View
397
Download
19
Category
Preview:
DESCRIPTION
A Opará Revista é uma publicação semestral em várias áreas do conhecimento do Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação – OPARÁ, situado no campus VIII – Paulo Afonso da Universidade do Estado da Bahia – UNEB.
Citation preview
ETNICIDADES, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
ANO 1, VOL. 2, JUL./DEZ. 2013
Opará
REVISTA DO CENTRO DE PESQUISAS EM ETNICIDADES, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
ISSN: 2317-9465
ETNICIDADES, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
OPARÁ - REVISTA CIENTÍFICA DO CENTRO DE PESQUISAS EM
ETNICIDADES, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
ANO 1, V.2,JUL ./DEZ. 2013.
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
REITOR: LOURISVALDO VALENTIM DA SILVA
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – DEDC VIII
DIRETOR: PROFº M.E DORIVAL PEREIRA OLIVEIRA
CENTRO DE PESQUISAS EM ETNICIDADES, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
COORDENADOR: PROFº M.E KÁRPIO MÁRCIO DE SIQUEIRA
COMITÊ EDITORIAL
DORISVAN DE LIRA OLIVEIRA
FLORIZA MARIA SENA FERNANDES
JAILMA MARIA DA SILVA
KÁRPIO MÁRCIO DE SIQUEIRA
MÁRCIO NICORY COSTA SOUZA
COMITÊ CIENTÍFICO-CULTURAL
PROFª DRª CARLA LIANE NASCIMENTO SANTOS - UNEB–CAMPUS I
PROFº M.E CARLOS ALBERTO BATISTA – UNEB CAMPUS II
PROFª DRª ELIANE DE SOUZA NOGUEIRA - UNEB–CAMPUS VIII
PROFª DRª ÉRIKA DOS SANTOS NUNES – UNEB CAMPUS VIII
PROFºDRº JOSÉ AUGUSTO LARANJEIRAS – UNEB–CAMPUS I
PROFº DRº JURACY MARQUES – UNEB- CAMPUS II
PROFª DRª LÍDIA MARIA PIRES SOARES CARDEL – UFBA
PROFª DRª MARIA ANÓRIA DE JESUS OLIVEIRA – UNEB - CAMPUS II
PROFª DRª MARIA CLEONICE DE SOUZA VERGNE– UNEB/FASETE
PROFº M.E MARCELO POLITANO - UNEB
PROFº DRº MARCOS LUCIANO MESSEDER - UNEB
PROFº DRº SÉRGIO L. MALTA DE AZEVEDO – UFCG/FASETE
PROFª DRª VANUSA SOUSA ALMEIDA – UEFS
ALZENI TOMÁZ -NECTAS/UNEB
EDVALDA LINS AROUCHA– AGENDHA
MAURÍCIO LINS AROUCHA – AGENDHA
OSWALDO DE CAMARGO – JORNALISTA E COORDENADOR DE LITERATURA DO MUSEU AFRO-BRASIL
EDITORAÇÃO
COMITÊ EDITORIAL
MONITORES
CAMILA GABRIELLE DA SILVA
JÉSSICA NAYARA ANDRADE DOS SANTOS
MILENA ANDRADE DOS SANTOS
PAOLA DE MORI
SANTIAGO MOZART
COLABORAÇÃO
PROFª M.A JAILMA MARIA DA SILVA
PROFº M.E KÁRPIO MÁRCIO DE SIQUEIRA
PROFº M.E MÁRCIO NICORY COSTA SOUZA
PROFº DRº SÉRGIO GONÇALVES RAMALHO
CRÉDITOS DA FOTO DE CAPA:
JOÃO ZINCLAR (1957-2013)
Sobre a Revista
OPARÁ: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação é um periódico, em
formato eletrônico, voltado à publicização de artigos científicos e pesquisas em variadas
áreas do conhecimento (tais como: História, Educação, Sociologia, Ciência Política,
Antropologia, Geografia Humana e Cultural, Direito, Ecologia Humana, Letras, Pedagogia),
bem como a divulgação de produções culturais. Tem como objetivo a elaboração de edições
temáticas visando contribuir com análises e estudos nas áreas de educação, cultura, política,
dinâmicas sociais, ecologia, etnicidades, movimentos sociais etc.
Política da Revista
A Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação é uma publicação semestral em
várias áreas do conhecimento (tais como: História, Educação, Sociologia, Ciência Política,
Antropologia, Geografia Humana e Cultura, Direito, Ecologia Humana, Letras, Pedagogia),
do Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação – Opará, situado no
campus VIII – Paulo Afonso da Universidade do Estado da Bahia – UNEB.
Aberta ao debate científico, a Opará:Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação é um
veículo plural de divulgação dos resultados de pesquisas científicas em diversas áreas do
saber. Publica, preferencialmente em português, artigos originais, resenhas críticas, crônicas
e outras produções culturais.
Serão bem-vindas todas as contribuições e colaborações versadas nas diversas disciplinas das
Humanidades, bem como as produções artístico-culturais, sejam sob a forma de resultados
de pesquisas teóricas ou empíricas ou estudos, ensaios, investigações-reflexões históricas
e/ou filosóficas.
A responsabilidade sobre as afirmações e conceitos apresentados nos textos assinados é dos
seus autores.
Comitê Editorial
Editorial No mundo contemporâneo a realidade e o cotidiano tornam-se cada vez mais reféns da
mídia, de sua espetacularização e capacidade de produzir o isolamento e a introspecção das
pessoas e de seus sentidos de existência, simplificando e esvaziando os conteúdos da
realidade. Neste cenário, dominado pela ciência e pela técnica, o passado e o futuro parecem
desaparecer frequentemente, cedendo lugar para a sedução do imediatismo, do aqui e do
agora, de um presente eterno e sem memória quando em muitos casos os acontecimentos
parecem anular o pensamento. Há uma certa acomodação e rejeição velada e consciente do
ato de pensar. Nesse contexto, como escrever criticamente de forma tradicional no papel
impresso? Como ter a ousadia de manter uma revista na chamada “periferia” do fazer
cientifico? E o sertão produz ciência? Sem querer a vitimização como forma de identidade,
ainda prevalece uma certa construção histórica do sertão como lugar nenhum e sem vida,
visão que vem se rompendo de dentro pra fora e de fora para dentro. Se a tecnociência
desumaniza os processos e a ação isola os sujeitos no vazio da máquina, teremos leitores para
este tipo de comunicação? Mais perguntas do que pretensas respostas.
A tecnologia e seus avanços configuram o cotidiano de parcelas significativas da população.
Contudo, tem gente que ainda não está conectado nem com o ato de ler e escrever, mas
consegue entender o mundo com outras linguagens, sentidos e significados. A revista Opará
continua neste circuito da teimosia criativa da alma humana que não se nega ao novo,
entretanto, não despreza velozmente os saberes, as construções reais e populares de produzir,
problematizar as formas de conhecimento. Textos, frutos da experiência de pesquisadores,
educadores e educadoras, a 2ª edição da Revista Opará vem confirmar que, apesar do
pretenso vazio mediático, ainda persistem os sujeitos da historia, cujos sonhos e
pensamentos, encarnados no sertão, falam do povo, de classes, de resistência, de educação
contextualizada, de tecnologia, saberes e conhecimentos tradicionais e populares. Sem
saudosismo romântico, ufanismo endeusador dos modernos produtos informacionais, a
revista segue do sertão, do litoral, com seus limites, mas com o anúncio que a vida de grupos
tradicionais e considerados minoritários e suas lutas não podem ser esvaziados e
desqualificados pela comunicação mercadológica. A revista revela uma postura política de
governança científica e popular da comunicação. Ela é um valioso e amoroso esforço de
socializar o conhecimento construído e alimentado pela sociedade. Tudo tem sua trajetória e
memória.Nada de fatalismo, do acaso. Apesar de um certo pragmatismo, os sonhos humanos
ainda alimentam e pulsam com luz discreta do sol e da lua, e estes refletem os mistérios e
encantos das águas do rio e do povo que alimenta a esperança encarnada nas ações as quais
suavemente pemeiam a brisa, o quão misteriosamente anuncia o novo que teima em nascer.
Dorival Pereira Oliveira Diretor do Departamento de Educação de Paulo Afonso – BAHIA – campus VIII
Apresentação
É com grande satisfação que lançamos o volume 2 da Opará. Depois de muitas submissões e de
um laborioso esforço da equipe de seleção, revisão e editoração, apresentamos a todos os
interessados o resultado deste trabalho sob a forma de uma compilação de artigos. As contribuições
são diversas, como no primeiro volume, versando sobre variadas temáticas: literatura negra,
letramento e alfabetização, ensino e aprendizagem, formação docente, economia solidária,
movimentos sociais e religiosidade, sociologia/antropologia rural e urbana etc.
Assim, escrevendo sobre o poeta Cruz e Souza, os autores Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza
de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira, em trabalho intitulado Cruz e Souza: o negro como
sujeito encurralado – um diálogo de resistência em ‘emparedado’, propõem uma análise
de parte da obra desse poeta, procurando elucidar suas concepções e discursos de resistência e
autoafirmação dos afro-brasileiros.
Analisando uma canção de MV BILL, o artigo de autoria de Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo
Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira, Resistência negra em A voz do Excluído de MV
Bill: o hip hop na cultura brasileira, procura mostrar, a partir de um esboço sobre a difusão
do negro no espaço social brasileiro, que os discursos presentes nos raps brasileiros estão
associados a questões históricas e sociais.
Em seguida, apresentamos neste volume também uma contribuição de Sérgio Gonçalves Ramalho,
intitulado Alfabetização e letramento: (re)descobrindo conceitos, que tem a intenção de
tecer breves considerações, a partir da discussão dos conceitos de alfabetização e letramento, sobre
a importância destes para o ensino-aprendizagem.
Somam-se também os artigos de Natalina Assis de Carvalho, Narrativas de professores
rurais: trajetórias e fazer pedagógico no município de Baixa Grande Bahia, e de Edilma
Cavalcante Santos Menezes e Clécia Simone Gonçalves Rosa Pacheco, intitulado A arte de
educar as crianças do povo Entre Serras Pankararu: uma discussão no ensino e
aprendizagem. Aquele, como recorte de pesquisa, apresenta uma discussão sobre a profissão
docente em espaços rurais, destacando a questão da formação de professores e suas práticas
pedagógicas; o segundo, a partir de uma investigação de cunho exploratório e qualitativo sobre o
povo Entre Serras Pankararu, tem como objetivo apresentar o modo de ensinar e aprender das
crianças indígenas, a importância dos conhecimentos tradicionais e o reconhecimento identitário
associado a estes.
O artigo Do singular ao plural: indicadores de sustentabilidade na economia solidária,
da autoria de Vinícius Gonçalves dos Santos, João Matos Filho, Marilia Medeiros de Araujo,
Débora Chaves Meirelles e José Aldenir da Silva, a partir de uma análise bibliográfica, procura
propor parâmetros de compreensão da dinâmica da sustentabilidade na economia solidária.
No âmbito das discussões realizadas pela Sociologia/Antropologia rural e urbana, apresentamos os
artigos de Márcio Nicory Costa Souza, Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à
reflexão sobre a condição urbana, e o de autoria de Floriza Maria Sena Fernandes,
Memória, fé e movimentos sociais em Canudos. O primeiro tece considerações sobre a
cidade e o urbano, a partir de análise da obra de João do Rio, “A alma encantadora das ruas”, e de
um aporte teórico sobre as urbanidades. O segundo apresenta uma breve análise do catolicismo
popular vivenciado em Canudos, antes e depois da experiência de Belo Monte de Antônio
Conselheiro na segunda metade do século XIX.
Na interface da História e da Sociologia do trabalho, completa esta discussão sobre as experiências
no/do urbano, discutindo a categoria “vendedor ambulante”, o trabalho de Pablo Mateus dos
Santos Jacinto e Carla Liane do Nascimento dos Santos, Contribuição histórica para a
representação social da categoria dos vendedores ambulantes pela população de
Salvador.
Encerram este volume os trabalhos de Geórgia de Castro Machado Ferreira, Uma abordagem do
rastafarismo nos moldes da psicologia social, e o de Joelma Boaventura da Silva Bomfim,
Casamento realizado em terreiro de Candomblé. Aquele tem como objetivo uma análise
sobre movimento urdido nas favelas de Kingston, Jamaica, o rastafarismo, a partir dos discursos
veiculados nas letras de Reggae; o segundo, procura discutir o reconhecimento dos efeitos civis do
casamento realizado em cerimônias de Umbanda e Candomblé.
Neste volume, renovamos os votos de boas leituras, reiterando o quanto estes artigos refletem
diversidade e o quanto esta diversidade se amalgama nos esforços do trabalho coletivo aqui
materializado.
Comitê Editorial.
Sumário Sobre a revista / Política da Revista 3
Editorial 4
Apresentação 5
Artigos: 1 Cruz e Souza: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em ‘emparedado’ Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira
9
2 Resistência negra em ‘A voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira’ Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira
25
3 Alfabetização e letramento: (re)descobrindo conceitos Sérgio Gonçalves Ramalho
39
4 Yêda Pessoa de Castro e a sua contribuição para a inclusão dos estudos africanos nos currículos escolares da Bahia: a experiência da década 1980. Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana 5 Narrativas de professores rurais: trajetórias e fazer pedagógico no município de Baixa Grande Bahia Natalina Assis de Carvalho
51 71
6 A arte de educar as crianças do povo Entre Serras Pankararu: uma discussão no ensino e aprendizagem Edilma Cavalcante Santos Menezes e Clécia Simone Gonçalves Rosa Pacheco
80
7 Do singular ao plural: indicadores de sustentabilidade na economia solidária Débora Chaves Meirelles, João Matos Filho, José Aldenir da Silva, Marilia Medeiros de Araujo e Vinícius Gonçalves dos Santos 8 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana Márcio Nicory Costa Souza 9 Memória, fé e movimentos sociais em Canudos Floriza Maria Sena Fernandes 10 Contribuição histórica para a representação social da categoria dos vendedores ambulantes pela população de Salvador Pablo Mateus dos Santos Jacinto e Carla Liane do Nascimento dos Santos
96 108 124 140
11 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social Geórgia de Castro Machado Ferreira 13 Casamento realizado em terreiro de Candomblé Joelma Boaventura da Silva Bomfim Normas para submissão na Opará
150 170 184
CRUZ E SOUSA: O NEGRO COMO SUJEITO
ENCURRALADO – UM DIÁLOGO DE
RESISTÊNCIA EM “EMPAREDADO”
Arlete Miranda Amancio1
Joanna Souza de Miranda2
Kárpio Márcio de Siqueira3
RESUMO Essa tessitura tem por intuito elucidar concepções acerca do poeta Cruz e Sousa e seu discurso de resistência em ―Emparedado‖, última parte do livro Evocações (publicado em 1898), que adentra em seu poema em prosa o discurso pioneiro de autoafirmação e/ou resistência às agruras sofridas pelos afro-brasileiros. Pretendeu-se, ainda, realçar que o autor negro abriu mão de seu discurso individual para exteriorizar um discurso coletivo, além de enfatizar que o poeta utilizou-se de um discurso de defesa do grupo, ao qual pertenceu, abalando o mascaramento de uma identidade una e coesa. Para tanto, o trabalho perpassou por estudo historiográfico/literário para revelar uma sociedade omissa que, durante séculos, tentou apagar e/ou desqualificar as múltiplas vozes oriundas das margens do tecido social. E, em sua consequência, mantém-se, com a teoria do branqueamento intacta, a cortina de silêncio que cala as vozes manifestantes e/ou reveladoras da outorgação dos direitos dessa cultura racial. Neste sentido, nosso trabalho se pautou, inicialmente, por um levantamento bibliográfico, através de um olhar literário, seguido pela análise do poema em prosa ―Emparedado‖. Para tanto, foram utilizados, como base teórica, trabalhos conceituais sobre identidade negra e literatura afro-brasileira, sob a luz dos estudos de: Cuti (2009; 2010), para fazer um percurso da literatura negra no Brasil, pelas teorias do branqueamento e pelo discurso de resistência dos afrodescendentes; Cesco(2011), que traz importante análise do poema ―Emparedado‖; Fonseca (2002), por fazer relação entre literatura e raça na obra de Cruz e Sousa; Souza (2004), por tratar de espaços de divulgação e expansão da literatura produzida por negros e Correia (2010), que teoriza sobre subalternidade e (in) visibilidade do homem negro. Dentre outros teóricos que nos ajudaram a compor esse artigo. Desse modo, através desses estudos, pudemos comprovar que o poeta se apropriou de suas vivências individuais para produzir um discurso de luta coletiva em prol dos afrodescendentes, tornando, por conseguinte, seu poema em obra singular e instrumento de desmascaramento do preconceito velado da sociedade elitista. Palavras-chave: Literatura afro-brasileira. Cruz e Sousa. ―Emparedado‖. Vozes de resistência. ABSTRACT This contexture is meant to elucidate conceptions of the poet Cruz e Sousa and his discourse of resistance in "walled" Evocations last part of the book (published in 1898), which enters in his prose poem speech pioneer of self-affirmation and / or resistance to the hardships suffered by African-Brazilian. It was intended to also highlight that the author gave up his black individual speech to externalize a collective discourse, and emphasize that the poet used the discourse of defense of the group to which he belonged shaking masking the identity of a united and cohesive. Therefore, the work
1 Graduanda do Curso de Letras Vernáculas, participante do grupo de pesquisa ‘Literatura e Diversidade
Cultural: imaginário, linguagens e imagens’ – liderado pela Professora Andréa do N. Mascarenhas Silva –
UNEB/Campus XXII, e cadastrado no CNPq. 2 Graduanda do curso de Letras Vernáculas.
3 Professor da UNEB, Coordenador do Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação –
OPARÁ, Mestrado em Crítica Cultural, pela UNEB. Graduação em Letras com Inglês, pela Faculdade de
Formação de Professores de Arcoverde.
10 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
pervaded by historiographical study / literature to reveal a silent society that for centuries tried to delete and / or disqualify multiple voices coming from the margins of the social. And in its consequence, keeps up with the theory of bleaching intact the curtain of silence that silences the voices protesters and / or revealing the outorgação rights that racial culture. In this sense, our work is guided initially by a literature through a literary look, followed by analysis of the prose poem "bricked". So, were used as theoretical base conceptual works about black identity and African-Brazilian literature, in light of studies: Cuti, (2009, 2010), to make a journey of dark literature in Brazil, the theories and the bleaching discourse of resistance of African descent; Cesco (2011), which brings important analysis of the poem "bricked"; Fonseca (2002), by making race relationship between literature and the work of Cruz e Sousa, Souza (2004), for dealing with spaces expansion and dissemination of literature produced by black and Correia (2010), which theorizes about subalternity and (in) visibility of the black man, among other theorists who have helped us make this article . Thus, through these studies we can prove that the poet has appropriated their individual experiences to produce a discourse of collective struggle in favor of African descent, making therefore work in his poem and natural tool for unmasking of prejudice veiled elitist society. Keywords: African-Brazilian Literature. Cruz e Sousa.―Immured‖.Voices of resistance. INTRODUÇÃO
Assim como a fronteira compartilha um lado e outro, o processo indiviso da vida inclui tanto a situação de estar confinado quanto a de estar ultrapassando o confim (Georg Simmel)
Esse trabalho tem como intuito
analisar uma temática bastante polêmica da
literatura brasileira: os afro-brasileiros e seu
discurso de resistência e/ou enfrentamento à
sociedade ―brancocêntrica4‖ que sempre
estiveram presentes em nossa literatura, mas
sem gozar de visibilidade.
A análise tem como corpus o poema
em prosa ―Emparedado‖, publicado em 1898,
poema que compõe o livro Evocações, de Cruz
e Sousa. Este, com seu discurso pioneiro pelos
ideais libertários de seus descendentes, se
configura como personagem responsável pela
formação do paradigma atual, validando o
espaço e a identidade social, racial e cultural do
discurso pós-moderno. Vale enfatizar que tudo
isso acontece num espaço sem saídas, onde o
―poeta‖ e o ―eu-lírico‖ ―encontram-se presos
entre quatro paredes, emparedados dentro dos
4 Cf. conceito expresso por Cuti (2010).
seus sonhos‖ (CESCO, 2011, p. 2 - grifos
nossos).
Dessa maneira, faz-se saber: João da
Cruz e Sousa nasceu na cidade de Desterro,
atual Florianópolis, no estado de Santa
Catarina, em 24 de novembro de 1862, era
filho de ex-escravos, mas por ter vivido sobre a
proteção dos antigos proprietários de seus pais
(os quais demonstravam-lhe apreço), acabou
tendo uma educação de qualidade, no entanto,
Cruz e Sousa sofreu diversos preconceitos por
ser negro, mas esse fato não o fez desistir de
seus ideais e seus desejos pessoais e
profissionais. Veio a falecer em Sítio, uma vila
do interior do Estado de Minas Gerais, em 19
de março de 1898 (VILARINHO, 2012).
Nesse sentido, pretende-se ratificar que
no poema ouve-se o grito de libertação que
surge, não da voz de um branco que fala do
negro e se coloca como o libertário dos
afrodescendentes, mas, sim, de um negro que
abre mão de seu discurso individual para
exteriorizar um discurso coletivo. Assim, no
âmbito poético e ficcional, o poeta explora e
expõe sua consciência do trauma coletivo e de
suas consequências na vida cotidiana.
Com base na transformação da literatura
como objeto simbólico de luta dos grupos de
minoria, que visa legitimar uma mescla entre
11 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
as culturas África-Brasil, analisaremos nosso
corpus escolhido, bem como os recursos
utilizados pelo poeta para, através de seu
discurso individual, outorgar o discurso social,
colocando a ―mãe‖ África como berço da
formação do povo brasileiro, mas que teve sua
identidade subjugada com a teoria de
inferioridade das raças.
O que nos levou a debruçar sobre essa
temática foi a priori a afinidade com o tema e
por nos possibilitar adentrar as zonas de
contato de raças, cultura e sociedade,
intimamente vinculadas ao contexto de África-
Brasil que penetra nos discursos atuais, para
visibilizar uma cultura há tempos silenciada e
desprestigiada pela cultura europeia. Além
disso, nosso interesse com o tema foi
despertado ao longo do componente curricular
―Literatura Afro-Brasileira5‖.
A importância desse trabalho se dá em
podermos mostrar como ocorreu a luta dos
grupos afrodescendentes pela legitimação de
seus direitos, os quais utilizaram para
viabilizar através da força de expressão que é a
literatura. Não obstante, o Campus não possuir
muitos trabalhos voltados para a temática,
sobretudo, sobre nosso grande poeta
simbolista Cruz e Sousa, podendo, então, ser
usado como referência bibliográfica para
futuros trabalhos.
O procedimento metodológico utilizado
foi o levantamento de obras que tratassem da
vertente literária denominada literatura afro-
brasileira. Nesse caso, a pesquisa bibliográfica
consiste basicamente na ―recuperação dos
dados impressos (‗de papel‘) ou dos arquivos
eletrônicos (‗bits de informação‘)
desenvolvendo uma investigação científica,
5 Disciplina presente na grade curricular do curso de Letras Vernáculas, ministrada pelo professor Ms.: Orlando Freire
Júnior, o qual agradecemos pelo compromisso e entusiasmo
com que ministrou essa disciplina.
desde a preparação à execução do trabalho‖
(KOCHE, 1997, p. 48).
Seguida da escolha e análise do poema
em prosa Emparedado disponível no livro
Evocações, bem como o levantamento
bibliográfico que nos auxiliaram em tal análise.
Para tanto,ao longo desse artigo utilizaremos
os estudos realizados pelos críticos literários
Cuti (2009), que nos servirão como um tripé
para mostrar o percurso do negro na literatura
brasileira, enfatizando que as obras literárias
que surgiram no Brasil com a temática do
negro, estão intimamente ligadas à política e ao
contexto de produção em que foram criadas.
Ainda na visão de Cuti(2010), o negro é
retratado como desonesto e, principalmente
submisso ao poderio do branco – bom e justo –
, ou quando se refere à mulher negra, essa é
tratada como objeto sexual que serve apenas
para agradar e satisfazer as necessidades
sexuais dos brancos. Assinalando,
consequentemente, a invisibilidade do negro,
não somente na literatura, mas também nos
espaços elitistas da sociedade.
Correia (2010) com a leitura sobre as
vozes e subalternidade do afro-brasileiro no
poema e a reafirmação da África como espaço
de riqueza cultural e, com isso, o negro se
firma como sujeito de seu próprio discurso.
Souza (2004) dialoga sobre as brigas
travadas pelos grupos de minoria para garantir
representações nas diversas esferas da
sociedade, frente as suas manifestações
discursivas sobre: ―cultura, arte, comunicação
e identidade‖ e, sobretudo, nos espaços para
divulgação de suas produções literárias. Dentre
outros, que passearão pela composição desse
trabalho.
O estudo está estruturado em três
partes. A Parte I, literatura afro-brasileira –
um discurso de resistência trará à baila a
trajetória do afrodescendente nos espaços
12 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
sociais e literários, bem como um breve
contexto histórico sobre a escola literária na
qual o poema está imerso. A Parte II,
emparedado: a ambiência da história -galgará
sobre análise do título do poema em estudo,
bem como a relação existente entre o poema e
o autor, representado alegoricamente pelo
título da obra. A Parte III, Eu-poético e eu-
lírico – um sujeito emparedado - tratará da
África como cenário de reconstrução de um
imaginário estereotipado, traçando uma
relação entre artista e obra como faces da
mesma moeda. E a não aceitação de um
afrodescendente como artista e homem, por
ser filho da África escravizada.
1.Literatura afro-brasileira – um
discurso de resistência
Perdido o lugar de origem, o lugar de produção de sua palavra também é transferido: o outro, o branco, tem o domínio do lugar de produção linguística. E esse poder significa transformar a palavra africana não só no silêncio, mas na ausência da palavra, da palavra enquanto criação ideológica (MOYSÉS, 1998, p. 97).
Ancorado nesse discurso de Moysés
(Ibidem), faz-se importante incutir nessa
tessitura o processo de produção e divulgação
da cultura negra, enquanto instrumento de (re)
definição da identidade brasileira
estigmatizada; da relação de poder desses
grupos de minorias, e como estes são ou
passaram a ser vistos pelos intelectuais no
mundo acadêmico. Tematizando, ainda, a
memória afrodescendente em suas produções e
trazendo à tona a memória de uma cultura
invisibilizada, apagada e/ou desprestigiada
pela história oficial brasileira das escritas de
cultura branca.
A presença das vozes do negro na
literatura brasileira não escapa ao tratamento
marginalizado que, desde sua gênese, marca a
etnia no processo de construção da nossa
sociedade (PROENÇA FILHO, 2004). No
entanto, essa voz silenciada vem ao longo do
tempo buscando as mais diversas formas e
alternativas para sair dessa (in) visibilidade
clandestina. Ao passo que se faz ouvida –
rasgando o véu da submissão – vai, também,
saindo dos calabouços da dominação e
exclusão. Nesse sentido, evidenciam-se na
trajetória do discurso literário dois
posicionamentos: o negro tratado como objeto
– resultando em sua invisibilidade –, e o negro
como sujeito – que causa o embranquecimento
–. Trajetórias essas, legitimadas pelo reflexo da
sociedade ―brancocêntrica‖ (CORREIA, 2010).
A Literatura Afro-Brasileira foi moldada,
desde seu princípio, sobre o olhar sistemático
das ideias capitalistas e dominantes. Com esse
olhar observa-se que o texto literário do século
XIX, com o intuito de apresentar um símbolo
da identidade nacional, acaba fazendo da
literatura um espaço de divisão de raças em cor
– cultura – condição social, prevalecendo o
olhar do outro – branco europeu com grau de
superioridade, beneficiando, assim, a herança
do sistema escravocrata brasileiro. Desde
meados do século XIX, o negro é estereotipado
como um ser inferior, modelado com caráteres
oriundos de uma estética branca dominante
que o caracteriza como personagem e mero
objeto (CUTI, 2010).
Quando o Brasil necessitou de um
símbolo que representasse o país, Alencar
buscou essa representação na figura do índio.
Ao olhar do branco, o negro seria
impossibilitado de contribuir para o
desenvolvimento da nação por ser considerado
incapaz e necessitar constantemente da
vigilância do branco. Nota-se que a dialética
entre branco e negro no Brasil não teve a
mesma dimensão. O índio será caracterizado
13 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
como símbolo nacional e permeará o
Romantismo até o Modernismo. Já o negro é
apresentando apenas no âmbito da escravidão
e gera, por conseguinte a subalternidade
africana (Idem, 2010).
No entanto, este mesmo negro que teve
sua voz silenciada, passou também a subverter
as ordens elitistas, utilizando os recursos
literários para exteriorizar sua voz como
instrumento de luta, e, em consequência,
revelar suas dores, sua história, sua cultura.
A literatura, assim como o discurso, é
espaço de poder. Desse modo, munidos dos
argumentos da teoria de inferioridade das
raças, ―os detentores de poder social e
cultural‖, não achando suficiente a
transformação do negro em objeto, a tentativa
de apagar uma cultura e os direitos de um
povo, roubaram desse homem trabalhador
braçal, – pertencente ao grupo de minoria – a
palavra, o direito de expressar-se, pois manter
silenciada a voz do oprimido significa a
perpetuação de um regime desumano, visto
que se essa ordem fosse rebaixada, seria o fim
de um importante sustentáculo do mito da
superioridade das raças.
Partindo desse viés, pode-se atrelar à
vertente da invisibilidade afro, intimamente
vinculada ao viés do embranquecimento. O
negro, que outrora não era visível nos espaços
sociais, ao ocupar ―lugares antes destinados
aos brancos‖ torna-se notável. Passa a ser visto
porque passou a incomodar, mas, como numa
sociedade eurocêntrica um negro não pode ser
sujeito impunemente, esse ―precisa‖ passar
pelo estágio mutatório da ―mudança de cor‖.
Todavia, como não é possível a negação total
da cor, cria-se uma falsa ilusão de brancura. ―O
negro de cor‖, que conquistou espaços sociais,
torna-se ―branco‖ e, ao passo que a ilusão do
embranquecimento invade as pessoas, o negro,
mais uma vez, torna-se invisível diante do
olhar da sociedade.
Desse modo, esse mesmo olhar da
invisibilidade perpassa, também, e/ou
principalmente, pelo campo da literatura,
porquanto, é latente a escolha excludente do
que deve ou não ser lido. Além de exteriorizar
uma visão estereotipada da literatura feita por
e/ou para o negro, trazemos à baila a
importância das publicações de textos de
autoria negra, uma vez que no momento que o
afro começa a fazer suas publicações falando
sobre sua identidade, sua cultura ameaça,
consequentemente, o pedestal do branco bom e
superior. O homem afro-brasileiro incomoda
ao passo que se coloca não mais como objeto e
sim como sujeito.
Ancorado nesse discurso, Cruz e Sousa
abala o mascaramento de uma identidade una
e coesa, bem como da cordialidade e harmonia
enraizada sob o manto da ―pátria amada mãe
gentil‖ do Hino Nacional.
E assim, temos com essa
insubordinação negra a desconstrução do que
se conhece de identidade hoje. Para Hall
(2006) a compreensão de identidade unificada
vem ao longo do tempo se desmitificando e
ganhando outras concepções, uma vez que a
identidade de um povo é marcada não somente
pela construção individual, mas também social.
Partindo desse viés entende-se que se têm
identidade heterogênea, múltipla e
fragmentada. Dessa forma, com o olhar de
Munanga (2003) a identidade negra não pode
ser moldada pela diferenciação da pigmentação
da pele, mas sim através de uma construção
cultural que teve origem com o processo de
colonização resultando nas ―relações
mercantilistas com a África, ao tráfico
negreiro, à escravização e enfim à colonização
do continente africano e de seus povos‖
(MUNANGA, Ibidem, p. 37). Sendo assim, esse
14 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
fato histórico resultou na divisão das raças
através da cor da pele marcando a acepção de
identidade negra difundida na literatura.
Essa distinção de raças é reafirmada na
literatura elitista e em contrapartida negada
nos poemas e obras produzidas por negros. ―O
protesto negro contra o ‗mito da democracia
racial‘ funcionou como um grande diapasão
para afinar o toque de reunir dos tambores
através do encontro cuja senha era a
indignação‖ (CORREIA, 2010, p. 20). Dessa
forma, percebe-se que Cruz e Sousa no poema
em prosa em estudo, utiliza essa ―senha‖ para
expor sua indignação, transformar o seu eu-
coletivo em sujeitos e o mesmo aparelho de
opressão e massacre servirá, ainda, como
instrumento de libertação e afirmação de um
grupo de minoria, que na verdade é maioria.
Aquele mesmo afro-brasileiro que
tinha recebido o status de objeto, não
corresponde à realidade individual de um
poeta negro que sabia e se fazia capaz de
confrontar os argumentos da ideologia
dominante, do discurso antropológico e da
ciência oficial, assim como qualquer branco
intelectual. ―Mas, que importa tudo isso?! Qual
é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é
a cor da tempestade de dilacerações que me
abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a
dos meus desejos e febre?‖ (CRUZ E SOUSA,
1995, p. 381). Discursos como esses, fizeram do
Emparedado, um fenômeno de resistência
cultural e um importante instrumento de
demonstração da força do homem negro.
Atitudes como as do ―Cisne Negro‖,
como ficou conhecido, fortalecem a certeza de
que a literatura, do mesmo jeito que pode ser
perversa e desconstruir a imagem e/ou
imaginário de um sujeito, pode estigmatizar os
conceitos do bem e do mal, do negro e do
branco, como também é capaz de ajudar a
formar e/ou resgatar identidade, de
desmitificar as teorias científicas. Nessa visão
bidimensional da literatura Cândido (2004)
autentica:
A respeito destes dois lados da literatura, convém lembrar: ela não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração. Isto significa que ela tem papel formador da personalidade, mas não segundo as convenções, seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade (p. 175).
Durante anos na história da literatura
propagou-se que o afrodescendente não
escrevia porque era desprovido de suas
capacidades intelectuais, não sabia ler nem
escrever, por isso a literatura negra acabava
ficando no campo da oralidade, sendo
repassada de pai para filho, de geração a
geração, ao longo do tempo (CUTI, 2010). E,
ainda, quando iam à casa grande para escutar
as histórias feitas por seus senhores, ficavam
apenas ouvindo-as, sem delas participar.
Assim, o escravizado ―Configura-se um leitor
ouvinte, ou um leitor que escuta uma
oralização de uma escrita, mas que sabe que
essa leitura não é feita para ele‖ (MOYSÉS,
1998, p. 103). Desse modo, não se fazia uma
literatura genuinamente negra, o afro era
apenas tema de uma obra e não vida dela
(obra), falavam sobre o negro e não do negro,
porque quem escrevia não fazia isso com o
conhecimento de causa, e acabavam
escrevendo sob a ótica elitista.
Nesse sentido, o negro só foi de fato
representado na literatura no momento em que
passou a difundir sua voz através da literatura
negra, feita por e para o negro. Quanto a esse
aspecto o escritor Cuti (Ibidem) legitima:
A literatura negro-brasileira nasce na e da população negra que se formou fora da África, e de sua experiência no
15 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Brasil. A singularidade é negra e, ao mesmo tempo, brasileira, pois a palavra negro aponta para um processo de luta participativa nos destinos da nação e não se presta ao reducionismo contribucionista a uma pretensa brancura que a engloba como um todo a receber daqui e dali, elementos negros e indígenas para se fortalecer (p. 44-45).
Em outras palavras, Cuti (2010) afirma
que a literatura negra ou afro-brasileira só
passou a existir ao passo que o negro começou
a ser autor de suas próprias histórias, sendo
assim, o que se tinha antes era meramente
literatura. ―Isolada ou coletivamente, os afro-
brasileiros, por seu turno, tentam forjar e
divulgar outras imagens de si, contrariando os
estereótipos vigentes‖ (SOUZA, 2004, p. 31).
―Emparedado‖, apesar de passado
pouco mais de um século de sua publicação,
consegue permanecer atual. Sua linguagem é,
em todos os aspectos, inovadora e
denunciadora. O poeta mescla assuntos desde
o sofrimento do homem negro, o preconceito
velado da sociedade brasileira, até a não
aceitação dos artistas de sua época com seus
escritos, os quais consideravam a literatura
negra como de inferioridade, por isso, o poeta
Dante é peça imprescindível para as formas
que se discute negritude e os conceitos de raça
hoje.
2.“Emparedado”: a ambiência da
história
Desde as últimas décadas do século
XIX, sobretudo no finalzinho de 1880, surgem
no Brasil, as primeiras influências do
Simbolismo francês. O início do movimento só
é de fato considerado oficial e aceito após a
publicação de dois livros do poeta Cruz e Sousa
em 1893: Missal (1893), poemas em prosa,
Broquéis (1893), versos. O jovem intelectual
passou a escrever poemas em prosas e poesias,
sendo considerado o precursor do Simbolismo
no Brasil e até hoje, consagrado como o mais
importante escritor simbolista brasileiro
(BOSI, 1999).
Transportado para o Brasil, o
Simbolismo foi considerado um movimento
hesitante, ambíguo em suas formulações.
Segundo Brandão (2010) ao se referir ao
pensamento de Edmundo informa que, afora o
entusiasmo com que Roger Bastide e Nestor
Vítor saudaram o merecido talento literário de
Cruz e Sousa, as primeiras manifestações
simbolistas nacionais não obtiveram, no
momento de seu surgimento, uma acolhida
afável por parte dos historiadores de nossa
literatura.
Com novas ideias e novas roupagens,
começou a urgir no campo das artes e das
ciências o simbolismo, que vai se opor tanto ao
Realismo quanto ao Parnasianismo, situando-
se muito próximo das orientações românticas,
que será de certa forma uma renascença. Desse
desejo surgem, por conseguinte, os artistas que
estavam descontentes com a mentalidade
racional que não eram capazes de traduzir
questões relacionadas à condição e existência
humana (BOSI, Ibidem).
Partindo desse viés, passamos a
compreender os escritos de defesa do poeta,
pois não era possível separar o artista do
assunto, já que para o autor, subjetivo e
objetivo se fundem, espírito e objeto se
constituem. Assim, afirma Edmundo sobre o
olhar de Brandão (Ibidem):
O movimento simbolista, meus senhores [disse João do Rio] não será jamais um movimento popular. Literatura de casaca, luvas, gravata branca e peitilhos em goma é apenas um gostoso recreio, um desafio para refinados espíritos, para privilegiadas elites de uma estouvada geração. Literatura de estufa, planta para vaso em aquecidos salões (p. 120).
16 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
O poeta catarinense ainda faz uma
crítica (in) direta não somente aos poetas da
escola literária anterior, mas também aos
poetas de modo geral que fazem da arte um
instrumento de ostentação de poder, por isso
optam por fazer um discurso leve e
descompromissado com a sociedade.
Era uma politicazinha engenhosa de medíocres, de estreitos, de tacanhos, de perfeitos imbecilizados ou cínicos, que faziam da Arte um jogo capcioso, maneiroso, para arranjar relações e prestígio no meio, de jeito a não ofender, a não fazer corar o diletantismo das suas idéias. Rebeldias e intransigências em casa, sob o teto protetor, assim uma espécie de ateísmo acadêmico, muito demolidor e feroz, com ladainhas e amuletos em certa hora para livrar da trovoada e dos celestes castigos imponderáveis! (CRUZ E SOUSA,1995, p. 371).
Poetas que não comungavam desse
discurso de ostentação de poder e
mediocridade, como define Sousa, não eram
dignos de serem lidos. Por outro lado, os que
adotavam esse mesmo discurso, eram dignos
de aplausos. Assim, observemos que um artista
é reconhecido não pelo seu talento, mas pela
cor de sua pele, pelo tipo de argumentos que
usa para defender sua criação. Sobre esse
aspecto Cruz e Sousa afirma: ―[...] não pertenço
à velha árvore genealógica das
intelectualidades medidas, dos produtos
anêmicos dos meios lutulentos, espécies
exóticas de altas e curiosas girafas verdes e
spleenéticas de algum maravilhoso e
babilônico jardim de lendas...‖! (CRUZ E
SOUSA, 1995, p. 387).
Com esse mesmo olhar o poeta dirige-
se não somente aos artistas da época, mas
também ao público, a todos que não o
compreendem como artista, pois, sobre sua
ótica, a sociedade da época não estava
preparada para lê-lo, por isso o poeta sente-se
emparedado.
Partindo da terminologia da palavra,
segundo o dicionário Aurélio online (2008)
―emparedado significa adj (parte de
emparedar) 1 Que se emparedou; ladeado de
paredes. 2 Encerrado entre paredes;
enclausurado. sm Pessoa que, por castigo ou
penitência, era encerrada entre paredes, ou
totalmente, ou recebendo ar e alimento por
uma fresta‖ (2008, online).
Compreendendo o vocábulo que dá
nome ao poema do artista catarinense, pode-se
pensar inicialmente que ―Emparedado‖ seriam
as paredes que cercam o autor. Alegorias que
poderiam se referir a tudo que seria
correspondente a restringir ou até mesmo
extinguir a liberdade e limitar, talvez, as
capacidades criativas que lhe são dadas por
uma condição racial visceral.
Segundo Fonseca (2002), o
emparedado de Cruz e Sousa revela as paredes
que o cercavam, paredes essas que são
representadas pelos: ‗Egoísmos e preconceitos‘,
‗Ciências e Críticas‘, ‗Despeito e Impotências‘,
‗Imbecilidade e Ignorância‘ de uma sociedade
que o aniquila.
Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto... (CRUZ E SOUSA, 1995, p. 390 – grifos nossos).
Cruz e Sousa foi um poeta à frente de
seu tempo, seja nos vocábulos usados, seja na
temática apresentada em seu poema. Pois,
17 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
mesmo tendo vivido na qualidade de branco,
não permite ser manipulado pela
―branquitude‖ que o rodeia, mas, sim, utiliza-
se dessa condição para denunciar e orgulhar-se
de seus antecedentes. Contudo, com seu
discurso de resistência, enuncia as paredes que
cercam todos os afrodescendentes. Desse
modo, essas paredes que o emparedam são
formadas por dados hipotéticos de conceitos
infundados de superioridade e inferioridade
das raças humanas, dos preconceitos, racismos
e escravismos da sociedade do século XX.
Assim, o poeta pode estar
―emparedado‖ em seu sonho como podemos
ver no próprio poema. Assinala-se, ainda,
nessa leitura simbólica, que essas paredes que
o cercam podem ser também sua própria pele,
esta emparedada em seu corpo. Em seguida,
vai assinalar e expor sua raça, entrando em
confronto com as outras raças vistas fora de
sua pele, portanto, sofre, por não poder
enfrentar os embates de sua vida social, já que
está emparedado e sublimado em suas próprias
paredes. Nas esteiras de Fonseca (2002),
compreende-se que o fato de entrar em
confronto, seria um tipo de violência, aquela
que sofre o poeta, física e metafisicamente,
emparedado em sua pele negra e em sua poesia
(máscara) branca. É o que podemos perceber
no seguinte trecho do poema: ―Não! Não! Não!
Não transporás os pórticos milenários da vasta
edificação do Mundo, porque atrás de ti e
adiante de ti não sei quantas gerações foram
acumulando, acumulando, pedra sobre pedra,
pedra sobre pedra, que para aí estás agora o
verdadeiro emparedado de uma raça‖ (CRUZ E
SOUSA, 1995, p. 390).
Para fazer-se ouvido, o poeta ―veste-se‖
de elite branca. Como não pode mudar sua cor
exterior e nem mesmo o seu discurso, porque
este faz parte dele, então muda sua maneira de
falar. O próprio poeta vivencia o preconceito
velado, camuflado. Um grande poeta negro
falando do negro como negro jamais seria
ouvido, mas um negro falando
mascaradamente do negro como um branco
havia uma esperança de ser percebido. Por isso
o poeta Dante, se sente o tempo todo
emparedado, encurralado, tendo que negar sua
cor, sua identidade afro para poder, através de
sua arte, denunciar a elite branca . O negro não
podia ser pacífico para ter seus direitos
legitimados, mas deveria e/ou foi obrigado a
utilizar-se das mesmas armas de seu opressor,
para outorgar um direito constituído. Cruz e
Sousa, aqui, mostra-se encurralado vivendo
nesse constante conflito entre a natureza e
identidade negra e o meio que o oprime, que
mais tarde configura-se como um embate
social.
3. Eu-poético e eu-lírico – um sujeito
emparedado
É mister salientar que ―Emparedado‖
refere-se a um poema em prosa do poeta Cruz
e Sousa, o último poema que compõe a obra
Evocações. Como se fosse a conclusão do livro,
poema quase que autobiográfico, o poeta
Dante mostra para o leitor não somente sua
indignação com a maneira que os brancos
tratavam o negro, mas, também, a
aceitabilidade da arte produzida por negros. O
poeta ao escrever esse poema em prosa, não
obedece inteiramente às regras – regras essas,
impostas pela elite branca -, uma vez que no
Simbolismo o artista busca suas
individualidades para expor sua arte. Neste, o
escritor faz do seu ―eu‖ uma defesa de classe,
portanto, coletivo. Concernente a esses
aspectos, percebe-se que ―Emparedado‖ é de
uma riqueza de expressão e estilo, no qual
poderia ser título de uma obra. Sobre essa
ótica, Cesco nas esteiras de Coutinho salienta:
18 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
―esse soluço que não é apenas um soluço de
revolta pessoal, mas a revolta de toda uma raça
condenada pela civilização inteira‖ (CESCO,
2011, p. 2).
Sobre esse aspecto, é válido ressaltar
que mesmo Cruz e Sousa não afirmando
claramente que ―Emparedado‖ é um poema
autobiográfico, muitos estudiosos defendem
que se trata de um testamento de homem e
poeta (COUTINHO, 1979). No entanto, em
umas das partes do poema o poeta deixa
reluzir o termo como também hoje é conhecido
―Dante Negro‖: ―A África virgem, inviolada no
Sentimento, avalanche humana amassada com
argilas funestas e secretas para fundir a
Epopéia suprema da Dor do Futuro, para
fecundar talvez os grandes tercetos tremendos
de algum novo e majestoso Dante negro!‖
(CRUZ E SOUSA, 1995, p. 389). Sendo
perceptível que Dante Negro ao elaborar seus
poemas em prosa, vale-se de suas dores não
somente as artísticas, mas, também, as
pessoais, e essas são as temáticas que refletem
na prosa em estudo. Para tanto, o poeta com
uma linguagem erudita e envolvente busca
transformar suas dores oriundas do
preconceito racial sofrido por ele, em criações
artísticas, que o representam todo o grupo
marginalizado pela elite da época,
simbolizando a cor da noite e a cor da África
escravizada. Vejamos o seguinte trecho: ―Eu
trazia, como cadáveres que me andassem
funambulescamente amarrados às costas, num
inquietante e interminável apodrecimento,
todos os empirismos preconceituosos e não sei
quanta camada morta, quanta raça d'Africa
curiosa e desolada que a Fisiologia nulificara
para sempre com o riso haeckeliano6 e papal!‖
(Idem, ibidem, p. 363).
6 Os fundamentos do pensamento racista brasileiro, baseado em
Montesquieu (teoria climática e tipos de escravidão), Buffon
(clima temperado e superioridade europeia) Cordelius De Pauw
À luz dessas reflexões, percebe-se que
Cruz e Sousa apesar de ser apresentado por
muitos como poeta de ―brancura‖,
compreende-se que por meio do poema em
prosa, sua condição de afrodescendente se
aflora ainda mais. Suas vivências pessoais são
exploradas ao longo do poema, desvendando,
através de uma linguagem discursiva e
requintada, os conflitos sociais. Assume, assim,
o poema um caráter de manifestação e reflexão
assinalada.
Muitos são os fatos que nos levam a
pensar sob esse viés: A Sensibilidade com
que é tratado o tema da escravidão, do
sofrimento, da dor e desilusão do homem
negro. O uso dos elementos do passado e o
diálogo em primeira pessoa, como se fizesse
lembrar, ―O seu nome carinhoso e parnasiano
recordava...‖, ―E quantas, quantas vezes eu a
vi...‖ (CRUZ E SOUSA, 1995, p. 127-128).
Essa autenticidade do eu poético
souseano em ―Emparedado‖que nos leva a
pensar em verossimilhança é na verdade:
(...) como em toda a prosa poética de Cruz e Sousa, diluídos são os fatos. O que se tem são nuanças, apenas, de referenciais da realidade. Entretanto, o envolvimento do narrador-personagem remete o texto, pelos elementos de pessoalidade que apresenta, às características do testemunho, que não se firma, contudo, tendo em vista a resistência ao factual. Apesar de tal resistência, a perspectiva de um passado narrado com envolvimento induz, em Emparedado, que vários conteúdos pertencem à memória de quem narra. [...] promove a ilusão autobiográfica [...] (CUTI, 2010, p. 155 – grifo nosso).
(Acão climática e inferioridade racial), Golbineau (superioridade
da raça ariana e efeitos degenerativos da miscigenação), e inspirados em outros (Kant – degradação da raça superior com
cruzamento com raças superiores; Darvin – a sobrevivência dos
mais aptos; spence – evolucionismo das sociedades humanas; Haeckel – evolucionismo biológico; Ratzel – relação de causa e
efeito entre o meio ambiente e as realizações humanas), com sua
carga depreciativa a respeito dos trópicos, geraram aparentemente, nos intelectuais brasileiros a necessidade de
banir as marcas do atraso do País adaptando aquelas teorias
(CUTI, 2009. p. 70).
19 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
E essa ―ilusão‖ autobiográfica é, ainda,
revelada pela presença do não silenciamento
do poeta catarinense, que, mesmo em meio ao
emparedamento social que sofria, não se calou,
aproveitando para dar voz ao grito do oprimido
escravizado, desnuda o ―preconceito branco‖ e,
assim o fazendo, reluz uma vivência de
escravidão, como que vista de perto. O
percurso realizado pelos homens ―[...] ontem
simples fortes bravos/ hoje míseros escravos
sem luz, sem ar, sem razão [...]‖ (ALVES, 2002,
p. 22) – da África para as Américas como
escravos, é marcado pelo sangue, pela
desilusão, sem saber como seria seu destino:
De outros Golgothas mais amargos subindo a montanha immensa,— vulto sombrio, tetro, extra-humano! — a face escorrendo sangue, a bocca escorrendo sangue, o peito escorrendo sangue, as mãos escorrendo sangue, o flanco escorrendo sangue, os pés escorrendo sangue, sangue, sangue, sangue, caminhando para tão longe, para muito longe, ao rumo infinito das regiões melanchólicas da Desillusão e da Saudade, transfiguradamente illuminado pelo sol augural dos Destinos!... (CRUZ e SOUSA, 1995, p. 362 - sic7).
Dessa forma, o poeta revela a marca da
escravidão, que configura a relação de poder de
uma cultura sobre a outra, de uma identidade
sobre a outra. Contudo, ―As civilizações, as
raças, os povos digladiam-se e morrem
minados pela fatal degenerescência do sangue‖
(Idem, ibidem, p. 365), sangue que corre em
suas veias, que revela sua cor e, portanto sua
raça.
Por conseguinte, para Gonçalves
(2010) diríamos antes de tudo que
―Emparedado‖é um desabafo de uma vida
inteira cheia de dificuldade, não somente um
desabafo individual, mas, também, um
desabado de um grupo marginalizado pelo
7 Grafia do autor, conforme fonte de pesquisa.
poder operante e excludente. Assim, critica o
racismo que tenta legitimar a ignorância eterna
―de uma raça que a ditadora ciência de
hipótese negou em absoluto para as funções do
Entendimento, e, principalmente, do
entendimento artístico da palavra escrita‖
(CRUZ e SOUSA, 1995, p. 381).
Muitos estudos defendem que o poema
em prosa de Cruz e Sousa é também um poema
de libertação, de legitimação da voz negra na
literatura, de uma voz que foi ao longo de sua
história silenciada, mas que agora faz ser
ouvida. Mas, não deve ser fácil para os grupos
privilegiados ouvir a verdade saindo da boca do
subalterno. Deve, ainda, ser tão incomum, tão
tímido, esse grito que o eu-lírico revela: ―eu
caminho e sonho tranquilo! pedindo a algum
belo Deus d'Estrelas e d'Azul, que vive em
tédios aristocráticos na Nuvem, que me deixe
serenamente e humildemente acabar esta Obra
extrema de Fé e de Vida!‖ (Idem, 1995, p. 373).
Assim, nos chama atenção termos
grafados em maiúsculo, Estrela, Azul, Nuvem,
que remetem à ideia de brancura e de
luminosidade, que entram em comum acordo
com Fé e Vida, mas que se opõem ao discurso
traçado no texto, na ―Obra‖, também grafada
em maiúscula, para dar força e poder aos seus
argumentos.
Percebe-se que, para o poeta, revelar,
também, não é uma tarefa fácil, pois o artista
se sente como em meio a Deus e o Diabo, entre
a dúvida e a certeza, pois, assim como não é
fácil para o branco ouvir o grito outrora
silenciado do negro, legitimando seus direitos,
também não é fácil para o negro, com seu
discurso singular, desnudar as opressões
sofridas, uma vez que corre o risco de não ser
aceito como artista e homem.
O que tu podes só, é agarrar com frenesi ou com ódio a minha Obra dolorosa e solitária e lê-la e detestá-la
20 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
e revirar-lhe as folhas, truncar-lhe as páginas, enodoar-lhe a castidade branca dos períodos, profanar-lhe o tabernáculo da linguagem, riscar, traçar, assinalar, cortar com dísticos estigmatizantes, com labéus obscenos, com golpes fundos de blasfêmia as violências da intensidade, dilacerar, enfim, toda a Obra, num ímpeto covarde de impotência ou de angústia (CUTI, 2010, p. 35).
De forma direta, a narrativa versará,
dentre outros aspectos, sobre a dor do
escravizado. Fazendo uso de uma linguagem
rebuscada, rica em metáforas, sinestesias e
aliterações, características presentes no
simbolismo, sendo possível comprovar tal
afirmação com o uso de aliterações – errava
nos tons violáceos vivos (―v e s‖); suntuoso
acesso (― s‖); cuja a cor cantava-me (―c‖);
linha longe (―l‖); dos horizontes em largas
faixas rutilantes (―s‖); fulvo e voluptuoso (―v‖);
quebravam-se e velavam-se (―v‖). Dentre
outras características já citadas a priori como:
letras maiúsculas no meio de frases para
destacar palavras desejadas, musicalidade e
sinestesia (CRUZ E SOUZA, 1995).
Através de sua linguagem e valendo-se
do mascaramento de sua cor, o poeta denuncia
os conflitos sócio-raciais existentes, pois quem
lê seus poemas, não vê sua cor, desse modo se
passa por um ―branco‖ com sua linguagem
bem elaborada, e, assim, desmascara a
sociedade eurocêntrica e luta pela outorgação
dos direitos étnico-raciais das classes de
minoria.
É por tudo isso que:
Na produção de Cruz e Sousa [...], o patético atuará como um índice dialógico e dramático, sendo as performances do ―eu‖ lírico e a da primeira pessoa narrativa os recursos básicos, mas a ironia será um pólo regulador para que o desnudamento da opressão se faça com segurança e arte (CUTI, 2010, p. 80).
O poema, assim como toda a obra
Evocações, é um poema de mágoas, desilusões
e indignação do eu-lírico, enquanto artista que
busca veicular sua obra, mas que se sente
sozinho e cansado; cansado por sonhar e
esperar, cansado de gritar em vão por
libertação, por humanização.
De que subterrâneos viera eu já, de que torvos caminhos, trôpego de cansaço, as pernas bambaleantes, com a fadiga de um século, recalcando nos tremendos e majestosos Infernos do Orgulho o coração lacerado, ouvindo sempre por toda a parte exclamarem as vãs e vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar! Por que estradas caminhei, monge hirto das desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta e chora Réquiens nas árvores, nos mares, nos ventos, nas tempestades, só e taciturnamente ouvindo: Esperar! Esperar! Esperar! (CRUZ ESOUSA, 1995, p. 356 - grifos nossos).
Ao longo do tempo a história literária
quis mostrar a bondade do homem branco,
aquele que ―defende‖ e que dá ―direito‖ aos
seus escravos, o que podemos até presenciar na
vida do próprio autor do poema
―Emparedado‖, que teve todas as regalias na
casa de seu senhor, no entanto, aqui nesse
fragmento (aproveitando para dar ênfase nos
termos destacados), o poeta catarinense
aponta outro lado dessa moeda: aquele em que
o negro é convidado a esperar por dias
melhores, a esperar por condições de vida
digna e pela legitimação de seus direitos, mas
nada acontece além de esperar e esperar. Toda
essa espera vem ao longo dos séculos
provocando sentimentos dúbios nesses filhos
do ―sofrimento‖ de um lado, dor e tristeza, e,
por outro, a esperança. Essa dualidade é
marcada principalmente pelos termos citados
no poema ―canta‖ e ―chora‖.
Ao longo do poema, o poeta simbolista
mostra-se preocupado com os conflitos sociais
21 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
coletivos, vivenciados pelos grupos de minoria
e no decorrer dele, quase em seu final, o poeta
assinalado questiona a qualidade do artista
escolhido pela sua cor, episódio que demonstra
o quanto sua obra foi marginalizada, o que
autentica que o espaço literário é fragmentado
e elitista, uma vez que muitos são os casos em
que o artista vai ser escolhido não pelo talento
que possui, mas pela cor de sua pele que o
assinala e denuncia. E com esse olhar o poeta
Negro reporta-se às suas origens para revelar
os estereótipos impostos pelos brancos aos
negros, para desmerecê-los, sobretudo, em seu
trabalho intelectual como a escrita. Segundo
Fonseca (2002) ―a África, no texto de Cruz, não
é simplesmente o lugar virtual das origens
ancestrais do artista. Antes, é um obstáculo
tanto à origem do poeta quanto ao seu status
em seu lugar atual, brasileiro, que é, de certo
modo, ainda torturadamente africano‖ (p. 66).
E por falar do lugar do negro – afro-brasileiro
– sofre por não ser aceito como homem e
artista. Pois pertencer à África escravizada é
sinônimo de desmerecimento e submissão.
Artista! pode lá isso ser se tu és d'África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia! A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das Impiedades supremas, das Blasfêmias absolutas, gemendo, rugindo, bramando no caos feroz, hórrido, das profundas selvas brutas, a sua formidável Dilaceração humana! A África laocoôntica, alma de trevas e de chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantemente tempestuosa como a alma espiritualizada e tantálica da Rússia, gerada no Degredo e na Neve — pólo branco e pólo negro da Dor! Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região desolada, lá no fundo exótico dessa África sugestiva, gemente, Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãsrebelados, dessa flagelada
África, grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo do mundo Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas! A África virgem, inviolada no Sentimento, avalanche humana amassada com argilas funestas e secretas para fundir a Epopéia suprema da Dor do Futuro, para fecundar talvez os grandes tercetos tremendos de algum novo e majestoso Dante negro! (CRUZ E SOUSA, 1995, p. 389 - grifos nossos).
Percebe-se aqui uma antítese no que se
refere ao branco representando ― ―o Europeu,
o cristianismo, a virtude, mas também a
esterilidade, o frio, a neve mortiferal. E o negro
representando ― o africano, a luxúria, o
pecado, o fetichismo, mas também a vida, a
fecundação, a força criadora – a dor‖
(COUTINHO, 1979, p. 167). Ao percorrer a
citação, vemos claramente os ecos da África
que são parte de um discurso das diversas
vozes africanas, tanto as vozes do colonizado,
quanto as vozes do colonizador.
Nesse momento percebemos que Cruz
e Sousa ―compõe o quadro, mais uma vez
dilacerado, da cena de suas origens perdidas e
uma alegoria da tragédia transcultural da
colonização‖ (FONSECA, 2002, p. 6). Assim,
essa África descrita e buscada pelo poeta, versa
sobre a ideia de lugar distante, mas que
possível de ser alcançada, e essa realidade só é
provável através de um ―Dante Negro‖ – de um
descendente que sabe e sente as agruras dos
seus – mas que, ao mesmo tempo, assinala um
emparedamento que o aprisiona e conduz a
uma vida cercada dos dogmas e paredes de
uma sociedade ―civilizada‖.
Essa imagem se é o signo de uma sofrida ligação entre o poeta e seus ancestrais, não conduz ao Continente Negro, evidentemente, mas leva-o a uma África de si mesmo e dos outros que o compõem: leva-o à sua poesia,
22 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
que aspira à permanência, e ao seu tempo e lugar – vividos para serem superados. Tudo isso ocorre no encontro/embate de Cruz e Sousa com a tradição literária ocidental, desembocada no Brasil, tradição enriquecida com sua obra. É assim que o poeta chega ao seu emparedamento no corpo físico, por sua vez emparedado pela sociedade, e anseia pela expansibilidade do corpus poético que o aprisiona e liberta (FONSECA, 2002, p. 7).
Paralelo a isso, o poeta descreve o
sistema opressor que o oprime como poeta,
como filho de ex-escrava, que viveu sobre o
regime de dois mundos, – de um lado a
escravidão de seu pai e a liberdade de sua mãe
e, do outro, a regalia da casa do senhor branco.
Toda essa conjuntura o ajudou a ter
consciência de sua condição social, e não de
sujeitamento e omissão diante da realidade
que vivia. A criança que estudou, ―viveu como
branco‖, não permitiu escravizar sua origem e
esquecer seus antepassados, muito pelo
contrário. O jovem Sousa, revestido de
candura, ergue sua voz em defesa dos seus e de
sua Mãe África, espaço que tão bem o
representa, pois, assim como ele, sua Terra é,
também, um espaço dúbio, lugar de começo e
fim, de perda e reencontro, de escravidão e
libertação.
Por outro lado, a população burguesa,
mesmo ostentando todo ouro e prata, seus
argumentos são tão vazios, suas ações são tão
nefastas que adoecem da doença da alma, e,
com isso, não podiam desfrutar de sua beleza,
sua riqueza e ‗brancura‘. De acordo com o
poeta aquelas pessoas são de almas ―tão baixas,
de tão rasas que são nem merecem a
magnificência, a majestade do Inferno‖
(CRUZ E SOUSA, 1995, p. 375). Grafado com a
letra maiúscula, para não passar por
despercebido aos olhos do leitor o peso da
palavra, o peso da culpa dessa sociedade
omissa que emudece e se faz emudecer diante
de tanta dor, de cada cantar de chicotes que
ainda hoje os descendentes da mãe África
ouvem cantar e dançar os seus.
A mesma Mãe África, que um dia viu
seus filhos tornarem escravos; mães e pais
chorarem e gemerem por seus filhos levados na
escuridão da noite, hoje vê o regresso dos seus,
em busca de libertação, pois todos que se
orgulham de suas raízes retornam para lá para
comprovar sua luta e vitória sobre seu
opressor. ―O temperamento entortava muito
para o lado da África: — era necessário fazê-lo
endireitar inteiramente para o lado Regra, até
que o temperamento regulasse certo como um
termômetro!‖ (CRUZ E SOUSA, 1995, p. 365).
4. À guisa de conclusão
Eis o nosso modo de ver e
compreender as relações África-Brasil
atravessado pelo olhar de Cruz e Sousa,
enveredado, não pelo caminho da unicidade,
mas, pela pluralidade de sentidos que emanam
da literatura. Portanto, poeta e homem, nessa
conjuntura do ambiente literário, podem
perfeitamente se fundirem para revelar e
desvendar os segredos e mitos da sociedade.
Ressaltando, sobretudo, o discurso articulado
do autor para o fator – resistência. Resultado
de seu emparedamento dentro de sua própria
pele.
É perceptível que o poema é munido de
algumas estratégias que servirão como uma
espécie de oposição e enfrentamento às
condições que os negros estavam submetidos,
além de uma reconstrução que será delineada
no poema pelo próprio autor como um resgate
da origem, cultura e valorização dos costumes
e tradições africanas. Deparamo-nos então
com uma ressignificação latente na nova
construção da África e uma desconstrução dos
23 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
estereótipos negativos evidenciados pela
sociedade brancocêntrica.
O texto pretendeu ser uma voz em
favor do negro e mostrar que esse discurso é
sustido pelo autor, principalmente, por sua
obra ser ―violentamente‖ armada, contra uma
sociedade dominante que não aceitava o
afrodescendente como um ser capaz de mudar
e transformar sua realidade e o poder vigente.
Transformações essas que tiveram que ser
traçadas com toda a força e voracidade
permitida na arte literária.
Evidenciando-se isso, o ―campo de
luta‖ travado no poema é sugerido por uma
espécie de agonia e dilaceração do poeta contra
a opressão que os afrodescendentes sofriam já
que o poema é uma batalha contra a opressão
sofrida no que se refere à classe, a cor e,
sobretudo a resistência desses homens tão
sofridos.
Contudo, Cruz e Sousa preocupa-se,
sobretudo, com as questões pertinentes a afro-
brasilidade e dialética entre o negro e branco,
como foi exposto no próprio artigo, que se
constituíram de forma desigual em nossa
sociedade. Todavia, não é incomum que esse
processo se desdobre de maneiras diferentes
entre esses dois grupos.
No que se refere às estratégias
abordadas pelo autor supracitado,
encontramos a reconstrução dessa base
cultural africana, seguida das tradições e
costumes herdados pelos afrodescendentes
precedida por esse discurso de resistência e
enfrentamento à condição estigmatizada e
moldada pela sociedade elitista. Além de haver
uma luta pela valorização do coletivo. Nessa
concepção, o negro na literatura se firmará
como sujeito do seu próprio discurso.
Deixando a cargo do leitor perceber as nuanças
do racismo brasileiro, enraizado no mito da
democracia racial
Por fim, nos deparamos com um
poema que não fugiu à tônica do seu tempo, e
até hoje resinifica as marcas profundas de uma
sociedade que se manteve, sobretudo ancorada
no bojo de uma cultura escravista; mas apesar
dessas marcas, Cruz e Sousa não se manteve
estigmatizado, pelo contrário, usou de sua arte
para transformar, reconstruir e resinificar sua
voz, cor, cultura e seu próprio país, berço de
sua origem, a África mãe, como foi
denominada pelo autor.
Assim, pretendeu-se explanar nesse
artigo, que o laço infindável deste (negro
brasileiro), com os de sua origem, delineou as
lembranças do poeta e de seus descendentes
com olhar bidimensional: de um lado tristeza
pela vida que tiveram, por tanto sofrimento,
por tanto sangue e lágrimas derramadas pelos
seus, quando um dia alguém decidiu torná-los
escravos. Por outro lado um olhar de
esperança, foi lá onde tudo começou, lá é
também seu ponto de recomeço, de nova
história, afinal o oprimido passou a gritar
liberdade, passou a dizer não às algemas da
opressão e do preconceito.
Referências:
ALVES, Antônio de Castro. Antônio Castro Alves:nosso rebelde apaixonado faz 150 anos. In: Projeto memória. 11. ed. Rio de Janeiro: Globo, 2002 (obra organizada pela Fundação Banco do Brasil). BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura Brasileira. 36. ed. São Paulo: Cultrix, 1999. BRANDÃO, Gilda Vilela. Notas sobre a recepção do simbolismo na França e no Brasil. In: Revista brasileira de literatura comparada, n. 9, p. 107-131. Disponível em <htttp://www.abralic.org.br > - Acesso em: 01/10/ 2012. CANDIDO, Antonio; CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura brasileira:história e antologia. 4. ed., v.1. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972.
24 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
CESCO, Andréa. Cruz e Sousa: emparedado em seu poema. In: Revista Literatura em Debate, v. 5, n. 9, ago-dez., 2011, p. 01-45. Disponível em: <http://www.fw.uri.br/publicacoes/literaturaemdebate/artigos/01_09.pdf> - Acesso em: 05/10/ 2012. CORREIA, Severino do Ramo. Quilombhoje: um tambor expressando as vozes literárias negras. Dissertação de Mestrado. Departamento de letras e artes, Mestrado em literatura e interculturalidade: Campina Grande, 2010. Disponível em <http://pos-graduacao.ascom.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes/Dissertacoes2010/Severino.pdf> - Acesso em: 01/10/ 2012. COUTINHO, Afrânio (org.). Cruz e Sousa. Fortuna Crítica, 4. ed. Brasília: Civilização Brasileira; INL, 1979. CRUZ E SOUSA, João da, 1861-1898. Obra Completa. Organização de Andrade Murici. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1995. CUTI, Luiz Silva. A consciência do impacto nas obras de Cruz e Sousa e de Lima Barreto. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurélio online, 2008. Disponível em <htttp://www.dicionárioaurelio.com> - Acesso em: 01/10/2012. FERREIRA, Jair Tadeu. Cruz e Sousa as expansibilidade do emparedado. In: Revista Aletria, v. 9, 2002, p. 61-67. ISSN 0104-5210. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Aletria%2009/05-Jair%20Tadeu%20da%20Fonseca.pdf> - Acesso em: 20/10/2012. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006 KOCHE, José Carlos. Fundamentos da metodologia científica. Teoria da ciência e prática da pesquisa. Petrópoles: Vozes, 1997.
MUNANGA, Kabengele. Algumas considerações sobre a diversidade e a identidade negra no Brasil. In: Marise Nogueira Ramos, Jorge Daniel Adão, Graciete Maria Nascimento Barros (coords). Diversidade na educação: reflexões e experiências. Brasília: SEMTEC/MEC, 2003, p. 35-49. Disponível em: <http://www.cereja.org.br/arquivos_upload/diversidade_educacao.pdf > - Acesso em: 01/11/ 2012. MOYSÉS, Sarita Maria Affonso. Literatura e História: imagens de leitura e de leitores no Brasil do século XIX. In: LEENHARDT, Jacques; PESSAVENTO, Sandra J. (org.). Discurso Histórico e Narrativa Literária. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1998, p. 93-109. PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. In: Estudos Avançados, nº 50, v. 18, jan./abr., 2004. São Paulo, p. 161-193. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142004000100017&script=sci_arttext> - Acesso em: 20/11/2012. SILVA, Luiz. A consciência do impacto nas obras de Cruz e Sousa e de Lima Barreto. Campinas, SP: Autêntica, 2009. SILVA, Luiz. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. SOUZA, Florentina. Solano Trindade e a produção literária afro-brasileira. In: Afro-Ásia, n.º n.º 31, 2004. Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (Salvador, Brasil), p. 277-293. Disponível em: <http://www.afroasia.ufba.br/pdf/31_14_solano.PDF> - Acesso em: 09/08/ 2012. VILARINHO, Sabrina. Cruz e Sousa. In: Brasil Escola, seção Literatura – escritores. Disponível em: <htttp://brasilescola.com/literatura/cruz-sousa.htm> - Acesso em: 18/11/2012.
RESISTÊNCIA NEGRA EM A VOZ DO
EXCLUÍDO DE MV BILL: O HIP HOP NA
CULTURA BRASILEIRA
Maria Adaljiza Xavier Santos e Rodrigo Reis Carvalho1
Kárpio Márcio de Siqueira2 RESUMO O presente article apresenta o Hip Hop, em especial, o estilo rap, como exemplo de cultura contemporânea de resistência negra. Para isso, escolheu-se o rap A Voz do Excluído de MV Bill como objeto principal de investigação, isso por ser uma das letras que além de representar a afirmação de uma identidade negra, emana intervir no exercício e na estrutura do poder político-cultural. Antes, foi pertinente esboçar um breve percurso da difusão do negro no espaço brasileiro, amparando-se em suas resistências às práticas de dominação do colonizador; sendo necessário, também, trazer algumas informações de como o negro vinha/vem sendo representado nos discursos institucionais. A partir da análise do corpus, A Voz do Excluído, foi possível perceber que os discursos presentes nos raps brasileiros estão associados a questões históricas e sociais, assim, fica evidente que os manifestantes do Hip Hop ao trazerem uma cultura, traz também suas histórias, passando a sensibilizar todos aqueles que se prontificam a uma atenção a essa manifestação gritante, por contestar os discursos e práticas racistas excludentes. A metodologia aplicada para elaboração desse trabalho se deu a partir de pesquisa bibliográfica, tendo como fundamentação teórica os autores: Souza (2006), Andrade (1999),André (2008), Santos (2009), Righi (2011); entre outros.
Palavras-chave: Hip Hop.Identidade Negra. Resitência. MV Bill. The presente article shows the Hip Hop, in special, the rap style, as na axemple of contemporaneous culture of black resitence. For that, we chose the rap A voz do Excluído by MV Bill as the main goal of investigation, it was select because its message shows us the representation of the black identity affirmation , and it also disturbs the cultural and political structures by its message. At first we talked briefly about black people lives in Brazil, including their colonized historic context and how black people had been describing by an Institutional speechs. From the analyses of the corpus, A voz do Excluído, it was possible to noticed that the voices into these songs are envolved in social and historical questions, then, it was marked that when the manifesting people of Hip Hop when they brought to us themes of culture and history, they might sensibilizing everybody that heard their message that talks about unspeechs, e excluding racial practical. The applying method in that work was based on bibliografhic researching, and we use as the principal scientific theory source authors such as Souza (2006), Andrade ( 1999), André ( 2008), Santos( 2009), Righi ( 2001) and others.
Key Words: Hip Hop.Black Identity. Resistence. MV Bill.
1 Graduandos em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia.
2 Professor da UNEB, Coordenador do Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação –
OPARÁ, Mestrado em Crítica Cultural, pela UNEB. Graduação em Letras com Inglês, pela Faculdade de
Formação de Professores de Arcoverde.
26 Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Legitimar a violência da dominação dos
povos é uma forma de aliviar a culpa. É
transformar toda a violência, por mais
brutal que tenha sido, em algo aceitável
e humanamente necessário. Dizer, por
exemplo, que “os negros foram trazidos
para o Brasil porque o país precisava de
mão de obra” é o mesmo que dizer que
um criminoso matou para roubar
porque sua mãe precisava de um vestido
novo. A palavra “Brasil” esconde os
crimes e os criminosos (CUTI, 2010, p.
17-18).
Considerações iniciais
Na tradição literária brasileira é notório o
negro sendo enfatizado a partir de traços
contraditórios, e isso acabou refletindo na
formação discursiva de alguns críticos. Estes, ao
serem influenciados pelos discursos ideológicos
dos textos literários, passaram a apreciar a
produção literária somente pelo seu viés estético,
tendo como principal justificativa para seu estudo
“o valor especial das grandes produções: sua
complexidade, sua beleza, sua universalidade, e
seus potenciais benefícios para o leitor” (CULLER,
1999, p. 52).
Com o advento dos estudos culturais a
literatura ganhou um novo status social, além de
surgirem novas técnicas de análises surgiram,
também, novos objetos a serem apreciados: os
materiais culturais. Deste modo, compreendendo
a cultura como fonte imprescindível a ser
explorada, os estudos culturais, ao entrarem em
cena, dão ênfase às diversas identidades de grupos
que estão à margem da sociedade, dentre eles:
mulheres, imigrantes e minorias étnicas. São
estudos que criam perspectivas para que esses
grupos minoritários possam conquistar espaços
políticos culturais de prestígios, pois são grupos
que a alta literatura vinha representando como
incapazes de viver em espaços de alto escalão.
Em relação aos personagens negros na
literatura tradicional brasileira, encontramos
estes, em sua grande parte, sendo representados a
partir de imagens forjadas, carregadas de marcas
racistas e preconceituosas.
Quando se estudam as questões atinentes à presença do negro na literatura brasileira, vamos encontrar, na maior parte da produção de autores brancos, as personagens negras como verdadeiras caricaturas, isso porque não só esses autores negam a abandonar sua brancura no ato da criação literária, por motivos de convicções ideológicas racistas, mas também porque, assim, acaba não tendo acesso à subjetividade negra. Estar no lugar do outro e falar como se fosse o outro ou ainda lhe traduzir o que vai por dentro exige o desprendimento daquilo que somos (CUTI, 2010, p. 88).
Perante isto, com o intuito de
desmistificar os traços negativos sobre o negro
presente na literatura canônica, sobretudo, de
autores brancos, e de lutar contra os agentes
opressores é que as vozes de resistências vêm se
propagando. O próprio negro, ao dar ênfase à sua
verdadeira imagem histórica e contemporânea,
carregada de ideologia e resistência promissora,
vem “arrombando portas e janelas”, assumindo e
afirmando a todos a sua verdadeira identidade.
Após sermos instigados pelos discursos da
população negra, que vêm se firmando no país ao
longo da história literária brasileira, objetivamos
nesse artigo, discutir, de forma sucinta, algumas
práticas de resistência do afro-descendente. Para
isso, dividiremos o seguinte trabalho em dois
momentos: primeiro, traremos um breve histórico
da difusão do negro no espaço brasileiro
amparando-nos em suas práticas de resistências, e
seguiremos na descrição de como o negro está
inserido no Brasil contemporâneo; em seguida,
por ser uma manifestação contemporânea de
27 Resistência negra em A Voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
resistência negra, nos pautaremos na cultura Hip
Hop, em especial, o estilo rap, e finalizaremos o
nosso trabalho com a análise das imagens
presentes no rap A Voz do Excluído de MV Bill –
uma das letras que, além de representar a
afirmação de uma identidade negra, busca intervir
nas estruturas de poder na sociedade.
A canção de MV Bill escolhida aqui como
objeto principal dessa produção faz parte das
diversas canções que vêm nos chamando a
atenção, pelo seu tom de incentivo à crítica aos
setores sociais responsáveis pela administração
pública, contribuindo para sensibilizar, não só a
população negra, mas também aqueles que
exercem o poder na sociedade. A partir dessa
reflexão, durante a análise do rap A Voz do
Excluído, procuraremos ver se a atitude de MV
Bill, na propagação de sua mensagem, pode ser
destacada como de resistência. Para isso,
analisaremos de que maneira as diferentes
imagens e representações (políticas, sociais) estão
representadas na canção, a fim de ratificar o poder
discursivo do rap para a construção de uma
sociedade justa e igualitária.
É valido destacar que as motivações para
esse trabalho surgiram a partir do 7º semestre do
curso de Letras Vernáculas, principalmente com o
contato que tivemos com a disciplina Literatura:
Crítica, História, Cultura e Sociedade. Foi
durante esta, que passamos a conhecer, cada vez
mais, alguns estudos que enfatizam o negro como
sujeito, e não somente como objeto literário. Ao
longo da disciplina retrocitada, fomos instigados a
uma produção cientifica voltada para a análise de
uma letra de rap. Foi uma das produções que mais
sentimos o prazer em produzir, pois envolvia
questões muito próximas da realidade atual, que é
a luta de resistência dos negros em busca de
melhores condições de vida, sobretudo destes que
vivem em situações precárias. Deste modo
atenção, aproveitamos o ensejo para
aprofundarmos nossos estudos ao ponto de
chegarmos à elaboração deste Trabalho de
Conclusão de Curso.
Essa produção está pautada em uma
pesquisa bibliográfica, e segue a normalização de
um artigo científico, guiado pelo livro Orientações
metodológicas: construindo trabalhos
acadêmicos e científicos, organizado por José
Humberto da Silva (2008). As principais
referências bibliográficas que serão utilizadas
como aporte teórico desse trabalho,
imprescindíveis para as nossas ponderações, são:
O negro no século XXI, de Luislinda Dias de
Valois Santos (2009); RAP e educação: RAP é
educação, livro organizado por Elaine Nunes de
Andrade (1999); Afro-descendência em Cadernos
Negros e Jornal do MNU, de Florentina da Silva
Souza (2006); A discriminação do negro no livro
didático, de Ana Célia da Silva (2004); Literatura
Negro-Brasileira, de Luis Silva [Cuti] (2010); O
ser negro: a construção da subjetividade em
afro-brasileiros, de Maria da Consolação André
(2008); Rap : ritmo e poesia – construção
identitária do negro no imaginário do RAP
brasileiro, de Volnei JoséRighi (2011); entre
outras. Esse levantamento teórico possibilita alçar
olhares sobre a condição do negro no Brasil,
regido sobre o olhar branco, bom e superior, além
de estar evidente que estes autores buscam dar
voz aos grupos de minoria, que ao longo do tempo
vem sendo postos à margem da sociedade
brancocêntrica, racista e etnocêntrica, que exclui a
imagem do africano como construtor de
conhecimento e detentor de uma rica herança
cultural. Assim sendo, com esse olhar que revela
as condições sócio-raciais que busca legitimar e
dar voz até então silenciada, coloca-se em
evidência que o homem negro conquista – com
muitos esforços – a outorgação de seus direitos,
fazendo cair o véu da submissão e exclusão social.
28 Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Um Brasil de resistência negra: ontem e
hoje
Sabe-se que o tráfico de negros, na época
da escravidão, ocasionou um redirecionamento
identitário, visto que a ação da imposição da
classe dominante obrigou-os a seguir
atitudes/tradições que não faziam parte da sua
cultura, e sim da cultura dos colonizadores
(ANDRÉ, 2008). Para André (Ibidem)
O negro ao ser arrancado de suas raízes e vendido, em praça pública, como objeto (era vendido como peça leiloada) teve seu universo de significação retalhado. Ao ser separado de seus iguais teve a sua comunicação impossibilitada. A estratégia de separá-los foi eficaz, pois estando, misturados em diversas nações nem sempre era possível a compreensão linguística, sendo forçado a tentar aprender a língua do colonizador (p. 95-96).
O fato de os negros serem impedidos de
manifestar sua cultura começou no período em
que, ainda, eram escravizados, pois, além de
serem submetidos ao trabalho desumano, eram
ainda separados dos seus parentes e/ou amigos
sendo difícil a comunicação com falantes de outra
língua. O colonizador tendia à fragmentação dos
grupos de negros para que estes não se
organizassem, a fim de romper com o sistema
cruel da escravidão. Com isso, o negro passou a ter
contato, cada vez mais, com outros grupos que
detinham uma identidade histórica e cultural
diferente da dele, e, além disso, passou a ser
submetido à cultura do poder dominante.
Sabemos que o indivíduo estando exposto
a outras culturas e em contato direto com outras
etnias, trocando experiências, passa a ter sua
identidade abalada. Sobre identidade, André
(2008) define a construção desta como um
processo que advém do campo individual e
coletivo.
Individualmente, a pessoa vai se desenvolvendo como unicidade, marcando cada momento de sua jornada particular. Como ser social, passando por diferentes grupos (família, escola, amigos, trabalho e outros contextos), faz trocas de aprendizagens, identificando-se com umas, rejeitando outras e, a partir destas identificações, desenvolve sentimentos de pertencimento ou não pertencimento a esses grupos (ANDRÉ, 2008, p. 102- 103).
No período brusco da escravidão, a
cultura do negro foi impedida pelos colonizadores
de ser praticada, tentaram impor uma
cultura/costumes que, até então, eram
desconhecidos pelos negros. Assim, forçavam a
produção de uma falsa identidade. Porém, nota-se
que a formação da identidade do negro no espaço
brasileiro não se constituiu como ambicionada
pelos colonizadores, pois, apesar de ter sido
impedido de expressar seus costumes culturais e
de ser aceito socialmente, houve aqueles que não
se desvincularam de sua cultura, resistindo à
imposição do poder dominante, isso fez com que
se formasse uma identidade negra brasileira.
Uma das manifestações culturais
pertencente à identidade do negro e que faz parte
do panorama das religiões africanas vítimas de
perseguições é a cultura do candomblé. Esta é
uma religião “resultante da reinterpretação das
várias cosmovisões africanas que, durante quase
cinco séculos de escravidão, foram trazidas
daquele continente para o Brasil” (TEIXEIRA,
2009, p. 120). No país, em seu período
escravocrata, esta cultura religiosa foi coibida de
ser praticada.
Durante o período escravagista, a religião oficial do Brasil era a católica e esta era imposta aos escravos, não lhes sendo dado o direito de praticar sua religião. O poder público não aceitava o candomblé; pelo contrário, tinha-o como contravenção penal e jamais como religião praticada por seres humanos (SANTOS, 2009, p. 57).
29 Resistência negra em A Voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Devido a essa aversão do poder
dominante em aceitar a manifestação dos rituais
do candomblé no espaço brasileiro, a cultura
desse povo foi subjugada, colocada como inferior,
nesse caso, proibida de ser praticada e propagada.
Assim, foi-lhes imposta a cultura e a religião dos
brancos, o catolicismo, usado como manifestação
de poder e resistência dos sustentáculos do mito
da democracia racial. Partindo deste pressuposto,
percebe-se que os negros foram impossibilitados
de cultuar sua crença e costumes, sendo obrigados
a fazer da sua, uma cultura clandestina.
Além da cultura do candomblé, há outras,
que ao fazer parte do panorama das culturas
africana, vêm representar para o negro, traços de
sua identidade, por exemplo: a capoeira e o
samba-de-roda. Estas são algumas das
manifestações culturais que sobreviveram ao
longo do tempo, e que, de acordo com Andre
(2008), além de serem praticadas “como meio de
divertimento”, era também a forma dos negros
expressarem a sua história, pois “faziam parte de
suas origens” (ANDRÉ, Ibidem, p. 97).
Entretanto, a capoeira, por exemplo, foi vista por
muitos como um ato de rebeldia, aqueles que o
praticava era denominado pelos colonizadores
como marginais.
Essa ideia equivocada de que a capoeira
seria sinônimo de marginalidade foi
desmistificada, hoje é uma cultura aceita pela
sociedade, e está a cada dia fazendo parte da
cultura de muitos, isto por ser uma forma de
divertimento e por provocar o bem estar físico e
emocional daqueles que a praticam.
É pertinente realçarmos, mais uma vez,
que o negro, durante o processo escravocrata, não
se manteve inerte, houve resistência contra a
violência de dominação, contra a imposição da
cultura dominante, como exemplo, a atitude de
fuga dos negros e a constituição das comunidades
quilombolas.
Os quilombos eram núcleos populacionais formados por escravos fugitivos. Nesses locais eles resistiam à escravidão e defendiam a liberdade; homens e mulheres tentavam reconstituir nos quilombos as várias versões de uma vida comum: realizavam festas, plantavam, coletavam, pescavam, caçavam e praticavam transações econômicas possíveis (PINTO, 2006, p. 172).
Nas palavras de Righi (2011), os
quilombos
[...] eram propositalmente localizados em lugares de difícil acesso, geralmente fortificados e escondidos no meio das matas, e bem afastados dos centros urbanos. Essas características estratégicas dos Quilombos levam-nos a identificá-los como uma espécie de guetos, absolutamente segregados e marginalizados pela sociedade, mas um local de reconhecimento e de identificação entre seus iguais (p. 41).
Foi nos quilombos que os negros
encontraram liberdade para exercer sua cultura
que até então vinha sendo interrompida. Um dos
mais conhecidos foi o Quilombo dos Palmares,
que teve como líder Zumbi, um ícone de
inspiração para muitos estudiosos na
reconstituição do passado histórico da diáspora
negra, isto por ter sido uma figura de resistência
contra as práticas de dominação impostas pelos
escravocratas.
Conforme Silva (J.,2004),
Onde quer que tenha existido [...], o quilombo sempre foi modelo de inspiração para a rebeldia dos africanos escravizados e dos afro-descendentes no mundo. É este exemplo de luta que serviu de fonte de inspiração para organizações negras no Brasil do período pós-Abolição e que foi retomado na década de setenta pelas entidades negras contemporâneas. (p. 41)
30 Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Mesmo depois de muitas lutas, e apesar
da inserção da Lei Áurea, lei que entrou em vigor
em 1888 e que objetivou o direito aos negros de
viverem livres, vê-se que as manifestações de
resistências dos afro-descendentes ainda vieram
se propagando no país, isto por não terem sido
aceitos como cidadãos comuns.
De acordo com Souza (2006),
Os efeitos e desdobramentos da citada lei podem ser observadas, nos finais do século XX, quando jovens negros e mestiços, de sexo masculino, são solicitados, pela polícia, a apresentar carteira de trabalho assinada, sob pena de serem presos por vadiagem ou por “suspeita”. Permanece, pois, a tentativa de controle autoritário e indevido da circulação dos afro-brasileiros em espaços ou momentos que não lhes são “permitidos” (p. 34).
Atualmente, há muitos negros morando
em periferias, sendo explorados no mercado de
trabalho, ocupando profissões subalternas e sendo
mal remunerados. Assim, continuam sendo alvo
de uma política conservadora, que infelizmente
privilegia os traços sórdidos da escravidão,
fazendo com que o negro torne-se cada vez mais
invisível.
Segundo Souza (2006), essa invisibilidade
Manifesta-se, ainda, na incapacidade de enxergá-lo fora dos papéis sociais a ele destinados pela sociedade. Em determinados papéis, a presença do afro-descendente é “naturalizada”; na maioria das cidades brasileiras vê-se como “normal”, por exemplo, um número majoritário de negros exercendo funções de subalternidade em empregos de baixa remuneração, circulando pelo centro da cidade e pelos chamados bairros nobres no exercício de tais funções, situações em que quase não são notados como pessoas, fazem parte do cenário – são invisíveis (p. 35).
Essas elucidações de Souza confirmam os
traços de inferiorização arraigados desde o
período escravocrata, em que o negro sempre foi
visto como subalterno e inferior, cabendo-lhes
somente o menosprezo por parte de uma
sociedade excludente.
Representações do negro na sociedade
contemporânea
A Lei Áurea não garantiu a liberdade do
cidadão negro de ir e vir, pois ao exercerem
profissões desumanas continuam preservando as
marcas da escravidão. E é nessa mesma linha de
contradição legislativa que a Constituição Federal
de 1988 – lei suprema do nosso país – acaba
também se estabelecendo, inclusive quando, no
artigo 3.º, versa a construção de “uma sociedade
livre, justa e solidária”, elucida “erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais”, e,
principalmente, quando salienta “promover o bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação” (BRASIL, 1988, p. 2). Não é isso
que ocorre na prática. A diferença é notável, tanto
nos direitos que não são iguais, quanto na justiça,
uma vez que, a lei do negro é diferente da lei
aplicada ao branco. Com essa aplicabilidade
injusta da lei que propaga a igualdade, os pobres e
negros estão ficando cada vez mais reféns de um
sistema que somente beneficia os que têm um
melhor poder aquisitivo, geralmente os brancos.
Conforme André (2008)
O privilégio econômico, político, ideológico e sócio-cultural do branco está imbricado com a divisão social e funcional que dá acesso ao trabalho, à educação, à saúde, ao lazer, o que torna mudanças ou transformações, no plano estrutural da sociedade e no plano de distribuição de renda e de recursos, processos que possivelmente darão, em sua maior parte, conquistas ao seguimento branco. (p. 152)
31 Resistência negra em A Voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Os afro-descendentes ocupam um lugar
inferior na camada social, sendo que, em sua
maioria, são pobres, moram em periferias e não
partilham dos benefícios de inclusão social que o
governo oferece, permanecendo assim excluso dos
vários setores sociais de prestígio.
Havendo mais brancos que negros nas
escolas públicas brasileiras, pode se dizer que,
conforme destaca Santos (2009), “a educação
oferecida ao negro é de qualidade inferior em
comparação à educação oferecida ao branco, e
poucos encontram meios para acabar com as
desigualdades” (SANTOS, ibidem, p. 25). O livro
didático, por exemplo, que deveria ser um
instrumento de inclusão/formação/informação,
vinha “pintando” um negro submisso carregado de
traços pejorativos. É pensando nisso, que a
estudiosa Silva (2004), ao analisar alguns livros
didáticos de ensino fundamental, vem chamar a
atenção. De acordo com a autora, na maioria dos
livros para crianças, há a construção de imagens
negativas sobre os negros, estes são citados “como
pertencentes a um passado histórico, não atuantes
no presente e identificados como escravos,
humildes e colocados em posição inferior”
(SILVA, A., ibidem, p. 26). Já em relação aos
personagens brancos, são enfatizados como
superiores, carregados sempre de estereótipos
positivos.
O branco é [...] associado a belo, puro, bom e inteligente, em oposição ao negro, associado ao feio, malvado, incapaz, com atributos físicos não-humanos e constituindo-se em minoria social. (...) os personagens brancos têm nome, sobrenome, têm família constituída e exercem papéis e funções conceituados na sociedade. A família branca aparece como modelo da família brasileira, uma vez que em todas as ilustrações e exercícios de composição e descrição sobre família, ela foi ilustrada como modelo (SILVA, A., 2004, p. 38)
Ainda de acordo com Silva (A., 2004),
nos livros, a mulher negra está sempre destacada
como a empregada doméstica “carregada de
estereótipos de mulher feia, gorda, sem
inteligência, supersticiosa, ingênua e subserviente.
E, invariavelmente, de avental e lenço nos
cabelos”. (SILVA, A., ibidem, p. 59). Esses traços
pejorativos presente nesses livros vêm reforçar a
discriminação e o racismo em relação ao negro, já
que este passa a ser perseguido por essas imagens
forjadas. Desse modo, evidencia-se que a
ineficiência da educação para com os negros já
começa na elaboração do material didático.
Essa ineficiência dos livros didáticos e o
baixo poder aquisitivo vinham sendo alguns dos
empecilhos enfrentados pelos negros para
adentrarem numa universidade e/ou competir
com pessoas que tiveram a oportunidade de
frequentar escolas de qualidade. Atualmente,
graças às cotas universitárias, está sendo
frequente a presença de negros em universidades
cursadas também por brancos. As cotas, além de
proporcionarem a inclusão social, permitem,
também, o combate ao racismo, possibilitando,
assim, um maior desenvolvimento do país.
Apesar de muitos terem opiniões
contrárias às cotas universitárias, após esse
sistema, já é notório vermos a presença de negros
em ambientes de prestígio, competindo com
pessoas que frequentaram melhores escolas,
chegando a ocuparem cargos de alto escalão que
antes eram somente ocupados por brancos.
Contudo, de acordo com André (2008), do total de
estudantes negros que passaram pela
universidade, “os que conseguiram ascender às
chamadas classes médias ainda é uma minoria
absolutamente insignificante” (ANDRÉ, ibidem, p.
171).
Além das cotas universitárias que vêm dar
oportunidade ao negro de inserção social, é
pertinente destacar também a promulgação da Lei
10.639/2003, que altera a Lei 9.394/1996,
tornando obrigatória a disciplina “História e
32 Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Cultura Afro-Brasileira” no ensino Fundamental e
Médio do sistema público e privado de ensino. Um
documento que vem conferir às minorias direito à
diversidade cultural, fortalecendo as iniciativas de
alguns pesquisadores no resgate da identidade
negra. Essa é mais uma oportunidade que o
brasileiro vem tendo para desvendar o outro lado
da história, as imagens que foram silenciadas
pelos discursos eurocêntricos, sobretudo as de
resistência do afro-brasileiro no que concerne ao
regime escravocrata.
Com a implantação dessa Lei – Lei
10.639/2003 – a religião afro-brasileira,
principalmente a cultura do candomblé, poderá
deixar de ser vítima de perseguições desumanas e
desrespeitosas, pois, ainda no século XXI o
preconceito a essa religião ainda “grita”.
Apesar dessas iniciativas positivas do
governo federal que oportunizam o afro-
descendente o acesso aos bens sociais, nota-se que
a desigualdade e a exclusão desse grupo ainda se
estendem com intensidade na sociedade
brasileira. E é para intervir no sistema de exclusão
que vem se ampliando as vozes de resistência,
como exemplo, a dos escritores afro-brasileiros
segundo Souza (2006),
Não será a cor da pele ou a origem étnica o elemento definidor dessa produção textual, mas sim o compromisso de criar um discurso que manifeste as marcas das experiências históricas e cotidianas dos afro-descendentes no país. O conjunto de textos circula pela história do Brasil, pela tradição popular de origem africana, faz incursões no ioruba e na linguagem dos rituais religiosos, legitimando tradições, históricas e modos de dizer, em geral ignorados pela tradição instituída (p. 61).
Juntam-se com essas vozes de resistência
da literatura afro-brasileira as outras vozes
guiadas pela cultura do Hip Hop3, em especial o
estilo rap – uma cultura contemporânea da
3 O Hip Hop se manifesta através do break (dança), do grafite
(pintura) e do rap (musica) (ANDRADE, 1999, p. 86- 87).
população negra vítima de processos sociais,
políticos e econômicos geradores de exclusão.
O hip hop e o rap A Voz do Excluído de MV
Bill: instrumentos contemporâneos de
resistência negra
A dispersão do rap começa a se ratificar
no final dos anos 70 – como expressão da
juventude negra – na periferia urbana dos Estados
Unidos. Rapidamente se espalhou nas periferias
de outras regiões norte-americanas, até chegar ao
Brasil, país em que a manifestação veio se
consolidar a partir do final dos anos 80 e início
dos anos 90. As músicas geralmente versam sobre
a construção de uma identidade positiva e
refletem sobre problemas sociais enfrentados por
pessoas – negras e pobres – que enfrentam, em
suas comunidades, dificuldades financeiras e de
infraestrutura.
Assim sendo, o rap, por se originar nas
comunidades periféricas, locais mais habitados
por afro-descendentes, passa a ser utilizado –
pelos adeptos – como meio de alterar/ desfigurar
a representação que é feita sobre a realidade das
pessoas que fazem parte desse cenário de
exclusão, pois oportuniza aos sujeitos novas
possibilidades de decifrarem os problemas sociais
que estão a sua volta, Segundo Andrade (1999),
O rap, independente do seu ritmo acelerado, ensurdecedor e rebelde, representa um instrumento político de uma juventude excluída. Independentemente de seu conteúdo muitas vezes agressivo e provocador, indica uma ação pedagógica de jovens em processo de escolarização ou mesmo evadidos da escola. Quem observa o seu conteúdo, analisando a sua letra, independente do seu gosto musical, vai encontrar uma leitura da vida social, do “fazer” da sociedade, comparada a muitos cientistas sociais que apenas superam esses jovens na linguagem culta e específica do universo científico. É de se espantar! (p. 86)
33 Resistência negra em A Voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Os discursos que predominam nas
composições dos rappers brasileiros seguem numa
linguagem oral, informal, coloquial, afastando-se das
regras eruditas da Língua Portuguesa. É por meio das
suas variantes linguísticas que os rappers vêm
propagando as suas ideologias. A sua revolução já
começa com a linguagem escolhida para a transmissão
de sua mensagem, assim já deixa evidente a sua
oposição a qualquer tipo de imposição de tradições e
padrões.
De acordo com Kehl (1999), as principais
armas dos rappers na transmissão de suas mensagens
são: sua palavra, sua “consciência” e sua “atitude”. É
por meio dessas alegorias que os músicos procuram
chamar a atenção de cada um, a uma mudança de
atitude, a fazer suas escolhas individuais de forma
consciente (KEHL, 2010, p. 684 – 5).
Em relação ao Hip Hop brasileiro, daremos um
enfoque especial a algumas iniciativas do rapper MV
Bill. Utilizaremo-nos de uma de suas composições, A
Voz do Excluído, a qual demonstraa luta do músico para
a inclusão do negro no retrato social brasileiro.
Porém, antes de adentrar no corpus principal
dessa produção, faz necessário referenciar o primeiro
grupo de rappers que veio sustentar a ideologia do Hip
Hop no Brasil: Os Racionais.
De acordo com Righi (2011) Os Racionais foi
um dos primeiros grupos que abraçou a cultura do Hip
Hop em nosso espaço, re-configurando o movimento
com a sustentação de uma crítica social engajada nos
problemas reais das comunidades periféricas do Brasil.
Um grupo formado em 1988 a partir de duas duplas de
artistas que operavam como amadores e independentes
em suas próprias comunidades: “Mano Brown (Pedro
Paulo Soares Pereira) e Ice Blue (Paulo Eduardo
Salvador), da Zona Sul de São Paulo; e Edy Rock
(Edivaldo Pereira Alves) e KL Jay (Kleber Geraldo Lelis
Simões), da Zona Norte” (RIGHI, ibidem, p. 88). Com a
adoção da cultura Hip Hop, o grupo mantendo-se
afastado da mídia, passou a consolidar um movimento
em prol da “liberdade de expressão e de pensamento,
devendo funcionar como voz ideológica e representação
da periferia” (RIGHI, 2011, p. 89). A partir dessa
ideologia inicial, o grupo Racionais MC”s4 passou a se
difundir no Brasil, chegando a conquistar a admiração
do público, tornando-se um dos ícones contemporâneos
de resistência negra do país na propagação de
mensagens baseadas na vida social dos sujeitos que
habitam nos espaços (periferias) esquecidos pelo poder
hegemônico, e de recusa à mídia, por ser um
instrumento de alienação de massa.
A partir de 1990, a fim de ampliar a
sustentação da ideologia do Hip Hop brasileiro, passou
a fazer parte do movimento, o rapper Alex Pereira
Barbosa, mas conhecido como MV Bill. Nascido e criado
na Cidade de Deus – comunidade do Rio de Janeiro,
local onde mora até hoje, Bill é coprodutor e codiretor
do filme Falcão: Meninos do Tráfico, posteriormente
transformado em livro5 com o mesmo nome. É coautor
dos livros Falcão: Mulheres do Tráfico6 e Cabeça de
Porco7.
A partir da idealização dos trabalhos ilustrados
acima, MV Bill passou a ter uma visão mais realista das
periferias de todo o Brasil. E é através dessa experiência
adquirida ao longo de sua vida que o rapper vem
lançando os seus raps. Sua discografia se consolida na
gravação de cinco trabalhos: CD Mandando Fechado
(1998); CD Declaração de Guerra (2002); CD Falcão: o
Bagulho é Doido (2006); DVD Despacho Urbano
(2009) e o CD Causa e efeito (2010) (RIGHI, 2001, p.
149 - 52).
MV Bill, diferentemente dos outros rappers, ao
invés de adotar a sigla “MC” (Mestre de Cerimônias),
resolveu colocar a frente de seu nome a sigla “MV”
(Mensageiro da Verdade). Assim, a fim de mostrar a
realidade brasileira dos jovens negros que vivem em
espaços periféricos, o rapper utiliza a designação
4 De acordo com Bruno Zeni, MC (mestre de cerimônias) é um termo
do Hip Hop utilizado para se referir ao rapper: aquele que canta ou declama as letras de raps (ZENI, 2011, p. 731). 5Falcão: Meninos do Tráfico (2010) é composto de documentários de
jovens que vivem em comunidades periféricas, onde a criminalidade e o tráfico de drogas tornaram-se meios de sobrevivência dos
entrevistados. Os autores procuraram retratar a rotina dramática de
dezessete jovens submergidos no tráfico de drogas. O lado humano dessa classe é destacado de forma emocionante e comovente. 6Falcão – Mulheres do tráfico (2010) segue a mesma ótica do livro
Falcão – Meninos do Tráfico, porém, é enfatizada a vida de mulheres atraídas pelo tráfico de drogas. 7 O livro Cabeça de Porco (2005) traz um painel realista das
periferias do Brasil onde a violência e o tráfico de drogas são marcantes. Os autores (Luiz Eduardo Soares, MV Bill eCelso
Athayde) almejam possibilidades de melhorias sociais e econômicas
para os sujeitos que habitam nesses espaços.
34 Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Verdade para demonstrar que sua atitude fundamenta-
se na propagação de mensagens verídicas.
No meio das diversas produções de MV Bill,
está o rap A Voz do Excluído, que tem como pano de
fundo a expressão daqueles que vivem na comunidade
Cidade de Deus no Rio de Janeiro, espaço mais
habitado por pessoas negras e pobres. A canção
retrocitada foi gravada primeiramente no álbum
Enquanto o mundo gira (2000), do grupo Cidade
Negra. Depois Bill gravou em seu DVD Despacho
urbano. Ao longo da canção, Toni Garrido, músico do
grupo Cidade Negra, apenas enuncia o refrão “O que
você vai fazer agora para mudar a regra?/O que você vai
fazer agora para mudar a real?”, enquanto MV Bill
enuncia os demais versos, se colocando como “porta
voz” da comunidade Cidade de Deus.
Vejamos que o título do rap que está sendo
apreciado sintetiza o tema do discurso, do raper MV
Bill. Rememora aquele que é privado de benefícios, que
não detém o poder na sociedade. Diante deste
pensamento, a partir de uma perspectiva do seu grupo
étnico o rapper traz um discurso de resistência a fim de
abalar as relações de poder presentes na sociedade.
Mv Bill tá em casa, pode acreditar/Terrorismo, a voz do excluído tá no ar (tá no ar)/ Mais um guerreiro do Rio de Janeiro/ Buscando alternativa pra sair do coma brasileiro/ Considerado louco por ser realista/ Maluco, e não me iludo com vidinha de artista/ Guiado por Jesus tenho minha missão/ Guerreiro do inferno, traficante de informação (A voz do excluído – MV Bil).
Nota-se que MV Bill revela a sua
indignação perante o caos social e denuncia a
situação marginal de um grupo brasileiro que vive
– como uma espécie de “obrigação” – refugiado
em espaços periféricos urbanos. Deste modo, ao
colocar em evidência a voz do excluído, o rapper
toma como matéria prima do seu discurso o
“poder da palavra” como meio de persuasão. Essa
é uma das características particulares do rap, que
é tomar a palavra como meio de discutir
posicionamentos e opiniões. Nesse sentido, o rap
retoma
uma das funções que a literatura tem nas sociedades letradas, e o faz sem demarcar espaços de separação entre o produtor “autorizado” do texto literário e o consumidor deste. Em outras palavras, o rapper torna-se literato, no sentido exato da palavra, conquistando o direito de se exprimir pela palavra (DUARTE, 1999, p. 18- 19).
Bill utiliza palavras com sentido figurado
para denunciar as desigualdades e criticar o poder
governamental. Dentre elas, o “coma brasileiro”,
que denota a disparidade pública, as injustiças, o
descaso humano, a falta de assistência, a exclusão
social sofrida pela população que vive em
situações estigmatizadas, por exemplo: o pobre e o
negro ou todos aqueles que são considerados
como minorias, aqueles que não detêm o poder de
decidir sobre as suas vidas, “os guerreiros do
inferno”. No entanto, em resposta a essas
injustiças sociais, há as vozes de resistência – aqui
representadas por MV Bill – em que o governo
passa a ser o principal alvo. Assim MV Bill,
“traficante de informações”, utiliza o seu discurso
para criticar a alta sociedade em prol de melhorias
em sua comunidade.
Essas metáforas têm o poder de persuadir
o leitor para uma leitura ampla da realidade. De
acordo com Hall (2003), as metáforas
[...] nos permitem imaginar o que aconteceriam se os valores culturais predominantes fossem questionados e transformados, se as velhas hierarquias sociais fossem derrubadas, se os velhos padrões e normas desaparecessem ou fossem consumidos em um “festival de revolução”, e novos significados e valores, novas configurações socioculturais, começassem a surgir. Contudo, tais metáforas devem possuir também um valor analítico. Devem fornecer meios de pensarmos as relações entre os domínios sociais e simbólicos nesse processo de transformação (p.205-6).
Prosseguindo com os pressupostos de MV
Bill, ao denunciar as diferenças de classes,o rapper
contesta e resiste ao sistema da elite social:
35 Resistência negra em A Voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Chapa quente, favelado é o nome/ Falo pelo menor que nunca teve Danone como você/ Sei que é difícil de entender, você nunca sofreu como eu lá na CDD (A voz do excluído – MV Bill)
Destarte, nesse trecho, infere-se que o
rapper ao utilizar um discurso de resistência
mostra-se indignado perante a diferença de
classe. A partir de uma manifestação ideológica,
política e social, o enunciador coloca em xeque a
desigualdade, pondo de um lado aquele que pouco
usufrui de bens sociais, e do outro, aquele que tem
acesso a todos os privilégios.
Para abalar as estruturas sociais, MV Bill
procura definir os vários enfoques acerca da
política capitalista causadora do caos na
sociedade.
Não acredito que o povo é contente/ Quem ri da própria miséria não é feliz, está doente/ Que nem sente que está sendo massacrado/ Drogado, e sempre embriagado/Não represento o hip hop/ Só falo pelo pobre/ Que sempre se fode guiado pelo ibope/ Televisão, ilusão, tudo igual/ Faz você gastar o seu dinheiro no carnaval/ Faz o meu povo ser ridicularizado, inferiorizado/ Engraçado, hostilizado, tá tudo errado/ O orgulho foi roubado/ As marcas de um passado que não foi cicatrizado (A voz do excluído – MV Bill).
Vê-se que a poética de Bill chama a
atenção do marginalizado para que as identidades
sejam afirmadas, procura alternativa para o fim da
“cegueira”, sobretudo da “escravidão”, pois “Quem
ri da própria miséria não é feliz, está doente/ Que
nem sente que está sendo massacrado/ Drogado, e
sempre embriagado”. Deste modo, o rapper vem
deixar claro o seu objetivo, que é sensibilizar estes
que são manipulados e escravizados, por exemplo,
pelo discurso midiático e pelo carnaval, que, de
certa forma são espécies de ilusões, que leva o
cidadão à necessidade de consumir produtos cujos
preços estão além de sua capacidade de aquisição.
Portanto, muitas das “pessoas que consomem e
apreciam esses produtos devem ser, elas próprias,
aviltadas por essas atividades ou viver em um
permanente estado de “falsa consciência” (HALL,
2007, p.237).
Conforme Guimarães (1999),
Do lado dos rappers, por sua vez, os meios de comunicação são considerados como aliados do “sistema” que eles combatem. A imprensa, por exemplo, por um bom tempo associou o rap apenas à violência, tratando os grupos musicais como gangues e como seus disseminadores (p. 43).
Logo, MV Bill acaba nutrindo um contra-
discurso, apontando os agentes manipuladores e
julgando-os como prejudiciais à dignidade dos
grupos que estão à margem da sociedade. Ao abrir
nossos olhos para a realidade, o rapper nos deixa à
vontade para “denunciarmos os agentes da
manipulação e da decepção em massa - as
indústrias culturais capitalistas” (HALL, 2007,
p.237).
Percebe-se que há muitos instrumentos de
manipulação de massa que além de conservarem
um estereótipo negativo sobre o negro, acabam,
também, incentivando a discriminação,
destacando o negro como aquele que vive no lugar
já determinado, não dando espaços para a
regressão na vida social e política. É diante desse
pensamento que MV Bill, ao denunciar seu grupo
étnico como o alvo de preconceitos e
discriminação racial, ideológica e cultural, tende a
desestruturar aqueles que os vêm fazendo mal:
Nascido e criado na CDD/ Nascido preto, perseguido até morrer/ Me ver na prisão é o desejo da madame/ Mas eu não tenho apê de um milhão em Miami/ Comprado e mobiliado com o dinheiro do povo/ Eu olho pra TV e me sinto mais um bobo/ Contaminado e dominado pelo medo/ Aqui, cadeia é pra puta, pobre e preto/ Sujeito homem, não sou homem sujeitado/ Nem tô condicionado a ser manipulado por ninguém/ Minha atitude vai além/ Falo por milhões/
36 Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Compreendido por menos de cem (A voz do excluído – MV Bill)
De acordo com o discurso do rapper,
aquele que nasce negro e na periferia terá o
destino traçado, será perseguido e excluído dos
bens sociais, pois a cor da pele e o seu espaço
geográfico de nascença passarão a ser sinônimos
de miséria, abandono e escravidão. Deste modo, o
rapper vem denunciar o preconceito racial
provindo daqueles que, ainda, conservam uma
ideologia ultrapassada, que colocam o negro
sempre como inferior, nãocomungando dos
mesmos direitos de cidadão.
Em consonância com Souza (2005), essas
visões racistas e preconceituosas passam a ser um
dos empecilhos para o “crescimento do
movimento negro num país no qual os negros são
maioria em todos os setores e lugares socialmente
desprestigiados, são sempre vistos como
suspeitos” (SOUZA, ibidem, p.54).
Além de dar ênfase a alguns aspectos
racista presentes na sociedade brasileira, MV Bill
critica o explorador, aquele que usufrui de bens
econômicos à custa do povo. Assim, percebemos a
denúncia do rapper à corrupção, colocando em
evidência que quem paga pelas mazelas da elite
são as minorias “puta, pobre e preto”. Porém,
apesar do seu tom ser de denúncia, o rapper
demonstra um constrangimento, em razão de seu
discurso ainda ser pouco “receptivo”. Os próprios
“excluídos” ainda não reconheceram a relevância
do movimento para com as suas vidas. Por outro
lado, essa falta de recepção ainda pode ser
entendida como oriunda de uma política
conservadora, que privilegia os discursos daqueles
que se adaptam a uma sociedade de prestígio.
Desse modo, por não disporem de amplos espaços
para sua visibilidade, os discursos das minorias
acabam sendo “repreendidos”.
Nas denuncias do rapper, verifica-se que
as marcas que retratam a exclusão social são
pintadas no texto de vários modos.
Da CDD à Baixada Fluminense se gerou conflito, meu amigo, então pare e pense/ FHC não dá nada para favela, só dá carnaval, miséria, polícia e novela/ Que coisa linda, cheia de graça/ família disputando seu almoço na praça/ FMI vai achar sensacional/ Quem gosta de miséria é intelectual/ M, V, B, I, L, L, preto na mente, na roupa e na pele/ Cidade Negra, CDD tá no ar, na hora de cobrar/ A chapa pode esquentar (A voz do excluído – MV Bill)
MV Bill tece uma crítica ao ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso – FHC (1995-2002)
perante o desamparo às comunidades
marginalizadas. Além de destacar novamente o
carnaval e a mídia como meios de manipulação
de massa, o rapper traz um outro elemento: o
FMI. De acordo com o seu discurso, além dos
meios de manipulação, o presidente FHC utilizou
o FMI para encobrir o caos social, “valendo-se de
entretenimento e de violência, sem mencionar, no
entanto, valores morais, incentivos à educação e à
cultura” (RIGHI, 2011, p. 195), contradizendo,
assim, a sua formação como sociólogo.
Por outro lado, ao distinguir-se como a
“voz do excluído”, Bill deixa luzir o seu “grito de
guerra” revelando o seu lugar étnico e social de
pertença. As vozes que emergem de seu discurso
são uma constituição de um conjunto de outras
vozes integrantes da mesma realidade social do
rapper. Visando uma transformação política,
ideológica e social, MV Bill contesta a ordem
vigente na sociedade, e luta em busca de direitos
iguais.
No rap, A Voz do Excluído, percebe-se que
MV Bill faz alusão ao preconceito social e racial, à
pobreza, e, sobretudo, à “igualdade” que o
conservadorismo não permite. É a propagação de
uma situação social completamente diferente da
veiculada pelos meios de comunicação, em que é
37 Resistência negra em A Voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
comum “vender” uma imagem deturpada do que
é, e do que acontece nas periferias.
Considerações finais
As abordagens presentes neste artigo
tendem a instigar estudiosos a dar ênfase às
manifestações de resistência do afro descendente
no Brasil.
Diante do que foi exposto, vê-se que o
dispositivo rap, por está engajado numa
perspectiva cultural, política e social, torna-se um
instrumento de maior relevância para a inserção
do negro no retrato social brasileiro. O rap, a
partir de uma linguagem própria dos sujeitos afro-
descendentes, situados numa geografia
excludente, tende a desmascarar as diversas
irregularidades geradoras de situações desiguais,
tornando-se, assim, uma das maiores
manifestações contemporâneas de denúncia social
e política. A partir da análise do corpus, foi
possível perceber que os discursos presentes nos
raps estão associados a questões históricas e
sociais. Nota-se que da mesma forma que os
manifestantes do Hip Hop trazem sua cultura,
trazem também sua história, sensibilizando
aqueles que se prontificam a dar atenção a essa
manifestação gritante. É assim que a ideologia
contemporânea do afro-descendente vem se
consolidando, sobretudo na contestação aos
discursos e práticas racistas excludentes.
É por essa ótica também que MV Bill, a
partir de seus projetos de combate à criminalidade
e exclusão social, vem se consagrando,
transformando-se em um dos maiores ícones
contemporâneo de resistência negra na
propagação ideológica dos sujeitos que habitam
nos espaços esquecidos/silenciados pelo poder
hegemônico. As informações trazidas por MV Bill
sobre a política social brasileira acabam colocando
em xeque o poder político como o principal
responsável pelo caos social. Assim, o rapper se
consolida como um porta voz de seu grupo étnico
em busca de melhores condições de vida para as
comunidades marginalizadas.
Em suma, apesar dessas iniciativas
positivas do afro-descendente em tirar as
máscaras do poder dominante, vê-se que há,
ainda, uma necessidade de desconstrução de
discursos hegemônicos, tanto no âmbito literário,
como também no social, pois fica manifesto que o
negro, por carregar um histórico de exclusão,
ainda enfrenta problemas que impossibilitam a
sua inserção em alguns setores sociais
considerados como privilegiados. Nos meios de
comunicação, esse grupo, ainda, é representado
por imagens forjadas. O rap, por exemplo, apesar
de representar para muitos brasileiros a afirmação
de suas identidades, ainda é repreendido pela
sociedade elitizada, que insiste em ver este estilo
musical como uma manifestação grotesca que
deve ser banida. Deste modo, torna-se pertinente
aprofundarmos, mais e mais, em estudos voltados
para os gêneros musicais, sobretudo estes que, ao
representarem as vozes das minorias, tendem a
denunciar as diversas irregularidades presentes na
sociedade. É relevante estarmos sempre ativos,
como propulsores de uma ideologia que busque a
igualdade dos povos, sem menosprezar,
discriminar e excluir o outro.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Eiene N. de. Hip Hop: movimento negro juvenil. In: ANDRADE, Eliene N. de (org). Rap e educação, rap é educação: São Paulo: Summus, 1999, p. 83- 91. ANDRÉ, Maria da Consolação. O ser negro: a construção da subjetividade em afro-brasileiros. Brasília: LGE Editoras, 2008, p. 95- 177. BRASIL. Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília (DF): Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.
38 Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
BRASIL. Ministério da Educação. Lei nº 10.639, de 9 de Janeiro de 2003. Disponível em:http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=236171. Acesso em: 13 de outubro de 2012. CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. São Paulo: Beca Produções Culturais Ltda, 1999. CUTI, Luiz Silva. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. DUARTE, Geni Rosa. A arte na (da) periferia: sobre...vivências. In: ANDRADE, Eliene N. de (org). Rap e educação, rap é educação: São Paulo: Summus, 1999, p. 13 - 22. GUIMARÃES, Maria Eduarda Araujo. Rap: traspondo as fronteiras da periferia. In: ANDRADE, Eliene N. de (org). Rap e educação, rap é educação: São Paulo: Summus, 1999, p. 39 - 54. HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. KEHL, Maria Rita. As frátrias órfãs. In: PEREIRA, Edimilson de Almeida (org.). Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010, p. 683 – 699. MV BILL; ATHAYDE, Celso. Falcão: Meninos do tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. MV BILL; ATHAYDE, Celso. Falcão: Mulheres e o tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. MV BILL; ATHAYDE, Celso; SOARES, Luiz Eduardo. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. PINTO, Benedita Celeste de Moraes. Os remanescentes de quilombolas na região do Tocantins (PA): história, cultura, educação e lutas por melhores condições de vida.In: BRAGA, Maria Lúcia de Santana; SOUZA, Edileuza Penha de;
PINTO, Ana Flávia Magalhães (orgs.). Dimensões da inclusão no ensino médio: mercado de trabalho, religiosidade e educação quilombola.Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006, p. 271- 303. RIGHI, Volnei José. Rap : ritmo e poesia. Construção identitária do negro no imaginário do RAP brasileiro. Brasília: UNB, 2011. SANTOS, Luislinda Dias de Valois. O negro no século XXI. Curitiba: Juruá, 2009. SILVA, Ana Celia da Silva. A discriminação do negro no livro didático. 2. ed. – Salvador: EDUFBA, 2004. SILVA, Jônatas Conceição da. O quilombo na vida cultural do afro-brasileiro. In: Vozes quilombolas – uma poética brasileira. Salvador: EDUFBA: ILÊ AIYÊ, 2004, p. 23 -44. SILVA, José Humberto da.Orientações metodológicas: construindo trabalhos acadêmicos e científicos. Salvador: EDUNEB, 2008. SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. TEIXEIRA, Maria Lina Leão.Bori – prática terapêutica e profilática.In: MANDARINO, Ana Cristina de Souza; GOMBERG, Estélio (orgs.). Leituras Afro-Brasileiras: territórios, religiosidades e saúdes. São Cristóvão: Editora UFS; EDUFBA, 2009, 119- 142. ZENI, Bruno. O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva. In: PEREIRA, Edimilson de Almeida (org.). Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010, p. 727 – 741. <http://www.avozdoexcluido.mvbill.letrasdemusicas.com.br/> Acesso em: 04 de janeiro de 2012.
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: (RE) DESCOBRINDO CONCEITOS.
Sérgio Gonçalves Ramalho
RESUMO O presente texto, visando contribuir para o trabalho de professores da Educação Básica, tece breves considerações sobre possíveis implicações do letramento na alfabetização, como busca, também, uma tentativa de desfazer equívocos sobre tais conceitos, pautadas na análise bibliográfica de autores renomados, como Magda Soares, Ângela Kleiman, Roxane Rojo, Maria de Lourdes Matencio e Luiz AntõnioMarcuschi (entre outros), sobre o assunto. Para tanto, será (re)descoberto e comentado, suscintamente, conceitos de alfabetização e de letramento, e a sua importância para o ensino-aprendizagem. Além de tratar sobre definições de Letramento e Alfabetização, este trabalho busca discorrer sobre outro tipo de letramento: o literário, enfatizando a sua importância no universo de letramentos. Para ilustrar a relevância do letramento literário, é utilizado no texto o gênero textual literário Poema, mas precisamente o poema de Cordel. O texto não se propõe a oferecer soluções sobre questões referenciadas ao tema em questão, apenas tenta enriquecer essa temática, a partir da compreensão de conhecimentos teóricos dos autores retro-citados. Palavras–chave: Alfabetização. Letramento. Ensino-aprendizagem. Letramento literário. ABSTRACT The current text, aiming to contribute to the work of teachers in basic education, makes brief considerations about possible implications of literacy in alphabetization, as a quest, it is also an attempt to correct mistakes about these concepts, and guided by the bibliography review of renowned authors such as Magda Soares, Angela Kleiman, RoxaneRojo, Maria de Lourdes Matêncio and Luiz Antonio Marcuschi (among others) about the subject. Therefore, concepts of alfhabetization and literacy and their importance in teaching and learning will be discovered and briefly commented. Besides dealing with definitions of literacy and alphabetization, this work seeks to discuss another type of literacy: the literacy, emphasizing the importance in the universe of literacy. To illustrate the relevance of literary literacy, it is used in the text the textual literary genre Poem, but precisely the Cordel Poem. The text is not intended to provide solutions on referred issues to the subject in examination, it just tries to enrich this theme, from the understanding of theoretical knowledge of the above mentioned authors. Key-words: Alphabetization. Literacy. Teaching-learning. Literary literacy. INTRODUÇÃO
A dinamização presente na descoberta
do que seja, realmente, alfabetização e
letramento, enquanto temas que suscitam,
muitas vezes, certa incompreensão e confusão na
mente de leitores que não têm, pouca ou
nenhuma, aproximação aos estudos mais
consistentes na elucidação desses termos, será
percebida nas colocações, algumas sucintas,
outras nem tanto, no decorrer deste trabalho.
Não tentaremos, aqui, por força do
limite expositivo do presente trabalho, exibir
provas definitivas sobre a conceituação desses
elementos: a alfabetização e o letramento; mas,
tentar buscar uma aproximação às
40 Sérgio Gonçalves Ramalho
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
terminologias, aos conceitos, ancorada nos
aportes de renomados especialistas, mestres e
doutores, no trato desses conceitos e sua extrema
relevância para a prática de ensino-
aprendizagem.
Inicialmente, serão abordados conceitos
sobre a questão do termo alfabetização, a partir
de rápida passagem sobre a questão do
letramento, no sentido de descobrirmos, desde o
início, a imbricação social existente entre ambos
os conceitos.
Em seguida, chegaremos aos aportes
conceituais sobre o que é mesmo o letramento e
suas reais consequências para o ser humano e a
sociedade. E, por fim, pontuaremos o letramento
literário como um tipo de letramento elegido
para exemplificarmos, a partir do gênero poema
de cordel, a sua importante função de
engajamento e indignação social.
Como conclusão, faremos uma breve
consideração sobre a importância do tema sobre
o qual nos propomos a incursionar neste
trabalho.
A alfabetização
Para chegarmos à compreensão sobre o significado de alfabetização, primeiramente tentaremos pontuar o Letramento, recorrendo à sua definição contida nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1988), os quais afirmam que ele é
[...] o produto da participação em práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia. São práticas discursivas que precisam da escrita para torná-las significativas, ainda que às vezes não envolvam as atividades específicas de ler ou escrever. Dessa concepção decorre o entendimento de que, nas sociedades urbanas modernas, não existe grau zero de letramento, pois nelas é impossível
não participar, de alguma forma, de
algumas dessas práticas. (p.19)
A partir do entendimento decorrente
dessa concepção dos Parâmetros Curriculares
Nacionais, segundo a qual “nas sociedades
urbanas modernas, não existe grau zero de
letramento, pois nelas é impossível não
participar, de alguma forma, de algumas dessas
práticas” (1988:19), podemos crer que, embora
os apelos pela leitura e pela escrita sejam
diversos e massificantes no universo urbano
moderno, que os estímulos para a participação
ativa nessas práticas sejam correntes no dia-a-
dia, sobretudo pluralizados pela sedução das
peças publicitárias, expostas em inúmeros
contextos, mesmo para os que não possuem o
domínio básico dos signos linguísticos, ou seja,
não sejam alfabetizados, o que dizer, então, das
práticas exercidas pelos indivíduos situados em
camadas sociais, distantes geograficamente, e
porque não dizer, sociocultural e
economicamente, dos grandes centros, isto é, das
sociedades ditas “urbanas modernas”? O que
dizer dessas pessoas que não tiveram a mínima
condição de oportunidade de acesso ao bem
educacional formal primário, a alfabetização,
pelo fato de, uma vez despossuídos
economicamente, estarem inseridas no universo
rural, que não tiveram, ao longo de suas vidas,
senão a exclusão social, e a lida diuturna na lavra
da terra alheia, enquanto camponeses, para
buscar a própria sobrevivência e da sua família?
Diante do exposto, poderíamos, sem
uma reflexão mais apurada e com uma visão, no
mínimo, reducionista, ponderar que a afirmação
dos PCN‟s sobre o Letramento esteja mais
voltada para os sujeitos que circulam nos centros
urbanos modernos.
41 Alfabetização e letramento: (re) descobrindo conceitos
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Entretanto, se buscarmos apoio em texto
da UNESCO (2003), veremos que os sujeitos,
não alfabetizados ainda, que nasceram,
cresceram e permanecem nos contextos de áreas
rurais, em pequenos povoados distantes de polos
urbanos, são contemplados, sim, também, pelos
apelos de leitura e escrita circulantes nessas
esferas culturais provincianas, nesses espaços
agrários nos quais giram um grau mínimo de
letramento. O texto da UNESCO apresenta uma
nova concepção do que seja alfabetização, a qual
não pode estar alheio aos contextos situacionais
socioeconômico e cultural da população, uma vez
que
[...] as circunstancias variam bastante no mundo como um todo, de modo que a implementação da alfabetização tem que se adaptar a ambientes rurais, periurbanos e urbanos, à relação com a oralidade e as chamadas culturas „orais‟ e à sua relevância para a vida dos agricultores, tanto homens quanto mulheres, e para o setor informal da economia. Os benefícios diretos da alfabetização muitas vezes se manifestam, primeiramente, em termos de fatores intangíveis, como uma maior autoestima, uma mobilidade mais ampla, participação mais intensa na vida comunitária e maior respeito pelas mulheres – fatores esses que são de importância fundamental para as iniciativas locais de combate à pobreza e à impotência. (UNESCO, 2003, apud SCHOTTEN, 2011: 51).
A nosso ver, essa é uma concepção
extremamente balizada a partir do conceito de
letramento, pois, excede o significado da
alfabetização, uma vez que esta é um tipo de
letramento – privilegiado, bem o sabemos, sendo
o letramento algo muito mais amplo do que a
alfabetização. A alfabetização é considerada um
tipo de letramento privilegiado por estar situado,
contextualizadamente, no espaço educacional
institucional, mas, não apenas nesse espaço,
visto que esse tipo de letramento está presente,
também, na esfera doméstica, posto que poderá
se dar nos contatos diuturnos com entes
familiares no mesmo conjunto familiar.
Quanto a isso, Soares (2003 apud
SCHOTTEN, 2011, p. 61) nos diz que
Um adulto pode ser analfabeto, porque marginalizado social e economicamente, mas se vive em um meio em que a leitura e a escrita têm presença forte, se se interessa em ouvir a leitura de jornais feita por um alfabetizado, se recebe cartas que outros leem para ele, se dita cartas para que um alfabetizado as escreva, [...]se pede a alguém que lhe leia avisos ou indicações afixadas em algum lugar, esse analfabeto é, de certa forma, letrado, porque faz uso da escrita, envolve-se em práticas sociais de leitura
e de escrita. (p. 24)
E, sobre a espinhosa questão do
letramento e da alfabetização, que, não poucas
vezes, causa impacto de confusão e polêmica até
nos educadores profissionais ativos em sala de
aula, do Fundamental II e do Ensino Médio,
Soares (Ibidem) registra, ainda, que
Um indivíduo alfabetizado não é um individuo letrado; alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever, já o indivíduo letrado, o indivíduo que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e de escrita [...]. Enfim, letramento é o estado ou condição de quem se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e de escrita. (p. 02)
Para instigar mais ainda a nossa
percepção ao tema proposto, recorremos,
também, a uma renomada especialista na área,
Ângela Kleiman, a qual irá esclarecer possíveis
equívocos sobre os conceitos de alfabetização e
letramento.
Em entrevista (2010) sobre como
enxerga a relação entre os conceitos de
42 Sérgio Gonçalves Ramalho
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
alfabetização e letramento, Kleiman considera
que a alfabetização é uma prática de letramento,
própria das atividades escolares, com metas e
fins específicos, portanto, trata-se de uma
prática social situada.
E, em como considera a alfabetização
dentro de uma perspectiva social da escrita, em
vez da concepção tradicional que trabalha as
práticas de leitura e produção textual com ênfase
em habilidades individuais, Kleiman afirmou
que
Não há incompatibilidade entre a alfabetização e a prática social desde que seja esta última a que determine os objetivos do ensino da língua escrita. O trabalho da alfabetização para a prática social centra-se, naturalmente, nos participantes da vida social, adequando-se aos seus interesses e objetivos – alfabetizar-se para, aos poucos, tornar-se mais autônomo nas situações em que se usa a língua escrita. Ainda, será feita a partir de textos, pois toda atividade social, toda interação se concretiza por meio de textos.
Quanto à questão de levar em
consideração a perspectiva sócio-cultural dos
estudos do letramento significa deixar de incluir,
nas práticas de ensino do código escrito, os
métodos de alfabetização, ou seja, as práticas
analíticas escolares voltadas para a
sistematização do código escrito, a entrevistada
respondeu que
De nenhuma maneira. Pelo contrário, o trabalho de análise é necessário na alfabetização. De que outra forma a criança aprenderia a rimar palavras, a brincar com aliterações (por exemplo, buscar palavras que se iniciem com o mesmo som), a soletrar? A diferença está no ponto de partida e de chegada. Na perspectiva do letramento, todos os trabalhos de análise fonológica partem do texto e terminam no texto porque é o texto, e não a letra, a sílaba ou a palavra isolada o que é relevante na prática social, porque o que interessa é que a
criança aprenda a língua escrita – ou seja, ler e escrever textos, não apenas o alfabeto. A criança que trabalha com a palavra “bola” depois de ter discutido uma manchete ou uma legenda, ou uma notícia no jornal sobre a bola que o time perdeu e que lhe custou o jogo é uma criança que terá muito mais elementos onde ancorar os novos símbolos, as famílias de sílabas, enfim, aquilo que o professor achar importante para o trabalho de sistematização e generalização. Assim como a criança que aprende a letra “E” no contexto da placa do sinal de Estacionamento, para dar outro exemplo.
O letramento Ângela Kleiman (1995), ao discutir o
letramento como práticas sociais que envolvem a
escrita, mostra que a escola é apenas uma dentre
as várias outras agências de letramento de nossa
sociedade: igreja, trabalho, família etc. Isso quer
dizer, então, que é possível participar de eventos
de letramento sem precisamente ter ido à escola.
Segundo a autora (Ibidem)
[...] o fenômeno do letramento, então, extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita. Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização. (p. 20)
Dentro dessa concepção, os estudos
consideravam a escrita como uma habilidade
neutra e homogênea que traria desenvolvimento
e benefícios aos que a dominassem. Concepções
como esta é que dão origem a crenças como a de
que quem sabe ler e escrever pensa melhor, ou a
de que quem não lê e escreve não pode ser
considerado humano ou não existe.
A palavra letramento, utilizada no Brasil,
segundo Rojo (2010) vem do termo “literacy”,
que em inglês designa a “capacidade de ler e
43 Alfabetização e letramento: (re) descobrindo conceitos
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
escrever” (MICHAELIS), praticada na escola,
como o que nós conhecemos por “alfabetização”.
Conforme a autora,
[...] foi para reconhecer esta variedade e diversidade de práticas sociais que a reflexão teórica cunhou, nos anos 80, o conceito de letramento. Usado pela primeira vez no Brasil, como uma tradução para a palavra inglesa literacy, no livro de Mary Kato de 1986, No mundo da escrita, o termo “letramento” busca recobrir os usos e práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra maneira, sejam eles valorizados ou não valorizados socialmente, locais (próprios de uma comunidade específica) ou globais, recobrindo contextos sociais diversos (família, igreja, trabalho, mídias, escola, etc.), em grupos sociais e comunidades
diversificadas culturalmente. (p. 25-26)
Pode-se perceber, a partir dessas
afirmações, que a escrita não é neutra e
homogênea como se pressupunha. Ela é
heterogênea, plural, diversificada, pois envolve
situações as mais variadas possíveis, a partir de
uma ampla diversidade de práticas
contextualizadas, principalmente, se for levada
em conta a sociedade urbana moderna. A partir
de observações de práticas variadas de usos da
leitura e da escrita, portanto, de práticas letradas
em diferentes contextos do cotidiano – comércio,
família, religião, escola – a pesquisadora Rojo
(2010) considera que
Numa sociedade urbana moderna, as práticas diversificadas de letramento são legião. Podemos dizer que praticamente tudo o que se faz na cidade envolve hoje, de uma ou de outra maneira, a escrita, sejamos alfabetizados ou não. Logo, é possível participar de atividades e práticas letradas sendo analfabeto: analfabetos tomam ônibus, olham os jornais afixados em bancas e retiram dinheiro com cartão magnético. No entanto, para participar de práticas letradas de certas esferas valorizadas, como a escolar, a da
informação impressa, a literária, a burocrática, é necessário não somente ser alfabetizado como também ter desenvolvido níveis mais avançados de alfabetismo. E é justamente participando dessas práticas que se desenvolvem esses níveis avançados de alfabetismo. No entanto, a distribuição dessas práticas valorizadas não é democrática: poucos brasileiros têm acesso ao livro literário, a jornais, a museus e mesmo ao cinema. Por isso é tão importante que a escola se torne uma agência de democratização dos
letramentos. (p.26)
Sem dúvida, a escola é o lugar onde se
espera que sejam privilegiadas as práticas de
leitura e escrita legitimadas socialmente, mas é
preciso ter em mente que os alunos chegam até
ali já tendo construído alguma relação com a
escrita. E, em especial, para o professor de séries
iniciais, saber qual é essa relação e partir dela
para planejar sua prática faz certamente uma
grande diferença para tornar suas aulas mais
significativas para os seus estudantes.
Diante disso, ou seja, para que os
docentes possam oferecer uma aprendizagem
mais viva e eficaz, não pode perder de vista a
compreensão de que os estudos de letramento se
caracterizam por tirar a atenção do indivíduo e
seus processos mentais e se preocupar com a
interação e a prática social. Pois, os estudos de
letramento são baseados na visão de que ler e
escrever só fazem sentido quando estudados no
contexto das práticas sociais e culturais dos
quais são uma parte. E se alargaram, segundo
Kleiman (1995), para descrever as condições de
usos da escrita, principalmente enfocando as
práticas de letramento de grupos minoritários.
Assim, “os estudos já não mais pressupunham
efeitos universais do letramento, mas
pressupunham que os efeitos estariam
correlacionados às práticas sociais e culturais
44 Sérgio Gonçalves Ramalho
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
dos diversos grupos que usavam a escrita”
(KLEIMAN, 1995, p.16).
Dessa forma, apesar do forte sentido
educacional que obteve nos últimos anos, o
conceito de “letramento” surgiu justamente para
desvincular os estudos da língua de alfabetização
e de desmistificar seus supostos efeitos
universais, mostrando os usos da escrita em
diferentes contextos, com diferentes objetivos.
A partir disso, nota-se que, apesar do
forte apelo pedagógico, “letramento” não é um
método de ensino, nem se iguala à alfabetização.
Como explica Kleiman (2005), letramento não é
um método, interpretação advinda da entrada do
conceito no ensino-aprendizagem da escrita. O
letramento envolve a imersão no mundo da
escrita, a participação em diferentes práticas de
letramento, o que pode ser possibilitado por
diferentes métodos, por diferentes estratégias. O
letramento também não é alfabetização, mas a
inclui. A alfabetização é uma prática de
letramento que faz parte das práticas sociais de
uso da escrita da instituição escola. O letramento
também não é uma habilidade, mas envolve um
conjunto de habilidades e competências. Em
diferentes práticas de letramento – leitura de um
jornal, escrita de um bilhete, leitura de um
romance, discussão sobre uma notícia – nós
utilizamos diferentes habilidades e competências
para participar dessas práticas.
Como salienta Kleiman (Ibidem, p. 16),
“por isso, „ensinar letramento‟ é uma expressão
no mínimo estranha, pois implica uma ação que
ninguém, nem mesmo um especialista, poderia
fazer”.
Em entrevista, Angela Kleiman (2009)
define “letramento” da seguinte forma:
Refiro-me aos impactos que a língua escrita tem no mundo atual na vida de um cidadão comum. Antes de começar os estudos de letramento no Brasil há quinze anos, sempre se pensava a escrita no âmbito da escola. Agora, estuda-se a escrita de usos escolares, distinguir a múltipla escrita no contexto do movimento hip hop, das associações quilombolas, no contexto de diversos movimentos sociais, no cotidiano. A escrita não se reduz ao ambiente escolar. Pensa-se o uso da escrita todo dia. Caminho pela rua, vejo uma placa para me orientar, uma propaganda. A toda hora, nós nos defrontamos com a língua escrita, e os estudos de letramento procuram averiguar o impacto que isso causa na vida do homem comum.
Para enriquecer a exploração de
conceitos e a discussão em torno do letramento,
outro renomado especialista entra em cena com
suas considerações sempre pertinentes e
extremamente oportunas: Marcuschi (2001),
quanto à questão do letramento, afirma que
[...] é um processo de aprendizagem social e histórica da leitura e da escrita em contextos informais e para usos utilitários, por isso é um conjunto de práticas, ou seja, „letramentos‟. [...] Distribui-se em graus de domínios que vão de um patamar mínimo a um
máximo. (p. 21)
Essa afirmação evidencia a extrema
importância que as práticas sociais, nas quais
acontecem a escrita, trazem aos estudos de
letramento. Esses estudos, conduzidos sob uma
ótica interpretativa envolvendo a escrita em
contextos nos quais essas práticas são comuns,
visibiliza a diversidade de letramentos que
possibilitam o engajamento dos interlocutores
protagonistas dessas práticas sociais e culturais
correntes.
Tomando como ponto de partida a
definição de letramento no sentido de dar
significado a uma prática discursiva de um grupo
social específico em uma determinada situação,
45 Alfabetização e letramento: (re) descobrindo conceitos
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
cuja implicação não é outra senão a de que há
inúmeras práticas de letramento e não apenas
uma, Kleiman (1995, p. 19) afirma que “podemos
definir hoje o letramento como um conjunto de
práticas sociais que usam a escrita, enquanto
sistema simbólico e enquanto tecnologia, em
contextos específicos, para objetivos específicos”.
Nesse sentido, as práticas onde ocorrem os
letramentos passam pelos condicionamentos
efetivos determinados pela utilização da escrita,
pelas suas funcionalidades, e sofrem mutações
mediante a transformação desses
condicionamentos.
Por isso, o letramento é situado
(KLEIMAN, 2001) e ideológico (STREET, 1984),
no sentido de que é formado por valores e
práticas culturais em que está envolvido. Afirmar
que o letramento é ideológico quer dizer que os
usos da escrita nunca são neutros e
descontextualizados.
Os processos de letramento ocorrem em
toda a escolarização e em todo uso da língua
escrita. Como salienta Kleiman (2007),
[...] leitura e escrita são práticas discursivas, com múltiplas funções e inseparáveis dos contextos em que se desenvolvem”. “A concepção de escrita dos estudos do letramento pressupõe que as pessoas e os grupos sociais são heterogêneos e que as diversas atividades entre as pessoas acontecem
de modos muito variados. (p.4)
Maria de Lourdes Meireles Matencio
(2009, p. 6) destaca que “a contribuição
determinante de estudos sobre o letramento
resulta de assumirem que se lida, sempre, com
práticas – no plural”, na medida em que há
sempre a coexistência de múltiplas formas de se
produzir sentido pelos “objetos” escritos, que
variam segundo o tempo, o espaço institucional,
as circunstâncias, os grupos e os sujeitos que os
constituem.
Essa perspectiva dos Estudos de
Letramento procura “flagrar e compreender as
atividades de leitura e escrita no âmbito das
práticas sociais em que ocorrem” (MATENCIO,
Ibidem, p.5), o que permite a investigação dos
usos efetivos da linguagem, em diferentes grupos
e por diferentes sujeitos. Tal compreensão dos
usos da língua como sempre situados coaduna-se
com a compreensão de que a linguagem nunca se
dá no vazio, mas sempre numa situação histórica
e social concreta, através da interação.
A partir do exposto, o letramento é
melhor compreendido como um conjunto de
práticas sociais; estas podem ser inferidas de
eventos mediados por textos escritos. Aqui,
interessa muito aos professores de língua
materna, no sentido de pensarem sobre o
trabalho com linguagem na escola a partir das
perspectivas aqui anunciadas. Vimos que os
enunciados e os textos que se utilizam em salas
de aula necessariamente se relacionam de
alguma forma a enunciados anteriores já
conhecidos ou não pelos alunos, os quais
participam de práticas diversas de letramento
não só na escola, mas também fora da sala de
aula. E cada prática social em que se engaja em
diferentes contextos tem valores sociais e efeitos
específicos. Por exemplo, no movimento Hip
Hop, os raps (as letras de música desse estilo), e
os rappers (os compositores) são extremamente
valorizados dentro do movimento e nas
comunidades em que esses grupos são
prestigiados. Contudo, esses mesmos usos da
linguagem dos raps são considerados “errados”
em outros contextos, como numa avaliação que
parta das regras da gramática normativa do
português. Da mesma forma, numa moda de
46 Sérgio Gonçalves Ramalho
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
viola, o “sotaque” caipira do interior paulista é
acentuado nas composições e, portanto, não é
desprestigiado entre aqueles que compõem e
apreciam esse estilo musical, o que pode ser visto
de maneira negativa por falantes de outras
variedades.
Levar tais questões em consideração é
fundamental para que a prática pedagógica se
aproxime da realidade dos alunos e possa de fato
inseri-los no universo das práticas de letramento
de prestígio, permitindo que eles circulem com
autonomia pelo mundo da escrita.
Assim, considerar a realidade dos
indivíduos com quem lidamos na escola em
nossa prática não significa trabalhar
simplesmente o já conhecido e não buscar
avanços, mas sim partir do que lhes seja familiar
para então trazer o novo, o diferente, o que ainda
não foi visto, o mais valorizado socialmente,
aquilo que irá permitir uma maior possibilidade
de ação cidadã por parte de nossos alunos, e
expor e discutir as diferenças valorativas em
diferentes contextos para os usos da linguagem.
Portanto solicitam da escola e da sociedade
novas realidades.
Novas realidades sociais provocam a
demanda de novas palavras. No Brasil, por
exemplo, a necessidade de separar os estudos
sobre o impacto social da escrita dos estudos
sobre a alfabetização levou a utilização da
palavra letramento, aqui entendida como um
conjunto de práticas sociais, as quais variam
conforme as maneiras e a intensidade com que
os grupos sociais e econômicos integram a
escrita e a leitura em seu cotidiano.
Esse grau de integração de cada
sociedade, nos seus mais variados contextos e
situações, consideradas como eventos de
letramentos, tem a ver com o lugar que um
desses grupos dá à escrita, porém, não depende
da alfabetização.
A esse respeito, podemos refletir que a
introdução e a proliferação da escrita
produziram uma cultura letrada. Do mesmo
modo, por exemplo, como ocorreu com a cultura
eletrônica à qual foi dada tamanha importância,
a ponto de criar uma nova maneira de escrever, e
a quantidade de expressões que nasceu dessa
cultura é denominada letramento digital.
As novas tecnologias da escrita têm
provocado certa radicalização da escrita, pois a
sociedade contemporânea parece ter passado
para o plano da escrita. E isso, segundo o
pensamento de Kleiman (2005), dá a essa
tecnologia um caráter de onipresença, ou seja, de
estar presente em todos os lugares.
Por sua vez, ao tratar da questão do
indivíduo letrado e do indivíduo alfabetizado,
situando-os em contextos de apropriação
mínima de práticas da escrita, Marcuschi (2001)
afirma que
O letramento envolve as mais diversas práticas da escrita (nas suas variadas formas) na sociedade e pode ir desde uma apropriação mínima da escrita, tal como o indivíduo que é analfabeto, mas letrado na medida em que identifica o valor do dinheiro, identifica o ônibus que deve tomar, consegue fazer cálculos complexos, sabe distinguir as mercadorias pelas marcas etc. , mas não escreve cartas nem lê jornal regularmente, até uma apropriação profunda, como no caso do indivíduo que desenvolve tratados de filosofia e matemática ou escreve romances. Letrado é o indivíduo que participa de forma significativa de eventos de letramento e não apenas aquele que faz
um uso formal da escrita. (p. 25)
Essa concepção de letramento constitui
um contraponto ao pensamento de que as
pessoas analfabetas são cegas, incapazes de
pensar, de refletir, de ler e compreender o
47 Alfabetização e letramento: (re) descobrindo conceitos
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
mundo. Ocorre que essas pessoas têm
consciência do poder da hegemonia da escrita e o
lugar que está reservado a quem não a conheceu
através da escolarização.
Em sua obra Alfabetização e Letramento,
Tfouni (1995, p. 10), afirma ser impossível
desvincular esses dois termos os quais utiliza
para dar título à sua pesquisa. Segundo ela
“trata-se de um conjunto, enquanto a escrita é
produto cultural por excelência, a alfabetização e
o letramento são concebidos como processos de
aquisição de um sistema de escrita.”
E como essa radicalização cada vez
maior da escrita exige que o indivíduo, para se
livrar dos estigmas da exclusão, que lhes são
impostas pela sociedade contemporânea, além
de ser alfabetizado seja, também, letrado, ou
seja, desenvolva a capacidade de participar mais
de forma independente dos eventos de
letramento, situações mediadas por, digamos,
poderosas e, indispensáveis funções da escrita,
somente se efetivam por meio de gêneros
textuais.
Então, é necessário que a alfabetização
se dê na perspectiva do letramento, e isso só
possível através do trabalho com textos.
A reafirmação de que os letramentos são
práticas letradas em situações sócio-
comunicativas, vivenciadas culturalmente por
indivíduos, grupos e comunidades específicas, a
partir da interação social e humana, pode ser
sustentada pelas afirmações da especialista em
letramento Rojo (2010), quando diz que
Os novos estudos do letramento definem práticas letradas como “os modos culturais de se utilizar a linguagem escrita com que as pessoas lidam em suas vidas cotidianas”. Práticas de letramento ou letradas são, pois, um conceito que parte de uma visada socioantropológica. Tem-se de
reconhecer que são variáveis em diferentes comunidades e culturas. As práticas de letramento ganham corpo, materializam-se, nos diversos “eventos de letramento” dos quais participamos como indivíduos em nossas comunidades, cotidianamente.
(p. 26) Uma prática de letramento que envolve
muitas maneiras de utilização da linguagem, seja
escrita ou oralizada, e que tem o seu prestígio no
ambiente acadêmico, embora, às vezes, relegado
a um segundo plano nas práticas pedagógicas do
Ensino Fundamental e Médio, é o letramento
literário.
Entretanto, para falarmos sobre
letramento literário, faz-se necessário
compreendermos, basicamente, o que seja
literatura e quais as suas possíveis funções na
sociedade. Para tanto, recorremos a afirmações
de estudiosos renomados, que irão elucidar-nos
sobre esse universo tão fascinante, o qual nos faz
transcender a dura realidade do chão batido em
que vivemos, e que nos proporciona a
possibilidade de ampliarmos nossos horizontes,
a partir de novos olhares, de novos contextos,
mesmo condicionados, muitas vezes, ao
marasmo do cotidiano provinciano de uma
“cidadezinha qualquer”, parafraseando um
belíssimo poema de Drummond. Por ser
intrinsecamente ligada à realidade vivida do dia-
a-dia, pelo ser humano, a literatura nos desperta
e nos propõe, no seu âmago, a dimensão lúdica
carregada de encanto, permitindo-nos
experimentar vivências nunca antes sentidas,
removendo os muros da finitude e abrindo novos
caminhos de relação conosco mesmos e de inter-
relação com os outros, no nosso entorno, e, por
que não dizer, uma nova relação com Deus, o
Grande Outro, a Entidade do Sagrado que nos
envolve infinita e gratuitamente.
48 Sérgio Gonçalves Ramalho
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Nesse sentido, ao considerar a literatura
enquanto mola propulsora de significado e
beleza do mundo imanente e de permitir que
cada pessoa responda com mais positividade o
seu chamamento à plenitude humana, que
Todorov (2009 apud FILIPOUSKI e MARCHI,
2009, p. 9) envolto de extrema potencialidade
criadora, afirma que
Mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Somos todos feitos do que outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais; depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação humana. (p. 23-24)
O letramento literário oferece-nos a
possibilidade de enxergar a vida de uma forma
mais prazerosa e de nos assegurar que há mais
em nossa experiência de leitura de mundo do
que costumamos conhecer.
Assim, cremos que o letramento literário
é uma trilha que se faz a partir da nossa própria
experiência cotidiana, enquanto leitores das
“letras” do mundo que nos circunda. Como por
exemplo, a “leitura metereológica” para um (a)
camponês (a) experiente: ao olhar para as
nuvens que se avolumam, ele (a) afirma sem
receio que elas sinalizam chuvas de trovoadas;
uma pessoa que fita a outra e percebe um brilho
diferente nos seus olhos, diz estar apaixonada; é
essa espantosa multiplicidade, pluralidade e,
simultaneamente, a impressionante
singularidade de leitura que permeia a nossa
subjetividade. Sobre isso, afirma Cosson (2006),
que
[...] a leitura não está restrita às letras impressas em uma página de papel. Os astrólogos lêem as estrelas para preverem o futuro dos homens. O músico lê as partituras para executar a sonata. A mãe lê no rosto do bebê a dor ou o prazer. O médico lê a doença na descrição dos sintomas do paciente. O agricultor lê o céu para prevenir-se da chuva. O amante lê nos olhos da amada a traição. Em todos esses gestos está a
leitura. (p. 38)
Com essas leituras de mundo, é possível
afirmar, também, que o letramento literário é
um processo que se constrói, sobretudo,
subjetiva e historicamente, a partir de vários
eventos sociais. E é na família, por ser o espaço
germinal da palavra oralizada, que acontece o
primeiro momento de letramento literário: nos
contatos com os pais, avós, irmãos(ãs), tios(as);
o segundo, ocorre em um contexto mais amplo:
na comunidade, em contatos com vizinhos,
grupos de amigos e nos eventos culturais. A
escola, relativamente, tende a oferecer o terceiro
momento de letramento literário. Ela, que é tida
pelo sistema educacional vigente como o agente
instituído, formal, que deveria disponibilizar
momentos proficientes para a ocorrência de
eventos de leitura literária, relega-os para
segundo e/ou nenhum plano, em detrimento de
conhecimentos metalinguísticos e linguísticos
textuais, geralmente concentrados na superfície
do texto. Nesse sentido, Rangel (2005) pondera
que:
[...] Quando a leitura é entendida como uma forma de conhecimento, as idiossincrasias dos sujeitos e as particularidades de cada situação de leitura reduzem-se a um pressuposto, que só será possível encarar depois de suficientemente descritas as competências e habilidades que caracterizam o sujeito leitor, assim
49 Alfabetização e letramento: (re) descobrindo conceitos
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
como suas estratégias mais gerais ou básicas. Assim, numa perspectiva como esta, a leitura tende a ser encarada como um funcionamento ou um desempenho particular – porque aplicado a um campo específico – das competências e habilidades gerais que caracterizam o leitor maduro. Quando é a dimensão cultural que interessa, a leitura é, mais que qualquer outra coisa, um reconhecimento individual dos significados e valores culturais
historicamente associados ao texto. (p. 129)
Para compreendermos a importância do
letramento literário na vida do ser humano,
elegemos o gênero literário poema. Este gênero
literário, cujo caminho se constrói na
transmissão de ideias e sentimentos, na
construção de imagens e formas, permite
múltiplas leituras e interpretações.
Para ilustrar o poema enquanto
experiência de vida e a função social que exerce
causando um efeito de indignação social no ser
humano, elegemos o poema de cordel “O
agregado e o operário”, do poeta cearense
Patativa do Assaré (1900-2002) (2005 apud
Campedelli & Souza, 2009, p.32), deixando-o
para que o leitor deguste a sua leitura e o
interprete livremente, uma vez que o poema fala
por si mesmo.
O agregado e o operário Eu procuro defender No meu modesto poema Que a santa verdade encerra, Os camponeses sem terra Que o céu deste Brasil cobre E as famílias da cidade Que sofrem necessidade Morando num bairro pobre. Vão no mesmo itinerário Sofrendo a mesma opressão Nas cidades o operário E o camponês no sertão, Embora um do outro ausente O que um sente o outro sente Se queimam na mesma brasa E vivem na mesma guerra
Os agregados sem terra E os operários sem casa. [...]
Considerações finais Como vimos ao longo dessa exposição
conceitual sobre o tema em questão, letramento
e alfabetização são termos que, não raro, são
confundidos, sobretudo, por aqueles que
desconhecem a verdadeira origem desses termos
e suas reais consequências sociais, quando não
abordados, principalmente, nas escolas, sem a
responsabilidade de uma prática pedagógica
ancorada em especialistas estudiosos nessa área
da linguística.
Vimos, também, que os letramentos são
múltiplos e, um deles é o letramento literário, de
muita importância em nossas vidas, por força da
sua função social.
Na certeza de que tentamos contribuir,
não somente com a exposição de conceitos, mas,
também, com comentários, embora sucintos,
sobre os elementos de discussão: a alfabetização
e o letramento, para a ampliação da
compreensão desses termos e sua importância
social, sobretudo, na prática pedagógica, em sala
de aula, junto aos nossos alunos, e também junto
aos nossos docentes, que atuam, sofregamente,
no ensino-aprendizagem fundamental e médio,
este trabalho ganha certa relevância, e, por isso
mesmo, quer ser uma espécie de ponto de
provocação para futuras e interessantes
discussões a respeito do tema abordado.
REFERÊNCIAS
COSSON, R. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: contexto, 2006.
50 Sérgio Gonçalves Ramalho
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
FILIPOUSKI, A. M. R. & MARCHI, D. M. A formação do Leitor jovem: temas e gêneros da literatura. Erechim, RS: Edelbra, 2009. KLEIMAN, A. Modelos de Letramento e as Práticas de Alfabetização na Escola. In:______ (org) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. ________. Preciso ensinar o letramento? Não basta ensinar a ler e escrever? Campinas, SP: Cefiel, 2005. _________. (Entrevista disponível em http://multicienciaonline.blogspot.com/2009/11/escrita-como-uma-pratica-para-vida.html) MARCUSCHI. L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001. MATÊNCIO, M. L. M. Estudos do letramento e formação de professores: retomadas, deslocamentos e impactos. Caleidoscópio. V.7, n.1, p. 5-10, jan/abr 2009. MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais de língua portuguesa, 3º e 4º ciclos. Brasília, Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental, 1988. PATATIVA DO ASSARÉ (1900-2002) 2005, apud CAMPEDELLI, S. Y.; SOUZA, J. B. 2ª ed. Saraiva, 2009. RANGEL, E. de O. Letramento Literário e livro didático de língua portuguesa: “Os amores difíceis”. In: PAIVA. A. et al (org). Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces – O jogo do livro. Belo Horizonte, MG: Autêntica/CEALE/FaE/UFMG, 2005. p. 129. ROJO, R. H.. R. Língua Portuguesa: Ensino Fundamental. Brasília: Ministério da Educação e Cultura, Secretaria da Educação Básica, 2010. p. 25-26 (Coleção Explorando o Ensino); v. 19.) SCHOTTEN, N. Processos de alfabetização. 2ª ed. Indaial: Uniasselvi, 2011. SOARES, M. Letramento: como definir, como avaliar, como medir. In: SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 2000 [1995]. VALSECHI, M. C. Alfabetização e Letramento: Entrevista com Angela Del Carmen Bustos Romero De Kleiman. In: Educação & Docência, Ano 1, Número – jan/jun de 2010. P. 3 - 5.
YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA
CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS
ESTUDOS AFRICANOS NOS CURRÍCULOS
ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA
DÉCADA 1980.
Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana1 RESUMO O texto apresenta fragmentos da história do Centro de Estudos Afro - Orientais – CEAO da Universidade Federal da Bahia – UFBA contada a partir da realização do Projeto Introdução aos Estudos Africanos. Aborda o período de planejamento da proposta e os motivos que levaram o centro, na gestão da professora Yêda Pessoa de Castro, a realizar uma experiência educacional pioneira de articulação institucional entre a Universidade, o movimento social e a escola pública baiana na década de 1980. PALAVRAS-CHAVE: Educação. Estudos Africanos na escola. ABSTRACT The text presents fragments of the history of the Center for Afro-Oriental Studies - CEAO Federal University of Bahia - UFBa counted from the accomplishment of the Project Introduction to African Studies. To deal with the planning period of the proposal and the reasons that made the center, in the management of teacher Yêda Person Castro to hold an educational experience pioneering a institutional articulation between the University, the social movement and the public school from Bahia/Brasil in 1980. KEY – WORDS: Education. African studies in the school.
1Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia - IFBA. E-mail: cristianesantana@ifba.edu.br.
52 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
INTRODUÇÃO
Nesse texto2, apresentamos
fragmentos da história do Centro de Estudos
Afro-Orientais – CEAO da Universidade
Federal da Bahia – UFBA contada a partir das
ações realizadas no contexto do Programa de
Cooperação Cultural entre o Brasil e os Países
Africanos e para o Desenvolvimento de
Estudos Afro-Brasileiros criado no ano de
1974. Para tanto, descreveremos a atuação
desse renomado centro de estudos e pesquisas
e a articulação deste com instituições do
Movimento Negro baiano na década de 1980 a
fim de implantar o Projeto Introdução aos
Estudos Africanos. A discussão apresentada
aborda o período de planejamento da proposta
em questão e os motivos que levaram o CEAO,
enquanto órgão vinculado a uma importante
universidade brasileira, a realizar essa ação
pioneira de articulação institucional entre a
Universidade, o movimento social e a escola
pública, na década de 1980, na gestão da
professora Yêda Pessoa de Castro. O projeto
constitui uma experiência educacional
realizada ao longo dos anos de 1985-86 com o
objetivo de incluir a disciplina Introdução aos
Estudos Africanos nos currículos das escolas
baianas e representa um antecedente dos
programas e ações afirmativas que ora
vivenciamos, especialmente, no que se refere
ao trabalho com conteúdos relacionados à
História e Cultura Africana e Afro-brasileira
nos currículos escolares como conteúdo
obrigatório, conforme a Lei 10.6393 que, em
2 Esse texto é parte do Capítulo 3 da Dissertação de
Mestrado defendida pela autora em 2008, realizada no âmbito do
Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia, intitulada Introdução aos Estudos Africanos na
escola: trajetória de uma luta histórica (CRUZ, 2008). 3 Lei federal que, em 2003, alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96) no Art. 26 e tornou
janeiro desse ano, completou dez anos de
promulgação.
O artigo apresenta informações
colhidas em fontes documentais localizadas
nos arquivos do CEAO, além de depoimentos
fornecidos à autora, baseados nas memórias de
alguns dos sujeitos envolvidos no projeto em
questão, que merece ser sempre lembrado
como uma iniciativa em prol da
desmistificação do racismo e dos estereótipos
associados à população negra, via
conhecimento da história e cultura africana
por parte de professores e estudantes das
escolas públicas baianas. Sem a pretensão de
esgotar os encontros e desencontros dessa
experiência educacional, o texto apresenta os
primeiros passos e o contexto em que nasce a
proposta, que também fora abordada por
Boaventura (2003), Santos (1987) e Cruz
(1987) em diferentes produções.
Estudos Africanos no Brasil: contexto de
criação do CEAO/UFBA
Segundo Munanga (1996, p.9-11), os
estudos sobre a África no Brasil nasceram em
contextos diferentes, embora historicamente
relacionados. No primeiro contexto, situado
entre os anos de 1900 a 1950, surgem os
chamados “estudos afro-brasileiros”, como
pano de fundo cultural para entendimento dos
mecanismos de resistência e transformação
das culturas africanas nas Américas. No
segundo contexto, situado a partir de 1960, os
estudos ressurgem no momento de
solidariedade dos países do Terceiro Mundo a
obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira nos
currículos escolares. Foi alterada em 2008, pela Lei Federal nº
11.645, que a complementou com a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Indígena.
53 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS
CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
partir da Conferência de Bandung (1955)4, tem
seu apogeu após a queda do império colonial e
nos anos após a independência dos países
africanos. Nesse período, a “retórica oficial”
teria proclamado o reforço dos laços de
parentesco históricos entre Brasil e África,
entretanto, essa solidariedade teria sido
acompanhada pelos interesses comerciais e
econômicos que, por sua vez, demandavam um
maior conhecimento do continente parceiro. O
terceiro contexto, a partir dos anos 1970,
estaria relacionado à ação político-ideológica
dos afro-brasileiros e tem suas raízes na
atuação do Teatro Experimental do Negro,
liderado por Abdias do Nascimento, e no
Teatro Popular, liderado por Solano Trindade.
Esse contexto coincide com a tentativa dessas
instituições de ressaltar as matrizes africanas
presentes na cultura brasileira como estratégia
de (re) construção da identidade e autoestima
da comunidade negra.
O CEAO foi criado em 1959, na
segunda fase dos estudos africanos no Brasil,
por George Agostinho da Silva. De acordo com
Yêda Castro (2006, p. 331), naquele momento,
no contexto do projeto maior Oriente-
Ocidente, a Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura -
UNESCO fazia propostas às universidades da
Europa e das Américas para que estas
instalassem centros de estudos asiáticos em
seus domínios. Nesse contexto, ao encontrar-se
com o então Reitor Edgar Rêgo dos Santos,
4 A Conferência de Bandung foi realizada entre 18 e 24
de abril de 1955 e contou com a participação de vinte e nove estados asiáticos e africanos. Objetivava a promoção da
cooperação econômica e cultural afro-asiática, em oposição ao
que era considerado colonialismo ou neocolonialismo dos Estados Unidos da América, da União Soviética ou de outra
nação considerada imperialista. Nessa Conferência o racismo e o
imperialismo foram declarados como crimes e foi discutida a responsabilidades dos países imperialistas na ajuda para a
reconstrução desses países. (Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Confer%C3%AAncia_de_Bandung>. Acesso em 22 de janeiro de 2008).
Agostinho da Silva sugeriu que a UFBA
ampliasse a proposta da organização citada e
criasse um Centro de Estudos Afro-Orientais,
pois este melhor se adequaria à realidade
histórica e cultural da Bahia. A partir daí,
[...] constitui-se o CEAO como órgão de ensino, estudo, pesquisa e divulgação das culturas africanas e asiáticas, da influência dessas culturas no Brasil e da presença brasileira naquelas culturas. Em plano internacional, era destinado a divulgar e promover o conhecimento da língua portuguesa na África e das línguas e culturas africanas no Brasil. Em plano local, visava também a formação de especialistas em diferentes campos de conhecimentos relativos às suas áreas de interesse comum e a participação da comunidade em suas atividades. [...] (CASTRO, 2006, p. 332).
Munanga (2004, p. 77) afirma que os
estudos africanos realizados num primeiro
momento partiam das iniciativas individuais
de pesquisadores isolados enquanto que, a
partir da década de 1960, adquirem um caráter
institucional. Desse modo, o CEAO, enquanto
órgão oficial, foi instalado no subsolo do
palácio da Reitoria da UFBA e seu primeiro
diretor foi o próprio Agostinho da Silva. Em
1961, o então diretor viajou para Brasília para
fundar um Centro de Estudos Portugueses na
Universidade de Brasília e, em seu lugar,
assumiu o professor Waldir Freitas de Oliveira.
Ainda nesse ano, segundo Castro (2006, p.332-
333), o centro ofereceu os primeiros cursos de
línguas orientais e africanas através da
Fundação Japão e do Professor
EbenezerLashebikan e a sua fase pioneira,
localizada entre os anos de 1959 a 1969,
representou: a consolidação das bases da
política cultural idealizada por Agostinho da
Silva, normatizada no Regimento Interno de
1963, e um momento de reconhecimento e
54 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
projeção nacional e internacional. Ainda nesse
período, o Centro publicou a Série
Estudos/Documentos, o Boletim de
Informações, mais tarde com o nome de
Informativo CEAO e, em 1965, editou a Afro-
Ásia, primeira revista brasileira especializada
em África e Ásia do país.
Apesar de ter assumido a direção do
Centro somente em 1980, Yêda Castro destaca
que:
[...] eu fui indicada para assumir a direção do CEAO num momento em que o CEAO atravessava por uma crise muito grande, inclusive, ameaçado de extinção. Porque, a partir dos anos 70, com a Reforma Universitária, os órgãos suplementares da Universidade perderam a sua autonomia e o CEAO ficou vinculado regimentalmente à Faculdade de Filosofia da UFBA. Sendo assim, os pesquisadores e professores do CEAO tiveram de ser relotados em um departamento da UFBA de sua livre escolha. [...] (depoimento à autora, ago./2007, p. 1).
Conforme o depoimento, o contexto
em que a profa. Yêda assume o CEAO coincide
com o período de repressão política e
ideológica exercida pelo governo militar, a qual
repercutiu seriamente na organização
educacional do país em todos os níveis. Por
isso, após a década de 1970 e no período pós-
Reforma Universitária,
[...] o CEAO ficou vinculado, regimentalmente, à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e reduzido aos serviços técnico-administrativos. Seus professores foram relotados em outras unidades da Universidade, o que proporcionou a introdução de cursos da área especifica do CEAO ainda inéditos em departamentos da UFBA: História da África e Antropologia Afro-Brasileira, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, e Geografia da África, no Instituto de Geociências. (CASTRO, 2007, p. 105).
Ainda que a reforma tenha reduzido a
atuação do centro, os professores da UFBA
interessados em pesquisar e promover ações
vinculadas aos estudos africanos mantinham a
sua influência nos departamentos da UFBA.
Nesse contexto, como afirma Castro (2006, p.
332-333), após passar três anos na Nigéria
desenvolvendo estudos etnolinguísticos (de
1962 a 1964), o professor Guilherme de Souza
Castro assume a direção do CEAO em 1972 e
sugeriu ao então Reitor Lafayette de Azevedo
Pondé que fosse constituído o Programa de
Cooperação Cultural Brasil-África e para o
Desenvolvimento dos Estudos Afro-
Brasileiros. A partir daí, em 4 de março de
1974 foi assinado o Termo de Convênio entre a
União Federal, o Estado da Bahia, a
Universidade Federal da Bahia -UFBA e o
Município de Salvador para a realização do
referido Programa. Os representantes da
União que assinaram o Termo de Convênio
foram o Ministro das Relações Exteriores, o
Chanceler Mário Gibson Barbosa, e o Ministro
da Educação e Cultura, Senador Jarbas
Gonçalves Passarinho. O representante do
Estado da Bahia foi o então Governador
Antônio Carlos Magalhães, o representante da
UFBA foi o Vice-Reitor, Professor Augusto
Mascarenhas5 e o representante do Município
de Salvador foi o então Prefeito Clériston
Andrade. (TERMO DE CONVÊNIO, 1974, p. 1).
Para Castro (2006, p. 334), esse
programa permitiu a superação da crise
institucional na qual o CEAO se encontrava
após a Reforma Universitária e ampliou suas
possibilidades de atuação, através da
assinatura de acordos de cooperação cultural e
5 No documento localizado nos arquivos do CEAO há
a informação de que o Vice-Reitor estava representando o Reitor da UFBA da época, o Professor Lafayette de Azevedo Pondé.
55 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS
CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
da realização de ações fundamentais para sua
sobrevivência. As atribuições das instituições
envolvidas no Termo de Convênio foram
divididas da seguinte maneira: à União, ao
Estado da Bahia e ao Município de Salvador
coube o repasse de recursos e subvenções para
a realização das atividades. A UFBA ficou
responsável pela disponibilização de
instalações em edifícios de sua propriedade em
Salvador, no bairro do Terreiro de Jesus, atual
Centro Histórico, além das obras e reparos
para adequação do prédio. O CEAO foi
definido como órgão executor do Programa de
Cooperação e instituiu-se um Conselho
Deliberativo encarregado de “[...] definir a
programação dos trabalhos, sua política e
orçamento [...]” (TERMO DE CONVÊNIO,
1974, p. 5).
O Programa de Cooperação Cultural
entre o Brasil e os Países Africanos e para o
Desenvolvimento de Estudos Afro-Brasileiros,
objeto do convênio, compreendia a execução
das seguintes atividades:
a) a constituição e manutenção de um
Museu Afro-Brasileiro, composto de coleções de natureza etnológica e artística sobre as culturas africanas e sobre os principais setores de influência africana na vida e na cultura do Brasil;
b) a realização de cursos e seminários sobre tais assuntos;
c) a edição e divulgação em português e idiomas estrangeiros de trabalhos sobre temas africanos e afro-brasileiros;
d) o estímulo à realização de pesquisas originais sobre assuntos afro-brasileiros, mediante a concessão de bolsas de pesquisa e o compromisso de edição dos trabalhos produzidos;
e) o acolhimento a bolsistas africanos, para os quais serão organizados cursos intensivos de português e cultura brasileira, antes de iniciarem estudos regulares em universidades e instituições educacionais brasileiras;
f) a recepção e orientação a personalidades intelectuais africanas em visita ao Brasil;
g) o recrutamento, a pedido do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Educação e Cultura, de professores para missão educacional e cultural na África;
h) o assessoramento, a pedido do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Educação e Cultura, na organização de representação brasileira a manifestações artísticas e culturais na África;
i) o incentivo à criação artística de temática afro-brasileira, mediante subvenções ou concursos de natureza literária, música, de artes visuais, cinema, teatro e dança;
j) o estímulo à criação de núcleos universitários e coleções dedicadas a temas africanos e afro-brasileiros;
l) o reinício dos Congressos Afro-Brasileiros, mediante a cooperação de universidades e instituições culturais brasileiras, de três em três anos, com a participação de estudiosos afro-brasileiros e africanistas estrangeiros;
m) outras iniciativas que se ajustem às finalidades do convênio; (TERMO DE CONVÊNIO, 1974, p. 2-3).
Ao analisarmos as atividades
elencadas, observamos que cada uma
demandaria uma investigação sobre o seu
cumprimento e seus desdobramentos. Em
virtude da relevância dos compromissos
assumidos para a ampliar as relações
estabelecidas entre a Bahia e os países
africanos, acreditamos ser importante o
levantamento do que foi realizado naquele
período, atividade que escapou aos objetivos
desse texto e da pesquisa realizada. É relevante
salientar que a existência desse documento
favoreceu a realização de diversas ações em
articulação Brasil-África por parte do CEAO,
em plena ditadura militar, tais como cursos de
línguas africanas como o Iorubá e o Quicongo,
além do Programa de Cooperação Cultural
com a Universidade Nacional do Zaire.
56 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
O CEAO na gestão da professora Yêda
Pessoa de Castro: o curso de Introdução
aos Estudos da História e Culturas
Africanas (1982) e seus
desdobramentos
A professora Yêda Pessoa de Castro é
etnolinguista, atualmente, está aposentada
pela UFBA e atua como Professora Visitante do
Mestrado em Educação e Contemporaneidade
da Universidade do Estado da Bahia - UNEB.
Na década de 1970, era professora lotada no
CEAO e, durante a Reforma Universitária, foi
transferida para o Departamento de
Antropologia da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas - FFCH. Sobre a sua
experiência acadêmica entre os anos de 1960 a
1970, relembra os docentes que atuavam na
UFBA e desenvolviam estudos africanos e
descreve que:
[...] Nesse momento, eu estava na Nigéria, na Universidade de Ifé, em companhia do Professor Guilherme de Souza Castro, quando recebi uma carta do Professor Waldir Oliveira, então Diretor do CEAO, a indagar qual seria a minha escolha. Embora a minha formação inicial tenha sido em lingüística, preferi o Departamento de Antropologia da FCH em lugar de qualquer outro departamento do Instituto de Letras porque pressenti que a Antropologia me abriria uma visão de mundo que eu não teria no Instituto de Letras. Ainda mais porque o Departamento de Antropologia acabara de ser fundado por iniciativa do Professor Thales de Azevedo e já estava incorporando no seu quadro pesquisadores e estudiosos do CEAO da importância do antropólogo Vivaldo da Costa Lima, grande conhecedor dos candomblés da Bahia e do próprio Waldir Freitas Oliveira, geógrafo e africanista, entre outros, Mestre José Calazans, conhecedor de Canudos, o etnólogo Carlos Ott, a tupinóloga Consuelo Pondé de Senna. Não tive dúvida, pedi para ir para o Departamento de Antropologia.
Ao final dos anos 60, foi aberto o Mestrado em Ciências Sociais da UFBA, onde eu me inscrevi. Foi aí que eu me dediquei a estudar a fundo Antropologia. A minha dissertação de Mestrado em 71 eu escrevi em inglês na Nigéria, sob a orientação do professor OlasopéOylaran da Universidade de Ifé, que hoje é professor numa Universidade nos Estados Unidos. [...] Conclui o Mestrado em Ciências Sociais e entrei fundo, realmente profundo na questão da Antropologia. Porque, desde o primeiro momento, percebi que, pra estudar a presença africana no Brasil, pra estudar a participação dos negros africanos na formação do português brasileiro, na construção da identidade brasileira, eu teria, antes de mais nada, que passar pela questão da cultura, pela Antropologia, dar uma visão antropológica à questão e não, simplesmente, uma visão lingüística o que seria feito se eu tivesse optado pelo Instituto de Letras. Minha dissertação de Mestrado foi baseada numa pesquisa no Recôncavo da Bahia, Santo Amaro, Cachoeira, num terreiro de nação jeje-angola. Foi aí que eu descobri que, até aquele momento, todo o nosso conhecimento em torno da presença africana na Bahia - e conseqüentemente no Brasil também, porque a Bahia sempre foi o centro dinâmico dessas influências, - estava voltado e concentrado no estudo da cultura iorubá, dos orixás da tradição iorubá. Quer dizer, era uma visão muito etnocêntrica de toda a questão, a ponto de tudo que se considerava de influência africana no Brasil passava a ser visto através de uma ótica iorubá mesmo quando não era. Volto da Nigéria em 74, quando assume a direção do CEAO o professor Guilherme de Souza Castro, que criou o Programa de Cooperação Cultural Brasil-África e idealizou o Museu Afro-Brasileiro. (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 2).
A sensibilidade e interesse da
professora Yêda Castro pelas questões relativas
aos povos e culturas africanos foram
evidenciadas em seu depoimento que se refere
ao período anterior à assunção do cargo de
direção do CEAO. O reconhecimento da
57 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS
CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
importância da Antropologia para o
entendimento da cultura africana revela ainda
a intenção da pesquisadora no
aprofundamento de suas reflexões e a
realização de seus estudos junto às
comunidades de terreiro teria sido um fator
que favoreceu a sua aproximação com o
Movimento Negro da Bahia. Em abril de 1980,
Yêda Castro, acompanhada do bibliotecário
Climério Joaquim Ferreira, foram nomeados
Diretora e Vice-Diretor do CEAO, na gestão do
então Reitor Luiz Fernando Seixas de Macedo
Costa. Sobre os processos vivenciados na
nomeação, a professora argumentou que:
[...] Com o Reitor Macedo Costa sou nomeada diretora do CEAO em 1980. Eu fui, inclusive, levada a aceitar a direção do CEAO pressionada pelos funcionários do CEAO e pela própria comunidade negra daqui. Pelos movimentos negros, pelos Terreiros de Candomblé, sobretudo, pelos Terreiros de Candomblé que sempre foram grandes aliados, meus aliados no CEAO. (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 2).
Apesar de não aprofundar suas
reflexões sobre como teriam sido as pressões
por parte dos funcionários do CEAO citadas
em seu depoimento, ao assumir o cargo, a
professora Yêda reconheceu que, embora tenha
recebido o apoio de determinados setores do
Movimento Negro, foi criticada por outras
tendências que a acusaram de “ser uma branca
querendo ocupar as coisas de negro”.
Acreditamos que essa postura por parte do
Movimento Negro poderia ter sido causada
pela desconfiança em relação às intenções da
pesquisadora e, além das críticas oriundas do
Movimento, Yêda Castro argumentou que
também teria sido criticada pela própria
Universidade:
[...] Resultado: eu já entrei CEAO com essa intenção realmente de promover a comunidade negra. E também, naquele momento, os Blocos Afros e os Afoxés estavam cada vez mais atuantes, aumentando em número, sendo fundados novos blocos. O que foi que eu fiz? Primeira providência foi abrir a biblioteca do CEAO para suas pesquisas. A primeira demonstração desse apoio aconteceu na minha posse. Lá na minha posse estavam presentes representantes de Terreiros, representantes de Blocos, de Afoxés, de Movimento Negro a ponto de, no dia seguinte, o comentário todo na Universidade é que eu estava mudando a feição (ênfase) da Universidade. Porque havia muitas pessoas negras que foram assistir a minha posse. Edivaldo Brito, Olga do Alaketu, Jorge Alakija, Taata Raimundo Pires, entendeu? Muitas tendo ido à reitoria pela primeira vez. Porque foram essas pessoas e a comunidade negra que me incentivaram e me apoiaram respondendo ao meu apelo quando eu disse: - Bem, eu assumo a direção do CEAO. Agora eu preciso do apoio de todos. Porque eu não posso fazer nada sozinha. (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 3).
Apesar das pressões externas e
internas, a etnolinguista possuía uma ampla
visão do continente Africano, de sua história e
cultura construída a partir de suas vivências e
pesquisas. Por isso, ao assumir a direção do
Centro pôde contar com o apoio de religiosos
do Candomblé, do chamado “povo de santo”,
como D. Olga de Alaketu e D. Stella de Oxossi,
tal como ela menciona. Partindo do
entendimento de que o CEAO era um órgão de
extensão da Universidade, a professora Yêda
Castro abre as portas da instituição para a
comunidade e novamente recebe críticas por
parte dos intelectuais que argumentavam que a
UFBA seria vulgarizada pela presença de
pessoas sem formação acadêmica. No entanto,
a ampliação da participação da comunidade
negra nas atividades do centro, com destaque
58 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
aos sujeitos vinculados às religiões de matriz
africana e às entidades do Movimento Negro,
também causou impactos positivos na relação
desta com a Universidade, através das trocas e
parcerias firmadas, tal como a professora Yêda
Castro comenta,
[...] Aí, convidei meus alunos dos cursos de línguas africanas, ex-alunos concluintes dos cursos de línguas africanas pra serem professores desses próprios cursos. Entre eles, o saudoso Taata Raimundo Pires ensinando Kikoongo. MakotaValdina que me apoiou muito em todo esse tempo que eu estive no CEAO. É minha amiga há muitos anos. Foi aluna do curso e colaborou com Taata Raimundo. Sérgio Barbosa que foi Presidente da Federação Baiana de Culto Afro-Brasileiro. Eu o coloquei como professor de iorubá no CEAO [...]. Só que eram pessoas sem nenhuma formação acadêmica e passaram a ser docentes na Universidade, é isso (risos). E havia ainda os Blocos Afros, Afoxés [...]. Os Blocos Afros e Afoxés começaram a freqüentar a biblioteca em busca de informações, de documentos sobre África, como inspiração dos seus temas. Fizemos várias reuniões lá no CEAO, várias atividades, inclusive, com a presença de pessoas não só da Universidade, mas também da comunidade. Nem sempre pessoas ligadas a Movimento Negro, nem a Terreiros de Candomblé, entendeu? Eram advogados negros, engenheiros, arquitetos que freqüentavam o CEAO nessas atividades que nos fazíamos.(YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 4).
Conforme o Programa de Cooperação
criado a partir do Termo de Convênio de 1974,
o Centro seria responsável por constituir um
Museu Afro-Brasileiro, composto de coleções
de natureza etnológica e artística sobre as
culturas africanas e os principais setores de
influência africana na vida e na cultura do
Brasil. Essa foi a primeira tarefa realizada pela
professora Yêda ao assumir o Centro.
[...] Nós assumimos o CEAO em abril, em janeiro do ano seguinte nós inauguramos o Museu. Não era o Museu, como até hoje não é o Museu. Aquilo ali é um núcleo do Museu Afro-Brasileiro porque o espaço que nos reservaram foi aquele onde hoje ele está o Museu [...]. A concepção do Museu feita pela professora Jacira Osvald, uma museóloga, era muito bonita, no princípio, muito bonita.[...] fizemos o quê pra inauguração do Museu? O Itamaraty comprou 375 peças nessa base, através de Pierre Verger, peças africanas. Verger foi pra África, voltou aqui trazendo essas peças africanas. Nós inauguramos o Museu com mil, duzentos e tantas peças. Por que? Fizemos uma campanha na comunidade negra pra doação ao Museu. Eu disse logo a princípio: - Não vamos comprar uma só peça, um só quadro de arte que for para o Museu. Porque se nós comprarmos um, vamos ser obrigados a comprar todos os outros. Então esse Museu é um Museu da comunidade e tem ser feito através de doações da comunidade. Aí, pronto. Todo mundo me procurava com o que fosse. [...] Bem, resultado: conseguimos, depois de muita luta, com apoio também do professor Vivaldo da Costa Lima, então Diretor do IPAC, conseguimos inaugurar o Museu em janeiro. Ah, foi uma coisa assim extraordinária. Eu nunca vi tanta gente. Com todos aqueles embaixadores africanos, olha, eu fiquei pasma, eu fiquei nas nuvens porque eu não esperava, entendeu? Eu não esperava aquela presença maciça da comunidade.(YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 4-5).
A proposta para a construção do
acervo do Museu Afro-Brasileiro fora
imediatamente atendida, o que revela a
inserção e o respaldo da diretora diante da
comunidade negra. Segundo a professora,
personalidades importantes doaram seus
pertences para que fossem expostos no Museu.
No entanto, para que o Museu se constituísse
num espaço de memória e cumprisse uma
função educativa diante da população, a
professora Yêdaimplementou os Programas
Museu Escola e Museu Comunidade:
59 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS
CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
[...] O Museu Escola foi um acordo com a Bahiatursa. E a Bahiatursa levava, transportava as crianças e tinha uma pessoa lá, professora Graziela Ferreira Amorim, que era encarregada do Museu, entendeu? E ela orientava, era monitora. E muitas vezes eu ia também, eu gostava de lidar com as crianças, de mostrar as coisas do Museu. Eu me sentia bem feliz em relação a isso. Era o Museu Comunidade. Por sua vez, as autoridades africanas, todas que passavam por aqui, iam visitar o Museu. (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 6).
Nesse ponto, destacamos outro público
dentre os frequentadores do Centro: as escolas,
professores e estudantes das escolas baianas.
Sobre a presença dos estudantes nas
dependências do CEAO, o Sr. Climério Ferreira
argumentou que:
[...] Mas, quando estávamos na biblioteca, nós sentíamos a dificuldade dos estudantes do segundo grau que freqüentavam a nossa biblioteca, a necessidade que eles tinham de conhecimento sobre o continente africano. Eram diversas pesquisas feitas no nosso centro e, com o tempo, surgiu a idéia de se criar esse curso de Introdução aos Estudos Africanos na rede do estado. (CLIMÉRIO FERREIRA, depoimento à autora, set./2007, p. 1).
Atuando na gestão do CEAO, como
vice-diretor em companhia da profa. Yêda, o
Sr. Climério Ferreira, bibliotecário que atuou
por mais de vinte anos no centro, observou a
necessidade por parte de professores e
estudantes dos conhecimentos sobre a história
e cultura africana. A abertura do Museu Afro-
Brasileiro ao público externo, especialmente,
às escolas baianas, favoreceu o desvelamento
do desconhecimento da história e cultura
africana por parte de grande parcela da
população. Essa reflexão é salientada pela
professora Yêda Castro quando a mesma relata
os resultados dos Programas Museu Escola e
Museu Comunidade:
[...] E, a partir daí, nós observamos que havia uma grande lacuna no conhecimento dos professores do ensino médio em relação à História da África e à História da Cultura Afro-brasileira através dessas visitas porque eles ficavam espantados de ver quanta informação que eles não sabiam. (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p.7).
Conforme Sr. Climério Ferreira e
professora Yêda Castro comentam, ao
observarem a ampliação da procura por parte
de estudantes e da comunidade negra por
conhecimentos sobre a África e perceberem as
reações demonstradas pelos educadores que
frequentavam o Museu Afro-Brasileiro, os
gestores do Centro identificaram uma
oportunidade de expansão das ações do CEAO.
Tratava-se da oferta de cursos sobre a História
da África para o público em geral, destacando a
participação dos professores das escolas
públicas, tal como rezavam as atividades
preconizadas no Termo de Convênio assinado
em 1974.
Os gestores do centro observaram a
partir dessa oportunidade a possibilidade de
formar os docentes para que tais conteúdos
fosse ensinados nas escolas baianas. Sem
incorremos em anacronismos, vale ressaltar
que esse permanece um desafio do presente,
ainda não vencido pelas instâncias
responsáveis pela formação inicial e
continuada de professores na atualidade.
Nesse sentido, com o afã de propiciar uma
formação, ainda que preliminar, aos docentes
que visitavam o Museu Afro-Brasileiro, no ano
de 1982 o CEAO realiza o primeiro curso de
Introdução aos Estudos da História e Culturas
Africanas.
60 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Em nossa investigação, localizamos e
compilamos as fichas de inscrição desse curso
nos arquivos da instituição e verificamos que
trinta e quatro pessoas se inscreveram. A partir
das informações disponíveis nas fichas,
observamos que, dentre os inscritos no curso,
79% eram professores (26), 18% estudantes (6)
e, apenas 3% (1) não apesentaram identificação
profissional. Como a maioria era formada de
professores, podemos inferir que esse teria
sido o público prioritário do curso. No
depoimento da professora Yêda Castro, a
mesma se refere a esse curso realizado em
1982, apontando seus financiadores e as
dificuldades encontradas na sua realização:
[...] Conseguimos um financiamento da Fundação FORD, porque eu me dava muito com o presidente, à época, Michael Turner. Solicitei a ele que concedesse uma verba pra nós instalarmos o curso. Viram a importância disso e instalamos o curso. Bem, quando acabou o financiamento da Fundação FORD e nós não tínhamos financiamento mais pra nada, não pudemos continuar a oferecer o curso. Porque o curso era dividido em quatro disciplinas: História, Geografia, Língua e Literatura, Antropologia [...]. (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p.9).
Observamos que, além de ofertar o
curso, a gestora do CEAO teve que ir em busca
dos financiadores, dado que a iniciativa não
fora possível com custeio advindo dos recursos
próprios do centro. Além do financiamento,
havia dificuldades de acesso a materiais e
referências bibliográficas sobre a história da
África na década de 1980 para viabilizar a
realização das aulas. Isso porque, concordando
com o que salienta Munanga (2004) acerca do
histórico dos estudos africanos no Brasil, o
professor Jorge Conceição afirma que:
[...] Eu lembro de livros como 'África: o povo', de Carlos Comentini, um argentino que foi fazer seus primeiros estudos lá no Continente Africano viajando, segundo o que eu tive de informação, na carona de um navio porque os incentivos aos estudos africanos nessa época, na década de 60, 70, não eram tão plenos como nos dias de hoje. Então, principalmente, a América vivia processos de governos militares muito sérios, não é isso? Então, o processo era muito rígido. Havia uma preocupação em financiar projetos de uma outra natureza. [...] No Brasil pouca gente também estudava essas questões. Os livros didáticos que existiam, como existe ainda resquícios desses livros hoje, eram bastante distorcidos em seus conteúdos. Aí, nesse sentido, a gente tinha dificuldade de encontrar materiais didáticos. Eu lembro do livro de Ki-Zerbo (História da África I e II). Um estudo sobre África sério e que foi um dos primeiros livros utilizados por muitos estudiosos brasileiros, muitos professores que davam aula de História da África. Dentre outros materiais que a gente contava na época, romances, livros que vinham da Guiné Bissau, eu lembro de um livro editado pelo partido de Libertação da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde - PAIGC. Um partido organizado pelas Ilhas de Cabo Verde e pela Guiné Bissau que foram contra o regime colonialista dos portugueses. Então, eu lembro que tinha esse material trazido por alguns amigos africanos e que chegava às nossas mãos para nos ajudar nesses cursos iniciais de História da África, cujo primeiro, reivindicado pelos Movimentos Negros aqui de Salvador, (das várias células), foi o que se iniciou em 1982 - eu tenho ele aqui registrado (mostra o currículo) - ocorrendo no Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA - Universidade Federal da Bahia, com o patrocínio da Fundação FORD. [...] (JORGE CONCEIÇÃO, depoimento à autora, set/2007, p. 3-4).
O professor Jorge Conceição é
geógrafo e atuou nos cursos oferecidos pelo
CEAO em 1982 e 1986 ministrando a disciplina
Geografia da África. Atualmente, trabalha com
o que ele chama de “educação integral” e
Medicina Natural, numa perspectiva
61 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS
CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
alternativa e naturalista. No período de
realização do referido curso, atuava como
militante do Movimento Negro e, a partir de
suas reflexões, podemos inferir que os estudos
africanos eram uma temática marginalizada
nos círculos acadêmicos e que a iniciativa de
realizar o curso de Introdução aos Estudos da
História e das Culturas Africanas em 1982
representava uma inovação realizada pela
direção do CEAO.
Na atualidade, graças aos esforços de
pesquisadores diversos e ao advento das
tecnologias de informação e comunicação,
houve um incremento de publicações no
campo dos estudos africanos e, inclusive, no
ano de 2010 a UNESCO disponibilizou o
download gratuito da coleção de livros sobre
História da África do autor Joseph Ki-Zerbo a
que o mesmo se refere. No entanto, suas
afirmações são pertinentes ao revelarem as
estratégias criadas à época para que se
formulasse o material didático a ser usado no
curso e embora afirme que o curso tenha sido
reivindicado pelo Movimento Negro de
Salvador, problematizando a autoria da ideia e
se contraponto, em certa medida às afirmações
de profa. Yêda Castro e Sr. Climério Ferreira, o
professor Jorge Conceição reconhece o
pioneirismo da ação e descreve com detalhes a
sua organização curricular:
[...] Eu lembro que pessoas também a nível institucional, oficial, lutaram muito pra que esse curso ocorresse. Nós contamos aí com o nome da professora Yêda de Castro, que vai, inclusive, assinar como diretora do CEAO na época. A luta dela foi muito grande e ela nos convidou para fazer parte desse curso. Eu participei na condição de professor de Geografia da África; estava concluindo, na época, minha pós-graduação em Análise Urbana, na Universidade Federal da Bahia. [...] ..] ..] (JORGE
CONCEIÇÃO, depoimento à autora, set./2007, p. 4).
A partir das reflexões do professor
Jorge Conceição salientamos que a realização
do primeiro curso de história da África pelo
CEAO em 1982 serviu como uma das
justificativas para que, no ano seguinte, a
professora Yêda Castro encaminhasse o ofício
n° 183/83 de 01/08/83 para o Conselho
Estadual de Educação solicitando que a
disciplina Introdução aos Estudos Africanos
fosse incluída no currículo das escolas de 1°
grau. O texto do referido documento será
reproduzido a seguir:
[...] Considerando: a) as raízes históricas do Brasil e especificamente da Bahia; b) a evolução histórica e as características étnico-demográficas da sociedade baiana; c) a densidade dos componentes culturais africanos na composição da cultura baiana; d) a permeabilidade étnica e cultural da estrutura social da Bahia; e) o atual estágio das relações político-econômicas e culturais entre o Brasil e a África; f) as dimensões contemporâneas das relações inter-étnicas da cultura baiana; g) a política da União Federal desenvolvida através de programas de intercâmbio cultural visando o crescimento dos estudos afro-brasileiros; h) a necessidade de efetivamente resguardar a memória do país e do estado e firmar a caracterização da identidade do povo e da cultura baiana; i) a receptividade do professorado de 1° e 2° graus e do público em geral ao curso (em anexo) ministrado pelo Centro de Estudos Afro-Orientais, em convênio com a Fundação Ford, de “Introdução aos Estudos da História e das Culturas Africanas” cabendo salientar que foi o primeiro desse teor oferecido no Brasil; j) a existência de pessoal habilitado no magistério público de 1° e 2° graus para desenvolver atividades de ensino e pesquisa no campo dos estudos africanos;
62 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
l) Termo de Convênio (em anexo) celebrado, em 1974, entre a União Federal, o Estado da Bahia, a Universidade Federal da Bahia e o Município de Salvador, para a execução de um “Programa de Cooperação Cultural entre o Brasil e os Países Africanos e para o Desenvolvimento de Estudos Afro-Brasileiros” – (notadamente alínea n). É que, a Direção do Centro de Estudos Afro-Orientais, no uso de suas atribuições e como Órgão Executor do Programa de Cooperação Cultural Brasil – África, vem solicitar a esse Egrégio Conselho a inclusão da disciplina titulada „Introdução aos Estudos Africanos‟ nos currículos da escola de 1° grau, na forma da lei vigente. (OFÍCIO CEAO n° 183/83).
No documento acima, há uma referência
ao curso realizado em 1982 como o “[...]
primeiro curso desse teor oferecido no Brasil
[...]”. Nas nossas investigações não
encontramos informações sobre o curso
relativas aos meses em que foi realizado
somente a referência ao ano. No entanto,
conforme mencionamos, nas fichas de
inscrição, identificamos os nomes e dados
pessoais dos trinta e quatro participantes e,
através do depoimento do professor Jorge
Conceição conseguimos identificar as
disciplinas, seus respectivos docentes e a carga
horária ministrada, que foi de 320h (trezentas
e vinte horas). O ofício encaminhado pela
direção do CEAO ao Conselho Estadual de
Educação teve um tom acadêmico pautado em
fundamentos históricos, antropológicos,
políticos, sociológicos, além do argumento
afirmando que houve receptividade por parte
dos professores que frequentaram o curso de
1982. Esse curso ainda servirá como
justificativa para outro argumento utilizado no
documento, o qual se refere à existência de
pessoal habilitado, no quadro de docentes do
serviço público de 1° e 2° graus6, a exercer
atividades de estudos e pesquisa sobre a
temática requerida na disciplina. Outro ponto
a ser destacado é que há no ofício também uma
referência às atividades previstas no Termo de
Convênio assinado em 1974.
A iniciativa do CEAO ao solicitar a
disciplina teve respaldo acadêmico na medida
em que representa um pedido de um órgão
universitário, com tradição e composto por
pesquisadores de renome no campo dos
estudos africanos. No entanto, cabe salientar
que, embora essa iniciativa tenha sido pioneira
do ponto de vista da Universidade, temos que
destacar que o Movimento Negro Brasileiro,
desde o início da década de 1940, já vinha
realizando ações nesse sentido com o intuito de
aprofundar os conhecimentos sobre a História
da África. Por esse motivo, apesar da
solicitação ter sido encaminhada em nome do
CEAO, a professora Yêda precisava do apoio da
comunidade negra para fortalecer a iniciativa:
[...] Então, convidei representantes do Movimento Negro, de Terreiros pra uma reunião lá no CEAO e fiz a proposta que está aí nesse documento. E comuniquei: - Vamos organizar um curso de Introdução aos Estudos Africanos e dar entrada a uma solicitação, pedir a Secretaria de Educação que formalize isso, porque vamos precisar retirar os professores da sala de aula pra freqüentarem o curso. [...] (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p.7-8).
Podemos considerar que, a partir da
experiência de 1982, a direção do centro
repensou a estratégia para oferecer novos
cursos de formação para professores e chegou
à conclusão de que a iniciativa poderia ser
6 Após a criação da LDB 9.394/96, o 1° grau foi chamado de Ensino Fundamental e o 2° Grau de Ensino Médio.
Atualmente, compete aos municípios a oferta do Ensino
Fundamental, com duração mínima de nove anos, e aos Estados a oferta do Ensino Médio, com duração mínima de três anos.
63 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS
CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
bem-sucedida se fosse dirigida aos docentes
que estivessem em sala de aula. Apesar de não
encontrarmos os registros sobre a reunião
citada, acreditamos que a proposta de inclusão
da disciplina tenha sido imediatamente aceita
pela comunidade negra já que essa era uma
demanda defendida há muito tempo pelas
instituições do Movimento. Nesse contexto,
após tomarem conhecimento do ofício enviado
pelo CEAO em agosto de 1983 e da ausência de
um parecer e de encaminhamentos por parte
do Conselho Estadual de Educação, em 10 de
março de 1984, quinze Entidades Negras da
cidade do Salvador7 enviaram um documento
ao Secretário Estadual de Educação e Cultura
referendando o ofício encaminhado em 1983:
Nós, Entidades Negras da cidade do Salvador e do Estado, vimos, através deste, solicitar a V. Ex.ª. a inclusão no currículo de 1° grau do nosso Sistema de Ensino, da disciplina „INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS AFRICANOS‟ tendo em vista que: 1. A população de Salvador é constituída por um contingente majoritariamente de descendência africana; 2. O Brasil é uma sociedade pluricultural, por isso é necessário que seja estudada nas escolas a História das três raças constituintes da nação brasileira; 3. A ausência do estudo da História e da Cultura negra nos currículos escolares, concorre para a falta de identidade cultural e conseqüentemente, para a inferiorização do povo negro e de seus descendentes no Brasil; 4. Existe grande receptividade e expectativa da comunidade a todos os cursos de Estudos Africanos que são oferecidos por iniciativas dos Movimentos Negros e da Universidade através do CEAO-
7 As instituições que assinaram o documento foram:
Sociedade Protetora dos Desvalidos, Movimento Negro Unificado- BA, Adé Dudu, Versos Negros, Grupo de Estudos
Afro-Brasileiros – GEAB, Grupo Cultural “OS NEGÕES”, Ilê
Aiyê, Olodum, Urunmilá, Grupo Negro do Garcia, Sociedade São Jorge do Engenho Velho, responsável pela preservação do
Terreiro Casa Branca Bahia, Núcleo Cultural “NIGER-OKAN”,
Legião Rasta e Associação Centro Operário da Bahia. (BAHIA, 1986, p. 14-15).
Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia. 5. As relações político-econômica-culturais entre o Brasil e a África pressupõem um conhecimento mútuo da História e Cultura entre as nações brasileira e africana; Temos ciência de que o CEAO enviou um ofício n°183/83 de 01.08.83 ao Conselho Estadual de Educação, solicitando também a inclusão da disciplina “Introdução aos Estudos Africanos”, o qual nós estamos referendando. (BAHIA, 1986, p. 13).
A estrutura do documento
encaminhado pelas entidades negras é
semelhante à estrutura do ofício enviado pelo
CEAO e inclui reflexões sobre pluralidade
cultural da sociedade brasileira, o que
implicaria a necessidade de estudos sobre as
“raças” que constituem essa sociedade. Além
desse argumento, outro ponto citado nessa
carta que amplia os argumentos já
mencionados no ofício de 1983 se refere aos
prejuízos causados pela ausência desses
conhecimentos na construção da identidade e
auto-estima do “povo negro”. Ana Célia da
Silva destaca a atuação do Movimento Negro
na reivindicação da disciplina Introdução aos
Estudos Africanos quando afirma que:
[...] O que ficou marcante pra mim foi a iniciativa do Movimento Negro Unificado. Eu resolvi sair pedindo de uma a uma às entidades que assinassem um documento para solicitar ao secretário da época, era o professor Edivaldo Boaventura, que ele fizesse o segundo curso de formação para professores em história, introdução aos estudos africanos. A reivindicação era essa: fazer o segundo curso, porque o primeiro foi dado pelo CEAO [...] há alguns anos atrás por intermédio, por iniciativa da professora Yêda Pessoa de Castro que, na época, era diretora do CEAO. Então o MNU teve essa iniciativa. E era do grupo de educação Robson da Luz: eu, Jônatas e Gildália Menezes. E eu levei, praticamente, três meses pedindo às entidades negras que assinassem, porque naquela época as entidades
64 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
negras não estavam muito ligadas nessa questão de educação. Quem trabalhava com essa área éramos nós quatro e havia muita resistência a essa variável dentro movimento negro. O pessoal queria mais trabalhar história e insurgência negra. [...](ANA CÉLIA SILVA, depoimento à autora, ago./2007, p. 2).
Ana Célia da Silva é pedagoga, Mestre
e Doutora em Educação. Atualmente, é
professora adjunta do Departamento de
Educação e do Mestrado em Educação e
Contemporaneidade da UNEB/Campus I. Na
época, ocupava a presidência do Conselho das
Entidades Negras e a sua afirmação a respeito
do pouco interesse por parte do Movimento
Negro pelas questões relativas à educação
formal está relacionada às dificuldades na
articulação entre cultura e política por parte
do. Movimento Negro naquele período.
Conforme Silva (1988), entre as décadas de
1970 a 1980,travava-se um debate interno
entre duas tendências do movimento que,
inclusive, gerava tensões que interferiam na
percepção da importância de iniciativas como
essa por parte de determinados grupos. Apesar
disso, a carta do Movimento Negro baiano
ratificou a necessidade da disciplina nas
escolas e a solicitação feita sete meses antes
pelo CEAO.
Acreditamos que a proposta
apresentada pela professora Yêda teria
recebido o apoio da comunidade negra por
representar, conforme o depoimento da profa.
Ana Célia, antigos anseios do Movimento
Negro no campo da educação e em função da
estratégia de ação criada para que a disciplina
fosse efetivamente incluída nas escolas. Isso
significa dizer que, ao tempo em que a
solicitação foi encaminhada ao Conselho
Estadual de Educação, a direção do CEAO já
planejava a metodologia para que fosse
efetivada a inclusão da disciplina, ou seja, a
partir da formação dos professores em serviço
da rede estadual. Essa mudança de estratégia
pode ter sido motivada pela avaliação e
acompanhamento dos resultados do curso
realizado em 1982, evidenciada no seguinte
trecho dos depoimentos da professora Yêda
Castro e de Sr. Climério Ferreira:
[...] porque nós começamos a oferecer o curso em 82 e aí nós vimos a necessidade de ter um vínculo oficial, por quê? Por que razão nós estamos oferecendo esse curso? E levar essas informações pra quem? Entendeu? Então, as informações seriam repassadas para os professores da rede estadual e esses daí seriam multiplicadores dessas informações para os seus alunos e outros professores também que quisessem participar disso. Então, a nossa preocupação foi encaminhar o documento, fazer os trâmites burocráticos. [...] Daí oficializando, nós poderíamos, como eu lhe disse, nós poderíamos então tirar os professores da sala de aula num determinado momento pra dentro do curso. E depois voltar esses professores pra suas respectivas escolas. Porque nós não queríamos complicar, quer dizer, pra não criar mais problema. Foram inúmeros os problemas, não foi fácil fazermos aquilo. Foram inúmeros os problemas. Para facilitar exatamente a introdução desse curso, nosso público alvo seriam os próprios professores já instalados dentro da rede, entendeu? Já lecionando nas suas escolas. Eles sairiam para o curso e voltariam para mesma escola pra ensinar essa disciplina. Então, por isso que foi encaminhado ao Conselho Estadual de Educação, pra o Conselho dar o parecer e daí encaminhar ao Secretário para analisar e depois dar o seu aval ou não. Porque também a gente não sabia se seria favorável ou não, você entendeu? Todos esses problemas. Mas, felizmente, Edivaldo sempre foi um homem de uma visão muito larga também e entendeu. Ele muito suscetível a essa área de estudos. Alem de ser meu amigo há muitos anos também. Então, nós conseguimos. (YÊDA CASTRO,
65 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS
CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
depoimento à autora, ago./2007, p.11). [...] Então, nós entramos em contato, professora Yêda e eu, com o professor Edivaldo Boaventura, então Secretário da Educação, e ele abraçou a idéia de bom grado e proporcionou todos os meios possíveis para que a coisa andasse da maneira que nós pretendíamos. Isso foi no governo do Doutor João Durval, na década de oitenta. (CLIMÉRIO FERREIRA, depoimento à autora, set./2007, p. 1).
A iniciativa que começava a ser
delineada exigiria um esforço de
convencimento dos dirigentes das escolas e das
autoridades de educação para que estes
possibilitassem a infra-estrutura necessária à
participação dos professores no curso de
formação. Em 15 de maio de 1985, quase dois
anos após a primeira solicitação, oConselho
Estadual de Educação forneceu o parecer n°
89/85, aprovando a inclusão da disciplina
Introdução aos Estudos Africanos no 1° ou 2°
grau, pelas escolas particulares ou da rede
oficial, na parte diversificada dos currículos.
No texto do parecer consta que houve vários
encontros entre a Comissão de Currículos e
Experiências Pedagógicas do Conselho, a
direção do CEAO e representantes do
Movimento Negro de Salvador. Além dos
encontros, o CEAO teria encaminhado o
Termo de Convênio de 1974 e o conteúdo
programático da disciplina para ser anexado ao
processo.
Com base na Lei 5.692/71, modificada
pela Lei 7.044/82, que preconizava a
existência de uma base curricular comum e
obrigatória em âmbito nacional e uma parte
diversificada para atender às peculiaridades
locais, o Conselheiro Padre José Hamilton
Almeida Barros concluiu que a inclusão da
referida disciplina teria respaldo legal e que
esta poderia compor o conjunto de disciplinas
indicadas pelo Conselho nos currículos de 1° e
2° graus das escolas, desde que as mesmas
fizessem a solicitação. No parecer, o referido
Conselheiro, além de fundamentar suas
conclusões na legislação, destacou o aspecto
cultural e pedagógico da iniciativa, reconheceu
que a inclusão da disciplina atenderia a “uma
expectativa de grande parte da população
interessada na compreensão de ser brasileiro e
baiano”, afirmou que o CEAO deveria
contribuir na “preparação e assistência à
execução da programação que se pretende” e
argumentou que:
[...] a operacionalização deverá ser discutida pelo órgão competente da SEC, com o órgão supervisor da disciplina, no caso, o CEAO e as escolas interessadas na implantação, a fim de que se faça de maneira gradual, em vistas ao objetivo a ser alcançado. [...] Pelo exposto, somos de parecer que não existe impedimento de ordem legal para que a disciplina „Introdução aos Estudos Africanos‟ possa ser oferecida, a nível de 1° ou 2° grau, por escolas particulares ou da rede oficial, que assim desejem fazê-lo. A referida disciplina pode constar da parte diversificada dos currículos dos supracitados graus de ensino, sem que dependa de prévia aprovação por parte do Conselho Estadual de Educação, de acordo com a legislação em vigor [...]. (CONSELHO ESTADUAL DE EDUCACAO, PARECER 89/85, p. 3).
Assinaram o parecer na condição de
Conselheiros: o Presidente do Conselho
Raimundo José da Matta, a Presidente da
Comissão de Currículos e Experiências
Pedagógicas, Yolanda Piva Pinto, o Presidente
da Comissão de Ensino de 1° e 2° Graus, Enoch
Senna Souza e os Relatores José Hamilton
Almeida Barros e Solon Santana Fontes.
Conforme as determinações constantes no
documento, o Conselho Estadual de Educação
66 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
designou o CEAO como órgão que auxiliaria na
preparação, construiria a programação e
supervisionaria a inclusão da disciplina. Além
disso, estendeu a oferta ao ensino de 2° grau e
afirmou a necessidade de articulações entre o
referido Centro com o órgão da Secretaria de
Educação e Cultura-SEC responsável pela
atividade. Apesar de haver referências ao
conteúdo da disciplina, que teria sido
construído pelo CEAO, não encontramos no
Parecer outros anexos que se refiram a tais
conteúdos. Um ponto discutível no Parecer do
Conselho é que a inclusão da disciplina seria
facultada ao interesse do estabelecimento de
ensino, o que significa que dependeria da
iniciativa, principalmente, de diretores e
professores.
Após a publicação do Parecer, no dia
06 de junho de 1985, o então Secretário de
Educação, professor Edivaldo Boaventura,
encaminhou uma comunicação ao Conselho de
Entidades Negras da Bahia para dar
conhecimento da aprovação da disciplina e
convidar a instituição para o ato de
homologação da Resolução. A homologação foi
realizada no dia 10 de junho de 1985, através
da Portaria n° 6068, publicada no Diário
Oficial do Estado de 11 de junho de 1985.
O SECRETÁRIO DA EDUCACAO E CULTURA, no uso de suas atribuições, RESOLVE Determinar ao Departamento de Ensino de 1° e 2° Graus DEPSG/SEC – que providencie a inclusão da disciplina “Introdução aos Estudos Africanos”, na parte diversificada dos currículos das escolas de 1° e 2° graus da Rede Estadual de Ensino. [...] (BAHIA, 1986, p. 21).
Edivaldo Boaventura, atualmente, é
Professor Emérito da Universidade Federal da
Bahia, trabalha na Universidade do Salvador –
UNIFACS, na Fundação Visconde de Cairu e é
Diretor Geral do Jornal A Tarde. Sobre a
solicitação da disciplina, ele argumenta que:
[...] Bom, isso eu era Secretário de Educação e Cultura da Bahia quando recebi do CEAO, encaminhada pela professora Yêda Pessoa de Castro, uma requisição a fim de que instalássemos na Bahia a disciplina Introdução aos Estudos Africanos na escola secundária. Bom, isso, o assunto foi discutido no Conselho. Aliás, largamente discutido no Conselho Estadual de Educação. O Monsenhor José Hamilton Almeida Barros, já falecido, deu um parecer que nos ajudou bastante e a matéria foi então introduzida na escola média. Mas, ao lado disso, nós desenvolvemos um curso de especialização, a nível de pós graduação, com recursos da Secretaria de Educação e com participação do CEAO. Aí formou-se a primeira turma de professores. (EDIVALDO BOAVENTURA, depoimento à autora, set./2007, p. 1).
A partir do depoimento do professor
Edivaldo Boaventura e conforme afirmamos
anteriormente podemos inferir que, enquanto
a solicitação tramitava no Conselho Estadual
de Educação, já havia negociações relativas à
organização do curso de formação para
professores da rede estadual. Isso porque, a
professora Yêda Castro, juntamente com a
historiadora Eugênia Lúcia Vianna Nery do
Espírito Santo8, elaborou o projeto Introdução
aos Estudos Africanos cuja proposta defendia
que os professores dedicassem parte de sua
jornada de trabalho para fazerem o curso
Introdução aos Estudos da História e das
Culturas Africanas, em nível de especialização,
8 Eugênia Nery era historiadora, trabalhava no CEAO,
foi coordenadora da Assessoria de Estudos Africanos criada em
1986 e atuou na coordenação do Projeto Introdução aos Estudos Africanos. Faleceu no ano de 1995 e, em sua homenagem, foi
lançado em 2004 o livro com o título de seu projeto de
Doutorado BOAVENTURA, Edvaldo; SILVA, Ana Célia da. (orgs.). Formas Alternativas de Educação da Criança Negra
em Salvador: O Terreiro, a Quadra e a Roda. Coletânea de
Textos do Programa de Pós-Graduação em Educação da FACED/UFBA. Salvador: Editora UNEB, 2004.
67 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS
CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
que os habilitaria a ensinar a disciplina
Introdução aos Estudos Africanos. O curso
seria voltado eminentemente para professores
da rede estadual, no entanto, a direção do
CEAO também ofertou um curso, em nível de
extensão, para atender aos anseios das pessoas
interessadas pelo tema e que estavam fora do
perfil a ser atendido no curso de
especialização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O projeto em questão foi realizado
numa ampla articulação que envolveu o CEAO,
o movimento negro baiano, o então Secretário
estadual de educação, além de estudiosos. A
estratégia utilizada para garantir a presença
dos professores no curso, a preocupação com a
competência dos docentes que ministrariam as
disciplinas e mesmo a tensão entre o discurso
da militância e sua relação com o discurso
acadêmico revelam que havia um amplo
comprometimento das pessoas envolvidas no
projeto. Aliada a essas questões, nesse mesmo
período, a professora Yêda ainda enfrentava a
resistências à sua atuação como gestora do
CEAO. Sobre essas questões ela argumenta
que:
[...] O que aconteceu aí foi o seguinte: nós não tiramos os professores da sala de aula, mesmo porque o que nós solicitamos à Secretaria é que eles fossem dispensados num determinado horário, entendeu?,prafreqüentar o curso. Foi isso que aconteceu. Quer dizer, eles não ficaram dispensados das aulas. [...] Quer dizer, nós fizemos tudo pra facilitar e não pra complicar. Porque já estava tudo muito complicado. Todo mundo complicando tudo, entendeu? (risos) Então, fizemos pra facilitar, sem querer complicar nada. Mesmo porque, às vezes, o discurso do Movimento Negro era aquele discurso entusiasmado e forte naquele momento, como devia ser.
Naquele momento devia ser assim pra ser imposto, senão não teria imposto. Então, mas era um discurso de militância, entendeu? Um discurso que nem sempre um discurso de militância, ele corre lado a lado com o discurso acadêmico, não é isso? Eles não se encontram, não se encontram, não é mesmo? Então havia também o discurso de militância do Movimento Negro e uma certa reação em relação a mim por eu ser branca, entendeu? [...] (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p.12-13).
Em seu depoimento, a professora Yêda
revela parte das dificuldades enfrentadas no
processo de organização e planejamento do
curso. Além disso, afirma que houve
dificuldades em encontrar docentes para
ministrar as disciplinas, para conseguir o
financiamento do projeto e que ainda sofreu
pressões por parte dos militares em função do
país estar em plena ditadura. Essas pressões
implicavam na fiscalização do conteúdo a ser
ministrado nos cursos e foram reveladas no
seguinte trecho:
[...] A primeira dificuldade foi conseguir financiamento, entendeu? Primeira dificuldade: conseguir financiamento pra fazer o curso. Segunda dificuldade: selecionar os professores que dariam o curso. Porque nós não queríamos qualquer um dentro de sala de aula dando o curso. Nós escolhemos realmente aqueles que nós considerávamos competentes e que, de fato, são. Professor Ronaldo Sena que hoje é professor da Universidade de Feira de Santana, que fez um trabalho belíssimo. Ele é antropólogo. [...] O professor Jorge Conceição que era meu amigo há muito tempo também e que eu conhecia o trabalho dele. [...] Professora Eugênia Nery, professora de História na Universidade Federal, no Departamento de História, extremamente competente, todo mundo sabe disso.Pois bem, Arany também colaborou com Eugênia no curso de História, nós publicamos até um trabalho feito por ela em conjunto com a Eugênia Nery. Você vê que nós estávamos realmente
68 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
rodeadas de pessoas da maior competência e pessoas engajadas com a causa, entendeu? Pessoas que sabiam da necessidade de passar essa informação adiante. Não ficar apenas no círculo acadêmico, limitada às poucas pessoas do círculo acadêmico. Nós tínhamos que passar isso adiante. Então, a dificuldade foi essa: primeiro, financiamento, depois, escolher quais e como seria formada essa equipe de professores. Terceiro, as dificuldades junto à própria secretaria pra poder dar encaminhamento ao processo. Mesmo porque alguns professores como Jorge conceição, por exemplo, não era professor da Universidade. Nós tínhamos então de fazer toda uma, um circuito pra poder chegar, alcançar aquilo que nós perseguíamos. Enfim, e a própria reação dentro do conselho, entendeu? Por que esse curso? Pra quê esse curso, ia incentivar coisas de racismo, não sei o quê? E como eu lhe disse, a própria questão da ditadura. Nós estávamos na ditadura, entendeu? Então era a mesma coisa, do outro lado os militares querendo saber por que é que a gente queria dar esse curso. Qual era a intenção desse curso? Quer dizer, uma coisa atrás da outra. Não podia nem comentar nem falar naquela época, entendeu? Era coisa de 'bico calado'. Não comentava porque não podia comentar. Quer dizer, é uma coisa que agora eu estou lhe revelando, entendeu? Meus amigos mais íntimos aqueles que conviviam comigo no momento, Eugênia Nery sabia, entendeu? Mas Arany não sabia, por exemplo. Nós não podíamos falar. [...] Todos os militares, todos de olho na gente porque nós estávamos tratando de coisas da Rússia, da China comunista e de negro. Por que? Se nós temos uma democracia racial que era o discurso oficial do momento. Você sabe que o discurso era esse de democracia racial e, então, porque é que nós estávamos tratando 'coisas de negro' se nós vivemos uma democracia racial aqui?(YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p.13-14).
A direção do CEAO enfrentou todas
essas dificuldades para dar prosseguimento às
articulações para a realização do curso de
formação sem, contudo, desprezar a
necessidade de articulações permanentes com
o Movimento Negro. Nesse sentido, a
professora Yêda Castro afirmou ter resistido às
pressões buscando, inclusive, estabelecer um
diálogo com militantes destacados no
Movimento e que poderiam contribuir na
formatação do curso:
[...] Quando Lélia Gonzáles esteve aqui [...] ela foi ao CEAO, nós tivemos uma conversa muito séria sobre isso. O que é que nós vamos ensinar? O que é que nós vamos dizer? Eu disse: - Olha, Lélia, nós não vamos fazer discurso de militância. Nós queremos fazer um discurso acadêmico, um discurso cientifico. Entendeu? Agora, pra usar esse discurso cientifico nós temos de driblar (ênfase) a ditadura. Porque senão nós iríamos ensinar quem? Gilberto Freyre, Nina Rodrigues, o discurso da democracia racial. E é isso que nós não queremos ensinar. Nós temos de ser muito sutis, entendeu?,pra mostrar que isso não existe, entendeu? Você vê que a dificuldade era de toda a ordem, de todos os lados. Não era, não era, não foi fácil, não foi fácil. E o tempo que eu passei na direção do CEAO, todo esse tempo que foi o tempo cruel da ditadura, entendeu? Eu sofri essa pressão, sofri essa pressão constantemente. E era engraçado: por um lado, a Universidade dizendo que eu estava vulgarizando a Universidade porque eu abri as portas pra comunidade, sobretudo a comunidade negra, botei como professores no CEAO pessoas que não tinham nenhuma formação acadêmica, entendeu? E os militares querendo saber por que é que nós estávamos fazendo essa 'coisa de negro' lá dentro, se nós tínhamos uma democracia racial? E, do outro lado, o Movimento Negro, os militantes do Movimento, mais fundamentalistas do Movimento Negro, me acusando de eu ser uma branca na direção de um Centro de Estudos que tratava de negros. Então, você veja como é que eu estava cercada por todos os lados (risos). Mas, graças a Deus, eu sobrevivi e fui à frente e fui botando à frente os projetos e vencemos. [...] (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 12-14).
As articulações com o Movimento
Negro foram relevantes na medida em que a
69 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS
CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
professora Yêda tinha certeza de que não
caberia o discurso “militante” no curso de
formação e que a literatura sobre o tema em
questão era problemática, pois favorecia uma
abordagem da história e cultura africana
pautada em estudos baseados em teóricos
como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre. Nesse
trecho de seu depoimento, ela revela que as
iniciativas (o curso de 1982 e o projeto em
1985) não foram realizadas em um ambiente
político e ideológico favorável, em função das
pressões dos militares, de determinados
setores do Movimento negro e até mesmo da
Universidade. Muitos fatos ocorreram após a
conclusão do curso de formação em questão.
As reflexões dos professores que participaram
do projeto, os encontros, desencontros e os
desdobramentos durante as aulas e no
encerramento do curso podem ser encontrados
na obra de Cruz (2008).
Esse capítulo da história do CEAO, que
constitui uma experiência relevante na
História da Educação Baiana propicia uma
leitura que relaciona passado em presente
quando nos debruçamos sobre os desafios
postos frente ao cumprimento da Lei
10.639/03. Apesar disso, nesse texto,
buscamos demonstrar a atuação da professora
Yêda Pessoa de Castro que, enquanto esteve
como diretora do CEAO na década de 1980, se
empenhou para que o centro cumprisse a sua
função como um importante órgão da
universidade, buscando ampliar a participação
da comunidade negra nas suas atividades e
agregar as contribuições do Movimento Negro
no dimensionamento das propostas e ações.
Sem recorrer a anacronismos, é importante
que conheçamos essa experiência educacional
para que repensemos os desafios à elaboração
de uma educação para as relações étnico-
raciais no Brasil e à inclusão da história da
África e dos afro-brasileiros nos currículos
escolares tal como reza a Resolução CNE nº 17
de 17/06/07. (BRASIL, 2004).
REFERÊNCIAS
BAHIA, Secretaria Estadual de Educação e Cultura. Introdução aos Estudos Africanos: documentos. Salvador: SEC, 1986.
BOAVENTURA, Edivaldo. Estudos africanos na escola baiana: relato de uma experiência. In. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade. Salvador, v. 12, n. 19, p. 41-51, jan./jun., 2003.
BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de história e Cultura Afro-brasileira e Africana. Resolução nº 1, de 17 de junho 2004.
BRASIL. Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003. D.O.U. de 10/01/2003.
BRASIL. Lei 11.645, de 10 de março de 2008. D.O.U de 11/03/2008.
CASTRO, Yêda Pessoa de. Agostinho da Silva e o relacionamento lingüístico Brasil-África. In. Atas do Colóquio Internacional Agostinho da Silva e o Pensamento Luso-Brasileiro. Associação Agostinho da Silva. Lisboa: Âncora Editora, 2006. p. 331-338.
CASTRO, Yêda. O Reitor Lafayette de Azevedo Pondé e a promoção dos estudos afro-brasileiros. In. Lafayette de Azevedo Pondé, Homenagens a um mestre. Salvador: Edições Contexto, 2007. p. 105-107.
CONFERÊNCIA de Bandung. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Confer%C3%AAncia_de_Bandung>. Acesso em 22 de janeiro de 2008.
CRUZ, Cristiane C. da.Introdução aos Estudos Africanos na escola: trajetórias de uma luta histórica. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação - FACED, Universidade Federal da Bahia - UFBA, 2008.
70 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
CRUZ, Manoel de Almeida. Alternativas para Combater o Racismo: um estudo sobre o preconceito racial e o racismo. Uma proposta de intervenção cientifica para eliminá-los. Salvador: Núcleo Cultural Afro Brasileiro, 1989.
MUNANGA, Kabengele. Apresentação. In. LARKIN-NASCIMENTO, Elisa (org.). Sankofa: Matrizes Africanas da Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1996. Vol. I
MUNANGA, Kabengele. Estudos sobre a África Subsaariana nos Países da América Latina. In.: BOAVENTURA, Edvaldo; SILVA, Ana Célia da. Formas Alternativas de Educação da Criança Negra em Salvador: O Terreiro, a Quadra e a Roda. Coletânea de Textos do Programa de Pós-Graduação em Educação da FACED/UFBA. Salvador: Editora UNEB, 2004.
MUNANGA, Kabengele. Negritude Afro-brasileira – perspectivas e dificuldades. In. Padê– Revista do CERNE – Centro de Referência Negro-mestiça, n° 1, Salvador, 1989.
SANTOS, Arany Santana dos. Inclusão da disciplina “Introdução aos estudos africanos” nos currículos da rede estadual de 1º e 2º graus da Bahia. Disponível em http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/cp/arquivos/736.pdf. Acesso em 30 de abril de 2006.
SILVA, Jônatas Conceição. História de lutas negras: memórias do surgimento do Movimento Negro na Bahia. In. MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO. 1978-1988: 10 anos de luta contra o racismo. São Paulo: Confraria do Livro, 1988. p. 48-51.
FONTES DOCUMENTAIS
CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO, PARECER N° 89/85. Documento dos arquivos do Centro de Estudos Afro-Orientais. Salvador, 1985. Texto Datilografado. 4p.
CURSO Introdução aos Estudos Africanos. Fichas de Inscrição. Documentos dos arquivos do Centro de Estudos Afro-Orientais. Salvador, 1982. 40 p.
OFÍCIO n° 183 de 1° de agosto de 1983. Centro de Estudos Afro-Orientais. Salvador, 1983. texto datilografado. 2 p.
OFÍCIO n° 25 de 25 de janeiro de 1986. Centro de Estudos Afro-Orientais. Salvador, 1986. texto datilografado. 2 p.
PROJETO “Introdução aos Estudos da História e das Culturas Africanas”. Documento dos arquivos do Centro de Estudos Afro-Orientais. Salvador, [1985?]. Texto datilografado. 5 p.
TERMO DE CONVÊNIO. Documento dos arquivos do Centro de Estudos Afro-Orientais. Salvador, 1986. Texto datilografado. 4 p.
TERMO DE CONVÊNIO. Documento dos arquivos do Museu Afro-brasileiro. Salvador, 1974. Texto datilografado. 5 p.
NARRATIVAS DE PROFESSORES
RURAIS: TRAJETÓRIAS E FAZER
PEDAGÓGICO NO MUNICÍPIO DE BAIXA
GRANDE, BAHIA
Natalina Assis de Carvalho1 RESUMO O presente artigo retrata o recorte de uma pesquisa que buscou discutir a profissão docente em interface com a prática de professores que atuam em espaços rurais, discutindo, assim, formação inicial e formação continuada. O campus da pesquisa foi construído por seis professores que exercem a docência em escolas rurais no município de Baixa Grande Bahia. O trabalho objetivou entender a formação de professores rurais, a partir da profissão e da prática pedagógica. A metodologia que ancorou a referida pesquisa foi a técnica da entrevista narrativa, com a abordagem autobiográfica, uma metodologia e método de conhecimento que possibilita ao professor refletir sua prática e sua vida, num processo de formação. Deste modo, o estudo com as histórias de vida faz com que o sujeito pense no que mais o marcou, no seu processo de vida e formação, retomando as experiências a partir do que foram mais significativos. A pesquisa deu visibilidade ao fazer docente de professores rurais que cotidianamente enfrentam diversos desafios no dever da docência. A formação profissional distante da realidade das escolas e da vida dos sujeitos que vivem e produzem a vida foi uma questão que permeou as narrativas docentes. Palavras-chave: Prática do professor rural. Profissão docente. Formação inicial e continuada. RESUMEN En este artículo se describeel contorno de unestudio que buscóanalizarlainterfazprofesión docente conlapráctica de los docentes que trabajanenlas zonas rurales, conel argumento por lo tanto, laformación inicial y laformación continua. El campus de lainvestigaciónfueconstruido por seis profesores dedicados a laenseñanzaenlasescuelasruralesenelmunicipio de Bahía Grande Bajo. El estudiotuvo como objetivo comprenderlaformación de maestros rurales de laprofesión y lapráctica pedagógica. La metodología que se ancló a la narrativa técnica de laencuesta, dijo entrevista, el enfoque autobiográfico con una metodología y un método de conocimiento, que permite al maestro para reflejarsupráctica y su vida, unproceso de formación. Así, elestudio de las historias de vida hace que elsujetopiensaenlo que lamayoríaanotóensu vida y elproceso de formación, de regreso de lasexperiencias que han sido más significativas. La encuestadiovisibilidad a hacer de laenseñanza de los maestros rurales que diariamente se enfrentan a muchosdesafíosenlaenseñanzadeber. Escuelas de formaciónprofesionalalejados de larealidad y de la vida de las personas que viven y producenla vida es una cuestión que impregnabalosprofesores narrativas. Palabras clave:ProfesorPráctica Rural. Profesión docente. Inicial y continua.
1Licenciada em Pedagogia (UNEB). Especialização em Currículo (UNEB). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduc-UNEB). Membro do Grupo de Pós Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED). Membro do
Grupo de Pesquisa (Auto)biografia, Formação e História Oral (GRAFHO/UNEB). Bolsista FAPESB. E-mail:
nataassis@yahoo.com.br.
72 Natalina Assis de Carvalho
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
INTRODUÇÃO
“A dimensão formadora das experiências deixa marcas e imprime reflexões sobre o vivido...”
(SOUZA, 2006, p.15)
O presente trabalho levantou questões
sobre a formação de professores em espaço
rural no município de Baixa Grande Bahia,
analisando, assim, a formação docente, a partir
das dificuldades apresentadas na prática
pedagógica, em função da fragilidade na
formação inicial e continuada.A metodologia
da referida pesquisaéde abordagem qualitativa,
ancorada no método (auto)biográfico, e que
versa sobre as narrativas de vida de seis
professores rurais que desenvolvem a docência
no município de Baixa Grande Bahia, situado
no Território de Identidade Bacia do Jacuípe.
Tratou-se, também, da escrita autobiográfica,
para entender, por meio destas, as questões da
sua formação. Uma das especificidades do
trabalho com as narrativas é o potencial
metodológico na investigação e formação de
professores.
Nesse sentido, o professor, a partir do
momento que começa a narrar, passa por um
processo de rememoração na sua profissão, o
que inclui suas experiências e aprendizagens
adquiridas. É nesse momento que o docente
reflete e passa a conhecer melhor seu processo
de formação. A ideia de pesquisar sobre a
formação de professores da zona rural
começou com o desenvolvimento da pesquisa
“O professor e sua prática no território escolar
rural” na iniciação científica, vinculado ao
projeto “Ruralidades diversas - diversas
ruralidades: sujeitos, instituições e prática
pedagógica nas escolas do campo Bahia-
Brasil”, com financiamento da CNPq e
FAPESP, a partir de estudos do Grupo
Autobiografia, Formação e História Oral
(GRAFHO). Além disso, fez-se uso dos
conhecimentos obtidos mediante a vivência
com o meio rural, decorrente de frequentes
visitas a locais desta natureza. Optou-se por
valorizar tais conhecimentos, por levar em
consideração o expresso por Josso (2004),
quando afirma que experiência é uma
aprendizagem que ajuda o sujeito no momento
de praticar, decorrente da constituição da
significação, assim, o espaço oferece
oportunidades para viver situações, a partir
dos conhecimentos já adquiridos. Observou-se
que o professor formado nas grandes cidades e
designado para o meio rural nem sempre tem
subsídios necessários para lidar com uma
determinada realidade regional, a qual muitas
vezes é bastante distante daquela que
corresponde à sua vivência. Diante disso, as
ações educativas desenvolvidas por esses
profissionais, oriundos de zonas urbanas em
um meio rural, mostram-se como inadequadas,
por não estar adaptada a essa nova realidade. A
relevância desse trabalho promoveu um estudo
que contemplou a realidade dos professores da
zona rural do município de Baixa Grande-BA,
no que diz respeito à formação e às práticas
pedagógicas dos mesmos. O trabalho com os
professores rurais foi uma importante
contribuição às pesquisas relacionadas à
formação de professores e ao estudo dos
docentes rurais para a produção de
conhecimentos, além de possibilitar a
reconstituição de uma história que permitirá o
conhecimento de si mesmo enquanto
profissional.
A PRÁTICA DO PROFESSOR RURAL
Ser professor é uma tarefa que requer, em
geral, dedicação, gostar do que faz,conhecer a
73 Narrativas de professores rurais: trajetórias e fazer pedagógico no município de Baixa Grande...
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
si mesmo e o lugar que atua. Na sala de aula, o
docente vai articulando sua vida pessoal e
profissional, as quais vão se transformando e
originando subsídios importantes para a
reflexão de como ser professor. Cada docente
tem sua história de vida e uma trajetória.
Assim, é importante conhecer como os
professores percebem suas vivências e como
eles elaboram os acontecimentos, fatos,
experiências que se entrelaçam e lhes
permitem interpretar o mundo.
Tratando-se de professores rurais, vê-
se, de maneira clara, uma atuação profissional
que brota de uma educação vagarosa, e que
surge e continua até hoje a partir de um
modelo de educação do meio urbano. O
docente formado na área urbana, e que vai
atuar no meio rural, necessita ter uma
formação adequada e continuada para
trabalhar com os sujeitos rurais. Neste
sentido, Caldart (2005), tem mostrado a
importância destacada do professor no
processo de progressão e aprendizado dos
alunos. Apesar dessa constatação, a condição
de trabalho desses profissionais tem se
deteriorado cada vez mais. No caso específico
de territórios rurais, os docentes têm-se a baixa
qualificação e salários inferiores ao meio
urbano, enfrenta, entre outras coisas, a
sobrecarga de trabalho, dificuldades de acesso
à escola, em função das condições das estradas,
entre outros. Ser professor rural implica em
refletir uma identidade em construção, meditar
sua prática e compreender as demandas da
sala de aula. É preciso que o educador entenda
que o ser humano é produto da sua história e
que estes diferentes grupos humanos que
vivem nos espaços rurais têm história, cultura,
identidade, lutas comuns e específicas.
Conforme afirma Caldart (Ibidem) a finalidade
de uma ação educativa é ajudar o indivíduo no
desenvolvimento como ser humano. Sendo
assim, a história do sujeito e sua constituição
mantêm-se, mas pode passar por mudanças, e
é por conta destas questões que o professor
deve estar atento à demanda dos sujeitos
rurais. Ao falar sobre o professor é
indispensável que tenha um olhar para o povo
rural com o intuito de direcionar sua prática,
tendo, assim, um olhar diferente, e percebendo
que os alunos do campo são pessoas que
trazem uma história determinada e estão em
momentos diferentes de seu desenvolvimento
humano.
Cumpre destacar, que o professor rural
pode pensar em não só atuar na educação
especificamente na escola, mas lutar pelas
transformações do campo e na sociedade.
Neste sentido, o professor tem um papel
importante no que diz respeito a guiar o
educando no processo de aprendizagem e
mudanças do meio em que vive. Nesse
processo de acompanhamento Zabala (1998,
p.28) afirma que “É preciso insistir que tudo
quando fazemos em aula, por menos que seja,
incide em maior ou menor grau na formação
de nossos alunos” . Ou seja, a formação não é
só vista como do professor, mas do aluno, pois
o trabalho realizado pelo docente é válido para
estes sujeitos. O professor rural lida com
muitas questões na sua profissão, pois, “A
profissão é uma palavra de construção social. É
uma realidade dinâmica e contingente calcada
em ações coletivas” (VEIGA, 2008, p.14).
Nesse caso, a docência envolve uma construção
do lugar, das pessoas e das ações, levando em
conta a realização do trabalho individual ou
coletivo. Os professores que estão no meio
rural modificam a sua prática durante o seu
exercício em sala de aula, visto que estão
sempre encontrando questões diversas para
resolver. A prática no contexto rural é
determinada pela formação que este docente
possui e que se configura na realização de sua
74 Natalina Assis de Carvalho
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
profissão. É possível entrever um certo
desconforto, uma certa dificuldade que
atrapalham muitos docentes que vão ensinar
nas escolas rurais, que é a falta de um projeto
político pedagógico adequado à vivência do
sujeito rural.
Novamente temos o sentido
cristalizado da problemática dos professores de
espaço rural. Sendo assim, Caldart (2005)
afirma que particularmente sobre os
profissionais em educação das escolas rurais,
em comparação aos profissionais urbanos, que
estes recebem menos formação acadêmica e
informação cotidiana, recebem menor
remuneração, trabalham com menos infra-
estrutura e materiais didáticos e,
consequentemente, concentram maiores
índices de doenças de trabalho. São muitas as
questões a serem resolvidas e que interferem
diretamente na prática docente, é preciso,
então, que o professor busque subsídios. Além
disso, novamente nos deparamos com a ideia
de que o professor rural precisa saber
manusear as questões do meio em que faz sua
prática acontecer, é muito mais do que apenas
conteúdos, é uma realidade totalmente
heterogênea. Por isso o professor necessita
estar em constante processo de formação, para
atuar com qualidade no ensino dos sujeitos que
moram em espaços rurais.
PROFISSÃO DOCENTE
A pesquisa desenvolvida no município
de Baixa Grande Bahia foi realizada com o
intuito de entender as narrativas dos
professores rurais, e compreender como os
mesmos desenvolvem a prática em sala de
aula, tendo em vista a formação de alunos
rurais. Assim, a entrevista narrativa e a escrita
autobiográfica foram o procedimento
metodológico utilizado para a recolha das
fontes, onde a entrevista narrativa foi gravada
e transcrita e a escrita autobiográfica recolhida
pelo questionário. As narrativas contemplam
histórias sobre as memórias de identificação
com o meio rural, das práticas em sala de aula
e dos processos de formação. Além disso,
emerge nas narrativas práticas pedagógicas, as
quais são sustentadas pelas orientações e
experiências de professores rurais.
Para entender os seis professores
colaboradores buscou-se o expresso por Souza
(2006) quando diz que as narrativas permitem
entender o processo do sujeito, pois, através
das experiências construídas e das
aprendizagens, adquirem-se os mais diversos
conhecimentos da sua vida e do que se faz.
Realizando, assim, reflexões sobre a formação
inicial e continuada como elementos para
auxiliar o professor em sua profissão docente.
A realização da pesquisa com as
professoras da zona rural ocorreu de forma
vagarosa, pois, nem sempre era possível
encontrá-las. No primeiro contato com as
professoras, informou-se como seria realizada
a pesquisa e o objetivo desta pesquisa.
Esclareceu-se o que representa o projeto
“Ruralidades diversas - diversas Ruralidades:
sujeitos, instituições e práticas pedagógicas”, o
qual serviu de base para o desenvolvimento da
presente pesquisa, para que pudessem
entender o interesse de se trabalhar com
profissionais do meio rural. Destacou-se,
também, a importância que os dados
fornecidos tinham para enriquecer o processo
de formação do pesquisador que lhes falava. E,
por fim, elucidou-se, superficialmente, a
importância do processo da pesquisa como
formação, das narrativas que iriam
desenvolver, apontando-as como um momento
de investigação e formação.
75 Narrativas de professores rurais: trajetórias e fazer pedagógico no município de Baixa Grande...
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
O início da graduação em Baixa
Grande começa com cursos oferecidos por
instituições particulares, mas, efetiva-se com
uma parceria entre a prefeitura e a Rede UNEB
2000. Essa resultou na implantação de cursos
Intensivos de Graduação para docentes que
estejam ensinando nas séries iniciais, da rede
pública de ensino. O objetivo é graduar aqueles
que têm apenas a formação em Magistério, e,
assim, oferecer aos professores cursos de
formação inicial para um melhor desempenho
de sua profissão. Pois, com a implantação da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
9.394/96, que surgem novas exigências para a
formação do professor, e aponta no artigo. 62
que afirma que a formação de docentes para
atuar na educação básica far-se-á em nível
superior, em curso de licenciatura, de
graduação plena, em universidades e institutos
superiores de educação, admitida, como
formação mínima para o exercício do
magistério na educação infantil e nas quatro
primeiras séries do ensino fundamental, a
oferecida em nível médio, na modalidade
Normal.
Em resultado disso, a formação
universitária passa a ser uma prioridade para o
exercício do professor, uma motivação para se
dar continuidade a formação inicial. O curso de
graduação da Rede UNEB, por ser intensivo,
tem a duração máxima de três anos e é voltado
para as séries iniciais do ensino fundamental,
entretanto, no currículo não são contempladas
disciplinas específicas a respeito da educação
do campo, situação distante do que se esperava
de um curso oferecido a professores que
trabalham na zona rural. O contexto rural deve
ser de identificação de muitos professores, pois
se espera que estes possam contribuir no
momento de educar. Entretanto, não se pode
afirmar que todos os docentes se identificam
com o contexto rural. Na presente pesquisa,
constatou-se que quatro professores se
identificam com o contexto rural e apenas dois
se identificam em alguns momentos. Algumas
narrativas que respondem à pergunta: Você se
identifica com o contexto rural? Representam
a identificação com o contexto rural2:
Sim. A simplicidade do povo, o acompanhamento dos pais e o respeito dos alunos. Os alunos da zona rural são muito mais obedientes do que os da zona urbana. (Roque) Sim. Porque convivo há muito tempo nesse ambiente e procuro conhecer bem essa realidade. (Vandeci).
Apesar da identificação com o meio rural,
mesmo que esta seja parcial, o professor
mostra na sua narrativa a vantagem do
trabalho no meio rural. O discurso proferido na
narrativa da professora trás o esforço para
poder compreender a realidade do meio rural.
Sobre a narrativa da professora que diz se
identificar em alguns momentos com o
contexto rural ao se justificar, ilustra bem esta
situação:
Por que minha carga horária aumenta, e os alunos da zona rural são mais desinteressados. (Lucilene)
A professora mostra as dificuldades
postas na prática pedagógica, por conta da sua
carga horária ser muito alta, e a questão da
indisciplina, como condicionante para um
difícil trabalho. Partindo do pressuposto “O
que é ser professor da zona rural?” foram
colhidas as narrativas dos professores. Estes
puderam fazer uma reflexão sobre o seu
processo na vida e na profissão, expressando,
assim, suas dificuldades na prática pedagógica
e na formação. Conforme ilustra o
posicionamento da professora Lucilene
referente à postura dos alunos da zona rural,
ora interessados, ora desinteressados. Além
2 Os trechos aqui apresentados foram extraídos das
narrativas, conforme discursos dos professores, mantendo-
se a fidelidade à escrita original.
76 Natalina Assis de Carvalho
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
disso, foi possível perceber questões sobre
estrutura na prática pedagógica, tais como os
citados no trecho a seguir:
Trabalhar na zona rural é difícil, pois, vários problemas são enfrentados diariamente, porém é gratificante e muito valioso no enriquecimento da prática pedagógica. Bem como adquirir experiências no relacionamento com alunos rurais que é uma realidade diferente dos alunos da cidade. As dificuldades encontradas são: a precariedade do transporte escolar, e até mesmo a ausência em alguns casos, a evasão escolar no período da plantação, a falta de recursos pedagógicos e tecnológicos. (Roque)
Nota-se que muitas escolas não têm boa
estrutura, e as questões do meio rural são
levadas para dentro da sala de aula,
interferindo no aprendizado, tais como: a
chegada da época das plantações, pois os
alunos precisam ajudar os pais no plantio e na
colheita; e a escassez de recursos financeiros.
Temos também que atentar para as narrativas
de Vandeci e Lucilene, onde demonstram uma
fragilidade na formação, quando demarca em
suas narrativasas dificuldades em lecionar nas
escolas rurais.
[...] Sei que em alguns momentos não consigo fazer muita coisa na sala de aula, é porque a minha formação as vezes não dá conta. As vezes fico perdida, não sei de alguns assuntos como das matérias de matemática e história. Isso acontece, porque os cursos de capacitação oferecidos pela secretaria de educação não ensinam conteúdos. É muito difícil trabalhar dessa forma. Mas, pela experiência que tenho dou conta de ensinar com qualidade aos meus alunos. (Vandeci)
Ao tomar a questão da formação,
percebemos na narrativa de Vandeci, a
dificuldade que enfrenta no cotidiano da sala
de aula. O conceito da formação perpassa nas
narrativas de forma subjetivada de
tradicionalismo. Contudo, preocupa-se com as
disciplinas que deve passar para seus alunos,
alegando essa ser uma preocupação também
na formação. É importante destacar que tal
fatobiográfico marcou a sua vida, e que a
experiência toma como marca positiva para
resolver problemas no ensino e que fica para a
sua própria formação. Certamente, uma outra
fala que nos remete a pensar na fragilidade da
formação:
[...] Embora se observe um esforço grande da Secretaria de Educação com os cursos de formação, ainda há muito de clamar para realmente existir a formação. Os pacotes prontos chegam, mas a prática do dia-a-dia não resolve. A realidade que fazemos acontecer na zona rural é diferente da cidade. Formação continuada para nós professores é muito pouco. É preciso que pensem muito nestas formações. (Lucilene)
O excerto da narrativa trás muito
fortemente a questão da formação do professor
rural, levando em consideração a prática neste
contexto rural. Pode-se perceber na narrativa a
fragilidade na formação inicial e continuada
que os professores rurais possuem, e a prática
pedagógica como uma dificuldade por falta de
suporte na formação.
FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA
Para entender a formação de professores,
Veiga (2008) diz que a formação docente é o
ato de formar e educar o profissional. Esta vem
ao longo do tempo, se desenvolve em
momentos individuais ou coletivos, no sentido
de construir saberes adquiridos pela
experiência ou pelas aprendizagens acontece
de forma gradativa, na qual muitos elementos
podem estar envolvidos.
De modo geral, as marcas que
emergem das narrativas dos professores, faz
repensar em uma escola de qualidade para os
sujeitos do campo e repensar a formação inicial
77 Narrativas de professores rurais: trajetórias e fazer pedagógico no município de Baixa Grande...
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
e continuada de professores rurais. A formação
é um passo para ajudar a transformar muitos
aspectos dentro da sala de aula, seja no espaço
urbano ou rural. Assim, pensar que a prática
diária é um elemento de formação, não apenas
as teorias oferecidas pelas universidades e
secretarias de educação. A formação pode
ajudar o docente a encontrar respostas às
dificuldades do dia-a-dia e é um processo
inicial e contínuo.
Muitos autores discutem a questão da
formação inicial, dentro da realidade vivencial
dos professores urbanos e rurais. Para
Mizukami (2002), a formação inicial sozinha
não dá conta de toda a tarefa de formar
professores, como querem os adeptos da
racionalidade técnica, também é verdade que
ocupa um lugar muito importante no conjunto
do processo total dessa formação, se encarada
na direção da racionalidade prática. Nota-se,
assim, que a formação inicial é um ponto de
partida para o professor, e esta não será
suficiente para resolver todos os assuntos que
enfrentará no decorrer de sua atuação, por
isso, a formação continuada é o que dará
suporte ao professor.
Ao longo dos anos, vem se
questionando os cursos de formação
continuada fragmentados e de pouca duração,
como um meio efetivo para alteração da prática
pedagógica. Sendo assim, Mizukami (Ibidem,
p.71) diz a esse respeito: “Esses cursos, quando
muito, fornecem informações que, algumas
vezes, alteram apenas o discurso dos
professores e pouco contribuem para uma
mudança efetiva”. Essa é uma perspectiva
clássica da formação continuada de
professores, que é vista como um processo de
reciclagem, uma atualização.
Contrária a essa visão clássica,
pesquisas sobre uma nova concepção de
formação continuada foram desenvolvidas, no
intuito de romper com modelos tradicionais e
que na visão de alguns autores não funcionam.
Para Candau (1996) todo processo de formação
continuada deve ter como fundamental a
valorização do saber docente e a experiência
que este possui na escola. Sendo assim, o
professor deve apropriar-se de seu processo de
formação e fazer um processo de reflexão sobre
a sua história de vida, seja numa dimensão
pessoal ou profissional.
A reflexão sobre saberes que estão se
configurando na docência é importante para
uma construção da identidade profissional do
professor. Segundo Mizukami (2002), com o
novo perfil do professor, o conceito de
formação docente é relacionado ao de
aprendizagem permanente, onde se
consideram os saberes, as competências
docentes, como decorrência da formação
profissional, das aprendizagens ao longo da
vida. O processo de construção do professor se
desenvolve a partir da prática pedagógica, pelo
compromisso com o seu trabalho, através de
uma formação contínua e mediadora de
conhecimentos. O que acrescenta, também,
nesse processo de construção de identidade são
as experiências vividas, as relações dos
professores entre si e com outras pessoas.
Portanto, no que tange à formação do
professor rural deve ser pensada de forma mais
atenciosa, pois, estes lidam com muitas
dificuldades no campo e sua grande maioria
tem formação inicial, mas não pensam em dar
continuidade. Consta nas Diretrizes
Operacionais para a Educação Básica das
Escolas do Campo (2002) que é dever do
sistema de ensino municipal ou estadual
assegurar a formação do professor, seja ela no
magistério ou em nível superior. As Diretrizes
dizem, também, que os cursos oferecidos aos
professores deverão ter conteúdos da zona
rural, os conhecimentos devem ser voltados ao
78 Natalina Assis de Carvalho
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
campo, às questões enfrentadas pelo educador
rural.
Formar docentes para a atuação na
educação rural é um desafio para as
universidades e são poucas as instituições de
ensino superior que estão tomando a iniciativa
de incluir no seu currículo disciplinas para o
professor rural ou até mesmo oferecer cursos.
No entanto, já existem programas de apoio à
formação superior em curso de licenciatura em
educação do campo em algumas universidades
federais, tais como a Universidade Federal da
Bahia, a Universidade Federal de Minas Gerais
e a Universidade de Brasília. No que concerne
à oferta das licenciaturas em educação do
campo é oferecida a professores que não têm
formação superior e que atuam no meio rural.
Essas licenciaturas oferecem formação inicial
específica, sendo esta uma iniciativa viável aos
educadores rurais. Para Rocha e Martins
(2009) a experiência da licenciatura em
educação do campo está sendo construída, mas
sucedem muitos desafios e possibilidades.
Cita-se, ainda, o Programa de Apoio à
Formação Superior em Licenciatura em
Educação do Campo (Procampo) que é uma
iniciativa do Ministério da Educação, por
intermédio da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade
(Secad), em cumprimento às suas atribuições
de responder pela formulação de políticas
públicas para combater os problemas
educacionais sofridos pelas populações rurais e
a valorização da diversidade nas políticas
educacionais. Nesse caso, o objetivo do
Programa é apoiar a implementação de cursos
regulares de Licenciatura em Educação do
Campo nas Instituições Públicas de Ensino
Superior de todo o país, voltados
especificamente para formar educadores que
lecionarão nos anos finais do ensino
fundamental e no ensino médio nas escolas
rurais. A falta de interesse das políticas
públicas ainda interfere fortemente quando se
trata de trabalhar a educação rural e essas
propostas ainda precisam se expandir a ponto
de chegar a todos os professores rurais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo realizado a partir das
Narrativas de professores rurais: trajetórias e
fazer pedagógico, comprovou, dentre outras
coisas, que, antes de se estudar a formação de
professores rurais, faz-se necessário entender a
relação existente na escola rural e urbana,
questões da prática pedagógica e profissão em
espaço rural. Foi constatado que as narrativas
é um subsídio que pode ajudar o docente a
entender sua formação e refletir um pouco
sobre suas experiências, suas aprendizagens
para melhor rever a sua prática na sala de aula.
Entender como se processa a formação, remete
os professores a voltarem à pensar a sua
formação inicial, podendo compreender e
pensar durante o estágio da sua prática que, às
vezes, reflete no que realmente são. Dessa
forma, as aprendizagens e as experiências são
elementos essenciais na constituição e auto-
formação desses profissionais.
Constatou-se a importância de se
trabalhar com a abordagem autobiográfica e as
narrativas no processo de investigação e
formação de professores. Através das
narrativas foi possível obter o conhecimento
sobre a história dos professores, sobre o que é
ser professor da zona rural. Desta forma,
apresentaram-se, mediante este estudo,
reflexões acerca da formação do professor da
zona rural de Baixa Grande, e verificou-se as
dificuldades existentes na prática pedagógica
79 Narrativas de professores rurais: trajetórias e fazer pedagógico no município de Baixa Grande...
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
dos professores rurais, ligadas diretamente à
fragilidade na formação inicial e continuada.
A partir dessa análise, pode-se constatar
que o professor, durante sua formação, precisa
estar refletindo sobre a sua vida, sobre o seu
processo de formação e suas práticas
pedagógicas. A reflexão sobre os
conhecimentos adquiridos e as aprendizagens
dos professores pode ser um elemento para
melhorar a sua prática ou qualquer ação
desenvolvida na escola. Assim, reconhece-se
que ser professor rural e, concomitantemente a
isto, cursar uma universidade, ainda é um
grande desafio nos dias de hoje, no entanto,
não impossível de se fazer. A importância de se
procurar uma formação inicial e continuada,
com conteúdos específicos da área rural, é
fundamental para que o educador possa
resolver as diversas questões que surgem
dentro da sala de aula e oferecer um ensino de
qualidade aos seus alunos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Resolução 01/2002 do CNE/CEB, que Institui as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica do Campo. Brasília: CNE/CEB, 2002. BRASIL. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, 1996. 63 p. CALDART, Roseli Salete. A escola do campo em movimento. In: ARROYO, Miguel Gonzalez; CALDART, Roseli Salete; MOLINA, Mônica. Castagna. (Orgs.). Por uma educação do campo. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p.87-131. CALDART, Roseli Salete. II Conferência Nacional por uma educação do campo. In: Instituto Anísio Teixeira - IAT (Org.). Curso para Professores de Educação do Campo – FNDE. Diretrizes Operacionais. [S.I.], 2005. CANDAU, Vera Maria Ferrão. Formação Continuada de Professores: Tendências Atuais. In: REALI, Aline Maria de Medeiros Rodrigues; MIZUKAMI, Maria da Graça
Nicoletti. (Orgs.). Formação de professores: tendências atuais. São Carlos: EDUFSCar, 1996, p.139-152. JOSSO, Marie-Cristine. Experiências de Vida e Formação. São Paulo: Cortez, 2004. MIZUKAMI, M. G. N. et al. Escola e aprendizagem da docência: processos de investigação e formação. São Carlos: EDUUFSCar, 2002. ROCHA, ANTUNES; MARTINS. I. Licenciatura em Educação do Campo: histórico e projeto político-pedagógico. In: ROCHA, ANTUNES; MARTINS. I. (Orgs). Educação do Campo: desafios para a formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. SILVA, Maria do Socorro. Diretrizes Operacionais para Escolas do campo: Rompendo o silêncio das políticas educacionais. In: BAPTISTA, Francisca Maria Carneiro; BAPTISTA, NaidsonQuintella. Educação Rural: sustentabilidade do campo. 2 ed. Feira de Santana, BA: MOC; UEFS (Pernambuco); SERTA 2005. p. 30-53. SOUZA, Elizeu Clementino de. O conhecimento de si: estágio e narrativas de formação de professores. Salvador: UNEB, 2006. VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Docência como atividade profissional. In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro; d’AVILA, Cristina. (Orgs.). Profissão docente:novos sentidos, novas perspectivas. Campinas, SP: Papirus, 2008. p.13-21. ZABALA, Antoni. A Prática Educativa Como ensinar. Tradução de Ernadi F. da F. Rosa. Porto Alegre: Artemed,1998.
[Digite texto]
A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO
ENTRE SERRAS PANKARARU: UMA
DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM
Edilma Cavalcante Santos Menezes1
Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco2 RESUMO
O presente artigo versa acerca da relevância de educar as crianças indígenas, especificamente, as crianças Pankararus, de Entre Serras – Pernambuco, objetivando conhecer o modo de ensinar e aprender das crianças indígenas no processo de ensino e aprendizagem, valorizando as pessoas que contribuem para este processo de modo a compreender que os conhecimentos tradicionais do povo são relevantes para preservação de sua historia. O Povo indígena Entre Serras Pankararu habita o Sertão de Pernambuco, na região do Médio São Francisco, tendo sua formação territorial composta por aldeamentos, localizado nos municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá. Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa e de caráter exploratório e, para delineamento desta, utilizou-se de pesquisa bibliográfica para fundamentação teórica. No que diz respeito à coleta de dados, esta se deu por meio das técnicas de observação in loco e análise de discurso da população residente nos territórios indígenas supracitados. Mediante os resultados obtidos na pesquisa é possível afirmar a priori, que o povo Entre Serras Pankararu já obteve algumas conquistas, do ponto de vista do reconhecimento e valorização de sua etnia e, tem continuado avançando nos aspectos educacionais, de saúde pública e de reconhecimento identitário enquanto atores sociais que possuem direitos que a muito foram negados e que necessitam ser de fato, (re)conquistados, resgatado e reafirmados.
Palavras-chave: Educação. Pankararu. Aprendizagem.
ABSTRACT
This Article deals about the importance of educating the indigenous children, specifically, children Pankararu community, Between Saws - Pernambuco, aiming to know the mode of teaching and learning of indigenous children in process of teaching and learning, valuing the people who contribute to this process in order to understand that the traditional knowledge of the people are relevant to preservation of its history. The indigenous People Between Saws Pankararu inhabits the Backlands of Pernambuco, in the region of the Middle San Francisco, having its territorial formation composed of villages, located in the municipalities of Tacaratu, Petrolândia and Jatoba. It is a qualitative research and exploratory and delineation, for this, it was used for bibliographic search for theoretical foundation. With regard to the collection of data, is given by means of observation techniques in loco and discourse analysis of the resident population in indigenous territories mentioned above. Upon the results obtained in this research it is possible to say a priori, that the people Between Saws Pankararu has already obtained some achievements, from the point of view of recognition and appreciation of their ethnicity, and has continued advancing in education aspects of public health and of recognition identitary intensification as social actors who have rights that the very were denied and that they need to be in fact, (re)won, redeemed and reaffirmed. Keywords: Education. Pankararu. Learning.
1 Especialista em Educação Infantil (FATIN); E-mail: edilmacavalcante@hotmail.com 2 Doutoranda em Educação (UCSF/AR); Geógrafa do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano –
Campus Petrolina; E-mail: clecia.pacheco@ifsertao-pe.edu.br
81 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
INTRODUÇÃO
A educação é base que fundamenta
qualquer tipo de organização social.
Entretanto, não se pode deixar passar
despercebidas as mudanças ocorridas no
campo educacional nos últimos anos. A
Constituição Federal de 1988 vem propor um
novo olhar para a educação indígena, o resgate
e valorização de sua cultura, propondo uma
educação diferenciada, por meio da escola,
onde as informações são pertinentes para a
interação mais simétrica com a sociedade não
indígena. Outro ponto importante que merece
destaque é a forma de educar as crianças
indígenas de acordo com as crenças religiosas,
costumes tradicionais e culturais do povo
subentendido.
Esta pesquisa foi originada com o
propósito de investigar de que forma
professores, escolas e lideranças deste povo
indígena estão preparando as crianças para o
enfretamento dos entraves que se exige do
indivíduo no mundo globalizado, na era da
informatização, possibilitando as elas interagir
dentro do seu meio social e com o mundo em
seu entorno percebendo-se como ser promotor
e construtor de sua própria história.
Sendo assim, possui como principal
objetivo conhecer o modo de ensinar e
aprender das crianças indígenas no processo
de ensino e aprendizagem, valorizando as
pessoas que contribuem para este processo de
modo a compreender que os conhecimentos
tradicionais do povo são relevantes para
preservação de sua historia.
Para se ter uma maior familiaridade
com o tema pesquisado, fez-se necessário uma
revisão sistemática nas principais obras
literárias e endereços eletrônicos referentes ao
tema proposto. Além do processo de
construção da fundamentação teórica, foi
realizada conversas informais com professores
e educandos da Escola Estadual Santa Clara,
como também, com a comunidade, lideranças,
pajé e cacique do Povo Entre Serras
Pankararus.
O Povo indígena Entre Serras
Pankararu habita o Sertão de Pernambuco, na
região do Médio do São Francisco, tem sua
formação territorial composta por
aldeamentos, localizado nos municípios de
Tacaratu, Petrolândia e Jatobá. Suas
concepções de mundo caracterizam-se pela
forte resistência e luta para preservar e manter
sua cultura, pois se compreende que tanto os
homens índios como os brancos, estão em
convivência diária e não pode isolar-se,
mostrando-se como parte integrante do
mesmo meio, onde defende e divulga suas
crenças e seus conhecimentos do mundo
terreno e espiritual.
Ao observar por tais prismas, é
possível descrever entendimento sobre os
saberes culturais do povo demonstrando como
as novas gerações aprendem os seus saberes
dentro do espaço que está inserida, de forma
que esses conhecimentos contribuam para que
as crianças não se esqueçam dos valores
culturais quando estiverem em contato com a
sociedade contemporânea, preocupando-se
para que não haja a degradação dos valores
culturais e tradicionais do povo, e que as
futuras gerações tenham sabedoria para
contextualizar seus conhecimentos com os
conhecimentos da cultura não-indígena.
Segundo Maber (2006) quando fazemos
menção à “educação indígena” estamos nos
referindo, aos processos educativos
tradicionais de cada povo indígena, aos
processos nativos de socialização de suas
crianças.
82 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:
UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM
Portanto, quando se observa as
atividades mais corriqueiras realizadas no
interior de uma aldeia, podemos perceber que
ocorreu um intenso e complexo processo de
ensino/ aprendizagem, no qual crianças e
jovens são preparados para exercerem sua
“florestania”, para se tornarem sujeitos plenos
e produtivos de seu grupo étnico. Antigamente,
essa era a única forma de educação existente
entre os povos indígenas: o conhecimento
assim transmitido era mais do que suficiente
para dar conta das demandas do mundo do
qual faziam parte.
1. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA
DO POVO ENTRE SERRAS
PANKARARU
O povo Entre Serras Pankararu é uma
etnia indígena cujo aldeamento está localizado
geograficamente nos municípios do sertão
pernambucano Tacaratu Petrolândia e Jatobá
em uma área que compreende 7.755 hectares,
com população estimada em torno de 3.022
índios distribuídos em cerca de treze aldeias,
algumas aldeias como Barrocão e logradouro
ficam dentro do território pertencendo as duas
terras indígenas, Entre Serras Pankararu e
Pankararu.
A localização geográfica das aldeias
indígenas de Entre Serras Pankararu (figura 1)
implica em variações climáticas de acordo com
a localidade de cada uma, sendo predominante
o clima tropical semiúmido e em determinadas
áreas, o tropical úmido com vegetação
predominante a caatinga com grandes
variações típicas de cerrado e agreste.
Figura 1 – Divisão das Aldeias de Entre Serras Pankararu
Fonte: Autora, 2013
O território é composto por serras
imponentes vestidas por paredões rochosos e
ricos em espécies vegetais; também fazem
parte de sua geografia baixada brejeiras e
terrenos arenosos nos sopés de serras. (Figura
2)
Figura 02 – Aldeia Barrocão
Fonte: Autora, 2013
83 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Figura 3 – Demonstração da cultura indígena
na comunidade pesquisada
Fonte: Autora, 2013.
É de relevante pertinência fomentar
elementos fundantes para despertar o orgulho
em ser índio dos mais jovens. Conforme afirma
Silva e Ferreira (2001):
Nos dias que correm a educação escolar pleiteada pelos povos indígenas e garantida constitucionalmente está associada a projetos de autonomia indígena na geração comunitária de seu modo de viver e de construir alternativas para o seu presente e seu futuro. (SILVA; FERREIRA, 2001, p. 1)
Nesse sentido, todo o levantamento
feito nesta pesquisa, permitirá entender de que
forma as escolas do Povo Entre Serras
Pankararu contextualiza os conhecimentos
tradicionais com as vivências não indígenas,
contribuindo para a interação das crianças
dentro e fora da aldeia, como também,
construir uma identidade de pertencimento de
sua cultura.
2. BREVE REVISÃO DE
LITERATURA 2.1 Origem dos Povos Entre Serras
Pankararu
O Povo Entre Serras Pankararu vive
em um território tradicional composto de
14.294 hectares, dividido em duas terras
indígenas, Terra Indígena Pankararu
com8.100 hectares e Terra Indígena Entre
Serras Pankararu com7.755 hectares,
constituída a partir do momento em que 33
lideranças Pankararu abriram mão destas
terras. A terra foi demarcada, reconhecida e
homologada sob o decreto de 19 dezembro de
2006, onde sua formação territorial é
composta por 13 aldeias: Piancó, Barriguda,
Salão, Lagoinha, Mundo Novo, Logradouro,
Barrocão, Espinheiro, Baixa de Lero, Porteirão,
Folha Branca, Olho D’agua do Julião e
Carrapateira, localizada no sertão de
Pernambuco, às margens do rio São Francisco,
rio Moxotó entre os municípios de Tacaratu,
Petrolândia e Jatobá à aproximadamente 520
km da capital do Recife.
Hoje, aproximadamente 3.022
indígenas vivem dentro de um espaço
privilegiado de saberes e conhecimentos
tradicionais interculturais, onde a comunidade
envolvente obtém sua própria autonomia de
optar, contornar e ampliar conhecimentos
adquiridos no contexto social.
Os antepassados de Entre Serras
Pankararu viviam em pequenos grupos, em
um lugar chamado de Maloca Cana-Braba
onde preservaram os costumes, tradições e
rituais que constituem a herança cultural até os
dias atuais, como bem enfatiza a Revista
História da Biblioteca Nacional (2013),
[...] no século XX, construíram suas próprias agendas de reivindicações, lutando por seus direitos, por suas terras e por suas culturas, conquistando espaço em uma comunidade nacional cada vez mais multicolorida. No século XXI, ao contrário das previsões mais pessimistas, cresceram em número e fizeram sua voz ser ouvida. Desta vez, como mostra o nosso dossiê, sem mal-entendidos: são brasileiros, Já estavam aqui e vão ficar. (p.16)
84 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:
UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM
Este Povo tem grande porte de
evolução por parte da globalização em relação
ao nível de conhecimento na formação
profissional; a tecnologia se torna viva desde as
formas de moradia como os padrões de vida de
muitas famílias, mas a essência das aldeias
belíssimas e os dons da sabedoria indígena não
se perderam.
A pureza do Brasil miscigenado com
ênfase no processo de revitalização cultural e
verificação da simplicidade em detalhes como
o sentimento, o orgulho, a riqueza cultural, o
valor biológico. No entanto, hoje os indígenas
vivem sobe a influencia da cultura dos não
índios desde o inicio do descobrimento do
Brasil, com a chegada da congregação de Luiz
Felipe Néri catequizando os indígenas por
meio da troca de objetos de uso pessoal do
tipo: um espelho, joias, etc. fator bastante
peculiar na vida do povo citado, históricos e
registros orais e escritos descrevem o massacre
e exploração vivida pelos antepassados desde a
extração dos recursos naturais existentes no
território por eles tradicionalmente ocupados e
expulsão de suas moradias, como bem descreve
(REVISTA HISTÓRIA, 2013):
O “slogan usado pelos militares na década de 1970 –” Terra sem homens para homens sem terra”. Ignorando a presença de povos tradicionais [...] a devastação da floresta e os conflitos com as comunidades que já viviam ali começaram para não ter mais fim. Os indígenas muitas vezes tiveram seu deslocamento forçado, com dispersão de seus grupos para territórios com os quais não tinham qualquer ralação histórica. Vários grupos foram levados para as chamadas reservas indígenas, sem qualquer análise ética. A política era tirar os índios do caminho e botarem um gueto, onde se misturavam diferentes grupos, às vezes até inimigos entre si. Era um depósito de índios. (p. 38-39)
Somente após a promulgação da
Constituição Federal de 1988 que, em seu
Artigo 23, afirma que são reconhecidos aos
índios a sua maneira de “organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à união
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os
seus bens”, é que algumas mudanças positivas
puderam ser iniciadas e implementadas.
(BRASIL, 1998, p.31)
Corroborando com tal afirmação, é
valido enfatizar que pelo menos o denominado
“arcabouço legal sofreu modificações radicais:
com a Constituição de 1988, onde pela
primeira vez na história eles tiveram
reconhecidos o direito à sua cultura e aos seus
territórios tradicionais.” (REVISTA
HISTÓRIA, 2013, p.38).
Ao entrevistar as lideranças e também
anciãos do povo pesquisado é que se
compreende o processo de violação dos seus
direitos primordiais, cujos relatos indicam que
muitas índias foram violentadas por terem
uma beleza deslumbrante e os homens foram
escravizados no trabalho braçal, tendo suas
terras invadidas, onde, até os dias atuais, lutam
pela desintrusão das mesmas. Além disso, os
atores ouvidos reafirmam que os resquícios
destas questões são protelados, lentamente, ao
longo dos anos, fazendo os mesmos chegarem
à conclusão de que o governo não compreende
que é a partir da mãe-terra que eles garantem a
sustentabilidade material e espiritual.
2.2 Os Costumes Culturais no Processo de
Ensino Aprendizagem da Criança
A cultura indígena Entre Serras
Pankararu deu-se início lá pelo período da
pedra redonda, surgindo índios donos da terra,
onde habitavam por todo o território
brasileiro. A terra é a testemunha e a fonte
85 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
primordial da existência e resistência dos
costumes, crenças, rituais de sobrevivência da
luta da vida dos Entre Serras Pankararu. É da
terra que os índios mantém sua
sustentabilidade espiritual e material. “A
cultura é um sistema de significados, atitude e
valores compartilhados, e as formas simbólicas
nas quais eles se expressam ou se incorporam”.
(VIANA, 1999, p.21).
Os recursos naturais estão presentes
nas tradições e procedimentos ocultos como,
por exemplo, na cura da doença fornecendo as
ervas para banhos, bebidas que usam nos
rituais, nos cantos e danças. O solo fornece a
tinta que é usada na tradição da pintura
corporal dos índios, na roupa dos praiá, para a
vivência da dança, do menino no rancho. O
livro didático, Arte e Educação Física na
Educação Escolar Indígena (ROCHA, 2005),
faz ênfase com bastante clareza ao falar da
importância da dança na prática dos rituais
sagrados:
No Brasil ainda no século XI nossos índios como acontece com os povos de cultura primitiva, em geral, expressavam os acontecimentos importantes da tribo e sua relevância diante dos fenômenos da natureza, através dos rituais dançados, que podiam durar muitas e muitas horas. [...] a dança é praticada tanto por homens quanto por mulheres, separados ou juntos, e tem vários objetos como o culto aos deuses, celebração de uma boa colheita, passagem de vida e morte, etc. (ROCHA, 2005, p.62-63).
O toré e os toantes sempre são
cantados por pessoas que recebem o dom
através de seus ancestrais. Observou-se que o
toré é vivenciado em território aberto junto à
população. É nas tradições indígenas como,
por exemplo, corrida do umbu e menino no
rancho, que acontecem momentos de
renovação da fé. De acordo com a concepção de
Grunewald (2005)
Nestas festividades, fica bastante clara a diferença entre dois momentos do ritual, que do ponto de vista musical se distingui pelas canções apropriadas: os toantes e os torés. Os toantes são cantados por um cantador, acompanhado de maracá, empregando vocalizações nostálgicas da língua ameríndia falada pelos antepassados, ao som dos toantes dançamos praias, considerado representações físicas dos encantados as divindades culturais pelos Pankararu. Já os torés se caracterizam por serem cantados e dançados por todos, possuem letras em português e podem ser realizados em diferentes situações. (GRUNEWALD ,2005, pag. 284)
Diante da convivência dentro do
contexto sociocultural do Povo Entre Serras
Pankararu as crianças aprendem os
conhecimentos culturais e religiosos através
dos ensinamentos dos mais velhos, no convívio
com a família e, por meio das práticas culturais
vivenciadas pelos antepassados e praticadas
até hoje pelas gerações presentes.
Embasado nesses pressupostos é que
Viana (2007), afirma que a história de vida do
indivíduo é, antes de qualquer coisa, uma
acomodação a padrões e modelos
tradicionalmente transmitidos por uma
comunidade. Desde seu nascimento, os
costumes moldam suas experiências e sua
conduta. Quando começa a falar, ele é um
produto da sua cultura e, quando cresce e pode
tomar parte nas atividades coletivas, faz dos
hábitos da comunidade os seus hábitos, das
crenças e das impossibilidades, as suas
possibilidades.
As normas estabelecidas pelo grupo
definiram o papel do homem e da mulher no
espaço cultural e religioso. As crianças
inseridas neste contexto compreendem desde
pequena que determinados costumes estão
atribuídos dentro da cultura de acordo com o
gênero da criança, compreendendo e
86 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:
UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM
respeitando as normas definidas pelo grupo
cultural, onde alguns lugares e costumes são
restritos às mulheres, por exemplo, a mulher
não pode usar o tonankiá (Roupão feito de croá
usados nos rituais), o chapéu do menino no
rancho, participar da dança do bate gancho,
frequentar o poro, pegar o pirão primeiro do
que os homens, cortar o fumo distribuído aos
homens e oferecido aos encantados.
No ritual da corrida do imbu uma das
atribuições da mulher são colher os imbus,
usar roupas compostas como sais de tecido e
cabelos soltos. Quanto a ambos, homens e
mulheres, participarem dos rituais sagrados do
povo, é necessário que todos estejam de corpo
limpo, são momentos onde fortalecemos a
nossa fé e sentimos a presença dos encantos.
Na óptica de Maber (SILVA; FERREIRA, 2006).
Quando fazemos menção à “educação indígena” estamos nos referindo, aos processos educativos tradicionais de cada povo indígena, aos processos nativos de socialização de suas crianças. Quando observamos as atividades mais corriqueiras realizadas no interior de uma aldeia, podemos perceber que ocorreu um intenso e complexo processo de ensino/aprendizagem. No quais crianças e jovens são preparados para exercerem sua “florestania”, para se tornarem sujeitos plenos e produtivos de seu grupo étnico. (p. 16-17)
Na antiguidade, essa era a única forma
de educação existente entre os povos
indígenas: o conhecimento assim transmitido
era mais do que suficiente para dar conta das
demandas do mundo do qual faziam parte. A
partir do contato com o branco, no entanto,
esses conhecimentos passaram a ser
insuficiente para dar conta e garantir a
sobrevivência, o bem estar dessas sociedades.
É fundamental agora também conhecer os
códigos e os símbolos dos não índios, já que
estes e suas ações passaram a povoar o entorno
indígena. “Cada povo tem o seu jeito de cuidar
e educar as crianças, de acordo com a
mitologia de origem e sua cultura” (REVISTA
CRIANÇA, 2007, p. 35). E, é assim que surgiu,
historicamente, a educação escolar indígena,
como promotora de manter viva a tradição de
seu povo.
O Povo Entre serras Pankararu, assim
como os demais povos indígenas, sempre
desenvolveram suas próprias formas de
ensinamento e aprendizagem, de maneira que
as práticas desenvolvidas dentro das
comunidades indígenas seguem regras imposta
pelo próprio povo, tendo como base a
valorização dos saberes culturais e religiosos
no qual as crianças aprendem desde pequenas
em convívio na comunidade. Conforme Viana
(2007):
Cultura [...] Tomada em seu amplo sentido etnográfico como este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade. ( p. 05).
Nesse sentido, desde muito antes à
introdução da escola, os povos indígenas vêm
elaborando, ao longo de sua historia,
complexos sistemas de pensamentos e modos
próprios de produzir, armazenar, expressar,
transmitir avaliar e reelaborar seus
conhecimentos e suas concepções sobre o
mundo, o homem, o sobrenatural. Observar,
experimentar e estabelecer relações de
causalidades, formular princípios, definir
métodos adequados, são alguns dos
mecanismos que possibilitaram a esses povos a
produção de ricos acervos de informações e
reflexões sobre a natureza, sobre a vida social e
sobre os mistérios da existência humana,
desenvolvendo uma atitude de investigação,
procurando estabelecer um ordenamento do
mundo natural que serve para classificar os
87 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
diversos elementos. Esse fundamento implica,
necessariamente, pensar a escola a partir das
concepções indígenas do mundo e das formas
de organização social, política, cultural,
econômica e religiosa desses povos indígenas
(BRASIL, 2002).
O ensino e aprendizagem das crianças
são caracterizados pelos seus próprios métodos
de ensino fora do contexto de sala de aula,
presentes diante das diferentes manifestações
culturais existentes dentro do território, nos
terreiros de praiá, na dança do toré, em
confecções de artefatos e por meio das
histórias que constituem o contexto histórico
deste povo. Para as crianças e jovens esses
saberes são relevantes, a cultura praticada por
eles trazem uma razão muito forte, tudo que
fazem e sabem não foram adquiridos hoje, são
conhecimentos que foram deixados pelos
ancestrais deste povo e vivenciados em dias
atuais pelas novas gerações.
2.3 Sustentabilidade e Economia
A sustentabilidade dar-se através da
agricultura, empregos em empresa
terceirizada, dentro e fora da aldeia, e a
comercialização do que é produzido pelo
artesanato da fibra do caroá, sementes e palha
do Ouricuri. Há, também, a fonte de renda
gerada do plantio e colheita do feijão, milho,
andu e mandioca, e com a variedade de frutas
da região como: a manga, pinha, caju, umbu.
Com toda essa produção houve a necessidade
de se criar uma associação, que recebeu o
nome de Associação Indígena de Entre Serras
Pankararu (AISP), com o objetivo de
promover e fortalecer o desenvolvimento
socioeconômico e cultural do Povo de Entre
Serras Pankararu, com ações que visam
melhor qualidade de vida para os indígenas, já
que, devido a grande desvalorização dos
profissionais e dos produtos, são raros os
jovens que desenvolvem alguma atividade
tradicional, o que representa uma grande
preocupação dos artesãos e de toda a
comunidade indígena.
Tendo a associação registrada, foi
possível obter alguns resultados, graças a
projetos que foram contemplados: a carteira
indígena – Segurança alimentar e
desenvolvimento sustentável em comunidades
indígenas. Através da carteira indígena são
contemplados o projeto beneficiando o umbu e
outras frutas nativas da aldeia; o projeto irá
melhorar a vida das mulheres indígenas, uma
vez que poderão aproveitar melhor o umbu e
demais frutas nativas, armazenando e
transformando em poupas, refrigerando-as e
podendo vender na entre safra, agregando
valor ao produto final, com preços mais
elevados, gerando renda e elevando a alta
estima das mulheres da comunidade.
Junto com o projeto Gestão Ambiental
e Territorial Indígena (GATI), fruto do esforço
conjunto do movimento indígena, da Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) e do Ministério do
Meio Ambiente (MMA), com o apoio do
programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), se desenvolve o
projeto GEF-CAATINGA, visando à
sustentabilidade socioambiental no semiárido
brasileiro, fortalecendo o uso sustentável e
conservação dos recursos naturais e a inclusão
social dos indígenas.
Sendo assim se pôde por em pratica o
que versa a Constituição da República do
Brasil, de 1988, em seu Artigo 225, Capítulo
VI, que ressalta a ideia de que todos têm
direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-
88 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:
UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM
se ao poder Público o dever de defendê-lo e à
coletividade o de preservá-lo, para as presentes
e futuras gerações.
Os projetos capacitarão as pessoas que
moram na comunidade na prática de confecção
de artefatos de palha, sementes, barro e
madeira. Garantindo, assim, melhores
condições de vida aos indígenas. Atualmente a
escassez prolongada de chuva na Região
Nordeste vem afetando a economia do povo,
em tese, pois, com o período de estiagem,
muitos agricultores não plantaram o milho, o
feijão e mandioca, e aqueles que plantaram
tiveram sua safra perdida, o que,
consequentemente, provocou aumento do
preço destes alimentos nos últimos três anos.
As variedades de frutas colhidas dentro da
comunidade indígena vêm diminuindo
constantemente a cada ano, comprometendo a
renda de algumas famílias que vivem
negociando diretamente nas feiras livres e, aos
atravessadores que saem à procura destas
frutas nas aldeias.
2.4 Educação Escolar Indígena e o
Processo de Desenvolvimento do Ser
Humano
Partindo do pressuposto que a
educação é uma qualidade por ser capaz de
possibilitar, ao individuo que a detém,
maturidade para agir com civilidade,
cordialidade, sabedoria e bom senso, pode-se,
claramente, classificar a mesma como uma
poderosa ferramenta capaz de proporcionar a
construção de saberes e valores, esta, deveria
ser uma prioridade em nosso país. Todavia, a
educação antigamente desenvolvida no povo
Entre Serras Pankararu se procedia embaixo
das árvores de maneira que os professores
leigos usavam pedaços de carvão e tábuas para
apresentar os conteúdos a serem ensinados e
os alunos utilizavam o próprio chão para
escrever, neste sentido não havia um ensino
sequenciado, planejado e sistematizado com
professores especializados.
Tomando a concepção de experiência
do filósofo John Dewey (1980, p. 89) “Tal
experiência é um todo e traz consigo sua
própria qualidade individualizadora e sua alto-
suficiência. É uma experiência.” O ensino na
maioria das vezes acontecia na própria família
onde davam importância aos conhecimentos
empíricos dos mais velhos, conhecidos como
detentores dos saberes tradicionais do povo
supracitado.
[...] A primeira educação é na família e com os outros parentes, a segunda é da escrita do aprendizado na escola para complementar essa se fala também educação. Hoje fazemos parte da sociedade nacional e que estar competindo para o beneficio da comunidade. (BRASIL, 1998, p.288).
No entanto, nota-se que a experiência
de vida, junto ao convívio com a natureza,
estabelece e esclarece a crença vivenciada e
repassada de geração para geração ao absorver
esse entendimento. Observa-se que, nos dias
atuais, a pedagogia indígena tem uma missão
de sistematizar os saberes tradicionais, no
intuito de garantir a sustentabilidade e a
valorização cultural que, para os indígenas,
também, é sustentabilidade espiritual.
Porém, quando se leva em conta o fato
de que a ação educativa é também um fator de
caráter social, pois engloba na sua natureza as
relações humanas de convivência em grupo e o
pensar coletivo, é possível também admitir que
a sociedade, na qual o indivíduo se encontra
inserido, exerce grande influência sobre o seu
desenvolvimento social e intelectual. Neste
sentido, acredita-se que as crianças Entre
Serras Pankararu vivem em um espaço
89 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
geográfico privilegiado, rodeado por uma vasta
vegetação nativa, uma geomorfologia
privilegiada, com quedas d’água naturais, às
margens do rio São Francisco.
No entanto, ao observar tais fatores
por este prisma, não se pode desperceber que a
sociedade vem sofrendo uma série de
metamorfismos ao longo dos tempos. Os índios
tinham suas próprias formas de ensinar em
tempos anteriores, entretanto, após a invasão
dos portugueses tudo foi modificado, e as
práticas de ensino e aprendizagem passaram
por etapas, até chegarem ao paradigma de
escolas, salas, professores e métodos atuais.
Nesse aspecto, Rocha (2005) enfatiza que:
[...] Estudos mostram que durante todo século XIX e várias décadas do século XX pode-se observar... o grande fluxo de missões religiosas encarregadas da tarefa educacional civilizatória. Em outras palavras, desde a chegada das primeiras caravelas até meados do século XX, o panorama da educação escolar indígena foi um só, marcado pelas palavras de ordem catequizar, civilizar, e integrar ou, em uma cápsula, pela negação da diferença [...]. (p.5)
Com a chegada dos jesuítas chegaram
também professores não índios, com um
ensino tradicional. Freire (2002, p. 96) aponta
que “a função da escola era fazer com que os
índios desaprendessem as suas culturas e
deixassem de ser índios” e, após a promulgação
da Constituição Federal de 1988 foram
contratados novos mestres pela Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) para trabalhar e
morar na aldeia, trazendo consigo um ensino
limitado, baseado no estudo codificado, muito
distante da realidade das crianças indígenas, o
que se tornava desinteressante para muitos;
fator preponderante para a desistência de
vários estudantes, pois muitos dos
antepassados não concluíram a quarta série
primaria.
Outro fator que contribuiu para a
interrupção dos estudos tradicionais foi o
difícil acesso, porque para dar continuidade
aos estudos da quinta série em diante as
crianças indígenas teriam que se deslocar para
o município de Tacaratu, a 13 km da aldeia, um
percurso a pé, que levava horas de caminhada
e ao chegar à escola de destino enfrentavam
preconceito por ser índio e eram
estigmatizados por ser do “mato e pobre”. De
acordo com Oliveira (1988) é crucial:
Repensar o lugar da cultura na educação, repensar a educação para todos e, por tanto também para as minorias, mas especialmente a educação escolar indígena exige a educação de toda a sociedade envolvente, no sentido de miminizar nossa ignorância etnocêntrica nossas ações discriminatórias e preconceituosas e, igualmente veiculação em todas as escolas brasileiras da história e da cultura dos povos indígenas, sem idealizações nem estereótipos (p.20)
Contudo em 1998 iniciou-se a
discussão acerca do Projeto Escola de Índio,
onde lideranças, professores e povos indígenas
de Pernambuco realizaram movimentos para
estadualizar as escolas localizadas em território
indígena com respaldo no Artigo 78 da
Constituição Federal que assegura aos povos
indígenas, que:
Caberá ao Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios desenvolver programas integrados de ensino e de pesquisa, para a oferta da educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, com os objetivos de proporcionar aos índios, a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas e a valorização de sua língua. (BRASIL, 1998, p.32)
90 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:
UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM
Assim, a maior parte das escolas
indígenas estava estruturada e já possuía
normas e funcionamento consoantes as
diretrizes das secretarias estaduais e
municipais de educação, sendo que tal
estrutura geralmente impunha práticas
educacionais e conteúdos programáticos que
não levavam em consideração as
especificidades culturais de cada comunidade
indígena e seus processos próprios de
aprendizagem, os ensinos ofertados
correspondia até a antiga quarta série, não
tendo outras modalidades de ensino alguns
alunos terminavam seus estudos na acidade e
os demais finalizavam os estudos nesta serie.
Por volta do ano de 1999, o Estado
brasileiro legisla e publica vasta documentação
que definem diretrizes e princípios que
conceitua e regulariza a política de educação
escolar para as comunidades indígenas
provocando questionamentos no sentido de
fazer cumprir as normatizações. Em 2002 as
escolas eram de responsabilidade dos
municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá,
que ofertavam aos índios um ensino que se
distanciava da realidade indígena,
desconhecendo a cultura e a tradição do Povo
Entre Serras Pankararu, o que, naturalmente,
trouxe prejuízos para o ensino e aprendizagem
desse povo. Cavalcanti (2003, p.22), concebe a
escola “não como um lugar único de
aprendizado, mas como um novo espaço e
tempo educativo que deve integrar-se ao
sistema mais amplo de educação de cada
povo”.
Os princípios contidos nas leis dão
aberturas para a construção de uma nova
escola que respeite o desejo dos povos
indígenas, por uma educação que valorize suas
práticas culturais e lhes conceda acesso a
conhecimentos e práticas de outros grupos e
sociedades. A proposta da escola indígena
diferenciada representa, sem dúvida alguma,
uma grande novidade no sistema educacional
do país, exigindo das instituições e órgãos
responsáveis à definição de novas dinâmicas,
concepções e mecanismo, tanto para que essas
escolas sejam de fato incorporadas e
beneficiadas por sua inclusão no sistema,
quanto respeitadas em suas particularidades.
(BRASIL, 1998, p.34)
Através do movimento indígena e a
Comissão de Professores Indígenas de
Pernambuco (COPIPE), por meio de lutas
políticas e organizações, tem suas escolas
estadualizadas sobre o Decreto n°24628/
12.08.2002, estabelecem a estadualização do
ensino indígena no âmbito da educação básica
no sistema de ensino do Estado de
Pernambuco, sendo que, no ano de 2003 as
escolas passaram a ser administradas pelo seu
povo, iniciando, assim, organizar-se
internamente, criando seu próprio modelo de
gestão, que tem como intuito focalizar nos
conhecimentos culturais do povo,
contextualizando com outros saberes em sala
de aula, possibilitando ao individuo interagir
com seu meio social e com os conhecimentos
globalizados da sociedade nacional.
Com a estadualização das escolas
indígenas no ano de 2002, começou-se a
trabalhar uma educação numa perspectiva
mais específica, diferenciada, intercultural e
bilíngue, desenvolvida somente por
professores indígenas, baseado na necessidade
de preservar, valorizar e fortalecer a cultura e a
tradição.
Para que a educação escolar indígena
seja de fato especifica, diferenciada e
adequadas às peculiaridades culturais das
comunidades indígenas, é primordial que os
profissionais atuantes nestas escolas
91 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
pertençam às sociedades envolventes no
processo escolar. (BRASIL, 1996, p. 50). Além
dos entraves naturais no processo de ensino e
aprendizagem indígenas, outros são
enfrentados pela escola atual, e na escola
indígena não é diferente. Há a influência da
tecnologia e da mídia, onde ambas interferem,
efetivamente, no contexto escolar, ora positivo,
ora negativo.
Nos últimos anos, com a evolução
avassaladora dos meios de comunicação, essas
modificações ficaram ainda mais evidentes,
passando a exigir da educação uma
versatilidade, antes não imaginada por aqueles
que, há alguns anos, desempenhavam
trabalhos educativos sem necessidade de
tecnologias modernas. Desta forma, quando se
aborda a questão da educação do ponto de
vista da escola, pode-se ter uma dimensão
maior de como estas mudanças exerceram,
exercem e continuarão exercendo influência
sobre os estudantes que hoje são atendidos
pelas escolas.
A linguagem tecnológica, a internet, os
telefones celulares eram instrumentos que a
cerca de 30 anos atrás ninguém imaginava que
pudessem se tornar tão populares.Havia na
educação objetivos bem definidos, conteúdos
praticamente inflexíveis e uma “disciplina”
centrada na ideia de “obediência”
inquestionável. Porém, o midiatismo põe em
cheque o trabalho educativo e a escola começa
a se deparar com a necessidade de preparar os
indivíduos para a vida, tarefa esta que já não é
mais tão bem definida, pois daí nasce um
desafio que mexe muito com a mente de todos
os profissionais da educação dos tempos
hodiernos e, aí nos questionamos: Como
preparar as crianças e jovens para a vida, se as
sociedades, os meios de comunicação, a
cultura, e os demais fatores delas provenientes,
evoluem tão rapidamente?
Diante deste desafio, é importante
olhar esta questão partindo do pressuposto de
que a escola tem o importante papel do
organizar e tornar acessível à criança às
atividades de aprendizagem, enquanto que nos
outros espaços sociais elas acontecem, na
maioria das vezes, de forma eventual. Por este
motivo, talvez, muitos alunos prefiram estar
mais em outros espaços, do que dentro da
escola, pois nele existem regras mais definidas
e uma rotina de tarefas que exigem
participação e reflexão mais intensa.
Porém, o fato de a escola ser um
ambiente fadado a possuir, não retira das
outras instituições sociais, família e sociedade,
neste caso, a obrigação de possuí-las. Nos dias
de hoje, é comum às crianças crescerem em
espaços sociais carentes não somente de bens
materiais, mas também de afetividade e,
principalmente, limites e valores.
3 REALIDADEENCONTRADA NA
COMUNIDADE INDIGENA ENTRE
SERRAS PANKARARU
Por meio da pesquisa e elaboração
deste trabalho foi possível conversar
diariamente com os indígenas do local já
mencionado e, assim, debatemos sobre a
diversidade de histórias de outros povos com
culturais e costumes diferentes. As histórias
são os meios de se organizar. Através disso,
também, oportunizou tomar conhecimento de
matérias importantes sobre outros indígenas,
fotos, mitos para aprofundar o trabalho de
pesquisa.
A partir do contato com o não índio, os
conhecimentos passaram a ser insuficiente
para dar conta de acompanhar os avanços
92 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:
UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM
globais e garantir a sobrevivência e o bem estar
dessas sociedades. É preciso agora também
conhecer os códigos e os símbolos dos brancos,
já que estes passaram a povoar o entorno
indígena. E é assim que, historicamente, surgiu
a educação escolar no território indígena, suas
concepções de mundo que caracterizam-se pela
forte resistência e luta para preservar e manter
sua cultura, pois se compreende que tanto os
homens índios como os brancos, estão em
convivência diária e não pode isolar-se,
mostrando-se como parte integrante do
mesmo meio, onde defende e divulga suas
crenças e seus conhecimentos do mundo
terreno e espiritual.
A escola indígena possui uma
organização institucional semelhante às
escolas dos não índios. Estas escolas se
localizam nas aldeias, apresentam professores
contratados e efetivos para ministrar as aulas
seguindo as matrizes curriculares estabelecidas
pelas secretarias de educação. Estes
profissionais atuam como elo entre os índios e
a cultura dos povos não indígenas, de modo a
preparar os mesmos para os desafios que a
sociedade exige sem esquecer-se de suas
origens.
Ainda dentro deste contexto, a
educação indígena atual torna-se
“essencialmente distinta daquela praticada
desde os tempos coloniais, por missionários e
representantes do governo. Os índios recorrem
à educação escolar, hoje em dia, como
instrumento conceituado de luta” (FERREIRA,
2001, p. 71). Nesta perspectiva, o povo Entre
Serras Pankararu tem buscado seus ideais
através da educação, cada vez mais investindo
em profissionais qualificados, de modo a
equipará-los em termos de preparação com
outros profissionais da sociedade,
reconhecendo assim, o poder que a educação
apresenta para suas causas. No entanto,
conhecer, através da arte de educar, o modo de
ensinar e aprender das crianças do Povo Entre
Serras, no processo de ensino e aprendizagem,
valorizando as pessoas que contribuem para
este processo, de modo a compreender que os
conhecimentos tradicionais do povo são
relevantes para preservação de sua história.
Em linhas gerais o que se pretendeu
fazer ao longo deste trabalho foi uma
abordagem teórica sobre a arte de educar as
crianças indígenas Entre Serras Pankararu:
Uma discussão no ensino aprendizagem.
Causas e efeitos, estrutura familiar, a
participação da comunidade no ensino
aprendizagem ofertada pela escola, estratégias
de ensino que podem diminuir os problemas
de evasão. Sustentabilidade e economia, o
papel da família enquanto parceira no trabalho
desenvolvido pela escola, dentre outros temas
que foram abordados nos referidos capítulos e
que compôs não só a base teórica, mas também
toda a estrutura desta pesquisa.
Vale ressaltar que para dar suporte e
fundamentar a pesquisa foi preciso,
além da fundamentação teórica, ouvir, dialogar
com a população pesquisada e provocar
algumas indagações: Como a arte de educar as
crianças indígenas do Povo Entre Serras
acontece? Quem são as pessoas que
contribuem na aprendizagem da criança
dentro do seu contexto sociocultural? Quais
são os conhecimentos culturais que constitui o
universo da criança? Como a escola
contextualiza os conhecimentos indígenas com
os conhecimentos globalizados? Qual é a
formação dos professores? Como a forma de
educar as crianças no seu meio social se
diferencia das crianças não indígenas?
Além destas indagações iniciais, outras
foram surgindo a partir do diálogo com os
93 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
atores sociais, a saber: Na proposta da escola
estão inseridos os conhecimentos tradicionais
do povo? Os professores têm formação
especifica para atuarem na educação escolar
indígena? A cultura do Povo Entre Serras
contribui no processo de aprendizagem das
crianças? A escola envolve os conhecimentos
tradicionais com os conhecimentos
globalizados? As pessoas e lideranças do povo
estão contribuindo na aprendizagem da
criança? Os conhecimentos culturais são
aprendidos dentro do seu contexto cultural? As
formas de aprendizagem das crianças
indígenas diferenciam das outras crianças?
Todavia, conhecer o modo de ensinar e
aprender das crianças do Povo Entre Serras
Pankararu no processo de ensino e
aprendizagem, valorizando as pessoas que
contribuem para este processo, de modo a
compreender que os conhecimentos
tradicionais do povo são relevantes para
preservação de sua história, é algo de muita
primazia.
Assim, a partir da investigações já
mencionadas, foi possível compreender que a
arte de educar as crianças do Povo Entre Serras
Pankararu acontece na própria aldeia em
interação com a família e na convivência com
os mais velhos, no entanto, no Povo Entre
Serras Pankararu esses agentes desenvolvem
um papel extremamente relevante, tendo como
principal objetivo transmitir os conhecimentos
culturais para as novas e futuras gerações, no
intuito de que as crianças de hoje sejam
multiplicadores desses saberes.
Os conhecimentos culturais do povo
mencionado estão relacionados às práticas
tradicionais, assim como, na dança do toré, nas
histórias do povo, na confecção dos artesanatos
e diante dos saberes que envolvem o cotidiano
e o contexto cultural do povo, de maneira que
as crianças entendam que as formas de
educação do povo pesquisado se distinguiram
das crianças não indígenas pelo fato das
crianças Entre Serras aprenderem, desde
pequenas, suas práticas culturais dentro dos
espaços sagrados e nos terreiros de praiá,
tendo, como base, o apoio dos mais velhos no
desenvolvimento da aprendizagem, que se
distingui das demais sociedades por apresentar
uma educação que tem como base a sua
própria cultura.
Diante do contato que as crianças têm
com a sociedade envolvente a escola
contextualiza os saberes indígenas com os
conhecimentos globalizados, desenvolvendo
metodologias diversificadas em sala de aula, de
acordo com a proposta pedagógica da escola,
de forma que os métodos utilizados
contemplem ambos os conhecimentos
considerados pelo próprio povo como
relevantes diante do acesso que os indígenas
têm com a sociedade não indígena.
Portanto, para atender todas essas
expectativas, constatou-se durante a pesquisa
que as escolas do Povo Entre Serras Pankararu
têm um quadro de professores com formação
acadêmica completa e outro com professores
que estão cursando, além de contar com os
detentores do saber que trabalham, tanto
dentro como fora dos espaços escolares, a arte
e os saberes que constitui o universo cultural
deste povo, onde todos têm como principal
objetivo preparar as crianças para conviverem
no mundo fora da aldeia e com o mundo no
qual está inserida, considerando os processos
de ensino e aprendizagem constituídos nos
espaços culturais do seu povo.
94 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:
UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM
PARA NÃO CONCLUIR...
Diante dos resultados obtidos por meio
da observação in loco e do diálogo com os
sujeitos sociais indígenas da comunidade em
tese, pôde-se constatar que as crianças
aprendem em convivência com o outro na
comunidade, as práticas culturais, regras
estabelecidas e desenvolvidas pelo próprio
povo. Nesta perspectiva compreende-se que
elas já desenvolvem uma aprendizagem antes
de frequentar os espaços escolares. Neste
sentido, ao longo da pesquisa entendemos que
o ensino e aprendizagem das crianças são
caracterizados pelos seus próprios métodos de
ensino fora do contexto de sala de aula
desenvolvidos nas manifestações culturais.
Contudo, observa-se que o Povo Entre
Serras Pankararu busca fortalecer a cultura
vivenciando as práticas culturais e trabalhando
de forma contextualizada os saberes
tradicionais com os conhecimentos
globalizados dentro do contexto escolar, de
maneira que as crianças possam fazer
referência à sua cultura, com o desejo de estar
fortalecendo e reafirmando seus costumes,
tanto no âmbito escolar, como em seu meio
sociocultural, ficando evidente que a escola
desenvolve procedimentos que busca o
intercâmbio entre conhecimentos indígenas e
não indígenas, considerando o contato que as
crianças têm com a sociedade contemporânea.
As informações apresentadas no
decorrer do processo da pesquisa permitiu
observar que a educação indígena envolve
agentes e narradores que têm o dom da
sabedoria, a cerca dos conhecimentos culturais
do grupo étnico, ficando evidente que o ensino
e aprendizagem das crianças têm como base a
presença destes agentes em seu meio social. Na
perspectiva deste trabalho, é relevante
reconhecer que o povo indígena mantém viva
sua própria forma de educar.
Enfim, seria de grande relevância para
os grupos étnicos, que o Estado respeite, de
fato, os direitos indígenas previstos no texto
constitucional, assim como a criação de um
sistema de educação que considere as
especificidades dos povos indígenas, no
entanto, é predominante no país um modelo
educacional padronizado que atenda a toda
sociedade sem fazer distinção aos
conhecimentos dos povos indígenas.
Finalizamos enfatizando que a
presente pesquisa não possui um cunho
conclusivo e nem tem a pretensão de esgotar a
discussão acerca dos povos indígenas, suas
conquistas e desafios. No entanto, aqui se
pretendeu discorrer sucintamente sobre a arte
de educar as crianças indígenas de Entre
Serras Pankararu, partindo do pressuposto de
que é a partir da educação que os sujeitos
sociais se constituem aptos a conhecer seus
direitos e lutar pelos mesmos, visando compor
uma sociedade mais justa e menos desigual.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA JÚNIOR, O. F. De boa vontade as bibliotecas estão cheias. Palavra Chave, São Paulo, n. 10, p. 13-16, 1998. BEUREN, Ele Maria. Como elaborar trabalhos monográficos em contabilidade: teoria e prática. São Paulo: Atlas, 2003. BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI). Brasília/MEC: 1998. ______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. ______. LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL. Brasília: MEC/SEC, 1996. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/tv
95 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
escola/leis/lein9394.pdf. Acesso em: 20 set. 2013. ______. Decreto n. 24.628.Documentos e Legislação da Educação Escolar Indígena. Disponível em: http://www.ufpe.br/remdipe/index.php Acesso em: 15 set. 2013. CAVALCANTE, Luciola Inês Pessoa. Formação dos Professores na Perspectivado Movimento dos Professores Indígenas da Amazônia. Revista Brasileira de Educação / Jan. /Fev./ Abr./ n. 22. Manaus, 2003. DEWEY, John. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. FERREIRA, Mariana Kawall Leal.A educação escolar indígena: um diagnóstico crítico da situação do Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes; FERREIRA, Mariana Kawall Leal (Orgs.). Antropologia, História e Educação: A questão indígena e a escola. 2. Ed. São Paulo: Global, 2001. FREIRE, José Ribamar Bessa. Fontes Históricas para a avaliação da escola indígena no Brasil. In. Revista Tellus, Campo Grande: UCDB, n. 3, outubro de 2002. GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 3 ed. São Paulo: Atlas, 1991. ______. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 5. Ed. São Paulo: Atlas, 1999. GRUNEWALD, Azevedo Rodrigues de. Toré Regime encantado do índio do nordeste. Ed. Massangana,2005. JUREMA, Jefferson; ROCHA, Vera (Org.). Livro didático 2: Ensino de Arte e Educação Física na Educação Escolar. Natal: Paidéia, 2005.
MABER, Terezinha Machado. Formação de professores indígenas: repassando trajetórias. Brasília: MEC/UNESCO, 2006. MARCONI, M.A.; LAKATOS, E.M. Fundamentos da metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2003. _______Técnicas de Pesquisa. 2ª ed. Ver. e Ampl. São Paulo: Atlas, 1990. . ______. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE PERNAMBUCO. Nosso Povo, Nossa Gente. Recife/PE: SEC, 2000. OLIVEIRA, Silvia Maria. Movimento Indígena e Educação Intercultural. Revista Pedagógica Pátio. Porto Alegre/RS, Ano 2, n.06, p. 17-20, ago./ out., 1998. PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO PANKARARU (PPP). SECRETARIA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO. PPP da Escola Santa Clara. Tacaratu/PE: 2012. REVISTA CRIANÇA. Educação Infantil Indígena. 43 ed. Brasília/MEC: 2007. REVISTA GUERREIRAS. Centro de Cultura Luiz Freire. S/l.S/e. 2012. REVISTA HISTÓRIA. Somos Indios: A saga de um povo desconhecido. Biblioteca Nacional. Ano 8, n.91, abril de 2013. SILVA. L.; FERREIRA M. K. L. Antropologia, História e Educação. 2 Ed., Cidade: Edit Global, 2001. VIANA, Viviane de Paula. Programa especial / Documentário: Cultura Popular eEducação. TV escola SEED-MEC, Ministério da Educação, Governo Federal, 2007.
DO SINGULAR AO PLURAL:
INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA
ECONOMIA SOLIDÁRIA
Vinicius Goncalves dos Santos1
João Matos Filho2
Marilia Medeiros de Araujo3
Débora Chaves Meireles4
José Alderir da Silva5 RESUMO Tem por objetivo propor parâmetros de compreensão da dinâmica da sustentabilidade na economia solidária. Parte do pressuposto que tais atividades possuem uma racionalidade especifica referente ao modo como combinam os seus recursos produtivos, humanos e materiais. Infere que a dimensão econômica e da sustentabilidade deixam de ser percebidas de forma unidimensional para assumirem uma perspectiva plural. Questiona a perspectiva da economia neoclássica e seus axiomas utilitaristas que reduzem a dimensão dos critérios de sustentabilidade a uma análise de mercado. Adota uma pesquisa de natureza bibliográfica. Evidência a importância dos indicadores de sustentabilidade na economia solidária. Palavras-chave: Indicadores. Sustentabilidade. Unidimensional. Plural. ABSTRACT Aims to propose parameters for understanding the dynamics of sustainability in the social economy. Assumes that such activities have a specific rationale for the way they combine their productive resources, human and material. Infers that the economic dimension of sustainability and cease to be perceived as one-dimensional perspective to take plural. Questions the perspective of neoclassical economics and its utilitarian axioms that reduces the dimension of sustainability criteria for a market analysis. Adopts a survey of bibliographical and documentary. Evidence of the importance of sustainability indicators in the social economy. Keywords: Indicators. Sustainability. Unidimensional. Plural
1 Possui graduação em economia pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL), Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA). Atualmente é mestrando em economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Endereço: Av das Brancas Dunas 3693, AP-104, condomínio bairro latino, BL33, Candelária. Natal (RN). Telefone: (84) 9640-7968. E-mail:
Gonçalves.economia@hotmail.com 2 Possui graduação em Agronomia pela Universidade Federal do Ceará (1970), mestrado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1991), Doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Federal de Campinas (2002). Atualmente é professor de
economia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Endereço profissional: Av. Senador Salgado Filho, s/n, Lagoa Nova.
Departamento de Economia. CEP: 59072970. Natal (RN). Telefone: (84) 2153-3512 e (84) 9474-6771. E-mail: matosfilho@gmail.com. 3 Possui graduação em Economia pela Universidade Federal da Paraíba (2010), na qual foi bolsista do programa de monitoria da Pró-Reitoria
de Graduação – RPG/UFPB. Foi professora do curso Bacharelado em Economia das Faculdades Integradas de Patos (FIP). Atualmente é
mestranda do curso de Economia Regional da Programa de Pós-graduação em Economia - PPGECO da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Endereço: Rua Enfª Ana Mª Barbosa de Almeida, 631, Bancários, João Pessoa-PB. CEP: 58052-270. Telefone: (84) 9838-
0994 e (83) 8856-7029. E-mail: mariliamedeirosaraujo@hotmail.com 4 Possui graduação em Economia pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é mestranda do programa de pós-graduação de economia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: deborameireles_88@yahoo.com.br 5 Possui graduação em Economia pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é mestrando do programa de pós-graduação de
economia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: josealderir16@hotmail.com
97 DO SINGULAR AO PLURAL: INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465
1. INTRODUÇÃO
Após o debate6 acerca da problemática
que envolve o tema da sustentabilidade na
economia solidária, chega-se ao consenso de
que a sustentabilidade deve estar vinculada a
um propósito. O propósito até aqui
apresentado tem como referência o sentido da
economia solidária, enquanto instância
representativa para vida de muitos
trabalhadores.
Para isso, evidencia-se a junção de
uma dimensão solidária com aspectos
empreendedores, de organização dos fatores
produtivos e de sua gestão voltada para o
enfrentamento dos obstáculos e à realização
das metas, constituindo o conjunto da
atividade em uma racionalidade especifica que
a diferencia de outros tipos de
empreendimentos (GAIGER, 2007b).
A partir de então, é possível vislumbrar
uma nova perspectiva de pensar a
sustentabilidade dessas atividades.
Primeiramente, convém destacar os diferentes
princípios de comportamento econômico que
caracterizam os EES. Para isto, faz-se menção
as idéias lançadas por Polanyi (2000), em “A
Grande Transformação”, onde se lança a
crítica a proposta liberal de uma sociedade
conduzida por um mercado auto-regulador.
Com referência nas diretrizes traçadas
por Polanyi (Ibidem) e no debate acerta da
problemática da sustentabilidade na economia
solidária (SANTOS et al., 2013), o presente
trabalho tem por objetivo propor parâmetros
de compreensão da dinâmica da
sustentabilidade na economia solidária. Tal
proposta se justifica pela falta de clareza e da
6 Faz referência ao artigo “A problemática da sustentabilidade na
economia solidária: um debate na fronteira da ciência”
(SANTOS et al., 2013).
existência de indicadores de sustentabilidade
que dêem conta da dimensão da economia
solidária. Para a realização de tal empreitada,
adota-se uma pesquisa de natureza
bibliográfica.
Além desta introdução e das
considerações finais, a estrutura do artigo
contém mais três seções. A segunda seção trata
da economia substantiva, como apresentada
por Karl Polanyi. A terceira seção aborda a
dimensão da sustentabilidade plural na
economia solidária. Na quarta seção, são
apresentados indicadores de sustentabilidade
para economia solidária. Por fim, têm-se as
considerações finais do estudo.
2. ECONOMIA SUBSTANTIVA
A crítica é direcionada para o que seria
uma compreensão estreita e discriminatória da
economia, que são expressas por três
reducionismos que foram introduzidos pela
economia neoclássica em sua ênfase pela
eficiência: 1º a redução de toda economia à
economia de mercado; 2º a redução de todo
mercado ao mercado auto-regulado; e, 3º a
redução de toda empresa econômica a empresa
capitalista (LAVILLE, 2004, apud GAIGER,
2007a).
Segundo tais parâmetros, há uma
clivagem ideológica que relega um papel
secundário para os tipos de atividades que não
se enquadram nesses setores. Assim, quem não
pertence a esse domínio é visto como
retroativo, ineficiente e atrasado. Através do
olhar sobre a Nova Sociologia Econômica,
Polanyi (2000) desnuda a economia
substantiva que foi renegada pela escola
neoclássica.
98 Vinicius dos Santos, João M. Filho, Marília de Araújo, Débora Meireles e José A.da Silva
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465
De acordo com a abordagem da
economia substantiva, existem quatro
princípios de comportamento econômico: a
domesticidade, que faz referencia a produção
familiar, distribuída e consumida na unidade
familiar; a reciprocidade, que governa o
intercâmbio de benesses (dádiva) entre os
membros da sociedade com objetivo de
reforçar os laços sociais; a redistribuição, que
dirige a produção apropriada por uma
autoridade, que a armazena e se encarrega de
distribuí-la; e, o mercado, que faz referência a
atividades de agentes independentes, de troca
de bens e serviços, que competem em um
espaço comum (FRANÇA FILHO, LAVILLE,
2004).
Cabe atentar para o fato de que, as
transferências de bens e serviços, orientadas
pela domesticidade e pela reciprocidade não
envolvem pagamentos, formando assim a
esfera não-monetária da economia. De
maneira análoga, as atividades que visam a
troca em mercado formam a esfera mercantil.
Deste modo, o estudo da sustentabilidade dos
EES perpassa pela compreensão de uma
economia plural. Quanto à reciprocidade,
convêm destacar que
Desde as suas origens modernas, coube à reciprocidade cumprir um papel vital de alargamento da experiência humana de reprodução da vida, ao contrapor-se às determinações e às limitações impostas pela racionalidade estrita do capital. Mantiveram-se assim vigentes outros princípios e outras lógicas de organização do trabalho, de criação de
bens e de circulação da riqueza, ao lado da economia de mercado capitalista, configurando uma economia plural, nos termos da Nova Sociologia Econômica (LÉVESQUE et al., 2001). (GAIGER, 2007a, p. 4-5)
Os EES compreendem assim, uma
tentativa de articulação entre economia
mercantil (Mercado), não-mercantil (Estado) e
não-monetária (Reciprocidade), com a
proposta de acumular as vantagens da
economia monetária juntamente com a busca
da igualdade que se processa pelo princípio da
redistribuição, considerando as relações que
ocorrem na economia não-monetária.
Com isso, se faz importante
compreender a economia solidária como um
fenômeno social situado no tempo, onde se
processa formas inovadoras de atuação do
Estado e da própria sociedade civil. Nas
palavras de França Filho e Laville (2004),
A análise histórica do ressurgimento da economia solidária, nos anos 90, leva-os a concluir que a economia solidária, como resposta à crise do paradigma fordista e do estado de bem-estar social, é um híbrido formado por atividades recíprocas desenvolvidas por voluntários, atividades de mercado desenvolvidas por profissionais e atividades financiadas por subsídios estatais. (p.7)
Em síntese, existe um espaço de
interação entre as diferentes lógicas
denominado de Zona de Integração Sistêmica,
que pode ser verificado através do quadro 1
(forma híbrida de interação dos EES com as
diferentes instâncias econômicas).
99 DO SINGULAR AO PLURAL: INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465
Quadro 1: As organizações que atuam no campo social e suas interfaces. Fonte: Andion, 2005.
A idéia de hibridação exposta pelo
quadro acima remonta a considerações acerca
das ações do Estado junto à economia
solidária, o papel dos EES perante a sociedade
civil, e a sua forma de inserção no mercado.
No lugar, portanto, de resumirmos a economia ao mercado, parece-nos preferível pensá-la enquanto economia plural, ou seja, admitirmos que, em relação ao conjunto de práticas que conformam a dinâmica econômica mais ampla, existem diferentes princípios em interação (para além do princípio mercantil), como é o caso da redistribuição e da reciprocidade. É exatamente este olhar ampliado da dinâmica econômica mais geral, que nos permitirá entender mais adequadamente o processo singular de uma economia solidária, que tende a reunir diferentes lógicas em interação (FRANÇA FILHO, LAVILLE, 2004, p. 17).
Essa forma de pensar a economia
revela os elementos de um novo paradigma
social, na medida em que evidência a
coexistência de lógicas econômicas distintas e
complementares, que implica que os EES
sejam geridos de uma forma particular,
exigindo um modelo diferente de auferir a
sustentabilidade (REIS; FRANÇA FILHO,
2005).
3. SUSTENTABILIDADE PLURAL
A compreensão de uma economia
substantiva corresponde ao primeiro passo
para a percepção de que a dinâmica da
economia solidária é permeada por diferentes
dimensões e perspectivas. Para o presente
estudo, adota-se a dimensão econômica
100 Vinicius dos Santos, João M. Filho, Marília de Araújo, Débora Meireles e José A.da
Silva
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465
(LISBOA, 2005; POLANYI, 2000), política
(SEN, 2009; FRANÇA FILHO; DZMIRA,
2004, apud REIS; FRANÇA FILHO, 2005), da
ambiência (KRAYCHETE, 2012; GAIGER,
2012), associativa (KRAYCHETE, 2008;
ROSENFIELD, 2007; RAY, 2000) e do capital
social (RAY, 2000).
A figura 2 ilustra as cinco dimensões
destacadas para análise da sustentabilidade na
economia solidária. Convém frisar que tais
perspectivas são complementares e não
excludentes. Desta forma, a análise de uma
sustentabilidade plural só se faz possível
quando se considera o conjunto da totalidade.
Tal perspectiva representa o que há de
inovador na economia solidária, mas ao
mesmo tempo apresenta uma série de
dificuldades em correlacionar dimensões
diferentes para uma análise sistêmica da
sustentabilidade.
Figura 2: Dimensão da sustentabilidade plural. Fonte: Elaborada pelo autor.
3.1. Dimensão econômica
Corresponde a abordagem da
economia plural, o que envolve o componente
mercantil, não-mercantil e o não-monetário
(POLANYI, 2000). Trata-se das formas de
gestão dos recursos financeiros e não
financeiros utilizados na organização dos EES.
Para Lisboa (2005), a dimensão econômica
possui os componentes fundamentais para
auferir e avaliar a eficiência das atividades
mercantis.
Embora a análise da eficiência não seja
a mais adequada para esse tipo de atividade, a
existência de excedentes (sobras) possibilita a
capacidade dos empreendimentos reinvestirem
em si mesmo, se renovar e expandir. É
característico dessas atividades o fato da
acumulação material estar submetida a limites,
pois a capacidade existente de se produzir um
excedente econômico é colocado a serviço dos
objetivos dos EES.
A isto, Aristóteles (Apud SEN, 2000, p.
28) faz referência a relação entre os meios e
fins, “[...] a riqueza evidentemente não é o bem
101 DO SINGULAR AO PLURAL: INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465
que estamos buscando, sendo ela meramente
útil e em proveito de alguma outra coisa”.
Com isso, a utilidade da riqueza fica limitada
nas coisas que ela pode viabilizar – as
liberdades substantivas (SEN, 2000).
3.2. Dimensão política
Aparece como o principal elemento de
distinção dos EES. Assim, o empreendimento
se converte em um espaço de expressão da
cidadania e de aprendizagem da democracia
(FRANÇA FILHO; DZMIRA, 2004, apud REIS;
FRANÇA FILHO, 2005). Deste modo, a
perspectiva de uma gestão horizontalizada
contribui para a formação de agentes reflexivos
e atuantes que caracterizam o ato político da
economia solidária.
Com efeito, um dos argumentos mais poderosos em favor da liberdade política reside precisamente na oportunidade que ela dá aos cidadãos de debater sobre os valores na escolha das prioridades e de participar da seleção desses valores (SEN, 2000, p. 46).
O ato político aqui compreendido não
se limita ao ambiente interno, é de
fundamental importância o desenvolvimento
de interação com os atores externos. Isso
equivale ao fortalecimento das iniciativas no
momento que atuam em rede e a existência de
ações e políticas públicas para o fomento da
economia solidária.
Outro ponto importante faz referência
ao entrelaçamento entre o político e o
econômico que juntos fazem surgir à
possibilidade de unificação de princípios de
outra economia ao mesmo tempo em que
representam uma crítica e uma ação
substitutiva ao modelo dominante de
desenvolvimento (GAIGER, 2007b, p. 444).
Assim, segundo Scherer-Warren (1996, p. 15,
Apud GAIGER, 2007b, p. 445)
As formas alternativas de produção e de geração de renda são encaminhadas pelos proponentes de projetos com uma dupla finalidade: a de se viabilizarem economicamente e a de serem espaço pedagógico de conscientização e de desenvolvimento da cidadania. Do ponto de vista econômico, o projeto deve gerar a capacidade de sobrevivência dentro de um sistema vigente, mas deve também incorporar uma crítica ao modelo de desenvolvimento econômico dominante.
Com isso, o ato político se converte no
papel transformador de tal movimento, na
medida em que submete o econômico aos
objetivos e finalidades de tais iniciativas.
Segundo o próprio Gaiger (2007a), sem essa
expectativa, a economia solidária seria
inexplicável.
3.3. Ambiência
Remonta as idéias levantadas por
Kraychete (2012), e reforçadas por Gaiger
(2000), compreendendo a existência das
condições necessárias para que o
empreendimento possa ter êxito. Essa ideia faz
referência à temática da liberdade substantiva
de Sen (2000), onde a condição de agente
aparece restrita e limitada pelas oportunidades
sociais, políticas e econômica que os agentes
dispõem.
Desta forma, os meios que
possibilitam a esses atores exercerem um
determinado tipo de vida são vistos como
condições necessárias para se atingir um
processo de desenvolvimento. Assim como a
hipótese adotada no presente trabalho, a
ambiência corresponde aos meios que os
empreendimentos dispõem para alcançar os
seus objetivos: acesso ao espaço físico, acesso
aos meios de produção, acesso a ferramentas
gerenciais, acesso ao crédito etc.
Nas palavras do próprio Sen (2000), os
empreendimentos autogestionários, sobretudo
102 Vinicius dos Santos, João M. Filho, Marília de Araújo, Débora Meireles e José A.da
Silva
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465
as cooperativas, se comportam como agentes
de transformação social, mas que necessitam
de um contexto e de uma estrutura favorável
para que possam influenciar o processo de
desenvolvimento.
O processo de desenvolvimento é crucialmente influenciado por essas inter-relações. Correspondendo a múltiplas liberdades inter-relacionadas, existe a necessidade de desenvolver e sustentar uma pluralidade de instituições, como sistemas democráticos, mecanismos legais, estruturas de mercado, provisões de serviços de educação e saúde, facilidades para a mídia e outros tipos de comunicação etc. Essas instituições podem incorporar iniciativas privadas além de disposições públicas, bem como estruturas mais mescladas, como organizações não-governamentais e entidades cooperativas (SEN, 2000, p. 71).
3.4. Dimensão associativa
Envolve a característica peculiar dos
EES, de tal forma que se torna um indicador
importante de sustentabilidade. Convêm
destacar a ênfase que é dada em muitos casos
empíricos aos fatores de natureza econômica,
sem levar em conta que a dimensão associativa
tem uma destacada importância junto a essas
iniciativas.
Mesmo quando o projeto é viável do ponto de vista estritamente econômico, podem surgir muitas tensões e conflitos pelo fato das “regras do jogo” não terem sido previamente combinadas. Antes de iniciar a atividade, é preciso que cada um dos envolvidos reflita sobre as implicações do projeto em termos de compromissos e responsabilidades que terão que ser assumidos. [...] É comum, por exemplo, que se vislumbrem apenas os benefícios esperados de uma atividade econômica, sem anteverem o trabalho, as exigências e as responsabilidades que delas resultam (KRAYCHETE, 1998, p. 24).
Deste modo, a autogestão aparece
como o eixo de compreensão da economia
solidária. A autogestão distingue as empresas
solidárias das demais empresas cooperativas
capitalistas, como também é um aspecto
peculiar que permite que esses
empreendimentos possam por em prática os
princípios que norteiam a economia solidária
(ROSENFIELD, 2007).
A isso Gaiger (2007a) atribui que o
êxito dos empreendimentos fica condicionado
a fatores do qual os efeitos positivos decorrem
do caráter socialmente cooperativo por eles
incorporado. Assim, se estabelece uma
comunidade de trabalho, que incorpora uma
ação propositiva, e que passa a co-determinar a
racionalidade econômica. Para isso, leva-se em
consideração que
[...] um elemento comunitário, de ação e gestão conjunta, cooperativa e solidária, apresente no interior dessas unidades econômicas efeitos tangíveis e concretos sobre o resultado da operação econômica. Efeitos concretos e específicos nos quais se possa discernir uma particular produtividade dada pela presença e crescimento do referido elemento comunitário, análoga à produtividade que distingue e pela qual se reconhecem os demais fatores econômicos. (RAZETO; 1993, p. 40-1). (GAIGER; 2007a, p. 5-6)
Desta forma, as questões associativas
possuem um reflexo direto sobre a autogestão
do empreendimento. Com isso, infere-se que o
associativismo conduz à compreensão de
algumas categorias: “autogestão”, “regras do
jogo” e “empoderamento”. O empoderamento
representa uma dimensão das relações
associativas que funciona como um catalisador
para o desenvolvimento da ação local.
A questão do empoderamento remonta
as idéias desenvolvidas por Sen (2000) sobre
as perspectivas dos fins e os meios que o
processo de desenvolvimento exige, onde a
perspectiva da liberdade deve ser colocada no
centro das atenções.
103 DO SINGULAR AO PLURAL: INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465
Nessa perspectiva, as pessoas têm de ser vistas como ativamente envolvidas – dada a oportunidade – na conformação de seu próprio destino, e não apenas como beneficiárias passivas dos frutos de engenhosos programas de desenvolvimento. O Estado e a sociedade têm papéis amplos no fortalecimento e na proteção das capacidades humanas. São papéis de sustentação, e não de entrega sob encomenda. (SEN, 2000, p. 26)
A temática do papel coletivo que
envolve o processo associativo ganha um lugar
de destaque na busca pelo desenvolvimento e
da sustentabilidade da economia solidária,
uma vez que aceita a idéia que os grupos têm,
ou devem adquirir, a capacidade de assumir
alguma responsabilidade por trazer o seu
próprio desenvolvimento socioeconômico
(RAY, 2000).
3.5. Capital social
De acordo com essa vertente, pensar a
sustentabilidade requer um debate acerca da
“(...) propensão dos indivíduos para associar
juntos em uma base regular, a confiar um no
outro, e se envolver nos assuntos da
comunidade" (HALL, 1999, p. 147, Apud RAY,
2000, p. 10).
Ray (Ibidem) refere-se ao ponto
central da sustentabilidade dos
empreendimentos econômicos solidários, o
capital social. Segundo o autor, muita
importância tem sido atribuída ao capital
social como uma força de desenvolvimento
endógeno, mas pouco se tem discutido sobre os
mecanismos pelo qual o capital social entra em
operação.
A teoria caminha no sentido de que a
capacidade para atuação inerente à hipótese
exige o reconhecimento dos fatores
psicológicos envolvidos no nível do individuo
(RAY, Ibidem). Desta forma, o ponto
fundamental para sustentabilidade são os
próprios atores sociais. Assim, as implicações
que foram relacionadas como “ambiência”,
“tecnologia” e a forma de inserção e
organização do mercado seriam apenas
algumas das condições a serem consideradas,
mas não esgota os atributos necessários para
alcançar a sustentabilidade almejada.
O ponto central para entender o
desenvolvimento e a sustentabilidade dessas
atividades recai sobre o conceito de
“inteligência emocional” (GOLEMAN, apud,
RAY, 2009). Tal denominação é utilizada para
enfatizar as características necessárias dos
indivíduos para formar as relações de
confiança em que a cooperação é construída.
Refere-se a uma “capacidade” que entra em
conexão com a teoria dos mecanismos
psicológicos.
Dentro do contexto da economia
solidária, para o capital social ser um conceito
útil, às condições e ao processo que provocam
um tipo particular de desenvolvimento, precisa
ser definido. O capital social é nutrido por
relações de confiança que são iniciadas e
sustentadas dentro da mente individual. Isso
remete a um das suas características, que é a
sua capacidade de ser acumulado ao longo do
tempo (BOURDIEU, 1986, apud, RAY, 2000).
Desta maneira, as relações de confiança
materializadas na forma de energia social
podem ser utilizadas em prol de um interesse
coletivo amplo.
Para que isso possa ser efetivado, é
preciso que se leve em conta que os
componentes da inteligência emocional se
encontrem em conexão com a autoconsciência,
gestão emocional, automotivação, empatia e
gestão de relacionamento. Nessa estrutura, a
autoconsciência aparece como a base de toda
inteligência emocional. Neste caso, refere-se à
sensação de pertencimento que os sujeitos
nutrem com relação a algo.
104 Vinicius dos Santos, João M. Filho, Marília de Araújo, Débora Meireles e José A.da
Silva
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465
Outro fator importante para
compreender a potencialidade do capital social
está relacionado com a capacidade de gerir a
autoconsciência coletiva de modo a produzir
um comportamento adequado a um contexto.
Assim, se faz necessário a existência dos
atributos da empatia como centro canalizador
das emoções. Isso significa dizer que essas
emoções devem ser geridas por um sujeito
nutrido de carisma dentro do grupo na busca
dos objetivos coletivos (RAY, 2009).
Visto isto, a empatia passa a ser crucial
por ser responsável em promover a ligação
entre as emoções individuais e da criação e
manutenção de relações de sucesso com os
outros (RAY, Ibidem). Portanto, a empatia é o
mecanismo psicológico pelo qual a coesão
social do grupo é ativada.
Para resumir, até agora, a teoria da inteligência emocional - com base em uma síntese de estudos empíricos psicológicos - proporciona uma compreensão de como um indivíduo é capaz (ou não pode) ser confiante de outros, e, portanto, é capaz de permitir relações de confiança entre si e outros, para emergir e ser sustentado. Esta capacidade é operacionalizada através do fenômeno de "contágio emocional", pelo qual um indivíduo funcionando com sucesso tenderá a estimular uma resposta alternativa semelhante de outros com os quais entram em contato (RAY, 2000, p. ix, tradução livre).
Isso implica inferir que a confiança
torna-se um capital social quando a
inteligência emocional consegue fluir através
de um grupo coeso, fortalecendo e reforçando
os seus objetivos. Conseqüentemente, os tipos
de associativismo que decorrem de relações de
confiança se apresentam com uma propensão
maior a sustentabilidade. Isso pode explicar
porque alguns movimentos cooperativos
prosperam e outros fracassam.
4. INDICADORES DE
SUSTENTABILIDADE
Com o surgimento da SENAES, o
debate sobre a sustentabilidade passa ser
circunscrito em torno de três perspectivas
diferentes (TABELA 1). A primeira perspectiva
representa a visão do Estado em busca de
indicadores de sustentabilidade. Segundo Silva
(2012, p. 112-113), a perspectiva do Estado é
extraída a partir das atribuições da SENAES de
fortalecer e divulgar a economia solidária como
forma de organização socioeconômica.
Tendo o PIB como um indicador de
medida econômica padrão, o aumento da
participação dos empreendimentos
econômicos solidários sobre o produto interno
bruto constitui-se em um meio direto e eficaz
de auferir a distribuição de renda
(KRAYCHETE, 2012). Desta forma, mesmo
com as críticas acerca da limitação do PIB
enquanto indicador de sustentabilidade, tal
análise pode ser útil quando tomada como um
ponto de partida.
Segundo Gaiger (2007b, p. 447), uma
parte significante do PIB nacional provém de
modalidades de atividades alternativas, “como
é patente no caso da pequena produção
agrícola, cujo desempenho nos últimos anos
evidencia uma capacidade de modernizar-se e
tornar-se mais produtiva, sem perder o seu
caráter familiar”.
105 DO SINGULAR AO PLURAL: INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465
TABELA 1 – Perspectivas de sustentabilidade a partir da institucionalização da economia solidária
Visão do Estado (SENAES) Atores da economia
solidária
Sistema Nacional de Informações em Economia
Solidária (SIES)
1- Número de trabalhadores inseridos
1- Sistemas produtivos sustentáveis
1 - Quantidade e valor da produção
2 - Percentual de trabalhadores que recebem menos de um salário mínimo
2 - Consumo ético, consciente e responsável
2- Origem e forma de aquisição de insumos ou matérias-primas
3 - Participação da economia solidária no PIB
3 - Valorização e emancipação do trabalho
3 - Acesso à infraestrutura e equipamentos
- 4 - Redução das disparidades de renda e riqueza
4 - Agregação de valor nos produtos ou serviços
- 5 - Sistema financeiro solidário 5 - Forma de abrangência da comercialização
- 6- Reconhecimento da mulher e do feminino
6 - Investimentos realizados: fontes e características
-
7 - Resgate humano: valorização e inclusão de todas as pessoas nos resultados e conquistas
7 - Acesso ao crédito e adimplência
- - 8 - Remuneração dos sócios
Fonte: produzido a partir de Silva (2012)
Outra forma de aborda a questão é
sobre a perspectiva dos atores da economia
solidária (organizações, empreendimentos
econômicos solidários e dos órgãos de
fomento). “É o olhar dos indicadores a partir
da própria concepção e características da
economia solidária” (SILVA, 2012, p.113).
Sobre essa abordagem, se destaca formas de
empreendedorismo e de organização do
trabalho que buscam garantir a produção de
bens e serviços de forma sustentáveis, com
respeito aos valores éticos e ao meio ambiente.
Pelo exposto, fica claro que o olhar
sobre a sustentabilidade que brota dos atores
da economia solidária se constitui como uma
abordagem multidimensional. A complexidade
dessa abordagem reflete a natureza do
fenômeno da economia solidária, como um
movimento recente e inacabado do ponto de
vista da sua definição.
Uma terceira forma de análise remete
a sistematização do conhecimento referente à
economia solidária no Brasil. Trata-se de uma
abordagem instrumentalizada direcionada pelo
SIES (Fruto do Mapeamento da Economia
Solidária). Tal abordagem busca auferir o
desempenho dos EES através da capacidade
que se dispõe para realizarem suas atividades,
bem como a existência de uma conjuntura
adequada para que essas atividades possam se
desenvolver.
Com isso destaca-se a características
dos produtos e serviços que esses
empreendimentos oferecem a população, bem
como a capacidade de agregarem valor a
produção. Outro ponto importante remete a
106 Vinicius dos Santos, João M. Filho, Marília de Araújo, Débora Meireles e José A.da
Silva
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465
comercialização, enquanto a capacidade desses
empreendimentos superarem os limites do
território no escoamento da sua produção.
Aqui cabe a noção de território como
concebida por Milton Santos (KON, 2004)
[...] transcendendo a idéia apenas geográfica de espaços contíguos vizinhos que caracterizam uma região, para a noção de rede, formada por pontos distantes uns dos outros, ligados por todas as formas e
processos sociais. (p. 231) A abordagem caminha também em
direção aos diversos indicadores de
desempenho político-organizacional que o
SIES dispõe (SILVA, 2012):
a. Forma de organização do EES:
formalização, registro...; b. Cooperação interna: Atividades
coletivas realizadas por sócios; c. Cooperação externa: redes de
cooperação entre EES; d. Aquisições, intercâmbios comerciais
e trocas com outros EES; e. Rotatividade de dirigentes nas
instâncias de direção do EES. (p. 115)
Os indicadores de desempenho
político-organizacional podem assumir um
papel importante na medida em que revela as
disposições sociais, envolvendo muitas
instituições (Estado, mercado, partidos
políticos, grupos de interesses públicos, fóruns
de discussão pública etc.). Tal abordagem se
destaca por revelar as contribuições que cada
um dos aspectos elencados adiciona à
expansão e à garantia das liberdades
substantivas dos indivíduos.
Desta forma, Silva (2012) destaca que a
construção de indicadores de sustentabilidade
na economia solidária deve ser visto como
possibilidades que precisam ser exploradas
dentro de um universo novo e cheio de
potencialidades. Gaiger (2007a) reforça os
pontos levantados por Silva (Ibidem), na
medida em que explora os resultados já
consolidados do Mapeamento da economia
solidária em 2006. Levando-se em conta a
racionalidade específica presente nessas
atividades, identifica indicadores de alto
empreendedorismo e de alto solidarismo.
Assim concebidos, os indicadores de alto desempenho têm a faculdade de apontar os atuais pontos de estrangulamento dos EES. No quesito empreendedorismo, as fraquezas situam-se no investimento em formação de recursos humanos, na obtenção de crédito para investimento, na concessão de férias ou descanso semanal para os trabalhadores e na estrutura de comercialização. [...] No quesito solidarismo, os pontos frágeis são a participação em redes, o comércio e o consumo solidários. Aqui, trata-se de limites nos relacionamentos externos, impostos pela fragilidade das iniciativas de articulação e pela inexistência de cadeias produtivas solidárias, capazes de estender-se e romper o isolamento dos empreendimentos, algo ainda distante da realidade (GAIGER, 2007a, p. 68).
Quando se observa os dados do
mapeamento apresentados por Gaiger (2007a)
pode-se concluir que as deficiências dos EES
concentram-se nas debilidades estruturais,
impactando sobre a sua forma de inserção no
mercado e limitando sua capacidade de gerar
excedentes com a capacidade de garantir a sua
autonomia econômica, retribuições aos
trabalhadores, investimentos em qualificação e
coesão do grupo.
Considerações finais
Conclui-se que os empreendimentos da
economia solidária se caracterizam, sobretudo,
por incorporarem uma racionalidade
específica, relativa ao modo como ativam as
suas atividades. Trata-se de uma relação
orgânica que envolve a dimensão solidária, de
autogestão, cooperação, empreendedorismo e
gestão dos fatores produtivos com vistas à
realização de metas específicas. A presença de
uma racionalidade distinta tem como objetivo
um projeto político-social amplo que supera a
107 DO SINGULAR AO PLURAL: INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465
dimensão econômica. São diferenças
substanciais que a distinguem de outros tipos
de empreendimentos.
Tal evidência implica na aceitação de
uma economia substantiva. Assim, as
iniciativas da economia solidária não podem
ser compreendidas fora dessa dimensão. Desta
forma, a análise da sustentabilidade desses
empreendimentos precisa ser definida sobre a
ótica de uma sustentabilidade plural. Essa
hipótese representa um avanço, na medida em
que considera um novo patamar de análise na
economia solidária, mas ao mesmo tempo
representa um campo de dificuldades, visto
que se trata de uma temática que carece de
estudos empíricos e teóricos.
Assim, fica evidente a importância dos
indicadores de sustentabilidade na economia
solidária. Trata-se de um processo de
construção de parâmetros com o intuito de
direcionar os estudos acerca da
sustentabilidade de tais projetos.
REFERÊNCIAS:
ANDION, Carolina. A gestão no campo da economia solidária: particularidades e desafios. RAC. Revista de Administração Contemporânea, Rio de janeiro, v. 9, n.1, p. 79-99, 2005. FRANÇA FILHO, Genauto; LAVILLE, Jean-Louis. Economia solidária: uma abordagem internacional. Rio Grande do Sul. Editora da UFGS. 2004. GAIGER, LUIZ INACIO. A outra racionalidade da economia solidária; conclusões do primeiro Mapeamento Nacional no Brasil. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 79, p. 57-77, 2007a. GAIGER, LUIZ INACIO. A economia solidária no Brasil: refletindo sobre os dados do primeiro mapeamento nacional. In: II Seminário Nacional Movimentos Sociais, Participação e Democracia, 2007, Florianópolis. Anais do II Seminário Nacional Movimentos Sociais, Participação e Democracia, 2007b. GAIGER, Luiz Inacio. Sentido e possibilidades da economia solidária hoje. In: KRAYCHETE, Gabriel; Lara, Francisco; Costa, Beatriz. (Org.).
Economia dos setores populares: entre a realidade e a utopia. Rio de janeiro: Vozes, 2000, v. p. 199-218. LISBOA, A. M. Economia solidária e autogestão: imprecisão e limites. RAE. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 45, n.3, p. 109-115, 2005. KRAYCHETE, G. Economia popular solidária: indicadores para qual sustentabilidade? In: KRAYCHETE, Gabriel; CARVALHO, Patrícia. (Org.). Economia popular solidária: indicadores para a sustentabilidade. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2012, v., p. 15-25. KRAYCHETE SOBRINHO, G. Puxando o fio da meada. Viabilidade econômica de empreendimentos associativos I. Rio de Janeiro: Capina, 1998. v. 2. 43p. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000. RAY, C. Endogenous sócio-economic develoment and trustful relationchip: partnerships, social capital and individual agency. Working Paper 45, Centre for Rural Economy, University of Newcastle upon Tyne, 2000. REIS, T. A.; FRANÇA FILHO, G. Economia solidária e sustentabilidade plural: o caso da COOPAED. In: III Encontro Internacional de Economia Solidaria: Desenvolvimento Local, Trabalho e Autonomia, 2005, São Paulo. ROSENFIELD, C. L. A autogestão e a nova questão social: repensando a relação indivíduo e sociedade. In: LIMA, Jacob Carlos. (Org.). Ligações Perigosas; trabalho flexível e trabalho associado. São Paulo: AnnaBlume, 2007, v. 1, p. 1-311. SANTOS, V. G. ; MATOS FILHO, J. ; ARAÚJO, M. M.; FERNANDES, V. V. F. A economia solidária na encruzilhada: eficácia ou eficiência econômica? Conjuntura & Planejamento, 2013. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SILVA, R. M. A. Sustentabilidade dos Empreendimentos Econômicos Solidários: desafios da construção de indicadores. In: KRAYCHETE, Gabriel; Carvalho, Patricia. (Org.). Economia popular solidária: indicadores para a sustentabilidade. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2012, p. 93-110.
NOS RASTROS PARA PENSAR A CIDADE: DE
METÁFORAS À REFLEXÃO SOBRE A
CONDIÇÃO URBANA
Márcio Nicory Costa Souza1
RESUMO O presente artigo apresenta, a partir de um olhar sobre a obra “A alma encantadora das ruas”, de João do Rio, considerações sobre a cidade, o urbano. Das metáforas procuramos tecer algumas reflexões sobre a condição urbana. Para tal, recorremos ao aporte teórico social sobre as urbanidades, daquilo que se constituiu como questões fundantes para uma sociologia urbana, para a construção de um entendimento sobre o prisma das sociabilidades ou interações do/no urbano às dimensões estruturais dos espaços urbanos. Dessa forma, o texto desloca-se para o caráter híbrido e metamoforseante da experiência citadina/urbana, reconvergindo para novas metáforas. Palavras-chave: João do Rio. Condição urbana. Rural-urbano. Metamorfose-recriações. ABSTRACT Thisarticlepresents, from a glanceatthework "A alma encantadora das ruas" by João do Rio, considerations about urban city. The metaphors we make some reflections about the urban condition. To this end, we used the contribution social theorist about the urbanities, what constituted as deep questions for an urban sociology, to build an understanding on the prism of social arrangements or interactions of structural dimensions in urban of urban spaces. In this way, the text shifts to the hybrid character and to be transformer into the city/urban experience, reconverging for new metaphors. Keywords: João do Rio. Urbancondition. Rural-urban. Metamorphosis-recreations.
1 Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA, câmpus de Paulo Afonso. Mestre em
Ciências Sociais pelo PPGCS/UFBA. Pesquisador do Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação – Opará/UNEB.
109 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
“Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma.” João do Rio “A realidade urbana perceptível desaparece com as transformações das ruas em „ruas de passagem‟ que negam o tempo do „flanar‟ e impõem um tempo da velocidade, criando um novo „modo de usar‟ essas ruas, que limitam passos e redefinem encontros até torná-los ausentes.” Ana F. Carlos
Em 1908, Paulo Barreto, homem de
impressa, crítico literário, cronista, também
conhecido como João do Rio, publicou uma
conhecida crônica social, como era chamado o
gênero na época, entitulada: A alma
encantadora das ruas.
Um tipo fino de observador, com
requintado estilo cômico de descrição do
cotidiano, João do Rio imprimiu uma narrativa
cheia de graça, leveza, repleta de frases firmes
e um tanto contundentes – fruto de
reelaborações sobre os exaustivos registros dos
costumes e peculiaridades, de emoções
colhidas das ruas, das pessoas com quem
conversava. Se os incidentes mais
aparentemente banais, os detalhes mais
miúdos não escapavam aos olhos, como nos dá
a ver pelos seus escritos, nem ao registro; hoje
seus escritos nos iluminam ao que poderíamos
chamar de peculiaridades de um período de
grandes transformações.
É dos rastros de João do Rio e suas
“ruas almadas e encantadoras” e na companhia
de uma variedade intencionalmente sorteada
de outros autores que – de uma forma e de
outra falaram ou falam de gente, das relações e
interações nas cidades, igualmente
descrevendo e interpretando processos e
tendências – que tecemos estas linhas em
sintonia a um objetivo: traçar algumas
considerações sobre o fenômeno urbano, mas
especificamente pensando nas relações entre
urbano e rural e nas leituras sobre a cidade.
Bem, localizemos o cronista. De que
época estamos falando? Paulo Barreto, nascido
em 1881 e falecido em 1921, viveu num
contexto de grandes mudanças urbanas. Como
carioca, e crítico social, pôde acompanhar de
perto as mudanças no Rio de Janeiro, as
transformações nos espaços físicos e suas
conseqüências às pessoas, aos hábitos. No
início do século XIX, sob a inspiração da Belle
époque, o espaço urbano da capital pouco
condizia aos novos padrões infra-estruturais de
modernidade parisiense. Para um país que
atraía investidores e alavancava as primeiras
posições na produção mundial de café, muita
coisa precisava ser alterada. Inspirada nas
reformas urbanas de Paris da segunda metade
do século XIX, dirigidas pelo então prefeito da
cidade das luzes, Georges EugéneHaussmann,
o prefeito do distrito federal, Francisco Pereira
Ramos, vai perpetrar, igualmente, um conjunto
de reformas urbanas no Rio de Janeiro.
Estamos falando do interregno de 1902 a 1906.
A citada crônica e outras2 são exemplos
desses olhos vasculhadores, do refinado
cotejamento do aparente marasmo cotidiano.
Por que nascem elas? Da necessidade de alargamento das grandes colméias sociais, de interesses comerciais, dizem. Mas ninguém o sabe. Um belo dia, alinha-se um tarrancol, corta-se um trecho de chácara, aterra-se lameiro, e aí está: nasceu uma rua. (RIO, 2007, p. 29)
Por amor ao estilo – ou mesmo às ruas
– nosso cronista parece preferir entregar às
nebulosas razões e intencionalidades a escolha
por descrever os usos e imbricamentos entre o
homem e as ruas. As ruas, mais que espaços
físicos apropriados, nomeadas e nomeadoras
de gente e situações/condições, são
2 Por exemplo: “O que se vê nas ruas” em RIO (2007).
110 Márcio Nicory Costa Souza
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
verdadeiros entes, possuidoras de alma, alma
que é capaz de embeber o flâneur, de atrair as
crianças, de criar o garoto (idem, p. 27).
Como obra e criadora, as ruas descritas
pela pena de João do Rio apresentam uma
propriedade humana, a sua virtude mágica da
fecundidade, isto é, essa capacidade de
transformar, significar, erigir, apropriar os
espaços, criando e sendo criado, de
simplesmente usar, fundindo-se a ela num
todo espaço-temporal eterno. A rua faz o
homem e o homem faz a rua e a si mesmo.
Como uma espécie de simbiose autogênica que
atesta a simultaneidade homem-espaço-tempo,
as ruas e os homens representam uma
metáfora existencial e referencial. As ruas,
como os homens, são testemunhas e autoras
das misérias e alegrias humanas.
A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres [...] A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. (RIO, 2007, p. 26-27)
Se as ruas têm alma e as suas presença
e abundância marcam o nascimento e
desenvolvimento dos centros urbanos, a rua
“está para a grande cidade como a estrada
está para o mundo” (idem, p. 36). Ora, “a rua
é a civilização da estrada”, afirma o autor.
“Nas grandes cidades a rua passa a criar o
seu tipo, a plasmar o moral dos seus
habitantes, a inocular-lhes misteriosamente
gestos, costumes, hábitos, modos, opiniões
políticas”. (idem, ibidem)
Se assim o é, se as ruas impingem
motivações, gostos, valores nos seus
habitantes, usuários ou usadores, podemos
pensar num estilo (ou estilos) associados aos
espaços (as ruas) nas cidades. Os espaços
conformam e são conformados pelos homens.
Aqui nos parece que a rua, mais que espaço
físico, aproxima-se à abstração do espaço
público, do ser social. Vejamos outro
fragmento:
Se a rua é para o homem urbano o que a estrada foi para o homem social, é claro que a preocupação maior, a associada a todas as outras idéias do ser das cidades, é a rua. Nós pensamos sempre na rua. Desde os mais tenros anos ela resume para o homem todos os ideais, os mais confusos, os mais antagônicos, os mais estranhos, desde a noção de liberdade e da difamação – idéias gerais – até a aspiração do dinheiro, da alegria e de anos, idéias particulares. Instintivamente, quando a criança começa a engatinhar, só tem um desejo: ir para a rua! (RIO, 2007, p. 39)
Não é claro. E essa não parece ser a
intenção do autor. Ao falar das ruas, eis que ele
está necessariamente falando dos homens, dos
citadinos em especial. Seja um recurso poético,
no depósito de responsabilidade aos feitos e
práticas dos homens nas ruas, estas são
antropomorfizadas quando apresentadas como
antropomorfizadoras. É o jogo entre fazer e ser
feito, um criar e ser criado. E é uma
característica também que coloca às ruas, este
espaço público por excelência nas grandes
cidades, no jogo dialético, como fundamental
para entender o homem e suas interações.
A sua “metáfora” sobre o caminho, as
estradas e as ruas, nos parece revelador de um
estilo de vida urbano, um mundo urbano
moderno marcado por novas formas de
sociabilidades, novas interações, sociações3,
novos mapas de orientação sociocultural
associados a modelos específicos de
individualidade (SIMMEL, 1979 e 1983b;
VELHO, 1995).
3Simmel (1983b, p. 166) define sociação por “a forma (realizada
de incontáveis maneiras diferentes) pela qual os indivíduos se
agrupam em unidades que satisfazem seus interesses.”
111 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Assim, se lançar-se pelos caminhos –
principalmente os fazendo – tornou possíveis
os desbravamentos e a consolidação de uma
vida sedentária nos primórdios da
humanidade, as estradas passaram a interligar
os novos “isolamentos” (estes agora possíveis
pelo não nomadismo), os lugares, os
agrupamentos humanos.
E dos agrupamentos humanos às
cidades e nelas as vias internas de
comunicação: as ruas. O homem precisou
ganhar as ruas. E é esse o sentido do “desejo de
ir à rua”, é “partir para a vida”, é o “ganhar o
mundo” etc. É na rua que a “vida, a cidade
acontece”.
O homem, no desejo de ganhar a vida com mais abundância ou maior celebridade, precisava interessar à rua. Começou pois fazendo discursos em plena ágora, discursos que, desde os tempos mais remotos aos meetings contemporâneos da estátua de José Bonifácio, falam sempre de coisas altivas, generosas e nobres. Um belo dia, a rua proclamou a excelente verdade: que as palavras leve-as o vento [...] (RIO, 2007, p. 40)
As ruas, ao demarcarem fronteiras, ao
rotular pessoas e situações, ao servirem de
referência e serem loci de ação, são territórios.
E como tal, estão encharcadas de regras,
normas de uso e circulação, são apropriadas,
significadas, ocupadas – estão repletas de
demarcações, embebidas de poder, de
hierarquias. “Nela se fazem negócios, nela se
fala mal do próximo, nela mudam as idéias e
as convicções, nela surgem as dores e os
desgostos, nela sente o homem a maior
emoção.” (idem, p. 39)
Parece-nos importante ressaltar que
nesses escritos de João do Rio não aparecem as
relações sociais tradicionais implodidas pelas
mudanças nos modos de uso do espaço e nas
funções dos lugares dentro da cidade, com as
transformações radicais na morfologia urbana.
Não há um antes e um depois. O autor não
compara um passado marcado por antigas
relações, mas um conjunto de relações em
curso. O seu tempo não parece ser o da
transição. Dada a intensidade, testemunhada
na paisagem ainda hoje, das transformações na
capital federal de então, e sabendo-se que “os
ritmos da vida cotidiana se ligam à duração das
formas e de suas funções” (CARLOS, s.d, p.
209), podemos entender as proporções das
mudanças nas vidas das pessoas.
Pensando na cidade, estilo(s) de vida e
no “viver urbano”
Nos primórdios ou na idéia de uma
Sociologia urbana está o pensar articulado a
soluções. Ora, a cidade, o fenômeno urbano,
com o seu crescimento proporcionado pela
industrialização e desenvolvimento do
capitalismo, veio acompanhada de uma série
de problemas (sub-habitação, delinqüência,
marginalidade etc.), problemas que
demandavam soluções. Aquilo que era
nascente surge em atendimento a novas
necessidades, novas urgências. A ciência, ou
especialidade deste contexto surgida, tem sua
motivação ligada a essas demandas urgentes de
uma nova realidade: as grandes cidades. As
novidades, as suas manifestações, e,
principalmente, a tentativa de compreensão
para efetivas soluções, ajustes, incitavam e
recrutavam os pesquisadores, lançando-os à
descrição, comparação, interpretação e
elaboração de subsídios a intervenções4.
O pensamento sobre a cidade é antigo
e parece se confundir com a própria história
dessas aglomerações. “Pensar e sentir a cidade
fora muitas vezes uma tarefa dos poetas, dos
4 “O impacto e os efeitos da cidade moderna na vida da sociedade e dos indivíduos mobilizava, como se sabe, não só o
mundo acadêmico universitário, mas a intelligentsia em geral.”
(VELHO, 1995, p. 227)
112 Márcio Nicory Costa Souza
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
cronistas e romancistas, dos teólogos, também
dos arquitetos e dos filósofos – mas neste
último caso sempre como um caminho para
compreender problemas humanos mais
gerais, para pensar os modelos ideais de
organização do mundo político, para impor
hierarquias sociais” (BARROS, 2007, p. 9).
Contudo, uma reflexão moderna sobre a cidade
como formas específicas de organização social
data do século XIX. Em especial com a
historiografia e a sociologia, muitos aspectos
urbanos foram descobertos e aninhados.
Assim, facilitando e/ou dificultando, a
pergunta permanece: o que é a cidade? No
esforço de responder a isso, as respostas
parecem iniciar-se com o seguinte arranjo
vocabular: “é como se...” As reticências, de
diferentes formas, são preenchidas por
metáforas e/ou imagens. Seja como recursos
descritivos-analíticos, as metáforas/imagens
dão a ver a multiplicidade do fenômeno urbano
e ao mesmo tempo recortam sua leitura.
De acordo com Barros (2007), o
pensamento do cientista moderno também
opera por modelos, frequentemente
espacializados. O autor sinaliza para a
importância e presença de recursos
metafóricos fabricados pelos cientistas sociais
conformadores de imagens sobre a cidade.
Para ele, essas imagens e metáforas “carregam
já dentro de si certas potencialidades e
limitações que devem ser manejadas com
vistas a determinadas finalidades, ou em
função da constituição de determinados
objetivos” (idem, p. 21). São as novas
abordagens, perspectivas, métodos etc. no
âmbito de cada disciplina que podem fazer
surgir uma nova imagem ou ressuscitar uma
antiga metáfora.
O surgimento e desenvolvimento das
grandes cidades pelo mundo todo, a partir do
final do século XVIII, está relacionado ao
desenvolvimento capitalista e à expansão
industrial. “A cidade tornou-se o locus, por
excelência, dessas mudanças, não como
receptáculo passivo, mas como produtora de
novas formas de sociabilidade e interação
social, de modo genérico” (VELHO, 1995, p.
228).
As metrópoles surgem e respondem ao
processo em curso ao longo dos séculos XIX e
XX, quais sejam a explosão demográfica, as
correntes migratórias e a intensificação da
divisão do trabalho, além de inúmeras
inovações tecnológicas e econômicas. De uma
forma ou de outra, a rapidez e magnitude
dessas mudanças trouxeram conseqüências
assistidas ainda hoje em todo o mundo. Seja a
melhoria na expectativa de vida e nas
condições médico-sanitárias, sejam as novas
regras do capitalismo emergente que destruiu
modos de vida, alterou antigas relações entre a
cidade e o campo, o modo de produção
hegemônico assumiu tentáculos de alcance
planetário. E, nesse processo, “as cidades,
sobretudo, por suas atividades comerciais e
industriais, constituíram-se nos pontos de
articulação dessa grande rede que passou a
conectar esferas diversificadas de vida social de
sociedades distantes, geográfica e
culturalmente, uma das outras” (idem, p. 229).
A criação, desde a expansão marítima
européia, de todo um sistema complexo de
trocas, ainda assim não provocou a total
homogeneização das sociedades, e sim
aproximou-as. Ora, o que isso quer dizer? O
capitalismo moderno está associado a intensas
e significativas mudanças em todas as
dimensões da vida social. Dizer que a expansão
capitalista não tem significado mera
homogeneização é assumir que, sociedades e
grupos sociais, em nível mundial, foram
extintos, outros expandiram e se fortaleceram.
O colapso e a emergência caminharam lado a
113 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
lado da convivência entre o diferente e o
radicalmente antagônico. “Certamente foi uma
das maiores transformações na história da
humanidade, e é neste quadro que se
desenvolvem as metrópoles moderno-
contemporâneas” (idem, ibidem).
Assim, as grandes cidades podem ser
pensadas como cadinhos em que se fundem ou
se amalgamam diferentes domínios, nem
sobrepostos, nem alinhados, mas em múltiplos
planos e dimensões.
O estilo de vida urbano moderno-contemporâneo leva ao paroxismo os mecanismos universais de diferenciação, base da vida social. A interação intensa e permanente entre atores variados, circulando entre mundos e domínios, um espaço social e geograficamente delimitado, é um dos seus traços essenciais (idem, p. 230).
Ainda que as ruas de João do Rio
pareçam mais encantadoras que
desumanizadoras, como a experiência urbana
passou a ser pensada5, os seus escritos nos
levam à remissão de um processo ou momento.
Momento em que o aumento do número de
habitantes numa mesma espacialidade tende a
afetar as relações entre eles e suas relações
com os espaços. Como assinala Wirth (1979, p.
100): “o aumento do número de habitantes de
uma comunidade para mais de algumas
centenas obrigatoriamente limitará a
possibilidade de cada um dos membros da
comunidade conhecer pessoalmente todos os
outros”.
As novas conformações espaciais
“mexem”, reviram as antigas relações entre as
pessoas co-habitantes. Os novos ingressos,
migração, bem como o adensamento nos
núcleos citadinos pelas novas funções e
5 Conforme o recente trabalho de Normando Melo (2007): “Não
contavam com minha astúcia – ensaio sobre uma experiência de
cidade”.
equipamentos contribuem para mudanças nos
estilos de vida, nas formas de vida, nas redes
de relações ou nas formas de sociabilidades.
Os contatos da cidade podem na verdade ser face a face, mas são, não obstante, impessoais, superficiais, transitórios e segmentários. A reserva, a indiferença e o ar blasé que os habitantes da cidade manifestam em suas relações podem, pois, ser encarados como instrumentos para se imunizarem contra exigências pessoais e expectativas de outros. (WIRTH, 1979, p. 101)
No esquema postulado por Durkheim,
o anonimato, o superficialismo, a
impessoalidade são desdobramentos esperados
em sociedades complexas, constituídas e
organizadas com base em uma intensa e
especializada divisão do trabalho, uma
solidariedade orgânica geradora de inevitável e
necessária interdependência entre os
indivíduos. Em oposição, e num patamar
anterior, estariam as sociedades ditas
tradicionais, baseadas em uma restrita divisão
do trabalho, uma solidariedade mecânica que
possibilitava pela baixa densidade material,
isto é, baixo número de habitantes por área
ocupada, estreitas relações entre os indivíduos.
Ora, a partir desse esquema, podemos
entender que nos grandes centros, a divisão do
trabalho, geradora de maior especialização, de
funções, tarefas, dota os indivíduos de maior
liberdade, comparativamente ao maior e mais
abrangente controle das aldeias, vilarejos,
pequenas comunidades etc.
Dessa forma, na metáfora do cronista,
as ruas, marcantes e fundamentais nas cidades
que crescem e se desenvolvem, são – vistas
como protagonistas, coadjuvantes,
testemunhas, figurantes e palcos das ações
humanas –, nessa totalidade, expressão desse
indivíduo anônimo, que aparece pelos rótulos,
pelos brocardos e estigmas que lhes impingem
114 Márcio Nicory Costa Souza
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
as ruas. Ora, se já não se pode conhecer todos,
conheça-se pelo menos de onde provém. Se as
relações já são estreitas e pouco intensas, vai
pela receita metonímica: conhece-se o todo e
generalizam-se as partes. Não que em
grupamentos tradicionais, digamos, em que se
conhecem mais as pessoas, os estigmas e os
estereótipos não orientem os contatos com as
pessoas. Mas, no meio urbano, aos olhos de
João do Rio, as excentricidades pessoais
tendem a desaparecer, dando lugar ao
“encanto” dos lugares.
Do lado subjetivo, conforme sugeriu Simmel, o contato físico estreito de numerosos indivíduos produz necessariamente a mudança nos meios através dos quais nos orientamos em relação ao meio urbano, especialmente em relação aos nossos concidadãos. (WIRTH, 1979, p. 103)
A maneira de se orientar nas cidades é
diferente. As relações são outras, os contatos
possuem um caráter de impessoalidade e
reserva, reina o desconhecido e não familiar.
Mas, diferente em relação ao quê? Sabemos
sobre as causas do que é tomado como
diferente, mas não conhecemos o estado, a
condição anterior, a um momento e situações
pretéritas que servem de comparação.
Com cada atravessar de rua, como o ritmo e a multiplicidade de vida econômica, ocupacional e social, a cidade faz um contraste profundo com a vida de cidade pequena e a vida rural no que se refere aos fundamentos sensoriais da vida psíquica. A metrópole extrai do homem, enquanto criatura que procede a discriminações, uma quantidade de consciência diferente que a vida rural extrai. (SIMMEL, 1979, p. 12)
Na descrição e caracterização do que é
ou seria um estilo de vida urbano (WIRTH),
um tipo metropolitano (SIMMEL), um modo
de vida típico de aglomerados urbanos, típicos
das cidades grandes, estes e outros autores –
no enxugamento e sobreposição de aspectos (a
partir de casos ou análise comparativa) –
fabricam imagens, esquemas, abstratos ou
concretos, sobre o fenômeno humano das
cidades. Como podemos depreender da ulterior
citação de Simmel, no seu esforço de pensar a
“vida psíquica” na metrópole, opera com uma
noção de homem, bem como com certas
imagens sobre “a vida rural” e sobre a “vida
metropolitana”. Assim, haveria uma diferença
na base psicológica no homem metropolitano e
no homem que vive em cidades pequenas, o
homem rural. Para Simmel, se na vida rural “o
ritmo de vida e do conjunto sensorial de
imagens mentais flui mais lentamente, de
modo mais habitual e mais uniforme” (1979,
p. 12); na metrópole, há uma “intensificação
dos estímulos nervosos, [o] que resulta da
alteração brusca e ininterrupta entre
estímulos exteriores e interiores” (idem,
ibidem). A metrópole, ainda para Simmel, cria
rápidas convergências de imagens,
descontinuidade na apreensão e inesperadas
impressões súbitas. Dessa forma, o estilo de
vida do típico metropolitano de Simmel
precisaria desenvolver “um órgão que o
[protegesse] das correntes e discrepâncias
ameaçadoras de sua ambientação externa, as
quais, do contrário, o desenraizariam” (idem,
ibidem).
Na teia dessa imagem do viver urbano,
encontramos, portanto, um certo “consenso
operacional”, isto é, uma espécie de conclusão
convergente: a vida nas cidades é
profundamente diferente daquela no campo. E
a sua transição igualmente impactante. A
experiência urbana, em especial nas grandes
cidades, traduz-se na formação de um outro
homem. São novos e inevitáveis espaços e
relações, novas expectativas e vínculos, novas
sociabilidades marcadas pela intensificação da
115 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
divisão do trabalho, pela especialização. O
anonimato e a intensa especialização vêm
acompanhados de certa fragmentação da
experiência social. Isto é, se no mundo do
trabalho, o fracionamento da produção
intensifica o processo de alienação – já que é
inviável no mundo da sociedade urbana
industrial quaisquer tipos de identificação com
a produção, reconhecendo-se nele – soma-se a
isso a ampliação de horizontes e o trânsito
múltiplo por diversos mundos ou esferas: a
religiosa, da atividade política, etc. Nesse
sentido, a rigor, não haveria um estilo de vida
urbano, mas estilos de vida urbano
reproduzidos e recriados na experiência
individual ou do grupo. Há um
enfraquecimento da dimensão holista e
hierarquizante da sociedade e desenvolvimento
paralelo de individualismos (VELHO, 1995).
Esses autores operam com “este”
diferente. Operam analiticamente com o
“contraste profundo” entre certos hábitos e
condições psicológicas ulteriores e as novas
condições postas e exigidas nas grandes
cidades. Wirth (1979), ao pensar o “urbanismo
como modo de vida”, sinaliza, de certo, para a
tendência transbordante e avalanchadora do
modo de vida urbano. Encantado, talvez, com a
intensa urbanização que trouxe profundas
modificações nos Estados Unidos, Wirth pensa
a cidade como “o local característico do
urbano”, mas entende que o modo de vida
urbano transborda as cidades, vai além dos
limites das cidades. É por isso que Wirth
entendia urbanização não somente como o
processo de atração de pessoas para as cidades,
e sim como uma acentuação cumulativa de
várias características que distinguem um modo
de vida ligado às cidades. Wirth chega a falar
de uma espécie de encantamento pelas coisas
da cidade, como às coisas relativas ao
transporte e comunicação.
Divisão do trabalho, cidade e campo,
rural e urbano
A reflexão sobre estilos de vida
distintos, no campo e nas cidades, nos remete
ao que torna possível essa distinção. Distinção
esta que advém de uma separação originária
entre campo e cidade.
Quando se pensa qualquer sociedade humana que tenha atingido o estágio de civilização urbana – em que a produção e/ou a captura de um excedente alimentar permite a uma parte da população viver aglomerada, dedicando-se a outras atividades que não à produção de alimentos – a divisão entre urbe e campo aparece claramente aos olhos. (SINGER, 1973, p. 11)
O fragmento de Paul Singer fala da
separação, oposição, subordinação, inter-
relação entre os pares cidade e campo ou
urbano e rural. Se a divisão do trabalho6 – que
tornou possível as diferenciações entre áreas
mais ou menos aglomeradas, ou com
conformações físico-espaciais distintas –
aparece como fator desencadeador desses
âmbitos das agregações humanas sobre a
superfície terrestre, o trato conceitual e
operacional7 das categorias ou tipos cidade e
6 “As condições políticas e sociais que permitiram a divisão
sócio-espacial do trabalho, originando a contraposição entre o
rural e o urbano, existem há mais de 5500 anos, ou seja, desde a Antiguidade.” (ENDLICH, 2006, p. 11) 7 Ângela Endlich (2006) realiza um pequeno, mais abrangente,
inventário dos principais critérios para definição de rural e
urbano. Segundo esta autora, o rural e o urbano foram/são
pensados como: a) adjetivos territoriais, “declaram como urbanos os residentes em lugares com uma certa forma de
administração”; b) patamares demográficos, o rural é sinômino
de dispersão e o urbano como aglomeração, “o espaço rural nesse caso define-se por contraposição, de maneira residual”; c)
densidade demográfica, urbano e rural expresso em habitantes
por km²; d) ocupação econômica predominante da população, conforme a natureza das atividades desenvolvidas (setores
primário, secundário e terciário). Além do critério de
centralidade urbana. Todos são critérios limitados e com severas restrições ainda que combinados. A autora insiste na
necessidade, dada a pouca eficácia das definições, em analisar a
historicidade e contextualizar a realidade estudada ante as tentativas de classificações. Endlich (ibidem) preocupa-se em
recuperar e listar critérios classificatórios mais utilizados como
medidas ou indicadores. Ao contrário, Bernadelli (2006) –
116 Márcio Nicory Costa Souza
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
campo, urbano e rural não parece ser
consensual.
Dessa forma, a capacidade de
produção de excedentes de víveres por parte de
alguns homens, tornou possível que outros
desempenhassem outras atividades, ao os
liberar. De acordo com a tradição marxista, a
separação entre cidade e o campo encontra
fundamento com as divisões do trabalho, a
biológica e a técnica. Dessas divisões desdobra-
se a separação entre trabalhos material e
intelectual. Assim, às cidades cabem as funções
administrativas, diretivas, as atividades
políticas, militares e de conhecimento.
Segundo Lefebvre (1969, p. 31-32 apud
ENDLICH, 2006, p. 11), possível reconhecer a
separação somente pela divisão do trabalho.
Por sua vez, Marx (1984), ao descrever a
economia urbana nas cidades européias da
Idade Moderna, pautando a análise no
desenvolvimento de um novo padrão de
exploração (substituindo o sistema estamental
pelo de classes), entende a divisão social do
trabalho, separando o campo das cidades,
como fundamental ao desenvolvimento das
cidades. A divisão social do trabalho aos
moldes capitalistas separa o trabalho material
do trabalho espiritual, o campo da cidade. Esse
novo sistema de exploração mercantiliza as
relações, delineia a constituição das classes
(burgueses e homens livres) e coloca nas
cidades –com o desenvolvimento das
manufaturas e a destruição e subordinação das
relações de servidão no campo – o locus onde
esses dois novos sujeitos sociais se encontram
partindo da noção de “a concepção do urbano extrapola a
própria cidade, consubstanciando-se na relação cidade-campo, tendo na divisão técnica, social e territorial do trabalho a sua
base (p. 33)” – elenca critérios geralmente listados nas tentativas
de definição de cidade. Por isso, acrescenta como critérios definitórios, a partir de Ângulo e Dominguez (1991) os aspectos
morfológicos, a saber as formas urbanas assumidas no processo
de produção, sua expressão material; bem como o modo de vida, as interelações urbanas e o caráter gerador de inovações (e
dispersor delas) das cidades.
e interagem. Daí, é inevitável pensar a oposição
entre cidade e campo e a subordinação deste
àquela como condição do desenvolvimento do
modo de produção capitalista. Ora, o espaço
urbano, mesmo que não tenha sido criado pelo
capitalismo, proporcionou o seu
desenvolvimento.
A intensidade do processo de
urbanização no capitalismo, as proporções
planetárias disso, interfere e acirra as reflexões
e imagens sobre as cidades e o urbano. Tal
como Wirth (1979) com a noção de “urbanismo
como modo de vida”, outros autores mais
recentes, nesses rastros e incitados por
questionamentos como “desaparecerá a cidade
e o planeta será todo umacolméia urbana?”
(novamente outra metáfora, agora ecológica)
ou “o processo de urbanização atingirá todo o
espaço geográfico?”, vão desenvolver outras
metáforas e imagens a partir de noções como a
civilização urbana (BEAUJEU-GARNIER apud
ENDLICH, 2006), rede urbana (Milton Santos)
ou sociedade urbana (LEFEBVRE, 2002).
No primeiro caso, a noção de
civilização urbana é pensada como algo que se
propaga das cidades, tal como pensava
Raymond Wirth, e não se limita a elas. E
civilização é pensada como costumes, hábitos,
como um estilo de vida. De qualquer sorte,
completa a reflexão a perspectiva de pensar o
urbano como não restrito a um território.
Nesse sentido, é preciso pensar a cidade e o
urbano8.
Endossa e complementa isso Santos
(1997) ao pensar que “o modo de vida urbano
estende-se até os limites geográficos
alcançados pelos interesses, ações e conteúdos
presentes nas cidades”. Sejam os
investimentos, seja o modo de vida,
8 “O urbano irradia-se a partir da cidade e atinge territorialmente os limites das influências dela. Desde que o urbano extrapole a
cidade, a tarefa de conceituação torna-se dupla” (ENDLICH,
2006, p. 20)
117 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
historicamente, o urbano atinge e afeta o rural.
“Há predominância da mentalidade
econômica e domínio monetário, imposições
dos interesses urbanos”.
Para Lefebvre (1969 apud ENDLICH,
2006, p. 22), o urbano e o rural se referem a
diferentes condições de vida. O modo de vida
urbano, gerado pelo avanço do capitalismo no
campo (propriedade da terra e a produção
agrícola como negócios dos capitalistas
urbanos) e pela industrialização/urbanização
(crescimento territorial e populacional)
penetra no campo, comportando sistemas
urbanos de objetos e valores. Para o autor, em
paralelo ao processo de
industrialização/urbanização, ocorreu o que
denomina de implosão/explosão das cidades9.
Um certo racionalismo, que ignora o urbano,
produz separações e rompe com a essência do
urbano (a reunião) teria causado a morte da
cidade tradicional. Para Lefebvre, há uma crise
da vida camponesa tradicional, mas também
uma crise mundial da cidade tradicional.
Produzindo uma vida cotidiana pobre e cheia
de coação, “uma sociedade urbana está se
constituindo sobre as ruínas da cidade”.
Para ele, a urbanização tende a apagar
a distinção cidade-campo, mas, por conta da
maneira contraditória e abrupta como ocorre,
“admite” a permanência de ilhas de ruralidade.
“A relação urbanidade-ruralidade ao invés de
desaparecer, intensifica-se”.
A partir desse modelo, seria possível
distinguir o que se pode tomar por rural e
urbano. O primeiro seria a condição de vida
pretérita, que vem sendo superada material e
9 “A metáfora da implosão-explosão retrata esse processo, no
qual a cidade, em função da industrialização, concentra (pessoas,
atividades, riquezas, coisas, objetos, instrumentos, meios, idéias) e projeta fragmentos múltiplos e disjuntos (periferias, subúrbios,
residências secundaristas, satélites etc.). A cidade leva tudo para
ela e o explode numa dimensão nunca vista: junto à concentração urbana e ao êxodo rural se produz a extensão do
tecido urbano e a subordinação completa do agrário ao urbano.”
(SOBARZO, 2006, p. 59)
culturalmente, ainda que não seja total nem
uniforme10; o segundo seria a condição social
em que teoricamente é possível superar a
precariedade.
As transformações produzidas nas comunidades rurais no processo de urbanização são marcadas pela proposição ou imposição ao homem rústico, de certos traços de cultura material e não material. Impõe, por exemplo, novo ritmo de trabalho, novas relações ecológicas, certos bens manufaturados, racionalização do orçamento, abandono das crenças tradicionais, individualização do trabalho e, finalmente, passagem à vida urbana. (CÂNDIDO, 1971 Apud ENDLICH, 2006, p. 24, re-elaboração da autora)
Há, portanto, uma nova condição de
vida, a condição urbana. Condição esta que
poderia gerar uma nova sociedade, a sociedade
urbana. Ao pensar a transição, ou
transformações proporcionadas pelo acesso
aos objetos e valores urbanos, de uma maior
para uma menor precariedade, Lefebvre
reconhece que os benefícios não são para todos
– a superação real das vidas precárias ainda é
uma perspectiva. As contradições inerentes,
ainda que o capitalismo tenha criado as
condições para a superação das precariedades,
impedem que toda a sociedade possa
apropriar-se dos avanços alcançados. O urbano
existe e está marcado pela precariedade.
Diante de fenômenos novos, como o
adensamento das metrópoles, concentração
populacional, o novo rural etc., novas
elaborações são feitas no rastro de
compreender a possível dicotomia constituída
e consolidada com o modo de produção
hegemônico e todas as formas “sobreviventes”,
10 “Para Lefebvre, o urbano, a „sociedade urbana‟, é uma
virtualidade que carrega a constituição de uma sociedade planetária, uma totalidade que modifica e transforma a
agricultura e a indústria, mas que não faz com que elas
desapareçam.” (SOBARZO, 2006, p. 58)
118 Márcio Nicory Costa Souza
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
“resistentes” ou reincorporadas pela tendência
homogeneizadora do capitalismo.
Possível mesmo, já que estamos longe
do consenso e que as definições restringem-se
a usos específicos. Como nos lembraBernadelli
(2006, p. 49): “os conceitos devem ser
pensados sempre em função do movimento,
da realidade, e que, portanto, não podem ser
entendidos de modo estático, pois o real é
prenhe de transformações que são operadas
em diferentes escalas e dimensões”.
Lembra-nos Bernadelli o quanto
complexa é a realidade, bem como é
importante na discussão sobre o urbano e o
rural, a preocupação em sempre se pautar no
contexto espacial e histórico. Interpretando
Lefebvre, essa autora resgata suas
contribuições quanto a necessidade de
compreender o urbano como síntese
cumulativa de todos os conteúdos (movimento
dialético). E, para tal, é preciso ter em mente
que é o conteúdo socioespacial que diferencia
os espaços rural e urbano11.
Outro recado é dado por Sobarzo
(2006):
Reconhecemos a importância ou a utilidade que as definições estatísticas ou funcionais podem ter como uma forma de aproximação rápida, geral e inicial de algum fato, mas acreditamos que elas não podem ser projetadas como formas hegemônicas e exclusivas de entendimento da realidade caracterizada pela sua complexidade. (p. 61)
Ainda que usados como sinônimos, ou
variações sobre um mesmo tema, cidade-
11Bernadelli (2006) recupera o que denominamos de dicas
metodológicas: não basta considerar, nos estudos urbanos, só a forma a função ou mesmo a estrutura isoladamente, nem a
sobreposição de uma as outras; é essencial evitar a descrição
pura e simples, dada a insuficiência para a compreensão do fenômeno ou pela possibilidade de esconder sob a aparência uma
ideologia. Nesse sentido, “a análise não pode reduzir os
fenômenos abordados a meros elementos ou fatores numéricos, quantitativos, estatísticos e, no limite, estáticos, perdendo-se a
noção de processo e de totalidade”. (LEFEBVRE, 1978, p. 104
apud BERNADELLI, 2006, p. 51)
campo e rural-urbano são equivocadamente
igualados. Como manifestações distintas do
viver humano, a cidade e o campo têm
experimentado alterações ao longo do tempo.
Assim, num primeiro momento a diferenciação
clara está na fundamental divisão do trabalho.
No período industrial, podemos observar a
“absorção” do campo pela cidade, seja como
loci das indústrias, atração populacional e de
matérias-primas, bem como a “explosão” da
cidade no campo, isto é, a extensão de um
estilo de vida urbano, do tecido urbano como
prefere Lefebvre. Nesse momento, assistimos a
invasão da tecnologia no campo, o modo de
vida e os símbolos e a intensificação das trocas
entre os dois espaços. (idem, ibidem) E, como
corolário, o entendimento do urbano
ultrapassa a cidade, ainda que esta seja parte
essencial da sua totalidade.
Com variações nas formas pelas
mudanças e incrementos nos conteúdos,
cidade e campo permanecem, as relações entre
eles se transformam. Nesse sentido, e isso
explica o equívoco em igualar cidade-campo e
rural-urbano12, a construção do urbano é
marcada pela superação da divisão originária.
Ora, uma sociedade urbana, como prefere
Lefebvre, assume dimensões planetárias, mas
não supõe o desaparecimento das atividades
agrícolas. Isso não quer dizer que o campo
deixe de existir, mas sim que ele está articulado
sobre outras particularidades com o conjunto
do território. Bem como, a expansão da
sociedade urbana, sua condição planetária, não
supõe a sua vivência em todos os lugares, mas
sim como tendência, caminho do processo de
reprodução do espaço, expresso em novas
12 “Numa analogia arriscada, poderíamos pensar no campo e no
rural. O campo poderia ser entendido como a base prático-sensível e o rural, a realidade social, mas logo nossa analogia
perde sentido porque o urbano não se restringe à parcela da
sociedade que mora na cidade.” (SOBARZO, 2006, p. 58)
119 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
atividades, novas relações entre áreas, novos
conteúdos às antigas e recicladas formas.
Ditados ou expressões para a rua e a
casa: conciliações, fragmentação,
potencial de metamorfose e recriações
Se as metáforas13 são recursos de estilo
e expressam uma comparação implícita,
presentes no discurso científico, e, como se
sabe, muito mais antigas se fazem presentes
nos ditados e expressões populares. Deslocadas
ou realocadas, estas aparecem nas descrições
do cronista e reaparecem em outras leituras do
cotidiano.
O próprio João do Rio no texto aqui
citado por nós sugere isso ao assinalar uma
série de hábitos, expressões e brocardos,
verdadeiras adjetivações, qualitativos
generalizáveis e metonímicos de situações,
definições do senso comum. Por exemplo:
“Ponha-o no olho da rua! – bradou o pai ao
filho no auge da fúria” (RIO, 2007, p. 39). Há
uma demarcação expressa na separação entre a
casa, o lar, o privado, a proteção e a rua, o
público, o de ninguém, o de todos, o
incontrolável, o perigoso. “Ah! Menina, o filho
de d. Alice está perdido! Pois se até anda
sozinho na rua!” (idem, ibidem)
Na descrição do cotidiano e das
práticas estaria João do Rio descrevendo
aquilo que Da Matta (1997) chama
degramática social dos lugares. Isto é,
práticas e condutas apropriadas para a casa e
outras apropriadas para a rua. O cronista nos
descreve regras de convivência, sociabilidades.
E nestas, as maneiras de ser e sentir a vida
cotidiana. Assim, está na rua ou na casa, ou
13A metáfora é figura de linguagem. Gramaticalmente é definida
como: “Recurso do estilo em que se substitui a significação natural de uma palavra por outra que apresenta relação de
semelhança com ela (ex. a flor da idade)” (XIMENES, 2000, p.
624).
mesmo transitar de uma para outra, é operar
com um conjunto de expectativas
compartilhadas. Aprendemos e sabemos como
nos portar em cada um destes espaços,
sabemos que há coisas que podem ser feitas e
são esperadas, sem que causem mal-estar ou
comentários reprovativos.
Os citados exemplos da crônica de
João do Rio aparecem numa interpretação do
próprio Da Matta (1997, p. 54): “„vá para a
rua!‟ ou „vá para o olho da rua!‟ Estas
expressões denotam o rompimento violento
com um grupo social, com o conseqüente
isolamento do indivíduo, agora situando-se
diante do mundo „do olho da rua‟, isto é, de um
ponto de vista totalmente impessoal e
desumano”.
São ditados ou expressões, metáforas
populares, maneiras de falar e representar os
espaços e situações, enxugamentos
metonímicos, símbolos como “o olho da rua”,
“a sarjeta” ou “a rua da Amargura”, em que a
rua é contrastada com a casa, em que os
códigos próprios para cada um desses espaços
aparece e, como tal, reviva as fronteiras e
expectativas para cada um deles. E na
gramática normativa dos espaços, a casa é o
familiar, a proteção, a lealdade, a referência, a
pessoa; e a rua, é o de ninguém, o impessoal, o
perigoso, o incontrolável, o desprotegido, o
desamparado, o lugar cheio de tentações.
Nesse sentido, as duas “falas” retiradas da
crônica de João do Rio se aproximam nas
imagens sobre a rua.
Na compreensão da sociedade
relacional brasileira, Da Matta, no ensaio
“Espaço – casa, rua e outro mundo: o caso do
Brasil” (idem), ao tomar metaforicamente o
espaço como “o ar que se respira” (p. 29),
ilustrando com exemplos de orientação,
entende que “o espaço se confunde com a
própria ordem social”, de modo que não seria
120 Márcio Nicory Costa Souza
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
possível interpretar o espaço, sua concepção,
sem o entendimento da sociedade e suas redes
de relações sociais e valores.
Assim, na eleição e afirmação de que
“casa” e “rua” são categorias sociológicas para
os brasileiros, o autor quer dizer que:
entre nós, estas palavras não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas, imagens esteticamente emolduradas e inspiradas” (idem, p. 15)
A casa e a rua são pares opostos e
complementares, delimitadores da identidade
do ser “brasileiro”. Como categorias, procuram
dar conta daquilo de como e do que uma
sociedade se pensa, instituindo seu código de
valores e idéias. E, portanto, seu sistema
classificatório e de ação.
Ainda neste ensaio, Roberto DaMatta
descreve o que denomina por nossa capacidade
de operar com os dois âmbitos, a casa e a rua,
de buscar as intermediações, de amenizar as
oposições, de tecer aproximações. “Somos
mestres das transições equilibradas e da
conciliação” (idem, p. 21). A sociedade
brasileira, para o autor, teria conseguido
sintetizar de modo singular o tradicional (a
casa e suas regras próprias) e o moderno (o
âmbito legal, do objetivo, do impessoal etc.).
No Brasil, mais que os opostos, um ou outro
elemento em predominância ou em processo
de ajuste/desenvolvimento, interessa a
conexão entre eles, os elos.
Para mim, é básico estudar aquele “&” que liga a casa-grande com a senzala e aquele suposto espaço vazio, terrível e medonho que relaciona dominantes e dominados. [...] o estilo brasileiro se define a partir de um “&”, um elo que
permite batizar duas entidades e que, simultaneamente, inventa seu próprio espaço. (idem, p. 25)
Nem tradicional, nem moderno. Os
dois? Talvez. A “solução” Damattiana se
aproxima da “coluna do meio”. No
entendimento da sociedade racional, no
cotidiano, as pessoas classificam e significam
as práticas em diálogo tenso entre os dois
domínios, a casa e a rua.
Se pensarmos na experiência urbana,
resgatada por Gilberto Velho (1995), como
uma experiência de fragmentação, vamos nos
rastros da crítica a uma visão de mundo
orientada por modelos evolucionistas
modernizantes, produtores de efeitos
homogeneizadores. Segundo este autor, estes
modelos se baseiam numa tendência linear à
racionalidade econômica, centrada na
existência de um indivíduo autônomo,
racional, que calcula e opera com fins de
maximização dos benefícios e vantagens. A
observação do cotidiano da nossa sociedade,
continua Velho (idem), contrasta com essa
visão: “particularmente, nas grandes cidades
onde, ao lado da notória desigualdade social,
geradora de tensão e conflitos, as diferenças de
interpretação e construção da realidade
estabelecem descontinuidades culturais que
repercutem em todo o sistema de relações
sociais”.
Apesar da força do impacto da,
genericamente, modernidade capitalista, as
transformações decorrentes interagem
inevitavelmente com diferentes tradições
culturais. Sobre isso Gilberto Velho (idem) fala
de “sincretismos, combinações e reinvenções
culturais”14. Os valores, as crenças, as práticas
não desaparecem diante da expansão de um
certo individualismo modernizante. Se
14 E referindo-se ao caso brasileiro, define como “potencial de
metamorfose” (VELHO, 1995, p. 236).
121 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
pensarmos numa sociedade multidimensional
e heterogênea, como corolário, somos levados
a pensar em alternativas, novos domínios ou
até “colunas do meio”. Quase sempre produtos
de muita negociação, conflito e tensão, novos
domínios aparecem na pulverização de estilos
de vida urbano, na combinação de práticas,
reinvenções cotidianas.
Metáforas, reflexões, condição urbana,
metáforas
Seja pela via da literatura, seja pela via
da ciência, a cidade vem sendo objeto de
reflexão. Da descrição dos estilos de vida, das
morfologias, das intersecções com o campo,
dos esforços em entender as novas
configurações de vida, nas sociabilidades e nas
individualidades, as metáforas aparecem e
“enxugam” nas recorrências ou repetições, nas
regularidades, o viver urbano, do que se trata
essa experiência urbana.
A parte pelo todo, diz a receita
metonímica, isto é, eleger como recurso
estilístico, falado ou escrito, um aspecto e
generalizar ao todo. É uma forma de enxergar
na secção, o volume inteiro, de dar a ver na
parte a presença do todo, da totalidade. Assim
nos aparecem as ruas de João do Rio, como
síntese ou elemento do complexo urbano,
intencionalmente eleito para divagar sobre a
totalidade, ou pelo menos ter tido isto como
meta.
As ruas, das ruas ou nas ruas, a vida
urbana, nos tempos do cronista, acontece. As
ruas de João do Rio, almadas, são
encantadoras. Arrastam as pessoas, seduzem,
chamam a atenção, atraem os meninos etc.
Com um certo exagero, quase como novidades
aos olhares curiosos, elas representam a
espacialidade de novas interações e/ou
sociabilidades urbanas; e, como metáforas,
imagem do viver urbano. Como formas, as ruas
estão carregadas “de valor social; isto é, faz
[em] parte do quadro de referências da vida,
compondo a prática sócio-espacial.” (CARLOS,
s.d, p. 208).
A metáfora de João do Rio, mais que
meramente urbana, é uma metáfora humana.
Se o homem é o fim, as ruas são seus
caminhos. Se preferirmos, podemos pensar a
imagem-metáfora do cronista como uma
metonímia sobre a condição urbana e como tal,
da própria condição humana. Das ruas aos
homens e destes às ruas.
O entendimento do urbano e da sua
produção implica olhares por múltiplas
dimensões, e não somente a dimensão
econômica. Se estendermos a metáfora das
ruas à noção de espaço urbano, entendendo-o
como condição para reprodução do capital e da
própria vida humana, temos o espaço, tais
quais as ruas de João do Rio, como produto e
palco das ações humanas. A rua, o espaço, é
produzido, é trabalho materializado. Na
produção das condições de vida, a sociedade
produz o espaço geográfico e com ele modos de
vida, maneiras de pensar, sentir etc., todo um
conjunto de sociabilidades e outras sociações,
estilos de vida, hábitos. Nessa perspectiva,
“pensar o urbano significa pensar a dimensão
do humano” (CARLOS, 1994, p. 24)
No início do texto aparecem duas
frases, duas epígrafes. Na primeira, as ruas
aparecem pelos olhos de João do Rio, como
fatores da vida nas cidades. Como dissemos, as
ruas do cronista são encantadoras, seduzem,
atraem os meninos etc. Na segunda frase, as
ruas aparecem não mais como encantadoras,
mas esvaziadas. Desaparecem os usos, e junto
com eles os usadores. Às ruas não caberiam
mais os flaneries, os garotos, nem o uso
prolongado.
122 Márcio Nicory Costa Souza
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
As ruas no contexto de transformações
urbanas intensas da metrópole moderna são
vigiadas, apitadas, fiscalizadas, temidas,
assustadoras. As crianças não fogem mais às
ruas, a ocupação das ruas nos grandes centros
não é mais a mesma, causam pavor, apreensão,
existem toques de recolher, as portas são
trancadas e à noite os hábitos se restringem ao
domicílio – se tornam somente não-lugares,
esgotam-se na função de passagem, de
transição. As mudanças nas formas urbanas
mexem nos ritmos da vida cotidiana, já que
estes “se ligam à duração das formas e de suas
funções, e estas à construção da identidade.”
(CARLOS, s.d, p. 209) Se mudam os ritmos,
mudam as relações, as sociabilidades. Os
tempos, ou temporalidades, são outros15. Nas
“novas” ruas configuram-se novas regras de
uso, novas demarcações, novos territórios.
Tempos diferentes, olhares e
conclusões sobre o que vêem igualmente
distintos. São metáforas e práticas observadas
em dois tempos. Encanto e esvaziamento,
respectivamente, definem as ruas aos olhos de
João do Rio e de Ana Fani Carlos.
Como dissemos no início, o caminho,
ou a tentativa, foi trilhado nos rastros de João
15 As novas sociabilidades nas/das ruas de hoje está talvez cada
vez mais distante do tipo puro, da sociação ideal, artificial, como pensava Simmel (1979 e 1983b). Ora, se já é criticável a noção
de sociabilidade postulada por Simmel enquanto ideal, no
resgate da verdadeira sociação, da reunião como um fim humano e bom, como forma pura de reciprocidade, essas formas parecem
estar cada vez mais distantes, inalcançáveis, como metas. E o
“jogo do faz de conta” (idem, 1983b, p. 173) – menos que a
mentira como a arte ou o jogo, no sentido de autonomização das
formas aos conteúdos – talvez, numa perspectiva do viver urbano como experiência, mais para um apanágio num processo
de desumanização nas grandes metrópoles. Encontramos em
Simmel, é possível, a possibilidade da crítica e a argumentação que endossa a crítica. Ora, “o jogo do faz de conta” aparece
como um subterfúgio, já que: “A vida moderna é sobrecarregada
pelos conteúdos objetivos e pelas exigências; e esquecendo todas essas sobrecargas diárias numa reunião social, imaginamo-nos
de volta à nossa existência natural-pessoal” (idem, ibidem).
Como se para esquecer e relaxar das pressões da vida urbana metropolitana, os encontros sociáveis, lúdicos são aliviadores,
paliativos. Interessante observar a aproximação dessa
perspectiva da sociologia formal de Simmel com a reflexão de Lefebvre sobre o conceito de sociedade urbana. A sociedade
urbana pressupõe uma transformação no cotidiano, que deve ser
apropriado pelo ser humano.
do Rio e na companhia de autores. Na medida
do possível, boas companhias, que, se
entendidas as dicas e orientações, nos
permitiram não traçar linhas definitivas, nem
“a” trilha certa, mas incitaram novas pistas,
fizeram ver os vestígios e os submeter aos
intermináveis, contudo delimitáveis,
inquéritos. Assim, pedindo licença a um dos
mestres, tomamos a liberdade de destacar-lhe
uma citação sobre a nossa relação e expectativa
com a vida metropolitana. Com a palavra,
Simmel:
A metrópole se revela como uma daquelas grandes formações históricas em que correntes opostas que encerram a vida se desdobram, bem como se juntam às outras igual direito. Entretanto, neste processo, as correntes da vida, quer seus fenômenos individuais nos toquem de forma simpática, quer de forma antipática, transcendem inteiramente a esfera para a qual é adequada a atitude de juiz. Uma vez que tais forças da vida se estenderam para o interior das raízes e para o cume do todo da vida histórica a que nós, em nossa efêmera existência, como uma célula, só pertencemos como uma parte, não nos cabe acusar ou perdoar, senão compreender. (1979, p. 25)
Referências:
BARROS, José D’Assunção. Cidade e história. Petrópolis: Vozes, 2007. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. BRAGA, Gilberto; LIMA, Cássia H. Pereira. As representações da Cidade: lugar de origem, lugar de trabalho. In: XIII Congresso Brasileiro de Sociologia, 29 de maio a 1 de junho/2007, Recife, Grupo de trabalho: Cidades e Processos sociais, Seção: Processos e projetos sociais. CARDEL, Lídia Maria P. S. Migração, limiaridade e memória: um estudo sobre o choque entre imaginários e (re)construção de identidades. São Paulo, 2003. Tese de
123 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
doutorado apresentada ao Departamento de Antropologia da FFLCH/USP. CARLOS, Ana Fani A. Possibilidades e limites de uso. In:____. Espaço-tempo na metrópole: a fragmentação da vida cotidiana. São Paulo: Contexto, s.n. ____. A (re)produção do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 1994. DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil.5 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. ____. Individualidade e limiaridade: considerações sobre os ritos de passagem e a modernidade. Mana, v. 6, n. 1, 2000, p. 7-29. DAWSEY, John Cowart. “Cainda na cana” com Marilyn Monroe: tempo, espaço e “bóias-frias”. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 1997, v. 40, n. 1. ENDLICH, Ângela Maria. Perspectivas sobre o urbano e o rural. In: SPOSITO, Maria Encarnação B.; WHITACKER, Arthur Magon (Org.) Cidade e campo. São Paulo: Expressão popular, 2006. LEFEBVRE, Henry. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001. Tradução: Rubens E.Farias. MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política. Livro primeiro: o processo de produção do capital, volume II. 9. ed. São Paulo: Difel, 1984. Tradução de Reginaldo Sant’anna. MELO, Normando Jorge de A. “Não contavam com a minha astúcia” – ensaio sobre uma experiência de cidade. Recife, 2007. Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação em Antropologia da UFPE. MORAIS, Evaristo de Filho. Formalismo sociológico e a teoria do conflito (Introdução). In: SIMMEL, Georg. Georg Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. Coleção Grandes Cientistas Sociais, n. 34, organizada por Evaristo de Morais. NEVES, Delma Pessanha. Os miseráveis e a ocupação dos espaços públicos. Caderno CRH, Salvador, n. 30/31, p. 11-134, jan./dez. 1999. REZENDE, Cláudia Barcellos. Os limites da sociabilidade: “cariocas” e “nordestinos” na
Feira de São Cristóvão. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 28, 2001. RIO, João do. A alma encantadora das ruas (crônicas). São Paulo: Martin Claret, 2007. SILVA, William Ribeiro da. Reflexões em torno do urbano no Brasil. In: SPOSITO, Maria Encarnação B.; WHITACKER, Arthur Magon (Org.) Cidade e campo. São Paulo: Expressão popular, 2006. SOBARZO, Oscar. O urbano e o rural em Henri Lefebvre. In: SPOSITO, Maria Encarnação B.; WHITACKER, Arthur Magon (Org.) Cidade e campo. São Paulo: Expressão popular, 2006. SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. ____. A natureza sociológica do conflito. In: SIMMEL, Georg. Georg Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983a. Coleção Grandes Cientistas Sociais, n. 34, organizada por Evaristo de Morais Filho. ____. Sociabilidade – um exemplo de sociologia pura ou formal. In: SIMMEL, Georg. Georg Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983b. Coleção Grandes Cientistas Sociais, n. 34, organizada por Evaristo de Morais Filho. ____. Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. SPOSITO, Maria Encarnação B.; WHITACKER, Arthur Magon (Org.) Cidade e campo. São Paulo: Expressão popular, 2006. VELHO, Gilberto. A utopia urbana. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. ____. Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. ____. Estilo de vida urbano e modernidade. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 16, 1995, p. 227-234. VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. WIRTH, Louis. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. XIMENES, Sérgio. Minidicionário Ediouro da Língua Portuguesa. 2. ed. São Paulo: Ediouro, 2000.
MEMÓRIA, FÉ E MOVIMENTOS SOCIAIS EM
CANUDOS
Floriza Maria Sena Fernandes1 RESUMO O presente artigo faz uma breve análise do catolicismo popular vivenciado em Canudos, antes e após a experiência de Belo Monte, protagonizada por Antonio Conselheiro no século XIX, como também verifica a sobrevivência desse catolicismo mesmo depois das duas investidas do Exército para destruir a cidade. Tal fenômeno é observado a partir de depoimentos e observação das práticas sócio - culturais da população local, bem como através da metodologia utilizada pelas Comunidades Eclesiais de Base surgidas que em simbiose com a religiosidade popular gerou uma nova consciência da população em relação aos seus direitos, desencadeando na década de 80 uma serie de movimentos sociais na cidade. Palavras-chave: Movimentos Sociais. Comunidade Eclesial de Base.Catolicismo Popular.. ABSTRACT The present article brings a short analyses about popular Catholicism in Canudos, before and after Belo Monte’s experience, who protagonist was Antonio Conselheiro in Nineteenth Century, as well as this text verify the surviving of Catholicism even after the two arms attacks to destroy the city. This phenomenon is observed through depositions and social and cultural practice observations on that local population, and also among the methodology used by Eclesiais de Base Communities which in a symbiosis with the popular religiosity cause a new conscience of the populations about it rights, and it also make happened in the 80s years a series of social movements in that city. Key-words: Social Movements. Eclesial de Base Community. Popular Catholicism.
1 Bacharel em Ciências Sociais e Professora da Universidade do Estado da Bahia. Vice - Coordenadora do Centro de Pesquisa em
Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação OPARÁ/UNEB.
125 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
1 CANUDOS: SEU TEMPO, SEU CHÃO,
SUA HISTÓRIA
Canudos ou Antiga Canudos, como se
refere o povo da região para falar do povoado
fundado em 1893 pelo beato Antônio
Conselheiro, foi palco da maior guerra civil já
vivida no Brasil nos últimos séculos, na visão
do historiador Marcos Antônio Villa(1995).
Motivados por uma profunda religiosidade e
liderados por Antonio Conselheiro, os
sertanejos conseguiram organizar numa
fazenda abandonada uma comunidade
igualitária que chamaram de Belo Monte.
Temendo aquele núcleo de poder que colidia
frontalmente com a estrutura social,
econômica e política do Estado e com os
interesses da classe dominante e da Igreja, em
05 de abril de 1897, o exército republicano
destruiu Belo Monte e seus moradores em uma
das batalhas mais vergonhosas da história do
Brasil.
Anos depois, com a teimosia própria
do catingueiro, que com bravura desafia a seca
e a morte, alguns remanescentes da guerra,
bem como outras pessoas de regiões vizinhas,
retornaram e reconstruíram o povoado, a
segunda Canudos, que na visão de Silva (1996)
se transformou no símbolo da minoria, no
símbolo dos “vencidos”.
Em 13 de março de 1967, o povoado
foi, pela segunda vez, destruído pelas águas do
Açude Cocorobó, construído pelo DNOCS2,
que se instalou na região com o propósito de
introduzir uma agricultura capitalista no
coração do semiárido e para apagar da
memória das pessoas não só a história de um
Estado assassino, como também a lembrança
2 Departamento Nacional de Obras Contra as Secas.
daquela experiência comunitária vivida em
Belo Monte. Para Silva (1996), as águas do
açude serviriam de tumba onde não apenas
repousariam os mártires da guerra, senão
também as casas, o cemitério, a escolinha, o
cruzeiro, grandes referências daqueles que
reconstruíram Canudos depois da guerra. Seus
moradores foram transferidos para o povoado
vizinho de Bendegó e Cocorobó, cujo açude
levou o nome.
Em 1985, Cocorobó/BA se
transformou em Nova Canudos, desmembrada
do município de Euclides da Cunha /BA pela
Lei 4.4053, de 25 de fevereiro deste mesmo
ano. Consta de uma extensão de 2.986 Km2.
Sua população no censo realizado pelo
Governo Federal em 1991 era de 13.786
habitantes, desse total 5.236 hab. moravam no
centro urbano e 8.550 hab. na área rural4. A
densidade demográfica é de 4,62 habitantes
por Km2. Percebe-se, em comparação ao censo
de 1980, um crescimento populacional de
5.077 habitantes, ou seja 58,29% numa década
marcada por períodos de estiagens.
Na pesquisa observamos a diferença
populacional entre moradores da área rural em
relação à área urbana, dado que se põe
extremamente em contraste com as estatísticas
nacionais, pois ainda no início da década de
90, o número da população rural no município
era de 62,02%, maior que o número da
população urbana, conforme dados
preliminares liberados pelo IBGE5, que
demonstra essa tendência da população rural
nos municípios brasileiros.
3 Lei 4.405 sancionada pelo governo do Estado da Bahia em 25
de fevereiro de 1985.
4 Censo realizado pelo IBGE em 1991.
5 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
126 Floriza Maria Sena Fernandes
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
Possivelmente, a explicação para esses
dados – crescimento populacional e uma maior
concentração no campo que na cidade – tão
contrários às estatísticas nacionais,
provavelmente ocorreu pela forma tradicional
de apropriação e uso da terra, conhecida como
fundo de pasto, outrossim, é conceituado
por Garcez (1987, p.38) como “o agrupamento
de pequenos produtores rurais organizados
comunitariamente para o exercício do
pastoreio extensivo em sistema de propriedade
aberta”. Devido ao tipo de clima - uma caatinga
semiárida, de solo pedregoso, vegetação
escassa e com períodos de longas estiagens,
apenas poucos hectares de terras podem ser
destinados à agricultura. A caatinga tem
vocação natural para a caprinocultura, pois
esta se mantém resistente às adversidades
climáticas próprias desse ambiente e, portanto,
se constitui a principal atividade econômica da
população rural de Canudos – BA. No fundo de
pasto, o gado é criado solto para que ande
livremente em busca de alimento. Os criadores
marcam suas cabras e ovelhas e deixam que
pastoreiem em grandes extensões de terras
com possibilidade de se movimentarem a
procura de água e folhagens. Tendo o caprino
como principal atividade econômica, o bovino
e o ovino aparecem como atividades
complementares, bem como uma lavoura de
subsistência realizada em pequenas áreas
individuais cercadas, próximas às casas de
morada de cada um dos membros da
comunidade, suficiente apenas – e às vezes
insuficiente – para assegurar a sobrevivência
do grupo familiar. É interessante se atentar
para o fenômeno de fundo de pasto
relacionado à densidade demográfica. Se por
um lado ele é inibidor do processo migratório,
porém requer pouca mão-de-obra para a
produção de caprinos e ovinos, o que indica
que o crescimento populacional está ligado à
reprodução da população ali fixada; por outro
lado, a densidade demográfica rural é muito
baixa se comparada aos municípios baianos de
Euclides da Cunha, Tucano e Jeremoabo, cuja
produção está mais voltada para a agricultura
exigente de abundante mão-de-obra.
A partir da década de 60, o governo
federal investiu em políticas econômicas
visando o desenvolvimento do país e a
expansão do capital nacional. Esta política
atingia fortemente a população rural do norte,
via projetos de colonização da Amazônia e do
Nordeste através dos outros planos de
desenvolvimento dos vales dos rios ali
existentes, conforme se verifica nos estudos de
Iann (1981) e Martins (1982). Observamos que
data dessa época a construção do Açude de
Cocorobó às margens do Rio Vaza Barris, sob a
responsabilidade do DNOCS. Os objetivos do
governo, no limite, foram atingidos, pois,
atraíram médios e grandes proprietários de
terras que se fixaram na região. Na prática, as
terras foram valorizadas e em contrapartida
gerou-se um sério problema social, devido às
formas de apropriação e uso das mesmas. O
empresário para ali se estabelecer expropriou a
população camponesa, isto é, as terras
disponíveis para a circulação dos rebanhos
foram cercadas, seus moradores expulsos e
seus rebanhos confinados a poucas áreas,
ainda não apropriadas pelos latifundiários
procedentes de Sergipe, Bahia e sudeste do
país. A concentração de terras nas mãos desses
latifundiários se acentuou, pois, além da
compra de terras por estes, muitos daqueles
que haviam saído para Salvador, Rio ou São
Paulo, retornaram para a região, pois além de
cuidar das suas propriedades se apropriaram
127 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
de outras áreas sob a forma de compra ou de
apropriação de terras devolutas. Rolin (1987)
confirma a questão quando diz:
Os proprietários ou pretensos proprietários dos latifúndios abandonados ou de solicitantes de terras devolutas que requeriam uma posse ao estado e, ao demarcá-la e cercá-la, invadiam áreas de ocupação comunitária, determinando uma acentuada ocupação dos espaços antes utilizados como fundo de pasto e restringindo substancialmente a área de pastoreio.(p.46)
Delires Braun (1996), uma das
religiosas que atuou na ação pastoral de
Canudos ( 1994 a 1996), também falava sobre o
fato:
‘Os grandes fazendeiros da região não moram aqui, eles moram em Salvador, Feira de Santana, Aracaju. Chegam, compram uma pequena área e na hora de cercar não tem limites.’
Percebia-se até 19976, na região que
envolve o município de Canudos, a
coexistência tanto do sistema comunitário
desenvolvido pelo pequeno produtor na criação
de caprinos, como o latifúndio que crescia e
ameaçava esta forma tradicional de
apropriação e uso da terra.
Aproveitando as águas do açude, o
governo, através do DNOCS, introduziu uma
produção agrícola para o consumo externo e
uma acumulação de capital nas mãos de
multinacionais como a AGROCERES, que
comercializava as sementes selecionadas,
vendiam máquinas e adubos químicos. Ao
mesmo tempo inseriu no projeto de
colonização segmentos da população pobre que
foram transformados em colonos. Estes
agricultores envolvidos estavam sempre
endividados apesar de conseguirem bons
6 Data que foi realizada a pesquisa na região.
índices na produção. Criou-se uma cooperativa
para comercialização dos produtos, mas sem
caráter reivindicatório, entretanto até 1986 a
organização não era suficiente para animar os
colonos que sempre reclamavam da
descontinuidade do apoio dado pelo DNOCS
no início da implantação do projeto. Outro
fator importante na produção econômica do
município é a pesca nas águas do Açude.
Observamos nesse período um grande número
de famílias que viviam da pesca, tanto
consumindo o produto garantindo sua
alimentação, quanto comercializando o
excedente na feira-livre.
Na sede administrativa do município
estavam situadas as instituições públicas e um
pequeno centro comercial. Dado que a
emancipação política de Canudos é muito
recente, datando de 1985, prevaleceu por
muito tempo aquela administração feita por
meio de um chefe do povoado ou
administrador, que geralmente era alguém de
família tradicional, que tinha relevo especial
devido à posse de muitos hectares de terra e
ligado ao grupo que estava no poder político no
município sede, neste caso, Euclides da Cunha.
Com a emancipação política do município, o
povo começou a escolher por meio do voto
direto e secreto seus representantes para o
Poder Legislativo e para o Executivo. Ainda
assim não houve mudanças substanciais na
qualidade da representação, porque a
independência política não promoveu
nenhuma transformação na estrutura da
propriedade da terra. Os sertanejos
continuaram sem terra dependendo dos
favores dos proprietários para sobreviver,
continuaram agregados. Como diz uma
liderança da Igreja Católica da região “Os
coronéis se apropriaram da água, assistência à
128 Floriza Maria Sena Fernandes
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
saúde, escola, terra, deixando o povo numa
completa dependência.” (MILAN, 1997). Tal
dependência colocava o sertanejo sob o
domínio da vontade dos fazendeiros e
lideranças políticas da região e vinha a se
tornar um grande capital político nas
contendas eleitorais. A grande massa de
empobrecidos era usada sob a forma do
clientelismo e assistencialismo para
manutenção da classe dominante no poder
político. A assistência à saúde era precária
havendo apenas uma maternidade de
propriedade do ex-prefeito, e médico,
transformando o direito à assistência à saúde
em um favor, cuja obrigação deve ser o voto a
quem prestou o serviço ou a um dos seus
aliados políticos. O sistema educacional era
deficiente, existindo apenas uma escola do
Ensino Médio que se destinava à formação
para o magistério. A mesma estava vinculada
ao Estado e foi construída na área
administrada pelo DNOCS. Outras escolas de
Ensino Fundamental estavam distribuídas pelo
município e área rural.
Como se pode verificar, Canudos,
apesar de suas especificidades, não difere de
muitos outros municípios situados no sertão
semiárido. O sertanejo vivendo inicialmente
sob o julgo dos coronéis tradicionais, veem as
relações sociais se modernizarem, porém
continuam dominados pelos filhos desses ou
seus prepostos, os médicos, engenheiros,
advogados e outros. O que vai marcar a
especificidade desse município é a história de
camponeses sem terras que se aglutinaram em
torno de Antônio Conselheiro e reagiram à
prepotência dos coronéis da região, exigindo o
acesso à terra. Fato que culminou em uma das
maiores guerras camponesas do século passado
(XIX), cuja extinção teve como resultante a
mobilização de vários destacamentos do
exército e a mortandade de aproximadamente
25 mil camponeses e soldados.
2 CATOLICISMO POPULAR: FÉ,
SIMBOLOGIA E RESISTÊNCIA NO
SERTÃO
Antes de ser criada a paróquia de
Santo Antônio de Pádua de Canudos, em 1987,
a freguesia de Cocorobó era atendida por dois
vigários distintos: o vigário de Jeremoabo/BA,
que atuou até 1973, e, a partir desta data, as
responsabilidades dos trabalhos religiosos
passaram para o vigário de Euclides da Cunha
/BA, como registra o livro de Tombo das
respectivas paróquias. As atividades dos dois
vigários reduziam-se a algumas visitas
obedecendo a um calendário fixo condicionado
pelas festas dos padroeiros dos povoados
maiores, tais como: Santo Antônio, dia 13 de
junho; Nossa Senhora do Rosário, 07 de
outubro; e, Nossa Senhora de Fátima, 13 de
maio. Outras visitas faziam parte de um serviço
religioso anual conhecido como "desobriga". O
vigário estabelecia algumas rotas na geografia
paroquial7 e ia pernoitando uma noite em cada
um dos povoados maiores. Nessas visitas,
seguiam um esquema mais ou menos
semelhante. Realizavam-se os sacramentos, as
visitas às famílias e aos doentes para conversas
individuais e aconselhamentos. Prevalecia
aquela visão da Igreja católica anterior ao
Vaticano II, segundo a qual cada instituição
tinha sua função na sociedade. A função da
Igreja era rezar para que tudo funcionasse
bem. Na prática o que se podia perceber é que
7Área que compreende os limites de atuação pastoral de um
vigário que nem sempre corresponde a divisão geográfica feita
pelo Estado.
129 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
existia uma aliança: Igreja, Estado e classe
dominante, herança do padroado iniciado no
Brasil no período colonial. No entendimento de
Castro (1984), o padroado além de auxiliar o
colonizador a organizar a produção, foi
também responsável pela organização e
legitimação da estrutura social de dominação,
gerando o coronelismo, com suas práticas de
paternalismo, clientelismo e assistencialismo,
o que significa adentrar noutras dimensões.
Daí que se observa na assistência religiosa
deste período certo dualismo, pois o padre se
achava responsável pela dimensão
exclusivamente espiritual, contudo interferia
na dimensão social e política apesar de negar a
interferência nessas outras instâncias. Dona
Zefa (1987), membro das CEBs8, fala sobre
esse modelo de evangelização anterior à década
de 80 em Canudos/BA:
Naquele tempo era diferente a gente não lutava pela terra, não fazia cisterna em mutirão. Ave Maria de se falar em política na Igreja. O padre aqui até que ficava na casa da gente, mas nas roças vizinhas comia na
casa do fazendeiro.9
Além do catolicismo oficial ministrado
pela hierarquia da Igreja Católica Apostólica
Romana, havia uma outra prática religiosa que
já existia antes de Antonio Conselheiro, mais
especificamente voltada para o plano de
pastoral popular, esta prática está presente nas
expressões religiosas populares motivadas pela
festa, dor (morte) e ameaças climáticas.
Oliveira (1989, p.14) chama essas expressões
de Catolicismo Popular, porque "canalizam
8 Comunidades Eclesiais de Bases - Movimento religioso
surgido na Igreja católica na década de 60 motivado pela elaboração teórica Teologia da Libertação.
9 As entrevistas feitas com Dona Josefa foram utilizadas por diversas vezes por se tratar de uma das moradores e lideranças
religiosas mais antigas do município, vindo desde a 2ª
reconstrução de Canudos.
através de símbolos e das mediações que se
percebem como próprias da Igreja Católica
Romana". Segundo Otten (1990: 93), esta
forma de catolicismo veio para o Brasil trazido
por portugueses pobres. No país se expandiu
na zona rural onde vivia a massa camponesa e
recebeu elementos religiosos das culturas
indígenas e africanas, desenvolvendo tradições
próprias.
Para Otten (1990, p.96), “ na imagem
do santo encerra-se o mundo divino. Nela há
um pouco do céu. O lugar onde o santo está
vira santuário, pois do contrário se diz: casa
sem santo é estribaria".
Passados quatrocentos anos de seu
surgimento e convivência com a Igreja oficial,
o Catolicismo Popular vai sofrer represálias,
quando incorporam um elemento novo: o
protesto social, a exemplo da experiência
comunitária ocorrida em Canudos idealizada
por Antônio Conselheiro. A alternativa
encontrada pela Igreja foi implantar o
Catolicismo Romano iniciado no pontificado
de Pio IX (1846-1878). Na verdade, era mais
uma vez uma demonstração do apoio da Igreja
ao Estado e à classe dominante ameaçada. Fato
que ratifica a separação da convivência entre a
Religião oficial e a religiosidade popular. A
presença dos leigos como animadores do culto,
bem como a centralidade dos santos, era vista
pelo clero romanizado como "ignorância
religiosa" a ser combatida. Entendiam o
catolicismo popular como crendices,
superstições, fanatismo e imoralidade. Eram
práticas que teriam que ser substituídas pelo
"verdadeiro catolicismo". O Concílio Vaticano
I, na interpretação de Oliveira (1996), "oferece
bases para a implantação do catolicismo
130 Floriza Maria Sena Fernandes
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
romano"10 porque substitui as devoções
tradicionais do povo, por outras adequadas ao
modelo romano.
Em Canudos, entretanto, pela pouca
presença do clero, o catolicismo popular
permaneceu vivo. Mesmo com o combate
violento da Igreja e do Estado, seus
remanescentes conseguiram manter muitos de
seus traços, embora conservando aquela idéia
de uma ordem cósmica-social estabelecida por
Deus e que os seres humanos não podem
mudar. Expressões religiosas que encaravam a
sociedade como uma reprodução terrena da
ordem celeste, concepção anterior à criação do
povoado de Belo Monte de Antônio
Conselheiro. Sem a presença do padre, o
sertanejo canudense desenvolvia seu
catolicismo trazendo para o espaço religioso os
acontecimentos vividos cotidianamente. Os
santos eram companheiros em todos os
momentos da vida: no trabalho, na família, nos
momentos de dor e festa. Dona Zefa (1997),
moradora antiga do período da reconstrução
de Canudos, após a primeira destruição e
desde aquele período animadora do culto, fala
com a convicção de quem viveu estes
momentos: “A Festa de Santo Antônio aqui é
uma tradição, que existia do tempo de Antônio
Conselheiro, Canudos foi destruída, mas Santo
Antônio ficou passou pra segunda Canudos,
onde eu morei, e agora veio pra Nova Canudos
e continua protegendo a gente.”
As lideranças leigas com
predominância das mulheres, rezadeiras,
10Os autores tomados como referência para o estudo da
romanização e catolicismo popular, foram: Pedro de Oliveira, com sua obra Religião e Dominação de Classe (1985) e
Religiões Populares (1996), Alexandre Otten com a obra Só
Deus é Grande e José Maria de Oliveira Silva em sua tese de doutorado: Rever Canudos: Historicidade e Religiosidade
Popular (1940-1995). São Paulo, FFLCH/USP, 1996
benzedeiras, catequistas, dirigiam o culto e as
rezas, catequizavam as crianças e
desempenhavam a função de ponte entre os
moradores e a liderança clerical. Segundo
Dona Zefa (Ibidem),
O padre marcava as missas e eu avisava o pessoal, porque lá em Canudos Velho eu já participava e estava por dentro de tudo. Quando o padre chegava, os que vinham celebrar como padre Francisco de Jeremoabo, depois padre Pedro de Euclides da Cunha se arranchavam na casa de meu padrinho, então todo mundo me procurava.
Os espaços privilegiados por aquelas
lideranças era o culto relacionado com festas e
oração, motivados pela presença da doença nas
pessoas e nos animais, ou do tempo climático
adverso à agricultura. Dona Dora (1987)
conhecia todo tipo de planta medicinal e hoje
na comunidade ela assume papel de liderança
na medicina alternativa desenvolvida pelas
CEBs. Ela fala de como desenvolvia seu
trabalho na arte de produzir chás e xaropes que
ajudariam às pessoas a se curar das doenças,
numa realidade social onde a presença de um
médico não passava de desejos daquela gente:
A gente fazia de tudo, médico não existia, só em sonho, eu dava assistência a todo mundo que precisava, daí eu rezava, recomendava meus chás, banhos, mas não era só isso não minha filha, a gente sabia que Deus é poderoso e a reza é o melhor remédio.
Existiam vários momentos de
expressão religiosa liderados por leigos,
optamos aqui por destacar dois desses por
considerarmos mais abrangentes. O primeiro é
a festa do Santo, e mais precisamente Santo
Antônio cuja imagem foi levada para Cocorobó
em 1967. A mudança das pessoas da segunda
Canudos para Cocorobó (posteriormente Nova
Canudos) não significou o fim dos festejos.
131 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
Pelo contrário, o que é nove dias de reza, se
transformou em Cocorobó em 13 dias de
homenagem àquele que era "companheiro
inseparável". Muito antes do início da trezena,
os responsáveis faziam os preparativos,
arrecadando donativos e visitando as famílias
convidando-as para as celebrações. Para isso
contavam com a ajuda dos pífanos e zabumbas
que entravam de casa em casa, tocando e
solicitando ajuda material. O primeiro dia da
festa era animado com alvorada de fogos de
artifícios, o zabumba e os pífanos tocando de
rua em rua alertando aos moradores sobre o
grande dia. Durante toda trezena, o processo
era o mesmo, estes músicos só paravam de
caminhar e tocar pelas ruas parte da tarde,
para o almoço e o descanso. No momento da
celebração a população reunia-se na casa do
noiteiro e se dirigiam à Igreja para tocar o sino
ao som do zabumba, dos pífanos e dos
foguetes. Depois daquele momento de êxtase,
parava-se com o barulho e já dentro do templo
as rezadeiras assumiam seu papel no culto,
cantando benditos e ladainhas religiosas
diversas em homenagem ao Santo, rezavam a
ladainha e o ofício. Quando terminava a
celebração, os fiéis faziam a entrega do ramo
na casa do responsável pela noite seguinte.
Essa entrega acontecia com uma procissão ao
som dos benditos entoados pelas rezadeiras e
com acompanhamento dos músicos. Quando
era feita a entrega do ramo, os que
acompanhavam a procissão entravam e se
fartavam com comidas e bebidas na casa do
noiteiro. Ao voltarem para frente da Igreja, era
realizado o leilão com objetos ou animais
doados, a fim de arrecadar recursos financeiros
para as despesas religiosas. Geralmente as
danças como Lundum, São Gonçalo do
Amarante e Reisados Alagoanos eram
realizadas no final da tarde. Neste culto, a
presença do padre era muito pouca, este só
participava nos dois últimos dias da festa para
celebrar casamentos, batizados e rezar a missa.
É interessante observar que a festa
representava um momento extraordinário de
integração da comunidade onde os
desencantos com a vida difícil cedem lugar à
fartura e alegria. Percebe-se que o culto aos
santos organizava-se através de animadores
leigos. Aos sacerdotes restava apenas o papel
de consagrar a hóstia e reavivar a fé e moral do
povo.
O segundo momento, que destacamos
como um acontecimento privilegiado que
propiciava a presença de lideranças religiosas
leigas em Canudos, era a Morte que, como a
festa, era transformada num momento
religioso, misterioso e gerador de
solidariedade. As lideranças religiosas se
faziam presentes em três momentos diferentes,
nas últimas horas do doente, no velório ou
sentinela e na visita à cova. Elas sabiam
acompanhar a família do doente, rezavam
diante dele, faziam recomendação da alma,
punham a vela nas mãos do moribundo e
quando este morria ajudavam na troca de
roupa, vestiam nele muitas vezes indumentária
típica dos frades, amarrando inclusive o cordão
de São Francisco. O corpo do falecido era
velado por uma noite na casa onde morava.
Durante horas, parentes, amigos e vizinhos
contavam casos da vida do morto, bebiam
cachaça ou café. O clima era de descontração.
A sentinela é feita com rezas das rezadeiras e
os amigos contando “causos” e piadas no
alpendre da casa. Depois da morte, dentro de
sete dias posteriores, as famílias orientadas
pelas rezadeiras fazem a visita à cova, todos
132 Floriza Maria Sena Fernandes
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
chorando e vestidos de preto. Padre Tiago11,
vigário da paróquia de Canudos interpreta este
gesto como “uma forma que os sertanejos
expressam a fé na ressurreição e aparece
também como uma certa vingança contra a
morte”.
Sem dúvida nos períodos que
compreenderam os três momentos de
Canudos, o de Belo Monte de Antônio
Conselheiro, o Pós-Conselheiro e a Nova
Canudos, era o catolicismo popular que
predominava na prática religiosa da população.
Evidentemente que com a especificidade
exigida pelo momento histórico, mas com
aquelas características próprias de uma
religiosidade vivida e praticada pelo povo
simples. Uma religiosidade laica, intuitiva,
inclusive pela presença forte de mulheres,
alegres, com um profundo senso de Deus, que
para aquele povo era ao mesmo tempo
indulgente e severo. Dava-se muita
importância às imagens, às bênçãos, aos
lugares, as velas, a água benta e demais
símbolos religiosos. As promessas, os tríduos,
novenas, trezenas e procissões mostravam uma
grande capacidade de oração, de aceitação da
vida e, até mesmo, certo conformismo,
aderindo à Deus a culpa pela pobreza e pelos
problemas de ordem climática, como as secas
ou as tempestades. Como dizia Dona Tereza12,
"no dia de São José fazíamos procissões
pedindo chuva". Esse povo vive uma cultura
carregada de valores da fé cristã, faz uma
simbiose religião-cultura que dificilmente se
conseguiria separar. Deus é capaz de resolver
todos os problemas humanos, ao homem cabe
agradar a esse Deus.
11 Entrevista realizada com sacerdote da Paróquia em 1997. 12 Entrevista realizada em 1997 com dona Tereza, uma
liderança que coordenava as Comunidades Eclesiais de Base em
Canudos.
Essa fé e esse universo simbólico-
popular são características predominantes da
religiosidade vivida em Canudos, antes da
criação da paróquia em 1987, quando surgem
as Comunidades Eclesiais de Base e tentam
articular sua trajetória histórico-política,
reflexiva, que já vinha de uma longa
experiência no resto do país, com o universo
popular que traz uma cultura permeada pela
dimensão simbólica, afetiva, celebrativa, mas
também, conformista e legitimadora da
estrutura social de exploração e dominação
implantada no sertão da Bahia. Este foi um
grande desafio para as novas agentes das
CEBS: encontrarem uma solução dialética para
o encontro das duas concepções de prática
religiosa. Teriam que apresentar sua proposta
respeitando a experiência do catolicismo
popular praticado há séculos na região.
Religiosas vindas, quase todas, da região sul do
país, encontraram o desafio de se integrarem
nessa nova realidade geográfica e cultural
completamente distinta da sua e teriam que
enfrentar o encontro com o diferente, o choque
cultural. Seria desafiante conseguir apresentar
a perspectiva pastoral das CEBs,
complementando a vivência religiosa anterior
sem classificá-la num degrau de categoria
inferior.
3 FERMENTO NA MASSA: CEBs,
SANTOS, PROCISSÕES E
MOVIMENTOS SOCIAIS.
A Paróquia do município de Canudos
foi criada no dia 03 de fevereiro de 1987 e tem
como padroeiro Santo Antônio de Pádua. Foi
desmembrada da Paróquia de Nossa Senhora
da Conceição do município de Euclides da
Cunha/BA e o primeiro vigário, Santiago
133 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
Milan, tomou posse em 20 de março de 1987,
como consta no livro de ata da secretaria
paroquial13, contou com a colaboração de três
religiosas que já se encontravam na região
desde 1986. Entre as inúmeras dificuldades
encontradas, o conhecimento da realidade era
a primeira delas, porque sem essa inserção na
vida social e política do povo, seria impossível
para os novos agentes atuarem conforme a
metodologia das CEB’s: conhecimento
científico e prático, reflexão e ação, inclusive,
porque as religiosas do sul do país, pouco ou
nada conheciam da vida no sertão nordestino.
Observa-se na metodologia utilizada
pelos agentes de pastoral – o intelectual
orgânico segundo a concepção gramsciana14 –
uma valorização do "saber do povo" que era
como uma marca, uma característica da
atuação da fração "progressista" da Igreja
naquele período, superando aquela concepção
que colocava o saber científico como único
saber autêntico. A ação pastoral de Canudos, a
partir de 1986, foi acompanhada da concepção
herdada de Paulo Freire (1979), na qual o
"conhecimento se processa através das relações
dialéticas:educandos-realidade. Era visível a
preocupação dos novos agentes em sintonizar-
se com realidade empírica da comunidade. Daí
a necessidade de uma convivência,
participação nas conversas, nas festas, nos
acontecimentos locais diversos. A Bíblia era o
centro da reflexão dos grupos. Relendo-a a
partir da ótica dos empobrecidos, comparando
13 Ereção canônica, nomeação e posse do vigário, registrado no
livro de Tombo da então Paróquia de Santo Antônio de Canudos.
14 Para Gramsci o “intelectual orgânico”, age como elemento integrador de um novo bloco histórico formado pelas classes subalternas que é chamada a suplantar a hegemonia burguesa, consolidando a unificação nacional italiana no interesse das massas trabalhadoras.
suas histórias com os fatos sócio-econômicos e
políticos da vida do sertanejo, surge deste livro
uma nova forma do agir religioso, a medida em
que fundamenta a utopia igualitária do povo
em todas as esferas de sua vida, inclusive na
Igreja. Para Josineide (1997), animadora dos
jovens e monitora de Educação Popular, os
momentos celebrativos foram muito
importantes no resgate da cultura sertaneja.
Ela diz:
Nos festejos a gente celebra dentro e fora da Igreja. Os mais novos e os velhos se juntam para dançar o Reisado e São Gonçalo, o pessoal se veste de boi, canta, toca a zabumba. A gente está recuperando nossa cultura.
Segundo o Padre Tiago (1997):
A receptividade ao trabalho das comunidades era bem mais intensa na população rural que urbana, onde existiam pequenos blocos de pessoas protegidas por algumas lideranças políticas segundo os moldes do coronelismo sertanejo. Esses blocos reagiam mais às mudanças e preferiam manter os privilégios que se faziam merecedores os seguidores deste ou daquele líder político.
O que se pode entender através do
depoimento do padre Tiago é que as mudanças
introduzidas pelas CEBs começavam a criar
uma força contestatória em relação à ordem
econômica, política e social ali existente. Daí a
rejeição dos dominantes locais e seus
apaziguados políticos. A descoberta da
consciência crítica e histórica por parte do
povo proporcionou em Canudos uma nova
prática pastoral. Martins (1984) afirma que
As CEBs invertem a prática religiosa tradicional ao refletir sobre a vida cotidiana à luz do Evangelho, ao examinar sua própria experiência diária, seus problemas diários, os reflexos dessa experiência e desses problemas na sua fé e na sua vida à luz da experiência evangélica.
134 Floriza Maria Sena Fernandes
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
Em nossas andanças, nas conversas
mantidas com os membros das CEBs e agentes
de pastoral, observamos quatro elementos
importantes na constituição desse projeto de
pastoral e nessa transformação da consciência.
Primeiro: baseados em conhecimentos
históricos e no processo de reflexão com a
população, os agentes pastorais, juntamente
com o povo, foram resgatando a história local.
Relacionando fatos do passado ao cotidiano,
entendiam ser este o processo formado de
elementos que davam consistência ao sujeito e
ao grupo, ao tempo em que o inseria em um
contexto mais amplo; o segundo elemento era
a Bíblia, lida e interpretada pelo grupo a partir
da realidade presente, como relatava Dona
Zefa; o terceiro elemento está ligado ao
analfabetismo. Para vencer esta dificuldade,
foi introduzida a experiência de Educação
Popular para alfabetização de adultos,
seguindo a metodologia proposta por Paulo
Freire. Vários monitores foram treinados para
adquirir um mínimo de capacitação e
embasamento dos elementos essenciais dessa
pedagogia. Essa experiência objetivava ajudar
aos adultos a valorizarem a própria cultura e a
adquirir uma nova consciência que os
tornassem agentes da própria história, ao
tempo que propiciou a muitos deles um
domínio elementar da leitura e da escrita.
Pretendia-se com a Educação Popular que
houvesse uma participação consciente das
pessoas no contexto social e político. D.
Etelvina (1997), 59 anos, membro da Educação
Popular numa comunidade rural, nos contava
com muitos gestos e alegria:
Sabe, minha filha, eu antes não sabia ler nem escrever. Hoje, além de aprender a ler e escrever alguma coisa, eu aprendi a pensar e pensando eu descobri que sabia
muita coisa, e mais eu agora sei que mentiram pra mim durante muito tempo.
A Experiência de Educação Popular
não só contribuiu para multiplicar e qualificar
as lideranças que já poderiam fazer os círculos
bíblicos, encontros e reuniões independentes
das religiosas, como também suscitou a
necessidade de buscar meios para garantir o
ensino da verdadeira história de Canudos nas
escolas gerenciadas pelo poder público. Foi
assim que munidos de abaixo-assinados e forte
presença no plenário da Câmara Municipal de
vereadores, conseguiram, na elaboração da Lei
Orgânica do Município, em 1988, que o
currículo escolar incorporasse o estudo da
história de Canudos, a defesa do Fundo de
Pasto e a preservação da fauna e da flora
característicos do sertão15. O quarto elemento
diz respeito à organização interna das
Comunidades e sua articulação com outras
CEBs em nível tanto local, quanto regional. As
CEBs, na área que compreende o município,
estavam distribuídas por comunidades rurais e
na cidade por grupos de ruas. Não tinham uma
coordenação ou diretoria, privilegiavam a
participação igualitária dos membros nas
decisões. Entretanto, existiam aqueles que
animavam a reunião, os que tocavam, os que
preparavam o local onde aconteceria o
encontro. Quando havia um retiro para
15 Lei Orgânica do Município é a Constituição Municipal
elaborada em 1988 pelas Câmaras de Vereadores em todos os municípios brasileiros. As conquistas às quais o texto se refere
encontram-se no Capítulo V nos respectivos artigos: 184 - o
sistema escolar, através das unidades escolares e do professorado afim à disciplina de história e OSPB, oferecerá aos educandos
condições para chegarem a uma compreensão objetiva do fato
histórico protagonizado por Antônio Conselheiro, bem como das causas reais que provocaram o dito fato e suas consequências no
que se refere à organização popular, resistência ativa e modelo
sócio-político-religioso do projeto Canudos. 185 - Por ser a Serra da Toca localizada nesta município, o habitat natural da arara
azul, espécie em extinção, o sistema de ensino local incluirá nos estudos sociais noções de ecologia e proteção da flora e fauna
nativa para que os educandos respeitem a natureza e valorizem a
harmonia entre o ser humano, a fauna e a flora.
135 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
formação ou planejamento, seja a nível
paroquial ou diocesano (regional), o grupo
escolhia quem iria representá-lo. As
Comunidades aos poucos foram se
“independentizando” da presença do padre ou
das religiosas, porque não era a hierarquia que
decidia e sim o conjunto. A relação de poder
era praticada de forma verticalizada, de baixo
para cima. Esta metodologia despertou uma
nova consciência dos membros que irrequietos
começaram a buscar soluções para as
dificuldades que o contexto social lhes
proporcionava: o uso e posse da terra (fundo
de pasto), o direito à semente e insumos para
plantação (colonos do DNOCS), a
comercialização dos produtos (pescadores e
colonos do DNOCS), o direito à água
(construção de cacimbas), o acesso aos serviços
sociais, entre outros, propiciou a gestação de
uma nova forma de atuar na realidade
concreta.
Aquele coletivo humano de Canudos,
antes muito voltado para satisfazer
necessidades imediatas da sobrevivência, foi se
abrindo após um período de convivência nas
CEBs, para outro tipo de organização e
assumindo um discurso mais relacionado a
direitos sociais, políticos e econômicos,
despertando para a estruturação de
movimentos sociais de cunho mais político.
Surgem então, a partir de 1987, várias formas
de organização popular. Iniciam por fundar o
Sindicato dos Trabalhadores Rurais e adotou-
se inclusive uma cartilha com o intuito de
estudar as bases, o significado de um sindicato
e o processo de fundação. Percebendo que os
fazendeiros da região, juntamente com pessoas
ligadas a burocracia do DNOCS tinham a
intenção de organizar um sindicato pelego
antes deles, então as lideranças se adiantaram
convidando o presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Heliópolis /BA,
também ligado às CEBs daquele município, e
fundaram, em 24 de janeiro deste mesmo ano,
o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Canudos16. Este atuaria na defesa dos direitos
dos trabalhadores rurais, na defesa da terra e
na luta pela reforma agrária.
Outra forma de organização gestada foi
a Associação de Pequenos Criadores para a
defesa da propriedade e uso coletivo da terra
através da experiência tradicional de Fundo de
Pasto que, para o sertanejo da região de
Canudos, é muito mais que garantir o
alimento. Trata-se de defender uma solução
regional, secularmente adotada para integrar
um segmento social ao sistema produtivo local,
em áreas menos férteis e impróprias para a
atividade agrícola. Seus associados
enfrentaram dois tipos de embates. Primeiro,
contra os fazendeiros e latifundiários que,
agraciados com as políticas
desenvolvimentistas agrediam os pequenos
criadores cercando áreas destinadas ao pasto,
limítrofes às terras adquiridas. Com o avanço
das cercas diminuíam-se as áreas de pastagens
livres, secularmente utilizadas pela população
pobre. Outra agressão foi a liberação do gado
nas pastagens abertas, consumindo parte do
alimento destinado ao pastoreio dos caprinos.
O segundo embate dos pequenos criadores
deu-se com grupos que aparecem na região
desenvolvendo atividades extrativas vegetais,
devastando ainda mais a caatinga. Rolim
(1987) apresenta alguns exemplos dessas
atividades:
A destruição da área verde decorre inclusive das atividades extrativas
16 Ata de fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Canudos.
136 Floriza Maria Sena Fernandes
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
vegetais – a exemplo do corte de madeira para lenha, carvão, ou utilização em cercados – e a extração da casca de angico, rica em tanino, com mercado assegurado para o beneficiamento do couro, uma das atividades derivadas da pecuária regional. (p.37)
Adelson (1997), membro da diretoria
da Associação de Pequenos Criadores da
Região, fala sobre a importância da Associação.
As Associações de Pequenos Criadores representam a defesa de um sistema produtivo histórico. Defende o coletivismo como forma de organização social, reivindicando a posse coletiva da terra através da reforma agrária, solução que tem recebido a resistência de órgãos governamentais para a sua implantação. Hoje, são várias associações aqui em Canudos e já estamos integrados numa organização a nível regional. Tudo começou com trabalhos pequenos de Comunidades de Base e agora estamos organizados por grupos de trabalhadores (categorias específicas). Canudos deu um grande salto. Temos aqui não só os conflitos, a briga na justiça e a derrubada de cerca. Com outros companheiros, estudamos formas de convivência com a seca, construção de cacimbas, os períodos de chuva, mais o porquê da chuva e da seca, o tipo de solo e vegetação. Enfim, unimos a prática à teoria. Vem muito gente boa nos ajudar, como a CPT (Comissão Pastoral da Terra), do IRPAA (Instituto Regional da Pequena Agricultura Apropriada) e PALMA (Palavra Movimento Ação). Eles nos ajudam na organização, fornecem material e assessoram encontros de estudos, representantes das comunidades participam dos estudos e repassam para os companheiros.
A fala desse pequeno criador de
caprinos suscita duas questões que estão sendo
discutidas neste texto. Primeiro, a importância
que ele dá às Comunidades Eclesiais de Base
no incentivo à criação de formas de
organização popular por categorias específicas,
fato comum nas paróquias onde existem CEBs.
A segunda questão que ele levanta é a
necessidade que eles sentiam de unir o saber
popular e o saber científico. Teoria e prática.
Ele percebeu que embora o sistema produtivo
utilizado se constituísse em uma experiência
secular, a prática carecia de aportes teóricos.
Os técnicos que fazem parte do IRPAA17
ajudaram tanto no que diz respeito à
articulação das comunidades quanto
contribuíram para a compreensão científica
dos fenômenos naturais, proporcionando aos
criadores o conhecimento e utilização de novas
técnicas. E nesse contexto cabe, talvez, uma
questão levantada por Oliveira (1990):
O saber prático é sem dúvida, o mais importante, mas não é suficiente para elaboração de projetos em escala macro social. A contribuição do saber teórico trazido pelo técnico ou assessor é também indispensável quando a ação não se limita ao pequeno âmbito local, ou ao campo social que se conhece por familiaridade.
Enfim, um aspecto importante de
cunho sociológico, neste tipo de sistema
produtivo conhecido como fundo de pasto, é a
identidade coletiva do grupo. A proximidade
de seus membros que propicia um alto grau de
solidariedade e de organização comunitária e a
consciência de que para alcançar objetivos
comuns devem manter e assegurar suas bases
societárias.
No Açude de Cocorobó muitas famílias
vivem da pesca e, incentivados também pela
ação pastoral, fundaram em 1993, no povoado
do Barrentão, pertencente ao município de
Canudos, a Colônia de Pescadores, com a
finalidade de organizar a comercialização do
peixe e do camarão, e ao mesmo tempo, lutar
contra a poluição aquática, a pesca predatória e
17 Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada
organização não governamental sediada em Juazeiro – Bahia
137 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
tudo que prejudica o meio ambiente, como
narra seu estatuto no artigo terceiro, item “c”
aprovado na mesma data18.
Outro grupo que, a partir daquele
momento, descobre a importância de se
organizar como categoria específica, são as
mulheres, donas de casa, sertanejas que
trabalham a terra, cuidam da criação, educam
os filhos e realizam afazeres domésticos. Essas
mulheres perceberam na organização uma
possibilidade de sair do estado de miséria em
que viviam. Preocupadas com a manutenção
do movimento e com a situação econômica de
algumas companheiras, elas organizaram
teares artesanais para a produção de redes e
tapetes, confecção de roupas e ainda
participavam junto às CEB’s das lutas por elas
levantadas.
Scherer-Warren (1993) dá relevância
ao trabalho pastoral das CEBs no
desenvolvimento da organização das mulheres
enquanto categorias específicas:
No trabalho pastoral, a perspectiva da mulher aparece como parte da luta pela igualdade de direitos humanos, eliminando diferenças de gênero. As CEBs estimularam a criação de organizações específicas de mulheres, como clubes de mães, movimentos de mulheres camponesas.(p.44)
Em Canudos, foi criado também, desta
vez não como Associação, um grupo para
desenvolver a medicina alternativa com o
objetivo de realizar pesquisa de plantas
medicinais, produção de remédios, pomadas e
elaboração de cartilhas que recolhiam a
sabedoria popular com relação ao valor
18Art. 3.- A Colônia de Pescadores tem como finalidade:.. c) lutra pelo meio ambiente equilibrado, contra todas as formas de
poluição, especialmente a poluição aquática, contra a pesca
predatória e contra tudo que prejudica o Meio Ambiente. Estatuto da Colônia de Pescadores do Barentão fundada em
1993.
curativo das plantas. Dona Júlia (1997), mais
conhecida por Duru, nos relata sua
experiência:
Tudo começou com a ajuda da irmã Verônica, ela já era enfermeira, eu também desde nova que mexia com saúde, fazia meus chás, e receitava pra o povo. Agora, depois das CEBs, comecei a fazer cursos em Salvador, Tucano e Paulo Afonso. Criamos a Pastoral da Saúde e começamos a produzir remédios caseiros, xaropes, pomadas, essência de ervas, Temos uma farmácia, vendemos pouco porque o pessoal só quer de graça. A Associação de Mulheres Pobres vende muito. Sai mais remédios pra gripe e dores. Fizemos umas cartilhas junto com o pessoas de Uauá e agora muita gente já sabe fazer os remédios. Também compramos um tensiômetro e o pessoal vem em casa pra gente medir a pressão e ensinamos com cursos ao pessoal fazer comida aproveitando as cascas de verduras e frutas. É bom pra saúde.
4 CONCLUSAO: PONTO ALTO DA
FUSÃO ENTRE CATOLICISMO
POPULAR E CEBs – AS ROMARIAS
Enfim, o ponto alto da Ação Pastoral
das CEB’s em Canudos são as romarias, talvez
o símbolo mais importante da mística do
sertanejo canudense, que deu uma visibilidade
maior à união entre fé e política e as lutas pela
posse da terra, pois extrapolaram o espaço
local atingindo outros municípios e estados,
instituições nacionais e internacionais,
envolvendo grupos e concepções distintas a
respeito de Canudos, enquanto resgatavam
aspectos próprios da religiosidade sertaneja: a
peregrinação e o simbólico. As Romarias de
Canudos uniam e unem elementos próprios do
catolicismo popular, como a peregrinação feita
com orações e cantos, inserindo reflexões em
torno de temas relacionados aos
acontecimentos sociais, políticos e a luta pela
138 Floriza Maria Sena Fernandes
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
conquista da terra. Fazem uma conexão entre
fé e a ação pela justiça e libertação dos
oprimidos, rompendo aquela bipolaridade
existente no catolicismo tradicional entre
mística cristã e práxis política. Articulam a fé
com várias formas de resistências
desenvolvidas no sertão. Procuram, portanto,
recuperar a experiência mística e resgatar
símbolos que refletem a espiritualidade do
sertanejo.
Embora o pensamento que permeia o
catolicismo popular seja uma reprodução
terrena da ordem celeste, legitimando o
sistema de dominação coronelístico, houve
momentos que este catolicismo inspirou
movimentos sociais de protesto contra a
opressão econômica e social, como é o caso das
experiências de Canudos, Contestado,
Caldeirão, entre outros. Esta visão religiosa
por eles engendradas, parecem ter sido
experiências históricas em que as CEB’s de
Canudos se basearam para organizar os seus
trabalhos. Tentaram na ação pastoral uma
complementaridade com o catolicismo
popular, valorizando a devoção a Santo
Antônio, às procissões e outras manifestações
religiosas típicas, bem como o incentivo e
apoio às lideranças leigas. De outro lado, as
CEBs contribuíram com a religiosidade local
no sentido de não deixar o catolicismo popular
ali vivenciado intocado e, através de uma
metodologia reflexão-ação, ajudaram os fiéis a
descobrirem tanto os elementos libertadores
quanto os elementos alienantes desse
catolicismo, procurando conservar e vitalizar
os primeiros, dando a esta expressão religiosa
uma nova concepção de mundo, de Deus e da
história.
REFERÊNCIAS
ALMANAQUE [DO] INSTITUTO POPULAR MEMORIAL HISTÓRICO DE CANUDOS. Paulo Afonso: Fonte Viva, 1993. BETTO, Frei. CEB’s: rumo à nova sociedade. São Paulo: Paulinas, 1983. BOFF, Clodovis. Agente de Pastoral e povo. Petrópolis: Vozes, 1984. _____________. Comunidade Eclesial – comunidade política. Petrópolis: Vozes, 1978. BOFF, Leonardo. Igreja, carisma e poder. Petrópolis: Vozes, 1982. _____________. Nova evangelização, perspectiva dos oprimidos. Fortaleza: Vozes, 1990. CANUDOS. Lei orgânica do Município de Canudos, 1990. Estado da Bahia. Revista Alfa Gráfica e Editora Ltda. Salvador – BA. CASTRO, Marcos. 64: Conflito Igreja X Estado. Petrópolis: Vozes, 1984. CPT: Pastoral é compromisso. Petrópolis: Vozes, 1983. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 5 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1914. DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Juazeiro. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1997. DEMO, Pedro. Pobreza política. Campinas: Autores Associados, 1996. DURHAM, Eunice Ribeiro. Movimentos Sociais: A construção da cidadania. Novos estudos CEBRAP, 1984. EPISCOPADO LATINO-AMERICANO DA IGREJA CATÓLICA. Documento de Puebla – Conclusões da II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano – Evangelização no presente e no futuro da América Latina. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1979. FERNANDES, Florestan. Comunidade e sociedade do Brasil. 2 ed. São Paulo: Nacional, 1975. FERNANDES, Luiz Gonzaga. Como se faz uma comunidade eclesial de base. Petrópolis: Vozes, 1984.
139 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
Gramsci. Antonio. Os Intelectuais e a
Organização da Cultura. Editora
Civilização Brasileira S.A. RJ. 1982. GREGORY, Afonso. Chances e desafios das comunidades eclesiais de base. Petrópolis: Vozes, 1979. GARCEZ, A. N. R. Fundo de Pasto: um projeto de vida sertanejo. Salvador: Interba/CAR, 1987. GARCEZ, A. N. R.; MACHADO, H. A. Leis de terra do Estado da Bahia. 2 ed. Salvador: SEAGRI/CDA/ DESAGRO/FBR, 2001. HONEAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1978. IANNI, Octávio. A ditadura do grande capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária. Petrópolis: Vozes, 1984. ____________________. Igreja e a questão agrária. São Paulo: Loyola, 1985. ____________________. Os camponeses e a política. Petrópolis: Vozes, 1983. MILAN, Santiago. Canudos: uma história de luta e resistência. Paulo Afonso: Fonte Viva, 1993. MINAYO, Maria Cecília. Pesquisa Social. Petrópolis: Vozes, 1994. MONIZ, Edmundo. A guerra social de Canudos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. MONTENEGRO, João Alfredo. Evolução do Catolicismo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1972. NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. São Paulo: Nacional, 1978. OLIVEIRA, Pedro Ribeiro. A Igreja dos Pobres e a atividade político – partidária. In: Cadernos Fé e Política. Petrópolis: RAMA – Artes Gráficas.1989.
_______ Religião e dominação de classe. Gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes,1985. ________ Ensinar aprendendo. In Revista Tempo e Presença, Rio de Janeiro, Ano 12, nº 249, abril.1990.CEDI. _______ Religião e dominação de classe. Petrópolis: Vozes,1985. OTTEN, Alexandre. Só Deus é grande. São Paulo: Loyola,1990. PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Alfa – Omega,1975. PINHO, Patrícia de Santana. Revisitando Canudos hoje no imaginário popular. In: Revista Canudos, Salvador, Ano I – nº 01, dez.1996. ROLIM, Angelina Nobre. Fundo de Pasto: um projeto de vida sertanejo. Salvador: INTERBA/ SEPLANTEC/CAR, 1987. SANCHES, Pierre. Catolicismo: modernidade e tradição. São Paulo: Loyola,1992. SANTANA, Judith Maria. Saúde em casa – Comunidades do sertão. Canudos – Uauá. Paulo Afonso. Fonte Viva,1992. SILVA, José Maria de Oliveira. Rever Canudos: historicidade e religiosidade popular ( 1940 – 1995 ). São Paulo,1996. Tese ( Doutorado em História Social ) – FFCLH, Universidade de São Paulo. VARGAS – LLOSA, Mario. A Guerra do Fim do Mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1981. VILLA, Marcos Antonio. Canudos, o povo da terra. São Paulo: Ática,1995. SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos Sociais - S. Paulo. Ed. Loyola, 1993. WANDERLEY. Luiz Eduardo. Movimento popular, CEBS e massa. In: SPINOSA, Benedito(org ) Encontro Intereclesial – texto base. São Paulo: Salesiano,1996.
CONTRIBUIÇÃO HISTÓRICA PARA A
REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA CATEGORIA
DOS VENDEDORES AMBULANTES PELA
POPULAÇÃO DE SALVADOR
Pablo Mateus dos Santos Jacinto
Carla Liane Nascimento dos Santos
Apoio:
*Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia
*Universidade do Estado da Bahia
Autores atuantes na Universidade do Estado da Bahia
RESUMO Desde o período colonial do Brasil havia sinais da constituição de uma profissão dependente das ruas. Como consequência do modelo escravista, esta nova categoria formou-se carregando alguns estigmas já pertencentes à classe escrava e incorporando novos outros, oriundos da sua participação secundária na economia. Transformações econômicas e políticas na sociedade criaram excedentes de mão de obra desqualificada para trabalhos formais, favorecendo assim a expansão do comércio ambulante. Apesar desta expansão, ocorre um movimento de repulsa social para com estes profissionais que são acusados pelo Estado e por outras camadas a enfraquecerem a malha social, devido ao seu serviço irregular e, por conseguinte, ilegal. Espera-se, neste artigo, ponderar estes fatores, demonstrando como se desenvolveu a categoria dos vendedores ambulantes e como esta se configura nos dias atuais. Palavras-chave: Comércio Ambulante. Desqualificação Social. Trabalho. ABSTRACT Since the Brazilian colonial period there are signs of the formation of a profession dependent on the streets. As a result of the slave model, this new category was formed carrying some stigmas belonging to the slaves and others, due to their low participation in the economy. Economic and political changes in society have created excess of manpower disqualified from formal work, favoring the expansion of street trading. Despite the expansion, there is a movement of social rejection to these professionals who are accused by the state and other social layers to weaken the social stability due to their irregular, and therefore illegal, service. It is expected in this article, considering these factors, showing how the category of street vendors was developed and how it is configured today. Keywords: Itinerant Trade. Social Disqualification. Labor.
141 Contribuição histórica para a representação social da categoria
dos vendedores ambulantes pela população de Salvador
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é pormenorizar
histórica e sociologicamente a categoria dos
vendedores ambulantes – com o enfoque na
Bahia – expondo fatos econômicos e políticos
ocorridos neste percurso e que afetaram direta
ou indiretamente a realidade da mão de obra
livre neste país. Pretende-se com isto melhor
compreender esta classe na atualidade, que
cada vez mais agrega trabalhadores de diversas
áreas e que vive com o estigma da
desqualificação social por parte do governo e
população em geral.
Foi levantado – no acervo da Biblioteca
Pública do Estado da Bahia –um banco de
dados com reportagens sobre a categoria dos
vendedores ambulantes contidas nos principais
jornais da Bahia e que foram publicados em
um período que vai do ano de 1939 até o ano
de 2009. Estas reportagens contêm entrevistas
feitas com a população e que serão expostas a
fim de demonstrar a representação que os
populares sustentam a respeito dos vendedores
ambulantes e como esta representação foi
modificada – ou não – através do percurso
histórico registrado pela mídia.
Um apêndice do modelo escravista
Por volta do século XIX, a cidade de
Salvador tinha um caráter econômico baseado
na agricultura, sendo seu mercado pouco
proeminente. A atividade comercial existente
era regida por negros e mulatos, que se
encarregavam de carregar materiais pela
cidade e fazer outros serviços pesados da
estrutura mercantil.
Neste seio, o comércio de pescados já
demonstrava vestígios do que se tornaria, mais
tarde, a realidade do comércio ambulante. Os
produtos de pesca eram vendidos por
negros,escravos ou não, que deveriam
obedecer a regras específicas, aplicadas pela
administração pública, para a comercialização.
Ao término das vendas, caso o negro
comerciante não fosse alforriado, o lucro iria
aos senhores. Os comerciantes que eram livres,
por sua vez, constantemente tinham seus
produtos confiscados pelo fisco (representante
da lei nesta instância) que alegavam
irregularidades nos produtos. (IVO, 1975)
Nota-se, neste contexto, que não havia
muita distinção, no âmbito do trabalho, entre
os escravos e os trabalhadores livres que
exerciam funções semelhantes nas vias
urbanas. Homens livres e escravos ofereciam
igualmente sua força de trabalho, negociavam
contratos e eram remunerados da mesma
maneira. (MATTOSO, 2000)
Os trabalhadores das ruas comumente
reuniam-se em locais específicos, esquinas,
“cantos”, que eram peculiares e sugeriam uma
ideia de lugar, um pertencimento simbólico
àqueles trabalhadores. Estes “cantos” eram
delimitados pela polícia e abrigavam
ganhadores e ganhadeiras (pessoas que
trabalhavam nas ruas, seja como marceneiros,
engraxates, pedreiros, quituteiras,
carregadores) libertos, que lá se
disponibilizavam para exercer suas funções.
Frente a esta situação, o poder público
viu a necessidade de implantar algumas
medidas de controle e fiscalização. Então se
institui o tributo de dois mil réis como
necessário a ser pagoà Câmara Municipal por
cada ganhador que quisesse exercer suas
atividades. Além deste pagamento, era
necessária a aquisição de uma placa (no valor
de três mil réis) que deveria ser usada no
142 Pablo Mateus dos Santos Jacinto e Carla Liane Nascimento dos Santos
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
pescoço pelos trabalhadores durante o serviço.
Além destas exigências, os ganhadores que
fossem escravos libertos deveriam apresentar
fiadores que se responsabilizassem pelo seu
comportamento. Durães (2006) pontua que
em 1887 havia cerca de 1703 ganhadores
registrados, com a ressalva de que as mulheres
não eram registradas, logo o real número era
provavelmente bem maior.
Em certo marco, tais exigências
serviram de combustível para o
descontentamento dos trabalhadores, que em
1857 cruzaram os braços como forma de
contestar a administração pública. Era a
“Greve Negra” de 1857. Esta demonstração de
revolta antecipa fenômenos que ocorreriam
mais tarde quando, já no século XX, explodem
as confusões e contestações a cada tentativa do
governo de padronizar e/ou fiscalizar os
profissionais informais, como mostra uma
reportagem do Jornal A Tarde de 2004:
“Chegada de agentes da Sesp ao calçadão da Avenida Sete, no Centro, termina em revolta e pneu queimado. Mais uma vez, os ambulantes reagem à presença dos fiscais da Secretaria de Serviços Públicos, mais conhecidos como rapas, e desencadeiam uma manifestação no Centro de Salvador. Ontem, o alvo foram os que estavam instalados no calçadão que liga a Avenida Sete de Setembro à Praça do Relógio de São Pedro. Revoltados, eles interditaram a pista, nos dois sentidos, queimando pneus e papelões. [...] A maioria dos manifestantes, segundo depoimentos de pessoas que assistiram ao ato, era formada por mulheres e crianças. Todos vítimas das ações da fiscalização, tidas como truculentas.” (A TARDE, 19 de Junho de 2004)
Este descontentamento mostrava-se
por parte dos trabalhadores ambulantes para
com o poder político, que no século XIX era
composto essencialmente por uma elite
branca. Ivo (2008) argumenta que o modelo
oligárquico rural que perdurava naquela época
associava uma ideia de demérito aos não
proprietários. Assim, os “homens-livres” que
não tinham posses eram supostamente
incapazes para o trabalho, sendo considerados
vadios, ociosos, vagabundos. Outro fator que
fortalecia este conceito é a não aceitação por
parte dos homens livres (sejam eles negros
alforriados, mestiços ou imigrantes) às
mesmas condições de trabalho que eram
demandadas aos escravos.
Para Barbosa (2008), a falta de
mecanismos legais reguladores e de códigos
morais internalizados transformavam a ilusão
da liberdade, por parte da massa de
trabalhadores informais livres, em proposta de
sujeição absoluta. O vendedor ambulante não
estava associado à produção mercantil, sendo
considerado dispensável às bases econômicas.
Tal processo demonstra grande grau de
desqualificação social, que ilustra um paradoxo
do trabalho na economia colonial, onde o
escravo protagonizava a base da economia,
enquanto o trabalhador “livre” representava
um não agente econômico.
Diante destas intempéries, os
vendedores ambulantes precisavam se mostrar
criativos, de forma a conseguir desenvolver seu
sustento apesar do não reconhecimento da
sociedade, que os julgam à margem econômica,
política e moral, sendo muitas vezes associados
à criminalidade. Tal concepção pode ser
constatada neste trecho de uma reportagem do
Jornal A Tarde, no ano de 2004:
“„Perdemos segurança e clientes, caiu de uma média de 500 por dia para 300‟, conta o proprietário de uma farmácia que não quis se identificar por medo de represálias dos camelôs clandestinos. Segundo ele, a maioria dos clientes da farmácia são pessoas idosas que estão
143 Contribuição histórica para a representação social da categoria
dos vendedores ambulantes pela população de Salvador
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
deixando de entrar na loja, ou por escorregarem nas frutas que ficam esmagadas pelo chão, ou por causa dos empurrões e pequenos furtos. „Se você quiser passar, vai ser assaltado‟, diz. „Eles colocam suas tendas na porta do estabelecimento e se recusam a sair argumentando que a rua é pública. É muito difícil a situação dos lojistas disputando espaço com pessoas agressivas que não têm nada a perder e se sentem os donos da rua. As barracas aumentam a cada dia e estão no meio da ladeira de forma totalmente desordenada‟, reclama outra proprietária de farmácia que também não quis se identificar.” (JORNAL A TARDE, 16 de Setembro de 2004)
Durante o século XIX, foram
frequentes as lutas por espaço, por parte dos
trabalhadores informais. Estes trabalhadores
ganhavam e perdiam cantos pela cidade de
Salvador. Quando não disputavam com a
administração pública, disputavam entre si por
um lugar nestes pontos, para que pudessem
expor seus produtos ou sua força de trabalho.
Vale ressaltar que os cantos se
caracterizam por diversos fatores, dentre eles,
o fácil acesso e a passagem constante de
pessoas. São em ambientes com grande fluxo
que os ambulantes irão se instalar,
conquistando assim maior visibilidade e
facilidade de comercialização. Nota-se, em
períodos mais recentes, que a administração
pública fez tentativas de estruturar áreas
específicas para os trabalhadores ambulantes.
Tentativas que foram frustradas, por estes
ambientes não atenderem aos requisitos de
público, que é essencial ao trabalho informal,
sendo localizados em pontos pouco
movimentados ou mal distribuídos.Esta
reportagem do Correio da Bahia ilustra uma
destas ocorrências:
“Ambulantes resistem a deixar áreas do centro. Os ambulantes estão
indignados com mais uma ação dos fiscais da Secretaria Municipal de Serviços Públicos (Sesp) que aconteceu esta manhã em frente ao Shopping Center Lapa e nas ruas Coqueiro da Piedade e Junqueira Aires, nos Barris. Desta vez, os „rapas‟, como são chamados os fiscais, entregaram notificações para que os ambulantes deixassem o local. [...] Os 20 ambulantes que ficam no local e os outros 20 da Junqueira Aires vendem desde água e sombrinhas, até acessórios para celular e óculos. A predileção por esses pontos se deve ao grande fluxo de pessoas que transitam pela área. [...] „Aqui a gente conhece o movimento, a clientela, já sabemos os horários bons e os ruins, já estou há três anos neste ponto‟, acrescentou Santana, que, por ser morador de Nazaré, ainda conta com a vantagem de não gastar com transporte para ir ao trabalho. „Vou a pé ou de bike‟, diz. O colega de ofício, José Alberto Barbosa, 27 anos, conta que o ponto oferecido pela Sesp [...] não agradou aos ambulantes, porque as vendas cairão. „Não passa ninguém ali. Como podemos aceitar uma proposta como essa?‟” (CORREIO DA BAHIA, 05 de Maio de 2006)
A Abolição da Escravatura (1888) e a
Proclamação da República (1889) foram
marcos institucionais na sociedade brasileira.
Estes fatos, aliados à crise da agricultura vivida
naquele momento, contribuíram para que, no
final do século XIX, o contingente de
trabalhadores livres crescesse no país.
A expansão do comércio informal na
nova realidade econômica
Alguns anos mais tarde, na década de
1930, governo de Vargas, houve um aumento
na regulamentação do trabalho, com a
Consolidação das Leis Trabalhistas.
Entretanto, grande parte da população ficou de
fora desta regulamentação; eram profissionais
do pequeno comércio que trabalhavam no
meio urbano em atividades de “subocupação”
144 Pablo Mateus dos Santos Jacinto e Carla Liane Nascimento dos Santos
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
(que veio a se tornar o setor informal da
economia). (IVO, 2008)
A nova realidade econômica,
protagonizada pela revolução industrial,
favoreceu que atividades que não se
encaixassem nos moldes capitalistas vigentes
perdessem força, a exemplo do artesanato – já
que, nesta lógica, o sujeito não é mais detentor
do seu meio de produção e torna-se reificado,
tendo como moeda de troca apenas a si
próprio, seu tempo, sua força de trabalho. Este
contingente que não se adequava ao novo
modelo gerou um excedente de trabalhadores
que não eram absorvidos pelo sistema e
acabavam se inserindo na modalidade informal
de emprego.
Em se tratando do comércio
ambulante em Salvador, na década de 1930,
esta atividade já era corriqueira no espaço
urbano. No ano de 1939, a imprensa local
registrou uma proposta do governo de
regulamentação da atividade. A reportagem a
seguir retrata esta constatação:
“os vendedores de generos alimentícios ficarão obrigados a rigoroso asseio e ao uso de uniforme – Bôa saúde e conducta exemplar – Nenhum menor de 14 annos – Todos deverão saber ler e escrever – Oito horas de trabalho. O ministro do Trabalho – encontra em mãos o ante - projecto de regulamentações da profissão de vendedor ambulante. Ambulantes para os efeitos da futura lei – todos s indivíduos que, por conta própria ou de terceiros, exercerem o commercio ambulante nos logradouros públicos, realizando com isto actos que por sua natureza fiquem perfeitamente caracterizados como de commercio. Ninguém poderá ser licenciado para exercer a profissão de ambulante sem que apresente carteira profissional do Ministério do Trabalho e attestado de idoneidade passado pela autoridade policial competente. „Todos os vendedores ambulantes de sorvetes, refrescos, dôces e outros artigos alimentícios
promptos para immediata ingestão, ou que não tiverem de sofrer fervura, quando no exercício do seu commercio serão obrigados a apresentar carteira profissional, uma vez, pelo menos, em cada anno, ao medico sanitário federal, estadual ou municipal, da localidade em que trabalhar, o qual gratuitamente lançará nella o „Visto‟,depois de lhe examinar a saúde, providenciando o afastamento do serviço, no caso de doença contagiosa ou infecciosa.‟„Os menores de 12 a 14 annos poderão exercer o commercio ambulante, segundo o ante-projecto, desde que o façam por conta de estabelecimentos em que trabalhem pessôas de uma só família sob a autoridade de paes, avós ou irmão mais velho‟. Prohibido o trabalho noturno de menores de 18 annos.” (JORNAL O IMPARCIAL, 21 de julho de 1939)
É possível perceber que a
administração pública sazonalmente tenta
regulamentar a situação dos vendedores
ambulantes. Crachás, uniformes, licitações,
todas essas ferramentas são aplicadas na busca
para conter a expansão desenfreada da prática
de venda ambulante. Sejam as antigas placas
de três mil réisque os negros usavam no
pescoço aos recentes coletes verdes, a recentes
coletes verdes e documentos de cadastramento,
sempre há uma maneira de diferenciar os
trabalhadores contribuintes, que se tornam
aceitos pelo governo, dos trabalhadores
informais que não têm contrato com o
município. Esta cisão cria três classes de
vendedores: os lojistas, os ambulantes
registrados e uma última, os vendedores
ambulantes não registrados pela prefeitura,
que é malvista pelas outras duas, sendo alvo de
reclamações e demérito, por julgarem ser uma
classe que não tem o direito de estar exercendo
a profissão, já que não contribuem com os
tributos ao governo.
145 Contribuição histórica para a representação social da categoria
dos vendedores ambulantes pela população de Salvador
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
A matéria seguinte é do jornal Correio
da Bahia, da década de 1980, e demonstra de
forma clara o comentado anteriormente:
“Camelôs superlotam o calçadão do Relógio. „O Prefeito passou por aqui e disse que iria cadastrar todo mundo. Mas o que a gente vê é a invasão de pessoas não cadastradas e não é justo quem paga dividir o espaço com quem não paga. [...]‟ [...] Só nas imediações do Relógio São Pedro estão instalados mais de 100 camelôs, entre cadastrados e não cadastrados, o que motivou o envio de um ofício, por parte do presidente da Associação dos Lojistas da Avenida Sete ao prefeito. [...] De acordo com a colocação de que é necessário organizar para vender melhor, os camelôs da Avenida Sete se dividem quando o assunto é a infiltração de outros não registrados. Colocam que o excesso de vendedores tumultua a venda, mas por outro lado reconhecem que os que chegam estão na mesma situação em que estavam há algum tempo.” (CORREIO DA BAHIA, 07 de Outubro de 1987)
É importante ressaltar o caráter que o
comércio ambulante tem tomado,
historicamente, ultrapassando as questões
associadas à escravidão e reunindo os aspectos
da nova constituição econômica mundial, como
a expansão das atividades informais, e os
processos migratórios e de urbanização.
Entretanto nota-se que a
representação dos vendedores ambulantes por
parte da população nos períodos mais recentes
não se constitui de maneira muito diversa da
que era vigente no século XIX. Os jornais
demonstram que a figura do comerciante
informal ainda é associada à marginalidade e à
criminalidade, sendo considerados vândalos e
ameaçadores da ordem social, que seriam
dignos da repressão fiscal, como é descrito na
reportagem que segue:
“a praça Cairú – quartel general dos ambulantes. Vendedores de frutas, cigarros, bombons, bolachinhas de
goma, engraxates. Não faltam também, os malandros, alguns maconheiros, lanceiros, principalmente à noite. Proximidade dos meretrícios da Conceição, da Misericórdia e do Julião – sem contar com a própria praça – bem pertinho do Elevador Lacerda – é circunstância favorável para que êsses tipos marquem encontro naquela praça. Esta é mais dos ambulantes, dos malandros do que do público. O ponto de ônibus foi transformado em mercado. Mercado promíscuo e imundo. Transformado também em um grande albergue. Pela manhã, homens maltrapilhos, ainda dormindo as résteas de um sono miserável, sono de pedinte, de mendigo que não tem onde morar estão ali. Há outros homens que dormem dentro de caixotes vazios, trepados em cadeiras de engraxate ou deitados nos tabuleiros que, mais tarde, estarão exibindo ao público uvas, umbus ou cigarros. Adotam as pôses mais diversas, tôdas impróprias para um ambiente público. Camisas abertas mostrando o peito nu, calças abaixo da virilha deixando os pêlos à mostra. As cenas são presenciadas pelos transeuntes que já estão acostumados e “não dão muita bola” para os detalhes „exóticos‟ da praça Cairú. Os visitantes talvez sintam o impacto de tanta vergonheira. Os turistas que vêm de outras cidades brasileiras, ou de outras partes do mundo, estão nêsse caso. Instalaram-se na porta do Elevador Lacerda, impedem o livre acesso dos passageiros ao elevador. Se chove os vendedores de guarda-chuvas, tentam “empurrar” a mercadoria a um e a outro passante. Com o correr das horas o número de camelôs cresce, a gritaria aumenta e os tôlos são enganados. Sim, porque camelô raramente vende mais barato que o comerciante da loja. Quem salta, ou que vai pegar ônibus, tem que andar pelo meio da rua porque a mulher que vende acarajé e peixe frito não lhe dá passagem; da mesma maneira age o vendedor de cigarros, os vendedores de bombons, de laranja, de uvas, de umbú, os engraxates. Êstes já foram retirados uma vez da praçaCairú pela Fiscalização Municipal, que exige cadeiras padronizadas, de metal, pintadas etc. Agora não. As cadeiras são feitas de caixotes, feitas „a facão‟ como se diz na gíria. São imundas, medonhas, talvez únicas no mundo. A fumaça do azeite ardido da mulher que frita peixe faz arder os olhos e a
146 Pablo Mateus dos Santos Jacinto e Carla Liane Nascimento dos Santos
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
gente tem que andar com cuidado para não se esburrachar no chão por conta de uma casca de umbú.” (JORNAL A TARDE, 05 de abril de 1968)
Outro fator importante a ser avaliado
acerca deste aspecto é que ainda quando não
ligados diretamente à criminalidade, através
das entrevistas concedidas aos jornais pela
população e até pelos próprios camelôs, a
classe dos vendedores ambulantes torna-se –
na óptica destas entidades – parte de um
estigma de “criminosos em potencial”. Os
trechos de reportagem seguintes confirmam
esta afirmação:
“a questão dos ambulantes tem dois lados. „Eles estão lutando para sobreviver numa cidade onde não tem emprego para todos, e é melhor do que estarem roubando, mas, por outro lado, eles desorganizam demais a cidade, enchem de sujeira.‟” (JORNAL A TARDE, 16 de Junho de 2005)
“„Somos excluídos de tudo. Não temos como sobreviver e estamos cada vez mais sendo empurrados para a marginalidade. Só queremos ganhar a vida honestamente‟, diz a ambulante.” (JORNAL A TARDE, 03 de Junho de 2004)
“De acordo com a colocação de que é necessário organizar para vender melhor, os camelôs da Avenida Sete se dividem quando o assunto é a infiltração de outros não registrados. Colocam que o excesso de vendedores tumultua a venda, mas por outro lado reconhecem que os que chegam estão na mesma situação em que estavamhá algum tempo. „As pessoas se infiltram aqui com fome‟ Conta Francisco Santana, camelô desde os 12 anos de idade, „e montando a banca aqui é menos um a roubar‟.” (CORREIO DA BAHIA, 07 de Outubro de 1987)
Os trechos citados explicitam que,
embora haja um movimento de integração dos
vendedores ambulantes à realidade econômica
e social, ainda restam vestígios da carga de
negatividade associada a esta categoria durante
sua constituição histórica. A sociedade
demonstra compreender o comerciante
informal como executor da sua profissão ao
invés de estar roubando, por colocar estas duas
possibilidades como as alternativas acessíveis
aos membros desta categoria.
Apesar da evolução produtiva e da
implantação do projeto de substituição de
importações, a Bahia permaneceu, no período
entre 1940 e 1960, marcada pelo crescimento
de atividades relacionadas à economia urbana,
na qual se insere o comércio, inclusive o
ambulante. Neste período houve uma
decadência da agroindústria açucareira e
fumageira, o que criou um excedente de mão
de obra. Paralelamente, a região metropolitana
de Salvador passava por um processo de
industrialização, principalmente pela atividade
do refino do petróleo promovida pela
Petrobrás, no polo petroquímico de Camaçari.
Esta transição de modelo
agroexportador para industrial ocasionou uma
reestruturação do mercado de trabalho Baiano.
Entretanto houve pouca mudança no padrão
econômico que imperava, que continuou sendo
o comércio de mercadorias aliado ao setor de
serviços. Esta predominância é oriunda da
incapacidade da indústria em absorver a mão
de obra disponível e da decadência da
agricultura na região, que gerou sobra de
trabalhadores, os quais muitos migraram para
as áreas urbanas. O comércio informal foi a
válvula de escape para estas pessoas que
vinham em busca de sobrevivência nas cidades
e não encontravam um emprego
regulamentado. Logo estes trabalhadores
foram vistos como problema, associados ao
caos urbano e que deveriam sofrer
interferência do Estado, como sugere a
reportagem a seguir:
147 Contribuição histórica para a representação social da categoria
dos vendedores ambulantes pela população de Salvador
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
“Cursos e treinamentos, fiscalização e
orientação. Nada disso tem surtido o
efeito esperado em relação ao
inusitado crescimento de vendedores
e ambulantes ilegais nas principais
vias e nos pontos turísticos de
Salvador. O fato, que além de
incomodar turistas, prejudica aqueles
que estão regularizados e acabam
perdendo clientes para aqueles que
burlam a fiscalização.” (CORREIO DA
BAHIA, 14 de Outubro de 2004)
Mais uma vez o cenário de
desqualificação social se destaca, no qual os
vendedores ambulantes protagonizam
descontentamentos a turistas, vendedores
legalizados, Estado e população em geral.
Em contrapartida à situação de
descaso historicamente vivida pelos
vendedores ambulantes, a sua prática não tem
mostrado sinais preocupantes de
enfraquecimento, pois o comércio informal a
cada dia se expande mais, por abrigar tanto os
trabalhadores que não têm qualificação para
executar os serviços do mercado formal quanto
para os trabalhadores que por alguma razão
tenham deixado um emprego regularizado.
Estas peculiaridades podem ser vistas pelo
trabalhador como vantajosas, causando a falsa
impressão de liberdade proporcionada pelo
serviço informal, quando, na verdade, há toda
uma questão de exploração e vulnerabilidade
que fica camuflada no meio dos atrativos.
A estrutura criada pelo pequeno
comércio nutre o sistema capitalista de forma
complementar, pois atinge classes econômicas
que, no geral, não são alvo principal do grande
mercado (CARVALHO; SOUZA, 1978). Assim,
o comércio ambulante favorece a dinâmica do
capital, pois introduz as classes mais pobres
como ativas no sistema econômico.
Constata-se então que há pelo menos
duas maneiras de se analisar o comércio
ambulante. Se por um lado é o responsável por
absorver a mão de obra que não se qualifica
para ser inserida no sistema formal de
empregos, por outro lado é palco de
desvalorização social, ausência de direitos e de
proteção, instabilidade de renda e
vulnerabilidade física e econômica.
A configuração do comércio ambulante
é dinâmica e se adéqua a padrões típicos do
comércio formal. O mercado global influencia
no que é comercializado nas ruas; um exemplo
disto é a grande comercialização de produtos
tecnológicos, que hoje abrange tanto as lojas de
tecnologia quanto as barracas de camelôs nas
passarelas, pontos e esquinas. Ademais, o
comércio informal atual registra características
que são típicas do modelo formal ao passo que
as barracas têm aparência de lojas, com
vitrines, banners, algumas têm funcionários
com seus turnos de trabalho e outras possuem
até máquina para cartão de crédito.
Segundo a SECRETARIA DA
INDÚSTRIA E COMÉRCIO (1983) o comércio
ambulante é um conjunto de atividades
exercidas por indivíduos que se deslocam com
suas mercadorias, vendendo de casa em casa,
nas praias, terminais de transporte, escolas,
locais de trabalho e em locais de concentração
eventual, além daqueles que operam de forma
fixa, com barracas armadas em áreas livres, em
pontos regulares concentrados em zonas
comerciais da cidade e em outras áreas livres
onde ocorre um fluxo regular e intenso de
pessoas. Este tipo de comércio mostra-se
heterogêneo tanto pelas diversas formas – já
expostas neste artigo – de adentramento nesta
prática, quanto pela diversa gama de atividades
que são exercidas neste meio. Esta
148 Pablo Mateus dos Santos Jacinto e Carla Liane Nascimento dos Santos
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
configuração favorece uma fragmentação da
categoria, colocando-a numa posição de tripla
pressão: a pressão da atividade informal, que
aprisiona o sujeito num regime de trabalho
obrigatório, apesar dos seus pontos negativos;
a pressão da administração pública que, com
seu trabalho fiscalizador, dificulta o regime de
trabalho de quem vive do comércio informal; e
a pressão causada pela falta de seguridade
social, queaprisiona o trabalhador deixando-o
com pouca perspectiva de mudança em relação
à situação econômica vivida. (DURÃES, 2002).
Druck e Oliveira (2008) retratam
estatisticamente como é configurada a classe
dos vendedores ambulantes em Salvador.
Segundo eles, a maioria é constituída por
homens negros, com baixa escolaridade, que
são chefes de família e residem nos bairros
populares da cidade. O modo de vida urbano
vigente, aliado às altas taxas de desemprego e
falta de qualificação profissional são fatores
que justificam a condição. Estes autores
pontuam que, embora o trabalho informal seja
visto como uma solução paliativa à falta de um
serviço formal, ele obedece a padrões que
acabam prendendo o trabalhador a esta
prática.
Conclui-se que, neste contexto, não é
difícil perceber como os resquícios negativos
do modelo escravista ainda imperam na
categoria dos vendedores ambulantes, que
foram alvos de descaso social durante toda a
sua trajetória e que assim continuam sendo,
apesar das políticas públicas a eles
direcionadas e do contexto socioeconômico
vigente, que cria a ilusão de que estes
vendedores são parte importante da malha
social.
Pouco mudou em relação às condições
de trabalho dos ambulantes, pois estes –
apesar das promessas do governo que os
iludem como microempreendedores, ou
simplesmente vendedores autorizados – ainda
enfrentam as péssimas condições das ruas, o
perigo de assaltos, uma carga horária não
delimitada, inexistência de férias, remuneração
fixa, dentre outros direitos civis. Isto acrescido
ainda do modo em que a sociedade representa
esta categoria, associando-a à marginalidade
política e econômica, sendo assim ameaçadora
da homeostasia social.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Alexandre de Freitas. A Formação do Mercado de Trabalho no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Alameda Editorial, 2008. CARVALHO, Inaiá Maria M.; SOUZA, Guaraci Adeodato A. A Produção não-Capitalista no desenvolvimento Capitalista de Salvador. Salvador: PLANEJAMENTO, CPE, 6 ( 4): 425-55, out/dez.1978. Camelôs superlotam calçadão do relógio. Correio da Bahia, Salvador, 10 Out. 1987. Onda de boatos atrapalha trabalho da Sesp. _____, Salvador, 14 Out. 2004. Ambulantes resistem a deixar áreas do centro. _____, Salvador, 05 Mai. 2006. DRUCK, M. G.; OLIVEIRA, L. P. A condição “provisória permanente” dos trabalhadores informais: o caso dos trabalhadores de rua da cidade de Salvador. Revista VeraCidade. Salvador. Ano 3 - Nº 3 – Maio de 2008. DURÃES, B. J. R. Trabalhadores de Rua de Salvador: Precários nos cantos do século XIX para os encantos e desencantos do século XXI. São Paulo: Dissertação de Mestrado em Sociologia, Unicamp, 2006. _____. Trabalho Informal: Um Paralelo entre os Trabalhadores de Rua da cidade de Salvador no Séc XIX e no Séc.XXI. Caderno do CRH. Nº 37. Trabalho, Flexibilidade e Precarização. Salvador: UFBA, jul./dez. 2002.
149 Contribuição histórica para a representação social da categoria
dos vendedores ambulantes pela população de Salvador
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
IVO, Anete B. L. Pesca: Tradição e Dependência. (Dissertação de Mestrado Apresentada ao Mestrado em Ciências Sociais da UFBA). Salvador, UFBA, 1975. _____. Viver por um fio: pobreza e política social. São Paulo, Annablume, 2008. A praça dos ambulantes. Jornal A Tarde, Salvador, 05 Abr. 1968. Ambulante decide enfrentar o rapa. _____, Salvador, 03 Jun. 2004. Rapa volta a assustar no Centro. _____, Salvador, 19 Jun. 2004. Os camelôs estão soltos nas ruas. _____, Salvador, 16 Set. 2004. Ambulantes ocupam ruas do Itaigara. _____, Salvador, 16 Jun. 2005. Jornal O Imparcial, 21 Jul. 1939. MATTOSO, Kátia Maria Queiroz. Sociedade Escravista e Mercado de Trabalho: Salvador-Bahia, 1850-1868. Bahia Análise e Dados, nº10, v.1. Salvador: jun. 2000. Secretaria da Indústria e Comércio do Estado da Bahia. O gigante invisível: estudo sobre o mercado informal do trabalho na região metropolitana de Salvador. Salvador, 1983.
UMA ABORDAGEM DO RASTAFARISMO
NOS MOLDES DA PSICOLOGIA SOCIAL
Geórgia de Castro Machado Ferreira1
RESUMO Urdido nas favelas de Kingston, capital jamaicana, o rastafarismo consiste num movimento mileranista, messiânico e revivalista que defendia as seguintes concepções: HailléSelassié, imperador etíope, como Deus-vivo cuja missão seria redimir os rastas jamaicanos, conduzindo-os em retorno a terra prometida; a Etiópia como paraíso e a repatriação como condição necessária a liberdade. O discurso de resistência e afirmação étnico-politico, característico desse movimento, foi disseminado pelo reggae, ritmo musical cuja criação fora atribuída aos rastas jamaicanos. Sendo assim, o presente artigo tem como finalidade analisar esse movimento, a partir do discurso rasta veiculado nas letras de música do reggae, incluindo as composições do cantor Edson Gomes, tomando como referência os conceitos de ideologia, enraizamento, preconceito e humilhação social, componentes basilares da psicologia social. Para tanto, recorreu-se a autores como Chauí (1983), Bosi (1996), Zizek (1996), Crochík (2006; 2008) e Gonçalves Filho (2007), haja vista, trabalharem com tais conceitos em suas obras e principalmente, por trazer à baila, a perspectiva da psicologia social como uma ciência que visualiza o homem enquanto ser social e histórico dentro de um contexto que o influencia e por ele é influenciado. Palavras – chave: Ideologia. Rastafarismo. Reggae.Humilhação social.Preconceito. ABSTRACT: Hatched in the slums of Kingston, the Jamaican capital, the Rastafari was a movement millenarian, messianic and revivalist that preached following ideas: HailléSelassié, Emperor of Ethiopia, as God-alive, whose mission would be to redeem Jamaican Rastas then return to earth promised; the Ethiopia as a paradise and repatriation as a condition necessary freedom. The discourse of resistance and affirmation ethno- political characteristic of this movement was disseminated by reggae, musical rhythm whose creation was attributed to Jamaican Rastafarians. Therefore, this essay has for what aim to examine this movement, from the rasta speech conveyed in the lyrics of the reggae music, including compositions singer Edson Gomes, taking as reference the concepts of ideology, rooted, prejudice and social humiliation, components basic social psychology. For this purpose, we used the authors as Chauí (1983), Bosi (1996), Zizek (1996), Crochík (2006; 2008) e GonçalvesFilho (2007), given deal with those conceptions in his works and especially, for bringing to the fore the perspective of social psychology as a science that see man while social being and history whitin a context that influences him and for he is influenced. Key-words: Ideology. Rastafarimovement. Reggae. Social humiliation. Prejudice.
1 Polícia Militar da Bahia, georgia.castro@yahoo.com.br
151 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
INTRODUÇÃO
O propósito deste artigo foi analisar o
movimento político, religioso, mileranista e
social, conhecido como rastafarismo e de
forma sucinta, sua repercussão em Salvador,
tomando como referência as definições de
ideologia, enraizamento, humilhação social e
preconceito, conceitos basilares da psicologia
social.
Segundo Rabelo (2006), o rastafarismo
se configura num movimento cultural híbrido e
contestatório, oriundo da mesclagem de
elementos religiosos protestantes e afro-
caribenhos com tradições culturais do
continente africano, também ligado à figura do
pan-africanista Marcus Garvey, que pregou a
ideia de liberdade do povo negro disperso no
processo de escravidão, pelo retorno ao
continente africano e nas concepções
etiopianistas.
Sendo assim, pode-se entender o
movimento rastafari como
[...] um amplo conjunto de práticas e idéias que começaram a se esboçarem movimentos político-religiosos e, sobretudo, étnicos na Jamaica desde o século XIX. [...] relacionados com a luta contra a opressão da estrutura escravista britânica, tinham vínculos com associações religiosas, organizações e igrejas do sul dos Estados Unidos e do Caribe que, a partir de uma interpretação étnica da Bíblia, começaram a fazer junto aos negros jamaicanos pregações nas quais o "paraíso" e a Terra Prometida se localizavam na Etiópia/África. Tal territorialização do mito bíblico permitiu uma ruptura radical com toda uma ideologia colonial e protestante que durante séculos justificou a escravidão apoiada em interpretações religiosas. (CUNHA, 1993, p.122).
Com a coroação de Haillé Selassié
(cujo primeiro nome era Ras Tafari), na
Etiópia, os afro-jamaicanos enxergaram nesse
episódio o cumprimento da profecia ora
atribuída a Garvey (a coroação de um rei
africano como símbolo da chegada da
libertação), intitulando-se rastafaris. Surgiu,
então, um movimento, um profeta e um
símbolo de luta: o rastafarianismo, Garvey e
Selassié, respectivamente.
Esse movimento surgiu na Jamaica na
década de 1933 (RABELO, 2006), num
momento de extrema tensão social, marcado
pelo avanço da pobreza, a luta pela
independência e a formação de favelas.
Caracterizando um determinado grupo, o
rastafarismofoi um movimento que, por meio
de uma leitura étnica e individualizada da
HolyPibe, versão bíblica trazida do Panamá
(PINHO, 1997), conduzira os afro-jamaicanos à
adoração incondicional a Jeovah (cuja
abreviação gera a palavra Jah) identificado na
figura de Selassié; à crença no “repatriamento
como uma condição necessária à redenção dos
afro-jamaicanos espalhados na diáspora, o
orgulho por ser negro e a Etiópia, como o
paraíso” (FERREIRA, 2007).
Além da adoção dos dreadlocks, como
uma marca dos seus adeptos, tal movimento se
constitui num intercruzamento das concepções
do Etiopianismo; Pan-Africanismo;
Garveyísmo; bem como algumas influências
revivalistas e hindus (RABELO, ibidem), ou
seja, esse conjunto de tradições como matrizes
imagéticas e discursivas, evidenciando o
caráter híbrido e rizomático do movimento.
Trata-se da construção de um sistema
simbólico próprio interpretado como uma
identidade diásporica caribenha, atravessado
pela emoção do contexto e pela linguagem.
Tais idéias passaram a ser
disseminadas por rituais promovidos pelos
rastas jamaicanos nas comunidades, e
principalmente, pode-se afirmar que o reggae,
de certo modo, “foi o responsável pela
152 Geórgia de Castro Machado Ferreira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
internacionalização do rastafarismo e, mais,
ajudou nas estratégias de negociação e maior
aceitação da sociedade envolvente jamaicana,
embora os rastas ainda sejam discriminados
nesse local” (FERREIRA, 2007, p. 34).
Urdido nas favelas de Kingston, capital
Jamaicana, o reggae e o rastafarismo estão
relacionados ao cenário sócio-político desse
país, marcado pelo desemprego, brigas
políticas, levante de trabalhadores, pelo
preconceito ao qual eram submetidos os rastas
jamaicanos devido a sua estética tanto quanto
pelo consumo de ganja. A conjunção desses
fatores contribuiu vertiginosamente para o
aumento dos confrontos entre esses sujeitos
históricos e a polícia.
A criação do reggae é atribuída aos
rastas jamaicanos, embora não exista nenhuma
comprovação para esta afirmação (RABELO,
2006), uma vez que ele é tido como uma
música profana do dia a dia, pois a verdadeira
música rastafari é o nyabhingi. Porém, o
reggae pode ser entendido
[...] como conseqüência de toda uma evolução rítmica e musical, desde as tradições negro-africanas, passando pelo mento, pelo rock-steady, rhythmand blues, além das influências marcantes do rastafarianismo. Desde o seu início, o reggae foi considerado música dos becos, porque reflete nas suas letras, os anseios das populações de baixa renda. (SILVA, 1995, p. 51)
Resumindo, o encontro do
rocksteadycom o rastafarianismo, faz brotar a
reggae music, termo este que apareceu pela
primeira vez, em 1968 quando o grupo
TootandMaytals lançaram a música Do The
Reggay. O significado desta palavra é
desconhecido. Do ponto de vista de Cardoso
(1996), o reggae
[...] de todas as manifestações jamaicanas é a mais explicitamente
revolucionária. É satírico e por vezes cruel, porém as letras também não hesitam em falar de amor, lealdade, esperança, ideais, justiça, novas coisas e novas formas. É essa afirmação de possibilidades revolucionárias que coloca o reggae numa categoria a parte (p. 17-18)
Esta categoria a parte seria exatamente
a política, pois o reggae possui um poder
elevado de comunicação, marcado pela sua
básica rítmica e pela mistura de variados
temas, ora de amor e paz, ora de pedidos de
justiça e igualdade. Por isso, Mota (2009) vai
afirmar que “esta tradição musical [...] foi um
dos principais meios de denúncia e combate
contra a exclusão social e a invisibilidade dos
negros que se mundializou reassumindo novas
leituras sonoras e referenciais de identidade”
(MOTA, 2009 a, p.1), caracterizando-se numa
identidade sócio-cultural.
Sendo a música uma fonte histórica, as
letras desse novo ritmo portavam conteúdos
sócio-políticos que denunciavam a situação de
marginalização, a qual a maioria da população
jamaicana, residente nas favelas e moradoras
das conhecidas “casas de lata”, se encontravam
subjugadas.
Percebe-se, portanto, que o reggae
encontrou um ambiente propício para
denunciar o descontentamento da população,
que desejava o aniquilamento da Babilônia,
cujo simbolismo nos remete a interpretação
bíblica, de um espaço onde ocorrem as coisas
mais iníquas. O reggae tem um cunho de
protesto, “[...] capaz de mobilizar a população
negra e mostrar a sua insatisfação perante a
realidade e o preconceito, tentando reverter
essa opressão mediante a valorização de suas
raízes. O reggae é um grito dos despossuídos,
desescolarizados e miseráveis” (FERREIRA,
2007, p.38).
Com a disseminação desse novo ritmo
na Jamaica, surgem cantores como Jacob
153 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Miller, Peter Tosh, BurningSpear, Gregory
Isaacse um dos principais divulgadores desse
estilo, o cantor Bob Marley. Este último
tornou-se o maior ícone da aspiração rastafari.
Suas canções revelavam o seu caráter
humanista e revolucionário, alertando a
população a cerca das falsas verdades impostas
pela concepção eurocêntrica. Era a não
aceitação da subalternidade como apenas um
processo fatalístico, mas de caráter também
histórico.
A chegada do reggae em Salvador:
mundo jamaicano e a indústria
fonográfica
Os registros históricos apontam que o
rastafarismo e o reggae não passaram
despercebidos na capital baiana, tendo
desencadeado um movimento de auto-
afirmação e influenciando, consequentemente,
os blocos afros e os movimentos de resistência
que passaram a aderir à estética,
comportamento e discurso rasta, como
referencial de uma busca identitária.
O reggae e as músicas advindas do
Caribe foram tocados a princípio, em
prostíbulos e nas ruas do Maciel, no bairro do
Pelourinho. Contudo, as primeiras
aglutinações da população soteropolitana em
torno do discurso rasta, se deram com esta
música tocada nos ensaios dos blocos afros,
bailes de periferia e reuniões (CUNHA, 1993).
Esse processo fez com que, a partir da
década de 1970, os afro-baianos adotassem
uma consciência que perpassava pela
valorização das raízes africanas. Toda essa
movimentação,
[...] se deve à explosão reggae, a notícia a cerca da independência de alguns países africanos e o sucesso de bandas comandadas por negros, que
desencadeia na cidade um movimento de auto-afirmaçãoidentitária que incluía a adoção de comportamentos, atitudes e da estética negra jamaicana. (FERREIRA, 2010, p. 6)
Faz-se necessário pontuar que, embora
não existam evidências de um forte processo
migratório entre a população baiana e a
jamaicana, “[...] o princípio da fronteira
imaginada. [...] onde estão relacionadas à
história, à geografia, representam um espaço
de imaginação, onde se evidencia a identidade
cultural.” (AGERKOP, 2009, p. 394), é a
explicação para o elo existente entre essas duas
localidades distantes geograficamente.
Viu-se que, a partir da
internacionalização do reggae, as ideias do
movimento aportaram em Salvador e
imediatamente foram apropriadas e traduzidas
culturalmente (FERREIRA, ibidem) pelos afro-
baianos. A influência desse movimento na
cidade foi, e ainda é, tão significativa, que
possibilitou duas experimentações: a Legião
Rastafari, tentativa de reviver o ideário e
tradições rastas e a música, o principal elo,
contribuindo como elemento de referência
para formação da negritude baiana
(GUERREIRO, 2000).
O reggae se sedimentou nos bairros
populares e periféricos de Salvador tão
expressivamente que os blocos afros como
Muzenza, autodenominado Muzenza do
Reggae, Ilê Aiyê e Olodum adotaram suas
batidas rítmicas, embora com algumas
adaptações locais, evidenciando-se o caráter
imprescindível da cultura reggae na criação
desses blocos, assim como, no estabelecimento
de uma estética de negritude (MOURA 2009).
O reggae, segundo Cunha (1993),
representará para a maioria dos afro-baianos, a
principal fonte de informação do ideário e
discurso rastafari, mesmo que, nem sempre
154 Geórgia de Castro Machado Ferreira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
sejam devidamente tematizadas nas canções.
Isso porque, as letras de reggae não se
restringiam “[...] a falar apenas sobre o messias
negro e a redenção, mas expunham os
sentimentos dos próprios rastas e
denunciavam o preconceito e as terríveis
condições a que eram subjugados.”
(FERREIRA, 2010, p.7). Por esta razão,
continua a ser o principal veículo difusor do
ideário defendido pelo movimento rastafari,
evidenciando uma forma de articulação dos
descendentes africanos que se utilizam de uma
cultura de massa e da tradição refletindo numa
apropriação para construção de uma alteridade
(PINHO, 1997).
Além disso, nesse cenário, a música
aparece como
[...] texto de resistência, protesto e afirmação no qual eram registradas as histórias, evocadas e forjadas ligações passadas e registrado o presente, alegrias e tristezas, anseios e revoltas, tradição e história constituem a temática básica de um discurso de afirmação identitária e de protesto que caracteriza as produções poéticas e musicais negras. (SOUZA, 2001, p. 202)
Percebe-se, portanto, que o movimento
rastafari encontra adeptos em Salvador.
Todavia, a “[...] absorção da cultura jamaicana
se dá pela via da música reggae, que passa a
ocupar um lugar de destaque no gosto musical
de grupos negros” (GUERREIRO, 2000, p. 95),
haja vista, essas canções trazerem em suas
letras não apenas poemas de amor, mas
também, um discurso de auto-afirmação com
uma vertente altamente combativa contra a
opressão racial e social, conquistou uma parte
da juventude baiana, que com este discurso
veio a se identificar.
E, foi justamente, por meio dessa
aproximação e tomada de consciência, que
surgiu no recôncavo baiano cantores de reggae,
cujo maior expoente é Edson Gomes, que
passaram a adotar os dreadlocks, a usar roupas
e adereços que nos remetem àquele país e a
cantar o Reggae Resistência, valorizando a
palavra do negro oprimido, narrando protesto
e lamento (FALCÓN, 2009).
Edson Gomes, na cidade do Salvador,
tornou-se um ícone pela cadência encontrada
em seu ritmo e o seu discurso, que em muito se
assemelha com os elementos encontrados no
imaginário rastafari. Sua poética passada por
meio de um “discurso ético e filosófico contra o
establishment [...]” (idem, ibidem, p. 16) é
marcada pela exposição dos problemas
enfrentados pela população afro-baiana como a
violência, a desigualdade social, o racismo e
outras mazelas, constituindo aparentemente, o
cunho ideológico do rastafarismo.
Getup, Stand up! O cunho ideológico do
movimento rastafari.
O termo ideologia pode ser entendido
como um conjunto de preposições elaborado
pela sociedade burguesa, com o objetivo de
transformar os interesses da classe dominante
num ideal coletivo, construindo assim, a sua
hegemonia, a exemplo da religião, filosofia,
moral. Desta forma, a “ideologia é, pois, um
instrumento de dominação de classe, como tal
sua origem é a existência da divisão da
sociedade em classes contraditórias e em luta”
(CHAUÍ, 1983, p.102), tendo como papel
específico impedir “que a dominação e a
exploração sejam percebidas em sua realidade”
(idem, ibidem, p.103), revelando-se como um
instrumento a serviço da dominação.
Corrobora com essa perspectiva, Mello
(2008), ao pontuar que
A ideologia é, de certa forma, a negação do sentido da experiência dos
155 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
homens diante do mundo e substitui a necessidade dos sujeitos de encontrar explicações e justificativas próprias, pois constrói um mundo de significações arbitrário que oferece, aos seus participantes, uma explicação total. (p. 32)
Trazendo essa concepção como
referencial analítico do movimento rastafari,
pondera-se a princípio que, pelas explicações
de Marilena Chauí, o rastafarismo não seria
uma forma ideológica. Observando-se que a
ideologia se inicia como “um conjunto
sistemático de idéias que pensadores de uma
classe em ascensão produzem para que esta
nova classe apareça como representante dos
interesses de toda a sociedade [...]” (CHAUÍ,
1983, p. 108); embora, o discurso rastafari seja
marcado por crenças e valores que se
concretizaram a partir da coroação de
HailléSelassié, ele não se tornou dominante na
Jamaica, ou seja, não se transformou no “[...]
ponto de vista e a opinião de todas as classes e
de toda a sociedade [...]” (idem, 2002, p. 174)
que a compunham.
Ao contrário, com receio de o
movimento avançar tanto no caráter religioso
como político, a elite jamaicana tentou
aniquilá-lo, através da prisão dos seus
principais divulgadores e numa tentativa
frustrada de incorporar os rastas, ora
oprimidos, à sociedade jamaicana.
Além disso, a “ideologia ocorre quando
as idéias e valores da classe emergente são
interiorizados pela consciência de todos os
membros não dominantes da sociedade [...]”
(CHAUÍ, 1983, p. 108), sedimentando-se no
senso comum, mesmo quando a classe
emergente assume o papel de dominante, com
o objetivo de ocultar a divisão de classe e as
diferenças sociais. Nesse sentido, os rastafaris
não formaram uma classe que ostentava o
poder na Jamaica. Esses sujeitos criaram um
movimento cujo foco foi o discurso religioso
embasado em ideais de resistência, militância e
afirmação étnico-política, na busca da
repatriação.
Por outro lado, o filósofo esloveno
SlavojZizek (1996), afirmou que a realidade,
em si, é ideológica, assim como, o ideológico
comporta em si o real; provocando uma
desmistificação no conceito marxista. Para
este autor, ideologia
[...] pode designar qualquer coisa, desde uma atitude contemplativa, que desconhece sua dependência em relação à realidade social, até um conjunto de crenças voltados para ação; desde o meio social até idéias falsas que legitimam o poder dominante. Ela pode surgir exatamente quando tentamos evitá-la e deixa de aparecer onde claramente se esperaria que existisse. (p.9)
Se a ideologia representa conceitos,
valores e símbolos que servem para justificar a
desigualdade social mascarando a realidade,
logo o rastafarismoé uma contra ideologia, já
que a desvela. Isso por que, os rastas
jamaicanos não apenas fomentaram uma visão
de mundo, a partir da criação de seus próprios
preceitos; mas prescreveram ações e
comportamentos cuja referência era
HailléSelassié, veiculadas por meio do reggae,
que os guiava no fazer um mundo, que só seria
construído através do repatriamento. Um
exemplo seria a posição das mãos durante as
orações (figura 1).
156 Geórgia de Castro Machado Ferreira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Figura 1: Postura de Selassié - posição das mãos durante as orações
Fonte: Rabelo, 2006, p. 406.
Não se sabe ao certo, a origem dessa
posição para as mãos, embora se reconheça o
simbolismo da lança, como instrumento de
caça, guerra e luta pela sobrevivência e do
coração, como a vontade e as emoções
humanas, nesse gesto. Contudo, Rabelo
(2006), exemplifica algumas inferências que
podem ser feitas, a exemplo de que
[...] pode se tratar de um ritual religioso etíope; ou tratar-se-ia de um hábito pessoal de HailléSelassié, como uma forma de posicionar elegantemente as mãos, ao invés de deixá-las soltas ao lado do corpo, cruzá-las nas costas ou sobre a pélvis como muitos homens fazem; bem como poderia tratar-se de ambas as explicações anteriores. (p. 405-406)
Deste modo, a crença incondicional na
divindade de Selassié, intitulado o leão
Conquistador da Tribo de Judah, levou a
adotar seu comportamento e discurso. Outro
exemplo seria a adaptação que Bob Marley,
cantor e ícone jamaicano, fez de um discurso
proferido por Selassié, perante a Liga das
Nações em 19362, transformando-o na canção
War. Nessa canção, o racismo e a
discriminação são apontados como fatores
capazes de originar a guerra, assim como a não
garantia dos direitos mais básicos e a limpeza
étnica. Essa letra, de natureza altamente
combativa, evidencia a presença das ações do
Leão de Judá no discurso rastafari. Eis a letra:
Até que a filosofia que considera uma raça superior e outra inferior, ser final e definitivamente, desacreditada e abandonada; terá guerra em todo lugar. Enquanto houver cidadãos de primeira classe e os de segunda classe em uma nação; enquanto a cor da pele de um homem influenciar tanto
2Ele promoveu este discurso perante a Liga das Nações porque o
seu país fora invandido por Mussolini. Foi um pedido de ajuda para seu povo que estava sendo massacrado por tal fascista.
quanto a cor dos seus olhos, eu terei que dizer guerra. Enquanto os direitos humanos mais básicos não forem garantidos para todos sem distinção de raça, há guerra. E até esse dia, o sonho de uma cidadania mundial, finalmente pacífica, continuará a ser uma mera ilusão a ser seguida e nunca atingida. Haverá guerra, rumores de guerra. Guerra no leste, guerra no oeste, guerra no norte, guerra no sul. Enquanto regimes ignóbeis e infelizes envolverem nossos irmãos, em condições subumanas, em Angola, Moçambique e na África do Sul não forem superados e destruídos, enquanto o fanatismo, os preconceitos, a malícia e os interesses desumanos não forem substituídos pela compreensão, tolerância e boa-vontade, enquanto todos os Africanos não se levantarem e falarem como seres livres, iguais aos olhos de todos os homens como são no Céu, até esse dia, o continente Africano não conhecerá a Paz. Nós, Africanos, iremos lutar, se necessário, e sabemos que iremos vencer, pois somos confiantes na vitória do bem sobre o mal.3
Marley, em suas canções, discute
temas como tolerância e respeito, evidenciando
a diferença do seu pensar (conjunto de idéias)
em relação aos da elite dominadora. Isso
significa, portanto, que o conceito de ideologia
é sinônimo de falseamento da realidade, ou
seja, uma acepção voltada para o em-si,
parafraseando Zizek “[...] destinadas a nos
convencer de sua “veracidade”, mas, na
verdade, servindo a algum inconfesso interesse
3Música original: Until the philosophy which hold one race
superior and another inferior is finally and permanently
discredited and abandoned Everywhere is war, me say war. That until there are no longer first class and second class citizens af
any nation Until the color of a man's skin is of no more
significance than the color of his eyes Me say war. That until the
basic human rights are equally guaranteed to all, without regard
to race, Dis a war. That until that day the dream of lasting peace, world citizenship rule of international morality will remain in
but a fleeting illusion to be pursued, but never attained Now
everywhere is war, war. And until the ignoble and unhappy regimes that hold our brothers in Angola, in Mozambique, South
Africa sub-human bondage have been toppled, utterly destroyed,
Well, everywhere is war, me say war. War in the east, war in the west war up north, war down south war, war, rumours of war.
And until that day, the African continent will not know peace,
we Africans will fight we find it necessary and we know we shall win as we are confident in the victory. Of good over evil,
good over evil, good over evil. Good over evil, good over evil,
good ever evil. Disponível no DVD – One Love the Bob Marley all-star tribute.
157 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
particular de poder [...]” (ZIZEK, 1996, p. 15).
Mas, representa também, a relação imaginária
do indivíduo com suas condições reais de
existência, a realidade que se mostra falha e
incompleta, a exemplo dos rastas jamaicanos,
que por meio de uma leitura sintomal do real,
tentaram desaprender a cultura da elite local,
para adotar outra visão de mundo, que será
discutida abaixo: a repatriação como uma
confissão de desenraizamento.
“[...] Eu era inquilino das prisões e
liderava as rebeliões. Agora estou
retornando para casa do meu pai. Na
casa do meu pai, lá tudo é amor sem
restrição de cor” (Edson Gomes)
Partindo do pensamento de Simone
Weil, de acordo a sistematização de Bosi
(1996), este tópico se inicia trazendo a
conceituação de enraizamento, mais um tema
de relevância para os estudos em psicologia
social. De acordo com esta autora, este termo,
pode assim, ser definido:
O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. [...] Um ser humano tem raiz por sua participação real, ativa e natural na exigência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural, ou seja, ocasionada automaticamente pelo lugar, nascimento, profissão, meio. Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber a quase totalidade de sua vida normal, intelectual, espiritual, por intermédio dos meios dos quais faz parte naturalmente. (p.411)
Dessa feita, o enraizamento abrange
laços culturais como relações sociais, pois o
homem enraizado participa de grupos que
conserva a herança de seu passado, e que
buscam transmitir tais referenciais pela
oralidade, ensinamentos dos mais velhos ou
por meio de bens materiais, a exemplo dos
objetos memoriais.
Todavia, quando os negros africanos
chegaram à ilha jamaicana, forçosamente uma
vez que, arrancados do seu território formando
uma diáspora, todas as suas referências
ficaram no território de origem. Do seu
passado, apenas conservava as imagens e
lembranças, mesmo que fosse a de um passado
em ruínas. Essa travessia pode ser entendida
como um desenraizamento, processo este
provocado em razão de conquistas militares e
processos migratórios forçados.
Sobre este aspecto, Bosi ainda
esclarece que para Weil “o desenraizamento é,
evidentemente, a mais perigosa doença das
sociedades humanas, porque se multiplica a si
própria” (BOSI, 1996, p. 415) e a destruição do
passado que este processo acarreta como um
dos maiores crimes contra o homem. Por esta
razão, uma alternativa aos afro-jamaicanos foi
recorrer ao pensamento etiopianista e ao
panafricanismo, como um elo com o passado,
que não exprime um caráter de retrocesso ou
uma idolatria desprovida de reflexão, mas que
os impulsionou na criação de um sistema
simbólico, como reação às circunstâncias que
vivenciavam.
A conjunção das idéiasetiopianistas,
pan-africanistas e garveyístas, fez do
rastafarismo um movimento híbrido e
rizomático, evidente nas canções de reggae,
como as de Marley, nas quais o conceito de
repatriação se torna evidente aproximando
assim, o movimento do conceito de des
(enraizamento). Na canção África Unite,
Marley canta
África, une-te, porque estamos saindo da Babilôniae estamos indo para terra de nosso pai.Como seria bom e agradável, diante de Deus e do
158 Geórgia de Castro Machado Ferreira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
homem, ver a unificação de todos os africanos. [...]Nós somos as crianças do Rastaman, nós somos as crianças do homem mais elevado, portanto, África, une-te, porque nossas crianças querem vir para casa. [...], porque temos que sair da Babilônia e nós estamos trilhando a terra do nosso pai. [...].4
Por certo, essa poesia musical solicita
aos afro-jamaicanos e demais afro-
descendentes a se unirem em prol e benefício
do continente africano, pois somente desta
forma e pela luta é que esses sujeitos
espalhados pela diáspora presenciarão a queda
do sistema opressor, a Babilônia, e
concretizariam o desejo de repatriamento. A
pregação de uma união pan-africanista
representa os ecos do pensamento garveyísta
no discurso rastafari. Outra canção de Marley
em que aparece o ideal de repatriação é
RastaMan Chant, onde ele cantou “Eu ouço as
palavras que o Rastaman diz: Babilônia, seu
trono vai cair! Eu digo: vá para casa, vá para
Sião. Numa bela manhã, quando o trabalho
acabar; o homem irá para casa”. 5
A letra Exodus, mais uma canção de
Marley, é outro exemplo que aponta a terrível
passagem pela diáspora numa similaridade
com a jornada de Moisés e o povo hebreu,
assim como reflete, a saída desta terra
perversa, entendida por eles como a Babilônia,
ou seja, a Jamaica seria o inferno para os
rastafaris. Eis a canção:
4Música original: Africa, Unite, 'Cause we're moving right out
of Babylon and we're going to our father's land. How good and how pleasant it would be before GOD and man, yeah o see the
unification of all Africans, yeah As it's been said already let it be
done, yeah we are the children of the Rastaman, we are the children of the Higher Man Africa, unite 'cause the children
wanna come home. [...] 'cause we're moving right out of Babylon
And we're grooving to our father's land. […]Africa, Unite. Disponível em:<http://vagalume.uol.com.br/bob-marley/>.
Acessoem: 14 de abr. de 2012. 5Letra original: I hear the words of the Rastaman say: Babylon, your throne gone down. I say fly away home to Zion. One bright
morning when my work is over man will flay away home.
Disponível em: < http://vagalume.uol.com.br/bob-marley/>. Acesso em: 10 de jan. de 2012.
[...] Êxodo, [...]! Movimento do povo de Jah! Abra seus olhos e olhe dentro de você mesmo: Você está satisfeito (com a vida que você está vivendo)? Sabemos onde estamos indo, uh! Nós sabemos de onde viemos. Nós estamos deixando a Babilônia, nós estamos indo para a terra do Nosso Pai.[...]6
Verifica-se, dessa maneira, por meio
das letras das canções acima citadas, que o
desejo de repatriação evidencia o quão
desenraizados sentiam-se os rastas
jamaicanos, uma “[...] espécie de solidão vivida
nas grandes metrópoles, onde a massa de
indivíduos não se reconhecem como habitante
do mundo que está entre os homens, e assim,
não tem a experiência do senso comum
compartilhada [...]” (MELLO, 2008, p.33).
A similaridade com a história da
migração judaica e o processo transferencial
freudiano que envolve duas instâncias – o
passado e o presente -, que os fez enxergarem
na personalidade de HailléSelassié, o messias
cuja missão era conduzi-los à Etiópia;
denuncia que lhes faltava o sentimento de
pertença à sociedade jamaicana da época bem
como uma tentativa de negar a cultura local, e
não ser cooptado por ela, mesmo que, talvez, se
recai em sonhos apocalípticos, parafraseando
Weil.
Soma-se a isto, o fatos dos rastas
jamaicanos terem deslocado todas as suas
emoções, pulsões, sentimentos, defesas,
expectativas e sonhos, fosse de liberdade,
justiça e dias melhores que se encontravam
mascarados no inconsciente coletivo ao profeta
e líderes do ideário rastafari. Traduz-se-ia
numa espécie de transferência idealizada, em
6Letra original: Exodus, […]! Movement of Jah people! Open
your eyes and look within: Are you satisfied (with the life you're
living)? We know where we're going, uh! We know where we're from. We're leaving Babylon, We're going to our Father land.
Disponívelem:< http://letras.terra.com.br/exodus/ >. Acessoem:
14 de jan.de 2012.
159 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
que tais personagens tornam-se objetos de
veneração, que pelo efeito perverso de um
respeito exagerado, leva os seus fiéis
seguidores a crenças irrealistas. E, diante da
não concretização de atitudes por parte desses
líderes, a exemplo do fiasco da repatriação,
acarreta grandes desilusões ou passagens
despercebidas, a exemplo da frase,
“We’llbeforeverloving Jah!” (significa - nós
sempre amaremos a Jah, e é o título de uma
música de Bob Marley).
Contudo, mas que uma quebra de
imagem, ou a negação de atitudes errôneas,
esse fenômeno deve ser entendido, também,
num conjunto de sentimentos que esses
sujeitos dirigiram a essas lideranças, que
embora não sejam justificáveis pelas suas
atitudes, mas estam pautadas em sua história,
marcada pelo estranhamento com relação ao
local onde se vive, como canta Edson Gomes ao
proferir “[...] Vivo na Babilônia, mas não sou
daqui/ Não dobro meus joelhos/ diante de
imagens,/ não sigo seus conselhos/ pois, meu
Deus é estrangeiro. [...]” (Edson Gomes,
Babylon Vampire, 2001).
A analogia à busca pela terra
prometida se faz marcante, principalmente a
partir das interpretações que refletem o
entendimento sobre viver em um mundo
branco com o prevalecimento de ideias
eurocêntricas. Além disso, prenuncia a luta de
homens negros visionários que iniciaram o
combate contra o preconceito e a
discriminação (questões a serem abordadas),
denunciando a oratória colonial, marcada por
inculcar nas populações colonizadas
estereótipos e fundamentos que definam a sua
falsa superioridade. E mais: creditando na
ressonância do seu discurso, os rastas
tentavam conscientizar as massas.
Outra canção de Marley que confirma
o sofrimento provocado pelo desenraizamento
é Redemption Song, lançada no álbum
Uprising que significa rebelião, lançado em
1980 (RABELO, 2006). Redemption
Songsignifica Canção da redenção, e nela o
cantor narra a terrível experiência dos
africanos que fizeram a travessia do oceano
Atlântico e construíram a diáspora bem como
convoca o oprimido a sair do seu estado de
domínio mental, constituído pela inoculação de
mitos fomentados pela elite, a atingir um
estado de consciência transitivo-crítica
(FREIRE, 1999) para defender a verdade. Essa
canção diz:
Velhos piratas, sim, me roubaram, me venderam aos navios mercantes, minutos depois eles me tiraram do fosso sem fundo, mas minha mão foi feita forte. Pela mão do Todo Poderoso, nós avançamos nesta geração triunfantemente, tudo o que eu sempre tive foi canções de liberdade, você não vai me ajudar a cantar estas canções de liberdade? Porque o que sempre tive foram canções de redenção, canções de redenção. Emancipem suas mentes da escravidão mental, ninguém além de nós mesmos pode libertar sua mente, não tenha medo da energia atômica, porque nenhum deles pode parar o tempo. Até quando eles mataram nossos profetas? Enquanto ficamos de lado e olhamos. Temos que cumprir o Livro. Você não vai me ajudar a cantar estas canções de liberdade? Porque o que sempre tive foram canções de redenção, canções de redenção. Tudo o que eu sempre tive foram canções de redenção, essas canções de liberdade, canções de liberdade.7
7Letra original: Old pirates, yes, they rob I; Sold I to the merchant ships, Minutes after they took From the bottom less
pit. But my hand was made strong By the hand of the Almighty.
We forward in this generation Triumphantly. Won't you help to sing these songs of freedom. 'Cause all I ever have: Redemption
songs, Redemption songs. Emancipate yourselves from mental
slavery; None but ourselves can free our minds. Have no fear for atomic energy, 'Cause none of them can stop the time, How long
shall they kill our prophets?, While we stand aside and look ,
Oh! Some say it's just a part of it: We've got to fulfill the book. Won't you help to sing these songs of freedom? 'Cause all I ever
have: Redemption songs, Redemption songs, These songs of
freedom. (RABELO, 2006, p. 307-308)
160 Geórgia de Castro Machado Ferreira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
A partir da análise dessa canção de Bob
Marley percebeu-se, também, o discurso
emancipatório presente na contra ideologia
rastafari. Primeiramente, porque os rastas,
enquanto oprimidos identificaram o seu
opressor e partiram para uma posição de
engajamento “na luta organizada por sua
libertação” (FREIRE, 1987, p. 52), mesmo que
simbólica por meio de crenças e da música,
cujo ato consiste numa ação de amor e
esperança. Em segundo lugar, porque esses
sujeitos restritos à condição de marginalização,
resistiram à tentativa da sociedade jamaicana
de adequá-los e acomodá-los aos padrões
sociais da elite buscando incessatemente a
repatriação, conforme retratatado,
anteriormente, permanecendo com o seu
pensar, embora contraditório em alguns
momentos. Sendo que isso não pode tirar o
caráter emancipador da contra
ideologiarastafari, um complexo de idéias
híbridas e difusas entre si, que permitiu aos
rastas construírem uma identidade na
diáspora.
Por fim, como pensar diferente é
perigoso, principalmente para as elites, que
vêem seu poder ameaçado, os rastas sofreram
severas repressões tanto físicas quanto
psicológicas caracterizadas pelos rótulos de
marginais e drogados, caracterizando o
preconceito e a humilhação.
“Somos barrados no baile, eles dizem
que é só para gente bonita”: nuances do
preconceito e humilhação social
O preconceito deve ser entendido
como uma projeção (CROCHÍK, 2006), pois o
indivíduo enxerga um objeto a partir de suas
experiências, que constituem idéias pré-
concebidas, portanto rígidas, que os fazem
avistar a realidade apenas a partir de sua ótica.
Sendo assim, o termo preconceito é um juízo
preconcebido, manifestado geralmente numa
atitude discriminatória contra algum cidadão,
cultura ou lugar, considerados como diferentes
e que causem estranheza. Logo, caracterizando
uma idéia preconcebida, significa dizer que o
preconceito gira em torno de pré-conceitos.
A distinção chave entre os dois termos
é: recorrendo à teoria do conhecimento,
existem três elementos que o compõem o
saber, que são um sujeito, um objeto e uma
imagem. O indivíduo irá ler o objeto a partir
das idéias preconcebidas que possui, o que
compõe os seus pré-conceitos. Contudo, a
formação do saber é interrompida quando o
sujeito não devolve as características do objeto,
a partir da experimentação, fazendo com que a
imagem formada mantenha-se igual;
transformando o pré-conceito em preconceito.
Nesse sentido, o preconceito não é
inato, mas sim, introjetado através dos
processos de socialização, a exemplo da
convivência familiar e social e na transmissão
de culturas por meio do universo das gerações.
Isso nos leva a refletir que o preconceito é
embutido no indivíduo na primeira infância,
gerando predisposições para incorporar os
saberes transmitidos, sem reflexão,
confirmando assim, que “o preconceito não é
um fenômeno, sobretudo cognitivo; antes, ele é
contrário ao ato de conhecer: obsta o
conhecimento [...]” (CROCHÍK, 2008, p.78),
negando o desconhecido.
Uma pessoa com características que
predispõe ao preconceito se julga superior ao
objeto, grupo ou sujeitos, na tentativa de
ocultar a impotência que sente para lidar com
os sofrimentos oriundos da realidade,
fingindo-se “de morto frente ao objeto que gera
estranheza” (idem, 2006, p. 16), criando
161 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
especulações que giram em torno da rejeição
ou complacência benevolente, perante aos
sujeitos que apresentam determinadas
particularidades que rompem com a percepção
daquilo considerado comum ou normal.
Verifica-se, então, que no caso dos
rastas jamaicanos e rastas baianos uma das
reações foi à rejeição manifestada na tentativa
de eliminá-los por considerá-los sem nenhum
valor e, noutro momento, a partir da
legitimação desse movimento, a tentativa de
cooptar Bob Marley, com fins eleitoreiros,
como um espécie de benevolência. Entretanto,
essas reações apontam para uma cegueira
daquele que não reconhece que a reação
causada pelo outro possui respaldo nele
mesmo, uma vez que, “quanto maior a
debilidade de experimentar e de refletir, maior
a necessidade de nos defendermos daqueles
que nos causam estranheza. [...] porque o
estranho é demasiado familiar” (CROCHÍK,
2006, p. 17).
A sociedade envolvente os rotulava de
marginais, drogados, fanáticos religiosos,
maconheiros, sujos. A respeito do consumo de
ganja, eles justificavam a necessidade para fins
espirituais e para meditação. Trata-se de um
aspecto cultural, mas enfatiza-se que este
artigo não tem caráter apologético, bem como
não irá se ater a este costume. Entretanto, de
certo, alguns foram presos quando vendiam
ganja para sustentar a Pinnacle (um dos
acampamentos rastafaris). Mas, não se pode
esquecer que, em todo e em qualquer
movimento social, há seus elementos
corruptíveis, e isso não se configura numa
razão para se desconsiderar este importante
movimento da diáspora afro caribenha, que
tem na resistência sua marca.
Já em relação ao uso dos dreadlocks,
estes causavam ojeriza e assustavam os não
adeptos ao rastafarismo, em razão do seu
aspecto sujo e mal-cuidado. Certamente,
recorrendo às nuances etnográficas, se
descobrirá que esses gomos nos cabelos
possuem raízes históricas (ROSA, 2008). Eles
representam um patrimônio jamaicano
materializado em gomos nos cabelos,
concernentes com a Bíblia, a partir da
interpretação de um versículo do Velho
Testamento que prediz “que nenhuma lâmina
deverá tocar a cabeça do justo”, e com a
imagem do leão.
Figura 2: Dreadlocks Fonte: Disponível
em:<vivlefreak.blogspot.com>. Acesso em: 25 de jan. de 2012.
O simbolismo do leão, mais um
símbolo que orienta as crenças e práticas
cotidianas dos rastas jamaicanos, possui razões
variadas, como alertou Rabelo (2006). A
imagem do leão nas escrituras bíblicas é
notória, principalmente, a associação desse
animal a Tribo de Judá que originou a
linhagem de Davi e Salomão, estendendo-se a
Jesus e a Selassié, presentes no capítulo 49, do
livro gênesis, e no capítulo 5 do livro revelação.
É preciso relembrar, que um dos títulos de
Selassié era o Leão Conquistador da Tribo de
Judá, símbolo ostentado, também, na bandeira
do seu reino, a Etiópia, até a sua derrocada.
Soma-se a isto, o fato desse animal ser
uma espécie característica das savanas
africanas, continente sagrado para os rastas
jamaicanos. É sinônimo de força, agilidade,
agressividade e poder e a “juba desgrenhada
162 Geórgia de Castro Machado Ferreira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
dos leões se assemelha à cabeleira de locks que
a maioria dos rastafaris exibe” (RABELO,
ibidem, p. 390), conferindo-lhes o título de
guerreiros. O uso dos dreadlocks remetem a
tradições milenares, revelando a busca, pela
tradição e referência identitária, numa atitude
de afirmação étnica. Sendo assim, a adoção
dessa estética traduzia-se num elemento
contundente de africanidade cuja intenção era
a de chocar o gosto do cidadão comum
jamaicano. Em contrapartida, “a aparência dos
dreads, contudo, continua a ser um estereótipo
e uma fonte de estigma como uma aparência
suja, desleixada e anti-higiênica entre as
pessoas de fora do movimento rastafari [...]”
(RABELO, 2006, p. 492)
Por esta razão, complementa Rabelo
que
Não somente os dreads, mas os rastafaris em geral, costumavam e costumam ter bastante cuidado com a higiene do corpo. Seu sentido simbólico de impureza, como por exemplo, suas representações sobre os fluxos femininos, fazem com que tenham apreço pelo uso purificador da água. O cuidado com o cabelo e o corpo é feito com o uso de água e de ervas, pois eles rejeitam produtos químicos e industrializados como sabão e xampu. Os cachos não são penteados, mas deixados crescer livremente. Alguns enrolam, aplicam cera e lustram seus cachos, embora os cabelos afros não adquiram o brilho que possuem os cabelos lisos, permanecendo sua aparência fosca. É somente pelo preconceito de que o cabelo sem brilho é necessariamente um cabelo mal descuidado ou mal tratado que faz com que os locks sejam considerados como algo realmente horrível [...] (RABELO, 2006, p. 492)
Revela-se, portanto, que a música de
caráter étnico e combativo assim como o
discurso do rastafarianismo foi desconsiderada
por uma maioria, predominando esses
atributos fixos como características, fundando
mais uma estereotipia. Os estereótipos são
criados pela cultura, com o intuito de fortalecer
o preconceito, que nada mais é do que uma
reação individual, fortalecendo e servindo de
justificativa para ele.
Na verdade, os estereótipos
configuram-se na principal estratégia do
discurso colonial (BHABHA, 1998), que se
constitui em um modo ambivalente de
conhecimento e poder. Segundo este autor,
como o estereótipo rejeita as diferenças
reduzindo o outro a um conjunto limitado de
características, confluindo com o pensamento
de Crochík (2006), conseqüentemente, rejeita
alteridade e nega as diferenças existentes no
processo de construção da identidade, e com
isso, desconsidera a sua necessidade assim
como a do hibridismo nessa construção;
pressupondo existir identidades puras e não
híbridas.
Dessa forma, é possível inferir que a
elite jamaicana e afro-baiana, discrimina tal
movimento, porque parte das considerações
presentes no discurso colonial e na sua ênfase
na desconsideração das singularidades nas
identidades dos grupos tidos como
subalternos, os apresentando como
degenerados. Esse falseamento tenta ocultar o
hibridismo, o dinamismo e o constante
processo de transformação da cultura e da
identidade, estratégia de sobrevivência de
caráter transnacional e tradutória, conforme
esclareceu Bhabha (1998). Por esta razão, faz-
se necessário buscar as referências históricas
para adoção de determinados
comportamentos.
Completando esse pensamento, Rosa
(2008), afirma que
oRastafarianismofoi estudado pela visibilidade que conferiu às tradições milenares africanas do Egito e Etiópia através das performances musicais jamaicanas do século XX, em que o reggae construído na diáspora fez
163 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
emergir sentimentos de orgulho negro elegendo fatos históricos para serem recontados sob a luz de ideais panafricanistas fortemente difundidos na América do Norte e Caribe. (ROSA, 2008, p. 10)
Isso vem comprovar que juízos
provisórios se transformam em preconceitos
(PATTO, 2008). Dessa forma, é interessante
perceber que, às vezes, o preconceito se
estabelece porque o sujeito atribui ao objeto
características que lhe são próprias. Sendo
assim, os atributos que constituem o
preconceito, não são imediatos, mas são frutos
da combinação de fatores ideológicos,
econômicos, psíquicos, religiosos entre outros,
com argumentos desprovidos de
experimentação e reflexão.
Corrobora, também, com esse
pensamento Crochík, ao afirmar que
O preconceito diz respeito a um mecanismo desenvolvido pelo indivíduo para poder se defender de ameaças imaginárias, e assim é um falseamento da realidade, que o individuo foi impedido de enxergar e que contém elementos que ele gostaria de ter para si, mas se vê obrigado a não ter; quanto maior o desejo de poder se identificar com a pessoa vítima do preconceito, mais esse tem de ser fortalecido. (CROCHÍK, 2006, p. 22)
E sendo um mecanismo,
Como esclarece Sartre, o preconceituoso sofre da nostalgia da impermeabilidade. Temendo a forma precária e transitória da verdade, resiste à razão e à experiência que lhe apontam contornos indefinidos da verdade, renega a dúvida e a hesitação e anseia pelo estado de pedra no qual se mantém impermeável. [...] recusa o diálogo e é surda aos bons argumentos, erguendo uma convicção que nada mais é do que o fruto da negação da experiência e da razão. [...] (SCHMIDT, 2008, p. 60)
É difícil apontar os geradores dos
preconceitos, mas podem-se elencar alguns
possíveis contribuidores para tal fenômeno,
como os sentimentos de medo e a intolerância
ao diferente, a ignorância, a educação
domesticada, que prepara os indivíduos para
se tornarem meros reprodutores e
mantenedores de uma sociedade gerenciada
pelas regras e lógica da indústria. Essas
atitudes evidenciam uma espécie de defesa
frente à angústia que o objeto alvo de
preconceito provoca na imaginação de quem
visualiza, sendo assim, deve ser entendido
como uma necessidade psíquica,
parafraseando Crochík.
Talvez se possa afirmar, ou conjeturar,
que o resultado do preconceito seria a
formação de estereótipos, discriminação e
principalmente o fenômeno da humilhação
social. Isso porque, se o preconceito pode ser
entendido como a expressão de atitudes hostis
contra minorias e produto das relações entre as
necessidades psíquicas e ideológicas, gera-se, a
partir dele uma humilhação, uma vez que “no
preconceito estou voltado para o outro como
para um estranho, mas não só: encontro-me na
contingência de dirigir-me a ele (ou poder a
qualquer instante fazê-lo) como alguém abaixo
e a meu serviço” (GONÇALVES FILHO, 2007,
p. 212).
A Canção “Barrados no baile” de Edson
Gomes evidencia bem os estereótipos e
estigmas atribuídos aos afro-baianos e rastas,
que culminariam numa espécie de
rebaixamento. Eis a canção:
Ando meu cansado (não desisto), por várias vezes barrados no baile (ainda insisto), acredito em tudo aquilo que faço e persisto em tudo aquilo que faço, acredito naquele que vem do espaço [...]. Ainda ontem no condominio que moro, uma senhora quando me avistou, apertou a bolsa, ela escondeu sua bolsa. Apertou a bolsa, a branca segurou logo a bolsa. São cenas da minha cidade, uma doença da sociadede. Cenas da minha cidade uma doença talvez incuravel, e você aí, comopassa? Você aí o que
164 Geórgia de Castro Machado Ferreira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
acha? Somos barrados no baile,todos barrados no baile eles dizem, que só é para gente bonita. [...] (Edson Gomes, Barrados no Baile, 2005)
As letras do cachoeirano Edson Gomes
são simples em suas rimas, e de fácil
entendimento, atingindo facilmente as massas,
a exemplo da letra acima, na qual ele denuncia
o racismo, a discriminação e o preconceito pela
estética rastafari e pela cor da pele,
precisamente ao afirmar “uma senhora me
avistou e escondeu sua bolsa”, permanecendo o
estigma de que todo afro-descendente e afro-
rasta seriam ladrões. Além disso, a sua
vociferação, ainda aparece contundente, ao
apontar esses sentimentos como “uma doença
da sociedade incurável”, capaz de humilhar
esses sujeitos.
O termo humilhação deriva da palavra
abaixar, consistindo numa “ação pela qual
alguém põe um outro como inferior,
abordando-o soberbamente” (GONÇALVES
FILHO, 2007, p. 188). Nesse sentido,
retomando a música acima, esses sujeitos
sofrem por não serem considerados dignos
para adentrar em determinados locais, devido
à sua condição social, status, raça e aparência,
visível nas expressões “ando cansado, por
várias vezes barrados no baile/ eles dizem que
só é para gente bonita”, traduzindo-se numa
negação ao gozo de espaços, um dos
sentimentos que caracteriza tal fenômeno.
Em virtude disso, recorrendo
novamente a Gonçalves Filho, se percebe que
Os espaços e caminhos públicos, na sociedade de classes, são imantados pelo poder de segregar, pelo poder de sempre atualizar a desigualdade. [...] o humilhado não pode evitar “despencar em sua realidade”, arrastado para perto de seu pai ou sua mãe, seu irmão ou seus amigos, todos excluídos da praça onde a presença dos pobres não pode contar, a não ser a serviço dos que despendem dinheiro e ordens. O sabor da alegria vai logo
amargar, misturado ao fel da desigualdade, ao sentimento de que a cidade é fechada para os humildes. (GONÇALVES FILHO, 2007, p. 200)
Somam-se a isto as denominações
pejorativas em que são apelidados, a exemplo
de “ladrões” e “drogados”. Embora, as
elucubrações aqui apresentadas não sejam de
caráter fantasioso, reconhecendo-se a presença
nessa comunidade de indivíduos, cuja índole,
princípios e atitudes variam de acordo a
postura adotada por cada um; o que se percebe
é a interiorização desses estigmas, como se
fosse ao todo verdadeiros e, portanto
banalizados. É importante frisar que esses
elementos pejorativos
[...] São gestos ou frases dos outros que penetram e não abandonam o corpo ou alma do rebaixado. O adulto e o idoso, já antes o jovem ou a criança, vão como que diminuir, vão guardar a estranha e perturbadora lembrança de quem a eles se dirigiu como quem se tenha dirigido a um inferior. São lembranças que vão desarrumar a percepção e a fantasia, a memória, a linguagem, o sono e o sonho. [...]. (GONÇALVES FILHO, 2007, p. 196)
Isso nos mostra que os estigmas
impelidos à categoria são mormente criados e
inseridos de forma tão profunda e incisiva por
um longo período de tempo, que se torna até
difícil “hidrolisar” tal figura. Contudo,
percebeu-se que tais temas abordados nos
discursos dos rastas, são feitos com alegria e
um sorriso na face; evidenciando a felicidade
guerreira, parafraseando o professor
Raimundo Sodré, que consiste numa
característica da população afro, que
independente do seu sofrimento, continua a
exaurir suas forças na luta diária, sem perder a
esperança, a fé e a alegria.
Outro sofrimento provocado pela
humilhação social é a invisibilidade, a qual foi
combatida pelos adeptos ao rastafarismo; pois
165 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
por meio do reggae, os rastas jamaicanos
disseminaram para o mundo as principais
ideias do movimento, e estas, foram traduzidas
culturalmente pelos rastas baianos,
considerando seu contexto social e histórico,
verificando-se assim, esboços de reação
principalmente pelo grito, ação impulsiva,
discurso e ações sóbrias, por meio da música.
Por exemplo, Bob Marley na melodia
intitulada Getup stand up cantava:
Levante, resista: erga-se pelos seus direitos! Levante, resista: não desista da luta! [...]. A maioria das pessoas pensa que o grande Deus surgirá dos céus e levará tudo, E fazer todo mundo se sentir elevado. Mas se você sabe o quanto vale a vida, vai procurar o céu aqui na terra. E agora que você enxerga a luz, lute pelos seus direitos, Jah! Estamos cheios e cansados do seu jogo de ismos, morrer e ir pro céu em nome de Jesus Senhor. Nós sabemos e entendemos, o Deus poderoso é um homem vivo. Você pode enganar algumas pessoas às vezes, mas não pode enganar todo mundo, o tempo todo. Então agora que você enxerga a luz (o que você vai fazer?)Vamos lutar por nossos direitos!8
A canção de Marley é clara em seu
propósito: alertar a população acerca das falsas
verdades impostas pelo eurocentrismo, sendo
que uma delas na visão desses sujeitos é a
criação do céu como um mundo ultraterreno
que garantirá a salvação aos bons homens após
8Letra original: Get up, stand up: stand up for your rights! Get up, stand up: don't give up the fight! […]. Most people think,
Great God will come from the sky, Take away everything And
make everybody feel high. But if you know what life is worth, You will look for yours on earth: And now you see the light,
You stand up for your rights. Jah! Get up, stand up! (Jah, Jah!)
Stand up for your rights! (Oh-hoo!) Get up, stand up! (Get up, stand up!) Don't give up the fight! (Life is your right!). We sick
an' tired of-a your ism-skism game - Dyin' 'n' goin' to heaven in-
a Jesus' name, Lord. We know when we understand: Almighty God is a living man. You can fool some people sometimes, But
you can't fool all the people all the time. So now we see the light
(What you gonna do?), Wegonna stand up for our rights! (Yeah, yeah,) So you better: Get up, stand up! (In the morning!Git it
up!), Stand up for your rights! (Stand up for our rights!), Get up,
stand up! Don't give up the fight! (Don't give it up, don't give it. Disponível em:<http://vagalume.uol.com.br/bob-marley/>.
Acesso em: 14 de abr. de 2012.
a morte (VASQUEZ, 1997). O céu como paraíso
seria a única solução contra os males sociais.
Para eles, conforme citado anteriormente, o
paraíso fica na terra e em solo africano. Sendo
assim, os afro-jamaicanos renegam a cultura
do colonizador, reafirmando a necessidade de
se construir a própria história do negro e do
continente africano.
Soma-se a isto o clamor que Bob
Marley faz, ao chamar o povo oprimido a
erguer-se, adotando uma postura
revolucionária para conquistar seus direitos,
como a única alternativa de concretizar a “sua
vocação de ser mais, que não é um privilégio de
alguns, mas direito dos homens” (FREIRE,
1987, p.81), evidenciando a angústia provocada
pela dominação, outro sentimento oriundo da
humilhação social.
Portanto, de acordo com Cunha, essas
letras estimulam a
[...] busca por outros referenciais que não os divulgados pelo sistema, as partir de uma “outra história”,construída de forma a restabelecer vínculos míticos, históricos e políticos com a África / Etiópia, ao contrário da orientação eurocêntrica difundida pelo “opressor”. (CUNHA, 1993, p. 127)
Por outro lado, quando Marley canta
“estamos cheios e cansados do seu jogo de
ismos, morrer e ir pro céu em nome de Jesus
Senhor” não implica dizer que esses sujeitos
sociais estejam negando a divindade de Jesus
Cristo, ao contrário; a situam no passado. Isso
porque acreditavam que Jesus era negro e
tinha como missão salvar sua etnia. Logo,
Selassiê se tornou símbolo dessa nova epifania,
o paraíso esperado por eles, ao passo que a
terra africana governada por esse monarca se
tornar à nova Sião.
166 Geórgia de Castro Machado Ferreira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Na canção intitulada “O país é
culpado”, Edson Gomes apontará mais uma
tradução cultural referente ao rastafarismo:
Não existe nenhum lugar pra ir, só Jesus pode nos salvar! Somos senhores das favelas, somos senhores da pobreza, falta alimento em nossas mesas. Conclusão: o país é culpado! Quando o mestre então voltar, quando o mestre nos resgatar, enquanto não vem, somos senhores das calçadas, enquanto não vem, somos senhores das sinaleiras, enquanto não vem, superlotamos as penitenciárias. Conclusão: o país é culpado! Somos sobreviventes do tempo, somos filhos da santa esperança, somos passivos, resistentes, mergulhados em toda essa lama. A razão do nosso viver, meu Deus, é teu filho que vem nos salvar, enquanto não vem, somos os analfabetos, enquanto não vem, orgulhosos e discretos, enquanto não vem, grandessíssimos idiotas. Conclusão: o país é culpado. (Edson Gomes, O país é culpado, 2001)
A culpabilidade da situação de pobreza
e marginalização é atribuída ao país
(identificado com o Sistema ou o Status quo).
Por outro lado, a esperança referida na canção
deve ser compreendida como uma crítica. Isso
não significa que Edson Gomes desconsidere a
fé, ao contrário. Nessa canção, ele evidencia
que a fé em Deus é que dá forças ao homem
para resistir a toda espécie de sofrimento, pois
proporciona a esperança em dias melhores.
Porém, o que o cantor alerta é que a
esperança sem luta para atingir a libertação
conduz à passividade e à aceitação da situação
de subalternidade. Além disso, os sujeitos
oprimidos aparecem subentendidos, o que na
canção “Somos nós”, Edson Gomes tratará de
uma maneira dura os negros como esses
sujeitos:
Sim, somos nós que estamos nas calçadas. Sim, somos nós estamos nas prisões, nos alagados. Sim, somos nós os marginais. Sim, somos nós brutalizados, os favelados, dos porões,
do inferno, o inferno é aqui. Sim, somos nós os sem diretos. Sim, somos nós os imperfeitos, somos os negros. Sim, somos nós filhos de Jah. Sim, somos nós os perseguidos, os habitantes dos porões do inferno, o inferno é aqui! (Edson Gomes, Somos nós, 1992)
Na poesia musical acima, Edson
Gomes evidencia as condições perversas a que
os negros são submetidos como agravante da
situação de marginalização social em que se
encontram. Trata-se de uma imagem negativa
forjada pela elite opressora, para manter seu
status quo cercado de regalias, e introjetada
nos afro-descendentes, para mantê-los na
situação de perseguição e condicionados a
situações subumanas como a vida miserável
nas favelas, confirmando assim, o fenômeno da
humilhação compreendido também como “o
rebaixamento que atinge alguém só depois de
haver atingido sua família ou raça [...] às vezes
uma nação ou povos inteiros” (GONÇALVES
FILHO, 2007, p. 187).
Deduz-se, portanto, a identificação dos
negros baianos com o reggae e que a sua
produção na cidade tornou-se um campo
propício para tematizar as questões
relacionadas ao preconceito, à humilhação e à
exaltação da negritude. A diversidade de ideias
presentes nas letras dessas canções sejam
aquelas produzidas no seu berço – a Jamaica
ou nas músicas de Gomes em Salvador possui
um marcante intercruzamento. Existe,
portanto, um elo de africanidade, evidenciado
na semelhança dos discursos exteriorizados
por meio do reggae, uma vez que o
rastafarismo em Salvador é uma tradução
cultural desse movimento urdido na Jamaica.
Considerações finais
Movimento urdido na Jamaica, o
rastafarismo pode ser entendido como um
167 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
movimento emancipador marcado por um
discurso de resistência e afirmação étnico-
política caracterizado pelas seguintes ideias: a
Etiópia como paraíso, HailléSelassié conhecido
como Deus Vivo capaz de reconduzir os rastas
jamaicanos a terra prometida, condição
essencial para libertação desses sujeitos
sociais.
Sendo a música o principal veículo
disseminador do rastafarismo foi o reggae,
estilo musical cuja criação fora atribuída aos
rastas jamaicanos; por esta razão, as letras
veiculadas nessas canções se tornaram um
instrumento essencial para elaboração desse
escrito, pois foram analisadas a partir de temas
e conceitos basilares da psicologia social, como
enraizamento, preconceito, humilhação social
e ideologia.
Verificou-se que o movimento
rastafari é uma contra ideologia de cunho
político, religioso, filosófico e étnico. Isso
porque rastafarismo é composto por conjunto
de idéias e valores orientadores da prática de
seus adeptos, a exemplo de sua estética e o
desejo da repatriação, com o objetivo de
construir uma identidade, marcadamente
híbrida e rizomática, na luta contra as práticas
e pensamentos pregados pelo discurso
colonial.
O conceito de repatriação, por sua vez,
revelou o sentimento de desenraizamento dos
afro-jamaicanos, outro conceito da psicologia
social o qual se recorreu como referencial
analítico. Em suma, a necessidade da
repatriação, concebida como a aspiração de
retornar ao continente africano,
especificamente a Etiópia, evidenciou a
sensação de não pertença dos afro-rastas à
sociedade envolvente, ficando nítido o quão
desenraizados sentiam-se.
Decerto, a elite local desprezava os
valores, as práticas, costumes e estética dos
intitulados rastafaris, a exemplo do consumo
de ganja e do uso dos dreadlocks; tornando
esses sujeitos sociais em alvos de preconceito e
discriminação, tanto na Jamaica quanto na
Bahia, recaindo-se nos aspectos da humilhação
social.
A humilhação social é política e
justaposta ao indivíduo ou grupo em razão da
diferença de classes, repassando por gerações o
sentimento de estar abaixo do outro. Desse
processo resultou a negação do gozo de
espaços, pois os rastas não podem adentrar em
determinados locais, a angústia de ser
dominado e a desigualdade, em termos da
retirada de direitos e possibilidades. Visíveis
socialmente, os afro-rastas jamaicanos e
baianos, o são; mas, como alvo de ojeriza,
repúdio, medo e marginalização.
Todavia, percebeu-se que contra os
processos de discriminação, preconceito
humilhação e desenraizamento, os rastafaris
empreenderam ações principalmente através
do discurso étnico e de caráter afirmativo,
veiculado por meio reggae, que aborda
inúmeras temáticas, ora de amor e paz assim
como clamores de justiça e conquista de
direitos, por esta razão, é reverenciada como
música de protesto e sinônimo de
conscientização.
Faz-se necessário se despir dos rótulos,
nesse caso aqueles atribuídos aos rastafaris.
Não é preciso se tornar um, nem tampouco
aceitar todas as suas doutrinas. Contudo, é
preciso empatia para tentar entendê-las e
enxergar a sua importância, pois vale lembrar
que cada cultura tem suas próprias
idiossincrasias, contradições, processos de
exclusão que, para bem ou mal, estabelecem
sentidos e identidades.
168 Geórgia de Castro Machado Ferreira
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Referências
AGERKOP, Yukio. Fronteiras e movimento cultural entre o Caribe e Salvador: o samba-reggae, o merengue e o reggae. Revista Brasileira do Caribe, Universidade de Brasília, vol. IX, nº 18, p. 389-400, 2009. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. Bob Marley.Legend: The best of Bob Marley and the Wailers. Tuff Gong/ GloboPolydor, Brasil, s/d, 1 CD (61 min.), estereo, 846.210-2. _________. One love the Bob Marley all-star tribute. DVD total/ Som Dolby digital, 1 DVD (145 min.), N2167. BOSI, Ecléa (org.). Simone Weil: A condição operária e outros estudos sobre a opressão. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 2ª ed. CARDOSO, Marcos Antônio. A magia do reggae. São Paulo: Martin Clarett, 1997. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia? São Paulo: Brasiliense, 1983. 12ª ed. ______. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2002. 12ª ed. CROCHÍK, José L.O conceito de preconceito.In: Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Casa do psicólogo, 2006, p.13 – 59. ______(org.). O conceito de preconceito e a perspectiva da teoria crítica. In: Perspectivas teóricas acerca do preconceito. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008, p. 69-101. CUNHA, Olívia Maria Gomes da.Fazendo a “coisa certa”: reggae, rastas e pentecostais em Salvador. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n. 23, ano 8, outubro de 1993, p. 120-155. FALCÓN, Maria Bárbara Vieira. O reggae de Cachoeira: produção musical em um porto Atlântico. 218 f. Dissertação (Mestrado em Estudos étnicos e africanos) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – CEAO, Universidade federal da Bahia, Salvador, 2009.
FERREIRA, Geórgia de Castro M. Uma leitura rizomática do movimento rastafari: elementos educativos e sujeitos críticos.80 f.,Monografia (Graduação em Pedagogia) – Departamento de Educação, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2007. ______.Guerrilheiros da Jamaica: uma abordagem psicológica do movimento rastafari. 71 f. Monografia (Curso de pós-graduação lato sensu especialização em psicologia e Ação Social) – Faculdade São Bento da Bahia, Salvador, 2011. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987. ______. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1999. GOMES, Edson.As + mais: Edson Gomes. Rio de Janeiro: Sony Music, s/d, 1 CD(77 min.) GONÇALVES FILHO, José Moura. Humilhação social: humilhação política. In: SOUZA, Beatriz de Paula (Org.). Orientação à queixa escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 187-221. GUERREIRO, Goli. A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador. São Paulo: editora 34, 2000. MELLO, Sylvia Leser de. A palavra, o preconceito e o pensamento: introdução ao problema do juízo e da consciência em Hannah Arendt. In: CROCHÍK, José L (org.). Perspectivas teóricas acerca do preconceito. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008, p. 27-46. MOURA, Milton. Notas sobre a presença da música caribenha em Salvador, Bahia. Revista Brasileira do Caribe. Universidade de Brasília, vol. IX, nº 18, p. 361-387,2009. MOTA, Fabrício. Identidades negras da música reggae da Bahia: produção fonográfica e contracultura sonora (80/90). EBECULT, 2009. PATTO, Maria H. S. Vidacotidiana e preconceito: notas a partir da antropologia marxista de Agnes Heller. In: CROCHÍK, José L (org). Perspectivas teóricas acerca do preconceito. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008, p. 9-26. PINHO, Osmundo de Araújo. “The songsfreedom”: notas etnográficas sobre a
169 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
cultura negra global e praticas contraculturais locais. In: SANSONE, Livio e SANTOS, Teles (orgs). Ritmos em trânsito: sócio-antropologia da música baiana. Salvador: Dynamis Editorial/Programa a Cor da Bahia/Projeto Samba, 1998. p. 181-200. RABELO, Danilo. Rastafari: identidade e hibridismo cultural na Jamaica, 1930 – 1981. 565 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, Brasília, 2006. ROSA, Maristene de Sousa. Repensando a história: visual dreadlocks. Anais do V Simpósio Internacional do Centro de Estudos do Caribe no Brasil. Salvador, 2008. SILVA, Carlos Benedito Rodrigues. Das terras da primavera as ilhas do amor: reggae, lazer e identidade cultural. São Luis: EDUFMA, 1995. SCHMIDT, Maria Luísa Sandoval. Tudo menos homem: retrato do preconceituoso segundo Jean-Paul Sartre. In: CROCHÍK, José L (org). Perspectivas teóricas acerca do preconceito. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008, p. 47-66. SOUZA, Florentina Silva. O Ilê Aiyê e o discurso de construção identitária na Bahia. In: Identidades e representações na cultura brasileira. João Pessoa: Idéia, 2001, p. 199 – 210 ZIZEK, S. O espectro da ideologia. In: ______. (Org.) Um mapa da ideologia. Tradução de Vera. Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 7-38.
CASAMENTO REALIZADO EM TERREIRO DE
CANDOMBLÉ
Joelma Boaventura da Silva Bomfim1 RESUMO O presente artigo discute o reconhecimento dos efeitos civis do casamento realizado em cerimônias de Umbanda e Candomblé como manifestação de cumprimento constitucional do respeito à crença. Alguns institutos serão tratados, tais como, casamento e religião, visando ao aprofundamento da temática. O desenvolvimento do tema permite a interface das áreas jurídica e antropológica. Palavras-chave: Casamento. Lei de Registros Públicos. Religião. Constituição Federal. Candomblé. Umbanda. ABSTRACT This article discusses the recognition of civil effects of marriage performed in Umbanda and Candomblé ceremonies as a manifestation of constitutional fulfillment of respect to belief. Some institutes will be processed, such as marriage and religion, aimed at deepening the subject. The development of the subject allows the interface between the legal and anthropological areas. Keywords: Marriage. Public Records Act. Religion. Federal Constitution. Candomblé. Umbanda.
1 Graduada em Direito. Especialista em Metodologia do Ensino, Pesquisa e Extensão. Advogada, Professora Universitária junto a UNEB/
Campus VIII – Paulo Afonso - Bahia. Contatos: jbomfim@uneb.br; jbomfim.adv@gmail.com
171 Casamento realizado em terreiro de Candomblé
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
INTRODUÇÃO
A temática aqui discutida discorrerá
sobre os requisitos habilitatórios do
casamento, em especial no que se refere ao
casamento religioso com efeito civil. As
religiões Candomblé e Umbanda serão
abordadas em conjunto quanto ao
reconhecimento das celebrações realizadas em
suas casas/terreiros para fins de casamento
civil. Faz-se necessário construir todo um
arcabouço conceitual relacionado ao
casamento e a religião, bem como recorrer à
fonte do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE, com dados censitários.
O caráter procedimental do casamento
será tratado com base no Código Civil
Brasileiro e Lei de Registros Públicos. A base
constitucional tanto para a liberdade de crença
e suas expressões, bem como, o
reconhecimento do casamento como formação
da família, será trazido à baila neste trabalho.
A fundamentação teórica faz-se com autores
civilistas de renome como Diniz (2007), Lobo
(2009) e Gonçalves (2007), enquanto que a
discussão constitucional e religiosa baseia-se
em Abbagnano (1982), Ribeiro (1996),
Scherkerkewitz (2011), Silva (1989), Vergê
(2009) e Dallari (1989).
A apresentação de um julgado atual
envolvendo a temática será um recurso
empregado para favorecer a compreensão do
tema.
1. SOBRE CASAMENTO
O casamento é um instituto jurídico
civil com disciplinamento disposto no Código
Civil Brasileiro de 2002 (CCB/02) e na Lei de
Registros Públicos2, além de ter status
2Lei nº 6.015/ 73.
constitucional pelo artigo 226 e seus incisos3.
Apresenta-se a seguir breve conceituação do
instituto casamento, tendo por base Lobo
(2009), que assim preleciona:
O casamento é um ato jurídico negocial solene, público e complexo, mediante o qual um homem e uma mulher constituem família, pela livre manifestação de vontade e pelo reconhecimento do Estado (p. 76, grifo nosso).
Merece o destaque da citação acima,
quanto ao reconhecimento do casamento pelo
Estado, tendo em vista que nossa temática
discutirá a necessidade desse reconhecimento
nas celebrações matrimoniais advindas de
religiões como Candomblé e Umbanda. Nesse
diapasão cita-se, também, Gonçalves (2007)
com o conceito de casamento, o qual assim
dispõe:
Casamento é a união legal entre um homem e uma mulher, com o objetivo de constituírem a família legítima. “Reconhece-se-lhe o efeito de estabelecer” comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges (p.09, grifo nosso).
Observa-se que a conceituação trazida
por Gonçalves (Ibidem) também trata do
reconhecimento do casamento, mais
especificamente quanto ao efeito deste para
estabelecer comunhão plena de vida entre os
cônjuges. Por derradeiro, traz-se a
conceituação de Diniz (2007) para melhor
esclarecer a temática:
O casamento é o vínculo jurídico entre o homem e a mulher que visa o auxílio mútuo material e espiritual, de modo que haja uma integração fisiopsíquica e a constituição de uma família (p.38, grifo nosso).
3A família é a base da sociedade e tem especial proteção do
Estado.§ 1º O casamento é civil e gratuito a celebração. §2º O
casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
172 Joelma Boaventura da Silva Bonfim
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
Vale ressaltar o caráter vinculatório do
casamento na esfera jurídica, logo, inferindo-se
ainda o controle do Estado4 sobre as
manifestações de vontade das pessoas. Por ter
um caráter de vínculo jurídico, necessário faz-
se cumprir algumas formalidades como
habilitação e celebração.
A primeira dessas formalidades,
habilitação, é preliminar e desenvolve-se
perante o oficial do registro civil conforme
preceitua o artigo 15265 do Código Civil
Brasileiro (CCB). Segundo Gonçalves (2007,
p.03), “destina-se a constatar a capacidade
para o casamento, a inexistência de
impedimentos matrimoniais e dar publicidade
à pretensão dos nubentes”. Sendo assim, o
Estado, através do Ofício de Registro,
regulamenta preliminarmente o casamento,
pois é expedido o certificado de habilitação, o
qual “é documento indispensável para que haja
celebração civil ou religiosa do casamento”
(LOBO, 2009, p.91).
A segunda formalidade referente ao
casamento é a celebração, que pode ser
definida com ato formal, solene e público. Por
ser ato, é manifestação expressa clara, livre e
consciente dos nubentes não isentando a
autoridade competente de manifestação
conforme artigos 1533 e 1535 CCB6.
Pode-se classificar o casamento quanto
à celebração e seus efeitos, em civil e religioso.
4Estado deve ser aqui entendido conforme conceitua Dalmo de
Abreu Dallari como sendo "organização jurídica soberana que
tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território”. DALLARI, Dalmo de Abreu in "Elementos de teoria
geral do Estado". São Paulo, Saraiva, 1989. 5 Art. 1526 CCB. A habilitação será feita pessoalmente perante o oficial do registro Civil, com a audiência do Ministério Público. 6Art. 1533 CCB. Celebrar-se-á o casamento, no dia, hora e lugar
previamente designados pela autoridade que houver de presidir o ato, mediante petição dos contraentes, que se mostrem
habilitados com a certidão do art. 1531.
Art. 1535 CCB. Presentes os contraentes, em pessoa ou por procurador especial, juntamente com as testemunhas e o oficial
do registro, o presidente do ato, ouvida aos nubentes a afirmação
de que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento, nestes termos: “de acordo com a vontade
que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes
por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados”.
Pela Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 (CRFB/88), artigo 226, § 1º7, o
casamento é civil com celebração gratuita. Já o
casamento religioso aparece no § 2º deste
mesmo artigo, ressalvando-se que essa
modalidade de casamento terá efeito civil, nos
termos da lei.
Faz-se necessária uma breve digressão
sobre os casamentos civis e religiosos no Brasil
para melhor entendimento da temática
inaugurando assim mais um item deste artigo.
2. BREVE HISTÓRICO DOS
CASAMENTOS CIVIL E RELIGIOSO
De início, o casamento no Brasil era
regulado pela Igreja Católica de forma titular
quase absoluta conforme relata Diniz (2007)
que:
[...] a Igreja Católica foi titular quase que absoluta dos direitos matrimoniais; pelo decreto de 3 de novembro de 1827 os princípios do direito canônico regiam todo e qualquer ato nupcial, com base nas disposições do Concílio Tridentino e da Constituição do arcebispado da Bahia (p. 52-53, grifo nosso)
Como bem se percebe da transcrição, o
casamento era regido pelo direito canônico, ou
seja, o Estado até a metade do século XIX
estava em segundo plano na celebração do
casamento. Cabe ainda destacar que a Igreja
Católica tinha a titularidade dos direitos
matrimoniais. Essa situação muda ainda no
século XIX, a partir de 1863, com o advento da
Lei nº 1.144, quando se encaminhou a
institucionalização do casamento civil. Tal
mudança adveio em decorrência do processo
7Art.226 CRFB/88 A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º o casamento é civil e gratuita a
celebração. § 2º o casamento religioso tem efeito civil, nos
termos da lei.
173 Casamento realizado em terreiro de Candomblé
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
imigratório8 que introduziu novas crenças no
país e, então, na perspectiva do legislador da
época era necessário ou prudente
regulamentar os casamentos entre pessoas não
católicas ou ainda entre pessoa católica e não
católica. A contribuição de Diniz (Ibidem) para
aclarar essa informação é crucial quando narra
que,
Com a imigração, novas crenças foram introduzidas em nosso país. Assim, em 19 de julho de 1858, Diogo de Vasconcelos, Ministro da Justiça, apresentou um projeto de lei, com o objetivo de estabelecer que os casamentos entre pessoas não católicas fossem realizados de conformidade com as prescrições de sua respectiva religião. Esse projeto, em 1863, transformou-se na Lei n. 1144, regulamentada pelo decreto de 17 de abril de 1863, dando um grande impulso à instituição do casamento (p. 53).
O processo de institucionalização do
casamento civil prosseguiu durante o século
XIX como bem descreve Diniz (Ibidem) ao
tratar do advento da República Brasileira e da
perda do caráter confessional do casamento,
Com o advento da República, o poder temporal foi separado do poder espiritual, e o casamento veio a perder seu caráter confessional; com o Decreto n. 181 de 24 de janeiro de 1890, que instituiu o casamento civil em nosso país, no seu art. 108, não mais era atribuído qualquer valor jurídico ao matrimonio religioso (p.53, grifo nosso).
É perceptível, pelo esclarecimento de
Diniz, a inversão do status do casamento
religioso, antes amplamente admitido, depois
rechaçado, havendo inclusive circular do
Ministério da Justiça9 descredenciando
8O processo imigratório no Brasil do século XIX, diz respeito a
imigração para povoamento do Sul do Brasil, iniciada em 1824 com os alemães, seguida em 1875 pelos italianos, como fonte de
mão-de-obra substituta a mão-de-obra escrava. Percebe-se que
nesse contexto imigratório, o africano (negro) não está incluído. 9 Circular do Ministério da Justiça, de 11 de junho de 1890,
chegou até a determinar que “nenhuma solenidade religiosa,
ainda que sob a forma de sacramento do matrimônio, celebrada
qualquer cerimônia religiosa com efeito de
casamento. A ideia separatista entre
casamento civil e religioso continuou através
da Constituição Federal de 1891, no artigo 72 §
4º, assim escrito: “A República só reconhece o
casamento civil, cuja celebração será gratuita”.
É plausível concordar com Diniz
(2007) 10, quanto ao fato de que, o casamento
religioso passou a constituir apenas
consciência individual de cada um e de
ocorrência paralela ao civil. Como forma de
arremate deste item podemos citar LOBO
(2009, p.77): “O casamento é civil, ainda que a
celebração seja religiosa, pois desde a
Proclamação da República foi secularizado ou
laicizado, subtraindo-se da religião oficial a
competência para regulá-lo”.
A Constituição Cidadã estatuiu o
casamento civil e deu ao casamento religioso
efeitos civis, nos termos da lei conforme artigo
226 §§ 1º e 2º, já citados neste trabalho. Cabe
salientar que o disciplinamento do casamento
presente na lei 6.015 de 1973 está hoje
absorvido pelo Código Civil de 2002, nos
artigos 1515 e 151611. Não há porque pensar em
nos Estados Unidos do Brasil, constituiria, perante a lei civil, vínculo conjugal ou impedimento para livremente casarem com
outra pessoa os que houverem daquela data em diante recebido
esse ou outro sacramento, enquanto não fosse celebrado o casamento civil”. DINIZ, 2007, p. 53. 10... constituindo o religioso apenas um interesse da consciência individual de cada um. Deu-se, então, a generalização do
casamento civil, celebrado paralelamente ao religioso, hábito
social que perdura até hoje. DINIZ, 2007. Pag. 53 11Art 1515. O casamento religioso, que atender as
exigências da lei para a validade do casamento civil,
equipara-se a este, desde que registrado no registro
próprio, produzindo efeitos a partir da data de se
celebração.
Na conformidade deste artigo e do artigo seguinte, o casamento
religioso, para que gere efeitos civis, deve seguir as mesmas formalidades do casamento civil, tendo iguais impedimentos.
Desse modo, o casamento religioso que não atende ao disposto
nestes artigos configura-se juridicamente como união estável (ais. 1.723 a 1.727) (v. Maria Helena Diniz, Curso de direito
civil brasileim, 16. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, v. 5, p. 46-9).
Art. 1516. O registro do casamento religioso submete-se aos mesmos requisitos exigidos para o casamento civil.
* 1o O registro civil do casamento religioso deverá ser
promovido dentro de noventa dias de sua realização, mediante comunicação do celebrante ao oficio competente, ou por
iniciativa de qualquer interessado, desde que haja sido
homologada previamente a habilitação regulada neste Código.
174 Joelma Boaventura da Silva Bonfim
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
duas formas de casamento, pois o que existe é
o casamento civil, e se a celebração ocorrer em
espaço religioso, este poderá ser reconhecido
por seus efeitos civis. É preciso esclarecimento
de Lobo (2009), quando diz que:
Não há, conseqüentemente, casamento religioso ao lado do casamento civil, mas efeitos civis da celebração religiosa do casamento, conferindo-se ao ministro de confissão religiosa a autoridade para realizá-la, equiparada ao do juiz de direito (p.80).
3. DA RELIGIÃO
Para inaugurar esse tópico, necessário
faz-se conceituar etimologicamente religião
enquanto “obrigação” e relegare, sendo este
último termo indicado por Cícero12 na
configuração de “Aqueles que cumpriam
cuidadosamente com todos os atos do culto
divino e por assim dizer os reliam atentamente
foram chamados de religiosos do relegare”
(ABBAGNANO, 1982, p.814).
Na busca por conceituação do termo
religião, tem-se ainda auxílio em Santo
Agostinho, que a definia enquanto a
correspondência entre religio e Threspéia13, ou
seja, as técnicas da religião. Nessa perspectiva
Após o referido prazo, o registro dependerá de nova habilitação.
§ 2o O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do
casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil,
mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e observado o prazo do artigo 1.532.
§ 3o Será nulo o registro civil do casamento religioso se, antes
dele, qualquer dos consorciados houver contraído com outrem casamento civil. 12 Marco Túlio Cícero foi adversário perseguido pelo imperador
Júlio Cesar (106 a 43 a.C). Foi senador proeminente da política romana. Obrigado a deixar a vida política, recolheu-se à vida
privada e retomou a meditação filosófica por volta de 51 a.C. seu
conjunto de obras contempla: Sobre os Fins; A natureza dos Deuses; O Orador; A República e Sobre as leis. Articulou-se em
torno de idéias que fundamentam a vida moral e social,
principalmente da existência de Deus e sua providencia. (Os Pensadores. Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sênega. São Paulo: Nova
Cultura, 1988). 13Conforme página 814 de ABBAGNANO, Nicola. Dicionário
de Filosofia. 2ª Ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
de análise, pode-se valer do pensamento de
Abbagnano (Ibidem, p.813) quando define
religião enquanto: “A crença numa garantia
sobrenatural oferecida ao homem para sua
salvação; e as técnicas orientadas para obter e
conservar esta garantia. Observe-se que este
autor debruça-se sobre as técnicas da religião,
assim como fez Santo Agostinho.
De maneira didática far-se-á breve
exposição sobre a garantia pela qual a Religião
apela, sendo a primeira em essência
sobrenatural e impondo aos homens uma
relação implicada em poderes, como bem se
percebe sobre o que pontua Abbagnano
(Ibidem, p.813): “A garantia, para a qual a
religião apela, é sobrenatural, no sentido de
que se situa além dos limites aos quais podem
chegar os poderes reconhecidos como próprios
do homem”.
Ultrapassada a explicação didática da
garantia na religião, cabe aprofundar-se sobre
as técnicas da religião, pois esta análise leva ao
enriquecimento do tema, esclarecendo que
através das técnicas permite-se a obtenção ou
conservação da garantia religiosa, ou seja,
estas duas características (garantia e técnica)
estão imbricadas. O próprio Abbagnano
(Ibidem, p.814) elucida que: “convém
sublinhar a diferença entre a crença na
garantia sobrenatural e as técnicas que
permitem obter ou conservar tal garantia”.
Analisar a técnica na religião é crucial
dentro da temática do casamento, pois as
técnicas podem ser entendidas como: “todos os
atos ou as práticas do culto: oração, sacrifício,
ritual, cerimônia ou serviço divino.”
(ABBAGNANO, Ibidem, p.814). Utilizaremos a
expressão cerimônia enquanto sinônima de
celebração. Sendo assim, o casamento compõe-
se em uma de suas etapas, de
celebração/cerimônia, a qual é uma das
175 Casamento realizado em terreiro de Candomblé
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
técnicas da religião para conservar a garantia
sobrenatural da religião, configurando-se
assim seu lado objetivo e público, logo,
essencialmente institucional, como bem
esclarece Abbagnano (Ibidem, p.814): “uma
religião positiva é constituída essencialmente
por estas técnicas”.
A este ponto da discussão cabe
perguntar: Seria a religião sinônimo de crença?
A resposta requer uma reflexão filosófica, a
qual se baseia com serenidade em Abbagnano
(Ibidem), quando explica que:
Analogicamente, não tem necessariamente um alcance religioso, não é necessariamente crença a verdade revelada, isto é, fé; mas por outro lado também não exclui essa determinação e nesse sentido se pode dizer que uma crença, pode pertencer ao domínio da fé (p.202, grifo nosso).
A fé encontra destaque por representar
o aspecto sobrenatural da garantia religiosa,
anteriormente esboçado. Tendo a crença
alcance religioso ou não, o legislador
constitucional fugiu a essa dicotomia e
protegeu a liberdade de crença de forma
inequívoca conforme se apreende do texto
constitucional de 1988, no artigo 5º, inciso
VI14, o qual abre um grande espectro de
abordagem, pois contempla não só a liberdade
de crença, como também assegura o livre culto
religioso. Enfatiza-se que um dos atos ou
expressão da técnica religiosa é o culto.
Outra ênfase que se deve dar é sobre a
expressão “culto religioso”. Entende-se por
essa última expressão que o legislador não quis
deixar nenhuma dúvida sobre a extensão da
proteção constitucional, incluindo a
espacialidade dos cultos. Ainda no artigo 5º da
Constituição Federal de 88, mais
14 CRFB. Artigo 5º VI: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias.
especificamente no inciso VIII15, há menção a
crença religiosa, novamente, e desta vez
atrelada à proibição de privar alguém de
direitos por motivos de crença religiosa.
Percebe-se que o legislador buscar evitar
preconceitos ou atitudes discriminatórias
negativas em razão da escolha religiosa ou de
crença.
A discussão sobre religião esbarra no
conceito de liberdade, pois é impossível tratar
das técnicas da religião sem ressaltar a
necessidade de liberdade para sua expressão.
Nesse sentido, a contribuição de
Scherkerkewitz16 (2011) faz-se importante
quando distingue três formas de liberdade
relacionadas à religião no Brasil, a saber: a
liberdade de crença; a liberdade de culto; e a
liberdade de organização religiosa. Sendo
assim, a primeira forma de liberdade religiosa
implicaria na
[...] liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo (SILVA, 1989, p. 221).
Pode-se dizer até que essa seria a
forma mais ampla de liberdade religiosa, pois
contempla inclusive a descrença no
sobrenatural, bem como, impede que o
indivíduo descrente seja obrigado a participar
de práticas religiosas, o que desembocaria em
afronta de direitos. Já a segunda forma de
liberdade religiosa é mais restritiva, pois incide
sobre “A liberdade de culto e na liberdade de
15CRFB. Artigo 5º, VIII: ninguém será privado de direitos por
motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou
políticas [...] 16Procurador do Estado de São Paulo, Mestre e doutorando em
Direito pela PUC/SP e Professor Universitário em seu texto
intitulado:O Direito de Religião no Brasil. www.pge.sp.gov.br/centrode
estudos/revistaspge/revista2/artigo5.htm. Acesso em 20 de
janeiro de 2011.
176 Joelma Boaventura da Silva Bonfim
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
orar e de praticar os atos próprios das
manifestações exteriores em casa ou em
público, bem como a de recebimento de
contribuições para tanto” (SILVA, Ibidem,
p.221). Por fim, sucintamente, a terceira forma
de liberdade religiosa aplica-se à “liberdade de
organização religiosa”, que diz respeito à
possibilidade de estabelecimento e organização
de igrejas e suas relações com o Estado.”
(Idem, ibidem, p.221).
É preciso entender que a liberdade
religiosa não faz acepção a grupos religiosos e
que os direitos decorrentes desta liberdade
devem ser aplicáveis a todas as formas de
religião sobre o solo brasileiro. Na sequência
deste trabalho, far-se-á a análise de duas
religiões brasileiras seculares, as quais, muitas
vezes sofreram discriminação negativa, como
por exemplo, a elaboração da Lei n. 3.895, de
22 de março de 1977, a qual determinava que o
funcionamento dos cultos de Candomblé e
Umbanda fosse comunicado regularmente à
Secretaria de Segurança Pública, através do
órgão competente a que sejam filiados,
comprovando-se o atendimento de condições
preliminares. É perceptível a discriminação
negativa devido ao fato de haver controle sobre
religião e ainda controle policialesco, pois
dependeria da comunicação atualizada
anualmente à Secretaria de Segurança Pública.
A discriminação incide no fato de tal
exigência ser feita a apenas uma modalidade
religiosa. O texto constitucional de 1988
revogou tacitamente tal disciplinamento, pois
propugna pela liberdade religiosa.
3.1 DO CAMBOMBLÉ
Na compreensão de Vergê (2009), o
termo Candomblé tem uma definição peculiar
na Bahia, como se pode inferir da citação
transcrita,
A palavra Candomblé, que designa na Bahia as religiões africanas em geral, é de origem bantu. É provável que as influências das religiões vindas de regiões da África situadas nas imediações do quadro não se limitem apenas ao nome das cerimônias, mas tenham dado aos cultos gêge e nagô, na Bahia, uma forma que os diferencia, em certos pontos, dessas mesmas manifestações na África. (p.21)
Na definição proposta por Ribeiro
(1996) o Candomblé é definido enquanto
“denominação originária do termo
kandombile, cujo significado é culto e oração,
constitui um modelo de religião que congrega
sobrevivências étnicas da África e que
encontrou no Brasil, campo fértil para sua
disseminação e reinterpretação” (LODY 1987
apud RIBEIRO, 1996, p.10). Ambas definições
têm em comum a ligação com a África e a
existência de cultos.
É perceptível, a partir dessa definição,
que o Candomblé é uma religião de matiz
africana com acolhimento em território
brasileiro, restando, no entanto, salientar que
esse acolhimento em nada se deu de forma
pacífica, tendo em vista que havia desde o
período de Colonização Brasileira17 uma
religião oficial e hegemônica, a saber, a religião
católica. A existência de uma religião
dominante no Brasil de outrora certamente
gerou problemas de tolerância religiosa para
com outras matrizes religiosa e credos, como
foi bem documentado por Vergê (2009),
Não se sabe com precisão a data de todos esses acontecimentos, pois, no início do século XIX, a religião católica era ainda a única autorizada. As reuniões de protestantes eram
17 Entende-se o período de Colonização Brasileira desde 1530, quando ocorreu a fixação de portugueses no solo brasileiro até a
instalação do Império em 1808 com a Vinda da Família Real
para o Brasil.
177 Casamento realizado em terreiro de Candomblé
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
toleradas só para os estrangeiros; o islamismo, que provocara uma série de revoltas de escravos entre 1808 e 1835, era formalmente proibido e perseguido com extremo rigor; os cultos aos deuses africanos eram ignorados e passavam por práticas supersticiosas. Tais cultos tinham um caráter clandestino e as pessoas que neles tomavam parte eram perseguidas pelas autoridades (p.19, grifo nosso).
Observa-se que os cultos aos deuses
africanos, logo, o Candomblé, eram
considerados como práticas supersticiosas e
por vezes ignorados. No entanto, cabe uma
relativização a essa ignorância ao culto
africano, pois o próprio Vergê (Ibidem) relata
perseguição das autoridades aos mesmos em
mais de uma passagem de seu livro,
Um artigo do Jornal da Bahia, de 3 de maio de 1855, faz alusão a uma reunião na casa Ilê Iyanassô: foram presos e colocados à disposição da policia Cristóvão Francisco Tavares, africano emancipado, Maria Salomé, Joana Francisco, Leopoldina Maria da Conceição, Escolástica Maria da Conceição, crioulos livres; os escravos Rodolfo Araújo Sá Barreto, mulato; Melônio, crioulo, e as africanas Maria Tereza, Benedita, Silvana... Que estavam no local chamado Engenho Velho, numa reunião que chamava de Candomblé. É curioso encontrar nesse documento o nome, pouco comum, de Escolástica Maria da Conceição, o mesmo com o qual seriam batizados, trinta e cinco anos mais tarde, Dona menininha, a famosa mãe-de-santo do Gantois, cujos pais, a essa época, sem dúvida, freqüentavam ou faziam parte do terreiro de Ilê Iyanassô, onde houve essa ação policial (p. 19, grifo nosso).
Para que não se torne exaustiva a
explanação histórica sobre a intolerância e
represália a religião do Candomblé,
informamos por último, que segundo Vergê
(Ibidem), em passado recente, ou seja, no
século XIX,
Por volta de 1826, a polícia da Bahia havia, no decorrer de buscar
efetuadas com o objetivo de prevenir possível levantes de africanos, escravos ou livres, na cidade ou nas redondezas, recolhido atabaques, espanta-moscas e outros objetos que pareciam mais adequados ao Candomblé do que a uma sangrenta revolução. Nina Rodrigues refere-se a certo quilombo, existente nas matas de Urubu, em Pirajé, o qual se mantinha com o auxílio de uma casa de fetiche da vizinha, chamada a Casa do Candomblé (p. 19).
Não seria exagero admitir que até hoje,
no Estado laico brasileiro, ainda existe uma
predominância do catolicismo de cunho
administrativo-estatal, como bem salienta
Scherkerkewitz (2011) “Como é possível se
falar que não existe uma religião oficial quando
ao abrir-se qualquer folhinha nota-se a
existência de feriados oficiais de caráter
religioso. E mais, de caráter santo para apenas
uma religião”. (Scherkerkewitz, Ibidem, p. 6).
Para que não reste nenhuma dúvida sobre a
classificação religiosa do Candomblé,
acostamos a tabela 1.1.2 do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística – IBGE,
correspondente ao Censo 2000, como anexo, e
destacamos desta tabela a inclusão do
Candomblé como religião com o total de
125.548 adeptos, percebendo-se que o maior
percentual de adeptos está na zona urbana,
com o número de 123.214. Reforçando esse
caráter urbano do Candomblé, encontramos
em Vergê (2009) referências suficientes para
afirmar que esta religião tem expansão na
cidade, como então se vê:
Na Bahia, no início do século (XX), os terreiros dedicados ao culto dos orixás eram freqüentemente instalados longe do centro da cidade. Com o crescimento da população e a extensão tomada pelos novos bairros, eles progressivamente encontravam-se incluídos na zona urbana. Esses terreiros são geralmente compostos de uma construção, denominado barracão, com grande sala para as danças e cerimoniais públicas, de uma série de casas, onde são instalados os
178 Joelma Boaventura da Silva Bonfim
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
¨pejís¨, consagrados aos diversos orixás, e de casas destinadas à residência das pessoas que fazem parte do Candomblé (p.35).
Se Candomblé tem esse perfil urbano e
abriga um número tão significativo de adeptos,
como negar a um contingente religioso tão
expressivo o direito de casar e ter a celebração
deste instituto reconhecido pelo Estado?
Cabe neste momento discorrer sobre a
cerimônia do casamento dentro do
Candomblé, já que não restam dúvidas de que,
enquanto religião, cultos e cerimônias são lhes
inerentes. Uma vez que o Candomblé está
diretamente ligado ao culto dos orixás, estes,
então, são consultados sobre atitudes e atos
importantes para a vida dos adeptos, como se
pode apreender da citação retirada da obra de
Ribeiro (1996):
Somente Orumilá conhecedor do ipin ori - destino do ori pode adequadamente sondar o futuro e orientar quem o procura. Por isso é consultado nos momentos críticos da existência - fundação de aldeias; início da construção de casas; realização de contratos; negociações; início e término de guerras; casamentos; nascimentos (p.66-67, grifo nosso).
Encontra-se referência ao orixá recém-
citado, também em Vergê (2009) e com a
mesma incidência sobre o casamento, como se
pode verificar pela transcrição em que
“Orunmilá é consultado em caso de dúvida,
quando as pessoas têm uma decisão
importante a tomar a respeito de uma viagem,
de um casamento, de uma compra ou venda,
ou ainda por aquelas que procuram determinar
causa de doenças” (p.60, grifo nosso).
Assevera-se que um orixá específico é
consultado sobre casamento, podendo-se
inferir que este instituto dentro do Candomblé
tem bastante importância. Esta inferência é
corroborada pelo trecho a seguir, Ribeiro
(1996),
Os laços de parentesco determinados por vínculo consangüíneo ou por casamento constituem uma das maiores forças na vida tradicional africana e controlam as relações entre as pessoas da comunidade, determinando o comportamento de cada indivíduo em relação aos demais. (p.34)
3.2 DA UMBANDA
O surgimento da Umbanda está
associado ao surgimento do Candomblé. Estas
duas religiões, além de terem a matiz africana
em comum, têm ainda elementos de
nascimento no Brasil, como percebe-se da
transcrição de Ribeiro (1996),
Bastide (1971) traçou uma geografia das religiões africanas no Brasil. De um modo geral, nesse conjunto identificam-se duas grandes vertentes: a que deu origem aos Candomblés e xangôs e outra que originou os Candomblés de caboclo e Candomblés de angola. No contexto urbano, sujeitos a novas influências do catolicismo e do espiritismo de Allan Kardec, surgiu a Umbanda (p.108, grifo nosso).
Há, no entanto uma peculiaridade na
base teórica da Umbanda, qual seja: as
influências do Catolicismo e do Espiritismo de
Allan Kardec18. Denota-se que as duas
influências são europeias e não africanas como
já se explanou neste texto. Em comum teriam o
Candomblé e a Umbanda um contexto urbano.
Ainda sobre as influencias sofridas pela
Umbanda, cabe destacar o comentário de
Ribeiro (Ibidem),
Na Umbanda ocorre, conforme mencionado acima, o encontro de elementos de múltiplas origens étnicas e religiosas. Num altar ou
18 Allan Kardec é o codificador da doutrina espírita.
179 Casamento realizado em terreiro de Candomblé
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
congá encontramos imagens cristãs, budistas, tradicionais africanas, além da representação de personagens como índios, pretos-velhos, marinheiros, ciganos, crianças (ere) etc. As orações incluem cânticos em português aos orixás e rezas cristãs como o Pai Nosso e a Ave Maria (p.109, grifo nosso).
A múltipla origem étnica e religiosa da
Umbanda certamente é uma forte
característica definidora desta religião ao
mesmo tempo em que a diferencia do
Candomblé, com o qual é costumeiramente
confundida. Por isso é bem elucidativa a
ressalva feita na obra de Ribeiro (Ibidem),
quando escreve que:
No dizer de Magnani (1986,p.13), a Umbanda certamente não é uma espécie de degeneração de antigos cultos africanos ou do espiritismo Kardecista e sim o resultado de um processo de reelaboração, em determinada conjuntura histórica, de ritos, mitos e símbolos que adquirem novos significados no interior de uma nova estrutura (p.109, grifo nosso).
Os relatos históricos sobre a Umbanda,
aos quais tivemos acesso, remetem seu início
em terras brasileiras, para o Rio de Janeiro, e
também o fato de que seu surgimento dá-se em
datas mais recentes em relação ao surgimento
do Candomblé. Infere-se que local e época de
surgimento da Umbanda são também
elementos diferenciadores desta religião para o
Candomblé. Com apoio em Ribeiro (1996)
pode-se afirmar que,
A chamada macumba surgiu no Rio de Janeiro por volta da segunda metade do século XIX: a cabula banto assimilou, sem o suporte de uma mitologia ou doutrina capaz de integrar seus elementos, a estrutura dos cultos nagôs e alguns orixás, caboclos catimbozeiros, práticas mágicas européias e muçulmanas, santos católicos e influências do Espiritismo de Kardec (p.108).
Corroborando com a citação acima,
que esclarece o surgimento da Umbanda e seus
laços doutrinários, apresenta-se a contribuição
de Vergê (2009) com a seguinte transcrição:
No Rio de Janeiro, em Santos e Porto Alegre, o culto de Iemanjá é muito intenso duram até a última noite do ano, quando centenas de milhares de adeptos vão, cerca de meia-noite, acender velas ao longo das praias e jogar flores e presentes no mar. São seguidores de uma religião nova chamada Umbanda, uma mistura entre as religiões africanas, o espiritismo de Alan Kardec e doutas elaborações filosófico-religiosas de tendências universalistas (p.76, grifo nosso).
A citação de Vergê, acima transcrita,
acrescenta mais elementos, desta vez, sobre os
adeptos da Umbanda, os quais são melhor
explicitados a partir do texto de Ribeiro (1996),
no qual cita militares e profissionais liberais
dentre outros.
Desse complexo surgiria a Umbanda, na década de 1920, também no Rio de Janeiro: profissionais liberais, militares e funcionários públicos, advindos do kardecismo, migraram para esses cultos, impondo-lhes nova estrutura e desencadeando um processo de institucionalização (p. 110).
Pondera-se para melhor entendimento
dessa religião que os seus fundadores eram
dissidentes de outros ramos religiosos e que
advinham de classes sociais mais abastadas do
que aqueles que compunha o Candomblé. A
origem social dos fundadores certamente
funcionou com elemento de proteção à
iniciante religião, colocando-se assim em
oposição clara ao quadro de perseguição
sofrida pelo Candomblé.
Como última característica da
Umbanda a ser explanada, tem-se a presença
da divindade para a qual os cultos e rituais são
180 Joelma Boaventura da Silva Bonfim
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
celebrados, como está descrito por Vergê
(2009):
Esse movimento espiritual conhece, no Brasil e em vários outros países das Américas, um sucesso espetacular. Seus adeptos tomaram Iemanjá como a personificação do bem e da maternidade austera e protetora. Ela é representada como uma espécie de fada, com a pele cor de alabastro, vestida numa longa túnica, bem ampla, de musselina branca com uma longa cauda enfeitada de estrelas douradas; surgindo das águas, com seus longos cabelos pretos esvoaçando ao vento, coroada com um diadema feito de pérola, tendo no alto uma estrela-do-mar (p. 76).
A Umbanda consta também da lista de
religiões oficiais do Brasil segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, no
Censo de 2000, apresentando os seguintes
números, conforme tabela em anexo: 397.43
adeptos no Brasil, sendo 172.393 homens e
225.038 mulheres. Como é uma religião
urbana, tem 385.148 adeptos nesta zona. É
possível se fazer a seguinte comparação:
existem mais adeptos da Umbanda que do
Candomblé e o percentual de mulheres é maior
que o de homens que comungam desta
religião. Estaria esse numerário de adeptos do
gênero feminino relacionado com a principal
divindade da Umbanda? Não se têm elementos
suficientes para responder a essa questão e não
é o objetivo deste artigo adentrar nesta
particularidade, resta apenas deixar esta
especulação.
4. DA CELEBRAÇÃO RELIGIOSA DO
CASAMENTO
Casamento Religioso com Efeito Civil é
aquele que é celebrado fora das dependências
do Cartório, porém quem preside o ato do
casamento não é o Juiz e sim a autoridade
religiosa. Da mesma forma que o casamento
em Cartório, este deve ser realizado de forma
pública, a portas abertas durante todo o ato de
sua realização. Esta modalidade de casamento
tem base legal na Lei dos Registros Públicos
(lei. 6015/ 73) dos artigos 71 a 75. A partir
deste momento, far-se-á a análise detalhada
desta modalidade de casamento, tomando por
base o texto legal que o prevê.
O artigo 71 da referida lei assim prevê
que “Os nubentes habilitados para o
casamento poderão pedir ao oficial que lhes
forneça a respectiva certidão, para se casarem
perante autoridade ou ministro religioso, nela
mencionado o prazo legal de validade da
habilitação”, ou seja, faz-se necessária a
habilitação para o casamento e com
equivalente certidão em mãos dos nubentes,
poderá a autoridade religiosa fazer o
casamento. Assevera-se que não há aqui
qualquer alusão a um tipo de religião ou
exigência legal de averiguação sobre a
autoridade religiosa.
A inteligência do artigo 72 da lei 6015
disciplina que o termo ou assento de
casamento expedido pela autoridade religiosa
deverá cumprir todos os requisitos enunciados
no artigo 7019. Dispõe este artigo in verbis: “O
termo ou assento do casamento religioso,
subscrito pela autoridade ou ministro que o
celebrar, pelos nubentes e por duas
testemunhas, conterá os requisitos do art. 70,
exceto o 5º.” Observa-se que a autoridade
religiosa deve cumprir quase todos os
19Do matrimônio, logo depois, de celebrado, será lavrado
assento, assinado pelo residente do ato, os cônjuges, as
testemunhas e o oficial, sendo exarados: 1º os nomes, prenome, nacionalidade, data, lugar do nascimento,
domicílio e residência atual dos cônjuges;
2º os nomes, prenome, nacionalidade, data, data de nascimento ou de morte domicilio e residência atual dos pais;
3º os nomes, prenomes dos cônjuges precedentes e a data de
dissolução do casamento anterior, quando for o caso; 4º a data de publicação dos proclames e da celebração do
casamento;
6º os nomes, prenome, nacionalidade, profissão, domicílio e residência atual das testemunhas;
7º o regime de casamento...
8º o nome, que passa a ter a mulher em virtude do casamento.
181 Casamento realizado em terreiro de Candomblé
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
requisitos exigidos como se o casamento fosse
feito no cartório.
Após a celebração de casamento feita
por autoridade religiosa e dentro do prazo de
30 dias, deverá o celebrante ou interessado
apresentar o termo ou assento e requerer o
registro do ato no cartório que expediu a
certidão de habilitação, conforme determina o
artigo 73 da Lei de Registros Públicos com seus
respectivos parágrafos20.
Os artigos 74 e 75 da lei de Registros
Públicos21 tratam de casamentos celebrados
por autoridades religiosas, sem a observância
do disposto no artigo 70, já explicitado. É
possível reconhecer e validar a cerimônia de
casamento realizada por autoridade religiosa
sem certidão de habilitação expedida
previamente, desde que os nubentes
apresentem como requerimento as provas de
que a ato se realizou e desde que suprimam
eventuais faltas de requisitos do termo de
celebração. Para isso, é necessário que os
noivos compareçam ao cartório, juntamente
com 2 testemunhas, (após a cerimônia
religiosa) com os documentos habituais
20 Art. 73. No prazo de trinta dias a contar da realização, o
celebrante ou qualquer interessado poderá, apresentando o assento ou termo de casamento religioso, requerer-lhe o registro
ao oficial do cartório que expediu a certidão. § 1º. O assento ou termo conterá a data da celebração, o lugar, o culto religioso, o
nome do celebrante, sua qualidade, o cartório que expediu a
habilitação, sua data, os nomes, profissões, residências, nacionalidades das testemunhas que o assinarem e os nomes dos
contraentes. § 2º. Anotada a entrada do requerimento, o oficial
fará o registro no prazo de 24 (vinte e quatro) horas. § 3º. A autoridade ou ministro celebrante arquivará a certidão de
habilitação que lhe foi apresentada, devendo, nela, anotar a data
da celebração do casamento. 21Art. 74. O casamento religioso, celebrado sem a prévia
habilitação perante o oficial de registro público, poderá ser
registrado desde que apresentados pelos nubentes, com o requerimento de registro, a prova do ato religioso e os
documentos exigidos pelo Código Civil, suprindo eles eventual
falta de requisitos no termo da celebração. Parágrafo único. Processada a habilitação com a publicação dos editais e
certificada a inexistência de impedimentos, o oficial fará o
registro do casamento religioso, de acordo com a prova do ato e os dados constantes do processo, observado o disposto no art.
70. Art. 75. O registro produzirá efeitos jurídicos a contar da
celebração do casamento.
(Certidões e R.G.), o Requerimento de
Casamento Religioso com Efeito Civil e o
Termo de Celebração de casamento Religioso
com Efeito civil, feito pela Igreja, ou entidade
religiosa, já com a firma reconhecida do
Celebrante (que realizou a cerimônia religiosa).
Assim podem dar entrada nos papéis de
casamento no cartório.
4.1 CELEBRAÇÕES RELIGIOSAS DO
CASAMENTO NO CANDOMBLÉ E NA
UMBANDA.
As religiões brasileiras de origem
africana (Candomblé, Umbanda, tambor de
mina e xangô) podem realizar e realizam
cerimônias de batismo, de iniciação e de
casamento, pois são religiões conforme
explanamos exaustivamente neste trabalho e
porque possuem autoridades religiosas
denominados de sacerdotes, babalorixás ou
iyalorixás.
Uma ata deve ser lavrada no ato da celebração
do casamento no terreiro ou seção de
Umbanda e sua transcrição funciona como
certidão, caso não se tenha providenciado a
certidão de habilitação previamente.
A celebração deve ocorrer em local de
cultos dessas religiões (terreiros ou sessão de
mesa de branca). O ritual deve ser aberto ao
público e geralmente algumas peculiaridades
se fazem presentes, tais como leitura de Textos
sagrados africanos; os noivos costumam lavar
as mãos e o rosto em água misturada com
ervas e folhas. Essa mistura também é bebida.
Na Umbanda, ocorre até mesmo a leitura de
trechos da Bíblia.
5. EXPLORANDO EXEMPLOS SOBRE O
TEMA
182 Joelma Boaventura da Silva Bonfim
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
O julgado que se passa a analisar tem o
número 7000329655522 junto ao Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul na seção cível da
8ª Câmara Cível. O processo foi protocolado
em 24.09.2001, logo, antes da vigência do
Código Civil de 2002. Esse processo teve
acórdão expedido em 17.10.2002 pelo
desembargador Rui Portonova. A decisão
exarada pelo desembargador já contempla o
novo texto do Código Civil e faz referência ao
artigo 226 da Constituição Federal. Como foi
uma decisão prolatada em 2002, o site do
referido tribunal não permite acesso ao inteiro
teor da mesma, portanto transcreve-se apenas
trecho significativo do acórdão, ao qual foi
possível o acesso através de noticiário gaúcho:
“O Casamento no Candomblé ou na Umbanda
tem o mesmo valor dos casamentos realizados
nas religiões católicas e israelitas”.
Há também neste acórdão um
chamado para o reconhecimento não só do
casamento, um dos rituais legítimos das
religiões de matriz africana, como também um
reconhecimento à própria religião, quando o
referido desembargador assim se expressa:
“Não devemos valorizar mais os pactos
realizados em grandes sinagogas ou catedrais
pomposas, pelo fato de este casamento ter sido
realizado em terreiro”.
O relato que se segue não tem cunho
judicial, pois transcorreu como expressão livre
de direito a crença e a religião. No município
de Governador Mangabeira – Bahia, no ano de
22 Ementa da Apelação Cível: 1. ACÃO DECLARATÓRIA.
UNIÃO ESTÁVEL. EXISTÊNCIA E RECONHECIMENTO. 2. CASAMENTO RELIGIOSO. RELIGIAO AFRO-
BRASILEIRA. VALORIZACÃO. 3. CURADOR ESPECIAL.
SUBSTITUICÃO. QUANDO SE JUSTIFICA. 4. UMBANDA. 6.CANDOMBLÉ. 7. UNIÃO ESTÁVEL.
RECONHECIMENTO. REQUISITOS. SEGUNDA E
CONCOMITANTE UNIÃO ESTÁVEL. PROVA. 8. PETICÃO INICIAL. REQUISITOS. 9. NULIDADE DO PROCESSO.
QUANDO NÃO SERÁ DECRETADA. 10. CERIMÔNIA
RELIGIOSA. PROTEÇÃO DOS ORIXÁS. TEMPLO RELIGIOSO NA SOCIEDADE UMBANDISTA CACIQUE
PERI.Referências Legislativas: CF-226 PAR-3 DE 1988 CPC-
249 PAR-1
2009, foi realizado o primeiro casamento em
casa de Umbanda com reconhecimento civil.
Como se pode perceber da transcrição que
segue, a celebração atende os requisitos
impostos pelo ordenamento jurídico brasileiro.
O Centro de Umbanda Iemanjá, situado num afastado bairro do centro da cidade de Governador Mangabeira viveu no dia 22 de outubro de 2009 um momento histórico para o povo de santo com a celebração do primeiro casamento religioso e reconhecimento civil, no Recôncavo baiano, dos jovens Luis Carlos dos Santos (25) e Gisele Lopes Conceição (20) 23
Esse segundo relato resgata a
perspectiva política de luta dos povos de santo
para terem sua religião reconhecida, bem como
seus rituais, e acima de tudo, o
reconhecimento da liberdade religiosa com
cunho jurídico. A citação abaixo ilustra esse
raciocínio,
Visivelmente emocionada, a sacerdotisa, ao encerrar as bênçãos dadas aos noivos, disse que a realização do primeiro casamento num centro umbandista com validade civil, no Recôncavo, representava uma grande vitória para os adeptos das religiões de matrizes africanas. “Foi uma grande luta que travamos para chegar até aqui, pois ainda há muito preconceito e discriminação contra o povo de santo. É uma grande vitória, eu não posso deixar de reconhecer”, declarou Mãe Nice que fundou o Centro de Umbanda Iemanjá há oito anos24.
CONSIDERACÕES FINAIS
O ordenamento jurídico brasileiro
disciplina o casamento como instituto civil, o
qual poderá ser celebrado ante um juiz ou ante
a autoridade religiosa com consequente
obtenção de feitos civis. O mesmo
ordenamento jurídico garante a liberdade de
23 COSTA, Alzira.2009. 24 Ibidem,2009.
183 Casamento realizado em terreiro de Candomblé
Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
crença, culto e religião como forma de
expressão de liberdade. A religião então
nutrida por amparo legal manifesta-se na
sociedade através de suas técnicas, ou seja,
cultos, cerimônias.
A celebração do casamento ante
autoridade religiosa com reconhecimento dos
seus efeitos civis é a uma das formas de
materializar a liberdade religiosa e demonstrar
que intolerância e perseguições que, outrora,
foram a tônica do direito local em face de
adeptos de religiões africanas, são práticas
desrespeitosas e que não coadunam com o
Estado Democrático de Direito, nem refletem a
realidade “pluri-étnico-religiosa” brasileira.
O casamento reveste-se de celebração
de compromisso e de acordo, portanto, sua
cerimônia feita em ambiente religioso, ao qual
há relações de pertencimento dos nubentes,
nada mais faz que permitir realismo e
juridicidade ao ato solene.
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2ª Ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
COSTA, Alzira. Umbanda realiza casamento civil em mangabeira. Universidade Federal do Recôncavo Baiano. In: Link Recôncavo: Notícias do Recôncavo da Bahia. Bahia, out, 2009. Disponível em www.ufrb.edu.br/linkreconcavo. Acesso em: 20 jan. 2011.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1989.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de família. 5º volume. São Paulo: Saraiva, 2007.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito de Família. 11ª ed. Volume 2. São Paulo: Saraiva, 2007.
LOBO, Paulo. 2009. Direito Civil - Famílias. 2ª ed..São Paulo: Saraiva.
RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Alma africana no Brasil: os iorubas. São Paulo: Editora Oduduwa, 1996.
SCHERKERKEWITZ, Iso Cahitz. O Direito de Religião no Brasil. www.pge.sp.gov.br/centrode estudos/revistaspge/revista2/artigo5.htm. Acesso em 20 de janeiro de 2011.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 5 ed. rev. e ampl. de acordo com a nova Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.
VERGÊ, Pierre Fatumbi. Orixás. Rio de Janeiro: UUCA União Umbandista dos cultos afro-brasileiros, 2009.
Recommended