projeto, nunca tinham visto um filme, quer dizer uma produção editada, no

formato não bruto, em que eles eram os protagonistas. A maioria das filmagens dos

Aikewára nunca foi exibida na Aldeia. O único registro audiovisual que eles tinham

deles, era um material não editado e breve de uma dança.

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Os Aikewára ainda estavam em processo de se acostumar com a presença da

filmadora, embora essa ideia os agradasse muito. Outra coisa que não pude deixar de

notar, não só entre as crianças, mas também na maior parte dos índios da aldeia, era que

eles vestiam-se como nós. Aliás, antes de serem filmadas ou fotografadas, as crianças

procuravam vestir a roupa mais bonita. Na primeira viagem, nenhum Aikewára se

pintou para aparecer no vídeo. Naquele momento, para eles, a melhor forma de aparecer

era com a melhor roupa que tivessem.

Imagem 20. Cartaz do filme " A comida Aikewára"

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Editar “A Comida Aikewára” foi muito desafiador, que tipo de narrativa usaria?

Era hora de pegar o material das filmagens e fazer a edição. Este processo aconteceu no

Laboratório de Comunicação da Universidade da Amazônia – Unama e contou com a

participação de Pedro Leal, o editor de imagens e de animação deste e todos os filmes

Aikewára.

Fizemos o roteiro do filme A comida Aikewára. Este filme faz uma apresentação

do projeto aos índios, mas o tema central é a culinária tradicional Aikewára. Arihêra e

as outras índias mais velhas apresentam o que os Aikewára comem e o que faz mal. O

coral de Sari viera a se tornar o primeiro registro audiovisual editado em formato de

narrativa, a ser exibido para toda a Aldeia. Eles cantando Ipirá, o peixe, que iniciam o

filme. Escolhemos começar com a música, por que este é um dos elementos mais

importantes da cultura Aikewára, e também por falava do Ipirá, que relacionava com o

tema do filme. Aquela música foi fundamental para marcar uma identidade Aikewára no

vídeo. Assim que terminamos a produção, alguns meses depois, voltamos a Sororó para

mostrar os resultados.

2.4 O cinema da Casona

Imagem 21: A nova Aldeia. Foto Gilvandro Xavier

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Então, voltamos pela terceira vez a Terra Sororó. O portão e guarita esverdeados

aquela altura já eram familiares. No caminho, Mahu, o cacique da aldeia foi o primeiro

a dar boas vindas. Depois nós fomos até a casa de Arihêra, mas quando chegamos,

houve uma informação de que ela havia se mudado.

As novas casas surgiam na frente do carro. Eram de alvenaria, bem ao estilo das

casas erguidas pelo governo pelos projetos de habitação. Boa parte dos Aikewára

morava nestas casas agora. Elas foram construídas uma ao lado da outra, de tal maneira

que formavam um grande círculo. No centro, uma nova Casona foi erguida, mas ao

contrário da anterior, era feita de madeira e palha, seguindo o estilo da arquitetura

Aikewára.

Nossa presença causava um estado de euforia, aproximavam para ver os

visitantes, que já não eram mais desconhecidos. Acenávamos do carro e recebíamos

sorrisos de volta. Enfim, paramos na casa nº 22, a casa de Arihêra e Umassú. Assim que

sai do carro, falei com Umassú, que perguntou por que demoramos a voltar. Eu sorri,

disse que logo que chegamos, procuramos a casa dele, como ele havia pedido na viagem

anterior. Depois fomos levados até Arihêra. Ela estava sentada nos fundos da casa

pintando seu cabelo com jenipapo.

Após um tempo de conversa, Umassú mostrou a casa que eles estavam

construindo para gente ficar durantes nossas estadias em Sororó. Como haviam

prometido, os Aikewára construíram atrás da casa de Arihêra, uma casa para

hospedarem a equipe. A diferença é que esta casa era uma casa tradicional, ou seja, de

madeira com o teto de palha.

Depois de sair da casa de Arihêra, descarregamos alguns equipamentos na

casona. Dentre todos os objetos que saiam do carro, o que mais os atraia era uma tela de

LCD. Mairá não escondia a felicidade, eles brincavam dizendo que iam assistir a copa

no telão. Mas, na verdade, o que eles mais ansiavam, era ver os Aikewára naquela

televisão. Combinamos que a exibição do filme seria na noite seguinte, pois teríamos

que passar o dia em São Geraldo para comprar mantimentos.

Um clima festivo nos esperava logo Ivânia Neves explicou que a nova oficina

era de narrativas orais dos Aikewára, mais especificamente sobre a “Festa no Céu”, a

história de como os animais subiram no céu e formaram as constelações. A ofina

começaria após a exibição do filme e continuaria nos dias seguintes.

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Assim, por volta das 19h, começamos a preparar a Casona para exibição do

vídeo. A televisão grande e o aparelho DVD foram alojados numa mesa que Tiapé Suruí

havia feito pela manhã. A caixa de som e um microfone também foram para Casona,

que esta altura mais parecia uma sala de cinema.

Aos poucos o lugar ia ficando cheio, as crianças se alojavam bem na frente da

TV sentadas no chão, os mais velhos disputavam um espaço pelas extremidades, muitos

traziam cadeiras de suas casas. Assim que o microfone foi ligado, os Aikewára

pareceram apreciar bastante a novidade, principalmente Mahú e Mairá, que agora

podiam falar para todos com suas vozes amplificadas. Depois de tudo ajustado

finalmente a abertura do filme aparecia na tela.

Posteriormente, ainda nos créditos, a música Aikewára ecoava da caixa de som

para toda casona. Todos estavam muito impactados, não era a primeira vez que

assistiam a um filme na TV, mas era a primeira vez que eles se viam, o coral de Sari

fazia todos eles cantarem baixinho. Os Aikewára se concentravam naquele vídeo, um

misto de felicidade, emoção e euforia tomava conta deles. Até que chegou a parte que

Arihêra surge nas imagens. Ela contava o que eles comem.

Depois da exibição do filme, os Aikewára estavam muito felizes. Os índios mais

novos passavam por nós cantando suas músicas. De repente, aquelas músicas

Cinema da Casona 22. Foto Gilvandro Xavier

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Imagem 23. Sapurahai Foto Gilvandro Xavier

tradicionais eram entoadas por crianças em todos os cantos da aldeia. O vídeo havia

mexido profundamente com os Aikewára, eles estavam orgulhosos daquilo, e agora

queriam mais. Mairá anunciou que eles fariam um Sapurahai, uma festa em que

cantariam e dançariam suas músicas tradicionais. Houve um pedido deles para que isto

fosse filmado e virasse um filme. As crianças, a partir daí começaram a fazer

competições de canto afim de ver quem cantava mais alto.

2.5. Convergências e divergências: a produção audiovisual na aldeia.

Os dias que seguiram a exibição do filme foram bastante movimentados. Os

Aikewára prepararam uma série de eventos que eles queriam ver nos filmes. Em

diversos pontos da Aldeia, havia alguém pedindo para ser filmado exibindo detalhes da

cultura Aikewára.

As crianças continuavam a passar por nós cantando suas músicas, e dessa vez,

elas não queriam aparecer com roupas bonitas, elas queriam aparecer pintadas com os

grafismos corporais Aikewára como podemos observar na imagem. Em quase todas as

casas, os Aikewára estavam se pintando. Os animais e as árvores, histórias pintadas

ganhavam forma em seus copos, através das pinturas feitas com jenipapo, urucum e

carvão.

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No entardecer eles se reuniram, Mihó, começara a cantar. O guerreiro Arikassu

comandava os índios no centro da Aldeia, eles começaram a dançar. Era visível a

felicidade deles ao fazer este Sapurahai. Todos queriam que a cultura Aikewára fosse

registrada em vídeo, mas, muito mais importante do que o registro era o encantamento

das crianças com estas práticas, isto chegava a emocionar os mais velhos. A imagem

revela uma mudança substancial em relação ao primeiro filme. Durante toda a tarde eles

dançaram e cantaram. Diversas músicas e formas de danças foram gravadas. Mais tarde

esta festa daria origem ao filme “Sapurahai”, um vídeo com 18 músicas e danças

Aikewára. A construção desta identidade Aikewára a partir dos vídeos só vai se

intensificar com o decorrer das produções. Sem perceber talvez, minha “briga de galo”

com os Aikewára havia se desenrolado. Um projeto dos mais velhos de ensinar os

jovens, talvez, seja a grande diferença, a grande virada, quem é mais autorizado a

repassar estas práticas? Este muito provavelmente seja o grande desafio de conciliar as

cultura tradicional e a escola, na lógica pedagógica das escolas ocidentais, não há

espaço para esta integração dos mais velhos, mas numa sociedade como a dos

Aikewára, diversos saberes e conhecimento são repassados por este diálogo, não só

éticos e domiciliares, mas cosmológicos e históricos.

Esta festa sugerida por eles estava intimamente ligada ao filme A comida

Aikewára. Eles queriam novas formas de representação a partir dos filmes. Parte da

equipe do projeto retornou à Belém, mas Gilvandro Xavier e eu ficamos e passamos

mais alguns dias para fazer mais filmagens e fotos como estava acertado desde as

reuniões em Belém. Estes dias foram preciosos e os Aikewára, por todos os lados

contavam mais histórias, queriam filmes disso e daquilo, a partir deste momento, foi

muito mais restrito ao processo de edição, nosso controle sobre estas produções. Não

quero dizer que estes materiais ficaram livres do nosso olhar, mas, eles refletiam bem

mais a visão deles do que A comida Aikewára. Infelizmente era impossível, diante de

tantas horas de filmagem, fazer um filme de todas as histórias que eles contavam.

Muitas narrativas foram recolhidas neste momento. Foi um consenso entre nós e eles,

que os próximos vídeos seriam feitos desta forma, já que os mais velhos estavam

empenhados em revelar suas histórias e performances para criar estes materiais.

Um pouco antes do Sapurahai começar, os índios Arihêra, Maria e Arikassu

ensinam as crianças a fazer a Tekwaeté, a rede Aikewára. Este momento foi o ponto de

partida para outro vídeo que fala sobre a rede. O filme mostra o trançado dos fios, que

guarda toda beleza e delicadeza de sua cultura. Arihêra conta histórias sobre a rede:

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Imagem 24. Cartaz a rede Aikewára

Maurício, minha mãe ensinava eu. Me ensinava pra afiar algodão. Aí ela fazia a rede

também. Aí ela falou pra mim assim:

-Você não deve!

- Você não deve passar por cima dele não!

- Por que não pode?

- Não, faz mal. Assim ela vai ficar malfeita, ela falou pra mim. (Arihêra Suruí)

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Os saberes Aikewára, como a produção em curso ganhavam um poderoso aliado.

Muitas crianças estavam presentes de olhos atentos para aprender a fazer a rede. Ficava

clara que não deixava de ser uma descoberta para estes jovens. Umassú em uma de

nossas conversas disse que as crianças não queriam mais ser “índio”. As materialidades

iam se entrelaçando, o cartaz “a rede Aikewára” foi produzido para divulgar o filme,

tanto em espaços fora quanto na aldeia, vale destacar que todos os filmes, eram lançados

primeiro lá, só depois em Belém. Algumas produções como “A Festa no Céu” e

Sapurahai, foram lançados somente em Sororó. As produções que lançávamos iam

convergindo em várias mídias como a impressa, a foto, as artes, os vídeos. Segundo

Henry Jenkins:

A convergência não ocorre por meio de aparelhos, por mais

sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos

cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais

com outros. Cada um de nós constrói a própria mitologia pessoal, a

partir de pedaços e fragmentos de informações extraídos do fluxo

midiático e transformados em recursos através dos quais

compreendemos nossa vida cotidiana. (2009:30)

A nossa presença na aldeia era muito requisitada pelos Aikewára para mostrar,

suas tradições ou ainda suas novas tradições, um novo projeto a ser implementado neste

novo tempo. Arihêra, já não vai mais afiar algodão, o fios da rede vem do

supermercado, não existe mais floresta o suficiente para esta prática. É neste sentido que

eles acabavam utilizando a nossa presença para conduzir o projeto, projeto este que era

um pouco diferente do que propúnhamos. Não imaginávamos que os impactos seriam

tão extensos. A nossa ida era o começo de um projeto maior, não para nós, mas para

eles, entre eles.

Este projeto peculiar Aikewára se manifestaria algumas vezes em desacordo com

o nosso. Um exemplo disto era a relação que alguns Aikewára mantinham com a igreja

evangélica, Mairá um dos caciques inclusive é evangélico. Certas ações como traduzir

canções evangélicas para a língua Aikewára, não eram apoiadas por nós, e nem eles

queriam este apoio, mas este era um conflito velado que ficava no ar como uma mina.

Havia uma animosidade, e cada vez mais eu percebia que o processo de hibridização

Aikewára ainda era forte e agonístico, e que mesmo eu e minha equipe estávamos numa

fronteira muito tênue e perigosa, apesar de todas as mediações. A interferência da igreja

evangélica não era bem vista por boa parte da aldeia, por toda interferência que ela

podia causar. Naquele momento, embora nunca tenham relatado nada era notável o

desconforto com esta situação.

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Os dias se seguiram em Sororó com uma intensa movimentação, e começávamos

a ver os limites do processo de filmar na floresta. Certa vez, instigados por Umassú e

Warini Suruí, fomos até a aldeia velha, lugar onde os Aikewára moravam na época após

o contato. Lá a mata é bem mais fechada do que na Aldeia nova. Fomos de carro, e na

volta ele atolou numa ponte e ficou bem perto de cair num igarapé. Umassú foi

rapidamente chamar os outros Aikewára para ajudar, mas ele esclareceu que levaria

mais de meia hora para chegar à aldeia.

Ficamos, eu, Gilvandro Xavier e Warini presos ali numa pequena trilha no meio

mato. Warini, embora seja um Aikewára e esteja familiarizado com este ambiente, já é

idoso e também é um pouco surdo, a situação era de certa forma perigosa e ainda

começou a chover. Vários insetos começaram a ferrar nossas peles e todas as tentativas

de tirar o carro do atoleiro eram mal sucedidas, e o carro só afundava mais.

Cerca de 1h depois da partida de Umassú, Api Suruí e seu filho apareceram no

meio do mato com um burro, eles estavam caçando. Tentaram ajudar, mas também foi

em vão. Até que cerca de 1h e 30 minutos depois surgiu um pequeno comboio de 5

Aikewára liderados por Tiapé Suruí. Com a ajuda deles conseguimos tirar o carro do

atoleiro.

Acredito que a partir deste episódio, apesar de já estarmos totalmente integrados a

eles, nossa relação ficou ainda mais forte. Todos na aldeia se divertiam com a nossa

história de pânico no meio do mato. Até alguns Aikewára que não costumavam ser tão

amistosos com a gente, agora falavam com admiração, talvez, por alguns deles terem

nos salvado e se divertissem pela nossa inabilidade de querer ir à aldeia velha de carro.

“Só da pra ir de carro lá no verão que é seco, no inverno o carro atola”, esta frase virou

piada entre eles, e nosso conceito subia cada vez mais. Depois de mais uns dias em

Sororó, nossa viagem chegara ao fim, na despedida Arihêra lagrimava, e de certo forma

nós também.

As próximas viagens mostrariam a repercussão dos filmes e outras materialidades

produzidas por nós. A Festa no Céu, filme que contava a história das constelações

Aikewára e A rede Aikewára foram exibidos assim que houve os nosso retorno. A Rede

ao ser exibida, foi aclamada, mas A Festa no Céu apresentou um problema, tanto para

nós quanto para eles; a linguagem. Ele fora narrado por Mihó Suruí, o Pajé da Aldeia e

por Arihêra. Este filme foi narrado em Tupi Aikewára, e foi muito complicado legendá-

lo mesmo com um grupo de estudantes Aikewára fluentes em português ajudando, esta

tradução não foi adequada houve muita confusão com certas palavras na hora de

traduzir, vale destacar que a legenda foi um pedido deles. O filme também não

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funcionou bem quando foi exibido em Belém para um público restrito. Os Aikewára,

Ivânia Neves e eu decidimos fazer outra versão, substituindo Mihó por Api Suruí, um

senhor exímio contador de histórias e caçador, já que Mihó estava meio cansado e sem

voz.

Api, embora tenha pedido para colocar legenda, preferiu narrar o filme em

português. Este conflito entre o Tupi e o Português é um dilema para eles, mas o Api se

esforçou muito para transportar a performatividade típica dos narrados Aikewára para o

filme que mais tarde viraria a obra Tapi’i’rapé: O caminho da Anta.

Imagem 25. cartaz tapi’i’rapé

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Esta dicotomia linguística faz refletir sobre certas barreiras, até onde vai a

tradução e qual o sentido de traduzir o Aikewára para o povo Aikewára? Eles de fato

são bilíngues e o português como o tupi estão numa luta constante. As crianças pouco

falam o Tupi, pelo menos na nossa frente, mas uma coisa é certa, quando os pais e os

avós brigam com eles, fazem isto em Tupi e eles entendem. Um espaço muito

importante é a música, a esta altura orgulho dos Aikewára, os Sapurahai são em Tupi.

Os Sapuharai tem uma narrativa, contam uma história, daí talvez, o

estranhamento de Mihó, inclusive para os outros Aikewára, contar a história sentado.

Esta história, tradicionalmente é cantada. Da primeira vez que tentamos filmar foi

durante a oficina de narrativas orais. Fizemos a experiência de Mihó contar a história

para as crianças enquanto eles realizavam as atividades de materializar os animais que

aparecem na Festa no Céu em argila, esta atividade foi idealizada por Monica Cruvinel,

como uma metodologia de ensino das narrativas.

Na noite anterior, a este evento, foi a exibição do filme “A comida Aikewára”,

logo depois, os mais velhos contaram esta e outras histórias no microfone, e as crianças

ficaram concentradas, talvez muito por causa do próprio microfone e do clima que se

criava. Quando Mihó foi contar a história pela manhã e sem microfone, eles não se

aquietaram para prestar atenção. Então decidimos em conjunto com eles filmar Mihó e

Aihêra em separado das crianças.

Imagem 26. Oficina de Narrativas orais.

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Isto, talvez se explique, pelo fato da movimentação da cultura Aikewára depois do

contato. É muito provável que a forma como eles falam em Tupi, tenha sido

sensivelmente alterada após o contato sistemático. Quando fomos traduzir, com o grupo

de jovens Aikewára, era preciso que Arihêra, explicasse, em Tupi o que Mihó queria

falar, a narrativa da festa no céu, como já dito, é contada durante um Sapurahai na

cultura tradicional. Ou seja, o que Mihó

fez foi uma adaptação em Tupi, de uma

história que nesta língua é contata

através de Sapurarai. Api, quando fez

uma versão em português, não encontrou

tantas dificuldades, já que não lhe faltara

e melodia e nem a dança como no caso

de Mihó. O Sapurahai se fossemos

traduzir de forma mais próxima para o

português seria como uma ópera, um

musical. Segundo Shohat e Stam:

Outros filmes oferecem uma simbiose

entre a oralidade e a música, apontando para

a possibilidade de uma estética renovada na

qual a música não é subordinada à imagem e

à diegesis, mas forma um tipo de matriz

central da qual surge o filme. A música

desempenha assim, o papel que ela tem na

vida comunitária, onde é uma presença

estimulante e ao mesmo tempo artística,

espiritual e prática.(2006:419/420)

O tema do filme Tapi’i’rapé: o

caminho da Anta é as constelações

Aikewára, fala de como os animais

subiram ao céu por uma escada de

flechas, mas caíram quando a Anta, que

era muito pesada, partiu a escada. Assim

a Anta, o Veado, a Onça e o Jabuti

formaram as constelações. A cena ao

lado, retirada filme, mostra um pouco de

como foi estruturado. A legenda foi

muito requisitada por um grupo

Imagem 27. Cena do filme Tapi’i’rapé.

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Aikewára, que domina o português. Maíra instituiu muito no legendado, mesmo nas

coisas narradas em português, porque segundo eles os ajudaria a decorar.

Este filme combinou a narrativa de Api com animações dos desenhos feitos pelas

crianças. As animações foram muito especiais para eles, ficaram muito contentes ao ver

seus desenhos se “mexerem”. Assim que acabou a exibição do filme, as crianças

correram para olhar o céu e identificar suas constelações. Esta viagem foi marcada pela

presença de equipe da Rede Globo, que gravou uma reportagem sobre o projeto para o

jornal Nacional, mas esta história e outras, abordarei nos próximos tópicos.

Trabalhar estas narrativas, no formato audiovisual era um grande desafio e o

maior objetivo do projeto “Crianças Suruí Aikewára: entre a tradição e as novas

tecnologias na escola era usar estas materialidades” para mediar a cultura e a tecnologia.

Compartilho das colocações de Shohat e Stam que este tipo de trabalho é:

...uma tentativa de evitar as hierarquias antropológicas comuns tanto

entre cientista/antropólogo/cineasta quanto entre o objeto de estudo e

o espetáculo. Ao mesmo tempo, a mídia indígena não deve ser vista

como uma solução mágica, seja dos problemas concretos das

populações nativas, seja das aporias da antropologia. (2006:71)

Houve um intervalo, um tempo para organizar os materiais recolhidos, ai as

atividades se cocentravam mais em Belém. Apesar de o nosso equipamento ser

relativamente limitado, oferecias boas possibilidades de produção. Todas as

materialidades eram pensadas cuidadosamente para valorizar, mas sem agredir as

tradições.

2.6 O Sapurahai Karuwara.

O Karuwara é uma festa espiritual que é realizada de quatro em

quatro anos, depois das queimadas das roças. Para nós, povo

Aikewára é muito importante realizar essa festa, porque o Karuwara

é o espírito dos nossos antepassados.

Murué Suruí

As ultimas filmagens que fiz em Sororó aconteceram durante o Sapurahai

Karuwara. Esta é a principal festa dos Aikewára, portanto um filme sobre ela causava

muita expectativa por parte deles. Neste momento, os Aikewára passavam por uma

espécie de ebulição cultural e antigas tradições começavam a tomar seus corpos outra

vez. Eles se preparam adornados pelos seus grafismos e adereços.

Os meninos para as festividades, resolveram furar o beiço como os antigos

faziam. Esta tradição estava esquecida, mas parece que a lógica agora era outra, os

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meninos da Terra Sororó estavam empenhados em

aprender o máximo das antigas práticas, e mesmo

transformar seus corpos, como uma memória

corporal dos tempos antigos, antes do contato. Este

período Havaí se tornado para eles uma referência,

uma nostalgia do que eles não viveram. Os mais

velhos, eram vistos agora como grandes mestres e as

crianças estavam ávidas para aprender. A imagem ao

lado é um recorte das filmagens do Karuwara,

podemos observar o beiço furado e com um espinho.

Estas filmagens sem dúvida foram as mais difíceis, por vários motivos. O

primeiro era a importância da festa, pois ela abrangia profundamente a religiosidade e

ao mesmo tempo era uma das manifestações culturais mais importantes. Entender este

Sapurahai é um exercício que excede um pouco os limites das fronteiras.

Como dito na epígrafe, o Karuwara é os espíritos dos antepassados, são uma

entidade plural, que segundo os Aikewára vivem no topo da Serra das Andorinhas, um

lugar sagrado para eles, embora tenha ficado fora da demarcação da Terra Sororó. Vale

lembrar que segundo a história da origem dos Aikewára relatada no começo do capítulo,

foi lá que o índio guerreiro sobreviveu a uma grande enchente e casou com dois

pássaros que viraram mulheres Mutum e Ywyratynga4. A Serra das Andorinhas fica a

alguns quilômetros de Sororó, e é um lugar muito importante para eles, que demonstram

muita tristeza por ela ter ficado fora de suas terras.

4 Suruí, Murué, 2011. Histórias dos índios Aikewára

Imagem 28 . Menino Aikewára

Imagem 29. Serra das Andorinhas. Foto Mônica Cruvinel

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Um dos elementos mais importantes da festa é a casa do Karuwa, uma

construção de folha e madeira. Segundo Murué Suruí 2010 “Alguns homens da aldeia

fazem uma casa igualzinha as dos antepassados para que durante a festa, os espíritos se

reúnam dentro da casa para assistirem a dança.”. A casa, segundo ela é “uma réplica da

casa do Karuwara lá na Serra das Andorinhas”. Na imagem abaixo podemos ver a casa

que eles constroem para o Sapurahai.

O Sapurahai Karuwara exige uma série de regras, e estas regras seriam um

desafio para as filmagens, existem algumas interdições que poderiam entrar em conflito

com um documentário, se mal exploradas, poderiam interferir nos sentidos do

Sapurahai. Segundo Murué Suruí (2010):

-Todos os homens participantes tem que entrar na casa dos Karuwara

antes e depois da dança para guardar os enfeites e também para o pajé

cantar e falar os nomes que estão lá dentro. Depois que ele termina a

cantoria todos os mais velhos ficam contando as histórias, como foram

as suas caçadas, as suas aventuras. Isso, só até os espíritos se retirarem

da casinha e irem até a sua moradia oficial, que é na Serra das

Andorinhas, dentro de uma enorme pedra, que é uma gruta. Depois

disso todos saem e vão caçar e pescar;(aikewara.blogspot.com)

Alguns procedimentos incluíam inclusive nós, as danças ocorriam duas vezes

por dia, a primeira nos primeiro raios de sol, logo ao amanhecer. Assim que começava

ninguém na aldeia poderia estar dormindo, e isto se aplicava a gente também. Então, até

mesmo antes de amanhecer, Arihêra nos acordava. Ela batia na nossa porta em tom de

Imagem 30. Casa do Karuwara. Lariza Gouvêa

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brincadeira chamando “acordada Kamará preguiçoso, o Karuwara vai começar”.

Segundo Murué (2010) o Karuwara tem as seguintes regras:

- Durante a festa não pode ter relações sexuais, porque a pele das duas pessoas ficam

manchadas de branco e todos ficam sabendo o que eles fizeram;

-Quem começou a dançar não pode faltar a nenhuma dança, tem que ir até o fim, que é

quando a pintura do corpo do pajé sair completamente;

-Não pode deixar cocar e nem maracá cair.

-Todos da aldeia tem que acordar antes da dança começar.

-Não pode ficar sozinho em casa e nem deixar criança brincar atrás da casa e

principalmente na dos Karuwara.

-As mulheres são proibidas de entrar na casinha dos Karuwara, assim como as

criancinhas.

-Só são permitidas para as mulheres um tipo de pintura, é da inamuí(pássaro jaó);

-Quem desobedecer essas regras corre o risco de acontecer uma tragédia com ele e com

sua família;

-A pintura dos homens é de animais, esse ano a pintura foi de porcão;

-A pintura do pajé é sempre de kururu(sapo).

Algumas destas regras se aplicavam a nós, como o estar acordado. Outras eram

adaptadas por eles. E é claro, no meu caso, que filmava o Sapurahai, algumas passagens

não podiam ser ignoradas, por exemplo, coube a mim, embora não tivesse dançando,

registrar todas as danças. Os Aikewára me explicaram que, já que eu havia começado,

teria que acompanhar, como se o registro, agora fizesse parte da festa. Este é um dado

muito importante, era preciso respeito às tradições, enquanto estive na aldeia, em todos

os momentos do Karuwara as filmagens aconteceram.

Um debate muito polêmico entre estas regras e as filmagens aconteceu em

relação às imagens da casa do Karuwara. Como vimos “As mulheres são proibidas de

entrar na casinha dos Karuwara, assim como as criancinhas”. Então, o que fazer com as

imagens de dentro da casa? No primeiro momento, eu e um grupo de Aikewára

queríamos colocar estas imagens na edição do documentário sobre a festa, mas a

professora Ivânia Neves, não concordava. Para ela se existe esta interdição nas regras é

porque não se deve mostrar, isto poderia interferir de forma negativa. O mistério do que

ocorre dentro da casa deve ser preservado, afinal isso faz parte das tradições.

Quando refleti sobre isto, realmente dei razão à professora. Este talvez seja um

ponto em que percebemos mais nitidamente as diferenças entre a lógica dos métodos de

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um recorte da antropologia, que eu, mesmo estudando alguns autores, não dominava por

completo e o método jornalístico, que tudo quer mostrar, pelo menos num primeiro

momento. Repito que este é um ponto muito importante neste processo de criação, o

efeito de mostrar as imagens de dentro da casa do Karuwara poderia ser muito danoso e

exigia uma reflexão maior.

Muito provavelmente, se uma equipe de documentaristas que não tivesse um

trajeto de pesquisa entre eles fosse filmar, as imagens seriam divulgadas, isto porque os

próprios Aikewára, insistiam que estas imagens deveriam ser mostradas. Eles só se

convenceram, quando umas imagens feitas por uma máquina fotográfica que havia na

aldeia começaram a circular entre as mulheres e um bebezinho ficou com medo do que

viu e toda vez que escutava a

música, caia no choro.

O principal argumento

deles era que queriam guardar tudo

para as futuras gerações. Mas,

depois do ocorrido, concordaram

em não colocar as imagens no

filme, embora tenham pedido uma

cópia das imagens brutas de dentro

da casa, que guardariam como

uma cópia interditada.

O Sapurahai acontecia duas

vezes por dia, e cada apresentação

durava por volta de 2 horas. Ele

começa com os homens e os

meninos se enfileirando na frente

da casa do karuwara, esta ordem é

por idade. Depois eles entram para

pegar seus cocas de ficam dentro

da casa, lá eles cantam aos

espíritos. Ao saírem formam os

círculos de dança já com a presença das mulheres. Alguns mais velhos jogam o fumo

nas mulheres, segundo eles para proteger das doenças. O Sapurahai começa parecido

como antes havia iniciado, mas agora com os homens indo deixas seus adereços dentro

da casa.

Imagem 31. Cena do Sapurahai Karuwara

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2.7 As novas tecnologias e a apropriação

A comunicação se tornou para nós questão de mediações mais do que

meios, questão de cultura e, portanto, não só de conhecimentos, mas

de re-conhecimento. Um reconhecimento que foi, de início, operação

de deslocamento metodológico para re-ver o processo inteiro da

comunicação a partir de seu outro lado, o da recepção, o das

resistências que aí têm seu lugar, o da apropriação a partir de seus

usos. Porém num segundo momento, tal reconhecimento está se

transformando, justamente para que aquele deslocamento não fique

em mera reação ou passageira mudança teórica, em reconhecimento

da história: reapropriação histórica do tempo da modernidade latino-

americana e seu descompasso encontrando uma brecha no embuste

lógico com que a homogeneização capitalista parece esgotar a

realidade do atua.

(Martín-Barbero)

As viagens do projeto, intensificaram a apropriação dos Aikewára por aquelas

tecnologias que eles já tinham entrado em contato e uso. Murué Suruí é neta de Arihêra,

e possui uma criatividade evidente para narrar histórias. A jovem Aikewára é profunda

conhecedora das Histórias dos Aikewára. Murué é casada com Tiapé Suruí e mãe de

Iwatinywwa. Murué, nesta época tinha 20 anos. Segundo Neves e Gouvêa, apud Suruí:

Seu nome significa uma fruta da floresta,que tem polpa doce e casca

dura. O que, de certa forma traduz a Murué...

Às vezes, tropeça encabulada diante da lente das filmadoras. Mas, é

bem segura em sua escrita, que fortemente reproduz com detalhes as

narrativas que os mais velhos contam, as história de seu povo, de sua

cultura.

Atualmente, Murué está conectada ao twwiter e, com seus textos,

colabora no do aikwara.blogspot.com. (2011:48)

Arihêra conta que desde que Murué era criança, sempre gostou das histórias de

seu povo, sempre faz pesquisas sobre as narrativas com os mais velhos. Sua

participação nas atividades do projeto foi muito importantes, pois Murué ao lado de seu

marido, apesar da juventude, são duas das principais lideranças entre os Aikewára.

Além do livro Murué, que falarei nas próximas páginas, ela também escreve para o

aikewara.blogspot.com. Além disto, também é co-roteirista do filme do Karuwara.

Murué se envolveu nas atividades do projeto desde o começo, ela sugeria

atividades o tempo todo, era uma das principais mediadoras entre nós e eles. O seus

conhecimentos sobre as narrativas ajudavam muito, e ela quase sempre acompanhava a

equipe durante as filmagens das narrativas. Nas gravações do caminho da Anta ela

estava ao nosso lado, e no Sapurahai Karuwara, Murué é quem narra o documentário,

numa fala que ela mesmo elaborou.

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Havia um computador parado na casona velha, Murué solicitou esta máquina

emprestada com o objetivo de escrever um livro, já que Ivânia Neves, ao perceber o

talento de Murué na escrita, pediu que escrevesse algumas histórias sobre os Aikewára.

Entusiasmada com esta possibilidade, Murué começou a dar um tratamento literário às

Narrativas contadas por sua avó Arihêra. As lideranças

Aikewára a apoiaram.

Durante meses entre nossas viagens à Sororó, Murué

escreveu histórias que ouvira sua vida inteira dos mais velhos.

Estes escritos deram origem ao livro “Histórias dos Índios

Aikewára”. À época ela cursava o ensino médio em Sororó, e

posteriormente iniciou sua graduação no terceiro grau

indígena. A escritora fez a seleção de seis histórias que são: A

origem da noite, Kunumy Way: o menino de rabo, o Caminho

Imagem 32. Murué e Iwatinywwa. Foto Vivian Nery.

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da Anta, o Urubu e por fim A Ywyratynga e o Mutun. Para Neves e Gouvêa apud Suruí:

As narrativas orais fazem parte da vida de todos os povos indígenas da

América. Entre os Aikewára, estas histórias também atravessam

gerações.

É através destas narrativas que eles explicam sua forma de

compreender o universo: como surgiram as estrelas, o nascimento do

povo Aikewára, a história do menino que nasceu com rabo, a vida dos

animais...

Mas, estas histórias vão além, bem além da palavra falada. Primeiro, é

preciso saber que nem todos conseguem contá-las... A narradora ou o

narrador tem que ser respeitado pelos Aikewára.(2011:2)

A produção deste livro é um dos aspectos mais significativos do projeto. Uma

escritora Aikewára escreveu suas histórias num livro didático destinado à escola

Aikewára. Ela não escondeu a emoção ao ver o livro editado, que além de suas

narrativas, contava com desenhos das crianças Aikewára. Embora não queria me

debruçar na análise deste livro neste momento, este processo é importante:

Aí tem como surgiu a noite, como o povo Aikewára surgiu depois do

dilúvio e tem também a história de uma criança que nasceu com rabo.

Tem a história da mulher grávida que o urubu raptou. São histórias

que eu desde criança venho ouvido com minha avó, ela sempre me

contava. Tem várias outras histórias, aí tem um pouco do que já ouvi.

Murué Suruí (Fundação Nazaré, diálogo aberto:2011)

2.7.1 A oficina de fotografia.

A oficina de fotografia, ministrada

pela bolsista do projeto Lariza Gouvêa,

também é um avanço nesta outra etapa, em

que começávamos a passar as produções do

projeto para os próprios Aikewára. Esta era

uma preocupação de nossa parte. Gouvêa

idealizou esta oficina para que os próprios

Aikewára revelassem o seu olhar sobre sua

cultura a partir da fotografia. Para ela era

mais legítimo que eles mesmos, realizassem

este trabalho. A foto ao lado retrata o foto

varal com as fotos realizadas durante a

oficina. As fotos foram impressas e cada

criança ficou com a sua foto.

Imagem 34: Oficina de fotografia

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Após esta oficina, a maioria das fotografias do projeto foi de autoria dos próprios

Aikewára. Gouvêa explica:

A cena parecia de qualquer pessoa se preparando para sair em uma

foto, se arrumando, ajeitando a roupa, querendo ficar bonito, mas no

caso dos índios Aikewára as roupas que faziam questão de vestir eram

suas pinturas corporais. No ato inverso de vestir, os índios despiram-

se para as lentes da máquina digital que eles próprios controlavam,

vestiam o que lhes dava orgulho, seus araraus, arco e

flecha...(2011:44)

A oficina foi estruturada para que todas as crianças pudessem aprender como

manusear a máquina fotográfica, que era de um modelo recente e digital, o que

facilitava muito o manuseio do equipamento. Os participantes foram divididos em

turnos e dias diferentes, com Gouvêa supervisionando o processo. As crianças

aprendiam a manusear e tinham um determinado tempo, por volta de 20 minutos para

um grupo de mais ou menos 5 crianças para registrar o que elas quisessem.

A imagem é de autoria de Takari Suruí. O menino que tinha 7 anos nesta época,

se revelou, um grande fotógrafo. O interessante nesta imagem o observar o ângulo de

cima para baixo, é a visão de uma criança. Fora isso há também a espontaneidade da

mulher de ser fotografada por alguém conhecido. Eles ficavam muito satisfeitos de

Imagem 35. Foto registrada durante a oficina de fotografia. Foto Takari Suruí

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observar as crianças registrando este momentos. Como Gouvêa (2011) esclarece, quem

melhor do que o Aikewára para fotografar o Aikewára. Muitas fotos só foram possíveis

porque foram feitas pelos próprios Suruí.

A próxima foto é um exemplo disto, de autoria de Risé Suruí, a foto foi

registrada no momento que Inemorol Suruí, irmã de Risé era pintada por Teassu Suruí

para o Sapurahai Karuwara. Não fosse a irmã a autora deste retrato, dificilmente ele

existiria, já que as meninas da idade dela, não costumavam se expor assim frente as

câmeras . Os Aikewára estavam começando a se apropriar da tecnologia em si, e esta

oficina, até o momento havia criado novas possibilidades do uso destes recursos.

Martín-Barbero (2004) conceberia este tipo de apropriação como uma “luta no terreno

adversário”. Os Aikewára viviam um momento de valorização de sua cultura, por todas

as atividades e do próprio envolvimento deles, os impactos nas tradições Aikewára eram

visíveis. Basta olhar como mudou entre os jovens a forma que eles queriam se ver

representados, e a posição que eles passaram a marcar.

Imagem 36. Pintura Aikewára. Foto Risé Suruí

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2.7.2 A ultima viagem

A imagem acima foi tirada durante a última viagem que fizemos a Terra

Indígena Sororó. As duas ultimas viagens do projeto não tiveram como objetivo a

produção de novos materiais, mas sim a entrega do que fora produzido. Nesta viagem

entregamos os DVDs dos filmes para todas as famílias alem de calendários e camisetas.

Embora nesta derradeira passagem, eu não participasse da entrega, já que fiquei

doente e praticamente não sai da casa de Arihêra, Lariza Gouvêa e Ivânia Neves me

relataram que assim que os filmes foram entregues, a aldeia ficou vazia, todos foram

para suas casas assistir. Apesar dos lançamentos já terem sido realizados em Sororó, foi

nessa viagem que cada família recebeu sua cópia.

Para eles havia tristeza com relação ao encerramento do projeto, mas também

uma felicidade por rever tudo o que foi feito e como a relação das crianças com a

cultura Aikewára havia mudado. Quando os filmes do projeto e a Rede Globo, com sua

reportagem produziram materiais em que os Aikewára puderam se reconhecer na TV, o

efeito foi extremante positivo. Houve uma verdadeira remexida na cultura daquela

sociedade. Depois de se verem, os Aikewára mais novos exibiram muita vontade

valorizar mais sua cultura, claro que não podemos deixar de lado todas as relações de

poder que atravessam estes movimentos. A mídia, a televisão, causa um encantamento,

e a TV Globo, a maior e com mais audiência emissora do país seduz muito, por todo o

Imagem 37. A coordenadora Ivânia Neves e a bolsista Lariza Gouvêa com as crianças do projeto.

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seu poder e alcance. Mas este processo não deixa de ser uma ação afirmativa da própria

cultura Aikewára.

A mídia que antes interferia de forma a mudar os hábitos da cultura tradicional

deste povo, agora faz exatamente o oposto, com a apropriação deles por ela. A cultura

Aikewára é valorizada com o surgir do “cinema Aikewára” ou da “TV Aikewára”. A

tradição indígena hibridizada com as novas tecnologias faz com que a cultura

tradicional conquiste novos espaços em outros meios de representações. Para Gregolin

(2007, 11):

Seria redutor entender que há apenas passividade diante do

agenciamento coletivo da subjetividade; pelo contrário, há pontos de

fuga, de resistência, de singularização. Não há, nos discursos da

mídia, apenas reprodução de modelos – ela também os reconstrói,

reformata, propõe novas identidades.

O grafismo Aikewára, que antes do projeto encontrava certa resistência de

alguns índios, após as filmagens foi eleito por eles como uma de suas maiores

expressões culturais. A forma preferida dos Aikewára aparecerem nas filmagens, são

pintados com grafismos. Quando nas filmagens trocam as roupas pelo grafismo, estão

afirmando a identidade Aikewára, marcando uma posição.

O índio Umassú Suruí, conta que o projeto chegou na hora certa, segundo ele as

crianças não queriam mais ser índio, mas quando se viram na tela, cantando, e pintadas,

alguma coisa mudou. “Isso foi bom, porque valorizou nossa cultura”, conta Umassú.

Imagem 38. Grafismo Aikewára. Cena do trailer dos filmes dos Aikewára.

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Para Arihêra, as filmagens foram muito importantes para o seu povo, ela fala que

suas histórias vão ficar registradas paras próximas gerações. “Se eu morrer, os netos de

meus netos vão poder saber da nossa cultura, por isso é que eu gosto dos filmes”. Ela

lamenta que não tenha registros de vídeo dos tempos antigos. Assim os mais novos não

puderam ver e ouvir o que falam os índios de outros tempos.

Sobre as sociedades que não utilizam a escrita como a nossa sociedade concebe,

como era o caso dos Aikewára antes do contato, Pierri Lévy (1999) reflete “A morte de

um velho é uma biblioteca em chamas”. Entre os Aikewára, ainda encontramos uma

geração anterior à letra ocidental, embora o grafismo seja uma história pintada no corpo,

e a forma como eles se expressam, é a partir de suas narrativas orais, que na verdade são

um processo de audiovisual, que envolve a palavras falada, mas também conta como os

gestos, com as onomatopeias. A mera transcrição mutila as narrativas, pois deixa de

lado a performance do narrador. Este é um dos motivos do sucesso dos filmes ao ajudar

uma cultura indígena a se afirmar. Além de preservar uma “biblioteca viva”, mostra-se

também a forma como ela se expressa. Talvez, o maior mérito do projeto tenha sido o

de melhorar o diálogo entre as gerações Aikewára, que a partir das produções,

mostraram um desejo por suas tradições.

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Capítulo III

Memória, identidade e mídia:

os Aikewára na imagem em movimento.

Mas, se se quiser manter aberta a relação entre a linguagem e o

visível, se se quiser falar não de encontro a, mas a partir de sua

incompatibilidade, de maneira que se permaneça o mais próximo

possível de uma e de outro, é preciso então pôr de parte os nomes

próprios e meter-se no infinito da tarefa. É, talvez, por intermédio

dessa linguagem nebulosa, anônima, sempre meticulosa e repetitiva,

porque demasiado ampla, que a pintura, pouco a pouco, acenderá suas

luzes

Michael Foucault

Os Aikewára mediaram novas identidades a partir das materialidades produzidas

pelo projeto. Havia uma memória discursiva (Courtine:1981) sobre o que é ser “índio”

ou mesmo o que é “ser” Aikewára. Esta memória se (re)atualiza na materialidade da

imagem. Do primeiro filme ao último, há uma construção/atualização de identidades

Aikewára. É importante retomar esta questão, neste momento, já que a

construção/atualização destas identidades vai continuar em fluxo, mesmo após o

encerramento do projeto. Quero retornar as imagens dos Aikewára antes do filme “A

Comida Aikewára” ser reproduzido em Sororó, e até antes do projeto, quando havia

imagens dos Aikewára vestidos com seus grafismos num período anterior a 2010.

A construção destas identidades, nestas batalhas de agendamentos e exclusões da

subjetividade nestas materialidades audiovisuais obedece a uma ordem discursiva

produzida historicamente, mas esta ordem não é absoluta. As brechas do discurso dão

pontos de fuga, dispersões antirrobotizadas a despeito de um organograma midiático,

que até então era apenas vertical.

As identidades são multifacetadas como concebe Gregolin (2008:88), não existe

uma identidade fixa, completa e envolta em si como um calvário ou uma virtude. Para

Foucault (2007), as identidades se apresentam como máscaras, uma paródia orquestrada

por relações de poder. A busca destas máscaras neste processo genealógico, Foucault

(2007) refletindo Nietzsche, concebe: “A genealogia é a história como um carnaval

organizado”. Há, portanto, uma pluralidade na questão identitária e com as sociedades

indígenas não é diferente:

Outro uso da história: a dissociação sistemática de nossa identidade. Pois esta

identidade, bastante fraca contudo, que nós tentamos assegurar e reunir sob

uma máscara, é apenas uma paródia: o plural a habita, almas inumeráveis

nela disputam; os sistemas se entrecruzam e se dominam uns aos outros.

Quando estudamos a história nos sentimos "felizes, ao contrário dos

metafísicos, de abrigar em si não uma alma imortal mas muitas almas

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mortais". E, em cada uma destas almas, a história não descobrirá uma

identidade esquecida, sempre pronta a renascer, mas um sistema complexo de

elementos múltiplos, distintos, e que nenhum poder de síntese

domina.(FOUCAULT:2007:35)

Perceber este sistema complexo de elementos múltiplos nas identidades

Aikewára é um exercício complexo. Muitos discursos são fixados nas relações de

sentido, que buscam estereótipos: o índio selvagem, ou então o bom selvagem

estabelecido pela literatura romântica, o índio antropofágico e até mesmo a perigosa

ideologia de homogenialização histórica que carrega o ser “índio”. Então, estes

estereótipos, exigiram dos Aikewára, estratégias de fuga e luta. Quando foram

contatados pela sociedade envolvente, os Aikewára tiveram suas práticas culturais

alteradas, e tiveram que incorporar, novos elementos como as roupas a sua cultura.

O que começara a surgir nestes vídeos, não era uma identidade Aikewára pura,

mas um novo lugar de luta e resistência, e este lugar é plural, várias novas identidades

apareceriam a partir dali, e isto não quer dizer que outras identidades foram excluídas.

Várias máscaras habitam um sujeito, algumas só esperando a festa certa para serem

usadas. Para Foucault:

A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes

de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em dissipá−la; ela não

pretende demarcar o território único de onde nós viemos, essa primeira pátria

à qual os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela pretende fazer

aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam. Essa função é o

contrário daquela que queria exercer, segundo as Considerações

Extemporâneas, a "história−antiquário".(2007:35)

A pesquisa com os povos indígenas, nesta perspectiva da história

genealogicamente dirigida, não deve procurar achar a raiz de uma identidade pura e

estereotipada de um “índio”. Ao contrário, deve dissipar estes conceitos em meio à

pluralidade e as descontinuidades históricas. Existe uma memória imagética na história

das identidades das sociedades indígenas, construída em boa parte através das

(re)produções dos filmes, documentários, reportagens. Mas acima disto existe uma

memória destes povos, com os Aikewára não é diferente. Várias histórias de tempos

descontínuos e plurais.

Alguns dos objetivos do projeto, creio eu, só foram alcançados, porque existia

uma memória no imaginário das crianças, uma construção do que era ser Aikewára.

Nossa imaginação não é só linguística, e sim audiovisual também. Entre os Aikewára,

que possuem uma cultura de narrativas orais performáticas, ao mesmo tempo em que se

integram aos filmes, jornais e novelas, a memória, pode ser entendida, porque não dizer,

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como espaço de criatividade e desejo,. Alguns aspectos desta memória já se

materializavam.

O menino Sari, por exemplo, queria ver representada a cultura Aikewára em

seus desenhos. Ele então pinta o índio guerreiro de história de mutum e ywrantynga. A

representação do índio traz um Aikewára em pleno seu porte e pintura corporal.

Grafismos como este seriam presenciados depois nos filmes que viriam a ser

produzidos. Mas, não existe só uma forma de pintar e nem de reconhecer este índio

Guerreiro. Umassú, revela que na época antes do contato, não havia pintura no rosto, e

que este procedimento é influência de outros povos indígenas.

Imagem 39. Guerreiro Aikewára. Desenho Sari Suruí.

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A própria cosmologia Aikewára revela esta pluralidade, os Karuwara, os

espíritos dos antepassados Aikewára, foram uma espécie de entidade plural. Assim

quando os Aikewára falam do Karuwara, eles estão falando de um passado de múltiplos

espíritos, então estas representações mudam, cada espírito teria sua própria máscara, sua

própria identidade. O próprio nome Aikewára, significa em português, “Nós” ou “A

gente”.

É evidente que não foi no projeto a primeira vez, desde o contato, que os

Aikewára fizeram um Sapurahai pintados. Mas esta não era uma imagem recorrente,

nem nas publicações da mídia, nem nas próprias fotos que eles nos mostraram durante

nossa estadia na Aldeia e segundo relatos deles, está não era uma prática muito

recorrente, se pintar para dançar. Este procedimento é necessário para traçar uma pista

dos caminhos de memória. Algumas crianças sequer sabiam, as músicas e os passos.

Imagem 40. Aikewára na em Sororó http://img.socioambiental.org/v/publico/aikewara/surui_6.jpg.html

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A imagem acima foi feita na década de 70 do século passado, e é uma das

imagens que está no site Povos Indígenas no Brasil. De autoria do antropólogo Roque

de B. Laraia, a foto retrata dois Aikewára pintados com grafismos, o adulto está pintado

com o “rastro do porcão”, nome deste grafismo em português, segundo os Aikewára:

O porcão, é uma das caças preferidas entre os Aikewára. Este animal é

muito importante na cultura deles. Durante o último Sapurahai

Karuwara, a mais importante festa espiritual Aikewára, os homens se

pitaram com o grafismo do “rastro do porcão”(Neves &

Corrêa:2011:29)

Alguns aspectos são muito interessantes nesta imagem, o primeiro diz respeito à

forma como o grafismo do rastro do porcão está representado, sensivelmente distinto da

maneira que os Aikewára se pintavam à época do projeto. Como podemos ver na

imagem a abaixo os traços mudam um pouco Enquanto na primeira, os traços são

horizontais, na segunda são verticais. Havia a memória deste grafismo, e houve sua

atualização, a cultura e a identidade não são inércia, mas sim movimento. Este grafismo

é muito representativo, estava também no desenho de Sari do Guerreiro Aikewára.

Imagem 41. Aikewára pintado. Foto Sari Suruí.

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A foto de Laraia, é a única foto antiga, do tempo próximo ao contato, dos

Aikewára pintados que encontramos em nossas pesquisas. Isto não quer dizer que não

existam outras, mas, este tipo de registro não é recorrente. A maioria das fotos que

encontramos antes à realização do projeto retratam os Aikewára vestidos como kamará.

Havia de certa forma uma interdição velada ao grafismo, já que esta prática era

conflituosa com a inserção deles entre a sociedade envolvente.

O grafismo está relacionado às práticas espirituais deste povo, as festas e as

guerras. Existe regra na utilização, alguns são destinados aos homens e outros à

mulheres. O grafismo está “cheio de sentidos” (Neves:2011:20) são práticas

discursivas, contam uma história. Segundo Corrêa e Neves (2011:13) “Cada pintura

possui seu significado e tem sua função”. Alguns grafismos só devem ser usados em

determinadas ocasiões, como as festas espirituais: “Existe também uma diferença entra

as pinturas femininas e as masculinas. Alguns grafismos são extremamente úteis na hora

de caçar”. Para Neves e Corrêa:

O grafismo Aikewára também é uma demonstração de afeto entre os

índios. As mães pintam os filhos, as mulheres os maridos, as irmãs se

pitam, até mesmo os amigos se pitam uns aos outros. Entre os

Aikewára há este sentimento de fraterno, que se faz presente também

no ato de pintar “o outro”. (2011)

E justamente, eram estas práticas que estavam em negociação aos sobreviventes

do contato sistemático, será que os sentidos da pele Aikewára eram conciliáveis aquele

tempo com instituições como a igreja e o exército? Esta foi uma memória que foi

silenciada por anos, mas que se reconfigurou. As relações de poder permitem a virada

ou a readequação do jogo.

Imagem 42. Aikewára na década de 1970 :fonte pibsocial

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Esta outra foto a imagem da página anterior, contemporânea à foto de Laraia, já

mostra uma imagem mais recorrente. Não quero dizer que em todo este tempo não

houve um Sapurahai em que todos estivessem pintados, embora os segundo os relatos

deles de que esta realmente era uma prática interditada, Umassú conta que eles pouco se

pintavam. Quero me deter neste momento na construção e na (re)construção destas

identidades a partir da imagem.

A imagem ao lado foi

retirada do filme “A comida

Aikewára”, as crianças

estavam fazendo o primeiro

Sapurahai. Neste momento a

forma como eles se

identificavam no filme era

com a roupa Kamará mais

bonita. Poucas crianças

sabiam, ou pelo menos

demonstravam saber cantar a música. E é claro, o filme ainda não tinha sido exibido

nem causado todos os impactos relatados no segundo capítulo.

Esta cena acima do filme Sapurahai, a mudança na forma como eles se

representaram. Podemos ver aqui, que eles já estão pintados com seus grafismos e estão

com alguns outros adereços. A partir daqui os Aikewára vão marcar esta nova posição

na imagem. Esta cena foi registrada poucos dias depois a exibição de “A Comida

Imagem 43. Cena do filme a Comida Aikewára

Imagem 44 . cena do filme Sapurahia

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Aikewára”. Esta Sapurahai foi idealização deles, e criou-se então, entre as crianças uma

tradição de cantar e dançar na história recente Aikewára. Segundo relatos de Murué

Suruí, até novas danças foram apresentadas e conduzidas pelos mais velhos, que

explicavam e orientavam tudo de perto. Esta festa foi criada exclusivamente para o

filme, e depois da exibição do primeiro filme, as crianças passavam por nós cantando.

Podemos notar ai já a presença do grafismo, mesmo que de forma tímida comparada

aos momentos seguintes. Estes efeitos de sentido produzidos pelos discursos

veiculados pelos filmes possibilitavam os Aikewára a construir, a vestir estas máscaras

de identidade antes interditadas veladamente. Afinal o projeto tinha como o objetivo

conciliar estas tradições com as novas tecnologias. E o cinema Aikewára estava

remexendo com duas coisas muito importantes: o desejo e a memória. O desejo pela

arte, talvez, eles seriam os protagonistas do filme. E a memória, a memória dos mais

velhos a reativar coisas que o tempo havia interrompido.

A foto acima marca um momento muito importante neste processo de construção

da imagem Aikewára. Este Sapurahai foi realizado no dia da visita de uma equipe da

Rede Globo a Sororó. O motivo da visita era justamente o projeto, que recebia o apoio

do Criança Esperança, um projeto da TV Globo. A reportagem seria exibida no Jornal

Nacional (JN), o principal telejornal da emissora e o de maior audiência do Brasil. Este

Sapurahai contou com muito mais integrantes do que o anterior. Eles se despiram para

as câmeras como nunca haviam feito e nem fariam mais. Talvez por causa do poder da

TV Globo, e como eles tinham a consciência desse poder de alcance, talvez quisessem

aparecer desta forma para o resto do Brasil. Foi o único Sapurahai em que as meninas

mais novas não usavam cobertura sobre os seios.

Aqui chegamos ao ponto máximo levando em conta o cima/baixo da projeção

dos Aikewára na Mídia, era o mais alto que se podia chegar, pelo menos em alcance no

Brasil. Em quase todas as materialidades da análise do trabalho a partir deste ponto, os

Imagem 45. Sapurahai. Foto Alda Costa

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Aikewára vão tomar como representação de sua identidade, esta imagem que se

fortaleceu a partir dos filmes criados por nós e por eles e da reportagem da Rede Globo.

Rosário Gregolin(2008) explica que as contribuições de J-J Courtine são

fundamentais neste processo de análise, pois propõe uma semiologia histórica. Esta

elaboração, segundo a autora foi proposta por Courtine nas análises do discurso político

e abordando as transformações, para Gregolin: “decorrentes do advento das técnicas

audiovisuais de comunicação, principalmente da televisão, que provocam a

“espetacularização da política”:

A semiologia histórica proposta por Courtine nos mostra que, por

movimentos de intereconicidade, as imagens travam um embate com a

memória, fazem deslizar a tradição e instauram outros sentidos: nessa tensão

dialética entre o dado e o novo as significações fulguram como um lampejo

que só pode ser apanhado na transitória aparição do acontecimento

discursivo. (GREGOLIN:2008:21)

Para Milanez:

a intericonicidade, levando em consideração o próprio corpo do

sujeito analista e as intervenções que sofre ao longo da história,

caracterizando posições ao mesmo tempo individuais e coletivas,

reflete ecos de nossa cultura, inscrevendo a imagem em uma série ao

aceitar participar do catálogo de memórias das imagens dos

indivíduos.(2011:257)

Articular as contribuição de semiologia histórica e interconicidade, mune as

analises de materialidades audiovisual de importantes ferramentas analíticas. Segundo

Courtine (2008:18), o investimento deve consistir em compreender “formas inéditas de

dominação que se elaboram neste momento de discursividades liquidas e em apreender

os efeitos, ao mesmo tempo políticos e psicológicos, sobre os sujeitos que somos”.

Sobre a intereconicidade Courtine explica:

Portanto, a noção de intericonicidade é uma noção complexa, porque

ela supõe a relação de uma imagem externa, mas também interna. As

imagens de lembranças, as imagens de memória, as imagens de

impressão visual armazenadas pelo indivíduo. Imagens que nos façam

ressurgir outras imagens, mesmo que essas imagens sejam apenas

vistas ou simplesmente imaginadas. O que me parece importante, é

que isso coloca a questão do corpo bem no centro da análise. (Coutine

apud Milanez 95: 2006)

Nesta pesquisa, analisar-se o funcionamento da intericonicidade na memória de

imagens forjada pelas produções midiáticas, verbais e não verbais sobre os Aikewára.

Para Courtine (2008:25) “Quando nos questionamos sobre o impacto do “quarto poder”,

sobre seus efeitos de massa, evocamos frequentemente sua potência eufórica da

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diversão”. Existe um fascínio quase mágico provocado pelas linguagens de vídeo, mas

alerta Courtine: “é chegado o tempo de analisar quais são seus constituintes necessários

e seu eco disfórico: o governo pelo medo. É chegado o tempo de resistirmos a este

governo”.

3.1 As produções de verdade e o combate na mídia. Os Aikewára:

estrelas de TV?

Algumas descontinuidades, repartições na história do presente Aikewára

precisam ser destrinchados com atenção. As produções midiáticas sobre eles no tempo

do projeto eram de conciliação, de valorização de sua cultura, mediadas por táticas bem

organizadas e por instituições ou aparelhos ideológicos dotados de estratégias muito

eficientes de produção de verdades; a televisão e a academia. Uma série de reportagens

exaltando a cultura e as histórias dos Aikewára foram produzidas, o que foi muito

importante pra eles em vários aspectos. Mas, o poder circula, funciona e não é de

propriedade nem mesmo dos aparelhos, o que não quer dizer que eles não o exerçam.

Existe uma pressão preenchida pelas relações de poder, que se constituem

historicamente, organizando estratégias de dominação, a fim de silenciar ou autorizar

discursos.

Daí a idéia de descrever estas dispersões; de pesquisar se entre esses

elementos, que seguramente não se organizam como um edifício

progressivamente dedutivo, nem como um livro sem medida que se

escreveria pouco a pouco através do tempo, nem como a obra de um

sujeito coletivo; não se poderia detectar uma regularidade: uma ordem

em seu aparecimento sucessivo, correlações em sua simultaneidade,

posições assinaláveis em um espaço comum, funcionamento

recíproco, transformações ligadas e hierarquizadas. Tal análise não

tentaria isolar, para descrever sua estrutura interna, pequenas ilhas de

coerência; não se disporia a suspeitar e trazer à luz os conflitos

latentes; mas estudaria forma de repartição. (FOUCAULT: 2005: 42)

A repartição, a história descontinua, é nas entrelinhas que as relações de poder

que produzem os efeitos de sentido e de verdade, vão encontrar seu espaço de diálogo e

luta. Há todo um esforço para visualizar um projeto maior, um poder mais sólido. A

mídia ou até mesmo os Aikewára como um prédio fixo ou sujeitos ligados por mesmas

convicções, unidos por um poder ou ideal comum. Mas o máximo que podemos fazer

nestas análises é enxergar através de uma névoa de discurso inteligíveis, de pequenos

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fragmentos e de suas táticas para produzir efeitos. É claro que existe uma aparente linha

de condução, mas subjetivação é curva, não reta.

...a construção identitária é a montagem de um quebra-cabeças cujo

desenho total não conhecemos e no qual faltam peças. Por isso, as

práticas discursivas de produção identitária são muito mais o trabalho

de um bricoleur, que constrói todo tipo de coisas com os materiais que

tem à mão. Se na fase sólida do capitalismo a identidade era erigida a

partir das idéias de Estado e de classe, vivemos hoje a fase líquida, na

qual todas as instituições perderam a força. Vivemos a “modernidade

líquida”, nossas identidades devem ser cambiantes pois a

inflexibilidade (em todos os aspectos da vida) é condenada, os

“projetos de vida sólidos” são abominados. (GREGOLIN:2008:

88/89)

Segundo relatos de Maria Suruí, os Aikewára, logo após a exibição da

reportagem do Jornal Nacional ficaram em êxtase, por motivos variados, por se

afirmarem diante do veiculo de comunicação de maior alcance do país, um pouco pela

fama talvez, por verem valorizado aspectos de sua cultura . As pessoas, segundo ela

gritavam pelos cantos da Terra Sororó. Os meninos e as meninas fizeram um Sapurahai

para comemorar a exibição. A matéria do JN

teve este efeito de produção de verdade, de um

povo Aikewára em pleno restabelecimento de

sua cultura, conciliando tudo em paz e

harmonia, seja como a floresta ou com a

modernidade. Esta não deixar de ser uma

verdade, ela por si só é uma necessária utopia

ao bem estar. Junto com ela, existem outras

verdades, tão utópicas e necessárias ao

equilíbrio das relações de poder. A mídia, e a

sua mediação é protagonista nestas relações:

Esse efeito de “história ao vivo” é produzido pela

instantaneidade da mídia, que interpela

incessantemente o leitor através de textos verbais e

não-verbais, compondo o movimento da história

presente por meio da ressignificação de imagens e

palavras enraizadas no passado. Rememoração e

esquecimento fazem derivar do passado a

interpretação contemporânea, pois determinadas

figuras estão constantemente sendo recolocadas em

circulação e permitem os movimentos

interpretativos, as retomadas de sentidos e seus

deslocamentos. Os efeitos identitários nascem dessa

movimentação dos sentidos.(Gregolin:2007:11)

Imagem 46. Os Aikewára no Jornal Nacional

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A reportagem dos Aikewára no JN começa com uma chamada dos âncoras

Willian Bonner e Fátima Bernardes falando dos 25 anos do Criança Esperança e dos

desafios do projeto Crianças Suruí-Aikewára. Logo após há uma sequência de imagens

que são acompanhas com a música Aikewára no fundo. A primeira delas é imagem

nº46. A reportagem começa sua narrativa dando o destaque aos mais velhos. É a voz

deles cantando que fica como a trilha dos primeiros segundos. Vários efeitos de sentido

sobre as tradições Aikewára começam a tomar corpo no discurso da matéria. Segundo

Gregolin (2007): “Tendo como ponto central a arquegenealogia de Michel Foucault, o

discurso é tomado como uma prática social, historicamente determinada, que constitui

os sujeitos e os objetos.”. A narração iniciava com o seguinte texto de Poliana Brito a

repórter:

A história da floresta na pele dos índios. O preto do jenipapo, o

vermelho do urucum, cada traço é herança para os mais novos.

“Minha mãe que me ensinou. Aí eu fui aprendendo, aprendendo e

ensinando pras outras”, disse Taraí, de 10

anos.(BRITO:JN:06/08/2011)

A menina Taraí Suruí que na Aldeia é mais conhecida como Talita, na hora de

se apresentar a repórter fez questão de marcar sua identidade Aikewára, nada de nome

Kamará. A intenção dos Suruí e da própria reportagem era incentivar as tradições,

histórias da floresta na pele Aikewára. As tradições passadas de geração para geração.

Discursos que circularam toda a reportagem e também alguns filmes do projeto.

Segundo Neves (2011:pág) “Taraí falava agora de uma outra posição e queria marcar

sua identidade indígena. Seu corpo estava vestido de jenipapo e urucum, bem diferente

dos modelos ocidentais que via na televisão...”

Imagem 47. Taraí no JN

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As passagens de uma cena para outra na reportagem, sempre procuravam

mesclar as imagens dos mais velhos, seguidos pelas crianças sempre reforçando a

passagem das tradições. Assim o texto continuava: “E eles retribuem os ensinamentos.

A pintura é a roupa mais bonita! A preparação para um dia de festa.”. Que efeitos de

sentido este enunciado provocou nos Aikewára, levando em consideração o local de

onde ele fala? A mídia, através deste meio fortíssimo que é TV Globo, estava

legitimando uma prática e por que não discursiva, outrora interditada, silenciada.

A cena da menina pintando o seu avó que surge simultânea com o enunciado “E

eles retribuem os ensinamentos”, causa certa comoção. Tudo está muito bem editado,

uma narrativa que só valoriza o desejo por essa cultura tão bonita, e mesmo o insensível

as causas indígenas tem grandes possibilidades de achar a cena aprazível. Aos Aikewára

mais velhos o Ethos da sabedoria de seus domínios, a consagração de uma geração de

mais de que sobreviventes; guardiões, mestres. “O conhecimento vira livro e a vida na

aldeia é transformada em filme, estrelas de TV.”

Imagem48. Cena do JN

Imagem 49. Cena do JN

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A marcante Sapurahai, na matéria do Jornal Nacional da TV Globo, teve uma

representação relativamente pequena. Mas ainda assim é forte como memória e como

identidade. A narrativa de um Sapurahai é muito difícil de conciliar com uma

reportagem, são formatos antagônicos, o Sapurahai, neste formato muito dificilmente

vai ir além de uma alegoria. O texto jornalístico de televisão trabalha em menor escala e

em menor tempo, não é uma que prática focalize o coletivo, sempre se busca a palavra

de uma personagem. De qualquer forma, um vídeo foi produzido pelo projeto,

contemplando este Sapurahai. O filme é esta disponível no site YouTube e é a

materialidade midiática mais acessada na Internet produzida sobre os Aikewára pelo

projeto. Este Sapurahai do dia em que a equipe do JN esteve em Sororó foi muito

representativo, segundo Neves:

Puxados por Arikassú, que exibia um belíssimo ararau, entraram os

homens dançando. Todos pintados de Sawara Pixum - Onça Preta. A

força da cultura Aikewára se materializava em seus corpos pintados,

no movimento que faziam com os maracás e principalmente, no

movimento dos pés...

Quando os Aikewára entraram na praça central da aldeia, tudo

parou.(2010)

Para Neves (2010:32) “Todos sabem bem o poder mítico da Rede Globo no

Brasil. E é muito importante que a matéria tenha traduzido nossa forma de pensar a

realidade das sociedades indígenas atualmente, sociedades que vivem nas fronteiras.” A

reportagem Do JN abriu novas possibilidades de negociação, deu visibilidade aos

conflitos das fronteira de identidade. Ele em si, é uma das produções de verdade. “Os

efeitos identitários nascem dessa movimentação dos sentidos.” Gregolin (2007). Esta

movimentação tem seus benefícios, não é só prejudicial, ela é as duas coisas se

alternando e coexistindo num constante choque de forças semelhantes, onde a diferença

entre o vencedor e o vencido é decidido muito mais pelo fluxo do funcionamento

inteligível do poder, do que por um projeto ou desejo de uma instituição ou mesmo de

um sujeito. A melhor estratégia deve prevalecer, mas como se vencer um luta que não

acaba e tem sua repartição flutuante. Para Foucault:

A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as

raízes de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em

dissipá−la; ela não pretende demarcar o território único de onde nós

viemos, essa primeira pátria à qual os metafísicos prometem que nós

retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as descontinuidades

que nos atravessam. (2007:34)

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A identidade segundo Foucault (2007) é uma máscara, uma paródia “o plural a

habita, almas inumeráveis nela disputam; os sistemas se entrecruzam e se dominam uns

aos outros”. Estes sistemas além dos evidentes conflitos são simultâneos, o que vai

definir qual máscara um sujeito vai usar ou vão lhe atribuir é uma posição flutuante na

história do presente. Outras vozes se erguem para colocar em combate a identidade

Aikewára na mídia. Para Gregolin:

Ao mesmo tempo, há uma tensa relação entre a mídia e seus leitores: a

subjetividade é fabricada e modelada no registro social, mas os

indivíduos vivem essa subjetividade tensivamente, reapropriando - se

dos componentes fabricados e produzindo a singularização, criando

outras maneiras de ser. Se só houvesse submissão, não haveria

produção de novos sentidos. Acontece que não há agenciamento

completo das subjetividades, mas um permanente entrelaçamento

móvel entre as forças de territorialização e as de desterritorialização,

ambas agindo e provocando contradições.(2007:

A mídia para o bem e para o mal é uma das principais peças deste jogo de

negociação. Como bem mostra o caso dos Aikewára, a mídia ocupou papéis muito

benéficos e outrora destrutivos. Se foi muito bom para a tradição Aikewára ver a rede

Globo mostrando um pouco de sua cultura no Jornal Nacional, durante muito tempo,

suas novelas causavam o efeito reverso, o fato de eles participarem de um projeto

apoiado pelo “Criança Esperança” gerou uma imagem positiva deles nas cidades

próximas.

3.2 Silenciamentos da televisão.

Uma das repercussões da reportagem está na fala de Maria Suruí, e partir do que

ela disse sobre a reportagem, nos fez perceber que os próprios Aikewára entendiam os

interesses midiáticos diante de sua cultura. Maria não nasceu Aikewára, é negra e não

apresenta traços indígenas, mas foi integrada ao grupo ainda muito nova, quando passou

a viver com Arikassu e com ele teve dez filhos. Ela foi responsável por manter viva a

tradição do grafismo corporal e é considerada por eles uma das grandes mães da aldeia.

No final da matéria, ela comentou: “Eu sabia que eles não iam me filmar. Se

fosse a equipe só do projeto eu apareceria, mas nesta televisão aí, tem que ser índio

puro!” Existe uma produção de discursos sobre os indígenas brasileiros que chega pelos

meios de comunicação massiva e pelas redes sociais e contribui para as formulações que

a sociedade brasileira faz sobre as identidades indígenas.

A fala de Maria Suruí deixa ver um dos fios desta memória discursiva que se

construiu no Brasil sobre as populações indígenas, a ideia de que existem “índios

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puros”. Outro indicio desde silenciamento, deve-se a exclusão de Hércules Suruí da

reportagem. O menino apesar de possuir o estereótipo indígena, não possui um nome

Aikewára. A jornalista Poliana Brito, insistiu comigo em saber um nome Aikewára, ela

contou o caso de Taraí, que também é chamada de Talita. No caso de Hércules, não

havia outro nome, ele foi entrevistado, mas na edição que foi ao ar não estava presente.

Suponho, que a falta de um nome indígena, tenha sido o motivo. Na imagem , podemos

a entrevista de Hércules, a única das entrevistas que não foi ao ar.

Outros aspectos de silenciamento estão presentes na reportagem, sobre tudo no

que diz respeito à hibridização Aikewára. A jornalista faz uma visita a uma casa

Aikewára e explora as conciliações que eles fizeram para se adaptar as casa de alvenaria

que o governo construiu em Sororó:

Fazer esse casamento entre as tradições indígenas e a modernidade

nem sempre é um desafio. Muitas vezes ele acontece naturalmente.

Olha que curioso: o governo deu casas de alvenaria para os índios.

Dentro delas eles têm televisão, freezer, eletrodomésticos. Mas, aos

poucos, foram levando palha e madeira e, ao atravessar uma porta, se

encontra uma antiga oca, onde eles passam a maior parte do tempo,

inclusive dormem e cozinham no fogão a lenha.(brito:2010)

Imagem 50. Foto Gilvandro Xavier

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Como vimos no primeiro capítulo, esta conciliação não foi nada simples, o

processo de hibridização Aikewára, foi causado por frentes de Fricção Interétnica. E

este processo foi violento, não pacífico, nem mesmo simples. Dentro de uma mesmo

reportagem, encontramos o poder funcionado, em suas relações de produção de verdade

nem sempre conciliadas.

A reportagem e assim como o projeto, foram financiados pela TV Globo, a

mesma emissora que ajudou na Modernização/colonização da região onde os Aikewára

vivem. Não existe uma bondade, nem uma maldade extrema na mídia, mas sim

interesses, relações de poder. Vejamos no caso apenas da reportagem, vários vozes

falam, ao mesmo tempo em que se propõe valorizar a cultura indígena, procura-se

valoriza-la a partir de um estereótipo de indígena puro, e talvez, se romantize um pouco

a história de guerra e de lutas deste povo.

O encerramento da matéria, retoma a valorização da cultura Aikewára, e cita os

problemas que os Aikewára passaram na história do contato. “A preocupação de

Arihêra e dos outros índios mais velhos da aldeia é não deixar que um passado triste

volte e se torne presente. Na década de 60, restavam poucos suruí aikewara”. Takes com

Imagem 51. Takes JN.

Imagem 52. Umassú no JN

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olhares apreensivos dos mais velhos e depois as crianças, fazer o plano de imagens

desta passagem. A reportagem termina com o seguinte enunciado: Um dos índios

enxerga nas crianças o futuro de seu povo e, diariamente, dá a mesma mensagem pra

todas elas: "Tem que ser aikewara com convicção".

Segundo Martin-Barbero (2007) “São procedimentos de controle, de exclusão,

de ritualização dos discursos que atravessam de parte a parte a comunicação maciça, os

dispositivos da massmidiação.”. Como vimos, apesar de novas negociações, alguns

aspectos da identidade indígena não são (re)avaliados pelos meios de comunicação, os

estereótipos, são em grande parte a imagem que interessa, mas o poder, como já dito

funciona. Os sentidos desta produção,foram muito profundos, um ponto de fuga, para

uma sociedade silenciada, segundo relatos deles mesmo, na mídia em outro momentos

históricos.

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Considerações finais

Eu quero que a neta da minha neta saiba as histórias da minha mãe.

Arihêra Suruí

O projeto chegou ao fim, e novos rumos da história recente Aikewára

começaram a tomar outros contornos. Os problemas por eles enfrentados continuam,

como queimadas em suas terras e a demarcação de área maior para Terra Sororó. A

nossa história entre eles chegou ao fim, por relações conflituosas com a nossa presença

na aldeia e o interesse obscuro, nebuloso de algumas instituições e algumas lideranças

Aikewára.

Não posso negar que os desafios enfrentados por nós forem penosos, doloridos,

para ambos os lados. Mas, suponho que o grande objetivo deste projeto, a despeito de

todos os problemas, foi alcançado. A conciliação, o diálogo, a mediação. As crianças e

os mais velhos puderam melhorar a relação com uma memória silenciada por um

processo histórico de violência, de guerra, e fazer uso de identidades que os colocaram

numa buscar por tradições adormecidas.

Mas, esta história, além de dolorida é também, bonita, delicada. Quando as

crianças se pintaram, reconheceram os desenhos no céu, marcaram uma posição de ser

Aikewára, todo o esforço foi justificado. Arihêra conta que ela não vai mais deixar de

contar as histórias, que isso é a sua cultura e que eles não podem perder isso. Arihêra

quer que a neta de Yatinhua, filha de Murué, saiba as histórias do antepassados.

Como vimos ao longo desta pesquisa, existem pontos de fuga, como diz Rosario

Gregolin na epígrafe que abre este trabalho. Os Aikewára deram seguimento nestas

produções, mesmo sem a nossa participação, e os materiais produzidos pelo projeto são

motivo de grande orgulho para eles, que os exibem sempre em suas viagens. O cinema

da casona, foi um movimento importante, que remexeu e subverteu estruturas na Terra

Sororó e alimentará lembranças dos Aikewára na busca conflituosa pelas mediações nas

fronteiras de identidade.

Umassú Suruí, conta que o projeto chegou na hora certa, segundo ele as crianças

não queriam mais ser índio, mas quando se viram na tela, cantando, e pintadas, alguma

coisa mudou. “Isso foi bom, porque valorizou nossa cultura, eu fico muito feliz em ver

as crianças se pintando, correndo. Agora que tem muita criança, é bom”.

Para Arihêra, as filmagens foram muito importantes para o seu povo, ela fala que

suas histórias vão ficar registradas paras próximas gerações. “Se eu morrer, os netos de

meus netos vão poder saber da nossa cultura, por isso é que eu gosto dos filmes”. Ela

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lamenta que não tenha registros de vídeo dos tempos antigos. Assim os mais novos não

puderam ver e ouvir o que falam os índios de outros tempos.

Contudo é preciso olhar com muito cuidado pra estes processos; primeiramente

existe uma pretensão por boa parte de pesquisadores, em achar que resgataram a “pura”

cultura indígena. Não houve resgate. Como poderia se resgatar o que não está perdido,

afinal são os pesquisadores que ensinam as sociedades indígenas a fazer o grafismo ou

outras expressões de sua cultura? A memória, as identidades estavam lá, spo esperando

as condições adequadas para se expressarem.

Houve sim, uma valorização das tradições Aikewára, mas não se pode

superestimar estes procedimentos. Trata-se de um processo de mediação/apropriação

muito valioso e importante na negociação entre os Aikewára e a sociedade nacional.

Quando analisa as sociedades tradicionais amazônicas Morkazel (2006) diz: “há

superposições visuais que se colam às imagens importadas que chegam veiculadas pela

televisão, frustrando qualquer pretensão de pureza cultural.” Ou seja, o próprio cinema

Aikewára, já traz em sua gênese estas imagens, embora ele tenha a pretensão de trazer

outras imagens, as memórias subterrâneas da floresta. De acordo com Sarlo (1997:121):

Sabemos então que, assim como não existe uma única cultura

legítima, em cuja cartilha todos devem aprender a mesma lição,

tampouco existe uma cultura popular tão sábia e poderosa que possa

ganhar todos os confrontos com a cultura de massa, fazendo com os

produtos da mídia uma colagem livre e orgulhosa, nela inscrevendo

seus próprios sentidos e apagando os sentidos e idéias dominantes na

comunicação de massa. Ninguém pode fazer uma operação tão a

contrapelo nas horas vagas, enquanto assiste à televisão.

É preciso reconhecer as relações de poder (Foucault: 2007), a recepção/mediação

não esta livre do poder. Existe uma enorme diferença estrutural entre as produções da

grande mídia e alguns filmes independentes. As culturas populares até se apropriam das

tecnologias da mídia, mas não há como ignorar a diferença de recursos e de alcance dos

grandes meios de comunicação. No entanto, na brecha do discurso é possível fazer

muita coisa.

Os Aikewára vão continuar seus processos de negociação, “caracterizados por

seus aspectos competitivos” (CARDOSO DE OLIVEIRA: 1996, 174). Esta é uma

constante e um acordo definitivo nunca vai chegar. Isto não quer dizer que tudo seja dor

e guerra e que conquistas e sorrisos não aconteçam, pois estamos falando de uma

sociedade humana. A história dos Aikewára é uma história latino-americana, brasileira,

amazônica. E como tal, não pode fugir de sua gênese, todos nós neste continente fomos

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forjados em histórias de lutas e guerras. Constantemente negociamos a nossa cultura,

que é resultado de imposições, mesmo nas grandes metrópoles.

Certos seguimentos da sociedade, parte da mídia inclusive contribui para que os

povos indígenas sejam só um. Para que os Aikewára sejam um só índio, uma só

identidade, de preferência selvagem, ou bom selvagem, mas sempre exótico, mas eles se

chamam de Aikewára: “Nós, A gente”. Mas, neste jogo de mediação entre eles e

sociedade envolvente, os Aikewára conseguiram a partir dos vídeos um novo meio de

negociar suas identidades, de valorizar sua cultura tradicional, que esta longe de ser

formada por elementos fixos, puros. Mas, sobretudo, eles conseguiram uma forma de

procurar outras formas de negociação entre eles.

A cultura e a identidade Aikewára, mesmo marcadas por estes conflitos, que

inclusive aconteceram entre eles e nós, são bem maiores do que as relações de contato

de Fricção. Retomando a primeira epígrafe novamente “Se só houvesse submissão, não

haveria produção de novos sentidos.” Encerro esta pesquisa, com a certeza de que

mesmo que em condições desiguais, é possível a produção de novos sentidos a partir de

estratégias de apropriação de recursos tecnológicos e midiáticos, para deixar que o

poder funcione na contramão da ordem estabelecida. Toda ordem é desigual e injusta

pode ser densa, pesada, mas ainda assim deformá-la, mesmo que apenas algumas parte é

possível.

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