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ETNICIDADES, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO ANO 1, VOL. 2, JUL./DEZ. 2013

Opará Revista vol. 2 julho/2014

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A Opará Revista é uma publicação semestral em várias áreas do conhecimento do Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação – OPARÁ, situado no campus VIII – Paulo Afonso da Universidade do Estado da Bahia – UNEB.

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ETNICIDADES, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

ANO 1, VOL. 2, JUL./DEZ. 2013

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Opará

REVISTA DO CENTRO DE PESQUISAS EM ETNICIDADES, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

ISSN: 2317-9465

ETNICIDADES, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

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OPARÁ - REVISTA CIENTÍFICA DO CENTRO DE PESQUISAS EM

ETNICIDADES, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

ANO 1, V.2,JUL ./DEZ. 2013.

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB

REITOR: LOURISVALDO VALENTIM DA SILVA

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – DEDC VIII

DIRETOR: PROFº M.E DORIVAL PEREIRA OLIVEIRA

CENTRO DE PESQUISAS EM ETNICIDADES, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

COORDENADOR: PROFº M.E KÁRPIO MÁRCIO DE SIQUEIRA

COMITÊ EDITORIAL

DORISVAN DE LIRA OLIVEIRA

FLORIZA MARIA SENA FERNANDES

JAILMA MARIA DA SILVA

KÁRPIO MÁRCIO DE SIQUEIRA

MÁRCIO NICORY COSTA SOUZA

COMITÊ CIENTÍFICO-CULTURAL

PROFª DRª CARLA LIANE NASCIMENTO SANTOS - UNEB–CAMPUS I

PROFº M.E CARLOS ALBERTO BATISTA – UNEB CAMPUS II

PROFª DRª ELIANE DE SOUZA NOGUEIRA - UNEB–CAMPUS VIII

PROFª DRª ÉRIKA DOS SANTOS NUNES – UNEB CAMPUS VIII

PROFºDRº JOSÉ AUGUSTO LARANJEIRAS – UNEB–CAMPUS I

PROFº DRº JURACY MARQUES – UNEB- CAMPUS II

PROFª DRª LÍDIA MARIA PIRES SOARES CARDEL – UFBA

PROFª DRª MARIA ANÓRIA DE JESUS OLIVEIRA – UNEB - CAMPUS II

PROFª DRª MARIA CLEONICE DE SOUZA VERGNE– UNEB/FASETE

PROFº M.E MARCELO POLITANO - UNEB

PROFº DRº MARCOS LUCIANO MESSEDER - UNEB

PROFº DRº SÉRGIO L. MALTA DE AZEVEDO – UFCG/FASETE

PROFª DRª VANUSA SOUSA ALMEIDA – UEFS

ALZENI TOMÁZ -NECTAS/UNEB

EDVALDA LINS AROUCHA– AGENDHA

MAURÍCIO LINS AROUCHA – AGENDHA

OSWALDO DE CAMARGO – JORNALISTA E COORDENADOR DE LITERATURA DO MUSEU AFRO-BRASIL

EDITORAÇÃO

COMITÊ EDITORIAL

MONITORES

CAMILA GABRIELLE DA SILVA

JÉSSICA NAYARA ANDRADE DOS SANTOS

MILENA ANDRADE DOS SANTOS

PAOLA DE MORI

SANTIAGO MOZART

COLABORAÇÃO

PROFª M.A JAILMA MARIA DA SILVA

PROFº M.E KÁRPIO MÁRCIO DE SIQUEIRA

PROFº M.E MÁRCIO NICORY COSTA SOUZA

PROFº DRº SÉRGIO GONÇALVES RAMALHO

CRÉDITOS DA FOTO DE CAPA:

JOÃO ZINCLAR (1957-2013)

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Sobre a Revista

OPARÁ: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação é um periódico, em

formato eletrônico, voltado à publicização de artigos científicos e pesquisas em variadas

áreas do conhecimento (tais como: História, Educação, Sociologia, Ciência Política,

Antropologia, Geografia Humana e Cultural, Direito, Ecologia Humana, Letras, Pedagogia),

bem como a divulgação de produções culturais. Tem como objetivo a elaboração de edições

temáticas visando contribuir com análises e estudos nas áreas de educação, cultura, política,

dinâmicas sociais, ecologia, etnicidades, movimentos sociais etc.

Política da Revista

A Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação é uma publicação semestral em

várias áreas do conhecimento (tais como: História, Educação, Sociologia, Ciência Política,

Antropologia, Geografia Humana e Cultura, Direito, Ecologia Humana, Letras, Pedagogia),

do Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação – Opará, situado no

campus VIII – Paulo Afonso da Universidade do Estado da Bahia – UNEB.

Aberta ao debate científico, a Opará:Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação é um

veículo plural de divulgação dos resultados de pesquisas científicas em diversas áreas do

saber. Publica, preferencialmente em português, artigos originais, resenhas críticas, crônicas

e outras produções culturais.

Serão bem-vindas todas as contribuições e colaborações versadas nas diversas disciplinas das

Humanidades, bem como as produções artístico-culturais, sejam sob a forma de resultados

de pesquisas teóricas ou empíricas ou estudos, ensaios, investigações-reflexões históricas

e/ou filosóficas.

A responsabilidade sobre as afirmações e conceitos apresentados nos textos assinados é dos

seus autores.

Comitê Editorial

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Editorial No mundo contemporâneo a realidade e o cotidiano tornam-se cada vez mais reféns da

mídia, de sua espetacularização e capacidade de produzir o isolamento e a introspecção das

pessoas e de seus sentidos de existência, simplificando e esvaziando os conteúdos da

realidade. Neste cenário, dominado pela ciência e pela técnica, o passado e o futuro parecem

desaparecer frequentemente, cedendo lugar para a sedução do imediatismo, do aqui e do

agora, de um presente eterno e sem memória quando em muitos casos os acontecimentos

parecem anular o pensamento. Há uma certa acomodação e rejeição velada e consciente do

ato de pensar. Nesse contexto, como escrever criticamente de forma tradicional no papel

impresso? Como ter a ousadia de manter uma revista na chamada “periferia” do fazer

cientifico? E o sertão produz ciência? Sem querer a vitimização como forma de identidade,

ainda prevalece uma certa construção histórica do sertão como lugar nenhum e sem vida,

visão que vem se rompendo de dentro pra fora e de fora para dentro. Se a tecnociência

desumaniza os processos e a ação isola os sujeitos no vazio da máquina, teremos leitores para

este tipo de comunicação? Mais perguntas do que pretensas respostas.

A tecnologia e seus avanços configuram o cotidiano de parcelas significativas da população.

Contudo, tem gente que ainda não está conectado nem com o ato de ler e escrever, mas

consegue entender o mundo com outras linguagens, sentidos e significados. A revista Opará

continua neste circuito da teimosia criativa da alma humana que não se nega ao novo,

entretanto, não despreza velozmente os saberes, as construções reais e populares de produzir,

problematizar as formas de conhecimento. Textos, frutos da experiência de pesquisadores,

educadores e educadoras, a 2ª edição da Revista Opará vem confirmar que, apesar do

pretenso vazio mediático, ainda persistem os sujeitos da historia, cujos sonhos e

pensamentos, encarnados no sertão, falam do povo, de classes, de resistência, de educação

contextualizada, de tecnologia, saberes e conhecimentos tradicionais e populares. Sem

saudosismo romântico, ufanismo endeusador dos modernos produtos informacionais, a

revista segue do sertão, do litoral, com seus limites, mas com o anúncio que a vida de grupos

tradicionais e considerados minoritários e suas lutas não podem ser esvaziados e

desqualificados pela comunicação mercadológica. A revista revela uma postura política de

governança científica e popular da comunicação. Ela é um valioso e amoroso esforço de

socializar o conhecimento construído e alimentado pela sociedade. Tudo tem sua trajetória e

memória.Nada de fatalismo, do acaso. Apesar de um certo pragmatismo, os sonhos humanos

ainda alimentam e pulsam com luz discreta do sol e da lua, e estes refletem os mistérios e

encantos das águas do rio e do povo que alimenta a esperança encarnada nas ações as quais

suavemente pemeiam a brisa, o quão misteriosamente anuncia o novo que teima em nascer.

Dorival Pereira Oliveira Diretor do Departamento de Educação de Paulo Afonso – BAHIA – campus VIII

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Apresentação

É com grande satisfação que lançamos o volume 2 da Opará. Depois de muitas submissões e de

um laborioso esforço da equipe de seleção, revisão e editoração, apresentamos a todos os

interessados o resultado deste trabalho sob a forma de uma compilação de artigos. As contribuições

são diversas, como no primeiro volume, versando sobre variadas temáticas: literatura negra,

letramento e alfabetização, ensino e aprendizagem, formação docente, economia solidária,

movimentos sociais e religiosidade, sociologia/antropologia rural e urbana etc.

Assim, escrevendo sobre o poeta Cruz e Souza, os autores Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza

de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira, em trabalho intitulado Cruz e Souza: o negro como

sujeito encurralado – um diálogo de resistência em ‘emparedado’, propõem uma análise

de parte da obra desse poeta, procurando elucidar suas concepções e discursos de resistência e

autoafirmação dos afro-brasileiros.

Analisando uma canção de MV BILL, o artigo de autoria de Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo

Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira, Resistência negra em A voz do Excluído de MV

Bill: o hip hop na cultura brasileira, procura mostrar, a partir de um esboço sobre a difusão

do negro no espaço social brasileiro, que os discursos presentes nos raps brasileiros estão

associados a questões históricas e sociais.

Em seguida, apresentamos neste volume também uma contribuição de Sérgio Gonçalves Ramalho,

intitulado Alfabetização e letramento: (re)descobrindo conceitos, que tem a intenção de

tecer breves considerações, a partir da discussão dos conceitos de alfabetização e letramento, sobre

a importância destes para o ensino-aprendizagem.

Somam-se também os artigos de Natalina Assis de Carvalho, Narrativas de professores

rurais: trajetórias e fazer pedagógico no município de Baixa Grande Bahia, e de Edilma

Cavalcante Santos Menezes e Clécia Simone Gonçalves Rosa Pacheco, intitulado A arte de

educar as crianças do povo Entre Serras Pankararu: uma discussão no ensino e

aprendizagem. Aquele, como recorte de pesquisa, apresenta uma discussão sobre a profissão

docente em espaços rurais, destacando a questão da formação de professores e suas práticas

pedagógicas; o segundo, a partir de uma investigação de cunho exploratório e qualitativo sobre o

povo Entre Serras Pankararu, tem como objetivo apresentar o modo de ensinar e aprender das

crianças indígenas, a importância dos conhecimentos tradicionais e o reconhecimento identitário

associado a estes.

O artigo Do singular ao plural: indicadores de sustentabilidade na economia solidária,

da autoria de Vinícius Gonçalves dos Santos, João Matos Filho, Marilia Medeiros de Araujo,

Débora Chaves Meirelles e José Aldenir da Silva, a partir de uma análise bibliográfica, procura

propor parâmetros de compreensão da dinâmica da sustentabilidade na economia solidária.

No âmbito das discussões realizadas pela Sociologia/Antropologia rural e urbana, apresentamos os

artigos de Márcio Nicory Costa Souza, Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à

reflexão sobre a condição urbana, e o de autoria de Floriza Maria Sena Fernandes,

Memória, fé e movimentos sociais em Canudos. O primeiro tece considerações sobre a

cidade e o urbano, a partir de análise da obra de João do Rio, “A alma encantadora das ruas”, e de

um aporte teórico sobre as urbanidades. O segundo apresenta uma breve análise do catolicismo

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popular vivenciado em Canudos, antes e depois da experiência de Belo Monte de Antônio

Conselheiro na segunda metade do século XIX.

Na interface da História e da Sociologia do trabalho, completa esta discussão sobre as experiências

no/do urbano, discutindo a categoria “vendedor ambulante”, o trabalho de Pablo Mateus dos

Santos Jacinto e Carla Liane do Nascimento dos Santos, Contribuição histórica para a

representação social da categoria dos vendedores ambulantes pela população de

Salvador.

Encerram este volume os trabalhos de Geórgia de Castro Machado Ferreira, Uma abordagem do

rastafarismo nos moldes da psicologia social, e o de Joelma Boaventura da Silva Bomfim,

Casamento realizado em terreiro de Candomblé. Aquele tem como objetivo uma análise

sobre movimento urdido nas favelas de Kingston, Jamaica, o rastafarismo, a partir dos discursos

veiculados nas letras de Reggae; o segundo, procura discutir o reconhecimento dos efeitos civis do

casamento realizado em cerimônias de Umbanda e Candomblé.

Neste volume, renovamos os votos de boas leituras, reiterando o quanto estes artigos refletem

diversidade e o quanto esta diversidade se amalgama nos esforços do trabalho coletivo aqui

materializado.

Comitê Editorial.

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Sumário Sobre a revista / Política da Revista 3

Editorial 4

Apresentação 5

Artigos: 1 Cruz e Souza: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em ‘emparedado’ Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira

9

2 Resistência negra em ‘A voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira’ Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira

25

3 Alfabetização e letramento: (re)descobrindo conceitos Sérgio Gonçalves Ramalho

39

4 Yêda Pessoa de Castro e a sua contribuição para a inclusão dos estudos africanos nos currículos escolares da Bahia: a experiência da década 1980. Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana 5 Narrativas de professores rurais: trajetórias e fazer pedagógico no município de Baixa Grande Bahia Natalina Assis de Carvalho

51 71

6 A arte de educar as crianças do povo Entre Serras Pankararu: uma discussão no ensino e aprendizagem Edilma Cavalcante Santos Menezes e Clécia Simone Gonçalves Rosa Pacheco

80

7 Do singular ao plural: indicadores de sustentabilidade na economia solidária Débora Chaves Meirelles, João Matos Filho, José Aldenir da Silva, Marilia Medeiros de Araujo e Vinícius Gonçalves dos Santos 8 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana Márcio Nicory Costa Souza 9 Memória, fé e movimentos sociais em Canudos Floriza Maria Sena Fernandes 10 Contribuição histórica para a representação social da categoria dos vendedores ambulantes pela população de Salvador Pablo Mateus dos Santos Jacinto e Carla Liane do Nascimento dos Santos

96 108 124 140

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11 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social Geórgia de Castro Machado Ferreira 13 Casamento realizado em terreiro de Candomblé Joelma Boaventura da Silva Bomfim Normas para submissão na Opará

150 170 184

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CRUZ E SOUSA: O NEGRO COMO SUJEITO

ENCURRALADO – UM DIÁLOGO DE

RESISTÊNCIA EM “EMPAREDADO”

Arlete Miranda Amancio1

Joanna Souza de Miranda2

Kárpio Márcio de Siqueira3

RESUMO Essa tessitura tem por intuito elucidar concepções acerca do poeta Cruz e Sousa e seu discurso de resistência em ―Emparedado‖, última parte do livro Evocações (publicado em 1898), que adentra em seu poema em prosa o discurso pioneiro de autoafirmação e/ou resistência às agruras sofridas pelos afro-brasileiros. Pretendeu-se, ainda, realçar que o autor negro abriu mão de seu discurso individual para exteriorizar um discurso coletivo, além de enfatizar que o poeta utilizou-se de um discurso de defesa do grupo, ao qual pertenceu, abalando o mascaramento de uma identidade una e coesa. Para tanto, o trabalho perpassou por estudo historiográfico/literário para revelar uma sociedade omissa que, durante séculos, tentou apagar e/ou desqualificar as múltiplas vozes oriundas das margens do tecido social. E, em sua consequência, mantém-se, com a teoria do branqueamento intacta, a cortina de silêncio que cala as vozes manifestantes e/ou reveladoras da outorgação dos direitos dessa cultura racial. Neste sentido, nosso trabalho se pautou, inicialmente, por um levantamento bibliográfico, através de um olhar literário, seguido pela análise do poema em prosa ―Emparedado‖. Para tanto, foram utilizados, como base teórica, trabalhos conceituais sobre identidade negra e literatura afro-brasileira, sob a luz dos estudos de: Cuti (2009; 2010), para fazer um percurso da literatura negra no Brasil, pelas teorias do branqueamento e pelo discurso de resistência dos afrodescendentes; Cesco(2011), que traz importante análise do poema ―Emparedado‖; Fonseca (2002), por fazer relação entre literatura e raça na obra de Cruz e Sousa; Souza (2004), por tratar de espaços de divulgação e expansão da literatura produzida por negros e Correia (2010), que teoriza sobre subalternidade e (in) visibilidade do homem negro. Dentre outros teóricos que nos ajudaram a compor esse artigo. Desse modo, através desses estudos, pudemos comprovar que o poeta se apropriou de suas vivências individuais para produzir um discurso de luta coletiva em prol dos afrodescendentes, tornando, por conseguinte, seu poema em obra singular e instrumento de desmascaramento do preconceito velado da sociedade elitista. Palavras-chave: Literatura afro-brasileira. Cruz e Sousa. ―Emparedado‖. Vozes de resistência. ABSTRACT This contexture is meant to elucidate conceptions of the poet Cruz e Sousa and his discourse of resistance in "walled" Evocations last part of the book (published in 1898), which enters in his prose poem speech pioneer of self-affirmation and / or resistance to the hardships suffered by African-Brazilian. It was intended to also highlight that the author gave up his black individual speech to externalize a collective discourse, and emphasize that the poet used the discourse of defense of the group to which he belonged shaking masking the identity of a united and cohesive. Therefore, the work

1 Graduanda do Curso de Letras Vernáculas, participante do grupo de pesquisa ‘Literatura e Diversidade

Cultural: imaginário, linguagens e imagens’ – liderado pela Professora Andréa do N. Mascarenhas Silva –

UNEB/Campus XXII, e cadastrado no CNPq. 2 Graduanda do curso de Letras Vernáculas.

3 Professor da UNEB, Coordenador do Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação –

OPARÁ, Mestrado em Crítica Cultural, pela UNEB. Graduação em Letras com Inglês, pela Faculdade de

Formação de Professores de Arcoverde.

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10 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

pervaded by historiographical study / literature to reveal a silent society that for centuries tried to delete and / or disqualify multiple voices coming from the margins of the social. And in its consequence, keeps up with the theory of bleaching intact the curtain of silence that silences the voices protesters and / or revealing the outorgação rights that racial culture. In this sense, our work is guided initially by a literature through a literary look, followed by analysis of the prose poem "bricked". So, were used as theoretical base conceptual works about black identity and African-Brazilian literature, in light of studies: Cuti, (2009, 2010), to make a journey of dark literature in Brazil, the theories and the bleaching discourse of resistance of African descent; Cesco (2011), which brings important analysis of the poem "bricked"; Fonseca (2002), by making race relationship between literature and the work of Cruz e Sousa, Souza (2004), for dealing with spaces expansion and dissemination of literature produced by black and Correia (2010), which theorizes about subalternity and (in) visibility of the black man, among other theorists who have helped us make this article . Thus, through these studies we can prove that the poet has appropriated their individual experiences to produce a discourse of collective struggle in favor of African descent, making therefore work in his poem and natural tool for unmasking of prejudice veiled elitist society. Keywords: African-Brazilian Literature. Cruz e Sousa.―Immured‖.Voices of resistance. INTRODUÇÃO

Assim como a fronteira compartilha um lado e outro, o processo indiviso da vida inclui tanto a situação de estar confinado quanto a de estar ultrapassando o confim (Georg Simmel)

Esse trabalho tem como intuito

analisar uma temática bastante polêmica da

literatura brasileira: os afro-brasileiros e seu

discurso de resistência e/ou enfrentamento à

sociedade ―brancocêntrica4‖ que sempre

estiveram presentes em nossa literatura, mas

sem gozar de visibilidade.

A análise tem como corpus o poema

em prosa ―Emparedado‖, publicado em 1898,

poema que compõe o livro Evocações, de Cruz

e Sousa. Este, com seu discurso pioneiro pelos

ideais libertários de seus descendentes, se

configura como personagem responsável pela

formação do paradigma atual, validando o

espaço e a identidade social, racial e cultural do

discurso pós-moderno. Vale enfatizar que tudo

isso acontece num espaço sem saídas, onde o

―poeta‖ e o ―eu-lírico‖ ―encontram-se presos

entre quatro paredes, emparedados dentro dos

4 Cf. conceito expresso por Cuti (2010).

seus sonhos‖ (CESCO, 2011, p. 2 - grifos

nossos).

Dessa maneira, faz-se saber: João da

Cruz e Sousa nasceu na cidade de Desterro,

atual Florianópolis, no estado de Santa

Catarina, em 24 de novembro de 1862, era

filho de ex-escravos, mas por ter vivido sobre a

proteção dos antigos proprietários de seus pais

(os quais demonstravam-lhe apreço), acabou

tendo uma educação de qualidade, no entanto,

Cruz e Sousa sofreu diversos preconceitos por

ser negro, mas esse fato não o fez desistir de

seus ideais e seus desejos pessoais e

profissionais. Veio a falecer em Sítio, uma vila

do interior do Estado de Minas Gerais, em 19

de março de 1898 (VILARINHO, 2012).

Nesse sentido, pretende-se ratificar que

no poema ouve-se o grito de libertação que

surge, não da voz de um branco que fala do

negro e se coloca como o libertário dos

afrodescendentes, mas, sim, de um negro que

abre mão de seu discurso individual para

exteriorizar um discurso coletivo. Assim, no

âmbito poético e ficcional, o poeta explora e

expõe sua consciência do trauma coletivo e de

suas consequências na vida cotidiana.

Com base na transformação da literatura

como objeto simbólico de luta dos grupos de

minoria, que visa legitimar uma mescla entre

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11 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

as culturas África-Brasil, analisaremos nosso

corpus escolhido, bem como os recursos

utilizados pelo poeta para, através de seu

discurso individual, outorgar o discurso social,

colocando a ―mãe‖ África como berço da

formação do povo brasileiro, mas que teve sua

identidade subjugada com a teoria de

inferioridade das raças.

O que nos levou a debruçar sobre essa

temática foi a priori a afinidade com o tema e

por nos possibilitar adentrar as zonas de

contato de raças, cultura e sociedade,

intimamente vinculadas ao contexto de África-

Brasil que penetra nos discursos atuais, para

visibilizar uma cultura há tempos silenciada e

desprestigiada pela cultura europeia. Além

disso, nosso interesse com o tema foi

despertado ao longo do componente curricular

―Literatura Afro-Brasileira5‖.

A importância desse trabalho se dá em

podermos mostrar como ocorreu a luta dos

grupos afrodescendentes pela legitimação de

seus direitos, os quais utilizaram para

viabilizar através da força de expressão que é a

literatura. Não obstante, o Campus não possuir

muitos trabalhos voltados para a temática,

sobretudo, sobre nosso grande poeta

simbolista Cruz e Sousa, podendo, então, ser

usado como referência bibliográfica para

futuros trabalhos.

O procedimento metodológico utilizado

foi o levantamento de obras que tratassem da

vertente literária denominada literatura afro-

brasileira. Nesse caso, a pesquisa bibliográfica

consiste basicamente na ―recuperação dos

dados impressos (‗de papel‘) ou dos arquivos

eletrônicos (‗bits de informação‘)

desenvolvendo uma investigação científica,

5 Disciplina presente na grade curricular do curso de Letras Vernáculas, ministrada pelo professor Ms.: Orlando Freire

Júnior, o qual agradecemos pelo compromisso e entusiasmo

com que ministrou essa disciplina.

desde a preparação à execução do trabalho‖

(KOCHE, 1997, p. 48).

Seguida da escolha e análise do poema

em prosa Emparedado disponível no livro

Evocações, bem como o levantamento

bibliográfico que nos auxiliaram em tal análise.

Para tanto,ao longo desse artigo utilizaremos

os estudos realizados pelos críticos literários

Cuti (2009), que nos servirão como um tripé

para mostrar o percurso do negro na literatura

brasileira, enfatizando que as obras literárias

que surgiram no Brasil com a temática do

negro, estão intimamente ligadas à política e ao

contexto de produção em que foram criadas.

Ainda na visão de Cuti(2010), o negro é

retratado como desonesto e, principalmente

submisso ao poderio do branco – bom e justo –

, ou quando se refere à mulher negra, essa é

tratada como objeto sexual que serve apenas

para agradar e satisfazer as necessidades

sexuais dos brancos. Assinalando,

consequentemente, a invisibilidade do negro,

não somente na literatura, mas também nos

espaços elitistas da sociedade.

Correia (2010) com a leitura sobre as

vozes e subalternidade do afro-brasileiro no

poema e a reafirmação da África como espaço

de riqueza cultural e, com isso, o negro se

firma como sujeito de seu próprio discurso.

Souza (2004) dialoga sobre as brigas

travadas pelos grupos de minoria para garantir

representações nas diversas esferas da

sociedade, frente as suas manifestações

discursivas sobre: ―cultura, arte, comunicação

e identidade‖ e, sobretudo, nos espaços para

divulgação de suas produções literárias. Dentre

outros, que passearão pela composição desse

trabalho.

O estudo está estruturado em três

partes. A Parte I, literatura afro-brasileira –

um discurso de resistência trará à baila a

trajetória do afrodescendente nos espaços

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12 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

sociais e literários, bem como um breve

contexto histórico sobre a escola literária na

qual o poema está imerso. A Parte II,

emparedado: a ambiência da história -galgará

sobre análise do título do poema em estudo,

bem como a relação existente entre o poema e

o autor, representado alegoricamente pelo

título da obra. A Parte III, Eu-poético e eu-

lírico – um sujeito emparedado - tratará da

África como cenário de reconstrução de um

imaginário estereotipado, traçando uma

relação entre artista e obra como faces da

mesma moeda. E a não aceitação de um

afrodescendente como artista e homem, por

ser filho da África escravizada.

1.Literatura afro-brasileira – um

discurso de resistência

Perdido o lugar de origem, o lugar de produção de sua palavra também é transferido: o outro, o branco, tem o domínio do lugar de produção linguística. E esse poder significa transformar a palavra africana não só no silêncio, mas na ausência da palavra, da palavra enquanto criação ideológica (MOYSÉS, 1998, p. 97).

Ancorado nesse discurso de Moysés

(Ibidem), faz-se importante incutir nessa

tessitura o processo de produção e divulgação

da cultura negra, enquanto instrumento de (re)

definição da identidade brasileira

estigmatizada; da relação de poder desses

grupos de minorias, e como estes são ou

passaram a ser vistos pelos intelectuais no

mundo acadêmico. Tematizando, ainda, a

memória afrodescendente em suas produções e

trazendo à tona a memória de uma cultura

invisibilizada, apagada e/ou desprestigiada

pela história oficial brasileira das escritas de

cultura branca.

A presença das vozes do negro na

literatura brasileira não escapa ao tratamento

marginalizado que, desde sua gênese, marca a

etnia no processo de construção da nossa

sociedade (PROENÇA FILHO, 2004). No

entanto, essa voz silenciada vem ao longo do

tempo buscando as mais diversas formas e

alternativas para sair dessa (in) visibilidade

clandestina. Ao passo que se faz ouvida –

rasgando o véu da submissão – vai, também,

saindo dos calabouços da dominação e

exclusão. Nesse sentido, evidenciam-se na

trajetória do discurso literário dois

posicionamentos: o negro tratado como objeto

– resultando em sua invisibilidade –, e o negro

como sujeito – que causa o embranquecimento

–. Trajetórias essas, legitimadas pelo reflexo da

sociedade ―brancocêntrica‖ (CORREIA, 2010).

A Literatura Afro-Brasileira foi moldada,

desde seu princípio, sobre o olhar sistemático

das ideias capitalistas e dominantes. Com esse

olhar observa-se que o texto literário do século

XIX, com o intuito de apresentar um símbolo

da identidade nacional, acaba fazendo da

literatura um espaço de divisão de raças em cor

– cultura – condição social, prevalecendo o

olhar do outro – branco europeu com grau de

superioridade, beneficiando, assim, a herança

do sistema escravocrata brasileiro. Desde

meados do século XIX, o negro é estereotipado

como um ser inferior, modelado com caráteres

oriundos de uma estética branca dominante

que o caracteriza como personagem e mero

objeto (CUTI, 2010).

Quando o Brasil necessitou de um

símbolo que representasse o país, Alencar

buscou essa representação na figura do índio.

Ao olhar do branco, o negro seria

impossibilitado de contribuir para o

desenvolvimento da nação por ser considerado

incapaz e necessitar constantemente da

vigilância do branco. Nota-se que a dialética

entre branco e negro no Brasil não teve a

mesma dimensão. O índio será caracterizado

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13 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

como símbolo nacional e permeará o

Romantismo até o Modernismo. Já o negro é

apresentando apenas no âmbito da escravidão

e gera, por conseguinte a subalternidade

africana (Idem, 2010).

No entanto, este mesmo negro que teve

sua voz silenciada, passou também a subverter

as ordens elitistas, utilizando os recursos

literários para exteriorizar sua voz como

instrumento de luta, e, em consequência,

revelar suas dores, sua história, sua cultura.

A literatura, assim como o discurso, é

espaço de poder. Desse modo, munidos dos

argumentos da teoria de inferioridade das

raças, ―os detentores de poder social e

cultural‖, não achando suficiente a

transformação do negro em objeto, a tentativa

de apagar uma cultura e os direitos de um

povo, roubaram desse homem trabalhador

braçal, – pertencente ao grupo de minoria – a

palavra, o direito de expressar-se, pois manter

silenciada a voz do oprimido significa a

perpetuação de um regime desumano, visto

que se essa ordem fosse rebaixada, seria o fim

de um importante sustentáculo do mito da

superioridade das raças.

Partindo desse viés, pode-se atrelar à

vertente da invisibilidade afro, intimamente

vinculada ao viés do embranquecimento. O

negro, que outrora não era visível nos espaços

sociais, ao ocupar ―lugares antes destinados

aos brancos‖ torna-se notável. Passa a ser visto

porque passou a incomodar, mas, como numa

sociedade eurocêntrica um negro não pode ser

sujeito impunemente, esse ―precisa‖ passar

pelo estágio mutatório da ―mudança de cor‖.

Todavia, como não é possível a negação total

da cor, cria-se uma falsa ilusão de brancura. ―O

negro de cor‖, que conquistou espaços sociais,

torna-se ―branco‖ e, ao passo que a ilusão do

embranquecimento invade as pessoas, o negro,

mais uma vez, torna-se invisível diante do

olhar da sociedade.

Desse modo, esse mesmo olhar da

invisibilidade perpassa, também, e/ou

principalmente, pelo campo da literatura,

porquanto, é latente a escolha excludente do

que deve ou não ser lido. Além de exteriorizar

uma visão estereotipada da literatura feita por

e/ou para o negro, trazemos à baila a

importância das publicações de textos de

autoria negra, uma vez que no momento que o

afro começa a fazer suas publicações falando

sobre sua identidade, sua cultura ameaça,

consequentemente, o pedestal do branco bom e

superior. O homem afro-brasileiro incomoda

ao passo que se coloca não mais como objeto e

sim como sujeito.

Ancorado nesse discurso, Cruz e Sousa

abala o mascaramento de uma identidade una

e coesa, bem como da cordialidade e harmonia

enraizada sob o manto da ―pátria amada mãe

gentil‖ do Hino Nacional.

E assim, temos com essa

insubordinação negra a desconstrução do que

se conhece de identidade hoje. Para Hall

(2006) a compreensão de identidade unificada

vem ao longo do tempo se desmitificando e

ganhando outras concepções, uma vez que a

identidade de um povo é marcada não somente

pela construção individual, mas também social.

Partindo desse viés entende-se que se têm

identidade heterogênea, múltipla e

fragmentada. Dessa forma, com o olhar de

Munanga (2003) a identidade negra não pode

ser moldada pela diferenciação da pigmentação

da pele, mas sim através de uma construção

cultural que teve origem com o processo de

colonização resultando nas ―relações

mercantilistas com a África, ao tráfico

negreiro, à escravização e enfim à colonização

do continente africano e de seus povos‖

(MUNANGA, Ibidem, p. 37). Sendo assim, esse

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fato histórico resultou na divisão das raças

através da cor da pele marcando a acepção de

identidade negra difundida na literatura.

Essa distinção de raças é reafirmada na

literatura elitista e em contrapartida negada

nos poemas e obras produzidas por negros. ―O

protesto negro contra o ‗mito da democracia

racial‘ funcionou como um grande diapasão

para afinar o toque de reunir dos tambores

através do encontro cuja senha era a

indignação‖ (CORREIA, 2010, p. 20). Dessa

forma, percebe-se que Cruz e Sousa no poema

em prosa em estudo, utiliza essa ―senha‖ para

expor sua indignação, transformar o seu eu-

coletivo em sujeitos e o mesmo aparelho de

opressão e massacre servirá, ainda, como

instrumento de libertação e afirmação de um

grupo de minoria, que na verdade é maioria.

Aquele mesmo afro-brasileiro que

tinha recebido o status de objeto, não

corresponde à realidade individual de um

poeta negro que sabia e se fazia capaz de

confrontar os argumentos da ideologia

dominante, do discurso antropológico e da

ciência oficial, assim como qualquer branco

intelectual. ―Mas, que importa tudo isso?! Qual

é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é

a cor da tempestade de dilacerações que me

abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a

dos meus desejos e febre?‖ (CRUZ E SOUSA,

1995, p. 381). Discursos como esses, fizeram do

Emparedado, um fenômeno de resistência

cultural e um importante instrumento de

demonstração da força do homem negro.

Atitudes como as do ―Cisne Negro‖,

como ficou conhecido, fortalecem a certeza de

que a literatura, do mesmo jeito que pode ser

perversa e desconstruir a imagem e/ou

imaginário de um sujeito, pode estigmatizar os

conceitos do bem e do mal, do negro e do

branco, como também é capaz de ajudar a

formar e/ou resgatar identidade, de

desmitificar as teorias científicas. Nessa visão

bidimensional da literatura Cândido (2004)

autentica:

A respeito destes dois lados da literatura, convém lembrar: ela não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração. Isto significa que ela tem papel formador da personalidade, mas não segundo as convenções, seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade (p. 175).

Durante anos na história da literatura

propagou-se que o afrodescendente não

escrevia porque era desprovido de suas

capacidades intelectuais, não sabia ler nem

escrever, por isso a literatura negra acabava

ficando no campo da oralidade, sendo

repassada de pai para filho, de geração a

geração, ao longo do tempo (CUTI, 2010). E,

ainda, quando iam à casa grande para escutar

as histórias feitas por seus senhores, ficavam

apenas ouvindo-as, sem delas participar.

Assim, o escravizado ―Configura-se um leitor

ouvinte, ou um leitor que escuta uma

oralização de uma escrita, mas que sabe que

essa leitura não é feita para ele‖ (MOYSÉS,

1998, p. 103). Desse modo, não se fazia uma

literatura genuinamente negra, o afro era

apenas tema de uma obra e não vida dela

(obra), falavam sobre o negro e não do negro,

porque quem escrevia não fazia isso com o

conhecimento de causa, e acabavam

escrevendo sob a ótica elitista.

Nesse sentido, o negro só foi de fato

representado na literatura no momento em que

passou a difundir sua voz através da literatura

negra, feita por e para o negro. Quanto a esse

aspecto o escritor Cuti (Ibidem) legitima:

A literatura negro-brasileira nasce na e da população negra que se formou fora da África, e de sua experiência no

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15 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”

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Brasil. A singularidade é negra e, ao mesmo tempo, brasileira, pois a palavra negro aponta para um processo de luta participativa nos destinos da nação e não se presta ao reducionismo contribucionista a uma pretensa brancura que a engloba como um todo a receber daqui e dali, elementos negros e indígenas para se fortalecer (p. 44-45).

Em outras palavras, Cuti (2010) afirma

que a literatura negra ou afro-brasileira só

passou a existir ao passo que o negro começou

a ser autor de suas próprias histórias, sendo

assim, o que se tinha antes era meramente

literatura. ―Isolada ou coletivamente, os afro-

brasileiros, por seu turno, tentam forjar e

divulgar outras imagens de si, contrariando os

estereótipos vigentes‖ (SOUZA, 2004, p. 31).

―Emparedado‖, apesar de passado

pouco mais de um século de sua publicação,

consegue permanecer atual. Sua linguagem é,

em todos os aspectos, inovadora e

denunciadora. O poeta mescla assuntos desde

o sofrimento do homem negro, o preconceito

velado da sociedade brasileira, até a não

aceitação dos artistas de sua época com seus

escritos, os quais consideravam a literatura

negra como de inferioridade, por isso, o poeta

Dante é peça imprescindível para as formas

que se discute negritude e os conceitos de raça

hoje.

2.“Emparedado”: a ambiência da

história

Desde as últimas décadas do século

XIX, sobretudo no finalzinho de 1880, surgem

no Brasil, as primeiras influências do

Simbolismo francês. O início do movimento só

é de fato considerado oficial e aceito após a

publicação de dois livros do poeta Cruz e Sousa

em 1893: Missal (1893), poemas em prosa,

Broquéis (1893), versos. O jovem intelectual

passou a escrever poemas em prosas e poesias,

sendo considerado o precursor do Simbolismo

no Brasil e até hoje, consagrado como o mais

importante escritor simbolista brasileiro

(BOSI, 1999).

Transportado para o Brasil, o

Simbolismo foi considerado um movimento

hesitante, ambíguo em suas formulações.

Segundo Brandão (2010) ao se referir ao

pensamento de Edmundo informa que, afora o

entusiasmo com que Roger Bastide e Nestor

Vítor saudaram o merecido talento literário de

Cruz e Sousa, as primeiras manifestações

simbolistas nacionais não obtiveram, no

momento de seu surgimento, uma acolhida

afável por parte dos historiadores de nossa

literatura.

Com novas ideias e novas roupagens,

começou a urgir no campo das artes e das

ciências o simbolismo, que vai se opor tanto ao

Realismo quanto ao Parnasianismo, situando-

se muito próximo das orientações românticas,

que será de certa forma uma renascença. Desse

desejo surgem, por conseguinte, os artistas que

estavam descontentes com a mentalidade

racional que não eram capazes de traduzir

questões relacionadas à condição e existência

humana (BOSI, Ibidem).

Partindo desse viés, passamos a

compreender os escritos de defesa do poeta,

pois não era possível separar o artista do

assunto, já que para o autor, subjetivo e

objetivo se fundem, espírito e objeto se

constituem. Assim, afirma Edmundo sobre o

olhar de Brandão (Ibidem):

O movimento simbolista, meus senhores [disse João do Rio] não será jamais um movimento popular. Literatura de casaca, luvas, gravata branca e peitilhos em goma é apenas um gostoso recreio, um desafio para refinados espíritos, para privilegiadas elites de uma estouvada geração. Literatura de estufa, planta para vaso em aquecidos salões (p. 120).

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16 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira

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O poeta catarinense ainda faz uma

crítica (in) direta não somente aos poetas da

escola literária anterior, mas também aos

poetas de modo geral que fazem da arte um

instrumento de ostentação de poder, por isso

optam por fazer um discurso leve e

descompromissado com a sociedade.

Era uma politicazinha engenhosa de medíocres, de estreitos, de tacanhos, de perfeitos imbecilizados ou cínicos, que faziam da Arte um jogo capcioso, maneiroso, para arranjar relações e prestígio no meio, de jeito a não ofender, a não fazer corar o diletantismo das suas idéias. Rebeldias e intransigências em casa, sob o teto protetor, assim uma espécie de ateísmo acadêmico, muito demolidor e feroz, com ladainhas e amuletos em certa hora para livrar da trovoada e dos celestes castigos imponderáveis! (CRUZ E SOUSA,1995, p. 371).

Poetas que não comungavam desse

discurso de ostentação de poder e

mediocridade, como define Sousa, não eram

dignos de serem lidos. Por outro lado, os que

adotavam esse mesmo discurso, eram dignos

de aplausos. Assim, observemos que um artista

é reconhecido não pelo seu talento, mas pela

cor de sua pele, pelo tipo de argumentos que

usa para defender sua criação. Sobre esse

aspecto Cruz e Sousa afirma: ―[...] não pertenço

à velha árvore genealógica das

intelectualidades medidas, dos produtos

anêmicos dos meios lutulentos, espécies

exóticas de altas e curiosas girafas verdes e

spleenéticas de algum maravilhoso e

babilônico jardim de lendas...‖! (CRUZ E

SOUSA, 1995, p. 387).

Com esse mesmo olhar o poeta dirige-

se não somente aos artistas da época, mas

também ao público, a todos que não o

compreendem como artista, pois, sobre sua

ótica, a sociedade da época não estava

preparada para lê-lo, por isso o poeta sente-se

emparedado.

Partindo da terminologia da palavra,

segundo o dicionário Aurélio online (2008)

―emparedado significa adj (parte de

emparedar) 1 Que se emparedou; ladeado de

paredes. 2 Encerrado entre paredes;

enclausurado. sm Pessoa que, por castigo ou

penitência, era encerrada entre paredes, ou

totalmente, ou recebendo ar e alimento por

uma fresta‖ (2008, online).

Compreendendo o vocábulo que dá

nome ao poema do artista catarinense, pode-se

pensar inicialmente que ―Emparedado‖ seriam

as paredes que cercam o autor. Alegorias que

poderiam se referir a tudo que seria

correspondente a restringir ou até mesmo

extinguir a liberdade e limitar, talvez, as

capacidades criativas que lhe são dadas por

uma condição racial visceral.

Segundo Fonseca (2002), o

emparedado de Cruz e Sousa revela as paredes

que o cercavam, paredes essas que são

representadas pelos: ‗Egoísmos e preconceitos‘,

‗Ciências e Críticas‘, ‗Despeito e Impotências‘,

‗Imbecilidade e Ignorância‘ de uma sociedade

que o aniquila.

Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto... (CRUZ E SOUSA, 1995, p. 390 – grifos nossos).

Cruz e Sousa foi um poeta à frente de

seu tempo, seja nos vocábulos usados, seja na

temática apresentada em seu poema. Pois,

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17 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

mesmo tendo vivido na qualidade de branco,

não permite ser manipulado pela

―branquitude‖ que o rodeia, mas, sim, utiliza-

se dessa condição para denunciar e orgulhar-se

de seus antecedentes. Contudo, com seu

discurso de resistência, enuncia as paredes que

cercam todos os afrodescendentes. Desse

modo, essas paredes que o emparedam são

formadas por dados hipotéticos de conceitos

infundados de superioridade e inferioridade

das raças humanas, dos preconceitos, racismos

e escravismos da sociedade do século XX.

Assim, o poeta pode estar

―emparedado‖ em seu sonho como podemos

ver no próprio poema. Assinala-se, ainda,

nessa leitura simbólica, que essas paredes que

o cercam podem ser também sua própria pele,

esta emparedada em seu corpo. Em seguida,

vai assinalar e expor sua raça, entrando em

confronto com as outras raças vistas fora de

sua pele, portanto, sofre, por não poder

enfrentar os embates de sua vida social, já que

está emparedado e sublimado em suas próprias

paredes. Nas esteiras de Fonseca (2002),

compreende-se que o fato de entrar em

confronto, seria um tipo de violência, aquela

que sofre o poeta, física e metafisicamente,

emparedado em sua pele negra e em sua poesia

(máscara) branca. É o que podemos perceber

no seguinte trecho do poema: ―Não! Não! Não!

Não transporás os pórticos milenários da vasta

edificação do Mundo, porque atrás de ti e

adiante de ti não sei quantas gerações foram

acumulando, acumulando, pedra sobre pedra,

pedra sobre pedra, que para aí estás agora o

verdadeiro emparedado de uma raça‖ (CRUZ E

SOUSA, 1995, p. 390).

Para fazer-se ouvido, o poeta ―veste-se‖

de elite branca. Como não pode mudar sua cor

exterior e nem mesmo o seu discurso, porque

este faz parte dele, então muda sua maneira de

falar. O próprio poeta vivencia o preconceito

velado, camuflado. Um grande poeta negro

falando do negro como negro jamais seria

ouvido, mas um negro falando

mascaradamente do negro como um branco

havia uma esperança de ser percebido. Por isso

o poeta Dante, se sente o tempo todo

emparedado, encurralado, tendo que negar sua

cor, sua identidade afro para poder, através de

sua arte, denunciar a elite branca . O negro não

podia ser pacífico para ter seus direitos

legitimados, mas deveria e/ou foi obrigado a

utilizar-se das mesmas armas de seu opressor,

para outorgar um direito constituído. Cruz e

Sousa, aqui, mostra-se encurralado vivendo

nesse constante conflito entre a natureza e

identidade negra e o meio que o oprime, que

mais tarde configura-se como um embate

social.

3. Eu-poético e eu-lírico – um sujeito

emparedado

É mister salientar que ―Emparedado‖

refere-se a um poema em prosa do poeta Cruz

e Sousa, o último poema que compõe a obra

Evocações. Como se fosse a conclusão do livro,

poema quase que autobiográfico, o poeta

Dante mostra para o leitor não somente sua

indignação com a maneira que os brancos

tratavam o negro, mas, também, a

aceitabilidade da arte produzida por negros. O

poeta ao escrever esse poema em prosa, não

obedece inteiramente às regras – regras essas,

impostas pela elite branca -, uma vez que no

Simbolismo o artista busca suas

individualidades para expor sua arte. Neste, o

escritor faz do seu ―eu‖ uma defesa de classe,

portanto, coletivo. Concernente a esses

aspectos, percebe-se que ―Emparedado‖ é de

uma riqueza de expressão e estilo, no qual

poderia ser título de uma obra. Sobre essa

ótica, Cesco nas esteiras de Coutinho salienta:

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18 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira

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―esse soluço que não é apenas um soluço de

revolta pessoal, mas a revolta de toda uma raça

condenada pela civilização inteira‖ (CESCO,

2011, p. 2).

Sobre esse aspecto, é válido ressaltar

que mesmo Cruz e Sousa não afirmando

claramente que ―Emparedado‖ é um poema

autobiográfico, muitos estudiosos defendem

que se trata de um testamento de homem e

poeta (COUTINHO, 1979). No entanto, em

umas das partes do poema o poeta deixa

reluzir o termo como também hoje é conhecido

―Dante Negro‖: ―A África virgem, inviolada no

Sentimento, avalanche humana amassada com

argilas funestas e secretas para fundir a

Epopéia suprema da Dor do Futuro, para

fecundar talvez os grandes tercetos tremendos

de algum novo e majestoso Dante negro!‖

(CRUZ E SOUSA, 1995, p. 389). Sendo

perceptível que Dante Negro ao elaborar seus

poemas em prosa, vale-se de suas dores não

somente as artísticas, mas, também, as

pessoais, e essas são as temáticas que refletem

na prosa em estudo. Para tanto, o poeta com

uma linguagem erudita e envolvente busca

transformar suas dores oriundas do

preconceito racial sofrido por ele, em criações

artísticas, que o representam todo o grupo

marginalizado pela elite da época,

simbolizando a cor da noite e a cor da África

escravizada. Vejamos o seguinte trecho: ―Eu

trazia, como cadáveres que me andassem

funambulescamente amarrados às costas, num

inquietante e interminável apodrecimento,

todos os empirismos preconceituosos e não sei

quanta camada morta, quanta raça d'Africa

curiosa e desolada que a Fisiologia nulificara

para sempre com o riso haeckeliano6 e papal!‖

(Idem, ibidem, p. 363).

6 Os fundamentos do pensamento racista brasileiro, baseado em

Montesquieu (teoria climática e tipos de escravidão), Buffon

(clima temperado e superioridade europeia) Cordelius De Pauw

À luz dessas reflexões, percebe-se que

Cruz e Sousa apesar de ser apresentado por

muitos como poeta de ―brancura‖,

compreende-se que por meio do poema em

prosa, sua condição de afrodescendente se

aflora ainda mais. Suas vivências pessoais são

exploradas ao longo do poema, desvendando,

através de uma linguagem discursiva e

requintada, os conflitos sociais. Assume, assim,

o poema um caráter de manifestação e reflexão

assinalada.

Muitos são os fatos que nos levam a

pensar sob esse viés: A Sensibilidade com

que é tratado o tema da escravidão, do

sofrimento, da dor e desilusão do homem

negro. O uso dos elementos do passado e o

diálogo em primeira pessoa, como se fizesse

lembrar, ―O seu nome carinhoso e parnasiano

recordava...‖, ―E quantas, quantas vezes eu a

vi...‖ (CRUZ E SOUSA, 1995, p. 127-128).

Essa autenticidade do eu poético

souseano em ―Emparedado‖que nos leva a

pensar em verossimilhança é na verdade:

(...) como em toda a prosa poética de Cruz e Sousa, diluídos são os fatos. O que se tem são nuanças, apenas, de referenciais da realidade. Entretanto, o envolvimento do narrador-personagem remete o texto, pelos elementos de pessoalidade que apresenta, às características do testemunho, que não se firma, contudo, tendo em vista a resistência ao factual. Apesar de tal resistência, a perspectiva de um passado narrado com envolvimento induz, em Emparedado, que vários conteúdos pertencem à memória de quem narra. [...] promove a ilusão autobiográfica [...] (CUTI, 2010, p. 155 – grifo nosso).

(Acão climática e inferioridade racial), Golbineau (superioridade

da raça ariana e efeitos degenerativos da miscigenação), e inspirados em outros (Kant – degradação da raça superior com

cruzamento com raças superiores; Darvin – a sobrevivência dos

mais aptos; spence – evolucionismo das sociedades humanas; Haeckel – evolucionismo biológico; Ratzel – relação de causa e

efeito entre o meio ambiente e as realizações humanas), com sua

carga depreciativa a respeito dos trópicos, geraram aparentemente, nos intelectuais brasileiros a necessidade de

banir as marcas do atraso do País adaptando aquelas teorias

(CUTI, 2009. p. 70).

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19 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”

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E essa ―ilusão‖ autobiográfica é, ainda,

revelada pela presença do não silenciamento

do poeta catarinense, que, mesmo em meio ao

emparedamento social que sofria, não se calou,

aproveitando para dar voz ao grito do oprimido

escravizado, desnuda o ―preconceito branco‖ e,

assim o fazendo, reluz uma vivência de

escravidão, como que vista de perto. O

percurso realizado pelos homens ―[...] ontem

simples fortes bravos/ hoje míseros escravos

sem luz, sem ar, sem razão [...]‖ (ALVES, 2002,

p. 22) – da África para as Américas como

escravos, é marcado pelo sangue, pela

desilusão, sem saber como seria seu destino:

De outros Golgothas mais amargos subindo a montanha immensa,— vulto sombrio, tetro, extra-humano! — a face escorrendo sangue, a bocca escorrendo sangue, o peito escorrendo sangue, as mãos escorrendo sangue, o flanco escorrendo sangue, os pés escorrendo sangue, sangue, sangue, sangue, caminhando para tão longe, para muito longe, ao rumo infinito das regiões melanchólicas da Desillusão e da Saudade, transfiguradamente illuminado pelo sol augural dos Destinos!... (CRUZ e SOUSA, 1995, p. 362 - sic7).

Dessa forma, o poeta revela a marca da

escravidão, que configura a relação de poder de

uma cultura sobre a outra, de uma identidade

sobre a outra. Contudo, ―As civilizações, as

raças, os povos digladiam-se e morrem

minados pela fatal degenerescência do sangue‖

(Idem, ibidem, p. 365), sangue que corre em

suas veias, que revela sua cor e, portanto sua

raça.

Por conseguinte, para Gonçalves

(2010) diríamos antes de tudo que

―Emparedado‖é um desabafo de uma vida

inteira cheia de dificuldade, não somente um

desabafo individual, mas, também, um

desabado de um grupo marginalizado pelo

7 Grafia do autor, conforme fonte de pesquisa.

poder operante e excludente. Assim, critica o

racismo que tenta legitimar a ignorância eterna

―de uma raça que a ditadora ciência de

hipótese negou em absoluto para as funções do

Entendimento, e, principalmente, do

entendimento artístico da palavra escrita‖

(CRUZ e SOUSA, 1995, p. 381).

Muitos estudos defendem que o poema

em prosa de Cruz e Sousa é também um poema

de libertação, de legitimação da voz negra na

literatura, de uma voz que foi ao longo de sua

história silenciada, mas que agora faz ser

ouvida. Mas, não deve ser fácil para os grupos

privilegiados ouvir a verdade saindo da boca do

subalterno. Deve, ainda, ser tão incomum, tão

tímido, esse grito que o eu-lírico revela: ―eu

caminho e sonho tranquilo! pedindo a algum

belo Deus d'Estrelas e d'Azul, que vive em

tédios aristocráticos na Nuvem, que me deixe

serenamente e humildemente acabar esta Obra

extrema de Fé e de Vida!‖ (Idem, 1995, p. 373).

Assim, nos chama atenção termos

grafados em maiúsculo, Estrela, Azul, Nuvem,

que remetem à ideia de brancura e de

luminosidade, que entram em comum acordo

com Fé e Vida, mas que se opõem ao discurso

traçado no texto, na ―Obra‖, também grafada

em maiúscula, para dar força e poder aos seus

argumentos.

Percebe-se que, para o poeta, revelar,

também, não é uma tarefa fácil, pois o artista

se sente como em meio a Deus e o Diabo, entre

a dúvida e a certeza, pois, assim como não é

fácil para o branco ouvir o grito outrora

silenciado do negro, legitimando seus direitos,

também não é fácil para o negro, com seu

discurso singular, desnudar as opressões

sofridas, uma vez que corre o risco de não ser

aceito como artista e homem.

O que tu podes só, é agarrar com frenesi ou com ódio a minha Obra dolorosa e solitária e lê-la e detestá-la

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20 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira

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e revirar-lhe as folhas, truncar-lhe as páginas, enodoar-lhe a castidade branca dos períodos, profanar-lhe o tabernáculo da linguagem, riscar, traçar, assinalar, cortar com dísticos estigmatizantes, com labéus obscenos, com golpes fundos de blasfêmia as violências da intensidade, dilacerar, enfim, toda a Obra, num ímpeto covarde de impotência ou de angústia (CUTI, 2010, p. 35).

De forma direta, a narrativa versará,

dentre outros aspectos, sobre a dor do

escravizado. Fazendo uso de uma linguagem

rebuscada, rica em metáforas, sinestesias e

aliterações, características presentes no

simbolismo, sendo possível comprovar tal

afirmação com o uso de aliterações – errava

nos tons violáceos vivos (―v e s‖); suntuoso

acesso (― s‖); cuja a cor cantava-me (―c‖);

linha longe (―l‖); dos horizontes em largas

faixas rutilantes (―s‖); fulvo e voluptuoso (―v‖);

quebravam-se e velavam-se (―v‖). Dentre

outras características já citadas a priori como:

letras maiúsculas no meio de frases para

destacar palavras desejadas, musicalidade e

sinestesia (CRUZ E SOUZA, 1995).

Através de sua linguagem e valendo-se

do mascaramento de sua cor, o poeta denuncia

os conflitos sócio-raciais existentes, pois quem

lê seus poemas, não vê sua cor, desse modo se

passa por um ―branco‖ com sua linguagem

bem elaborada, e, assim, desmascara a

sociedade eurocêntrica e luta pela outorgação

dos direitos étnico-raciais das classes de

minoria.

É por tudo isso que:

Na produção de Cruz e Sousa [...], o patético atuará como um índice dialógico e dramático, sendo as performances do ―eu‖ lírico e a da primeira pessoa narrativa os recursos básicos, mas a ironia será um pólo regulador para que o desnudamento da opressão se faça com segurança e arte (CUTI, 2010, p. 80).

O poema, assim como toda a obra

Evocações, é um poema de mágoas, desilusões

e indignação do eu-lírico, enquanto artista que

busca veicular sua obra, mas que se sente

sozinho e cansado; cansado por sonhar e

esperar, cansado de gritar em vão por

libertação, por humanização.

De que subterrâneos viera eu já, de que torvos caminhos, trôpego de cansaço, as pernas bambaleantes, com a fadiga de um século, recalcando nos tremendos e majestosos Infernos do Orgulho o coração lacerado, ouvindo sempre por toda a parte exclamarem as vãs e vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar! Por que estradas caminhei, monge hirto das desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta e chora Réquiens nas árvores, nos mares, nos ventos, nas tempestades, só e taciturnamente ouvindo: Esperar! Esperar! Esperar! (CRUZ ESOUSA, 1995, p. 356 - grifos nossos).

Ao longo do tempo a história literária

quis mostrar a bondade do homem branco,

aquele que ―defende‖ e que dá ―direito‖ aos

seus escravos, o que podemos até presenciar na

vida do próprio autor do poema

―Emparedado‖, que teve todas as regalias na

casa de seu senhor, no entanto, aqui nesse

fragmento (aproveitando para dar ênfase nos

termos destacados), o poeta catarinense

aponta outro lado dessa moeda: aquele em que

o negro é convidado a esperar por dias

melhores, a esperar por condições de vida

digna e pela legitimação de seus direitos, mas

nada acontece além de esperar e esperar. Toda

essa espera vem ao longo dos séculos

provocando sentimentos dúbios nesses filhos

do ―sofrimento‖ de um lado, dor e tristeza, e,

por outro, a esperança. Essa dualidade é

marcada principalmente pelos termos citados

no poema ―canta‖ e ―chora‖.

Ao longo do poema, o poeta simbolista

mostra-se preocupado com os conflitos sociais

Page 22: Opará Revista vol. 2 julho/2014

21 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

coletivos, vivenciados pelos grupos de minoria

e no decorrer dele, quase em seu final, o poeta

assinalado questiona a qualidade do artista

escolhido pela sua cor, episódio que demonstra

o quanto sua obra foi marginalizada, o que

autentica que o espaço literário é fragmentado

e elitista, uma vez que muitos são os casos em

que o artista vai ser escolhido não pelo talento

que possui, mas pela cor de sua pele que o

assinala e denuncia. E com esse olhar o poeta

Negro reporta-se às suas origens para revelar

os estereótipos impostos pelos brancos aos

negros, para desmerecê-los, sobretudo, em seu

trabalho intelectual como a escrita. Segundo

Fonseca (2002) ―a África, no texto de Cruz, não

é simplesmente o lugar virtual das origens

ancestrais do artista. Antes, é um obstáculo

tanto à origem do poeta quanto ao seu status

em seu lugar atual, brasileiro, que é, de certo

modo, ainda torturadamente africano‖ (p. 66).

E por falar do lugar do negro – afro-brasileiro

– sofre por não ser aceito como homem e

artista. Pois pertencer à África escravizada é

sinônimo de desmerecimento e submissão.

Artista! pode lá isso ser se tu és d'África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia! A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das Impiedades supremas, das Blasfêmias absolutas, gemendo, rugindo, bramando no caos feroz, hórrido, das profundas selvas brutas, a sua formidável Dilaceração humana! A África laocoôntica, alma de trevas e de chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantemente tempestuosa como a alma espiritualizada e tantálica da Rússia, gerada no Degredo e na Neve — pólo branco e pólo negro da Dor! Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região desolada, lá no fundo exótico dessa África sugestiva, gemente, Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãsrebelados, dessa flagelada

África, grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo do mundo Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas! A África virgem, inviolada no Sentimento, avalanche humana amassada com argilas funestas e secretas para fundir a Epopéia suprema da Dor do Futuro, para fecundar talvez os grandes tercetos tremendos de algum novo e majestoso Dante negro! (CRUZ E SOUSA, 1995, p. 389 - grifos nossos).

Percebe-se aqui uma antítese no que se

refere ao branco representando ― ―o Europeu,

o cristianismo, a virtude, mas também a

esterilidade, o frio, a neve mortiferal. E o negro

representando ― o africano, a luxúria, o

pecado, o fetichismo, mas também a vida, a

fecundação, a força criadora – a dor‖

(COUTINHO, 1979, p. 167). Ao percorrer a

citação, vemos claramente os ecos da África

que são parte de um discurso das diversas

vozes africanas, tanto as vozes do colonizado,

quanto as vozes do colonizador.

Nesse momento percebemos que Cruz

e Sousa ―compõe o quadro, mais uma vez

dilacerado, da cena de suas origens perdidas e

uma alegoria da tragédia transcultural da

colonização‖ (FONSECA, 2002, p. 6). Assim,

essa África descrita e buscada pelo poeta, versa

sobre a ideia de lugar distante, mas que

possível de ser alcançada, e essa realidade só é

provável através de um ―Dante Negro‖ – de um

descendente que sabe e sente as agruras dos

seus – mas que, ao mesmo tempo, assinala um

emparedamento que o aprisiona e conduz a

uma vida cercada dos dogmas e paredes de

uma sociedade ―civilizada‖.

Essa imagem se é o signo de uma sofrida ligação entre o poeta e seus ancestrais, não conduz ao Continente Negro, evidentemente, mas leva-o a uma África de si mesmo e dos outros que o compõem: leva-o à sua poesia,

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22 Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda e Kárpio Márcio de Siqueira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

que aspira à permanência, e ao seu tempo e lugar – vividos para serem superados. Tudo isso ocorre no encontro/embate de Cruz e Sousa com a tradição literária ocidental, desembocada no Brasil, tradição enriquecida com sua obra. É assim que o poeta chega ao seu emparedamento no corpo físico, por sua vez emparedado pela sociedade, e anseia pela expansibilidade do corpus poético que o aprisiona e liberta (FONSECA, 2002, p. 7).

Paralelo a isso, o poeta descreve o

sistema opressor que o oprime como poeta,

como filho de ex-escrava, que viveu sobre o

regime de dois mundos, – de um lado a

escravidão de seu pai e a liberdade de sua mãe

e, do outro, a regalia da casa do senhor branco.

Toda essa conjuntura o ajudou a ter

consciência de sua condição social, e não de

sujeitamento e omissão diante da realidade

que vivia. A criança que estudou, ―viveu como

branco‖, não permitiu escravizar sua origem e

esquecer seus antepassados, muito pelo

contrário. O jovem Sousa, revestido de

candura, ergue sua voz em defesa dos seus e de

sua Mãe África, espaço que tão bem o

representa, pois, assim como ele, sua Terra é,

também, um espaço dúbio, lugar de começo e

fim, de perda e reencontro, de escravidão e

libertação.

Por outro lado, a população burguesa,

mesmo ostentando todo ouro e prata, seus

argumentos são tão vazios, suas ações são tão

nefastas que adoecem da doença da alma, e,

com isso, não podiam desfrutar de sua beleza,

sua riqueza e ‗brancura‘. De acordo com o

poeta aquelas pessoas são de almas ―tão baixas,

de tão rasas que são nem merecem a

magnificência, a majestade do Inferno‖

(CRUZ E SOUSA, 1995, p. 375). Grafado com a

letra maiúscula, para não passar por

despercebido aos olhos do leitor o peso da

palavra, o peso da culpa dessa sociedade

omissa que emudece e se faz emudecer diante

de tanta dor, de cada cantar de chicotes que

ainda hoje os descendentes da mãe África

ouvem cantar e dançar os seus.

A mesma Mãe África, que um dia viu

seus filhos tornarem escravos; mães e pais

chorarem e gemerem por seus filhos levados na

escuridão da noite, hoje vê o regresso dos seus,

em busca de libertação, pois todos que se

orgulham de suas raízes retornam para lá para

comprovar sua luta e vitória sobre seu

opressor. ―O temperamento entortava muito

para o lado da África: — era necessário fazê-lo

endireitar inteiramente para o lado Regra, até

que o temperamento regulasse certo como um

termômetro!‖ (CRUZ E SOUSA, 1995, p. 365).

4. À guisa de conclusão

Eis o nosso modo de ver e

compreender as relações África-Brasil

atravessado pelo olhar de Cruz e Sousa,

enveredado, não pelo caminho da unicidade,

mas, pela pluralidade de sentidos que emanam

da literatura. Portanto, poeta e homem, nessa

conjuntura do ambiente literário, podem

perfeitamente se fundirem para revelar e

desvendar os segredos e mitos da sociedade.

Ressaltando, sobretudo, o discurso articulado

do autor para o fator – resistência. Resultado

de seu emparedamento dentro de sua própria

pele.

É perceptível que o poema é munido de

algumas estratégias que servirão como uma

espécie de oposição e enfrentamento às

condições que os negros estavam submetidos,

além de uma reconstrução que será delineada

no poema pelo próprio autor como um resgate

da origem, cultura e valorização dos costumes

e tradições africanas. Deparamo-nos então

com uma ressignificação latente na nova

construção da África e uma desconstrução dos

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23 Cruz e Sousa: o negro como sujeito encurralado – um diálogo de resistência em “Emparedado”

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

estereótipos negativos evidenciados pela

sociedade brancocêntrica.

O texto pretendeu ser uma voz em

favor do negro e mostrar que esse discurso é

sustido pelo autor, principalmente, por sua

obra ser ―violentamente‖ armada, contra uma

sociedade dominante que não aceitava o

afrodescendente como um ser capaz de mudar

e transformar sua realidade e o poder vigente.

Transformações essas que tiveram que ser

traçadas com toda a força e voracidade

permitida na arte literária.

Evidenciando-se isso, o ―campo de

luta‖ travado no poema é sugerido por uma

espécie de agonia e dilaceração do poeta contra

a opressão que os afrodescendentes sofriam já

que o poema é uma batalha contra a opressão

sofrida no que se refere à classe, a cor e,

sobretudo a resistência desses homens tão

sofridos.

Contudo, Cruz e Sousa preocupa-se,

sobretudo, com as questões pertinentes a afro-

brasilidade e dialética entre o negro e branco,

como foi exposto no próprio artigo, que se

constituíram de forma desigual em nossa

sociedade. Todavia, não é incomum que esse

processo se desdobre de maneiras diferentes

entre esses dois grupos.

No que se refere às estratégias

abordadas pelo autor supracitado,

encontramos a reconstrução dessa base

cultural africana, seguida das tradições e

costumes herdados pelos afrodescendentes

precedida por esse discurso de resistência e

enfrentamento à condição estigmatizada e

moldada pela sociedade elitista. Além de haver

uma luta pela valorização do coletivo. Nessa

concepção, o negro na literatura se firmará

como sujeito do seu próprio discurso.

Deixando a cargo do leitor perceber as nuanças

do racismo brasileiro, enraizado no mito da

democracia racial

Por fim, nos deparamos com um

poema que não fugiu à tônica do seu tempo, e

até hoje resinifica as marcas profundas de uma

sociedade que se manteve, sobretudo ancorada

no bojo de uma cultura escravista; mas apesar

dessas marcas, Cruz e Sousa não se manteve

estigmatizado, pelo contrário, usou de sua arte

para transformar, reconstruir e resinificar sua

voz, cor, cultura e seu próprio país, berço de

sua origem, a África mãe, como foi

denominada pelo autor.

Assim, pretendeu-se explanar nesse

artigo, que o laço infindável deste (negro

brasileiro), com os de sua origem, delineou as

lembranças do poeta e de seus descendentes

com olhar bidimensional: de um lado tristeza

pela vida que tiveram, por tanto sofrimento,

por tanto sangue e lágrimas derramadas pelos

seus, quando um dia alguém decidiu torná-los

escravos. Por outro lado um olhar de

esperança, foi lá onde tudo começou, lá é

também seu ponto de recomeço, de nova

história, afinal o oprimido passou a gritar

liberdade, passou a dizer não às algemas da

opressão e do preconceito.

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Page 26: Opará Revista vol. 2 julho/2014

RESISTÊNCIA NEGRA EM A VOZ DO

EXCLUÍDO DE MV BILL: O HIP HOP NA

CULTURA BRASILEIRA

Maria Adaljiza Xavier Santos e Rodrigo Reis Carvalho1

Kárpio Márcio de Siqueira2 RESUMO O presente article apresenta o Hip Hop, em especial, o estilo rap, como exemplo de cultura contemporânea de resistência negra. Para isso, escolheu-se o rap A Voz do Excluído de MV Bill como objeto principal de investigação, isso por ser uma das letras que além de representar a afirmação de uma identidade negra, emana intervir no exercício e na estrutura do poder político-cultural. Antes, foi pertinente esboçar um breve percurso da difusão do negro no espaço brasileiro, amparando-se em suas resistências às práticas de dominação do colonizador; sendo necessário, também, trazer algumas informações de como o negro vinha/vem sendo representado nos discursos institucionais. A partir da análise do corpus, A Voz do Excluído, foi possível perceber que os discursos presentes nos raps brasileiros estão associados a questões históricas e sociais, assim, fica evidente que os manifestantes do Hip Hop ao trazerem uma cultura, traz também suas histórias, passando a sensibilizar todos aqueles que se prontificam a uma atenção a essa manifestação gritante, por contestar os discursos e práticas racistas excludentes. A metodologia aplicada para elaboração desse trabalho se deu a partir de pesquisa bibliográfica, tendo como fundamentação teórica os autores: Souza (2006), Andrade (1999),André (2008), Santos (2009), Righi (2011); entre outros.

Palavras-chave: Hip Hop.Identidade Negra. Resitência. MV Bill. The presente article shows the Hip Hop, in special, the rap style, as na axemple of contemporaneous culture of black resitence. For that, we chose the rap A voz do Excluído by MV Bill as the main goal of investigation, it was select because its message shows us the representation of the black identity affirmation , and it also disturbs the cultural and political structures by its message. At first we talked briefly about black people lives in Brazil, including their colonized historic context and how black people had been describing by an Institutional speechs. From the analyses of the corpus, A voz do Excluído, it was possible to noticed that the voices into these songs are envolved in social and historical questions, then, it was marked that when the manifesting people of Hip Hop when they brought to us themes of culture and history, they might sensibilizing everybody that heard their message that talks about unspeechs, e excluding racial practical. The applying method in that work was based on bibliografhic researching, and we use as the principal scientific theory source authors such as Souza (2006), Andrade ( 1999), André ( 2008), Santos( 2009), Righi ( 2001) and others.

Key Words: Hip Hop.Black Identity. Resistence. MV Bill.

1 Graduandos em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia.

2 Professor da UNEB, Coordenador do Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação –

OPARÁ, Mestrado em Crítica Cultural, pela UNEB. Graduação em Letras com Inglês, pela Faculdade de

Formação de Professores de Arcoverde.

Page 27: Opará Revista vol. 2 julho/2014

26 Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Legitimar a violência da dominação dos

povos é uma forma de aliviar a culpa. É

transformar toda a violência, por mais

brutal que tenha sido, em algo aceitável

e humanamente necessário. Dizer, por

exemplo, que “os negros foram trazidos

para o Brasil porque o país precisava de

mão de obra” é o mesmo que dizer que

um criminoso matou para roubar

porque sua mãe precisava de um vestido

novo. A palavra “Brasil” esconde os

crimes e os criminosos (CUTI, 2010, p.

17-18).

Considerações iniciais

Na tradição literária brasileira é notório o

negro sendo enfatizado a partir de traços

contraditórios, e isso acabou refletindo na

formação discursiva de alguns críticos. Estes, ao

serem influenciados pelos discursos ideológicos

dos textos literários, passaram a apreciar a

produção literária somente pelo seu viés estético,

tendo como principal justificativa para seu estudo

“o valor especial das grandes produções: sua

complexidade, sua beleza, sua universalidade, e

seus potenciais benefícios para o leitor” (CULLER,

1999, p. 52).

Com o advento dos estudos culturais a

literatura ganhou um novo status social, além de

surgirem novas técnicas de análises surgiram,

também, novos objetos a serem apreciados: os

materiais culturais. Deste modo, compreendendo

a cultura como fonte imprescindível a ser

explorada, os estudos culturais, ao entrarem em

cena, dão ênfase às diversas identidades de grupos

que estão à margem da sociedade, dentre eles:

mulheres, imigrantes e minorias étnicas. São

estudos que criam perspectivas para que esses

grupos minoritários possam conquistar espaços

políticos culturais de prestígios, pois são grupos

que a alta literatura vinha representando como

incapazes de viver em espaços de alto escalão.

Em relação aos personagens negros na

literatura tradicional brasileira, encontramos

estes, em sua grande parte, sendo representados a

partir de imagens forjadas, carregadas de marcas

racistas e preconceituosas.

Quando se estudam as questões atinentes à presença do negro na literatura brasileira, vamos encontrar, na maior parte da produção de autores brancos, as personagens negras como verdadeiras caricaturas, isso porque não só esses autores negam a abandonar sua brancura no ato da criação literária, por motivos de convicções ideológicas racistas, mas também porque, assim, acaba não tendo acesso à subjetividade negra. Estar no lugar do outro e falar como se fosse o outro ou ainda lhe traduzir o que vai por dentro exige o desprendimento daquilo que somos (CUTI, 2010, p. 88).

Perante isto, com o intuito de

desmistificar os traços negativos sobre o negro

presente na literatura canônica, sobretudo, de

autores brancos, e de lutar contra os agentes

opressores é que as vozes de resistências vêm se

propagando. O próprio negro, ao dar ênfase à sua

verdadeira imagem histórica e contemporânea,

carregada de ideologia e resistência promissora,

vem “arrombando portas e janelas”, assumindo e

afirmando a todos a sua verdadeira identidade.

Após sermos instigados pelos discursos da

população negra, que vêm se firmando no país ao

longo da história literária brasileira, objetivamos

nesse artigo, discutir, de forma sucinta, algumas

práticas de resistência do afro-descendente. Para

isso, dividiremos o seguinte trabalho em dois

momentos: primeiro, traremos um breve histórico

da difusão do negro no espaço brasileiro

amparando-nos em suas práticas de resistências, e

seguiremos na descrição de como o negro está

inserido no Brasil contemporâneo; em seguida,

por ser uma manifestação contemporânea de

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27 Resistência negra em A Voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

resistência negra, nos pautaremos na cultura Hip

Hop, em especial, o estilo rap, e finalizaremos o

nosso trabalho com a análise das imagens

presentes no rap A Voz do Excluído de MV Bill –

uma das letras que, além de representar a

afirmação de uma identidade negra, busca intervir

nas estruturas de poder na sociedade.

A canção de MV Bill escolhida aqui como

objeto principal dessa produção faz parte das

diversas canções que vêm nos chamando a

atenção, pelo seu tom de incentivo à crítica aos

setores sociais responsáveis pela administração

pública, contribuindo para sensibilizar, não só a

população negra, mas também aqueles que

exercem o poder na sociedade. A partir dessa

reflexão, durante a análise do rap A Voz do

Excluído, procuraremos ver se a atitude de MV

Bill, na propagação de sua mensagem, pode ser

destacada como de resistência. Para isso,

analisaremos de que maneira as diferentes

imagens e representações (políticas, sociais) estão

representadas na canção, a fim de ratificar o poder

discursivo do rap para a construção de uma

sociedade justa e igualitária.

É valido destacar que as motivações para

esse trabalho surgiram a partir do 7º semestre do

curso de Letras Vernáculas, principalmente com o

contato que tivemos com a disciplina Literatura:

Crítica, História, Cultura e Sociedade. Foi

durante esta, que passamos a conhecer, cada vez

mais, alguns estudos que enfatizam o negro como

sujeito, e não somente como objeto literário. Ao

longo da disciplina retrocitada, fomos instigados a

uma produção cientifica voltada para a análise de

uma letra de rap. Foi uma das produções que mais

sentimos o prazer em produzir, pois envolvia

questões muito próximas da realidade atual, que é

a luta de resistência dos negros em busca de

melhores condições de vida, sobretudo destes que

vivem em situações precárias. Deste modo

atenção, aproveitamos o ensejo para

aprofundarmos nossos estudos ao ponto de

chegarmos à elaboração deste Trabalho de

Conclusão de Curso.

Essa produção está pautada em uma

pesquisa bibliográfica, e segue a normalização de

um artigo científico, guiado pelo livro Orientações

metodológicas: construindo trabalhos

acadêmicos e científicos, organizado por José

Humberto da Silva (2008). As principais

referências bibliográficas que serão utilizadas

como aporte teórico desse trabalho,

imprescindíveis para as nossas ponderações, são:

O negro no século XXI, de Luislinda Dias de

Valois Santos (2009); RAP e educação: RAP é

educação, livro organizado por Elaine Nunes de

Andrade (1999); Afro-descendência em Cadernos

Negros e Jornal do MNU, de Florentina da Silva

Souza (2006); A discriminação do negro no livro

didático, de Ana Célia da Silva (2004); Literatura

Negro-Brasileira, de Luis Silva [Cuti] (2010); O

ser negro: a construção da subjetividade em

afro-brasileiros, de Maria da Consolação André

(2008); Rap : ritmo e poesia – construção

identitária do negro no imaginário do RAP

brasileiro, de Volnei JoséRighi (2011); entre

outras. Esse levantamento teórico possibilita alçar

olhares sobre a condição do negro no Brasil,

regido sobre o olhar branco, bom e superior, além

de estar evidente que estes autores buscam dar

voz aos grupos de minoria, que ao longo do tempo

vem sendo postos à margem da sociedade

brancocêntrica, racista e etnocêntrica, que exclui a

imagem do africano como construtor de

conhecimento e detentor de uma rica herança

cultural. Assim sendo, com esse olhar que revela

as condições sócio-raciais que busca legitimar e

dar voz até então silenciada, coloca-se em

evidência que o homem negro conquista – com

muitos esforços – a outorgação de seus direitos,

fazendo cair o véu da submissão e exclusão social.

Page 29: Opará Revista vol. 2 julho/2014

28 Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Um Brasil de resistência negra: ontem e

hoje

Sabe-se que o tráfico de negros, na época

da escravidão, ocasionou um redirecionamento

identitário, visto que a ação da imposição da

classe dominante obrigou-os a seguir

atitudes/tradições que não faziam parte da sua

cultura, e sim da cultura dos colonizadores

(ANDRÉ, 2008). Para André (Ibidem)

O negro ao ser arrancado de suas raízes e vendido, em praça pública, como objeto (era vendido como peça leiloada) teve seu universo de significação retalhado. Ao ser separado de seus iguais teve a sua comunicação impossibilitada. A estratégia de separá-los foi eficaz, pois estando, misturados em diversas nações nem sempre era possível a compreensão linguística, sendo forçado a tentar aprender a língua do colonizador (p. 95-96).

O fato de os negros serem impedidos de

manifestar sua cultura começou no período em

que, ainda, eram escravizados, pois, além de

serem submetidos ao trabalho desumano, eram

ainda separados dos seus parentes e/ou amigos

sendo difícil a comunicação com falantes de outra

língua. O colonizador tendia à fragmentação dos

grupos de negros para que estes não se

organizassem, a fim de romper com o sistema

cruel da escravidão. Com isso, o negro passou a ter

contato, cada vez mais, com outros grupos que

detinham uma identidade histórica e cultural

diferente da dele, e, além disso, passou a ser

submetido à cultura do poder dominante.

Sabemos que o indivíduo estando exposto

a outras culturas e em contato direto com outras

etnias, trocando experiências, passa a ter sua

identidade abalada. Sobre identidade, André

(2008) define a construção desta como um

processo que advém do campo individual e

coletivo.

Individualmente, a pessoa vai se desenvolvendo como unicidade, marcando cada momento de sua jornada particular. Como ser social, passando por diferentes grupos (família, escola, amigos, trabalho e outros contextos), faz trocas de aprendizagens, identificando-se com umas, rejeitando outras e, a partir destas identificações, desenvolve sentimentos de pertencimento ou não pertencimento a esses grupos (ANDRÉ, 2008, p. 102- 103).

No período brusco da escravidão, a

cultura do negro foi impedida pelos colonizadores

de ser praticada, tentaram impor uma

cultura/costumes que, até então, eram

desconhecidos pelos negros. Assim, forçavam a

produção de uma falsa identidade. Porém, nota-se

que a formação da identidade do negro no espaço

brasileiro não se constituiu como ambicionada

pelos colonizadores, pois, apesar de ter sido

impedido de expressar seus costumes culturais e

de ser aceito socialmente, houve aqueles que não

se desvincularam de sua cultura, resistindo à

imposição do poder dominante, isso fez com que

se formasse uma identidade negra brasileira.

Uma das manifestações culturais

pertencente à identidade do negro e que faz parte

do panorama das religiões africanas vítimas de

perseguições é a cultura do candomblé. Esta é

uma religião “resultante da reinterpretação das

várias cosmovisões africanas que, durante quase

cinco séculos de escravidão, foram trazidas

daquele continente para o Brasil” (TEIXEIRA,

2009, p. 120). No país, em seu período

escravocrata, esta cultura religiosa foi coibida de

ser praticada.

Durante o período escravagista, a religião oficial do Brasil era a católica e esta era imposta aos escravos, não lhes sendo dado o direito de praticar sua religião. O poder público não aceitava o candomblé; pelo contrário, tinha-o como contravenção penal e jamais como religião praticada por seres humanos (SANTOS, 2009, p. 57).

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29 Resistência negra em A Voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Devido a essa aversão do poder

dominante em aceitar a manifestação dos rituais

do candomblé no espaço brasileiro, a cultura

desse povo foi subjugada, colocada como inferior,

nesse caso, proibida de ser praticada e propagada.

Assim, foi-lhes imposta a cultura e a religião dos

brancos, o catolicismo, usado como manifestação

de poder e resistência dos sustentáculos do mito

da democracia racial. Partindo deste pressuposto,

percebe-se que os negros foram impossibilitados

de cultuar sua crença e costumes, sendo obrigados

a fazer da sua, uma cultura clandestina.

Além da cultura do candomblé, há outras,

que ao fazer parte do panorama das culturas

africana, vêm representar para o negro, traços de

sua identidade, por exemplo: a capoeira e o

samba-de-roda. Estas são algumas das

manifestações culturais que sobreviveram ao

longo do tempo, e que, de acordo com Andre

(2008), além de serem praticadas “como meio de

divertimento”, era também a forma dos negros

expressarem a sua história, pois “faziam parte de

suas origens” (ANDRÉ, Ibidem, p. 97).

Entretanto, a capoeira, por exemplo, foi vista por

muitos como um ato de rebeldia, aqueles que o

praticava era denominado pelos colonizadores

como marginais.

Essa ideia equivocada de que a capoeira

seria sinônimo de marginalidade foi

desmistificada, hoje é uma cultura aceita pela

sociedade, e está a cada dia fazendo parte da

cultura de muitos, isto por ser uma forma de

divertimento e por provocar o bem estar físico e

emocional daqueles que a praticam.

É pertinente realçarmos, mais uma vez,

que o negro, durante o processo escravocrata, não

se manteve inerte, houve resistência contra a

violência de dominação, contra a imposição da

cultura dominante, como exemplo, a atitude de

fuga dos negros e a constituição das comunidades

quilombolas.

Os quilombos eram núcleos populacionais formados por escravos fugitivos. Nesses locais eles resistiam à escravidão e defendiam a liberdade; homens e mulheres tentavam reconstituir nos quilombos as várias versões de uma vida comum: realizavam festas, plantavam, coletavam, pescavam, caçavam e praticavam transações econômicas possíveis (PINTO, 2006, p. 172).

Nas palavras de Righi (2011), os

quilombos

[...] eram propositalmente localizados em lugares de difícil acesso, geralmente fortificados e escondidos no meio das matas, e bem afastados dos centros urbanos. Essas características estratégicas dos Quilombos levam-nos a identificá-los como uma espécie de guetos, absolutamente segregados e marginalizados pela sociedade, mas um local de reconhecimento e de identificação entre seus iguais (p. 41).

Foi nos quilombos que os negros

encontraram liberdade para exercer sua cultura

que até então vinha sendo interrompida. Um dos

mais conhecidos foi o Quilombo dos Palmares,

que teve como líder Zumbi, um ícone de

inspiração para muitos estudiosos na

reconstituição do passado histórico da diáspora

negra, isto por ter sido uma figura de resistência

contra as práticas de dominação impostas pelos

escravocratas.

Conforme Silva (J.,2004),

Onde quer que tenha existido [...], o quilombo sempre foi modelo de inspiração para a rebeldia dos africanos escravizados e dos afro-descendentes no mundo. É este exemplo de luta que serviu de fonte de inspiração para organizações negras no Brasil do período pós-Abolição e que foi retomado na década de setenta pelas entidades negras contemporâneas. (p. 41)

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30 Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Mesmo depois de muitas lutas, e apesar

da inserção da Lei Áurea, lei que entrou em vigor

em 1888 e que objetivou o direito aos negros de

viverem livres, vê-se que as manifestações de

resistências dos afro-descendentes ainda vieram

se propagando no país, isto por não terem sido

aceitos como cidadãos comuns.

De acordo com Souza (2006),

Os efeitos e desdobramentos da citada lei podem ser observadas, nos finais do século XX, quando jovens negros e mestiços, de sexo masculino, são solicitados, pela polícia, a apresentar carteira de trabalho assinada, sob pena de serem presos por vadiagem ou por “suspeita”. Permanece, pois, a tentativa de controle autoritário e indevido da circulação dos afro-brasileiros em espaços ou momentos que não lhes são “permitidos” (p. 34).

Atualmente, há muitos negros morando

em periferias, sendo explorados no mercado de

trabalho, ocupando profissões subalternas e sendo

mal remunerados. Assim, continuam sendo alvo

de uma política conservadora, que infelizmente

privilegia os traços sórdidos da escravidão,

fazendo com que o negro torne-se cada vez mais

invisível.

Segundo Souza (2006), essa invisibilidade

Manifesta-se, ainda, na incapacidade de enxergá-lo fora dos papéis sociais a ele destinados pela sociedade. Em determinados papéis, a presença do afro-descendente é “naturalizada”; na maioria das cidades brasileiras vê-se como “normal”, por exemplo, um número majoritário de negros exercendo funções de subalternidade em empregos de baixa remuneração, circulando pelo centro da cidade e pelos chamados bairros nobres no exercício de tais funções, situações em que quase não são notados como pessoas, fazem parte do cenário – são invisíveis (p. 35).

Essas elucidações de Souza confirmam os

traços de inferiorização arraigados desde o

período escravocrata, em que o negro sempre foi

visto como subalterno e inferior, cabendo-lhes

somente o menosprezo por parte de uma

sociedade excludente.

Representações do negro na sociedade

contemporânea

A Lei Áurea não garantiu a liberdade do

cidadão negro de ir e vir, pois ao exercerem

profissões desumanas continuam preservando as

marcas da escravidão. E é nessa mesma linha de

contradição legislativa que a Constituição Federal

de 1988 – lei suprema do nosso país – acaba

também se estabelecendo, inclusive quando, no

artigo 3.º, versa a construção de “uma sociedade

livre, justa e solidária”, elucida “erradicar a

pobreza e a marginalização e reduzir as

desigualdades sociais e regionais”, e,

principalmente, quando salienta “promover o bem

de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,

cor, idade e quaisquer outras formas de

discriminação” (BRASIL, 1988, p. 2). Não é isso

que ocorre na prática. A diferença é notável, tanto

nos direitos que não são iguais, quanto na justiça,

uma vez que, a lei do negro é diferente da lei

aplicada ao branco. Com essa aplicabilidade

injusta da lei que propaga a igualdade, os pobres e

negros estão ficando cada vez mais reféns de um

sistema que somente beneficia os que têm um

melhor poder aquisitivo, geralmente os brancos.

Conforme André (2008)

O privilégio econômico, político, ideológico e sócio-cultural do branco está imbricado com a divisão social e funcional que dá acesso ao trabalho, à educação, à saúde, ao lazer, o que torna mudanças ou transformações, no plano estrutural da sociedade e no plano de distribuição de renda e de recursos, processos que possivelmente darão, em sua maior parte, conquistas ao seguimento branco. (p. 152)

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31 Resistência negra em A Voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Os afro-descendentes ocupam um lugar

inferior na camada social, sendo que, em sua

maioria, são pobres, moram em periferias e não

partilham dos benefícios de inclusão social que o

governo oferece, permanecendo assim excluso dos

vários setores sociais de prestígio.

Havendo mais brancos que negros nas

escolas públicas brasileiras, pode se dizer que,

conforme destaca Santos (2009), “a educação

oferecida ao negro é de qualidade inferior em

comparação à educação oferecida ao branco, e

poucos encontram meios para acabar com as

desigualdades” (SANTOS, ibidem, p. 25). O livro

didático, por exemplo, que deveria ser um

instrumento de inclusão/formação/informação,

vinha “pintando” um negro submisso carregado de

traços pejorativos. É pensando nisso, que a

estudiosa Silva (2004), ao analisar alguns livros

didáticos de ensino fundamental, vem chamar a

atenção. De acordo com a autora, na maioria dos

livros para crianças, há a construção de imagens

negativas sobre os negros, estes são citados “como

pertencentes a um passado histórico, não atuantes

no presente e identificados como escravos,

humildes e colocados em posição inferior”

(SILVA, A., ibidem, p. 26). Já em relação aos

personagens brancos, são enfatizados como

superiores, carregados sempre de estereótipos

positivos.

O branco é [...] associado a belo, puro, bom e inteligente, em oposição ao negro, associado ao feio, malvado, incapaz, com atributos físicos não-humanos e constituindo-se em minoria social. (...) os personagens brancos têm nome, sobrenome, têm família constituída e exercem papéis e funções conceituados na sociedade. A família branca aparece como modelo da família brasileira, uma vez que em todas as ilustrações e exercícios de composição e descrição sobre família, ela foi ilustrada como modelo (SILVA, A., 2004, p. 38)

Ainda de acordo com Silva (A., 2004),

nos livros, a mulher negra está sempre destacada

como a empregada doméstica “carregada de

estereótipos de mulher feia, gorda, sem

inteligência, supersticiosa, ingênua e subserviente.

E, invariavelmente, de avental e lenço nos

cabelos”. (SILVA, A., ibidem, p. 59). Esses traços

pejorativos presente nesses livros vêm reforçar a

discriminação e o racismo em relação ao negro, já

que este passa a ser perseguido por essas imagens

forjadas. Desse modo, evidencia-se que a

ineficiência da educação para com os negros já

começa na elaboração do material didático.

Essa ineficiência dos livros didáticos e o

baixo poder aquisitivo vinham sendo alguns dos

empecilhos enfrentados pelos negros para

adentrarem numa universidade e/ou competir

com pessoas que tiveram a oportunidade de

frequentar escolas de qualidade. Atualmente,

graças às cotas universitárias, está sendo

frequente a presença de negros em universidades

cursadas também por brancos. As cotas, além de

proporcionarem a inclusão social, permitem,

também, o combate ao racismo, possibilitando,

assim, um maior desenvolvimento do país.

Apesar de muitos terem opiniões

contrárias às cotas universitárias, após esse

sistema, já é notório vermos a presença de negros

em ambientes de prestígio, competindo com

pessoas que frequentaram melhores escolas,

chegando a ocuparem cargos de alto escalão que

antes eram somente ocupados por brancos.

Contudo, de acordo com André (2008), do total de

estudantes negros que passaram pela

universidade, “os que conseguiram ascender às

chamadas classes médias ainda é uma minoria

absolutamente insignificante” (ANDRÉ, ibidem, p.

171).

Além das cotas universitárias que vêm dar

oportunidade ao negro de inserção social, é

pertinente destacar também a promulgação da Lei

10.639/2003, que altera a Lei 9.394/1996,

tornando obrigatória a disciplina “História e

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32 Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Cultura Afro-Brasileira” no ensino Fundamental e

Médio do sistema público e privado de ensino. Um

documento que vem conferir às minorias direito à

diversidade cultural, fortalecendo as iniciativas de

alguns pesquisadores no resgate da identidade

negra. Essa é mais uma oportunidade que o

brasileiro vem tendo para desvendar o outro lado

da história, as imagens que foram silenciadas

pelos discursos eurocêntricos, sobretudo as de

resistência do afro-brasileiro no que concerne ao

regime escravocrata.

Com a implantação dessa Lei – Lei

10.639/2003 – a religião afro-brasileira,

principalmente a cultura do candomblé, poderá

deixar de ser vítima de perseguições desumanas e

desrespeitosas, pois, ainda no século XXI o

preconceito a essa religião ainda “grita”.

Apesar dessas iniciativas positivas do

governo federal que oportunizam o afro-

descendente o acesso aos bens sociais, nota-se que

a desigualdade e a exclusão desse grupo ainda se

estendem com intensidade na sociedade

brasileira. E é para intervir no sistema de exclusão

que vem se ampliando as vozes de resistência,

como exemplo, a dos escritores afro-brasileiros

segundo Souza (2006),

Não será a cor da pele ou a origem étnica o elemento definidor dessa produção textual, mas sim o compromisso de criar um discurso que manifeste as marcas das experiências históricas e cotidianas dos afro-descendentes no país. O conjunto de textos circula pela história do Brasil, pela tradição popular de origem africana, faz incursões no ioruba e na linguagem dos rituais religiosos, legitimando tradições, históricas e modos de dizer, em geral ignorados pela tradição instituída (p. 61).

Juntam-se com essas vozes de resistência

da literatura afro-brasileira as outras vozes

guiadas pela cultura do Hip Hop3, em especial o

estilo rap – uma cultura contemporânea da

3 O Hip Hop se manifesta através do break (dança), do grafite

(pintura) e do rap (musica) (ANDRADE, 1999, p. 86- 87).

população negra vítima de processos sociais,

políticos e econômicos geradores de exclusão.

O hip hop e o rap A Voz do Excluído de MV

Bill: instrumentos contemporâneos de

resistência negra

A dispersão do rap começa a se ratificar

no final dos anos 70 – como expressão da

juventude negra – na periferia urbana dos Estados

Unidos. Rapidamente se espalhou nas periferias

de outras regiões norte-americanas, até chegar ao

Brasil, país em que a manifestação veio se

consolidar a partir do final dos anos 80 e início

dos anos 90. As músicas geralmente versam sobre

a construção de uma identidade positiva e

refletem sobre problemas sociais enfrentados por

pessoas – negras e pobres – que enfrentam, em

suas comunidades, dificuldades financeiras e de

infraestrutura.

Assim sendo, o rap, por se originar nas

comunidades periféricas, locais mais habitados

por afro-descendentes, passa a ser utilizado –

pelos adeptos – como meio de alterar/ desfigurar

a representação que é feita sobre a realidade das

pessoas que fazem parte desse cenário de

exclusão, pois oportuniza aos sujeitos novas

possibilidades de decifrarem os problemas sociais

que estão a sua volta, Segundo Andrade (1999),

O rap, independente do seu ritmo acelerado, ensurdecedor e rebelde, representa um instrumento político de uma juventude excluída. Independentemente de seu conteúdo muitas vezes agressivo e provocador, indica uma ação pedagógica de jovens em processo de escolarização ou mesmo evadidos da escola. Quem observa o seu conteúdo, analisando a sua letra, independente do seu gosto musical, vai encontrar uma leitura da vida social, do “fazer” da sociedade, comparada a muitos cientistas sociais que apenas superam esses jovens na linguagem culta e específica do universo científico. É de se espantar! (p. 86)

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33 Resistência negra em A Voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Os discursos que predominam nas

composições dos rappers brasileiros seguem numa

linguagem oral, informal, coloquial, afastando-se das

regras eruditas da Língua Portuguesa. É por meio das

suas variantes linguísticas que os rappers vêm

propagando as suas ideologias. A sua revolução já

começa com a linguagem escolhida para a transmissão

de sua mensagem, assim já deixa evidente a sua

oposição a qualquer tipo de imposição de tradições e

padrões.

De acordo com Kehl (1999), as principais

armas dos rappers na transmissão de suas mensagens

são: sua palavra, sua “consciência” e sua “atitude”. É

por meio dessas alegorias que os músicos procuram

chamar a atenção de cada um, a uma mudança de

atitude, a fazer suas escolhas individuais de forma

consciente (KEHL, 2010, p. 684 – 5).

Em relação ao Hip Hop brasileiro, daremos um

enfoque especial a algumas iniciativas do rapper MV

Bill. Utilizaremo-nos de uma de suas composições, A

Voz do Excluído, a qual demonstraa luta do músico para

a inclusão do negro no retrato social brasileiro.

Porém, antes de adentrar no corpus principal

dessa produção, faz necessário referenciar o primeiro

grupo de rappers que veio sustentar a ideologia do Hip

Hop no Brasil: Os Racionais.

De acordo com Righi (2011) Os Racionais foi

um dos primeiros grupos que abraçou a cultura do Hip

Hop em nosso espaço, re-configurando o movimento

com a sustentação de uma crítica social engajada nos

problemas reais das comunidades periféricas do Brasil.

Um grupo formado em 1988 a partir de duas duplas de

artistas que operavam como amadores e independentes

em suas próprias comunidades: “Mano Brown (Pedro

Paulo Soares Pereira) e Ice Blue (Paulo Eduardo

Salvador), da Zona Sul de São Paulo; e Edy Rock

(Edivaldo Pereira Alves) e KL Jay (Kleber Geraldo Lelis

Simões), da Zona Norte” (RIGHI, ibidem, p. 88). Com a

adoção da cultura Hip Hop, o grupo mantendo-se

afastado da mídia, passou a consolidar um movimento

em prol da “liberdade de expressão e de pensamento,

devendo funcionar como voz ideológica e representação

da periferia” (RIGHI, 2011, p. 89). A partir dessa

ideologia inicial, o grupo Racionais MC”s4 passou a se

difundir no Brasil, chegando a conquistar a admiração

do público, tornando-se um dos ícones contemporâneos

de resistência negra do país na propagação de

mensagens baseadas na vida social dos sujeitos que

habitam nos espaços (periferias) esquecidos pelo poder

hegemônico, e de recusa à mídia, por ser um

instrumento de alienação de massa.

A partir de 1990, a fim de ampliar a

sustentação da ideologia do Hip Hop brasileiro, passou

a fazer parte do movimento, o rapper Alex Pereira

Barbosa, mas conhecido como MV Bill. Nascido e criado

na Cidade de Deus – comunidade do Rio de Janeiro,

local onde mora até hoje, Bill é coprodutor e codiretor

do filme Falcão: Meninos do Tráfico, posteriormente

transformado em livro5 com o mesmo nome. É coautor

dos livros Falcão: Mulheres do Tráfico6 e Cabeça de

Porco7.

A partir da idealização dos trabalhos ilustrados

acima, MV Bill passou a ter uma visão mais realista das

periferias de todo o Brasil. E é através dessa experiência

adquirida ao longo de sua vida que o rapper vem

lançando os seus raps. Sua discografia se consolida na

gravação de cinco trabalhos: CD Mandando Fechado

(1998); CD Declaração de Guerra (2002); CD Falcão: o

Bagulho é Doido (2006); DVD Despacho Urbano

(2009) e o CD Causa e efeito (2010) (RIGHI, 2001, p.

149 - 52).

MV Bill, diferentemente dos outros rappers, ao

invés de adotar a sigla “MC” (Mestre de Cerimônias),

resolveu colocar a frente de seu nome a sigla “MV”

(Mensageiro da Verdade). Assim, a fim de mostrar a

realidade brasileira dos jovens negros que vivem em

espaços periféricos, o rapper utiliza a designação

4 De acordo com Bruno Zeni, MC (mestre de cerimônias) é um termo

do Hip Hop utilizado para se referir ao rapper: aquele que canta ou declama as letras de raps (ZENI, 2011, p. 731). 5Falcão: Meninos do Tráfico (2010) é composto de documentários de

jovens que vivem em comunidades periféricas, onde a criminalidade e o tráfico de drogas tornaram-se meios de sobrevivência dos

entrevistados. Os autores procuraram retratar a rotina dramática de

dezessete jovens submergidos no tráfico de drogas. O lado humano dessa classe é destacado de forma emocionante e comovente. 6Falcão – Mulheres do tráfico (2010) segue a mesma ótica do livro

Falcão – Meninos do Tráfico, porém, é enfatizada a vida de mulheres atraídas pelo tráfico de drogas. 7 O livro Cabeça de Porco (2005) traz um painel realista das

periferias do Brasil onde a violência e o tráfico de drogas são marcantes. Os autores (Luiz Eduardo Soares, MV Bill eCelso

Athayde) almejam possibilidades de melhorias sociais e econômicas

para os sujeitos que habitam nesses espaços.

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Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Verdade para demonstrar que sua atitude fundamenta-

se na propagação de mensagens verídicas.

No meio das diversas produções de MV Bill,

está o rap A Voz do Excluído, que tem como pano de

fundo a expressão daqueles que vivem na comunidade

Cidade de Deus no Rio de Janeiro, espaço mais

habitado por pessoas negras e pobres. A canção

retrocitada foi gravada primeiramente no álbum

Enquanto o mundo gira (2000), do grupo Cidade

Negra. Depois Bill gravou em seu DVD Despacho

urbano. Ao longo da canção, Toni Garrido, músico do

grupo Cidade Negra, apenas enuncia o refrão “O que

você vai fazer agora para mudar a regra?/O que você vai

fazer agora para mudar a real?”, enquanto MV Bill

enuncia os demais versos, se colocando como “porta

voz” da comunidade Cidade de Deus.

Vejamos que o título do rap que está sendo

apreciado sintetiza o tema do discurso, do raper MV

Bill. Rememora aquele que é privado de benefícios, que

não detém o poder na sociedade. Diante deste

pensamento, a partir de uma perspectiva do seu grupo

étnico o rapper traz um discurso de resistência a fim de

abalar as relações de poder presentes na sociedade.

Mv Bill tá em casa, pode acreditar/Terrorismo, a voz do excluído tá no ar (tá no ar)/ Mais um guerreiro do Rio de Janeiro/ Buscando alternativa pra sair do coma brasileiro/ Considerado louco por ser realista/ Maluco, e não me iludo com vidinha de artista/ Guiado por Jesus tenho minha missão/ Guerreiro do inferno, traficante de informação (A voz do excluído – MV Bil).

Nota-se que MV Bill revela a sua

indignação perante o caos social e denuncia a

situação marginal de um grupo brasileiro que vive

– como uma espécie de “obrigação” – refugiado

em espaços periféricos urbanos. Deste modo, ao

colocar em evidência a voz do excluído, o rapper

toma como matéria prima do seu discurso o

“poder da palavra” como meio de persuasão. Essa

é uma das características particulares do rap, que

é tomar a palavra como meio de discutir

posicionamentos e opiniões. Nesse sentido, o rap

retoma

uma das funções que a literatura tem nas sociedades letradas, e o faz sem demarcar espaços de separação entre o produtor “autorizado” do texto literário e o consumidor deste. Em outras palavras, o rapper torna-se literato, no sentido exato da palavra, conquistando o direito de se exprimir pela palavra (DUARTE, 1999, p. 18- 19).

Bill utiliza palavras com sentido figurado

para denunciar as desigualdades e criticar o poder

governamental. Dentre elas, o “coma brasileiro”,

que denota a disparidade pública, as injustiças, o

descaso humano, a falta de assistência, a exclusão

social sofrida pela população que vive em

situações estigmatizadas, por exemplo: o pobre e o

negro ou todos aqueles que são considerados

como minorias, aqueles que não detêm o poder de

decidir sobre as suas vidas, “os guerreiros do

inferno”. No entanto, em resposta a essas

injustiças sociais, há as vozes de resistência – aqui

representadas por MV Bill – em que o governo

passa a ser o principal alvo. Assim MV Bill,

“traficante de informações”, utiliza o seu discurso

para criticar a alta sociedade em prol de melhorias

em sua comunidade.

Essas metáforas têm o poder de persuadir

o leitor para uma leitura ampla da realidade. De

acordo com Hall (2003), as metáforas

[...] nos permitem imaginar o que aconteceriam se os valores culturais predominantes fossem questionados e transformados, se as velhas hierarquias sociais fossem derrubadas, se os velhos padrões e normas desaparecessem ou fossem consumidos em um “festival de revolução”, e novos significados e valores, novas configurações socioculturais, começassem a surgir. Contudo, tais metáforas devem possuir também um valor analítico. Devem fornecer meios de pensarmos as relações entre os domínios sociais e simbólicos nesse processo de transformação (p.205-6).

Prosseguindo com os pressupostos de MV

Bill, ao denunciar as diferenças de classes,o rapper

contesta e resiste ao sistema da elite social:

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35 Resistência negra em A Voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Chapa quente, favelado é o nome/ Falo pelo menor que nunca teve Danone como você/ Sei que é difícil de entender, você nunca sofreu como eu lá na CDD (A voz do excluído – MV Bill)

Destarte, nesse trecho, infere-se que o

rapper ao utilizar um discurso de resistência

mostra-se indignado perante a diferença de

classe. A partir de uma manifestação ideológica,

política e social, o enunciador coloca em xeque a

desigualdade, pondo de um lado aquele que pouco

usufrui de bens sociais, e do outro, aquele que tem

acesso a todos os privilégios.

Para abalar as estruturas sociais, MV Bill

procura definir os vários enfoques acerca da

política capitalista causadora do caos na

sociedade.

Não acredito que o povo é contente/ Quem ri da própria miséria não é feliz, está doente/ Que nem sente que está sendo massacrado/ Drogado, e sempre embriagado/Não represento o hip hop/ Só falo pelo pobre/ Que sempre se fode guiado pelo ibope/ Televisão, ilusão, tudo igual/ Faz você gastar o seu dinheiro no carnaval/ Faz o meu povo ser ridicularizado, inferiorizado/ Engraçado, hostilizado, tá tudo errado/ O orgulho foi roubado/ As marcas de um passado que não foi cicatrizado (A voz do excluído – MV Bill).

Vê-se que a poética de Bill chama a

atenção do marginalizado para que as identidades

sejam afirmadas, procura alternativa para o fim da

“cegueira”, sobretudo da “escravidão”, pois “Quem

ri da própria miséria não é feliz, está doente/ Que

nem sente que está sendo massacrado/ Drogado, e

sempre embriagado”. Deste modo, o rapper vem

deixar claro o seu objetivo, que é sensibilizar estes

que são manipulados e escravizados, por exemplo,

pelo discurso midiático e pelo carnaval, que, de

certa forma são espécies de ilusões, que leva o

cidadão à necessidade de consumir produtos cujos

preços estão além de sua capacidade de aquisição.

Portanto, muitas das “pessoas que consomem e

apreciam esses produtos devem ser, elas próprias,

aviltadas por essas atividades ou viver em um

permanente estado de “falsa consciência” (HALL,

2007, p.237).

Conforme Guimarães (1999),

Do lado dos rappers, por sua vez, os meios de comunicação são considerados como aliados do “sistema” que eles combatem. A imprensa, por exemplo, por um bom tempo associou o rap apenas à violência, tratando os grupos musicais como gangues e como seus disseminadores (p. 43).

Logo, MV Bill acaba nutrindo um contra-

discurso, apontando os agentes manipuladores e

julgando-os como prejudiciais à dignidade dos

grupos que estão à margem da sociedade. Ao abrir

nossos olhos para a realidade, o rapper nos deixa à

vontade para “denunciarmos os agentes da

manipulação e da decepção em massa - as

indústrias culturais capitalistas” (HALL, 2007,

p.237).

Percebe-se que há muitos instrumentos de

manipulação de massa que além de conservarem

um estereótipo negativo sobre o negro, acabam,

também, incentivando a discriminação,

destacando o negro como aquele que vive no lugar

já determinado, não dando espaços para a

regressão na vida social e política. É diante desse

pensamento que MV Bill, ao denunciar seu grupo

étnico como o alvo de preconceitos e

discriminação racial, ideológica e cultural, tende a

desestruturar aqueles que os vêm fazendo mal:

Nascido e criado na CDD/ Nascido preto, perseguido até morrer/ Me ver na prisão é o desejo da madame/ Mas eu não tenho apê de um milhão em Miami/ Comprado e mobiliado com o dinheiro do povo/ Eu olho pra TV e me sinto mais um bobo/ Contaminado e dominado pelo medo/ Aqui, cadeia é pra puta, pobre e preto/ Sujeito homem, não sou homem sujeitado/ Nem tô condicionado a ser manipulado por ninguém/ Minha atitude vai além/ Falo por milhões/

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36 Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Compreendido por menos de cem (A voz do excluído – MV Bill)

De acordo com o discurso do rapper,

aquele que nasce negro e na periferia terá o

destino traçado, será perseguido e excluído dos

bens sociais, pois a cor da pele e o seu espaço

geográfico de nascença passarão a ser sinônimos

de miséria, abandono e escravidão. Deste modo, o

rapper vem denunciar o preconceito racial

provindo daqueles que, ainda, conservam uma

ideologia ultrapassada, que colocam o negro

sempre como inferior, nãocomungando dos

mesmos direitos de cidadão.

Em consonância com Souza (2005), essas

visões racistas e preconceituosas passam a ser um

dos empecilhos para o “crescimento do

movimento negro num país no qual os negros são

maioria em todos os setores e lugares socialmente

desprestigiados, são sempre vistos como

suspeitos” (SOUZA, ibidem, p.54).

Além de dar ênfase a alguns aspectos

racista presentes na sociedade brasileira, MV Bill

critica o explorador, aquele que usufrui de bens

econômicos à custa do povo. Assim, percebemos a

denúncia do rapper à corrupção, colocando em

evidência que quem paga pelas mazelas da elite

são as minorias “puta, pobre e preto”. Porém,

apesar do seu tom ser de denúncia, o rapper

demonstra um constrangimento, em razão de seu

discurso ainda ser pouco “receptivo”. Os próprios

“excluídos” ainda não reconheceram a relevância

do movimento para com as suas vidas. Por outro

lado, essa falta de recepção ainda pode ser

entendida como oriunda de uma política

conservadora, que privilegia os discursos daqueles

que se adaptam a uma sociedade de prestígio.

Desse modo, por não disporem de amplos espaços

para sua visibilidade, os discursos das minorias

acabam sendo “repreendidos”.

Nas denuncias do rapper, verifica-se que

as marcas que retratam a exclusão social são

pintadas no texto de vários modos.

Da CDD à Baixada Fluminense se gerou conflito, meu amigo, então pare e pense/ FHC não dá nada para favela, só dá carnaval, miséria, polícia e novela/ Que coisa linda, cheia de graça/ família disputando seu almoço na praça/ FMI vai achar sensacional/ Quem gosta de miséria é intelectual/ M, V, B, I, L, L, preto na mente, na roupa e na pele/ Cidade Negra, CDD tá no ar, na hora de cobrar/ A chapa pode esquentar (A voz do excluído – MV Bill)

MV Bill tece uma crítica ao ex-presidente

Fernando Henrique Cardoso – FHC (1995-2002)

perante o desamparo às comunidades

marginalizadas. Além de destacar novamente o

carnaval e a mídia como meios de manipulação

de massa, o rapper traz um outro elemento: o

FMI. De acordo com o seu discurso, além dos

meios de manipulação, o presidente FHC utilizou

o FMI para encobrir o caos social, “valendo-se de

entretenimento e de violência, sem mencionar, no

entanto, valores morais, incentivos à educação e à

cultura” (RIGHI, 2011, p. 195), contradizendo,

assim, a sua formação como sociólogo.

Por outro lado, ao distinguir-se como a

“voz do excluído”, Bill deixa luzir o seu “grito de

guerra” revelando o seu lugar étnico e social de

pertença. As vozes que emergem de seu discurso

são uma constituição de um conjunto de outras

vozes integrantes da mesma realidade social do

rapper. Visando uma transformação política,

ideológica e social, MV Bill contesta a ordem

vigente na sociedade, e luta em busca de direitos

iguais.

No rap, A Voz do Excluído, percebe-se que

MV Bill faz alusão ao preconceito social e racial, à

pobreza, e, sobretudo, à “igualdade” que o

conservadorismo não permite. É a propagação de

uma situação social completamente diferente da

veiculada pelos meios de comunicação, em que é

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37 Resistência negra em A Voz do Excluído de MV Bill: o hip hop na cultura brasileira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

comum “vender” uma imagem deturpada do que

é, e do que acontece nas periferias.

Considerações finais

As abordagens presentes neste artigo

tendem a instigar estudiosos a dar ênfase às

manifestações de resistência do afro descendente

no Brasil.

Diante do que foi exposto, vê-se que o

dispositivo rap, por está engajado numa

perspectiva cultural, política e social, torna-se um

instrumento de maior relevância para a inserção

do negro no retrato social brasileiro. O rap, a

partir de uma linguagem própria dos sujeitos afro-

descendentes, situados numa geografia

excludente, tende a desmascarar as diversas

irregularidades geradoras de situações desiguais,

tornando-se, assim, uma das maiores

manifestações contemporâneas de denúncia social

e política. A partir da análise do corpus, foi

possível perceber que os discursos presentes nos

raps estão associados a questões históricas e

sociais. Nota-se que da mesma forma que os

manifestantes do Hip Hop trazem sua cultura,

trazem também sua história, sensibilizando

aqueles que se prontificam a dar atenção a essa

manifestação gritante. É assim que a ideologia

contemporânea do afro-descendente vem se

consolidando, sobretudo na contestação aos

discursos e práticas racistas excludentes.

É por essa ótica também que MV Bill, a

partir de seus projetos de combate à criminalidade

e exclusão social, vem se consagrando,

transformando-se em um dos maiores ícones

contemporâneo de resistência negra na

propagação ideológica dos sujeitos que habitam

nos espaços esquecidos/silenciados pelo poder

hegemônico. As informações trazidas por MV Bill

sobre a política social brasileira acabam colocando

em xeque o poder político como o principal

responsável pelo caos social. Assim, o rapper se

consolida como um porta voz de seu grupo étnico

em busca de melhores condições de vida para as

comunidades marginalizadas.

Em suma, apesar dessas iniciativas

positivas do afro-descendente em tirar as

máscaras do poder dominante, vê-se que há,

ainda, uma necessidade de desconstrução de

discursos hegemônicos, tanto no âmbito literário,

como também no social, pois fica manifesto que o

negro, por carregar um histórico de exclusão,

ainda enfrenta problemas que impossibilitam a

sua inserção em alguns setores sociais

considerados como privilegiados. Nos meios de

comunicação, esse grupo, ainda, é representado

por imagens forjadas. O rap, por exemplo, apesar

de representar para muitos brasileiros a afirmação

de suas identidades, ainda é repreendido pela

sociedade elitizada, que insiste em ver este estilo

musical como uma manifestação grotesca que

deve ser banida. Deste modo, torna-se pertinente

aprofundarmos, mais e mais, em estudos voltados

para os gêneros musicais, sobretudo estes que, ao

representarem as vozes das minorias, tendem a

denunciar as diversas irregularidades presentes na

sociedade. É relevante estarmos sempre ativos,

como propulsores de uma ideologia que busque a

igualdade dos povos, sem menosprezar,

discriminar e excluir o outro.

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Page 39: Opará Revista vol. 2 julho/2014

38 Maria Adaljiza Xavier Santos, Rodrigo Reis Carvalho e Kárpio Márcio de Siqueira

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ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: (RE) DESCOBRINDO CONCEITOS.

Sérgio Gonçalves Ramalho

RESUMO O presente texto, visando contribuir para o trabalho de professores da Educação Básica, tece breves considerações sobre possíveis implicações do letramento na alfabetização, como busca, também, uma tentativa de desfazer equívocos sobre tais conceitos, pautadas na análise bibliográfica de autores renomados, como Magda Soares, Ângela Kleiman, Roxane Rojo, Maria de Lourdes Matencio e Luiz AntõnioMarcuschi (entre outros), sobre o assunto. Para tanto, será (re)descoberto e comentado, suscintamente, conceitos de alfabetização e de letramento, e a sua importância para o ensino-aprendizagem. Além de tratar sobre definições de Letramento e Alfabetização, este trabalho busca discorrer sobre outro tipo de letramento: o literário, enfatizando a sua importância no universo de letramentos. Para ilustrar a relevância do letramento literário, é utilizado no texto o gênero textual literário Poema, mas precisamente o poema de Cordel. O texto não se propõe a oferecer soluções sobre questões referenciadas ao tema em questão, apenas tenta enriquecer essa temática, a partir da compreensão de conhecimentos teóricos dos autores retro-citados. Palavras–chave: Alfabetização. Letramento. Ensino-aprendizagem. Letramento literário. ABSTRACT The current text, aiming to contribute to the work of teachers in basic education, makes brief considerations about possible implications of literacy in alphabetization, as a quest, it is also an attempt to correct mistakes about these concepts, and guided by the bibliography review of renowned authors such as Magda Soares, Angela Kleiman, RoxaneRojo, Maria de Lourdes Matêncio and Luiz Antonio Marcuschi (among others) about the subject. Therefore, concepts of alfhabetization and literacy and their importance in teaching and learning will be discovered and briefly commented. Besides dealing with definitions of literacy and alphabetization, this work seeks to discuss another type of literacy: the literacy, emphasizing the importance in the universe of literacy. To illustrate the relevance of literary literacy, it is used in the text the textual literary genre Poem, but precisely the Cordel Poem. The text is not intended to provide solutions on referred issues to the subject in examination, it just tries to enrich this theme, from the understanding of theoretical knowledge of the above mentioned authors. Key-words: Alphabetization. Literacy. Teaching-learning. Literary literacy. INTRODUÇÃO

A dinamização presente na descoberta

do que seja, realmente, alfabetização e

letramento, enquanto temas que suscitam,

muitas vezes, certa incompreensão e confusão na

mente de leitores que não têm, pouca ou

nenhuma, aproximação aos estudos mais

consistentes na elucidação desses termos, será

percebida nas colocações, algumas sucintas,

outras nem tanto, no decorrer deste trabalho.

Não tentaremos, aqui, por força do

limite expositivo do presente trabalho, exibir

provas definitivas sobre a conceituação desses

elementos: a alfabetização e o letramento; mas,

tentar buscar uma aproximação às

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40 Sérgio Gonçalves Ramalho

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

terminologias, aos conceitos, ancorada nos

aportes de renomados especialistas, mestres e

doutores, no trato desses conceitos e sua extrema

relevância para a prática de ensino-

aprendizagem.

Inicialmente, serão abordados conceitos

sobre a questão do termo alfabetização, a partir

de rápida passagem sobre a questão do

letramento, no sentido de descobrirmos, desde o

início, a imbricação social existente entre ambos

os conceitos.

Em seguida, chegaremos aos aportes

conceituais sobre o que é mesmo o letramento e

suas reais consequências para o ser humano e a

sociedade. E, por fim, pontuaremos o letramento

literário como um tipo de letramento elegido

para exemplificarmos, a partir do gênero poema

de cordel, a sua importante função de

engajamento e indignação social.

Como conclusão, faremos uma breve

consideração sobre a importância do tema sobre

o qual nos propomos a incursionar neste

trabalho.

A alfabetização

Para chegarmos à compreensão sobre o significado de alfabetização, primeiramente tentaremos pontuar o Letramento, recorrendo à sua definição contida nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1988), os quais afirmam que ele é

[...] o produto da participação em práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia. São práticas discursivas que precisam da escrita para torná-las significativas, ainda que às vezes não envolvam as atividades específicas de ler ou escrever. Dessa concepção decorre o entendimento de que, nas sociedades urbanas modernas, não existe grau zero de letramento, pois nelas é impossível

não participar, de alguma forma, de

algumas dessas práticas. (p.19)

A partir do entendimento decorrente

dessa concepção dos Parâmetros Curriculares

Nacionais, segundo a qual “nas sociedades

urbanas modernas, não existe grau zero de

letramento, pois nelas é impossível não

participar, de alguma forma, de algumas dessas

práticas” (1988:19), podemos crer que, embora

os apelos pela leitura e pela escrita sejam

diversos e massificantes no universo urbano

moderno, que os estímulos para a participação

ativa nessas práticas sejam correntes no dia-a-

dia, sobretudo pluralizados pela sedução das

peças publicitárias, expostas em inúmeros

contextos, mesmo para os que não possuem o

domínio básico dos signos linguísticos, ou seja,

não sejam alfabetizados, o que dizer, então, das

práticas exercidas pelos indivíduos situados em

camadas sociais, distantes geograficamente, e

porque não dizer, sociocultural e

economicamente, dos grandes centros, isto é, das

sociedades ditas “urbanas modernas”? O que

dizer dessas pessoas que não tiveram a mínima

condição de oportunidade de acesso ao bem

educacional formal primário, a alfabetização,

pelo fato de, uma vez despossuídos

economicamente, estarem inseridas no universo

rural, que não tiveram, ao longo de suas vidas,

senão a exclusão social, e a lida diuturna na lavra

da terra alheia, enquanto camponeses, para

buscar a própria sobrevivência e da sua família?

Diante do exposto, poderíamos, sem

uma reflexão mais apurada e com uma visão, no

mínimo, reducionista, ponderar que a afirmação

dos PCN‟s sobre o Letramento esteja mais

voltada para os sujeitos que circulam nos centros

urbanos modernos.

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41 Alfabetização e letramento: (re) descobrindo conceitos

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Entretanto, se buscarmos apoio em texto

da UNESCO (2003), veremos que os sujeitos,

não alfabetizados ainda, que nasceram,

cresceram e permanecem nos contextos de áreas

rurais, em pequenos povoados distantes de polos

urbanos, são contemplados, sim, também, pelos

apelos de leitura e escrita circulantes nessas

esferas culturais provincianas, nesses espaços

agrários nos quais giram um grau mínimo de

letramento. O texto da UNESCO apresenta uma

nova concepção do que seja alfabetização, a qual

não pode estar alheio aos contextos situacionais

socioeconômico e cultural da população, uma vez

que

[...] as circunstancias variam bastante no mundo como um todo, de modo que a implementação da alfabetização tem que se adaptar a ambientes rurais, periurbanos e urbanos, à relação com a oralidade e as chamadas culturas „orais‟ e à sua relevância para a vida dos agricultores, tanto homens quanto mulheres, e para o setor informal da economia. Os benefícios diretos da alfabetização muitas vezes se manifestam, primeiramente, em termos de fatores intangíveis, como uma maior autoestima, uma mobilidade mais ampla, participação mais intensa na vida comunitária e maior respeito pelas mulheres – fatores esses que são de importância fundamental para as iniciativas locais de combate à pobreza e à impotência. (UNESCO, 2003, apud SCHOTTEN, 2011: 51).

A nosso ver, essa é uma concepção

extremamente balizada a partir do conceito de

letramento, pois, excede o significado da

alfabetização, uma vez que esta é um tipo de

letramento – privilegiado, bem o sabemos, sendo

o letramento algo muito mais amplo do que a

alfabetização. A alfabetização é considerada um

tipo de letramento privilegiado por estar situado,

contextualizadamente, no espaço educacional

institucional, mas, não apenas nesse espaço,

visto que esse tipo de letramento está presente,

também, na esfera doméstica, posto que poderá

se dar nos contatos diuturnos com entes

familiares no mesmo conjunto familiar.

Quanto a isso, Soares (2003 apud

SCHOTTEN, 2011, p. 61) nos diz que

Um adulto pode ser analfabeto, porque marginalizado social e economicamente, mas se vive em um meio em que a leitura e a escrita têm presença forte, se se interessa em ouvir a leitura de jornais feita por um alfabetizado, se recebe cartas que outros leem para ele, se dita cartas para que um alfabetizado as escreva, [...]se pede a alguém que lhe leia avisos ou indicações afixadas em algum lugar, esse analfabeto é, de certa forma, letrado, porque faz uso da escrita, envolve-se em práticas sociais de leitura

e de escrita. (p. 24)

E, sobre a espinhosa questão do

letramento e da alfabetização, que, não poucas

vezes, causa impacto de confusão e polêmica até

nos educadores profissionais ativos em sala de

aula, do Fundamental II e do Ensino Médio,

Soares (Ibidem) registra, ainda, que

Um indivíduo alfabetizado não é um individuo letrado; alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever, já o indivíduo letrado, o indivíduo que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e de escrita [...]. Enfim, letramento é o estado ou condição de quem se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e de escrita. (p. 02)

Para instigar mais ainda a nossa

percepção ao tema proposto, recorremos,

também, a uma renomada especialista na área,

Ângela Kleiman, a qual irá esclarecer possíveis

equívocos sobre os conceitos de alfabetização e

letramento.

Em entrevista (2010) sobre como

enxerga a relação entre os conceitos de

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42 Sérgio Gonçalves Ramalho

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

alfabetização e letramento, Kleiman considera

que a alfabetização é uma prática de letramento,

própria das atividades escolares, com metas e

fins específicos, portanto, trata-se de uma

prática social situada.

E, em como considera a alfabetização

dentro de uma perspectiva social da escrita, em

vez da concepção tradicional que trabalha as

práticas de leitura e produção textual com ênfase

em habilidades individuais, Kleiman afirmou

que

Não há incompatibilidade entre a alfabetização e a prática social desde que seja esta última a que determine os objetivos do ensino da língua escrita. O trabalho da alfabetização para a prática social centra-se, naturalmente, nos participantes da vida social, adequando-se aos seus interesses e objetivos – alfabetizar-se para, aos poucos, tornar-se mais autônomo nas situações em que se usa a língua escrita. Ainda, será feita a partir de textos, pois toda atividade social, toda interação se concretiza por meio de textos.

Quanto à questão de levar em

consideração a perspectiva sócio-cultural dos

estudos do letramento significa deixar de incluir,

nas práticas de ensino do código escrito, os

métodos de alfabetização, ou seja, as práticas

analíticas escolares voltadas para a

sistematização do código escrito, a entrevistada

respondeu que

De nenhuma maneira. Pelo contrário, o trabalho de análise é necessário na alfabetização. De que outra forma a criança aprenderia a rimar palavras, a brincar com aliterações (por exemplo, buscar palavras que se iniciem com o mesmo som), a soletrar? A diferença está no ponto de partida e de chegada. Na perspectiva do letramento, todos os trabalhos de análise fonológica partem do texto e terminam no texto porque é o texto, e não a letra, a sílaba ou a palavra isolada o que é relevante na prática social, porque o que interessa é que a

criança aprenda a língua escrita – ou seja, ler e escrever textos, não apenas o alfabeto. A criança que trabalha com a palavra “bola” depois de ter discutido uma manchete ou uma legenda, ou uma notícia no jornal sobre a bola que o time perdeu e que lhe custou o jogo é uma criança que terá muito mais elementos onde ancorar os novos símbolos, as famílias de sílabas, enfim, aquilo que o professor achar importante para o trabalho de sistematização e generalização. Assim como a criança que aprende a letra “E” no contexto da placa do sinal de Estacionamento, para dar outro exemplo.

O letramento Ângela Kleiman (1995), ao discutir o

letramento como práticas sociais que envolvem a

escrita, mostra que a escola é apenas uma dentre

as várias outras agências de letramento de nossa

sociedade: igreja, trabalho, família etc. Isso quer

dizer, então, que é possível participar de eventos

de letramento sem precisamente ter ido à escola.

Segundo a autora (Ibidem)

[...] o fenômeno do letramento, então, extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita. Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização. (p. 20)

Dentro dessa concepção, os estudos

consideravam a escrita como uma habilidade

neutra e homogênea que traria desenvolvimento

e benefícios aos que a dominassem. Concepções

como esta é que dão origem a crenças como a de

que quem sabe ler e escrever pensa melhor, ou a

de que quem não lê e escreve não pode ser

considerado humano ou não existe.

A palavra letramento, utilizada no Brasil,

segundo Rojo (2010) vem do termo “literacy”,

que em inglês designa a “capacidade de ler e

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43 Alfabetização e letramento: (re) descobrindo conceitos

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

escrever” (MICHAELIS), praticada na escola,

como o que nós conhecemos por “alfabetização”.

Conforme a autora,

[...] foi para reconhecer esta variedade e diversidade de práticas sociais que a reflexão teórica cunhou, nos anos 80, o conceito de letramento. Usado pela primeira vez no Brasil, como uma tradução para a palavra inglesa literacy, no livro de Mary Kato de 1986, No mundo da escrita, o termo “letramento” busca recobrir os usos e práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra maneira, sejam eles valorizados ou não valorizados socialmente, locais (próprios de uma comunidade específica) ou globais, recobrindo contextos sociais diversos (família, igreja, trabalho, mídias, escola, etc.), em grupos sociais e comunidades

diversificadas culturalmente. (p. 25-26)

Pode-se perceber, a partir dessas

afirmações, que a escrita não é neutra e

homogênea como se pressupunha. Ela é

heterogênea, plural, diversificada, pois envolve

situações as mais variadas possíveis, a partir de

uma ampla diversidade de práticas

contextualizadas, principalmente, se for levada

em conta a sociedade urbana moderna. A partir

de observações de práticas variadas de usos da

leitura e da escrita, portanto, de práticas letradas

em diferentes contextos do cotidiano – comércio,

família, religião, escola – a pesquisadora Rojo

(2010) considera que

Numa sociedade urbana moderna, as práticas diversificadas de letramento são legião. Podemos dizer que praticamente tudo o que se faz na cidade envolve hoje, de uma ou de outra maneira, a escrita, sejamos alfabetizados ou não. Logo, é possível participar de atividades e práticas letradas sendo analfabeto: analfabetos tomam ônibus, olham os jornais afixados em bancas e retiram dinheiro com cartão magnético. No entanto, para participar de práticas letradas de certas esferas valorizadas, como a escolar, a da

informação impressa, a literária, a burocrática, é necessário não somente ser alfabetizado como também ter desenvolvido níveis mais avançados de alfabetismo. E é justamente participando dessas práticas que se desenvolvem esses níveis avançados de alfabetismo. No entanto, a distribuição dessas práticas valorizadas não é democrática: poucos brasileiros têm acesso ao livro literário, a jornais, a museus e mesmo ao cinema. Por isso é tão importante que a escola se torne uma agência de democratização dos

letramentos. (p.26)

Sem dúvida, a escola é o lugar onde se

espera que sejam privilegiadas as práticas de

leitura e escrita legitimadas socialmente, mas é

preciso ter em mente que os alunos chegam até

ali já tendo construído alguma relação com a

escrita. E, em especial, para o professor de séries

iniciais, saber qual é essa relação e partir dela

para planejar sua prática faz certamente uma

grande diferença para tornar suas aulas mais

significativas para os seus estudantes.

Diante disso, ou seja, para que os

docentes possam oferecer uma aprendizagem

mais viva e eficaz, não pode perder de vista a

compreensão de que os estudos de letramento se

caracterizam por tirar a atenção do indivíduo e

seus processos mentais e se preocupar com a

interação e a prática social. Pois, os estudos de

letramento são baseados na visão de que ler e

escrever só fazem sentido quando estudados no

contexto das práticas sociais e culturais dos

quais são uma parte. E se alargaram, segundo

Kleiman (1995), para descrever as condições de

usos da escrita, principalmente enfocando as

práticas de letramento de grupos minoritários.

Assim, “os estudos já não mais pressupunham

efeitos universais do letramento, mas

pressupunham que os efeitos estariam

correlacionados às práticas sociais e culturais

Page 45: Opará Revista vol. 2 julho/2014

44 Sérgio Gonçalves Ramalho

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

dos diversos grupos que usavam a escrita”

(KLEIMAN, 1995, p.16).

Dessa forma, apesar do forte sentido

educacional que obteve nos últimos anos, o

conceito de “letramento” surgiu justamente para

desvincular os estudos da língua de alfabetização

e de desmistificar seus supostos efeitos

universais, mostrando os usos da escrita em

diferentes contextos, com diferentes objetivos.

A partir disso, nota-se que, apesar do

forte apelo pedagógico, “letramento” não é um

método de ensino, nem se iguala à alfabetização.

Como explica Kleiman (2005), letramento não é

um método, interpretação advinda da entrada do

conceito no ensino-aprendizagem da escrita. O

letramento envolve a imersão no mundo da

escrita, a participação em diferentes práticas de

letramento, o que pode ser possibilitado por

diferentes métodos, por diferentes estratégias. O

letramento também não é alfabetização, mas a

inclui. A alfabetização é uma prática de

letramento que faz parte das práticas sociais de

uso da escrita da instituição escola. O letramento

também não é uma habilidade, mas envolve um

conjunto de habilidades e competências. Em

diferentes práticas de letramento – leitura de um

jornal, escrita de um bilhete, leitura de um

romance, discussão sobre uma notícia – nós

utilizamos diferentes habilidades e competências

para participar dessas práticas.

Como salienta Kleiman (Ibidem, p. 16),

“por isso, „ensinar letramento‟ é uma expressão

no mínimo estranha, pois implica uma ação que

ninguém, nem mesmo um especialista, poderia

fazer”.

Em entrevista, Angela Kleiman (2009)

define “letramento” da seguinte forma:

Refiro-me aos impactos que a língua escrita tem no mundo atual na vida de um cidadão comum. Antes de começar os estudos de letramento no Brasil há quinze anos, sempre se pensava a escrita no âmbito da escola. Agora, estuda-se a escrita de usos escolares, distinguir a múltipla escrita no contexto do movimento hip hop, das associações quilombolas, no contexto de diversos movimentos sociais, no cotidiano. A escrita não se reduz ao ambiente escolar. Pensa-se o uso da escrita todo dia. Caminho pela rua, vejo uma placa para me orientar, uma propaganda. A toda hora, nós nos defrontamos com a língua escrita, e os estudos de letramento procuram averiguar o impacto que isso causa na vida do homem comum.

Para enriquecer a exploração de

conceitos e a discussão em torno do letramento,

outro renomado especialista entra em cena com

suas considerações sempre pertinentes e

extremamente oportunas: Marcuschi (2001),

quanto à questão do letramento, afirma que

[...] é um processo de aprendizagem social e histórica da leitura e da escrita em contextos informais e para usos utilitários, por isso é um conjunto de práticas, ou seja, „letramentos‟. [...] Distribui-se em graus de domínios que vão de um patamar mínimo a um

máximo. (p. 21)

Essa afirmação evidencia a extrema

importância que as práticas sociais, nas quais

acontecem a escrita, trazem aos estudos de

letramento. Esses estudos, conduzidos sob uma

ótica interpretativa envolvendo a escrita em

contextos nos quais essas práticas são comuns,

visibiliza a diversidade de letramentos que

possibilitam o engajamento dos interlocutores

protagonistas dessas práticas sociais e culturais

correntes.

Tomando como ponto de partida a

definição de letramento no sentido de dar

significado a uma prática discursiva de um grupo

social específico em uma determinada situação,

Page 46: Opará Revista vol. 2 julho/2014

45 Alfabetização e letramento: (re) descobrindo conceitos

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

cuja implicação não é outra senão a de que há

inúmeras práticas de letramento e não apenas

uma, Kleiman (1995, p. 19) afirma que “podemos

definir hoje o letramento como um conjunto de

práticas sociais que usam a escrita, enquanto

sistema simbólico e enquanto tecnologia, em

contextos específicos, para objetivos específicos”.

Nesse sentido, as práticas onde ocorrem os

letramentos passam pelos condicionamentos

efetivos determinados pela utilização da escrita,

pelas suas funcionalidades, e sofrem mutações

mediante a transformação desses

condicionamentos.

Por isso, o letramento é situado

(KLEIMAN, 2001) e ideológico (STREET, 1984),

no sentido de que é formado por valores e

práticas culturais em que está envolvido. Afirmar

que o letramento é ideológico quer dizer que os

usos da escrita nunca são neutros e

descontextualizados.

Os processos de letramento ocorrem em

toda a escolarização e em todo uso da língua

escrita. Como salienta Kleiman (2007),

[...] leitura e escrita são práticas discursivas, com múltiplas funções e inseparáveis dos contextos em que se desenvolvem”. “A concepção de escrita dos estudos do letramento pressupõe que as pessoas e os grupos sociais são heterogêneos e que as diversas atividades entre as pessoas acontecem

de modos muito variados. (p.4)

Maria de Lourdes Meireles Matencio

(2009, p. 6) destaca que “a contribuição

determinante de estudos sobre o letramento

resulta de assumirem que se lida, sempre, com

práticas – no plural”, na medida em que há

sempre a coexistência de múltiplas formas de se

produzir sentido pelos “objetos” escritos, que

variam segundo o tempo, o espaço institucional,

as circunstâncias, os grupos e os sujeitos que os

constituem.

Essa perspectiva dos Estudos de

Letramento procura “flagrar e compreender as

atividades de leitura e escrita no âmbito das

práticas sociais em que ocorrem” (MATENCIO,

Ibidem, p.5), o que permite a investigação dos

usos efetivos da linguagem, em diferentes grupos

e por diferentes sujeitos. Tal compreensão dos

usos da língua como sempre situados coaduna-se

com a compreensão de que a linguagem nunca se

dá no vazio, mas sempre numa situação histórica

e social concreta, através da interação.

A partir do exposto, o letramento é

melhor compreendido como um conjunto de

práticas sociais; estas podem ser inferidas de

eventos mediados por textos escritos. Aqui,

interessa muito aos professores de língua

materna, no sentido de pensarem sobre o

trabalho com linguagem na escola a partir das

perspectivas aqui anunciadas. Vimos que os

enunciados e os textos que se utilizam em salas

de aula necessariamente se relacionam de

alguma forma a enunciados anteriores já

conhecidos ou não pelos alunos, os quais

participam de práticas diversas de letramento

não só na escola, mas também fora da sala de

aula. E cada prática social em que se engaja em

diferentes contextos tem valores sociais e efeitos

específicos. Por exemplo, no movimento Hip

Hop, os raps (as letras de música desse estilo), e

os rappers (os compositores) são extremamente

valorizados dentro do movimento e nas

comunidades em que esses grupos são

prestigiados. Contudo, esses mesmos usos da

linguagem dos raps são considerados “errados”

em outros contextos, como numa avaliação que

parta das regras da gramática normativa do

português. Da mesma forma, numa moda de

Page 47: Opará Revista vol. 2 julho/2014

46 Sérgio Gonçalves Ramalho

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

viola, o “sotaque” caipira do interior paulista é

acentuado nas composições e, portanto, não é

desprestigiado entre aqueles que compõem e

apreciam esse estilo musical, o que pode ser visto

de maneira negativa por falantes de outras

variedades.

Levar tais questões em consideração é

fundamental para que a prática pedagógica se

aproxime da realidade dos alunos e possa de fato

inseri-los no universo das práticas de letramento

de prestígio, permitindo que eles circulem com

autonomia pelo mundo da escrita.

Assim, considerar a realidade dos

indivíduos com quem lidamos na escola em

nossa prática não significa trabalhar

simplesmente o já conhecido e não buscar

avanços, mas sim partir do que lhes seja familiar

para então trazer o novo, o diferente, o que ainda

não foi visto, o mais valorizado socialmente,

aquilo que irá permitir uma maior possibilidade

de ação cidadã por parte de nossos alunos, e

expor e discutir as diferenças valorativas em

diferentes contextos para os usos da linguagem.

Portanto solicitam da escola e da sociedade

novas realidades.

Novas realidades sociais provocam a

demanda de novas palavras. No Brasil, por

exemplo, a necessidade de separar os estudos

sobre o impacto social da escrita dos estudos

sobre a alfabetização levou a utilização da

palavra letramento, aqui entendida como um

conjunto de práticas sociais, as quais variam

conforme as maneiras e a intensidade com que

os grupos sociais e econômicos integram a

escrita e a leitura em seu cotidiano.

Esse grau de integração de cada

sociedade, nos seus mais variados contextos e

situações, consideradas como eventos de

letramentos, tem a ver com o lugar que um

desses grupos dá à escrita, porém, não depende

da alfabetização.

A esse respeito, podemos refletir que a

introdução e a proliferação da escrita

produziram uma cultura letrada. Do mesmo

modo, por exemplo, como ocorreu com a cultura

eletrônica à qual foi dada tamanha importância,

a ponto de criar uma nova maneira de escrever, e

a quantidade de expressões que nasceu dessa

cultura é denominada letramento digital.

As novas tecnologias da escrita têm

provocado certa radicalização da escrita, pois a

sociedade contemporânea parece ter passado

para o plano da escrita. E isso, segundo o

pensamento de Kleiman (2005), dá a essa

tecnologia um caráter de onipresença, ou seja, de

estar presente em todos os lugares.

Por sua vez, ao tratar da questão do

indivíduo letrado e do indivíduo alfabetizado,

situando-os em contextos de apropriação

mínima de práticas da escrita, Marcuschi (2001)

afirma que

O letramento envolve as mais diversas práticas da escrita (nas suas variadas formas) na sociedade e pode ir desde uma apropriação mínima da escrita, tal como o indivíduo que é analfabeto, mas letrado na medida em que identifica o valor do dinheiro, identifica o ônibus que deve tomar, consegue fazer cálculos complexos, sabe distinguir as mercadorias pelas marcas etc. , mas não escreve cartas nem lê jornal regularmente, até uma apropriação profunda, como no caso do indivíduo que desenvolve tratados de filosofia e matemática ou escreve romances. Letrado é o indivíduo que participa de forma significativa de eventos de letramento e não apenas aquele que faz

um uso formal da escrita. (p. 25)

Essa concepção de letramento constitui

um contraponto ao pensamento de que as

pessoas analfabetas são cegas, incapazes de

pensar, de refletir, de ler e compreender o

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47 Alfabetização e letramento: (re) descobrindo conceitos

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

mundo. Ocorre que essas pessoas têm

consciência do poder da hegemonia da escrita e o

lugar que está reservado a quem não a conheceu

através da escolarização.

Em sua obra Alfabetização e Letramento,

Tfouni (1995, p. 10), afirma ser impossível

desvincular esses dois termos os quais utiliza

para dar título à sua pesquisa. Segundo ela

“trata-se de um conjunto, enquanto a escrita é

produto cultural por excelência, a alfabetização e

o letramento são concebidos como processos de

aquisição de um sistema de escrita.”

E como essa radicalização cada vez

maior da escrita exige que o indivíduo, para se

livrar dos estigmas da exclusão, que lhes são

impostas pela sociedade contemporânea, além

de ser alfabetizado seja, também, letrado, ou

seja, desenvolva a capacidade de participar mais

de forma independente dos eventos de

letramento, situações mediadas por, digamos,

poderosas e, indispensáveis funções da escrita,

somente se efetivam por meio de gêneros

textuais.

Então, é necessário que a alfabetização

se dê na perspectiva do letramento, e isso só

possível através do trabalho com textos.

A reafirmação de que os letramentos são

práticas letradas em situações sócio-

comunicativas, vivenciadas culturalmente por

indivíduos, grupos e comunidades específicas, a

partir da interação social e humana, pode ser

sustentada pelas afirmações da especialista em

letramento Rojo (2010), quando diz que

Os novos estudos do letramento definem práticas letradas como “os modos culturais de se utilizar a linguagem escrita com que as pessoas lidam em suas vidas cotidianas”. Práticas de letramento ou letradas são, pois, um conceito que parte de uma visada socioantropológica. Tem-se de

reconhecer que são variáveis em diferentes comunidades e culturas. As práticas de letramento ganham corpo, materializam-se, nos diversos “eventos de letramento” dos quais participamos como indivíduos em nossas comunidades, cotidianamente.

(p. 26) Uma prática de letramento que envolve

muitas maneiras de utilização da linguagem, seja

escrita ou oralizada, e que tem o seu prestígio no

ambiente acadêmico, embora, às vezes, relegado

a um segundo plano nas práticas pedagógicas do

Ensino Fundamental e Médio, é o letramento

literário.

Entretanto, para falarmos sobre

letramento literário, faz-se necessário

compreendermos, basicamente, o que seja

literatura e quais as suas possíveis funções na

sociedade. Para tanto, recorremos a afirmações

de estudiosos renomados, que irão elucidar-nos

sobre esse universo tão fascinante, o qual nos faz

transcender a dura realidade do chão batido em

que vivemos, e que nos proporciona a

possibilidade de ampliarmos nossos horizontes,

a partir de novos olhares, de novos contextos,

mesmo condicionados, muitas vezes, ao

marasmo do cotidiano provinciano de uma

“cidadezinha qualquer”, parafraseando um

belíssimo poema de Drummond. Por ser

intrinsecamente ligada à realidade vivida do dia-

a-dia, pelo ser humano, a literatura nos desperta

e nos propõe, no seu âmago, a dimensão lúdica

carregada de encanto, permitindo-nos

experimentar vivências nunca antes sentidas,

removendo os muros da finitude e abrindo novos

caminhos de relação conosco mesmos e de inter-

relação com os outros, no nosso entorno, e, por

que não dizer, uma nova relação com Deus, o

Grande Outro, a Entidade do Sagrado que nos

envolve infinita e gratuitamente.

Page 49: Opará Revista vol. 2 julho/2014

48 Sérgio Gonçalves Ramalho

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Nesse sentido, ao considerar a literatura

enquanto mola propulsora de significado e

beleza do mundo imanente e de permitir que

cada pessoa responda com mais positividade o

seu chamamento à plenitude humana, que

Todorov (2009 apud FILIPOUSKI e MARCHI,

2009, p. 9) envolto de extrema potencialidade

criadora, afirma que

Mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Somos todos feitos do que outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais; depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação humana. (p. 23-24)

O letramento literário oferece-nos a

possibilidade de enxergar a vida de uma forma

mais prazerosa e de nos assegurar que há mais

em nossa experiência de leitura de mundo do

que costumamos conhecer.

Assim, cremos que o letramento literário

é uma trilha que se faz a partir da nossa própria

experiência cotidiana, enquanto leitores das

“letras” do mundo que nos circunda. Como por

exemplo, a “leitura metereológica” para um (a)

camponês (a) experiente: ao olhar para as

nuvens que se avolumam, ele (a) afirma sem

receio que elas sinalizam chuvas de trovoadas;

uma pessoa que fita a outra e percebe um brilho

diferente nos seus olhos, diz estar apaixonada; é

essa espantosa multiplicidade, pluralidade e,

simultaneamente, a impressionante

singularidade de leitura que permeia a nossa

subjetividade. Sobre isso, afirma Cosson (2006),

que

[...] a leitura não está restrita às letras impressas em uma página de papel. Os astrólogos lêem as estrelas para preverem o futuro dos homens. O músico lê as partituras para executar a sonata. A mãe lê no rosto do bebê a dor ou o prazer. O médico lê a doença na descrição dos sintomas do paciente. O agricultor lê o céu para prevenir-se da chuva. O amante lê nos olhos da amada a traição. Em todos esses gestos está a

leitura. (p. 38)

Com essas leituras de mundo, é possível

afirmar, também, que o letramento literário é

um processo que se constrói, sobretudo,

subjetiva e historicamente, a partir de vários

eventos sociais. E é na família, por ser o espaço

germinal da palavra oralizada, que acontece o

primeiro momento de letramento literário: nos

contatos com os pais, avós, irmãos(ãs), tios(as);

o segundo, ocorre em um contexto mais amplo:

na comunidade, em contatos com vizinhos,

grupos de amigos e nos eventos culturais. A

escola, relativamente, tende a oferecer o terceiro

momento de letramento literário. Ela, que é tida

pelo sistema educacional vigente como o agente

instituído, formal, que deveria disponibilizar

momentos proficientes para a ocorrência de

eventos de leitura literária, relega-os para

segundo e/ou nenhum plano, em detrimento de

conhecimentos metalinguísticos e linguísticos

textuais, geralmente concentrados na superfície

do texto. Nesse sentido, Rangel (2005) pondera

que:

[...] Quando a leitura é entendida como uma forma de conhecimento, as idiossincrasias dos sujeitos e as particularidades de cada situação de leitura reduzem-se a um pressuposto, que só será possível encarar depois de suficientemente descritas as competências e habilidades que caracterizam o sujeito leitor, assim

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49 Alfabetização e letramento: (re) descobrindo conceitos

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

como suas estratégias mais gerais ou básicas. Assim, numa perspectiva como esta, a leitura tende a ser encarada como um funcionamento ou um desempenho particular – porque aplicado a um campo específico – das competências e habilidades gerais que caracterizam o leitor maduro. Quando é a dimensão cultural que interessa, a leitura é, mais que qualquer outra coisa, um reconhecimento individual dos significados e valores culturais

historicamente associados ao texto. (p. 129)

Para compreendermos a importância do

letramento literário na vida do ser humano,

elegemos o gênero literário poema. Este gênero

literário, cujo caminho se constrói na

transmissão de ideias e sentimentos, na

construção de imagens e formas, permite

múltiplas leituras e interpretações.

Para ilustrar o poema enquanto

experiência de vida e a função social que exerce

causando um efeito de indignação social no ser

humano, elegemos o poema de cordel “O

agregado e o operário”, do poeta cearense

Patativa do Assaré (1900-2002) (2005 apud

Campedelli & Souza, 2009, p.32), deixando-o

para que o leitor deguste a sua leitura e o

interprete livremente, uma vez que o poema fala

por si mesmo.

O agregado e o operário Eu procuro defender No meu modesto poema Que a santa verdade encerra, Os camponeses sem terra Que o céu deste Brasil cobre E as famílias da cidade Que sofrem necessidade Morando num bairro pobre. Vão no mesmo itinerário Sofrendo a mesma opressão Nas cidades o operário E o camponês no sertão, Embora um do outro ausente O que um sente o outro sente Se queimam na mesma brasa E vivem na mesma guerra

Os agregados sem terra E os operários sem casa. [...]

Considerações finais Como vimos ao longo dessa exposição

conceitual sobre o tema em questão, letramento

e alfabetização são termos que, não raro, são

confundidos, sobretudo, por aqueles que

desconhecem a verdadeira origem desses termos

e suas reais consequências sociais, quando não

abordados, principalmente, nas escolas, sem a

responsabilidade de uma prática pedagógica

ancorada em especialistas estudiosos nessa área

da linguística.

Vimos, também, que os letramentos são

múltiplos e, um deles é o letramento literário, de

muita importância em nossas vidas, por força da

sua função social.

Na certeza de que tentamos contribuir,

não somente com a exposição de conceitos, mas,

também, com comentários, embora sucintos,

sobre os elementos de discussão: a alfabetização

e o letramento, para a ampliação da

compreensão desses termos e sua importância

social, sobretudo, na prática pedagógica, em sala

de aula, junto aos nossos alunos, e também junto

aos nossos docentes, que atuam, sofregamente,

no ensino-aprendizagem fundamental e médio,

este trabalho ganha certa relevância, e, por isso

mesmo, quer ser uma espécie de ponto de

provocação para futuras e interessantes

discussões a respeito do tema abordado.

REFERÊNCIAS

COSSON, R. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: contexto, 2006.

Page 51: Opará Revista vol. 2 julho/2014

50 Sérgio Gonçalves Ramalho

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

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YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA

CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS

ESTUDOS AFRICANOS NOS CURRÍCULOS

ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA

DÉCADA 1980.

Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana1 RESUMO O texto apresenta fragmentos da história do Centro de Estudos Afro - Orientais – CEAO da Universidade Federal da Bahia – UFBA contada a partir da realização do Projeto Introdução aos Estudos Africanos. Aborda o período de planejamento da proposta e os motivos que levaram o centro, na gestão da professora Yêda Pessoa de Castro, a realizar uma experiência educacional pioneira de articulação institucional entre a Universidade, o movimento social e a escola pública baiana na década de 1980. PALAVRAS-CHAVE: Educação. Estudos Africanos na escola. ABSTRACT The text presents fragments of the history of the Center for Afro-Oriental Studies - CEAO Federal University of Bahia - UFBa counted from the accomplishment of the Project Introduction to African Studies. To deal with the planning period of the proposal and the reasons that made the center, in the management of teacher Yêda Person Castro to hold an educational experience pioneering a institutional articulation between the University, the social movement and the public school from Bahia/Brasil in 1980. KEY – WORDS: Education. African studies in the school.

1Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia - IFBA. E-mail: [email protected].

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Page 54: Opará Revista vol. 2 julho/2014

52 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

INTRODUÇÃO

Nesse texto2, apresentamos

fragmentos da história do Centro de Estudos

Afro-Orientais – CEAO da Universidade

Federal da Bahia – UFBA contada a partir das

ações realizadas no contexto do Programa de

Cooperação Cultural entre o Brasil e os Países

Africanos e para o Desenvolvimento de

Estudos Afro-Brasileiros criado no ano de

1974. Para tanto, descreveremos a atuação

desse renomado centro de estudos e pesquisas

e a articulação deste com instituições do

Movimento Negro baiano na década de 1980 a

fim de implantar o Projeto Introdução aos

Estudos Africanos. A discussão apresentada

aborda o período de planejamento da proposta

em questão e os motivos que levaram o CEAO,

enquanto órgão vinculado a uma importante

universidade brasileira, a realizar essa ação

pioneira de articulação institucional entre a

Universidade, o movimento social e a escola

pública, na década de 1980, na gestão da

professora Yêda Pessoa de Castro. O projeto

constitui uma experiência educacional

realizada ao longo dos anos de 1985-86 com o

objetivo de incluir a disciplina Introdução aos

Estudos Africanos nos currículos das escolas

baianas e representa um antecedente dos

programas e ações afirmativas que ora

vivenciamos, especialmente, no que se refere

ao trabalho com conteúdos relacionados à

História e Cultura Africana e Afro-brasileira

nos currículos escolares como conteúdo

obrigatório, conforme a Lei 10.6393 que, em

2 Esse texto é parte do Capítulo 3 da Dissertação de

Mestrado defendida pela autora em 2008, realizada no âmbito do

Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia, intitulada Introdução aos Estudos Africanos na

escola: trajetória de uma luta histórica (CRUZ, 2008). 3 Lei federal que, em 2003, alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96) no Art. 26 e tornou

janeiro desse ano, completou dez anos de

promulgação.

O artigo apresenta informações

colhidas em fontes documentais localizadas

nos arquivos do CEAO, além de depoimentos

fornecidos à autora, baseados nas memórias de

alguns dos sujeitos envolvidos no projeto em

questão, que merece ser sempre lembrado

como uma iniciativa em prol da

desmistificação do racismo e dos estereótipos

associados à população negra, via

conhecimento da história e cultura africana

por parte de professores e estudantes das

escolas públicas baianas. Sem a pretensão de

esgotar os encontros e desencontros dessa

experiência educacional, o texto apresenta os

primeiros passos e o contexto em que nasce a

proposta, que também fora abordada por

Boaventura (2003), Santos (1987) e Cruz

(1987) em diferentes produções.

Estudos Africanos no Brasil: contexto de

criação do CEAO/UFBA

Segundo Munanga (1996, p.9-11), os

estudos sobre a África no Brasil nasceram em

contextos diferentes, embora historicamente

relacionados. No primeiro contexto, situado

entre os anos de 1900 a 1950, surgem os

chamados “estudos afro-brasileiros”, como

pano de fundo cultural para entendimento dos

mecanismos de resistência e transformação

das culturas africanas nas Américas. No

segundo contexto, situado a partir de 1960, os

estudos ressurgem no momento de

solidariedade dos países do Terceiro Mundo a

obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira nos

currículos escolares. Foi alterada em 2008, pela Lei Federal nº

11.645, que a complementou com a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Indígena.

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53 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS

CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

partir da Conferência de Bandung (1955)4, tem

seu apogeu após a queda do império colonial e

nos anos após a independência dos países

africanos. Nesse período, a “retórica oficial”

teria proclamado o reforço dos laços de

parentesco históricos entre Brasil e África,

entretanto, essa solidariedade teria sido

acompanhada pelos interesses comerciais e

econômicos que, por sua vez, demandavam um

maior conhecimento do continente parceiro. O

terceiro contexto, a partir dos anos 1970,

estaria relacionado à ação político-ideológica

dos afro-brasileiros e tem suas raízes na

atuação do Teatro Experimental do Negro,

liderado por Abdias do Nascimento, e no

Teatro Popular, liderado por Solano Trindade.

Esse contexto coincide com a tentativa dessas

instituições de ressaltar as matrizes africanas

presentes na cultura brasileira como estratégia

de (re) construção da identidade e autoestima

da comunidade negra.

O CEAO foi criado em 1959, na

segunda fase dos estudos africanos no Brasil,

por George Agostinho da Silva. De acordo com

Yêda Castro (2006, p. 331), naquele momento,

no contexto do projeto maior Oriente-

Ocidente, a Organização das Nações Unidas

para a Educação, a Ciência e a Cultura -

UNESCO fazia propostas às universidades da

Europa e das Américas para que estas

instalassem centros de estudos asiáticos em

seus domínios. Nesse contexto, ao encontrar-se

com o então Reitor Edgar Rêgo dos Santos,

4 A Conferência de Bandung foi realizada entre 18 e 24

de abril de 1955 e contou com a participação de vinte e nove estados asiáticos e africanos. Objetivava a promoção da

cooperação econômica e cultural afro-asiática, em oposição ao

que era considerado colonialismo ou neocolonialismo dos Estados Unidos da América, da União Soviética ou de outra

nação considerada imperialista. Nessa Conferência o racismo e o

imperialismo foram declarados como crimes e foi discutida a responsabilidades dos países imperialistas na ajuda para a

reconstrução desses países. (Disponível em:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Confer%C3%AAncia_de_Bandung>. Acesso em 22 de janeiro de 2008).

Agostinho da Silva sugeriu que a UFBA

ampliasse a proposta da organização citada e

criasse um Centro de Estudos Afro-Orientais,

pois este melhor se adequaria à realidade

histórica e cultural da Bahia. A partir daí,

[...] constitui-se o CEAO como órgão de ensino, estudo, pesquisa e divulgação das culturas africanas e asiáticas, da influência dessas culturas no Brasil e da presença brasileira naquelas culturas. Em plano internacional, era destinado a divulgar e promover o conhecimento da língua portuguesa na África e das línguas e culturas africanas no Brasil. Em plano local, visava também a formação de especialistas em diferentes campos de conhecimentos relativos às suas áreas de interesse comum e a participação da comunidade em suas atividades. [...] (CASTRO, 2006, p. 332).

Munanga (2004, p. 77) afirma que os

estudos africanos realizados num primeiro

momento partiam das iniciativas individuais

de pesquisadores isolados enquanto que, a

partir da década de 1960, adquirem um caráter

institucional. Desse modo, o CEAO, enquanto

órgão oficial, foi instalado no subsolo do

palácio da Reitoria da UFBA e seu primeiro

diretor foi o próprio Agostinho da Silva. Em

1961, o então diretor viajou para Brasília para

fundar um Centro de Estudos Portugueses na

Universidade de Brasília e, em seu lugar,

assumiu o professor Waldir Freitas de Oliveira.

Ainda nesse ano, segundo Castro (2006, p.332-

333), o centro ofereceu os primeiros cursos de

línguas orientais e africanas através da

Fundação Japão e do Professor

EbenezerLashebikan e a sua fase pioneira,

localizada entre os anos de 1959 a 1969,

representou: a consolidação das bases da

política cultural idealizada por Agostinho da

Silva, normatizada no Regimento Interno de

1963, e um momento de reconhecimento e

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54 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

projeção nacional e internacional. Ainda nesse

período, o Centro publicou a Série

Estudos/Documentos, o Boletim de

Informações, mais tarde com o nome de

Informativo CEAO e, em 1965, editou a Afro-

Ásia, primeira revista brasileira especializada

em África e Ásia do país.

Apesar de ter assumido a direção do

Centro somente em 1980, Yêda Castro destaca

que:

[...] eu fui indicada para assumir a direção do CEAO num momento em que o CEAO atravessava por uma crise muito grande, inclusive, ameaçado de extinção. Porque, a partir dos anos 70, com a Reforma Universitária, os órgãos suplementares da Universidade perderam a sua autonomia e o CEAO ficou vinculado regimentalmente à Faculdade de Filosofia da UFBA. Sendo assim, os pesquisadores e professores do CEAO tiveram de ser relotados em um departamento da UFBA de sua livre escolha. [...] (depoimento à autora, ago./2007, p. 1).

Conforme o depoimento, o contexto

em que a profa. Yêda assume o CEAO coincide

com o período de repressão política e

ideológica exercida pelo governo militar, a qual

repercutiu seriamente na organização

educacional do país em todos os níveis. Por

isso, após a década de 1970 e no período pós-

Reforma Universitária,

[...] o CEAO ficou vinculado, regimentalmente, à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e reduzido aos serviços técnico-administrativos. Seus professores foram relotados em outras unidades da Universidade, o que proporcionou a introdução de cursos da área especifica do CEAO ainda inéditos em departamentos da UFBA: História da África e Antropologia Afro-Brasileira, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, e Geografia da África, no Instituto de Geociências. (CASTRO, 2007, p. 105).

Ainda que a reforma tenha reduzido a

atuação do centro, os professores da UFBA

interessados em pesquisar e promover ações

vinculadas aos estudos africanos mantinham a

sua influência nos departamentos da UFBA.

Nesse contexto, como afirma Castro (2006, p.

332-333), após passar três anos na Nigéria

desenvolvendo estudos etnolinguísticos (de

1962 a 1964), o professor Guilherme de Souza

Castro assume a direção do CEAO em 1972 e

sugeriu ao então Reitor Lafayette de Azevedo

Pondé que fosse constituído o Programa de

Cooperação Cultural Brasil-África e para o

Desenvolvimento dos Estudos Afro-

Brasileiros. A partir daí, em 4 de março de

1974 foi assinado o Termo de Convênio entre a

União Federal, o Estado da Bahia, a

Universidade Federal da Bahia -UFBA e o

Município de Salvador para a realização do

referido Programa. Os representantes da

União que assinaram o Termo de Convênio

foram o Ministro das Relações Exteriores, o

Chanceler Mário Gibson Barbosa, e o Ministro

da Educação e Cultura, Senador Jarbas

Gonçalves Passarinho. O representante do

Estado da Bahia foi o então Governador

Antônio Carlos Magalhães, o representante da

UFBA foi o Vice-Reitor, Professor Augusto

Mascarenhas5 e o representante do Município

de Salvador foi o então Prefeito Clériston

Andrade. (TERMO DE CONVÊNIO, 1974, p. 1).

Para Castro (2006, p. 334), esse

programa permitiu a superação da crise

institucional na qual o CEAO se encontrava

após a Reforma Universitária e ampliou suas

possibilidades de atuação, através da

assinatura de acordos de cooperação cultural e

5 No documento localizado nos arquivos do CEAO há

a informação de que o Vice-Reitor estava representando o Reitor da UFBA da época, o Professor Lafayette de Azevedo Pondé.

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55 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS

CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

da realização de ações fundamentais para sua

sobrevivência. As atribuições das instituições

envolvidas no Termo de Convênio foram

divididas da seguinte maneira: à União, ao

Estado da Bahia e ao Município de Salvador

coube o repasse de recursos e subvenções para

a realização das atividades. A UFBA ficou

responsável pela disponibilização de

instalações em edifícios de sua propriedade em

Salvador, no bairro do Terreiro de Jesus, atual

Centro Histórico, além das obras e reparos

para adequação do prédio. O CEAO foi

definido como órgão executor do Programa de

Cooperação e instituiu-se um Conselho

Deliberativo encarregado de “[...] definir a

programação dos trabalhos, sua política e

orçamento [...]” (TERMO DE CONVÊNIO,

1974, p. 5).

O Programa de Cooperação Cultural

entre o Brasil e os Países Africanos e para o

Desenvolvimento de Estudos Afro-Brasileiros,

objeto do convênio, compreendia a execução

das seguintes atividades:

a) a constituição e manutenção de um

Museu Afro-Brasileiro, composto de coleções de natureza etnológica e artística sobre as culturas africanas e sobre os principais setores de influência africana na vida e na cultura do Brasil;

b) a realização de cursos e seminários sobre tais assuntos;

c) a edição e divulgação em português e idiomas estrangeiros de trabalhos sobre temas africanos e afro-brasileiros;

d) o estímulo à realização de pesquisas originais sobre assuntos afro-brasileiros, mediante a concessão de bolsas de pesquisa e o compromisso de edição dos trabalhos produzidos;

e) o acolhimento a bolsistas africanos, para os quais serão organizados cursos intensivos de português e cultura brasileira, antes de iniciarem estudos regulares em universidades e instituições educacionais brasileiras;

f) a recepção e orientação a personalidades intelectuais africanas em visita ao Brasil;

g) o recrutamento, a pedido do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Educação e Cultura, de professores para missão educacional e cultural na África;

h) o assessoramento, a pedido do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Educação e Cultura, na organização de representação brasileira a manifestações artísticas e culturais na África;

i) o incentivo à criação artística de temática afro-brasileira, mediante subvenções ou concursos de natureza literária, música, de artes visuais, cinema, teatro e dança;

j) o estímulo à criação de núcleos universitários e coleções dedicadas a temas africanos e afro-brasileiros;

l) o reinício dos Congressos Afro-Brasileiros, mediante a cooperação de universidades e instituições culturais brasileiras, de três em três anos, com a participação de estudiosos afro-brasileiros e africanistas estrangeiros;

m) outras iniciativas que se ajustem às finalidades do convênio; (TERMO DE CONVÊNIO, 1974, p. 2-3).

Ao analisarmos as atividades

elencadas, observamos que cada uma

demandaria uma investigação sobre o seu

cumprimento e seus desdobramentos. Em

virtude da relevância dos compromissos

assumidos para a ampliar as relações

estabelecidas entre a Bahia e os países

africanos, acreditamos ser importante o

levantamento do que foi realizado naquele

período, atividade que escapou aos objetivos

desse texto e da pesquisa realizada. É relevante

salientar que a existência desse documento

favoreceu a realização de diversas ações em

articulação Brasil-África por parte do CEAO,

em plena ditadura militar, tais como cursos de

línguas africanas como o Iorubá e o Quicongo,

além do Programa de Cooperação Cultural

com a Universidade Nacional do Zaire.

Page 58: Opará Revista vol. 2 julho/2014

56 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

O CEAO na gestão da professora Yêda

Pessoa de Castro: o curso de Introdução

aos Estudos da História e Culturas

Africanas (1982) e seus

desdobramentos

A professora Yêda Pessoa de Castro é

etnolinguista, atualmente, está aposentada

pela UFBA e atua como Professora Visitante do

Mestrado em Educação e Contemporaneidade

da Universidade do Estado da Bahia - UNEB.

Na década de 1970, era professora lotada no

CEAO e, durante a Reforma Universitária, foi

transferida para o Departamento de

Antropologia da Faculdade de Filosofia e

Ciências Humanas - FFCH. Sobre a sua

experiência acadêmica entre os anos de 1960 a

1970, relembra os docentes que atuavam na

UFBA e desenvolviam estudos africanos e

descreve que:

[...] Nesse momento, eu estava na Nigéria, na Universidade de Ifé, em companhia do Professor Guilherme de Souza Castro, quando recebi uma carta do Professor Waldir Oliveira, então Diretor do CEAO, a indagar qual seria a minha escolha. Embora a minha formação inicial tenha sido em lingüística, preferi o Departamento de Antropologia da FCH em lugar de qualquer outro departamento do Instituto de Letras porque pressenti que a Antropologia me abriria uma visão de mundo que eu não teria no Instituto de Letras. Ainda mais porque o Departamento de Antropologia acabara de ser fundado por iniciativa do Professor Thales de Azevedo e já estava incorporando no seu quadro pesquisadores e estudiosos do CEAO da importância do antropólogo Vivaldo da Costa Lima, grande conhecedor dos candomblés da Bahia e do próprio Waldir Freitas Oliveira, geógrafo e africanista, entre outros, Mestre José Calazans, conhecedor de Canudos, o etnólogo Carlos Ott, a tupinóloga Consuelo Pondé de Senna. Não tive dúvida, pedi para ir para o Departamento de Antropologia.

Ao final dos anos 60, foi aberto o Mestrado em Ciências Sociais da UFBA, onde eu me inscrevi. Foi aí que eu me dediquei a estudar a fundo Antropologia. A minha dissertação de Mestrado em 71 eu escrevi em inglês na Nigéria, sob a orientação do professor OlasopéOylaran da Universidade de Ifé, que hoje é professor numa Universidade nos Estados Unidos. [...] Conclui o Mestrado em Ciências Sociais e entrei fundo, realmente profundo na questão da Antropologia. Porque, desde o primeiro momento, percebi que, pra estudar a presença africana no Brasil, pra estudar a participação dos negros africanos na formação do português brasileiro, na construção da identidade brasileira, eu teria, antes de mais nada, que passar pela questão da cultura, pela Antropologia, dar uma visão antropológica à questão e não, simplesmente, uma visão lingüística o que seria feito se eu tivesse optado pelo Instituto de Letras. Minha dissertação de Mestrado foi baseada numa pesquisa no Recôncavo da Bahia, Santo Amaro, Cachoeira, num terreiro de nação jeje-angola. Foi aí que eu descobri que, até aquele momento, todo o nosso conhecimento em torno da presença africana na Bahia - e conseqüentemente no Brasil também, porque a Bahia sempre foi o centro dinâmico dessas influências, - estava voltado e concentrado no estudo da cultura iorubá, dos orixás da tradição iorubá. Quer dizer, era uma visão muito etnocêntrica de toda a questão, a ponto de tudo que se considerava de influência africana no Brasil passava a ser visto através de uma ótica iorubá mesmo quando não era. Volto da Nigéria em 74, quando assume a direção do CEAO o professor Guilherme de Souza Castro, que criou o Programa de Cooperação Cultural Brasil-África e idealizou o Museu Afro-Brasileiro. (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 2).

A sensibilidade e interesse da

professora Yêda Castro pelas questões relativas

aos povos e culturas africanos foram

evidenciadas em seu depoimento que se refere

ao período anterior à assunção do cargo de

direção do CEAO. O reconhecimento da

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57 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS

CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.

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importância da Antropologia para o

entendimento da cultura africana revela ainda

a intenção da pesquisadora no

aprofundamento de suas reflexões e a

realização de seus estudos junto às

comunidades de terreiro teria sido um fator

que favoreceu a sua aproximação com o

Movimento Negro da Bahia. Em abril de 1980,

Yêda Castro, acompanhada do bibliotecário

Climério Joaquim Ferreira, foram nomeados

Diretora e Vice-Diretor do CEAO, na gestão do

então Reitor Luiz Fernando Seixas de Macedo

Costa. Sobre os processos vivenciados na

nomeação, a professora argumentou que:

[...] Com o Reitor Macedo Costa sou nomeada diretora do CEAO em 1980. Eu fui, inclusive, levada a aceitar a direção do CEAO pressionada pelos funcionários do CEAO e pela própria comunidade negra daqui. Pelos movimentos negros, pelos Terreiros de Candomblé, sobretudo, pelos Terreiros de Candomblé que sempre foram grandes aliados, meus aliados no CEAO. (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 2).

Apesar de não aprofundar suas

reflexões sobre como teriam sido as pressões

por parte dos funcionários do CEAO citadas

em seu depoimento, ao assumir o cargo, a

professora Yêda reconheceu que, embora tenha

recebido o apoio de determinados setores do

Movimento Negro, foi criticada por outras

tendências que a acusaram de “ser uma branca

querendo ocupar as coisas de negro”.

Acreditamos que essa postura por parte do

Movimento Negro poderia ter sido causada

pela desconfiança em relação às intenções da

pesquisadora e, além das críticas oriundas do

Movimento, Yêda Castro argumentou que

também teria sido criticada pela própria

Universidade:

[...] Resultado: eu já entrei CEAO com essa intenção realmente de promover a comunidade negra. E também, naquele momento, os Blocos Afros e os Afoxés estavam cada vez mais atuantes, aumentando em número, sendo fundados novos blocos. O que foi que eu fiz? Primeira providência foi abrir a biblioteca do CEAO para suas pesquisas. A primeira demonstração desse apoio aconteceu na minha posse. Lá na minha posse estavam presentes representantes de Terreiros, representantes de Blocos, de Afoxés, de Movimento Negro a ponto de, no dia seguinte, o comentário todo na Universidade é que eu estava mudando a feição (ênfase) da Universidade. Porque havia muitas pessoas negras que foram assistir a minha posse. Edivaldo Brito, Olga do Alaketu, Jorge Alakija, Taata Raimundo Pires, entendeu? Muitas tendo ido à reitoria pela primeira vez. Porque foram essas pessoas e a comunidade negra que me incentivaram e me apoiaram respondendo ao meu apelo quando eu disse: - Bem, eu assumo a direção do CEAO. Agora eu preciso do apoio de todos. Porque eu não posso fazer nada sozinha. (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 3).

Apesar das pressões externas e

internas, a etnolinguista possuía uma ampla

visão do continente Africano, de sua história e

cultura construída a partir de suas vivências e

pesquisas. Por isso, ao assumir a direção do

Centro pôde contar com o apoio de religiosos

do Candomblé, do chamado “povo de santo”,

como D. Olga de Alaketu e D. Stella de Oxossi,

tal como ela menciona. Partindo do

entendimento de que o CEAO era um órgão de

extensão da Universidade, a professora Yêda

Castro abre as portas da instituição para a

comunidade e novamente recebe críticas por

parte dos intelectuais que argumentavam que a

UFBA seria vulgarizada pela presença de

pessoas sem formação acadêmica. No entanto,

a ampliação da participação da comunidade

negra nas atividades do centro, com destaque

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58 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

aos sujeitos vinculados às religiões de matriz

africana e às entidades do Movimento Negro,

também causou impactos positivos na relação

desta com a Universidade, através das trocas e

parcerias firmadas, tal como a professora Yêda

Castro comenta,

[...] Aí, convidei meus alunos dos cursos de línguas africanas, ex-alunos concluintes dos cursos de línguas africanas pra serem professores desses próprios cursos. Entre eles, o saudoso Taata Raimundo Pires ensinando Kikoongo. MakotaValdina que me apoiou muito em todo esse tempo que eu estive no CEAO. É minha amiga há muitos anos. Foi aluna do curso e colaborou com Taata Raimundo. Sérgio Barbosa que foi Presidente da Federação Baiana de Culto Afro-Brasileiro. Eu o coloquei como professor de iorubá no CEAO [...]. Só que eram pessoas sem nenhuma formação acadêmica e passaram a ser docentes na Universidade, é isso (risos). E havia ainda os Blocos Afros, Afoxés [...]. Os Blocos Afros e Afoxés começaram a freqüentar a biblioteca em busca de informações, de documentos sobre África, como inspiração dos seus temas. Fizemos várias reuniões lá no CEAO, várias atividades, inclusive, com a presença de pessoas não só da Universidade, mas também da comunidade. Nem sempre pessoas ligadas a Movimento Negro, nem a Terreiros de Candomblé, entendeu? Eram advogados negros, engenheiros, arquitetos que freqüentavam o CEAO nessas atividades que nos fazíamos.(YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 4).

Conforme o Programa de Cooperação

criado a partir do Termo de Convênio de 1974,

o Centro seria responsável por constituir um

Museu Afro-Brasileiro, composto de coleções

de natureza etnológica e artística sobre as

culturas africanas e os principais setores de

influência africana na vida e na cultura do

Brasil. Essa foi a primeira tarefa realizada pela

professora Yêda ao assumir o Centro.

[...] Nós assumimos o CEAO em abril, em janeiro do ano seguinte nós inauguramos o Museu. Não era o Museu, como até hoje não é o Museu. Aquilo ali é um núcleo do Museu Afro-Brasileiro porque o espaço que nos reservaram foi aquele onde hoje ele está o Museu [...]. A concepção do Museu feita pela professora Jacira Osvald, uma museóloga, era muito bonita, no princípio, muito bonita.[...] fizemos o quê pra inauguração do Museu? O Itamaraty comprou 375 peças nessa base, através de Pierre Verger, peças africanas. Verger foi pra África, voltou aqui trazendo essas peças africanas. Nós inauguramos o Museu com mil, duzentos e tantas peças. Por que? Fizemos uma campanha na comunidade negra pra doação ao Museu. Eu disse logo a princípio: - Não vamos comprar uma só peça, um só quadro de arte que for para o Museu. Porque se nós comprarmos um, vamos ser obrigados a comprar todos os outros. Então esse Museu é um Museu da comunidade e tem ser feito através de doações da comunidade. Aí, pronto. Todo mundo me procurava com o que fosse. [...] Bem, resultado: conseguimos, depois de muita luta, com apoio também do professor Vivaldo da Costa Lima, então Diretor do IPAC, conseguimos inaugurar o Museu em janeiro. Ah, foi uma coisa assim extraordinária. Eu nunca vi tanta gente. Com todos aqueles embaixadores africanos, olha, eu fiquei pasma, eu fiquei nas nuvens porque eu não esperava, entendeu? Eu não esperava aquela presença maciça da comunidade.(YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 4-5).

A proposta para a construção do

acervo do Museu Afro-Brasileiro fora

imediatamente atendida, o que revela a

inserção e o respaldo da diretora diante da

comunidade negra. Segundo a professora,

personalidades importantes doaram seus

pertences para que fossem expostos no Museu.

No entanto, para que o Museu se constituísse

num espaço de memória e cumprisse uma

função educativa diante da população, a

professora Yêdaimplementou os Programas

Museu Escola e Museu Comunidade:

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59 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS

CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.

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[...] O Museu Escola foi um acordo com a Bahiatursa. E a Bahiatursa levava, transportava as crianças e tinha uma pessoa lá, professora Graziela Ferreira Amorim, que era encarregada do Museu, entendeu? E ela orientava, era monitora. E muitas vezes eu ia também, eu gostava de lidar com as crianças, de mostrar as coisas do Museu. Eu me sentia bem feliz em relação a isso. Era o Museu Comunidade. Por sua vez, as autoridades africanas, todas que passavam por aqui, iam visitar o Museu. (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 6).

Nesse ponto, destacamos outro público

dentre os frequentadores do Centro: as escolas,

professores e estudantes das escolas baianas.

Sobre a presença dos estudantes nas

dependências do CEAO, o Sr. Climério Ferreira

argumentou que:

[...] Mas, quando estávamos na biblioteca, nós sentíamos a dificuldade dos estudantes do segundo grau que freqüentavam a nossa biblioteca, a necessidade que eles tinham de conhecimento sobre o continente africano. Eram diversas pesquisas feitas no nosso centro e, com o tempo, surgiu a idéia de se criar esse curso de Introdução aos Estudos Africanos na rede do estado. (CLIMÉRIO FERREIRA, depoimento à autora, set./2007, p. 1).

Atuando na gestão do CEAO, como

vice-diretor em companhia da profa. Yêda, o

Sr. Climério Ferreira, bibliotecário que atuou

por mais de vinte anos no centro, observou a

necessidade por parte de professores e

estudantes dos conhecimentos sobre a história

e cultura africana. A abertura do Museu Afro-

Brasileiro ao público externo, especialmente,

às escolas baianas, favoreceu o desvelamento

do desconhecimento da história e cultura

africana por parte de grande parcela da

população. Essa reflexão é salientada pela

professora Yêda Castro quando a mesma relata

os resultados dos Programas Museu Escola e

Museu Comunidade:

[...] E, a partir daí, nós observamos que havia uma grande lacuna no conhecimento dos professores do ensino médio em relação à História da África e à História da Cultura Afro-brasileira através dessas visitas porque eles ficavam espantados de ver quanta informação que eles não sabiam. (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p.7).

Conforme Sr. Climério Ferreira e

professora Yêda Castro comentam, ao

observarem a ampliação da procura por parte

de estudantes e da comunidade negra por

conhecimentos sobre a África e perceberem as

reações demonstradas pelos educadores que

frequentavam o Museu Afro-Brasileiro, os

gestores do Centro identificaram uma

oportunidade de expansão das ações do CEAO.

Tratava-se da oferta de cursos sobre a História

da África para o público em geral, destacando a

participação dos professores das escolas

públicas, tal como rezavam as atividades

preconizadas no Termo de Convênio assinado

em 1974.

Os gestores do centro observaram a

partir dessa oportunidade a possibilidade de

formar os docentes para que tais conteúdos

fosse ensinados nas escolas baianas. Sem

incorremos em anacronismos, vale ressaltar

que esse permanece um desafio do presente,

ainda não vencido pelas instâncias

responsáveis pela formação inicial e

continuada de professores na atualidade.

Nesse sentido, com o afã de propiciar uma

formação, ainda que preliminar, aos docentes

que visitavam o Museu Afro-Brasileiro, no ano

de 1982 o CEAO realiza o primeiro curso de

Introdução aos Estudos da História e Culturas

Africanas.

Page 62: Opará Revista vol. 2 julho/2014

60 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Em nossa investigação, localizamos e

compilamos as fichas de inscrição desse curso

nos arquivos da instituição e verificamos que

trinta e quatro pessoas se inscreveram. A partir

das informações disponíveis nas fichas,

observamos que, dentre os inscritos no curso,

79% eram professores (26), 18% estudantes (6)

e, apenas 3% (1) não apesentaram identificação

profissional. Como a maioria era formada de

professores, podemos inferir que esse teria

sido o público prioritário do curso. No

depoimento da professora Yêda Castro, a

mesma se refere a esse curso realizado em

1982, apontando seus financiadores e as

dificuldades encontradas na sua realização:

[...] Conseguimos um financiamento da Fundação FORD, porque eu me dava muito com o presidente, à época, Michael Turner. Solicitei a ele que concedesse uma verba pra nós instalarmos o curso. Viram a importância disso e instalamos o curso. Bem, quando acabou o financiamento da Fundação FORD e nós não tínhamos financiamento mais pra nada, não pudemos continuar a oferecer o curso. Porque o curso era dividido em quatro disciplinas: História, Geografia, Língua e Literatura, Antropologia [...]. (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p.9).

Observamos que, além de ofertar o

curso, a gestora do CEAO teve que ir em busca

dos financiadores, dado que a iniciativa não

fora possível com custeio advindo dos recursos

próprios do centro. Além do financiamento,

havia dificuldades de acesso a materiais e

referências bibliográficas sobre a história da

África na década de 1980 para viabilizar a

realização das aulas. Isso porque, concordando

com o que salienta Munanga (2004) acerca do

histórico dos estudos africanos no Brasil, o

professor Jorge Conceição afirma que:

[...] Eu lembro de livros como 'África: o povo', de Carlos Comentini, um argentino que foi fazer seus primeiros estudos lá no Continente Africano viajando, segundo o que eu tive de informação, na carona de um navio porque os incentivos aos estudos africanos nessa época, na década de 60, 70, não eram tão plenos como nos dias de hoje. Então, principalmente, a América vivia processos de governos militares muito sérios, não é isso? Então, o processo era muito rígido. Havia uma preocupação em financiar projetos de uma outra natureza. [...] No Brasil pouca gente também estudava essas questões. Os livros didáticos que existiam, como existe ainda resquícios desses livros hoje, eram bastante distorcidos em seus conteúdos. Aí, nesse sentido, a gente tinha dificuldade de encontrar materiais didáticos. Eu lembro do livro de Ki-Zerbo (História da África I e II). Um estudo sobre África sério e que foi um dos primeiros livros utilizados por muitos estudiosos brasileiros, muitos professores que davam aula de História da África. Dentre outros materiais que a gente contava na época, romances, livros que vinham da Guiné Bissau, eu lembro de um livro editado pelo partido de Libertação da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde - PAIGC. Um partido organizado pelas Ilhas de Cabo Verde e pela Guiné Bissau que foram contra o regime colonialista dos portugueses. Então, eu lembro que tinha esse material trazido por alguns amigos africanos e que chegava às nossas mãos para nos ajudar nesses cursos iniciais de História da África, cujo primeiro, reivindicado pelos Movimentos Negros aqui de Salvador, (das várias células), foi o que se iniciou em 1982 - eu tenho ele aqui registrado (mostra o currículo) - ocorrendo no Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA - Universidade Federal da Bahia, com o patrocínio da Fundação FORD. [...] (JORGE CONCEIÇÃO, depoimento à autora, set/2007, p. 3-4).

O professor Jorge Conceição é

geógrafo e atuou nos cursos oferecidos pelo

CEAO em 1982 e 1986 ministrando a disciplina

Geografia da África. Atualmente, trabalha com

o que ele chama de “educação integral” e

Medicina Natural, numa perspectiva

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61 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS

CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

alternativa e naturalista. No período de

realização do referido curso, atuava como

militante do Movimento Negro e, a partir de

suas reflexões, podemos inferir que os estudos

africanos eram uma temática marginalizada

nos círculos acadêmicos e que a iniciativa de

realizar o curso de Introdução aos Estudos da

História e das Culturas Africanas em 1982

representava uma inovação realizada pela

direção do CEAO.

Na atualidade, graças aos esforços de

pesquisadores diversos e ao advento das

tecnologias de informação e comunicação,

houve um incremento de publicações no

campo dos estudos africanos e, inclusive, no

ano de 2010 a UNESCO disponibilizou o

download gratuito da coleção de livros sobre

História da África do autor Joseph Ki-Zerbo a

que o mesmo se refere. No entanto, suas

afirmações são pertinentes ao revelarem as

estratégias criadas à época para que se

formulasse o material didático a ser usado no

curso e embora afirme que o curso tenha sido

reivindicado pelo Movimento Negro de

Salvador, problematizando a autoria da ideia e

se contraponto, em certa medida às afirmações

de profa. Yêda Castro e Sr. Climério Ferreira, o

professor Jorge Conceição reconhece o

pioneirismo da ação e descreve com detalhes a

sua organização curricular:

[...] Eu lembro que pessoas também a nível institucional, oficial, lutaram muito pra que esse curso ocorresse. Nós contamos aí com o nome da professora Yêda de Castro, que vai, inclusive, assinar como diretora do CEAO na época. A luta dela foi muito grande e ela nos convidou para fazer parte desse curso. Eu participei na condição de professor de Geografia da África; estava concluindo, na época, minha pós-graduação em Análise Urbana, na Universidade Federal da Bahia. [...] ..] ..] (JORGE

CONCEIÇÃO, depoimento à autora, set./2007, p. 4).

A partir das reflexões do professor

Jorge Conceição salientamos que a realização

do primeiro curso de história da África pelo

CEAO em 1982 serviu como uma das

justificativas para que, no ano seguinte, a

professora Yêda Castro encaminhasse o ofício

n° 183/83 de 01/08/83 para o Conselho

Estadual de Educação solicitando que a

disciplina Introdução aos Estudos Africanos

fosse incluída no currículo das escolas de 1°

grau. O texto do referido documento será

reproduzido a seguir:

[...] Considerando: a) as raízes históricas do Brasil e especificamente da Bahia; b) a evolução histórica e as características étnico-demográficas da sociedade baiana; c) a densidade dos componentes culturais africanos na composição da cultura baiana; d) a permeabilidade étnica e cultural da estrutura social da Bahia; e) o atual estágio das relações político-econômicas e culturais entre o Brasil e a África; f) as dimensões contemporâneas das relações inter-étnicas da cultura baiana; g) a política da União Federal desenvolvida através de programas de intercâmbio cultural visando o crescimento dos estudos afro-brasileiros; h) a necessidade de efetivamente resguardar a memória do país e do estado e firmar a caracterização da identidade do povo e da cultura baiana; i) a receptividade do professorado de 1° e 2° graus e do público em geral ao curso (em anexo) ministrado pelo Centro de Estudos Afro-Orientais, em convênio com a Fundação Ford, de “Introdução aos Estudos da História e das Culturas Africanas” cabendo salientar que foi o primeiro desse teor oferecido no Brasil; j) a existência de pessoal habilitado no magistério público de 1° e 2° graus para desenvolver atividades de ensino e pesquisa no campo dos estudos africanos;

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62 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

l) Termo de Convênio (em anexo) celebrado, em 1974, entre a União Federal, o Estado da Bahia, a Universidade Federal da Bahia e o Município de Salvador, para a execução de um “Programa de Cooperação Cultural entre o Brasil e os Países Africanos e para o Desenvolvimento de Estudos Afro-Brasileiros” – (notadamente alínea n). É que, a Direção do Centro de Estudos Afro-Orientais, no uso de suas atribuições e como Órgão Executor do Programa de Cooperação Cultural Brasil – África, vem solicitar a esse Egrégio Conselho a inclusão da disciplina titulada „Introdução aos Estudos Africanos‟ nos currículos da escola de 1° grau, na forma da lei vigente. (OFÍCIO CEAO n° 183/83).

No documento acima, há uma referência

ao curso realizado em 1982 como o “[...]

primeiro curso desse teor oferecido no Brasil

[...]”. Nas nossas investigações não

encontramos informações sobre o curso

relativas aos meses em que foi realizado

somente a referência ao ano. No entanto,

conforme mencionamos, nas fichas de

inscrição, identificamos os nomes e dados

pessoais dos trinta e quatro participantes e,

através do depoimento do professor Jorge

Conceição conseguimos identificar as

disciplinas, seus respectivos docentes e a carga

horária ministrada, que foi de 320h (trezentas

e vinte horas). O ofício encaminhado pela

direção do CEAO ao Conselho Estadual de

Educação teve um tom acadêmico pautado em

fundamentos históricos, antropológicos,

políticos, sociológicos, além do argumento

afirmando que houve receptividade por parte

dos professores que frequentaram o curso de

1982. Esse curso ainda servirá como

justificativa para outro argumento utilizado no

documento, o qual se refere à existência de

pessoal habilitado, no quadro de docentes do

serviço público de 1° e 2° graus6, a exercer

atividades de estudos e pesquisa sobre a

temática requerida na disciplina. Outro ponto

a ser destacado é que há no ofício também uma

referência às atividades previstas no Termo de

Convênio assinado em 1974.

A iniciativa do CEAO ao solicitar a

disciplina teve respaldo acadêmico na medida

em que representa um pedido de um órgão

universitário, com tradição e composto por

pesquisadores de renome no campo dos

estudos africanos. No entanto, cabe salientar

que, embora essa iniciativa tenha sido pioneira

do ponto de vista da Universidade, temos que

destacar que o Movimento Negro Brasileiro,

desde o início da década de 1940, já vinha

realizando ações nesse sentido com o intuito de

aprofundar os conhecimentos sobre a História

da África. Por esse motivo, apesar da

solicitação ter sido encaminhada em nome do

CEAO, a professora Yêda precisava do apoio da

comunidade negra para fortalecer a iniciativa:

[...] Então, convidei representantes do Movimento Negro, de Terreiros pra uma reunião lá no CEAO e fiz a proposta que está aí nesse documento. E comuniquei: - Vamos organizar um curso de Introdução aos Estudos Africanos e dar entrada a uma solicitação, pedir a Secretaria de Educação que formalize isso, porque vamos precisar retirar os professores da sala de aula pra freqüentarem o curso. [...] (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p.7-8).

Podemos considerar que, a partir da

experiência de 1982, a direção do centro

repensou a estratégia para oferecer novos

cursos de formação para professores e chegou

à conclusão de que a iniciativa poderia ser

6 Após a criação da LDB 9.394/96, o 1° grau foi chamado de Ensino Fundamental e o 2° Grau de Ensino Médio.

Atualmente, compete aos municípios a oferta do Ensino

Fundamental, com duração mínima de nove anos, e aos Estados a oferta do Ensino Médio, com duração mínima de três anos.

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63 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS

CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

bem-sucedida se fosse dirigida aos docentes

que estivessem em sala de aula. Apesar de não

encontrarmos os registros sobre a reunião

citada, acreditamos que a proposta de inclusão

da disciplina tenha sido imediatamente aceita

pela comunidade negra já que essa era uma

demanda defendida há muito tempo pelas

instituições do Movimento. Nesse contexto,

após tomarem conhecimento do ofício enviado

pelo CEAO em agosto de 1983 e da ausência de

um parecer e de encaminhamentos por parte

do Conselho Estadual de Educação, em 10 de

março de 1984, quinze Entidades Negras da

cidade do Salvador7 enviaram um documento

ao Secretário Estadual de Educação e Cultura

referendando o ofício encaminhado em 1983:

Nós, Entidades Negras da cidade do Salvador e do Estado, vimos, através deste, solicitar a V. Ex.ª. a inclusão no currículo de 1° grau do nosso Sistema de Ensino, da disciplina „INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS AFRICANOS‟ tendo em vista que: 1. A população de Salvador é constituída por um contingente majoritariamente de descendência africana; 2. O Brasil é uma sociedade pluricultural, por isso é necessário que seja estudada nas escolas a História das três raças constituintes da nação brasileira; 3. A ausência do estudo da História e da Cultura negra nos currículos escolares, concorre para a falta de identidade cultural e conseqüentemente, para a inferiorização do povo negro e de seus descendentes no Brasil; 4. Existe grande receptividade e expectativa da comunidade a todos os cursos de Estudos Africanos que são oferecidos por iniciativas dos Movimentos Negros e da Universidade através do CEAO-

7 As instituições que assinaram o documento foram:

Sociedade Protetora dos Desvalidos, Movimento Negro Unificado- BA, Adé Dudu, Versos Negros, Grupo de Estudos

Afro-Brasileiros – GEAB, Grupo Cultural “OS NEGÕES”, Ilê

Aiyê, Olodum, Urunmilá, Grupo Negro do Garcia, Sociedade São Jorge do Engenho Velho, responsável pela preservação do

Terreiro Casa Branca Bahia, Núcleo Cultural “NIGER-OKAN”,

Legião Rasta e Associação Centro Operário da Bahia. (BAHIA, 1986, p. 14-15).

Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia. 5. As relações político-econômica-culturais entre o Brasil e a África pressupõem um conhecimento mútuo da História e Cultura entre as nações brasileira e africana; Temos ciência de que o CEAO enviou um ofício n°183/83 de 01.08.83 ao Conselho Estadual de Educação, solicitando também a inclusão da disciplina “Introdução aos Estudos Africanos”, o qual nós estamos referendando. (BAHIA, 1986, p. 13).

A estrutura do documento

encaminhado pelas entidades negras é

semelhante à estrutura do ofício enviado pelo

CEAO e inclui reflexões sobre pluralidade

cultural da sociedade brasileira, o que

implicaria a necessidade de estudos sobre as

“raças” que constituem essa sociedade. Além

desse argumento, outro ponto citado nessa

carta que amplia os argumentos já

mencionados no ofício de 1983 se refere aos

prejuízos causados pela ausência desses

conhecimentos na construção da identidade e

auto-estima do “povo negro”. Ana Célia da

Silva destaca a atuação do Movimento Negro

na reivindicação da disciplina Introdução aos

Estudos Africanos quando afirma que:

[...] O que ficou marcante pra mim foi a iniciativa do Movimento Negro Unificado. Eu resolvi sair pedindo de uma a uma às entidades que assinassem um documento para solicitar ao secretário da época, era o professor Edivaldo Boaventura, que ele fizesse o segundo curso de formação para professores em história, introdução aos estudos africanos. A reivindicação era essa: fazer o segundo curso, porque o primeiro foi dado pelo CEAO [...] há alguns anos atrás por intermédio, por iniciativa da professora Yêda Pessoa de Castro que, na época, era diretora do CEAO. Então o MNU teve essa iniciativa. E era do grupo de educação Robson da Luz: eu, Jônatas e Gildália Menezes. E eu levei, praticamente, três meses pedindo às entidades negras que assinassem, porque naquela época as entidades

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negras não estavam muito ligadas nessa questão de educação. Quem trabalhava com essa área éramos nós quatro e havia muita resistência a essa variável dentro movimento negro. O pessoal queria mais trabalhar história e insurgência negra. [...](ANA CÉLIA SILVA, depoimento à autora, ago./2007, p. 2).

Ana Célia da Silva é pedagoga, Mestre

e Doutora em Educação. Atualmente, é

professora adjunta do Departamento de

Educação e do Mestrado em Educação e

Contemporaneidade da UNEB/Campus I. Na

época, ocupava a presidência do Conselho das

Entidades Negras e a sua afirmação a respeito

do pouco interesse por parte do Movimento

Negro pelas questões relativas à educação

formal está relacionada às dificuldades na

articulação entre cultura e política por parte

do. Movimento Negro naquele período.

Conforme Silva (1988), entre as décadas de

1970 a 1980,travava-se um debate interno

entre duas tendências do movimento que,

inclusive, gerava tensões que interferiam na

percepção da importância de iniciativas como

essa por parte de determinados grupos. Apesar

disso, a carta do Movimento Negro baiano

ratificou a necessidade da disciplina nas

escolas e a solicitação feita sete meses antes

pelo CEAO.

Acreditamos que a proposta

apresentada pela professora Yêda teria

recebido o apoio da comunidade negra por

representar, conforme o depoimento da profa.

Ana Célia, antigos anseios do Movimento

Negro no campo da educação e em função da

estratégia de ação criada para que a disciplina

fosse efetivamente incluída nas escolas. Isso

significa dizer que, ao tempo em que a

solicitação foi encaminhada ao Conselho

Estadual de Educação, a direção do CEAO já

planejava a metodologia para que fosse

efetivada a inclusão da disciplina, ou seja, a

partir da formação dos professores em serviço

da rede estadual. Essa mudança de estratégia

pode ter sido motivada pela avaliação e

acompanhamento dos resultados do curso

realizado em 1982, evidenciada no seguinte

trecho dos depoimentos da professora Yêda

Castro e de Sr. Climério Ferreira:

[...] porque nós começamos a oferecer o curso em 82 e aí nós vimos a necessidade de ter um vínculo oficial, por quê? Por que razão nós estamos oferecendo esse curso? E levar essas informações pra quem? Entendeu? Então, as informações seriam repassadas para os professores da rede estadual e esses daí seriam multiplicadores dessas informações para os seus alunos e outros professores também que quisessem participar disso. Então, a nossa preocupação foi encaminhar o documento, fazer os trâmites burocráticos. [...] Daí oficializando, nós poderíamos, como eu lhe disse, nós poderíamos então tirar os professores da sala de aula num determinado momento pra dentro do curso. E depois voltar esses professores pra suas respectivas escolas. Porque nós não queríamos complicar, quer dizer, pra não criar mais problema. Foram inúmeros os problemas, não foi fácil fazermos aquilo. Foram inúmeros os problemas. Para facilitar exatamente a introdução desse curso, nosso público alvo seriam os próprios professores já instalados dentro da rede, entendeu? Já lecionando nas suas escolas. Eles sairiam para o curso e voltariam para mesma escola pra ensinar essa disciplina. Então, por isso que foi encaminhado ao Conselho Estadual de Educação, pra o Conselho dar o parecer e daí encaminhar ao Secretário para analisar e depois dar o seu aval ou não. Porque também a gente não sabia se seria favorável ou não, você entendeu? Todos esses problemas. Mas, felizmente, Edivaldo sempre foi um homem de uma visão muito larga também e entendeu. Ele muito suscetível a essa área de estudos. Alem de ser meu amigo há muitos anos também. Então, nós conseguimos. (YÊDA CASTRO,

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CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.

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depoimento à autora, ago./2007, p.11). [...] Então, nós entramos em contato, professora Yêda e eu, com o professor Edivaldo Boaventura, então Secretário da Educação, e ele abraçou a idéia de bom grado e proporcionou todos os meios possíveis para que a coisa andasse da maneira que nós pretendíamos. Isso foi no governo do Doutor João Durval, na década de oitenta. (CLIMÉRIO FERREIRA, depoimento à autora, set./2007, p. 1).

A iniciativa que começava a ser

delineada exigiria um esforço de

convencimento dos dirigentes das escolas e das

autoridades de educação para que estes

possibilitassem a infra-estrutura necessária à

participação dos professores no curso de

formação. Em 15 de maio de 1985, quase dois

anos após a primeira solicitação, oConselho

Estadual de Educação forneceu o parecer n°

89/85, aprovando a inclusão da disciplina

Introdução aos Estudos Africanos no 1° ou 2°

grau, pelas escolas particulares ou da rede

oficial, na parte diversificada dos currículos.

No texto do parecer consta que houve vários

encontros entre a Comissão de Currículos e

Experiências Pedagógicas do Conselho, a

direção do CEAO e representantes do

Movimento Negro de Salvador. Além dos

encontros, o CEAO teria encaminhado o

Termo de Convênio de 1974 e o conteúdo

programático da disciplina para ser anexado ao

processo.

Com base na Lei 5.692/71, modificada

pela Lei 7.044/82, que preconizava a

existência de uma base curricular comum e

obrigatória em âmbito nacional e uma parte

diversificada para atender às peculiaridades

locais, o Conselheiro Padre José Hamilton

Almeida Barros concluiu que a inclusão da

referida disciplina teria respaldo legal e que

esta poderia compor o conjunto de disciplinas

indicadas pelo Conselho nos currículos de 1° e

2° graus das escolas, desde que as mesmas

fizessem a solicitação. No parecer, o referido

Conselheiro, além de fundamentar suas

conclusões na legislação, destacou o aspecto

cultural e pedagógico da iniciativa, reconheceu

que a inclusão da disciplina atenderia a “uma

expectativa de grande parte da população

interessada na compreensão de ser brasileiro e

baiano”, afirmou que o CEAO deveria

contribuir na “preparação e assistência à

execução da programação que se pretende” e

argumentou que:

[...] a operacionalização deverá ser discutida pelo órgão competente da SEC, com o órgão supervisor da disciplina, no caso, o CEAO e as escolas interessadas na implantação, a fim de que se faça de maneira gradual, em vistas ao objetivo a ser alcançado. [...] Pelo exposto, somos de parecer que não existe impedimento de ordem legal para que a disciplina „Introdução aos Estudos Africanos‟ possa ser oferecida, a nível de 1° ou 2° grau, por escolas particulares ou da rede oficial, que assim desejem fazê-lo. A referida disciplina pode constar da parte diversificada dos currículos dos supracitados graus de ensino, sem que dependa de prévia aprovação por parte do Conselho Estadual de Educação, de acordo com a legislação em vigor [...]. (CONSELHO ESTADUAL DE EDUCACAO, PARECER 89/85, p. 3).

Assinaram o parecer na condição de

Conselheiros: o Presidente do Conselho

Raimundo José da Matta, a Presidente da

Comissão de Currículos e Experiências

Pedagógicas, Yolanda Piva Pinto, o Presidente

da Comissão de Ensino de 1° e 2° Graus, Enoch

Senna Souza e os Relatores José Hamilton

Almeida Barros e Solon Santana Fontes.

Conforme as determinações constantes no

documento, o Conselho Estadual de Educação

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designou o CEAO como órgão que auxiliaria na

preparação, construiria a programação e

supervisionaria a inclusão da disciplina. Além

disso, estendeu a oferta ao ensino de 2° grau e

afirmou a necessidade de articulações entre o

referido Centro com o órgão da Secretaria de

Educação e Cultura-SEC responsável pela

atividade. Apesar de haver referências ao

conteúdo da disciplina, que teria sido

construído pelo CEAO, não encontramos no

Parecer outros anexos que se refiram a tais

conteúdos. Um ponto discutível no Parecer do

Conselho é que a inclusão da disciplina seria

facultada ao interesse do estabelecimento de

ensino, o que significa que dependeria da

iniciativa, principalmente, de diretores e

professores.

Após a publicação do Parecer, no dia

06 de junho de 1985, o então Secretário de

Educação, professor Edivaldo Boaventura,

encaminhou uma comunicação ao Conselho de

Entidades Negras da Bahia para dar

conhecimento da aprovação da disciplina e

convidar a instituição para o ato de

homologação da Resolução. A homologação foi

realizada no dia 10 de junho de 1985, através

da Portaria n° 6068, publicada no Diário

Oficial do Estado de 11 de junho de 1985.

O SECRETÁRIO DA EDUCACAO E CULTURA, no uso de suas atribuições, RESOLVE Determinar ao Departamento de Ensino de 1° e 2° Graus DEPSG/SEC – que providencie a inclusão da disciplina “Introdução aos Estudos Africanos”, na parte diversificada dos currículos das escolas de 1° e 2° graus da Rede Estadual de Ensino. [...] (BAHIA, 1986, p. 21).

Edivaldo Boaventura, atualmente, é

Professor Emérito da Universidade Federal da

Bahia, trabalha na Universidade do Salvador –

UNIFACS, na Fundação Visconde de Cairu e é

Diretor Geral do Jornal A Tarde. Sobre a

solicitação da disciplina, ele argumenta que:

[...] Bom, isso eu era Secretário de Educação e Cultura da Bahia quando recebi do CEAO, encaminhada pela professora Yêda Pessoa de Castro, uma requisição a fim de que instalássemos na Bahia a disciplina Introdução aos Estudos Africanos na escola secundária. Bom, isso, o assunto foi discutido no Conselho. Aliás, largamente discutido no Conselho Estadual de Educação. O Monsenhor José Hamilton Almeida Barros, já falecido, deu um parecer que nos ajudou bastante e a matéria foi então introduzida na escola média. Mas, ao lado disso, nós desenvolvemos um curso de especialização, a nível de pós graduação, com recursos da Secretaria de Educação e com participação do CEAO. Aí formou-se a primeira turma de professores. (EDIVALDO BOAVENTURA, depoimento à autora, set./2007, p. 1).

A partir do depoimento do professor

Edivaldo Boaventura e conforme afirmamos

anteriormente podemos inferir que, enquanto

a solicitação tramitava no Conselho Estadual

de Educação, já havia negociações relativas à

organização do curso de formação para

professores da rede estadual. Isso porque, a

professora Yêda Castro, juntamente com a

historiadora Eugênia Lúcia Vianna Nery do

Espírito Santo8, elaborou o projeto Introdução

aos Estudos Africanos cuja proposta defendia

que os professores dedicassem parte de sua

jornada de trabalho para fazerem o curso

Introdução aos Estudos da História e das

Culturas Africanas, em nível de especialização,

8 Eugênia Nery era historiadora, trabalhava no CEAO,

foi coordenadora da Assessoria de Estudos Africanos criada em

1986 e atuou na coordenação do Projeto Introdução aos Estudos Africanos. Faleceu no ano de 1995 e, em sua homenagem, foi

lançado em 2004 o livro com o título de seu projeto de

Doutorado BOAVENTURA, Edvaldo; SILVA, Ana Célia da. (orgs.). Formas Alternativas de Educação da Criança Negra

em Salvador: O Terreiro, a Quadra e a Roda. Coletânea de

Textos do Programa de Pós-Graduação em Educação da FACED/UFBA. Salvador: Editora UNEB, 2004.

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CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.

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que os habilitaria a ensinar a disciplina

Introdução aos Estudos Africanos. O curso

seria voltado eminentemente para professores

da rede estadual, no entanto, a direção do

CEAO também ofertou um curso, em nível de

extensão, para atender aos anseios das pessoas

interessadas pelo tema e que estavam fora do

perfil a ser atendido no curso de

especialização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O projeto em questão foi realizado

numa ampla articulação que envolveu o CEAO,

o movimento negro baiano, o então Secretário

estadual de educação, além de estudiosos. A

estratégia utilizada para garantir a presença

dos professores no curso, a preocupação com a

competência dos docentes que ministrariam as

disciplinas e mesmo a tensão entre o discurso

da militância e sua relação com o discurso

acadêmico revelam que havia um amplo

comprometimento das pessoas envolvidas no

projeto. Aliada a essas questões, nesse mesmo

período, a professora Yêda ainda enfrentava a

resistências à sua atuação como gestora do

CEAO. Sobre essas questões ela argumenta

que:

[...] O que aconteceu aí foi o seguinte: nós não tiramos os professores da sala de aula, mesmo porque o que nós solicitamos à Secretaria é que eles fossem dispensados num determinado horário, entendeu?,prafreqüentar o curso. Foi isso que aconteceu. Quer dizer, eles não ficaram dispensados das aulas. [...] Quer dizer, nós fizemos tudo pra facilitar e não pra complicar. Porque já estava tudo muito complicado. Todo mundo complicando tudo, entendeu? (risos) Então, fizemos pra facilitar, sem querer complicar nada. Mesmo porque, às vezes, o discurso do Movimento Negro era aquele discurso entusiasmado e forte naquele momento, como devia ser.

Naquele momento devia ser assim pra ser imposto, senão não teria imposto. Então, mas era um discurso de militância, entendeu? Um discurso que nem sempre um discurso de militância, ele corre lado a lado com o discurso acadêmico, não é isso? Eles não se encontram, não se encontram, não é mesmo? Então havia também o discurso de militância do Movimento Negro e uma certa reação em relação a mim por eu ser branca, entendeu? [...] (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p.12-13).

Em seu depoimento, a professora Yêda

revela parte das dificuldades enfrentadas no

processo de organização e planejamento do

curso. Além disso, afirma que houve

dificuldades em encontrar docentes para

ministrar as disciplinas, para conseguir o

financiamento do projeto e que ainda sofreu

pressões por parte dos militares em função do

país estar em plena ditadura. Essas pressões

implicavam na fiscalização do conteúdo a ser

ministrado nos cursos e foram reveladas no

seguinte trecho:

[...] A primeira dificuldade foi conseguir financiamento, entendeu? Primeira dificuldade: conseguir financiamento pra fazer o curso. Segunda dificuldade: selecionar os professores que dariam o curso. Porque nós não queríamos qualquer um dentro de sala de aula dando o curso. Nós escolhemos realmente aqueles que nós considerávamos competentes e que, de fato, são. Professor Ronaldo Sena que hoje é professor da Universidade de Feira de Santana, que fez um trabalho belíssimo. Ele é antropólogo. [...] O professor Jorge Conceição que era meu amigo há muito tempo também e que eu conhecia o trabalho dele. [...] Professora Eugênia Nery, professora de História na Universidade Federal, no Departamento de História, extremamente competente, todo mundo sabe disso.Pois bem, Arany também colaborou com Eugênia no curso de História, nós publicamos até um trabalho feito por ela em conjunto com a Eugênia Nery. Você vê que nós estávamos realmente

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68 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

rodeadas de pessoas da maior competência e pessoas engajadas com a causa, entendeu? Pessoas que sabiam da necessidade de passar essa informação adiante. Não ficar apenas no círculo acadêmico, limitada às poucas pessoas do círculo acadêmico. Nós tínhamos que passar isso adiante. Então, a dificuldade foi essa: primeiro, financiamento, depois, escolher quais e como seria formada essa equipe de professores. Terceiro, as dificuldades junto à própria secretaria pra poder dar encaminhamento ao processo. Mesmo porque alguns professores como Jorge conceição, por exemplo, não era professor da Universidade. Nós tínhamos então de fazer toda uma, um circuito pra poder chegar, alcançar aquilo que nós perseguíamos. Enfim, e a própria reação dentro do conselho, entendeu? Por que esse curso? Pra quê esse curso, ia incentivar coisas de racismo, não sei o quê? E como eu lhe disse, a própria questão da ditadura. Nós estávamos na ditadura, entendeu? Então era a mesma coisa, do outro lado os militares querendo saber por que é que a gente queria dar esse curso. Qual era a intenção desse curso? Quer dizer, uma coisa atrás da outra. Não podia nem comentar nem falar naquela época, entendeu? Era coisa de 'bico calado'. Não comentava porque não podia comentar. Quer dizer, é uma coisa que agora eu estou lhe revelando, entendeu? Meus amigos mais íntimos aqueles que conviviam comigo no momento, Eugênia Nery sabia, entendeu? Mas Arany não sabia, por exemplo. Nós não podíamos falar. [...] Todos os militares, todos de olho na gente porque nós estávamos tratando de coisas da Rússia, da China comunista e de negro. Por que? Se nós temos uma democracia racial que era o discurso oficial do momento. Você sabe que o discurso era esse de democracia racial e, então, porque é que nós estávamos tratando 'coisas de negro' se nós vivemos uma democracia racial aqui?(YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p.13-14).

A direção do CEAO enfrentou todas

essas dificuldades para dar prosseguimento às

articulações para a realização do curso de

formação sem, contudo, desprezar a

necessidade de articulações permanentes com

o Movimento Negro. Nesse sentido, a

professora Yêda Castro afirmou ter resistido às

pressões buscando, inclusive, estabelecer um

diálogo com militantes destacados no

Movimento e que poderiam contribuir na

formatação do curso:

[...] Quando Lélia Gonzáles esteve aqui [...] ela foi ao CEAO, nós tivemos uma conversa muito séria sobre isso. O que é que nós vamos ensinar? O que é que nós vamos dizer? Eu disse: - Olha, Lélia, nós não vamos fazer discurso de militância. Nós queremos fazer um discurso acadêmico, um discurso cientifico. Entendeu? Agora, pra usar esse discurso cientifico nós temos de driblar (ênfase) a ditadura. Porque senão nós iríamos ensinar quem? Gilberto Freyre, Nina Rodrigues, o discurso da democracia racial. E é isso que nós não queremos ensinar. Nós temos de ser muito sutis, entendeu?,pra mostrar que isso não existe, entendeu? Você vê que a dificuldade era de toda a ordem, de todos os lados. Não era, não era, não foi fácil, não foi fácil. E o tempo que eu passei na direção do CEAO, todo esse tempo que foi o tempo cruel da ditadura, entendeu? Eu sofri essa pressão, sofri essa pressão constantemente. E era engraçado: por um lado, a Universidade dizendo que eu estava vulgarizando a Universidade porque eu abri as portas pra comunidade, sobretudo a comunidade negra, botei como professores no CEAO pessoas que não tinham nenhuma formação acadêmica, entendeu? E os militares querendo saber por que é que nós estávamos fazendo essa 'coisa de negro' lá dentro, se nós tínhamos uma democracia racial? E, do outro lado, o Movimento Negro, os militantes do Movimento, mais fundamentalistas do Movimento Negro, me acusando de eu ser uma branca na direção de um Centro de Estudos que tratava de negros. Então, você veja como é que eu estava cercada por todos os lados (risos). Mas, graças a Deus, eu sobrevivi e fui à frente e fui botando à frente os projetos e vencemos. [...] (YÊDA CASTRO, depoimento à autora, ago./2007, p. 12-14).

As articulações com o Movimento

Negro foram relevantes na medida em que a

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69 YÊDA PESSOA DE CASTRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INCLUSÃO DOS ESTUDOS AFRICANOS NOS

CURRÍCULOS ESCOLARES DA BAHIA: A EXPERIÊNCIA DA DÉCADA 1980.

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

professora Yêda tinha certeza de que não

caberia o discurso “militante” no curso de

formação e que a literatura sobre o tema em

questão era problemática, pois favorecia uma

abordagem da história e cultura africana

pautada em estudos baseados em teóricos

como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre. Nesse

trecho de seu depoimento, ela revela que as

iniciativas (o curso de 1982 e o projeto em

1985) não foram realizadas em um ambiente

político e ideológico favorável, em função das

pressões dos militares, de determinados

setores do Movimento negro e até mesmo da

Universidade. Muitos fatos ocorreram após a

conclusão do curso de formação em questão.

As reflexões dos professores que participaram

do projeto, os encontros, desencontros e os

desdobramentos durante as aulas e no

encerramento do curso podem ser encontrados

na obra de Cruz (2008).

Esse capítulo da história do CEAO, que

constitui uma experiência relevante na

História da Educação Baiana propicia uma

leitura que relaciona passado em presente

quando nos debruçamos sobre os desafios

postos frente ao cumprimento da Lei

10.639/03. Apesar disso, nesse texto,

buscamos demonstrar a atuação da professora

Yêda Pessoa de Castro que, enquanto esteve

como diretora do CEAO na década de 1980, se

empenhou para que o centro cumprisse a sua

função como um importante órgão da

universidade, buscando ampliar a participação

da comunidade negra nas suas atividades e

agregar as contribuições do Movimento Negro

no dimensionamento das propostas e ações.

Sem recorrer a anacronismos, é importante

que conheçamos essa experiência educacional

para que repensemos os desafios à elaboração

de uma educação para as relações étnico-

raciais no Brasil e à inclusão da história da

África e dos afro-brasileiros nos currículos

escolares tal como reza a Resolução CNE nº 17

de 17/06/07. (BRASIL, 2004).

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Page 72: Opará Revista vol. 2 julho/2014

70 Cristiane Copque da Cruz Santos de Santana

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Page 73: Opará Revista vol. 2 julho/2014

NARRATIVAS DE PROFESSORES

RURAIS: TRAJETÓRIAS E FAZER

PEDAGÓGICO NO MUNICÍPIO DE BAIXA

GRANDE, BAHIA

Natalina Assis de Carvalho1 RESUMO O presente artigo retrata o recorte de uma pesquisa que buscou discutir a profissão docente em interface com a prática de professores que atuam em espaços rurais, discutindo, assim, formação inicial e formação continuada. O campus da pesquisa foi construído por seis professores que exercem a docência em escolas rurais no município de Baixa Grande Bahia. O trabalho objetivou entender a formação de professores rurais, a partir da profissão e da prática pedagógica. A metodologia que ancorou a referida pesquisa foi a técnica da entrevista narrativa, com a abordagem autobiográfica, uma metodologia e método de conhecimento que possibilita ao professor refletir sua prática e sua vida, num processo de formação. Deste modo, o estudo com as histórias de vida faz com que o sujeito pense no que mais o marcou, no seu processo de vida e formação, retomando as experiências a partir do que foram mais significativos. A pesquisa deu visibilidade ao fazer docente de professores rurais que cotidianamente enfrentam diversos desafios no dever da docência. A formação profissional distante da realidade das escolas e da vida dos sujeitos que vivem e produzem a vida foi uma questão que permeou as narrativas docentes. Palavras-chave: Prática do professor rural. Profissão docente. Formação inicial e continuada. RESUMEN En este artículo se describeel contorno de unestudio que buscóanalizarlainterfazprofesión docente conlapráctica de los docentes que trabajanenlas zonas rurales, conel argumento por lo tanto, laformación inicial y laformación continua. El campus de lainvestigaciónfueconstruido por seis profesores dedicados a laenseñanzaenlasescuelasruralesenelmunicipio de Bahía Grande Bajo. El estudiotuvo como objetivo comprenderlaformación de maestros rurales de laprofesión y lapráctica pedagógica. La metodología que se ancló a la narrativa técnica de laencuesta, dijo entrevista, el enfoque autobiográfico con una metodología y un método de conocimiento, que permite al maestro para reflejarsupráctica y su vida, unproceso de formación. Así, elestudio de las historias de vida hace que elsujetopiensaenlo que lamayoríaanotóensu vida y elproceso de formación, de regreso de lasexperiencias que han sido más significativas. La encuestadiovisibilidad a hacer de laenseñanza de los maestros rurales que diariamente se enfrentan a muchosdesafíosenlaenseñanzadeber. Escuelas de formaciónprofesionalalejados de larealidad y de la vida de las personas que viven y producenla vida es una cuestión que impregnabalosprofesores narrativas. Palabras clave:ProfesorPráctica Rural. Profesión docente. Inicial y continua.

1Licenciada em Pedagogia (UNEB). Especialização em Currículo (UNEB). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduc-UNEB). Membro do Grupo de Pós Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED). Membro do

Grupo de Pesquisa (Auto)biografia, Formação e História Oral (GRAFHO/UNEB). Bolsista FAPESB. E-mail:

[email protected].

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72 Natalina Assis de Carvalho

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

INTRODUÇÃO

“A dimensão formadora das experiências deixa marcas e imprime reflexões sobre o vivido...”

(SOUZA, 2006, p.15)

O presente trabalho levantou questões

sobre a formação de professores em espaço

rural no município de Baixa Grande Bahia,

analisando, assim, a formação docente, a partir

das dificuldades apresentadas na prática

pedagógica, em função da fragilidade na

formação inicial e continuada.A metodologia

da referida pesquisaéde abordagem qualitativa,

ancorada no método (auto)biográfico, e que

versa sobre as narrativas de vida de seis

professores rurais que desenvolvem a docência

no município de Baixa Grande Bahia, situado

no Território de Identidade Bacia do Jacuípe.

Tratou-se, também, da escrita autobiográfica,

para entender, por meio destas, as questões da

sua formação. Uma das especificidades do

trabalho com as narrativas é o potencial

metodológico na investigação e formação de

professores.

Nesse sentido, o professor, a partir do

momento que começa a narrar, passa por um

processo de rememoração na sua profissão, o

que inclui suas experiências e aprendizagens

adquiridas. É nesse momento que o docente

reflete e passa a conhecer melhor seu processo

de formação. A ideia de pesquisar sobre a

formação de professores da zona rural

começou com o desenvolvimento da pesquisa

“O professor e sua prática no território escolar

rural” na iniciação científica, vinculado ao

projeto “Ruralidades diversas - diversas

ruralidades: sujeitos, instituições e prática

pedagógica nas escolas do campo Bahia-

Brasil”, com financiamento da CNPq e

FAPESP, a partir de estudos do Grupo

Autobiografia, Formação e História Oral

(GRAFHO). Além disso, fez-se uso dos

conhecimentos obtidos mediante a vivência

com o meio rural, decorrente de frequentes

visitas a locais desta natureza. Optou-se por

valorizar tais conhecimentos, por levar em

consideração o expresso por Josso (2004),

quando afirma que experiência é uma

aprendizagem que ajuda o sujeito no momento

de praticar, decorrente da constituição da

significação, assim, o espaço oferece

oportunidades para viver situações, a partir

dos conhecimentos já adquiridos. Observou-se

que o professor formado nas grandes cidades e

designado para o meio rural nem sempre tem

subsídios necessários para lidar com uma

determinada realidade regional, a qual muitas

vezes é bastante distante daquela que

corresponde à sua vivência. Diante disso, as

ações educativas desenvolvidas por esses

profissionais, oriundos de zonas urbanas em

um meio rural, mostram-se como inadequadas,

por não estar adaptada a essa nova realidade. A

relevância desse trabalho promoveu um estudo

que contemplou a realidade dos professores da

zona rural do município de Baixa Grande-BA,

no que diz respeito à formação e às práticas

pedagógicas dos mesmos. O trabalho com os

professores rurais foi uma importante

contribuição às pesquisas relacionadas à

formação de professores e ao estudo dos

docentes rurais para a produção de

conhecimentos, além de possibilitar a

reconstituição de uma história que permitirá o

conhecimento de si mesmo enquanto

profissional.

A PRÁTICA DO PROFESSOR RURAL

Ser professor é uma tarefa que requer, em

geral, dedicação, gostar do que faz,conhecer a

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73 Narrativas de professores rurais: trajetórias e fazer pedagógico no município de Baixa Grande...

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

si mesmo e o lugar que atua. Na sala de aula, o

docente vai articulando sua vida pessoal e

profissional, as quais vão se transformando e

originando subsídios importantes para a

reflexão de como ser professor. Cada docente

tem sua história de vida e uma trajetória.

Assim, é importante conhecer como os

professores percebem suas vivências e como

eles elaboram os acontecimentos, fatos,

experiências que se entrelaçam e lhes

permitem interpretar o mundo.

Tratando-se de professores rurais, vê-

se, de maneira clara, uma atuação profissional

que brota de uma educação vagarosa, e que

surge e continua até hoje a partir de um

modelo de educação do meio urbano. O

docente formado na área urbana, e que vai

atuar no meio rural, necessita ter uma

formação adequada e continuada para

trabalhar com os sujeitos rurais. Neste

sentido, Caldart (2005), tem mostrado a

importância destacada do professor no

processo de progressão e aprendizado dos

alunos. Apesar dessa constatação, a condição

de trabalho desses profissionais tem se

deteriorado cada vez mais. No caso específico

de territórios rurais, os docentes têm-se a baixa

qualificação e salários inferiores ao meio

urbano, enfrenta, entre outras coisas, a

sobrecarga de trabalho, dificuldades de acesso

à escola, em função das condições das estradas,

entre outros. Ser professor rural implica em

refletir uma identidade em construção, meditar

sua prática e compreender as demandas da

sala de aula. É preciso que o educador entenda

que o ser humano é produto da sua história e

que estes diferentes grupos humanos que

vivem nos espaços rurais têm história, cultura,

identidade, lutas comuns e específicas.

Conforme afirma Caldart (Ibidem) a finalidade

de uma ação educativa é ajudar o indivíduo no

desenvolvimento como ser humano. Sendo

assim, a história do sujeito e sua constituição

mantêm-se, mas pode passar por mudanças, e

é por conta destas questões que o professor

deve estar atento à demanda dos sujeitos

rurais. Ao falar sobre o professor é

indispensável que tenha um olhar para o povo

rural com o intuito de direcionar sua prática,

tendo, assim, um olhar diferente, e percebendo

que os alunos do campo são pessoas que

trazem uma história determinada e estão em

momentos diferentes de seu desenvolvimento

humano.

Cumpre destacar, que o professor rural

pode pensar em não só atuar na educação

especificamente na escola, mas lutar pelas

transformações do campo e na sociedade.

Neste sentido, o professor tem um papel

importante no que diz respeito a guiar o

educando no processo de aprendizagem e

mudanças do meio em que vive. Nesse

processo de acompanhamento Zabala (1998,

p.28) afirma que “É preciso insistir que tudo

quando fazemos em aula, por menos que seja,

incide em maior ou menor grau na formação

de nossos alunos” . Ou seja, a formação não é

só vista como do professor, mas do aluno, pois

o trabalho realizado pelo docente é válido para

estes sujeitos. O professor rural lida com

muitas questões na sua profissão, pois, “A

profissão é uma palavra de construção social. É

uma realidade dinâmica e contingente calcada

em ações coletivas” (VEIGA, 2008, p.14).

Nesse caso, a docência envolve uma construção

do lugar, das pessoas e das ações, levando em

conta a realização do trabalho individual ou

coletivo. Os professores que estão no meio

rural modificam a sua prática durante o seu

exercício em sala de aula, visto que estão

sempre encontrando questões diversas para

resolver. A prática no contexto rural é

determinada pela formação que este docente

possui e que se configura na realização de sua

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74 Natalina Assis de Carvalho

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

profissão. É possível entrever um certo

desconforto, uma certa dificuldade que

atrapalham muitos docentes que vão ensinar

nas escolas rurais, que é a falta de um projeto

político pedagógico adequado à vivência do

sujeito rural.

Novamente temos o sentido

cristalizado da problemática dos professores de

espaço rural. Sendo assim, Caldart (2005)

afirma que particularmente sobre os

profissionais em educação das escolas rurais,

em comparação aos profissionais urbanos, que

estes recebem menos formação acadêmica e

informação cotidiana, recebem menor

remuneração, trabalham com menos infra-

estrutura e materiais didáticos e,

consequentemente, concentram maiores

índices de doenças de trabalho. São muitas as

questões a serem resolvidas e que interferem

diretamente na prática docente, é preciso,

então, que o professor busque subsídios. Além

disso, novamente nos deparamos com a ideia

de que o professor rural precisa saber

manusear as questões do meio em que faz sua

prática acontecer, é muito mais do que apenas

conteúdos, é uma realidade totalmente

heterogênea. Por isso o professor necessita

estar em constante processo de formação, para

atuar com qualidade no ensino dos sujeitos que

moram em espaços rurais.

PROFISSÃO DOCENTE

A pesquisa desenvolvida no município

de Baixa Grande Bahia foi realizada com o

intuito de entender as narrativas dos

professores rurais, e compreender como os

mesmos desenvolvem a prática em sala de

aula, tendo em vista a formação de alunos

rurais. Assim, a entrevista narrativa e a escrita

autobiográfica foram o procedimento

metodológico utilizado para a recolha das

fontes, onde a entrevista narrativa foi gravada

e transcrita e a escrita autobiográfica recolhida

pelo questionário. As narrativas contemplam

histórias sobre as memórias de identificação

com o meio rural, das práticas em sala de aula

e dos processos de formação. Além disso,

emerge nas narrativas práticas pedagógicas, as

quais são sustentadas pelas orientações e

experiências de professores rurais.

Para entender os seis professores

colaboradores buscou-se o expresso por Souza

(2006) quando diz que as narrativas permitem

entender o processo do sujeito, pois, através

das experiências construídas e das

aprendizagens, adquirem-se os mais diversos

conhecimentos da sua vida e do que se faz.

Realizando, assim, reflexões sobre a formação

inicial e continuada como elementos para

auxiliar o professor em sua profissão docente.

A realização da pesquisa com as

professoras da zona rural ocorreu de forma

vagarosa, pois, nem sempre era possível

encontrá-las. No primeiro contato com as

professoras, informou-se como seria realizada

a pesquisa e o objetivo desta pesquisa.

Esclareceu-se o que representa o projeto

“Ruralidades diversas - diversas Ruralidades:

sujeitos, instituições e práticas pedagógicas”, o

qual serviu de base para o desenvolvimento da

presente pesquisa, para que pudessem

entender o interesse de se trabalhar com

profissionais do meio rural. Destacou-se,

também, a importância que os dados

fornecidos tinham para enriquecer o processo

de formação do pesquisador que lhes falava. E,

por fim, elucidou-se, superficialmente, a

importância do processo da pesquisa como

formação, das narrativas que iriam

desenvolver, apontando-as como um momento

de investigação e formação.

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75 Narrativas de professores rurais: trajetórias e fazer pedagógico no município de Baixa Grande...

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

O início da graduação em Baixa

Grande começa com cursos oferecidos por

instituições particulares, mas, efetiva-se com

uma parceria entre a prefeitura e a Rede UNEB

2000. Essa resultou na implantação de cursos

Intensivos de Graduação para docentes que

estejam ensinando nas séries iniciais, da rede

pública de ensino. O objetivo é graduar aqueles

que têm apenas a formação em Magistério, e,

assim, oferecer aos professores cursos de

formação inicial para um melhor desempenho

de sua profissão. Pois, com a implantação da

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

9.394/96, que surgem novas exigências para a

formação do professor, e aponta no artigo. 62

que afirma que a formação de docentes para

atuar na educação básica far-se-á em nível

superior, em curso de licenciatura, de

graduação plena, em universidades e institutos

superiores de educação, admitida, como

formação mínima para o exercício do

magistério na educação infantil e nas quatro

primeiras séries do ensino fundamental, a

oferecida em nível médio, na modalidade

Normal.

Em resultado disso, a formação

universitária passa a ser uma prioridade para o

exercício do professor, uma motivação para se

dar continuidade a formação inicial. O curso de

graduação da Rede UNEB, por ser intensivo,

tem a duração máxima de três anos e é voltado

para as séries iniciais do ensino fundamental,

entretanto, no currículo não são contempladas

disciplinas específicas a respeito da educação

do campo, situação distante do que se esperava

de um curso oferecido a professores que

trabalham na zona rural. O contexto rural deve

ser de identificação de muitos professores, pois

se espera que estes possam contribuir no

momento de educar. Entretanto, não se pode

afirmar que todos os docentes se identificam

com o contexto rural. Na presente pesquisa,

constatou-se que quatro professores se

identificam com o contexto rural e apenas dois

se identificam em alguns momentos. Algumas

narrativas que respondem à pergunta: Você se

identifica com o contexto rural? Representam

a identificação com o contexto rural2:

Sim. A simplicidade do povo, o acompanhamento dos pais e o respeito dos alunos. Os alunos da zona rural são muito mais obedientes do que os da zona urbana. (Roque) Sim. Porque convivo há muito tempo nesse ambiente e procuro conhecer bem essa realidade. (Vandeci).

Apesar da identificação com o meio rural,

mesmo que esta seja parcial, o professor

mostra na sua narrativa a vantagem do

trabalho no meio rural. O discurso proferido na

narrativa da professora trás o esforço para

poder compreender a realidade do meio rural.

Sobre a narrativa da professora que diz se

identificar em alguns momentos com o

contexto rural ao se justificar, ilustra bem esta

situação:

Por que minha carga horária aumenta, e os alunos da zona rural são mais desinteressados. (Lucilene)

A professora mostra as dificuldades

postas na prática pedagógica, por conta da sua

carga horária ser muito alta, e a questão da

indisciplina, como condicionante para um

difícil trabalho. Partindo do pressuposto “O

que é ser professor da zona rural?” foram

colhidas as narrativas dos professores. Estes

puderam fazer uma reflexão sobre o seu

processo na vida e na profissão, expressando,

assim, suas dificuldades na prática pedagógica

e na formação. Conforme ilustra o

posicionamento da professora Lucilene

referente à postura dos alunos da zona rural,

ora interessados, ora desinteressados. Além

2 Os trechos aqui apresentados foram extraídos das

narrativas, conforme discursos dos professores, mantendo-

se a fidelidade à escrita original.

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76 Natalina Assis de Carvalho

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

disso, foi possível perceber questões sobre

estrutura na prática pedagógica, tais como os

citados no trecho a seguir:

Trabalhar na zona rural é difícil, pois, vários problemas são enfrentados diariamente, porém é gratificante e muito valioso no enriquecimento da prática pedagógica. Bem como adquirir experiências no relacionamento com alunos rurais que é uma realidade diferente dos alunos da cidade. As dificuldades encontradas são: a precariedade do transporte escolar, e até mesmo a ausência em alguns casos, a evasão escolar no período da plantação, a falta de recursos pedagógicos e tecnológicos. (Roque)

Nota-se que muitas escolas não têm boa

estrutura, e as questões do meio rural são

levadas para dentro da sala de aula,

interferindo no aprendizado, tais como: a

chegada da época das plantações, pois os

alunos precisam ajudar os pais no plantio e na

colheita; e a escassez de recursos financeiros.

Temos também que atentar para as narrativas

de Vandeci e Lucilene, onde demonstram uma

fragilidade na formação, quando demarca em

suas narrativasas dificuldades em lecionar nas

escolas rurais.

[...] Sei que em alguns momentos não consigo fazer muita coisa na sala de aula, é porque a minha formação as vezes não dá conta. As vezes fico perdida, não sei de alguns assuntos como das matérias de matemática e história. Isso acontece, porque os cursos de capacitação oferecidos pela secretaria de educação não ensinam conteúdos. É muito difícil trabalhar dessa forma. Mas, pela experiência que tenho dou conta de ensinar com qualidade aos meus alunos. (Vandeci)

Ao tomar a questão da formação,

percebemos na narrativa de Vandeci, a

dificuldade que enfrenta no cotidiano da sala

de aula. O conceito da formação perpassa nas

narrativas de forma subjetivada de

tradicionalismo. Contudo, preocupa-se com as

disciplinas que deve passar para seus alunos,

alegando essa ser uma preocupação também

na formação. É importante destacar que tal

fatobiográfico marcou a sua vida, e que a

experiência toma como marca positiva para

resolver problemas no ensino e que fica para a

sua própria formação. Certamente, uma outra

fala que nos remete a pensar na fragilidade da

formação:

[...] Embora se observe um esforço grande da Secretaria de Educação com os cursos de formação, ainda há muito de clamar para realmente existir a formação. Os pacotes prontos chegam, mas a prática do dia-a-dia não resolve. A realidade que fazemos acontecer na zona rural é diferente da cidade. Formação continuada para nós professores é muito pouco. É preciso que pensem muito nestas formações. (Lucilene)

O excerto da narrativa trás muito

fortemente a questão da formação do professor

rural, levando em consideração a prática neste

contexto rural. Pode-se perceber na narrativa a

fragilidade na formação inicial e continuada

que os professores rurais possuem, e a prática

pedagógica como uma dificuldade por falta de

suporte na formação.

FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA

Para entender a formação de professores,

Veiga (2008) diz que a formação docente é o

ato de formar e educar o profissional. Esta vem

ao longo do tempo, se desenvolve em

momentos individuais ou coletivos, no sentido

de construir saberes adquiridos pela

experiência ou pelas aprendizagens acontece

de forma gradativa, na qual muitos elementos

podem estar envolvidos.

De modo geral, as marcas que

emergem das narrativas dos professores, faz

repensar em uma escola de qualidade para os

sujeitos do campo e repensar a formação inicial

Page 79: Opará Revista vol. 2 julho/2014

77 Narrativas de professores rurais: trajetórias e fazer pedagógico no município de Baixa Grande...

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

e continuada de professores rurais. A formação

é um passo para ajudar a transformar muitos

aspectos dentro da sala de aula, seja no espaço

urbano ou rural. Assim, pensar que a prática

diária é um elemento de formação, não apenas

as teorias oferecidas pelas universidades e

secretarias de educação. A formação pode

ajudar o docente a encontrar respostas às

dificuldades do dia-a-dia e é um processo

inicial e contínuo.

Muitos autores discutem a questão da

formação inicial, dentro da realidade vivencial

dos professores urbanos e rurais. Para

Mizukami (2002), a formação inicial sozinha

não dá conta de toda a tarefa de formar

professores, como querem os adeptos da

racionalidade técnica, também é verdade que

ocupa um lugar muito importante no conjunto

do processo total dessa formação, se encarada

na direção da racionalidade prática. Nota-se,

assim, que a formação inicial é um ponto de

partida para o professor, e esta não será

suficiente para resolver todos os assuntos que

enfrentará no decorrer de sua atuação, por

isso, a formação continuada é o que dará

suporte ao professor.

Ao longo dos anos, vem se

questionando os cursos de formação

continuada fragmentados e de pouca duração,

como um meio efetivo para alteração da prática

pedagógica. Sendo assim, Mizukami (Ibidem,

p.71) diz a esse respeito: “Esses cursos, quando

muito, fornecem informações que, algumas

vezes, alteram apenas o discurso dos

professores e pouco contribuem para uma

mudança efetiva”. Essa é uma perspectiva

clássica da formação continuada de

professores, que é vista como um processo de

reciclagem, uma atualização.

Contrária a essa visão clássica,

pesquisas sobre uma nova concepção de

formação continuada foram desenvolvidas, no

intuito de romper com modelos tradicionais e

que na visão de alguns autores não funcionam.

Para Candau (1996) todo processo de formação

continuada deve ter como fundamental a

valorização do saber docente e a experiência

que este possui na escola. Sendo assim, o

professor deve apropriar-se de seu processo de

formação e fazer um processo de reflexão sobre

a sua história de vida, seja numa dimensão

pessoal ou profissional.

A reflexão sobre saberes que estão se

configurando na docência é importante para

uma construção da identidade profissional do

professor. Segundo Mizukami (2002), com o

novo perfil do professor, o conceito de

formação docente é relacionado ao de

aprendizagem permanente, onde se

consideram os saberes, as competências

docentes, como decorrência da formação

profissional, das aprendizagens ao longo da

vida. O processo de construção do professor se

desenvolve a partir da prática pedagógica, pelo

compromisso com o seu trabalho, através de

uma formação contínua e mediadora de

conhecimentos. O que acrescenta, também,

nesse processo de construção de identidade são

as experiências vividas, as relações dos

professores entre si e com outras pessoas.

Portanto, no que tange à formação do

professor rural deve ser pensada de forma mais

atenciosa, pois, estes lidam com muitas

dificuldades no campo e sua grande maioria

tem formação inicial, mas não pensam em dar

continuidade. Consta nas Diretrizes

Operacionais para a Educação Básica das

Escolas do Campo (2002) que é dever do

sistema de ensino municipal ou estadual

assegurar a formação do professor, seja ela no

magistério ou em nível superior. As Diretrizes

dizem, também, que os cursos oferecidos aos

professores deverão ter conteúdos da zona

rural, os conhecimentos devem ser voltados ao

Page 80: Opará Revista vol. 2 julho/2014

78 Natalina Assis de Carvalho

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

campo, às questões enfrentadas pelo educador

rural.

Formar docentes para a atuação na

educação rural é um desafio para as

universidades e são poucas as instituições de

ensino superior que estão tomando a iniciativa

de incluir no seu currículo disciplinas para o

professor rural ou até mesmo oferecer cursos.

No entanto, já existem programas de apoio à

formação superior em curso de licenciatura em

educação do campo em algumas universidades

federais, tais como a Universidade Federal da

Bahia, a Universidade Federal de Minas Gerais

e a Universidade de Brasília. No que concerne

à oferta das licenciaturas em educação do

campo é oferecida a professores que não têm

formação superior e que atuam no meio rural.

Essas licenciaturas oferecem formação inicial

específica, sendo esta uma iniciativa viável aos

educadores rurais. Para Rocha e Martins

(2009) a experiência da licenciatura em

educação do campo está sendo construída, mas

sucedem muitos desafios e possibilidades.

Cita-se, ainda, o Programa de Apoio à

Formação Superior em Licenciatura em

Educação do Campo (Procampo) que é uma

iniciativa do Ministério da Educação, por

intermédio da Secretaria de Educação

Continuada, Alfabetização e Diversidade

(Secad), em cumprimento às suas atribuições

de responder pela formulação de políticas

públicas para combater os problemas

educacionais sofridos pelas populações rurais e

a valorização da diversidade nas políticas

educacionais. Nesse caso, o objetivo do

Programa é apoiar a implementação de cursos

regulares de Licenciatura em Educação do

Campo nas Instituições Públicas de Ensino

Superior de todo o país, voltados

especificamente para formar educadores que

lecionarão nos anos finais do ensino

fundamental e no ensino médio nas escolas

rurais. A falta de interesse das políticas

públicas ainda interfere fortemente quando se

trata de trabalhar a educação rural e essas

propostas ainda precisam se expandir a ponto

de chegar a todos os professores rurais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado a partir das

Narrativas de professores rurais: trajetórias e

fazer pedagógico, comprovou, dentre outras

coisas, que, antes de se estudar a formação de

professores rurais, faz-se necessário entender a

relação existente na escola rural e urbana,

questões da prática pedagógica e profissão em

espaço rural. Foi constatado que as narrativas

é um subsídio que pode ajudar o docente a

entender sua formação e refletir um pouco

sobre suas experiências, suas aprendizagens

para melhor rever a sua prática na sala de aula.

Entender como se processa a formação, remete

os professores a voltarem à pensar a sua

formação inicial, podendo compreender e

pensar durante o estágio da sua prática que, às

vezes, reflete no que realmente são. Dessa

forma, as aprendizagens e as experiências são

elementos essenciais na constituição e auto-

formação desses profissionais.

Constatou-se a importância de se

trabalhar com a abordagem autobiográfica e as

narrativas no processo de investigação e

formação de professores. Através das

narrativas foi possível obter o conhecimento

sobre a história dos professores, sobre o que é

ser professor da zona rural. Desta forma,

apresentaram-se, mediante este estudo,

reflexões acerca da formação do professor da

zona rural de Baixa Grande, e verificou-se as

dificuldades existentes na prática pedagógica

Page 81: Opará Revista vol. 2 julho/2014

79 Narrativas de professores rurais: trajetórias e fazer pedagógico no município de Baixa Grande...

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

dos professores rurais, ligadas diretamente à

fragilidade na formação inicial e continuada.

A partir dessa análise, pode-se constatar

que o professor, durante sua formação, precisa

estar refletindo sobre a sua vida, sobre o seu

processo de formação e suas práticas

pedagógicas. A reflexão sobre os

conhecimentos adquiridos e as aprendizagens

dos professores pode ser um elemento para

melhorar a sua prática ou qualquer ação

desenvolvida na escola. Assim, reconhece-se

que ser professor rural e, concomitantemente a

isto, cursar uma universidade, ainda é um

grande desafio nos dias de hoje, no entanto,

não impossível de se fazer. A importância de se

procurar uma formação inicial e continuada,

com conteúdos específicos da área rural, é

fundamental para que o educador possa

resolver as diversas questões que surgem

dentro da sala de aula e oferecer um ensino de

qualidade aos seus alunos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Resolução 01/2002 do CNE/CEB, que Institui as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica do Campo. Brasília: CNE/CEB, 2002. BRASIL. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, 1996. 63 p. CALDART, Roseli Salete. A escola do campo em movimento. In: ARROYO, Miguel Gonzalez; CALDART, Roseli Salete; MOLINA, Mônica. Castagna. (Orgs.). Por uma educação do campo. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p.87-131. CALDART, Roseli Salete. II Conferência Nacional por uma educação do campo. In: Instituto Anísio Teixeira - IAT (Org.). Curso para Professores de Educação do Campo – FNDE. Diretrizes Operacionais. [S.I.], 2005. CANDAU, Vera Maria Ferrão. Formação Continuada de Professores: Tendências Atuais. In: REALI, Aline Maria de Medeiros Rodrigues; MIZUKAMI, Maria da Graça

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A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO

ENTRE SERRAS PANKARARU: UMA

DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM

Edilma Cavalcante Santos Menezes1

Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco2 RESUMO

O presente artigo versa acerca da relevância de educar as crianças indígenas, especificamente, as crianças Pankararus, de Entre Serras – Pernambuco, objetivando conhecer o modo de ensinar e aprender das crianças indígenas no processo de ensino e aprendizagem, valorizando as pessoas que contribuem para este processo de modo a compreender que os conhecimentos tradicionais do povo são relevantes para preservação de sua historia. O Povo indígena Entre Serras Pankararu habita o Sertão de Pernambuco, na região do Médio São Francisco, tendo sua formação territorial composta por aldeamentos, localizado nos municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá. Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa e de caráter exploratório e, para delineamento desta, utilizou-se de pesquisa bibliográfica para fundamentação teórica. No que diz respeito à coleta de dados, esta se deu por meio das técnicas de observação in loco e análise de discurso da população residente nos territórios indígenas supracitados. Mediante os resultados obtidos na pesquisa é possível afirmar a priori, que o povo Entre Serras Pankararu já obteve algumas conquistas, do ponto de vista do reconhecimento e valorização de sua etnia e, tem continuado avançando nos aspectos educacionais, de saúde pública e de reconhecimento identitário enquanto atores sociais que possuem direitos que a muito foram negados e que necessitam ser de fato, (re)conquistados, resgatado e reafirmados.

Palavras-chave: Educação. Pankararu. Aprendizagem.

ABSTRACT

This Article deals about the importance of educating the indigenous children, specifically, children Pankararu community, Between Saws - Pernambuco, aiming to know the mode of teaching and learning of indigenous children in process of teaching and learning, valuing the people who contribute to this process in order to understand that the traditional knowledge of the people are relevant to preservation of its history. The indigenous People Between Saws Pankararu inhabits the Backlands of Pernambuco, in the region of the Middle San Francisco, having its territorial formation composed of villages, located in the municipalities of Tacaratu, Petrolândia and Jatoba. It is a qualitative research and exploratory and delineation, for this, it was used for bibliographic search for theoretical foundation. With regard to the collection of data, is given by means of observation techniques in loco and discourse analysis of the resident population in indigenous territories mentioned above. Upon the results obtained in this research it is possible to say a priori, that the people Between Saws Pankararu has already obtained some achievements, from the point of view of recognition and appreciation of their ethnicity, and has continued advancing in education aspects of public health and of recognition identitary intensification as social actors who have rights that the very were denied and that they need to be in fact, (re)won, redeemed and reaffirmed. Keywords: Education. Pankararu. Learning.

1 Especialista em Educação Infantil (FATIN); E-mail: [email protected] 2 Doutoranda em Educação (UCSF/AR); Geógrafa do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano –

Campus Petrolina; E-mail: [email protected]

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Page 84: Opará Revista vol. 2 julho/2014

81 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

INTRODUÇÃO

A educação é base que fundamenta

qualquer tipo de organização social.

Entretanto, não se pode deixar passar

despercebidas as mudanças ocorridas no

campo educacional nos últimos anos. A

Constituição Federal de 1988 vem propor um

novo olhar para a educação indígena, o resgate

e valorização de sua cultura, propondo uma

educação diferenciada, por meio da escola,

onde as informações são pertinentes para a

interação mais simétrica com a sociedade não

indígena. Outro ponto importante que merece

destaque é a forma de educar as crianças

indígenas de acordo com as crenças religiosas,

costumes tradicionais e culturais do povo

subentendido.

Esta pesquisa foi originada com o

propósito de investigar de que forma

professores, escolas e lideranças deste povo

indígena estão preparando as crianças para o

enfretamento dos entraves que se exige do

indivíduo no mundo globalizado, na era da

informatização, possibilitando as elas interagir

dentro do seu meio social e com o mundo em

seu entorno percebendo-se como ser promotor

e construtor de sua própria história.

Sendo assim, possui como principal

objetivo conhecer o modo de ensinar e

aprender das crianças indígenas no processo

de ensino e aprendizagem, valorizando as

pessoas que contribuem para este processo de

modo a compreender que os conhecimentos

tradicionais do povo são relevantes para

preservação de sua historia.

Para se ter uma maior familiaridade

com o tema pesquisado, fez-se necessário uma

revisão sistemática nas principais obras

literárias e endereços eletrônicos referentes ao

tema proposto. Além do processo de

construção da fundamentação teórica, foi

realizada conversas informais com professores

e educandos da Escola Estadual Santa Clara,

como também, com a comunidade, lideranças,

pajé e cacique do Povo Entre Serras

Pankararus.

O Povo indígena Entre Serras

Pankararu habita o Sertão de Pernambuco, na

região do Médio do São Francisco, tem sua

formação territorial composta por

aldeamentos, localizado nos municípios de

Tacaratu, Petrolândia e Jatobá. Suas

concepções de mundo caracterizam-se pela

forte resistência e luta para preservar e manter

sua cultura, pois se compreende que tanto os

homens índios como os brancos, estão em

convivência diária e não pode isolar-se,

mostrando-se como parte integrante do

mesmo meio, onde defende e divulga suas

crenças e seus conhecimentos do mundo

terreno e espiritual.

Ao observar por tais prismas, é

possível descrever entendimento sobre os

saberes culturais do povo demonstrando como

as novas gerações aprendem os seus saberes

dentro do espaço que está inserida, de forma

que esses conhecimentos contribuam para que

as crianças não se esqueçam dos valores

culturais quando estiverem em contato com a

sociedade contemporânea, preocupando-se

para que não haja a degradação dos valores

culturais e tradicionais do povo, e que as

futuras gerações tenham sabedoria para

contextualizar seus conhecimentos com os

conhecimentos da cultura não-indígena.

Segundo Maber (2006) quando fazemos

menção à “educação indígena” estamos nos

referindo, aos processos educativos

tradicionais de cada povo indígena, aos

processos nativos de socialização de suas

crianças.

Page 85: Opará Revista vol. 2 julho/2014

82 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:

UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM

Portanto, quando se observa as

atividades mais corriqueiras realizadas no

interior de uma aldeia, podemos perceber que

ocorreu um intenso e complexo processo de

ensino/ aprendizagem, no qual crianças e

jovens são preparados para exercerem sua

“florestania”, para se tornarem sujeitos plenos

e produtivos de seu grupo étnico. Antigamente,

essa era a única forma de educação existente

entre os povos indígenas: o conhecimento

assim transmitido era mais do que suficiente

para dar conta das demandas do mundo do

qual faziam parte.

1. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA

DO POVO ENTRE SERRAS

PANKARARU

O povo Entre Serras Pankararu é uma

etnia indígena cujo aldeamento está localizado

geograficamente nos municípios do sertão

pernambucano Tacaratu Petrolândia e Jatobá

em uma área que compreende 7.755 hectares,

com população estimada em torno de 3.022

índios distribuídos em cerca de treze aldeias,

algumas aldeias como Barrocão e logradouro

ficam dentro do território pertencendo as duas

terras indígenas, Entre Serras Pankararu e

Pankararu.

A localização geográfica das aldeias

indígenas de Entre Serras Pankararu (figura 1)

implica em variações climáticas de acordo com

a localidade de cada uma, sendo predominante

o clima tropical semiúmido e em determinadas

áreas, o tropical úmido com vegetação

predominante a caatinga com grandes

variações típicas de cerrado e agreste.

Figura 1 – Divisão das Aldeias de Entre Serras Pankararu

Fonte: Autora, 2013

O território é composto por serras

imponentes vestidas por paredões rochosos e

ricos em espécies vegetais; também fazem

parte de sua geografia baixada brejeiras e

terrenos arenosos nos sopés de serras. (Figura

2)

Figura 02 – Aldeia Barrocão

Fonte: Autora, 2013

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83 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Figura 3 – Demonstração da cultura indígena

na comunidade pesquisada

Fonte: Autora, 2013.

É de relevante pertinência fomentar

elementos fundantes para despertar o orgulho

em ser índio dos mais jovens. Conforme afirma

Silva e Ferreira (2001):

Nos dias que correm a educação escolar pleiteada pelos povos indígenas e garantida constitucionalmente está associada a projetos de autonomia indígena na geração comunitária de seu modo de viver e de construir alternativas para o seu presente e seu futuro. (SILVA; FERREIRA, 2001, p. 1)

Nesse sentido, todo o levantamento

feito nesta pesquisa, permitirá entender de que

forma as escolas do Povo Entre Serras

Pankararu contextualiza os conhecimentos

tradicionais com as vivências não indígenas,

contribuindo para a interação das crianças

dentro e fora da aldeia, como também,

construir uma identidade de pertencimento de

sua cultura.

2. BREVE REVISÃO DE

LITERATURA 2.1 Origem dos Povos Entre Serras

Pankararu

O Povo Entre Serras Pankararu vive

em um território tradicional composto de

14.294 hectares, dividido em duas terras

indígenas, Terra Indígena Pankararu

com8.100 hectares e Terra Indígena Entre

Serras Pankararu com7.755 hectares,

constituída a partir do momento em que 33

lideranças Pankararu abriram mão destas

terras. A terra foi demarcada, reconhecida e

homologada sob o decreto de 19 dezembro de

2006, onde sua formação territorial é

composta por 13 aldeias: Piancó, Barriguda,

Salão, Lagoinha, Mundo Novo, Logradouro,

Barrocão, Espinheiro, Baixa de Lero, Porteirão,

Folha Branca, Olho D’agua do Julião e

Carrapateira, localizada no sertão de

Pernambuco, às margens do rio São Francisco,

rio Moxotó entre os municípios de Tacaratu,

Petrolândia e Jatobá à aproximadamente 520

km da capital do Recife.

Hoje, aproximadamente 3.022

indígenas vivem dentro de um espaço

privilegiado de saberes e conhecimentos

tradicionais interculturais, onde a comunidade

envolvente obtém sua própria autonomia de

optar, contornar e ampliar conhecimentos

adquiridos no contexto social.

Os antepassados de Entre Serras

Pankararu viviam em pequenos grupos, em

um lugar chamado de Maloca Cana-Braba

onde preservaram os costumes, tradições e

rituais que constituem a herança cultural até os

dias atuais, como bem enfatiza a Revista

História da Biblioteca Nacional (2013),

[...] no século XX, construíram suas próprias agendas de reivindicações, lutando por seus direitos, por suas terras e por suas culturas, conquistando espaço em uma comunidade nacional cada vez mais multicolorida. No século XXI, ao contrário das previsões mais pessimistas, cresceram em número e fizeram sua voz ser ouvida. Desta vez, como mostra o nosso dossiê, sem mal-entendidos: são brasileiros, Já estavam aqui e vão ficar. (p.16)

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84 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:

UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM

Este Povo tem grande porte de

evolução por parte da globalização em relação

ao nível de conhecimento na formação

profissional; a tecnologia se torna viva desde as

formas de moradia como os padrões de vida de

muitas famílias, mas a essência das aldeias

belíssimas e os dons da sabedoria indígena não

se perderam.

A pureza do Brasil miscigenado com

ênfase no processo de revitalização cultural e

verificação da simplicidade em detalhes como

o sentimento, o orgulho, a riqueza cultural, o

valor biológico. No entanto, hoje os indígenas

vivem sobe a influencia da cultura dos não

índios desde o inicio do descobrimento do

Brasil, com a chegada da congregação de Luiz

Felipe Néri catequizando os indígenas por

meio da troca de objetos de uso pessoal do

tipo: um espelho, joias, etc. fator bastante

peculiar na vida do povo citado, históricos e

registros orais e escritos descrevem o massacre

e exploração vivida pelos antepassados desde a

extração dos recursos naturais existentes no

território por eles tradicionalmente ocupados e

expulsão de suas moradias, como bem descreve

(REVISTA HISTÓRIA, 2013):

O “slogan usado pelos militares na década de 1970 –” Terra sem homens para homens sem terra”. Ignorando a presença de povos tradicionais [...] a devastação da floresta e os conflitos com as comunidades que já viviam ali começaram para não ter mais fim. Os indígenas muitas vezes tiveram seu deslocamento forçado, com dispersão de seus grupos para territórios com os quais não tinham qualquer ralação histórica. Vários grupos foram levados para as chamadas reservas indígenas, sem qualquer análise ética. A política era tirar os índios do caminho e botarem um gueto, onde se misturavam diferentes grupos, às vezes até inimigos entre si. Era um depósito de índios. (p. 38-39)

Somente após a promulgação da

Constituição Federal de 1988 que, em seu

Artigo 23, afirma que são reconhecidos aos

índios a sua maneira de “organização social,

costumes, línguas, crenças e tradições, e os

direitos originários sobre as terras que

tradicionalmente ocupam, competindo à união

demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os

seus bens”, é que algumas mudanças positivas

puderam ser iniciadas e implementadas.

(BRASIL, 1998, p.31)

Corroborando com tal afirmação, é

valido enfatizar que pelo menos o denominado

“arcabouço legal sofreu modificações radicais:

com a Constituição de 1988, onde pela

primeira vez na história eles tiveram

reconhecidos o direito à sua cultura e aos seus

territórios tradicionais.” (REVISTA

HISTÓRIA, 2013, p.38).

Ao entrevistar as lideranças e também

anciãos do povo pesquisado é que se

compreende o processo de violação dos seus

direitos primordiais, cujos relatos indicam que

muitas índias foram violentadas por terem

uma beleza deslumbrante e os homens foram

escravizados no trabalho braçal, tendo suas

terras invadidas, onde, até os dias atuais, lutam

pela desintrusão das mesmas. Além disso, os

atores ouvidos reafirmam que os resquícios

destas questões são protelados, lentamente, ao

longo dos anos, fazendo os mesmos chegarem

à conclusão de que o governo não compreende

que é a partir da mãe-terra que eles garantem a

sustentabilidade material e espiritual.

2.2 Os Costumes Culturais no Processo de

Ensino Aprendizagem da Criança

A cultura indígena Entre Serras

Pankararu deu-se início lá pelo período da

pedra redonda, surgindo índios donos da terra,

onde habitavam por todo o território

brasileiro. A terra é a testemunha e a fonte

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85 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

primordial da existência e resistência dos

costumes, crenças, rituais de sobrevivência da

luta da vida dos Entre Serras Pankararu. É da

terra que os índios mantém sua

sustentabilidade espiritual e material. “A

cultura é um sistema de significados, atitude e

valores compartilhados, e as formas simbólicas

nas quais eles se expressam ou se incorporam”.

(VIANA, 1999, p.21).

Os recursos naturais estão presentes

nas tradições e procedimentos ocultos como,

por exemplo, na cura da doença fornecendo as

ervas para banhos, bebidas que usam nos

rituais, nos cantos e danças. O solo fornece a

tinta que é usada na tradição da pintura

corporal dos índios, na roupa dos praiá, para a

vivência da dança, do menino no rancho. O

livro didático, Arte e Educação Física na

Educação Escolar Indígena (ROCHA, 2005),

faz ênfase com bastante clareza ao falar da

importância da dança na prática dos rituais

sagrados:

No Brasil ainda no século XI nossos índios como acontece com os povos de cultura primitiva, em geral, expressavam os acontecimentos importantes da tribo e sua relevância diante dos fenômenos da natureza, através dos rituais dançados, que podiam durar muitas e muitas horas. [...] a dança é praticada tanto por homens quanto por mulheres, separados ou juntos, e tem vários objetos como o culto aos deuses, celebração de uma boa colheita, passagem de vida e morte, etc. (ROCHA, 2005, p.62-63).

O toré e os toantes sempre são

cantados por pessoas que recebem o dom

através de seus ancestrais. Observou-se que o

toré é vivenciado em território aberto junto à

população. É nas tradições indígenas como,

por exemplo, corrida do umbu e menino no

rancho, que acontecem momentos de

renovação da fé. De acordo com a concepção de

Grunewald (2005)

Nestas festividades, fica bastante clara a diferença entre dois momentos do ritual, que do ponto de vista musical se distingui pelas canções apropriadas: os toantes e os torés. Os toantes são cantados por um cantador, acompanhado de maracá, empregando vocalizações nostálgicas da língua ameríndia falada pelos antepassados, ao som dos toantes dançamos praias, considerado representações físicas dos encantados as divindades culturais pelos Pankararu. Já os torés se caracterizam por serem cantados e dançados por todos, possuem letras em português e podem ser realizados em diferentes situações. (GRUNEWALD ,2005, pag. 284)

Diante da convivência dentro do

contexto sociocultural do Povo Entre Serras

Pankararu as crianças aprendem os

conhecimentos culturais e religiosos através

dos ensinamentos dos mais velhos, no convívio

com a família e, por meio das práticas culturais

vivenciadas pelos antepassados e praticadas

até hoje pelas gerações presentes.

Embasado nesses pressupostos é que

Viana (2007), afirma que a história de vida do

indivíduo é, antes de qualquer coisa, uma

acomodação a padrões e modelos

tradicionalmente transmitidos por uma

comunidade. Desde seu nascimento, os

costumes moldam suas experiências e sua

conduta. Quando começa a falar, ele é um

produto da sua cultura e, quando cresce e pode

tomar parte nas atividades coletivas, faz dos

hábitos da comunidade os seus hábitos, das

crenças e das impossibilidades, as suas

possibilidades.

As normas estabelecidas pelo grupo

definiram o papel do homem e da mulher no

espaço cultural e religioso. As crianças

inseridas neste contexto compreendem desde

pequena que determinados costumes estão

atribuídos dentro da cultura de acordo com o

gênero da criança, compreendendo e

Page 89: Opará Revista vol. 2 julho/2014

86 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:

UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM

respeitando as normas definidas pelo grupo

cultural, onde alguns lugares e costumes são

restritos às mulheres, por exemplo, a mulher

não pode usar o tonankiá (Roupão feito de croá

usados nos rituais), o chapéu do menino no

rancho, participar da dança do bate gancho,

frequentar o poro, pegar o pirão primeiro do

que os homens, cortar o fumo distribuído aos

homens e oferecido aos encantados.

No ritual da corrida do imbu uma das

atribuições da mulher são colher os imbus,

usar roupas compostas como sais de tecido e

cabelos soltos. Quanto a ambos, homens e

mulheres, participarem dos rituais sagrados do

povo, é necessário que todos estejam de corpo

limpo, são momentos onde fortalecemos a

nossa fé e sentimos a presença dos encantos.

Na óptica de Maber (SILVA; FERREIRA, 2006).

Quando fazemos menção à “educação indígena” estamos nos referindo, aos processos educativos tradicionais de cada povo indígena, aos processos nativos de socialização de suas crianças. Quando observamos as atividades mais corriqueiras realizadas no interior de uma aldeia, podemos perceber que ocorreu um intenso e complexo processo de ensino/aprendizagem. No quais crianças e jovens são preparados para exercerem sua “florestania”, para se tornarem sujeitos plenos e produtivos de seu grupo étnico. (p. 16-17)

Na antiguidade, essa era a única forma

de educação existente entre os povos

indígenas: o conhecimento assim transmitido

era mais do que suficiente para dar conta das

demandas do mundo do qual faziam parte. A

partir do contato com o branco, no entanto,

esses conhecimentos passaram a ser

insuficiente para dar conta e garantir a

sobrevivência, o bem estar dessas sociedades.

É fundamental agora também conhecer os

códigos e os símbolos dos não índios, já que

estes e suas ações passaram a povoar o entorno

indígena. “Cada povo tem o seu jeito de cuidar

e educar as crianças, de acordo com a

mitologia de origem e sua cultura” (REVISTA

CRIANÇA, 2007, p. 35). E, é assim que surgiu,

historicamente, a educação escolar indígena,

como promotora de manter viva a tradição de

seu povo.

O Povo Entre serras Pankararu, assim

como os demais povos indígenas, sempre

desenvolveram suas próprias formas de

ensinamento e aprendizagem, de maneira que

as práticas desenvolvidas dentro das

comunidades indígenas seguem regras imposta

pelo próprio povo, tendo como base a

valorização dos saberes culturais e religiosos

no qual as crianças aprendem desde pequenas

em convívio na comunidade. Conforme Viana

(2007):

Cultura [...] Tomada em seu amplo sentido etnográfico como este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade. ( p. 05).

Nesse sentido, desde muito antes à

introdução da escola, os povos indígenas vêm

elaborando, ao longo de sua historia,

complexos sistemas de pensamentos e modos

próprios de produzir, armazenar, expressar,

transmitir avaliar e reelaborar seus

conhecimentos e suas concepções sobre o

mundo, o homem, o sobrenatural. Observar,

experimentar e estabelecer relações de

causalidades, formular princípios, definir

métodos adequados, são alguns dos

mecanismos que possibilitaram a esses povos a

produção de ricos acervos de informações e

reflexões sobre a natureza, sobre a vida social e

sobre os mistérios da existência humana,

desenvolvendo uma atitude de investigação,

procurando estabelecer um ordenamento do

mundo natural que serve para classificar os

Page 90: Opará Revista vol. 2 julho/2014

87 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

diversos elementos. Esse fundamento implica,

necessariamente, pensar a escola a partir das

concepções indígenas do mundo e das formas

de organização social, política, cultural,

econômica e religiosa desses povos indígenas

(BRASIL, 2002).

O ensino e aprendizagem das crianças

são caracterizados pelos seus próprios métodos

de ensino fora do contexto de sala de aula,

presentes diante das diferentes manifestações

culturais existentes dentro do território, nos

terreiros de praiá, na dança do toré, em

confecções de artefatos e por meio das

histórias que constituem o contexto histórico

deste povo. Para as crianças e jovens esses

saberes são relevantes, a cultura praticada por

eles trazem uma razão muito forte, tudo que

fazem e sabem não foram adquiridos hoje, são

conhecimentos que foram deixados pelos

ancestrais deste povo e vivenciados em dias

atuais pelas novas gerações.

2.3 Sustentabilidade e Economia

A sustentabilidade dar-se através da

agricultura, empregos em empresa

terceirizada, dentro e fora da aldeia, e a

comercialização do que é produzido pelo

artesanato da fibra do caroá, sementes e palha

do Ouricuri. Há, também, a fonte de renda

gerada do plantio e colheita do feijão, milho,

andu e mandioca, e com a variedade de frutas

da região como: a manga, pinha, caju, umbu.

Com toda essa produção houve a necessidade

de se criar uma associação, que recebeu o

nome de Associação Indígena de Entre Serras

Pankararu (AISP), com o objetivo de

promover e fortalecer o desenvolvimento

socioeconômico e cultural do Povo de Entre

Serras Pankararu, com ações que visam

melhor qualidade de vida para os indígenas, já

que, devido a grande desvalorização dos

profissionais e dos produtos, são raros os

jovens que desenvolvem alguma atividade

tradicional, o que representa uma grande

preocupação dos artesãos e de toda a

comunidade indígena.

Tendo a associação registrada, foi

possível obter alguns resultados, graças a

projetos que foram contemplados: a carteira

indígena – Segurança alimentar e

desenvolvimento sustentável em comunidades

indígenas. Através da carteira indígena são

contemplados o projeto beneficiando o umbu e

outras frutas nativas da aldeia; o projeto irá

melhorar a vida das mulheres indígenas, uma

vez que poderão aproveitar melhor o umbu e

demais frutas nativas, armazenando e

transformando em poupas, refrigerando-as e

podendo vender na entre safra, agregando

valor ao produto final, com preços mais

elevados, gerando renda e elevando a alta

estima das mulheres da comunidade.

Junto com o projeto Gestão Ambiental

e Territorial Indígena (GATI), fruto do esforço

conjunto do movimento indígena, da Fundação

Nacional do Índio (FUNAI) e do Ministério do

Meio Ambiente (MMA), com o apoio do

programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD), se desenvolve o

projeto GEF-CAATINGA, visando à

sustentabilidade socioambiental no semiárido

brasileiro, fortalecendo o uso sustentável e

conservação dos recursos naturais e a inclusão

social dos indígenas.

Sendo assim se pôde por em pratica o

que versa a Constituição da República do

Brasil, de 1988, em seu Artigo 225, Capítulo

VI, que ressalta a ideia de que todos têm

direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado, bem de uso comum do povo e

essencial à sadia qualidade de vida, impondo-

Page 91: Opará Revista vol. 2 julho/2014

88 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:

UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM

se ao poder Público o dever de defendê-lo e à

coletividade o de preservá-lo, para as presentes

e futuras gerações.

Os projetos capacitarão as pessoas que

moram na comunidade na prática de confecção

de artefatos de palha, sementes, barro e

madeira. Garantindo, assim, melhores

condições de vida aos indígenas. Atualmente a

escassez prolongada de chuva na Região

Nordeste vem afetando a economia do povo,

em tese, pois, com o período de estiagem,

muitos agricultores não plantaram o milho, o

feijão e mandioca, e aqueles que plantaram

tiveram sua safra perdida, o que,

consequentemente, provocou aumento do

preço destes alimentos nos últimos três anos.

As variedades de frutas colhidas dentro da

comunidade indígena vêm diminuindo

constantemente a cada ano, comprometendo a

renda de algumas famílias que vivem

negociando diretamente nas feiras livres e, aos

atravessadores que saem à procura destas

frutas nas aldeias.

2.4 Educação Escolar Indígena e o

Processo de Desenvolvimento do Ser

Humano

Partindo do pressuposto que a

educação é uma qualidade por ser capaz de

possibilitar, ao individuo que a detém,

maturidade para agir com civilidade,

cordialidade, sabedoria e bom senso, pode-se,

claramente, classificar a mesma como uma

poderosa ferramenta capaz de proporcionar a

construção de saberes e valores, esta, deveria

ser uma prioridade em nosso país. Todavia, a

educação antigamente desenvolvida no povo

Entre Serras Pankararu se procedia embaixo

das árvores de maneira que os professores

leigos usavam pedaços de carvão e tábuas para

apresentar os conteúdos a serem ensinados e

os alunos utilizavam o próprio chão para

escrever, neste sentido não havia um ensino

sequenciado, planejado e sistematizado com

professores especializados.

Tomando a concepção de experiência

do filósofo John Dewey (1980, p. 89) “Tal

experiência é um todo e traz consigo sua

própria qualidade individualizadora e sua alto-

suficiência. É uma experiência.” O ensino na

maioria das vezes acontecia na própria família

onde davam importância aos conhecimentos

empíricos dos mais velhos, conhecidos como

detentores dos saberes tradicionais do povo

supracitado.

[...] A primeira educação é na família e com os outros parentes, a segunda é da escrita do aprendizado na escola para complementar essa se fala também educação. Hoje fazemos parte da sociedade nacional e que estar competindo para o beneficio da comunidade. (BRASIL, 1998, p.288).

No entanto, nota-se que a experiência

de vida, junto ao convívio com a natureza,

estabelece e esclarece a crença vivenciada e

repassada de geração para geração ao absorver

esse entendimento. Observa-se que, nos dias

atuais, a pedagogia indígena tem uma missão

de sistematizar os saberes tradicionais, no

intuito de garantir a sustentabilidade e a

valorização cultural que, para os indígenas,

também, é sustentabilidade espiritual.

Porém, quando se leva em conta o fato

de que a ação educativa é também um fator de

caráter social, pois engloba na sua natureza as

relações humanas de convivência em grupo e o

pensar coletivo, é possível também admitir que

a sociedade, na qual o indivíduo se encontra

inserido, exerce grande influência sobre o seu

desenvolvimento social e intelectual. Neste

sentido, acredita-se que as crianças Entre

Serras Pankararu vivem em um espaço

Page 92: Opará Revista vol. 2 julho/2014

89 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

geográfico privilegiado, rodeado por uma vasta

vegetação nativa, uma geomorfologia

privilegiada, com quedas d’água naturais, às

margens do rio São Francisco.

No entanto, ao observar tais fatores

por este prisma, não se pode desperceber que a

sociedade vem sofrendo uma série de

metamorfismos ao longo dos tempos. Os índios

tinham suas próprias formas de ensinar em

tempos anteriores, entretanto, após a invasão

dos portugueses tudo foi modificado, e as

práticas de ensino e aprendizagem passaram

por etapas, até chegarem ao paradigma de

escolas, salas, professores e métodos atuais.

Nesse aspecto, Rocha (2005) enfatiza que:

[...] Estudos mostram que durante todo século XIX e várias décadas do século XX pode-se observar... o grande fluxo de missões religiosas encarregadas da tarefa educacional civilizatória. Em outras palavras, desde a chegada das primeiras caravelas até meados do século XX, o panorama da educação escolar indígena foi um só, marcado pelas palavras de ordem catequizar, civilizar, e integrar ou, em uma cápsula, pela negação da diferença [...]. (p.5)

Com a chegada dos jesuítas chegaram

também professores não índios, com um

ensino tradicional. Freire (2002, p. 96) aponta

que “a função da escola era fazer com que os

índios desaprendessem as suas culturas e

deixassem de ser índios” e, após a promulgação

da Constituição Federal de 1988 foram

contratados novos mestres pela Fundação

Nacional do Índio (FUNAI) para trabalhar e

morar na aldeia, trazendo consigo um ensino

limitado, baseado no estudo codificado, muito

distante da realidade das crianças indígenas, o

que se tornava desinteressante para muitos;

fator preponderante para a desistência de

vários estudantes, pois muitos dos

antepassados não concluíram a quarta série

primaria.

Outro fator que contribuiu para a

interrupção dos estudos tradicionais foi o

difícil acesso, porque para dar continuidade

aos estudos da quinta série em diante as

crianças indígenas teriam que se deslocar para

o município de Tacaratu, a 13 km da aldeia, um

percurso a pé, que levava horas de caminhada

e ao chegar à escola de destino enfrentavam

preconceito por ser índio e eram

estigmatizados por ser do “mato e pobre”. De

acordo com Oliveira (1988) é crucial:

Repensar o lugar da cultura na educação, repensar a educação para todos e, por tanto também para as minorias, mas especialmente a educação escolar indígena exige a educação de toda a sociedade envolvente, no sentido de miminizar nossa ignorância etnocêntrica nossas ações discriminatórias e preconceituosas e, igualmente veiculação em todas as escolas brasileiras da história e da cultura dos povos indígenas, sem idealizações nem estereótipos (p.20)

Contudo em 1998 iniciou-se a

discussão acerca do Projeto Escola de Índio,

onde lideranças, professores e povos indígenas

de Pernambuco realizaram movimentos para

estadualizar as escolas localizadas em território

indígena com respaldo no Artigo 78 da

Constituição Federal que assegura aos povos

indígenas, que:

Caberá ao Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios desenvolver programas integrados de ensino e de pesquisa, para a oferta da educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, com os objetivos de proporcionar aos índios, a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas e a valorização de sua língua. (BRASIL, 1998, p.32)

Page 93: Opará Revista vol. 2 julho/2014

90 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:

UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM

Assim, a maior parte das escolas

indígenas estava estruturada e já possuía

normas e funcionamento consoantes as

diretrizes das secretarias estaduais e

municipais de educação, sendo que tal

estrutura geralmente impunha práticas

educacionais e conteúdos programáticos que

não levavam em consideração as

especificidades culturais de cada comunidade

indígena e seus processos próprios de

aprendizagem, os ensinos ofertados

correspondia até a antiga quarta série, não

tendo outras modalidades de ensino alguns

alunos terminavam seus estudos na acidade e

os demais finalizavam os estudos nesta serie.

Por volta do ano de 1999, o Estado

brasileiro legisla e publica vasta documentação

que definem diretrizes e princípios que

conceitua e regulariza a política de educação

escolar para as comunidades indígenas

provocando questionamentos no sentido de

fazer cumprir as normatizações. Em 2002 as

escolas eram de responsabilidade dos

municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá,

que ofertavam aos índios um ensino que se

distanciava da realidade indígena,

desconhecendo a cultura e a tradição do Povo

Entre Serras Pankararu, o que, naturalmente,

trouxe prejuízos para o ensino e aprendizagem

desse povo. Cavalcanti (2003, p.22), concebe a

escola “não como um lugar único de

aprendizado, mas como um novo espaço e

tempo educativo que deve integrar-se ao

sistema mais amplo de educação de cada

povo”.

Os princípios contidos nas leis dão

aberturas para a construção de uma nova

escola que respeite o desejo dos povos

indígenas, por uma educação que valorize suas

práticas culturais e lhes conceda acesso a

conhecimentos e práticas de outros grupos e

sociedades. A proposta da escola indígena

diferenciada representa, sem dúvida alguma,

uma grande novidade no sistema educacional

do país, exigindo das instituições e órgãos

responsáveis à definição de novas dinâmicas,

concepções e mecanismo, tanto para que essas

escolas sejam de fato incorporadas e

beneficiadas por sua inclusão no sistema,

quanto respeitadas em suas particularidades.

(BRASIL, 1998, p.34)

Através do movimento indígena e a

Comissão de Professores Indígenas de

Pernambuco (COPIPE), por meio de lutas

políticas e organizações, tem suas escolas

estadualizadas sobre o Decreto n°24628/

12.08.2002, estabelecem a estadualização do

ensino indígena no âmbito da educação básica

no sistema de ensino do Estado de

Pernambuco, sendo que, no ano de 2003 as

escolas passaram a ser administradas pelo seu

povo, iniciando, assim, organizar-se

internamente, criando seu próprio modelo de

gestão, que tem como intuito focalizar nos

conhecimentos culturais do povo,

contextualizando com outros saberes em sala

de aula, possibilitando ao individuo interagir

com seu meio social e com os conhecimentos

globalizados da sociedade nacional.

Com a estadualização das escolas

indígenas no ano de 2002, começou-se a

trabalhar uma educação numa perspectiva

mais específica, diferenciada, intercultural e

bilíngue, desenvolvida somente por

professores indígenas, baseado na necessidade

de preservar, valorizar e fortalecer a cultura e a

tradição.

Para que a educação escolar indígena

seja de fato especifica, diferenciada e

adequadas às peculiaridades culturais das

comunidades indígenas, é primordial que os

profissionais atuantes nestas escolas

Page 94: Opará Revista vol. 2 julho/2014

91 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

pertençam às sociedades envolventes no

processo escolar. (BRASIL, 1996, p. 50). Além

dos entraves naturais no processo de ensino e

aprendizagem indígenas, outros são

enfrentados pela escola atual, e na escola

indígena não é diferente. Há a influência da

tecnologia e da mídia, onde ambas interferem,

efetivamente, no contexto escolar, ora positivo,

ora negativo.

Nos últimos anos, com a evolução

avassaladora dos meios de comunicação, essas

modificações ficaram ainda mais evidentes,

passando a exigir da educação uma

versatilidade, antes não imaginada por aqueles

que, há alguns anos, desempenhavam

trabalhos educativos sem necessidade de

tecnologias modernas. Desta forma, quando se

aborda a questão da educação do ponto de

vista da escola, pode-se ter uma dimensão

maior de como estas mudanças exerceram,

exercem e continuarão exercendo influência

sobre os estudantes que hoje são atendidos

pelas escolas.

A linguagem tecnológica, a internet, os

telefones celulares eram instrumentos que a

cerca de 30 anos atrás ninguém imaginava que

pudessem se tornar tão populares.Havia na

educação objetivos bem definidos, conteúdos

praticamente inflexíveis e uma “disciplina”

centrada na ideia de “obediência”

inquestionável. Porém, o midiatismo põe em

cheque o trabalho educativo e a escola começa

a se deparar com a necessidade de preparar os

indivíduos para a vida, tarefa esta que já não é

mais tão bem definida, pois daí nasce um

desafio que mexe muito com a mente de todos

os profissionais da educação dos tempos

hodiernos e, aí nos questionamos: Como

preparar as crianças e jovens para a vida, se as

sociedades, os meios de comunicação, a

cultura, e os demais fatores delas provenientes,

evoluem tão rapidamente?

Diante deste desafio, é importante

olhar esta questão partindo do pressuposto de

que a escola tem o importante papel do

organizar e tornar acessível à criança às

atividades de aprendizagem, enquanto que nos

outros espaços sociais elas acontecem, na

maioria das vezes, de forma eventual. Por este

motivo, talvez, muitos alunos prefiram estar

mais em outros espaços, do que dentro da

escola, pois nele existem regras mais definidas

e uma rotina de tarefas que exigem

participação e reflexão mais intensa.

Porém, o fato de a escola ser um

ambiente fadado a possuir, não retira das

outras instituições sociais, família e sociedade,

neste caso, a obrigação de possuí-las. Nos dias

de hoje, é comum às crianças crescerem em

espaços sociais carentes não somente de bens

materiais, mas também de afetividade e,

principalmente, limites e valores.

3 REALIDADEENCONTRADA NA

COMUNIDADE INDIGENA ENTRE

SERRAS PANKARARU

Por meio da pesquisa e elaboração

deste trabalho foi possível conversar

diariamente com os indígenas do local já

mencionado e, assim, debatemos sobre a

diversidade de histórias de outros povos com

culturais e costumes diferentes. As histórias

são os meios de se organizar. Através disso,

também, oportunizou tomar conhecimento de

matérias importantes sobre outros indígenas,

fotos, mitos para aprofundar o trabalho de

pesquisa.

A partir do contato com o não índio, os

conhecimentos passaram a ser insuficiente

para dar conta de acompanhar os avanços

Page 95: Opará Revista vol. 2 julho/2014

92 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:

UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM

globais e garantir a sobrevivência e o bem estar

dessas sociedades. É preciso agora também

conhecer os códigos e os símbolos dos brancos,

já que estes passaram a povoar o entorno

indígena. E é assim que, historicamente, surgiu

a educação escolar no território indígena, suas

concepções de mundo que caracterizam-se pela

forte resistência e luta para preservar e manter

sua cultura, pois se compreende que tanto os

homens índios como os brancos, estão em

convivência diária e não pode isolar-se,

mostrando-se como parte integrante do

mesmo meio, onde defende e divulga suas

crenças e seus conhecimentos do mundo

terreno e espiritual.

A escola indígena possui uma

organização institucional semelhante às

escolas dos não índios. Estas escolas se

localizam nas aldeias, apresentam professores

contratados e efetivos para ministrar as aulas

seguindo as matrizes curriculares estabelecidas

pelas secretarias de educação. Estes

profissionais atuam como elo entre os índios e

a cultura dos povos não indígenas, de modo a

preparar os mesmos para os desafios que a

sociedade exige sem esquecer-se de suas

origens.

Ainda dentro deste contexto, a

educação indígena atual torna-se

“essencialmente distinta daquela praticada

desde os tempos coloniais, por missionários e

representantes do governo. Os índios recorrem

à educação escolar, hoje em dia, como

instrumento conceituado de luta” (FERREIRA,

2001, p. 71). Nesta perspectiva, o povo Entre

Serras Pankararu tem buscado seus ideais

através da educação, cada vez mais investindo

em profissionais qualificados, de modo a

equipará-los em termos de preparação com

outros profissionais da sociedade,

reconhecendo assim, o poder que a educação

apresenta para suas causas. No entanto,

conhecer, através da arte de educar, o modo de

ensinar e aprender das crianças do Povo Entre

Serras, no processo de ensino e aprendizagem,

valorizando as pessoas que contribuem para

este processo, de modo a compreender que os

conhecimentos tradicionais do povo são

relevantes para preservação de sua história.

Em linhas gerais o que se pretendeu

fazer ao longo deste trabalho foi uma

abordagem teórica sobre a arte de educar as

crianças indígenas Entre Serras Pankararu:

Uma discussão no ensino aprendizagem.

Causas e efeitos, estrutura familiar, a

participação da comunidade no ensino

aprendizagem ofertada pela escola, estratégias

de ensino que podem diminuir os problemas

de evasão. Sustentabilidade e economia, o

papel da família enquanto parceira no trabalho

desenvolvido pela escola, dentre outros temas

que foram abordados nos referidos capítulos e

que compôs não só a base teórica, mas também

toda a estrutura desta pesquisa.

Vale ressaltar que para dar suporte e

fundamentar a pesquisa foi preciso,

além da fundamentação teórica, ouvir, dialogar

com a população pesquisada e provocar

algumas indagações: Como a arte de educar as

crianças indígenas do Povo Entre Serras

acontece? Quem são as pessoas que

contribuem na aprendizagem da criança

dentro do seu contexto sociocultural? Quais

são os conhecimentos culturais que constitui o

universo da criança? Como a escola

contextualiza os conhecimentos indígenas com

os conhecimentos globalizados? Qual é a

formação dos professores? Como a forma de

educar as crianças no seu meio social se

diferencia das crianças não indígenas?

Além destas indagações iniciais, outras

foram surgindo a partir do diálogo com os

Page 96: Opará Revista vol. 2 julho/2014

93 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

atores sociais, a saber: Na proposta da escola

estão inseridos os conhecimentos tradicionais

do povo? Os professores têm formação

especifica para atuarem na educação escolar

indígena? A cultura do Povo Entre Serras

contribui no processo de aprendizagem das

crianças? A escola envolve os conhecimentos

tradicionais com os conhecimentos

globalizados? As pessoas e lideranças do povo

estão contribuindo na aprendizagem da

criança? Os conhecimentos culturais são

aprendidos dentro do seu contexto cultural? As

formas de aprendizagem das crianças

indígenas diferenciam das outras crianças?

Todavia, conhecer o modo de ensinar e

aprender das crianças do Povo Entre Serras

Pankararu no processo de ensino e

aprendizagem, valorizando as pessoas que

contribuem para este processo, de modo a

compreender que os conhecimentos

tradicionais do povo são relevantes para

preservação de sua história, é algo de muita

primazia.

Assim, a partir da investigações já

mencionadas, foi possível compreender que a

arte de educar as crianças do Povo Entre Serras

Pankararu acontece na própria aldeia em

interação com a família e na convivência com

os mais velhos, no entanto, no Povo Entre

Serras Pankararu esses agentes desenvolvem

um papel extremamente relevante, tendo como

principal objetivo transmitir os conhecimentos

culturais para as novas e futuras gerações, no

intuito de que as crianças de hoje sejam

multiplicadores desses saberes.

Os conhecimentos culturais do povo

mencionado estão relacionados às práticas

tradicionais, assim como, na dança do toré, nas

histórias do povo, na confecção dos artesanatos

e diante dos saberes que envolvem o cotidiano

e o contexto cultural do povo, de maneira que

as crianças entendam que as formas de

educação do povo pesquisado se distinguiram

das crianças não indígenas pelo fato das

crianças Entre Serras aprenderem, desde

pequenas, suas práticas culturais dentro dos

espaços sagrados e nos terreiros de praiá,

tendo, como base, o apoio dos mais velhos no

desenvolvimento da aprendizagem, que se

distingui das demais sociedades por apresentar

uma educação que tem como base a sua

própria cultura.

Diante do contato que as crianças têm

com a sociedade envolvente a escola

contextualiza os saberes indígenas com os

conhecimentos globalizados, desenvolvendo

metodologias diversificadas em sala de aula, de

acordo com a proposta pedagógica da escola,

de forma que os métodos utilizados

contemplem ambos os conhecimentos

considerados pelo próprio povo como

relevantes diante do acesso que os indígenas

têm com a sociedade não indígena.

Portanto, para atender todas essas

expectativas, constatou-se durante a pesquisa

que as escolas do Povo Entre Serras Pankararu

têm um quadro de professores com formação

acadêmica completa e outro com professores

que estão cursando, além de contar com os

detentores do saber que trabalham, tanto

dentro como fora dos espaços escolares, a arte

e os saberes que constitui o universo cultural

deste povo, onde todos têm como principal

objetivo preparar as crianças para conviverem

no mundo fora da aldeia e com o mundo no

qual está inserida, considerando os processos

de ensino e aprendizagem constituídos nos

espaços culturais do seu povo.

Page 97: Opará Revista vol. 2 julho/2014

94 A ARTE DE EDUCAR AS CRIANÇAS DO POVO ENTRE SERRAS PANKARARU:

UMA DISCUSSÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM

PARA NÃO CONCLUIR...

Diante dos resultados obtidos por meio

da observação in loco e do diálogo com os

sujeitos sociais indígenas da comunidade em

tese, pôde-se constatar que as crianças

aprendem em convivência com o outro na

comunidade, as práticas culturais, regras

estabelecidas e desenvolvidas pelo próprio

povo. Nesta perspectiva compreende-se que

elas já desenvolvem uma aprendizagem antes

de frequentar os espaços escolares. Neste

sentido, ao longo da pesquisa entendemos que

o ensino e aprendizagem das crianças são

caracterizados pelos seus próprios métodos de

ensino fora do contexto de sala de aula

desenvolvidos nas manifestações culturais.

Contudo, observa-se que o Povo Entre

Serras Pankararu busca fortalecer a cultura

vivenciando as práticas culturais e trabalhando

de forma contextualizada os saberes

tradicionais com os conhecimentos

globalizados dentro do contexto escolar, de

maneira que as crianças possam fazer

referência à sua cultura, com o desejo de estar

fortalecendo e reafirmando seus costumes,

tanto no âmbito escolar, como em seu meio

sociocultural, ficando evidente que a escola

desenvolve procedimentos que busca o

intercâmbio entre conhecimentos indígenas e

não indígenas, considerando o contato que as

crianças têm com a sociedade contemporânea.

As informações apresentadas no

decorrer do processo da pesquisa permitiu

observar que a educação indígena envolve

agentes e narradores que têm o dom da

sabedoria, a cerca dos conhecimentos culturais

do grupo étnico, ficando evidente que o ensino

e aprendizagem das crianças têm como base a

presença destes agentes em seu meio social. Na

perspectiva deste trabalho, é relevante

reconhecer que o povo indígena mantém viva

sua própria forma de educar.

Enfim, seria de grande relevância para

os grupos étnicos, que o Estado respeite, de

fato, os direitos indígenas previstos no texto

constitucional, assim como a criação de um

sistema de educação que considere as

especificidades dos povos indígenas, no

entanto, é predominante no país um modelo

educacional padronizado que atenda a toda

sociedade sem fazer distinção aos

conhecimentos dos povos indígenas.

Finalizamos enfatizando que a

presente pesquisa não possui um cunho

conclusivo e nem tem a pretensão de esgotar a

discussão acerca dos povos indígenas, suas

conquistas e desafios. No entanto, aqui se

pretendeu discorrer sucintamente sobre a arte

de educar as crianças indígenas de Entre

Serras Pankararu, partindo do pressuposto de

que é a partir da educação que os sujeitos

sociais se constituem aptos a conhecer seus

direitos e lutar pelos mesmos, visando compor

uma sociedade mais justa e menos desigual.

REFERÊNCIAS

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Page 98: Opará Revista vol. 2 julho/2014

95 Edilma Cavalcante Santos Menezes, Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

escola/leis/lein9394.pdf. Acesso em: 20 set. 2013. ______. Decreto n. 24.628.Documentos e Legislação da Educação Escolar Indígena. Disponível em: http://www.ufpe.br/remdipe/index.php Acesso em: 15 set. 2013. CAVALCANTE, Luciola Inês Pessoa. Formação dos Professores na Perspectivado Movimento dos Professores Indígenas da Amazônia. Revista Brasileira de Educação / Jan. /Fev./ Abr./ n. 22. Manaus, 2003. DEWEY, John. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. FERREIRA, Mariana Kawall Leal.A educação escolar indígena: um diagnóstico crítico da situação do Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes; FERREIRA, Mariana Kawall Leal (Orgs.). Antropologia, História e Educação: A questão indígena e a escola. 2. Ed. São Paulo: Global, 2001. FREIRE, José Ribamar Bessa. Fontes Históricas para a avaliação da escola indígena no Brasil. In. Revista Tellus, Campo Grande: UCDB, n. 3, outubro de 2002. GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 3 ed. São Paulo: Atlas, 1991. ______. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 5. Ed. São Paulo: Atlas, 1999. GRUNEWALD, Azevedo Rodrigues de. Toré Regime encantado do índio do nordeste. Ed. Massangana,2005. JUREMA, Jefferson; ROCHA, Vera (Org.). Livro didático 2: Ensino de Arte e Educação Física na Educação Escolar. Natal: Paidéia, 2005.

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Page 99: Opará Revista vol. 2 julho/2014

DO SINGULAR AO PLURAL:

INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA

ECONOMIA SOLIDÁRIA

Vinicius Goncalves dos Santos1

João Matos Filho2

Marilia Medeiros de Araujo3

Débora Chaves Meireles4

José Alderir da Silva5 RESUMO Tem por objetivo propor parâmetros de compreensão da dinâmica da sustentabilidade na economia solidária. Parte do pressuposto que tais atividades possuem uma racionalidade especifica referente ao modo como combinam os seus recursos produtivos, humanos e materiais. Infere que a dimensão econômica e da sustentabilidade deixam de ser percebidas de forma unidimensional para assumirem uma perspectiva plural. Questiona a perspectiva da economia neoclássica e seus axiomas utilitaristas que reduzem a dimensão dos critérios de sustentabilidade a uma análise de mercado. Adota uma pesquisa de natureza bibliográfica. Evidência a importância dos indicadores de sustentabilidade na economia solidária. Palavras-chave: Indicadores. Sustentabilidade. Unidimensional. Plural. ABSTRACT Aims to propose parameters for understanding the dynamics of sustainability in the social economy. Assumes that such activities have a specific rationale for the way they combine their productive resources, human and material. Infers that the economic dimension of sustainability and cease to be perceived as one-dimensional perspective to take plural. Questions the perspective of neoclassical economics and its utilitarian axioms that reduces the dimension of sustainability criteria for a market analysis. Adopts a survey of bibliographical and documentary. Evidence of the importance of sustainability indicators in the social economy. Keywords: Indicators. Sustainability. Unidimensional. Plural

1 Possui graduação em economia pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL), Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal da

Bahia (UFBA). Atualmente é mestrando em economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Endereço: Av das Brancas Dunas 3693, AP-104, condomínio bairro latino, BL33, Candelária. Natal (RN). Telefone: (84) 9640-7968. E-mail:

Gonç[email protected] 2 Possui graduação em Agronomia pela Universidade Federal do Ceará (1970), mestrado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1991), Doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Federal de Campinas (2002). Atualmente é professor de

economia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Endereço profissional: Av. Senador Salgado Filho, s/n, Lagoa Nova.

Departamento de Economia. CEP: 59072970. Natal (RN). Telefone: (84) 2153-3512 e (84) 9474-6771. E-mail: [email protected]. 3 Possui graduação em Economia pela Universidade Federal da Paraíba (2010), na qual foi bolsista do programa de monitoria da Pró-Reitoria

de Graduação – RPG/UFPB. Foi professora do curso Bacharelado em Economia das Faculdades Integradas de Patos (FIP). Atualmente é

mestranda do curso de Economia Regional da Programa de Pós-graduação em Economia - PPGECO da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Endereço: Rua Enfª Ana Mª Barbosa de Almeida, 631, Bancários, João Pessoa-PB. CEP: 58052-270. Telefone: (84) 9838-

0994 e (83) 8856-7029. E-mail: [email protected] 4 Possui graduação em Economia pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é mestranda do programa de pós-graduação de economia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected] 5 Possui graduação em Economia pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é mestrando do programa de pós-graduação de

economia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected]

Page 100: Opará Revista vol. 2 julho/2014

97 DO SINGULAR AO PLURAL: INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465

1. INTRODUÇÃO

Após o debate6 acerca da problemática

que envolve o tema da sustentabilidade na

economia solidária, chega-se ao consenso de

que a sustentabilidade deve estar vinculada a

um propósito. O propósito até aqui

apresentado tem como referência o sentido da

economia solidária, enquanto instância

representativa para vida de muitos

trabalhadores.

Para isso, evidencia-se a junção de

uma dimensão solidária com aspectos

empreendedores, de organização dos fatores

produtivos e de sua gestão voltada para o

enfrentamento dos obstáculos e à realização

das metas, constituindo o conjunto da

atividade em uma racionalidade especifica que

a diferencia de outros tipos de

empreendimentos (GAIGER, 2007b).

A partir de então, é possível vislumbrar

uma nova perspectiva de pensar a

sustentabilidade dessas atividades.

Primeiramente, convém destacar os diferentes

princípios de comportamento econômico que

caracterizam os EES. Para isto, faz-se menção

as idéias lançadas por Polanyi (2000), em “A

Grande Transformação”, onde se lança a

crítica a proposta liberal de uma sociedade

conduzida por um mercado auto-regulador.

Com referência nas diretrizes traçadas

por Polanyi (Ibidem) e no debate acerta da

problemática da sustentabilidade na economia

solidária (SANTOS et al., 2013), o presente

trabalho tem por objetivo propor parâmetros

de compreensão da dinâmica da

sustentabilidade na economia solidária. Tal

proposta se justifica pela falta de clareza e da

6 Faz referência ao artigo “A problemática da sustentabilidade na

economia solidária: um debate na fronteira da ciência”

(SANTOS et al., 2013).

existência de indicadores de sustentabilidade

que dêem conta da dimensão da economia

solidária. Para a realização de tal empreitada,

adota-se uma pesquisa de natureza

bibliográfica.

Além desta introdução e das

considerações finais, a estrutura do artigo

contém mais três seções. A segunda seção trata

da economia substantiva, como apresentada

por Karl Polanyi. A terceira seção aborda a

dimensão da sustentabilidade plural na

economia solidária. Na quarta seção, são

apresentados indicadores de sustentabilidade

para economia solidária. Por fim, têm-se as

considerações finais do estudo.

2. ECONOMIA SUBSTANTIVA

A crítica é direcionada para o que seria

uma compreensão estreita e discriminatória da

economia, que são expressas por três

reducionismos que foram introduzidos pela

economia neoclássica em sua ênfase pela

eficiência: 1º a redução de toda economia à

economia de mercado; 2º a redução de todo

mercado ao mercado auto-regulado; e, 3º a

redução de toda empresa econômica a empresa

capitalista (LAVILLE, 2004, apud GAIGER,

2007a).

Segundo tais parâmetros, há uma

clivagem ideológica que relega um papel

secundário para os tipos de atividades que não

se enquadram nesses setores. Assim, quem não

pertence a esse domínio é visto como

retroativo, ineficiente e atrasado. Através do

olhar sobre a Nova Sociologia Econômica,

Polanyi (2000) desnuda a economia

substantiva que foi renegada pela escola

neoclássica.

Page 101: Opará Revista vol. 2 julho/2014

98 Vinicius dos Santos, João M. Filho, Marília de Araújo, Débora Meireles e José A.da Silva

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465

De acordo com a abordagem da

economia substantiva, existem quatro

princípios de comportamento econômico: a

domesticidade, que faz referencia a produção

familiar, distribuída e consumida na unidade

familiar; a reciprocidade, que governa o

intercâmbio de benesses (dádiva) entre os

membros da sociedade com objetivo de

reforçar os laços sociais; a redistribuição, que

dirige a produção apropriada por uma

autoridade, que a armazena e se encarrega de

distribuí-la; e, o mercado, que faz referência a

atividades de agentes independentes, de troca

de bens e serviços, que competem em um

espaço comum (FRANÇA FILHO, LAVILLE,

2004).

Cabe atentar para o fato de que, as

transferências de bens e serviços, orientadas

pela domesticidade e pela reciprocidade não

envolvem pagamentos, formando assim a

esfera não-monetária da economia. De

maneira análoga, as atividades que visam a

troca em mercado formam a esfera mercantil.

Deste modo, o estudo da sustentabilidade dos

EES perpassa pela compreensão de uma

economia plural. Quanto à reciprocidade,

convêm destacar que

Desde as suas origens modernas, coube à reciprocidade cumprir um papel vital de alargamento da experiência humana de reprodução da vida, ao contrapor-se às determinações e às limitações impostas pela racionalidade estrita do capital. Mantiveram-se assim vigentes outros princípios e outras lógicas de organização do trabalho, de criação de

bens e de circulação da riqueza, ao lado da economia de mercado capitalista, configurando uma economia plural, nos termos da Nova Sociologia Econômica (LÉVESQUE et al., 2001). (GAIGER, 2007a, p. 4-5)

Os EES compreendem assim, uma

tentativa de articulação entre economia

mercantil (Mercado), não-mercantil (Estado) e

não-monetária (Reciprocidade), com a

proposta de acumular as vantagens da

economia monetária juntamente com a busca

da igualdade que se processa pelo princípio da

redistribuição, considerando as relações que

ocorrem na economia não-monetária.

Com isso, se faz importante

compreender a economia solidária como um

fenômeno social situado no tempo, onde se

processa formas inovadoras de atuação do

Estado e da própria sociedade civil. Nas

palavras de França Filho e Laville (2004),

A análise histórica do ressurgimento da economia solidária, nos anos 90, leva-os a concluir que a economia solidária, como resposta à crise do paradigma fordista e do estado de bem-estar social, é um híbrido formado por atividades recíprocas desenvolvidas por voluntários, atividades de mercado desenvolvidas por profissionais e atividades financiadas por subsídios estatais. (p.7)

Em síntese, existe um espaço de

interação entre as diferentes lógicas

denominado de Zona de Integração Sistêmica,

que pode ser verificado através do quadro 1

(forma híbrida de interação dos EES com as

diferentes instâncias econômicas).

Page 102: Opará Revista vol. 2 julho/2014

99 DO SINGULAR AO PLURAL: INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465

Quadro 1: As organizações que atuam no campo social e suas interfaces. Fonte: Andion, 2005.

A idéia de hibridação exposta pelo

quadro acima remonta a considerações acerca

das ações do Estado junto à economia

solidária, o papel dos EES perante a sociedade

civil, e a sua forma de inserção no mercado.

No lugar, portanto, de resumirmos a economia ao mercado, parece-nos preferível pensá-la enquanto economia plural, ou seja, admitirmos que, em relação ao conjunto de práticas que conformam a dinâmica econômica mais ampla, existem diferentes princípios em interação (para além do princípio mercantil), como é o caso da redistribuição e da reciprocidade. É exatamente este olhar ampliado da dinâmica econômica mais geral, que nos permitirá entender mais adequadamente o processo singular de uma economia solidária, que tende a reunir diferentes lógicas em interação (FRANÇA FILHO, LAVILLE, 2004, p. 17).

Essa forma de pensar a economia

revela os elementos de um novo paradigma

social, na medida em que evidência a

coexistência de lógicas econômicas distintas e

complementares, que implica que os EES

sejam geridos de uma forma particular,

exigindo um modelo diferente de auferir a

sustentabilidade (REIS; FRANÇA FILHO,

2005).

3. SUSTENTABILIDADE PLURAL

A compreensão de uma economia

substantiva corresponde ao primeiro passo

para a percepção de que a dinâmica da

economia solidária é permeada por diferentes

dimensões e perspectivas. Para o presente

estudo, adota-se a dimensão econômica

Page 103: Opará Revista vol. 2 julho/2014

100 Vinicius dos Santos, João M. Filho, Marília de Araújo, Débora Meireles e José A.da

Silva

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465

(LISBOA, 2005; POLANYI, 2000), política

(SEN, 2009; FRANÇA FILHO; DZMIRA,

2004, apud REIS; FRANÇA FILHO, 2005), da

ambiência (KRAYCHETE, 2012; GAIGER,

2012), associativa (KRAYCHETE, 2008;

ROSENFIELD, 2007; RAY, 2000) e do capital

social (RAY, 2000).

A figura 2 ilustra as cinco dimensões

destacadas para análise da sustentabilidade na

economia solidária. Convém frisar que tais

perspectivas são complementares e não

excludentes. Desta forma, a análise de uma

sustentabilidade plural só se faz possível

quando se considera o conjunto da totalidade.

Tal perspectiva representa o que há de

inovador na economia solidária, mas ao

mesmo tempo apresenta uma série de

dificuldades em correlacionar dimensões

diferentes para uma análise sistêmica da

sustentabilidade.

Figura 2: Dimensão da sustentabilidade plural. Fonte: Elaborada pelo autor.

3.1. Dimensão econômica

Corresponde a abordagem da

economia plural, o que envolve o componente

mercantil, não-mercantil e o não-monetário

(POLANYI, 2000). Trata-se das formas de

gestão dos recursos financeiros e não

financeiros utilizados na organização dos EES.

Para Lisboa (2005), a dimensão econômica

possui os componentes fundamentais para

auferir e avaliar a eficiência das atividades

mercantis.

Embora a análise da eficiência não seja

a mais adequada para esse tipo de atividade, a

existência de excedentes (sobras) possibilita a

capacidade dos empreendimentos reinvestirem

em si mesmo, se renovar e expandir. É

característico dessas atividades o fato da

acumulação material estar submetida a limites,

pois a capacidade existente de se produzir um

excedente econômico é colocado a serviço dos

objetivos dos EES.

A isto, Aristóteles (Apud SEN, 2000, p.

28) faz referência a relação entre os meios e

fins, “[...] a riqueza evidentemente não é o bem

Page 104: Opará Revista vol. 2 julho/2014

101 DO SINGULAR AO PLURAL: INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465

que estamos buscando, sendo ela meramente

útil e em proveito de alguma outra coisa”.

Com isso, a utilidade da riqueza fica limitada

nas coisas que ela pode viabilizar – as

liberdades substantivas (SEN, 2000).

3.2. Dimensão política

Aparece como o principal elemento de

distinção dos EES. Assim, o empreendimento

se converte em um espaço de expressão da

cidadania e de aprendizagem da democracia

(FRANÇA FILHO; DZMIRA, 2004, apud REIS;

FRANÇA FILHO, 2005). Deste modo, a

perspectiva de uma gestão horizontalizada

contribui para a formação de agentes reflexivos

e atuantes que caracterizam o ato político da

economia solidária.

Com efeito, um dos argumentos mais poderosos em favor da liberdade política reside precisamente na oportunidade que ela dá aos cidadãos de debater sobre os valores na escolha das prioridades e de participar da seleção desses valores (SEN, 2000, p. 46).

O ato político aqui compreendido não

se limita ao ambiente interno, é de

fundamental importância o desenvolvimento

de interação com os atores externos. Isso

equivale ao fortalecimento das iniciativas no

momento que atuam em rede e a existência de

ações e políticas públicas para o fomento da

economia solidária.

Outro ponto importante faz referência

ao entrelaçamento entre o político e o

econômico que juntos fazem surgir à

possibilidade de unificação de princípios de

outra economia ao mesmo tempo em que

representam uma crítica e uma ação

substitutiva ao modelo dominante de

desenvolvimento (GAIGER, 2007b, p. 444).

Assim, segundo Scherer-Warren (1996, p. 15,

Apud GAIGER, 2007b, p. 445)

As formas alternativas de produção e de geração de renda são encaminhadas pelos proponentes de projetos com uma dupla finalidade: a de se viabilizarem economicamente e a de serem espaço pedagógico de conscientização e de desenvolvimento da cidadania. Do ponto de vista econômico, o projeto deve gerar a capacidade de sobrevivência dentro de um sistema vigente, mas deve também incorporar uma crítica ao modelo de desenvolvimento econômico dominante.

Com isso, o ato político se converte no

papel transformador de tal movimento, na

medida em que submete o econômico aos

objetivos e finalidades de tais iniciativas.

Segundo o próprio Gaiger (2007a), sem essa

expectativa, a economia solidária seria

inexplicável.

3.3. Ambiência

Remonta as idéias levantadas por

Kraychete (2012), e reforçadas por Gaiger

(2000), compreendendo a existência das

condições necessárias para que o

empreendimento possa ter êxito. Essa ideia faz

referência à temática da liberdade substantiva

de Sen (2000), onde a condição de agente

aparece restrita e limitada pelas oportunidades

sociais, políticas e econômica que os agentes

dispõem.

Desta forma, os meios que

possibilitam a esses atores exercerem um

determinado tipo de vida são vistos como

condições necessárias para se atingir um

processo de desenvolvimento. Assim como a

hipótese adotada no presente trabalho, a

ambiência corresponde aos meios que os

empreendimentos dispõem para alcançar os

seus objetivos: acesso ao espaço físico, acesso

aos meios de produção, acesso a ferramentas

gerenciais, acesso ao crédito etc.

Nas palavras do próprio Sen (2000), os

empreendimentos autogestionários, sobretudo

Page 105: Opará Revista vol. 2 julho/2014

102 Vinicius dos Santos, João M. Filho, Marília de Araújo, Débora Meireles e José A.da

Silva

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465

as cooperativas, se comportam como agentes

de transformação social, mas que necessitam

de um contexto e de uma estrutura favorável

para que possam influenciar o processo de

desenvolvimento.

O processo de desenvolvimento é crucialmente influenciado por essas inter-relações. Correspondendo a múltiplas liberdades inter-relacionadas, existe a necessidade de desenvolver e sustentar uma pluralidade de instituições, como sistemas democráticos, mecanismos legais, estruturas de mercado, provisões de serviços de educação e saúde, facilidades para a mídia e outros tipos de comunicação etc. Essas instituições podem incorporar iniciativas privadas além de disposições públicas, bem como estruturas mais mescladas, como organizações não-governamentais e entidades cooperativas (SEN, 2000, p. 71).

3.4. Dimensão associativa

Envolve a característica peculiar dos

EES, de tal forma que se torna um indicador

importante de sustentabilidade. Convêm

destacar a ênfase que é dada em muitos casos

empíricos aos fatores de natureza econômica,

sem levar em conta que a dimensão associativa

tem uma destacada importância junto a essas

iniciativas.

Mesmo quando o projeto é viável do ponto de vista estritamente econômico, podem surgir muitas tensões e conflitos pelo fato das “regras do jogo” não terem sido previamente combinadas. Antes de iniciar a atividade, é preciso que cada um dos envolvidos reflita sobre as implicações do projeto em termos de compromissos e responsabilidades que terão que ser assumidos. [...] É comum, por exemplo, que se vislumbrem apenas os benefícios esperados de uma atividade econômica, sem anteverem o trabalho, as exigências e as responsabilidades que delas resultam (KRAYCHETE, 1998, p. 24).

Deste modo, a autogestão aparece

como o eixo de compreensão da economia

solidária. A autogestão distingue as empresas

solidárias das demais empresas cooperativas

capitalistas, como também é um aspecto

peculiar que permite que esses

empreendimentos possam por em prática os

princípios que norteiam a economia solidária

(ROSENFIELD, 2007).

A isso Gaiger (2007a) atribui que o

êxito dos empreendimentos fica condicionado

a fatores do qual os efeitos positivos decorrem

do caráter socialmente cooperativo por eles

incorporado. Assim, se estabelece uma

comunidade de trabalho, que incorpora uma

ação propositiva, e que passa a co-determinar a

racionalidade econômica. Para isso, leva-se em

consideração que

[...] um elemento comunitário, de ação e gestão conjunta, cooperativa e solidária, apresente no interior dessas unidades econômicas efeitos tangíveis e concretos sobre o resultado da operação econômica. Efeitos concretos e específicos nos quais se possa discernir uma particular produtividade dada pela presença e crescimento do referido elemento comunitário, análoga à produtividade que distingue e pela qual se reconhecem os demais fatores econômicos. (RAZETO; 1993, p. 40-1). (GAIGER; 2007a, p. 5-6)

Desta forma, as questões associativas

possuem um reflexo direto sobre a autogestão

do empreendimento. Com isso, infere-se que o

associativismo conduz à compreensão de

algumas categorias: “autogestão”, “regras do

jogo” e “empoderamento”. O empoderamento

representa uma dimensão das relações

associativas que funciona como um catalisador

para o desenvolvimento da ação local.

A questão do empoderamento remonta

as idéias desenvolvidas por Sen (2000) sobre

as perspectivas dos fins e os meios que o

processo de desenvolvimento exige, onde a

perspectiva da liberdade deve ser colocada no

centro das atenções.

Page 106: Opará Revista vol. 2 julho/2014

103 DO SINGULAR AO PLURAL: INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465

Nessa perspectiva, as pessoas têm de ser vistas como ativamente envolvidas – dada a oportunidade – na conformação de seu próprio destino, e não apenas como beneficiárias passivas dos frutos de engenhosos programas de desenvolvimento. O Estado e a sociedade têm papéis amplos no fortalecimento e na proteção das capacidades humanas. São papéis de sustentação, e não de entrega sob encomenda. (SEN, 2000, p. 26)

A temática do papel coletivo que

envolve o processo associativo ganha um lugar

de destaque na busca pelo desenvolvimento e

da sustentabilidade da economia solidária,

uma vez que aceita a idéia que os grupos têm,

ou devem adquirir, a capacidade de assumir

alguma responsabilidade por trazer o seu

próprio desenvolvimento socioeconômico

(RAY, 2000).

3.5. Capital social

De acordo com essa vertente, pensar a

sustentabilidade requer um debate acerca da

“(...) propensão dos indivíduos para associar

juntos em uma base regular, a confiar um no

outro, e se envolver nos assuntos da

comunidade" (HALL, 1999, p. 147, Apud RAY,

2000, p. 10).

Ray (Ibidem) refere-se ao ponto

central da sustentabilidade dos

empreendimentos econômicos solidários, o

capital social. Segundo o autor, muita

importância tem sido atribuída ao capital

social como uma força de desenvolvimento

endógeno, mas pouco se tem discutido sobre os

mecanismos pelo qual o capital social entra em

operação.

A teoria caminha no sentido de que a

capacidade para atuação inerente à hipótese

exige o reconhecimento dos fatores

psicológicos envolvidos no nível do individuo

(RAY, Ibidem). Desta forma, o ponto

fundamental para sustentabilidade são os

próprios atores sociais. Assim, as implicações

que foram relacionadas como “ambiência”,

“tecnologia” e a forma de inserção e

organização do mercado seriam apenas

algumas das condições a serem consideradas,

mas não esgota os atributos necessários para

alcançar a sustentabilidade almejada.

O ponto central para entender o

desenvolvimento e a sustentabilidade dessas

atividades recai sobre o conceito de

“inteligência emocional” (GOLEMAN, apud,

RAY, 2009). Tal denominação é utilizada para

enfatizar as características necessárias dos

indivíduos para formar as relações de

confiança em que a cooperação é construída.

Refere-se a uma “capacidade” que entra em

conexão com a teoria dos mecanismos

psicológicos.

Dentro do contexto da economia

solidária, para o capital social ser um conceito

útil, às condições e ao processo que provocam

um tipo particular de desenvolvimento, precisa

ser definido. O capital social é nutrido por

relações de confiança que são iniciadas e

sustentadas dentro da mente individual. Isso

remete a um das suas características, que é a

sua capacidade de ser acumulado ao longo do

tempo (BOURDIEU, 1986, apud, RAY, 2000).

Desta maneira, as relações de confiança

materializadas na forma de energia social

podem ser utilizadas em prol de um interesse

coletivo amplo.

Para que isso possa ser efetivado, é

preciso que se leve em conta que os

componentes da inteligência emocional se

encontrem em conexão com a autoconsciência,

gestão emocional, automotivação, empatia e

gestão de relacionamento. Nessa estrutura, a

autoconsciência aparece como a base de toda

inteligência emocional. Neste caso, refere-se à

sensação de pertencimento que os sujeitos

nutrem com relação a algo.

Page 107: Opará Revista vol. 2 julho/2014

104 Vinicius dos Santos, João M. Filho, Marília de Araújo, Débora Meireles e José A.da

Silva

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465

Outro fator importante para

compreender a potencialidade do capital social

está relacionado com a capacidade de gerir a

autoconsciência coletiva de modo a produzir

um comportamento adequado a um contexto.

Assim, se faz necessário a existência dos

atributos da empatia como centro canalizador

das emoções. Isso significa dizer que essas

emoções devem ser geridas por um sujeito

nutrido de carisma dentro do grupo na busca

dos objetivos coletivos (RAY, 2009).

Visto isto, a empatia passa a ser crucial

por ser responsável em promover a ligação

entre as emoções individuais e da criação e

manutenção de relações de sucesso com os

outros (RAY, Ibidem). Portanto, a empatia é o

mecanismo psicológico pelo qual a coesão

social do grupo é ativada.

Para resumir, até agora, a teoria da inteligência emocional - com base em uma síntese de estudos empíricos psicológicos - proporciona uma compreensão de como um indivíduo é capaz (ou não pode) ser confiante de outros, e, portanto, é capaz de permitir relações de confiança entre si e outros, para emergir e ser sustentado. Esta capacidade é operacionalizada através do fenômeno de "contágio emocional", pelo qual um indivíduo funcionando com sucesso tenderá a estimular uma resposta alternativa semelhante de outros com os quais entram em contato (RAY, 2000, p. ix, tradução livre).

Isso implica inferir que a confiança

torna-se um capital social quando a

inteligência emocional consegue fluir através

de um grupo coeso, fortalecendo e reforçando

os seus objetivos. Conseqüentemente, os tipos

de associativismo que decorrem de relações de

confiança se apresentam com uma propensão

maior a sustentabilidade. Isso pode explicar

porque alguns movimentos cooperativos

prosperam e outros fracassam.

4. INDICADORES DE

SUSTENTABILIDADE

Com o surgimento da SENAES, o

debate sobre a sustentabilidade passa ser

circunscrito em torno de três perspectivas

diferentes (TABELA 1). A primeira perspectiva

representa a visão do Estado em busca de

indicadores de sustentabilidade. Segundo Silva

(2012, p. 112-113), a perspectiva do Estado é

extraída a partir das atribuições da SENAES de

fortalecer e divulgar a economia solidária como

forma de organização socioeconômica.

Tendo o PIB como um indicador de

medida econômica padrão, o aumento da

participação dos empreendimentos

econômicos solidários sobre o produto interno

bruto constitui-se em um meio direto e eficaz

de auferir a distribuição de renda

(KRAYCHETE, 2012). Desta forma, mesmo

com as críticas acerca da limitação do PIB

enquanto indicador de sustentabilidade, tal

análise pode ser útil quando tomada como um

ponto de partida.

Segundo Gaiger (2007b, p. 447), uma

parte significante do PIB nacional provém de

modalidades de atividades alternativas, “como

é patente no caso da pequena produção

agrícola, cujo desempenho nos últimos anos

evidencia uma capacidade de modernizar-se e

tornar-se mais produtiva, sem perder o seu

caráter familiar”.

Page 108: Opará Revista vol. 2 julho/2014

105 DO SINGULAR AO PLURAL: INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465

TABELA 1 – Perspectivas de sustentabilidade a partir da institucionalização da economia solidária

Visão do Estado (SENAES) Atores da economia

solidária

Sistema Nacional de Informações em Economia

Solidária (SIES)

1- Número de trabalhadores inseridos

1- Sistemas produtivos sustentáveis

1 - Quantidade e valor da produção

2 - Percentual de trabalhadores que recebem menos de um salário mínimo

2 - Consumo ético, consciente e responsável

2- Origem e forma de aquisição de insumos ou matérias-primas

3 - Participação da economia solidária no PIB

3 - Valorização e emancipação do trabalho

3 - Acesso à infraestrutura e equipamentos

- 4 - Redução das disparidades de renda e riqueza

4 - Agregação de valor nos produtos ou serviços

- 5 - Sistema financeiro solidário 5 - Forma de abrangência da comercialização

- 6- Reconhecimento da mulher e do feminino

6 - Investimentos realizados: fontes e características

-

7 - Resgate humano: valorização e inclusão de todas as pessoas nos resultados e conquistas

7 - Acesso ao crédito e adimplência

- - 8 - Remuneração dos sócios

Fonte: produzido a partir de Silva (2012)

Outra forma de aborda a questão é

sobre a perspectiva dos atores da economia

solidária (organizações, empreendimentos

econômicos solidários e dos órgãos de

fomento). “É o olhar dos indicadores a partir

da própria concepção e características da

economia solidária” (SILVA, 2012, p.113).

Sobre essa abordagem, se destaca formas de

empreendedorismo e de organização do

trabalho que buscam garantir a produção de

bens e serviços de forma sustentáveis, com

respeito aos valores éticos e ao meio ambiente.

Pelo exposto, fica claro que o olhar

sobre a sustentabilidade que brota dos atores

da economia solidária se constitui como uma

abordagem multidimensional. A complexidade

dessa abordagem reflete a natureza do

fenômeno da economia solidária, como um

movimento recente e inacabado do ponto de

vista da sua definição.

Uma terceira forma de análise remete

a sistematização do conhecimento referente à

economia solidária no Brasil. Trata-se de uma

abordagem instrumentalizada direcionada pelo

SIES (Fruto do Mapeamento da Economia

Solidária). Tal abordagem busca auferir o

desempenho dos EES através da capacidade

que se dispõe para realizarem suas atividades,

bem como a existência de uma conjuntura

adequada para que essas atividades possam se

desenvolver.

Com isso destaca-se a características

dos produtos e serviços que esses

empreendimentos oferecem a população, bem

como a capacidade de agregarem valor a

produção. Outro ponto importante remete a

Page 109: Opará Revista vol. 2 julho/2014

106 Vinicius dos Santos, João M. Filho, Marília de Araújo, Débora Meireles e José A.da

Silva

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465

comercialização, enquanto a capacidade desses

empreendimentos superarem os limites do

território no escoamento da sua produção.

Aqui cabe a noção de território como

concebida por Milton Santos (KON, 2004)

[...] transcendendo a idéia apenas geográfica de espaços contíguos vizinhos que caracterizam uma região, para a noção de rede, formada por pontos distantes uns dos outros, ligados por todas as formas e

processos sociais. (p. 231) A abordagem caminha também em

direção aos diversos indicadores de

desempenho político-organizacional que o

SIES dispõe (SILVA, 2012):

a. Forma de organização do EES:

formalização, registro...; b. Cooperação interna: Atividades

coletivas realizadas por sócios; c. Cooperação externa: redes de

cooperação entre EES; d. Aquisições, intercâmbios comerciais

e trocas com outros EES; e. Rotatividade de dirigentes nas

instâncias de direção do EES. (p. 115)

Os indicadores de desempenho

político-organizacional podem assumir um

papel importante na medida em que revela as

disposições sociais, envolvendo muitas

instituições (Estado, mercado, partidos

políticos, grupos de interesses públicos, fóruns

de discussão pública etc.). Tal abordagem se

destaca por revelar as contribuições que cada

um dos aspectos elencados adiciona à

expansão e à garantia das liberdades

substantivas dos indivíduos.

Desta forma, Silva (2012) destaca que a

construção de indicadores de sustentabilidade

na economia solidária deve ser visto como

possibilidades que precisam ser exploradas

dentro de um universo novo e cheio de

potencialidades. Gaiger (2007a) reforça os

pontos levantados por Silva (Ibidem), na

medida em que explora os resultados já

consolidados do Mapeamento da economia

solidária em 2006. Levando-se em conta a

racionalidade específica presente nessas

atividades, identifica indicadores de alto

empreendedorismo e de alto solidarismo.

Assim concebidos, os indicadores de alto desempenho têm a faculdade de apontar os atuais pontos de estrangulamento dos EES. No quesito empreendedorismo, as fraquezas situam-se no investimento em formação de recursos humanos, na obtenção de crédito para investimento, na concessão de férias ou descanso semanal para os trabalhadores e na estrutura de comercialização. [...] No quesito solidarismo, os pontos frágeis são a participação em redes, o comércio e o consumo solidários. Aqui, trata-se de limites nos relacionamentos externos, impostos pela fragilidade das iniciativas de articulação e pela inexistência de cadeias produtivas solidárias, capazes de estender-se e romper o isolamento dos empreendimentos, algo ainda distante da realidade (GAIGER, 2007a, p. 68).

Quando se observa os dados do

mapeamento apresentados por Gaiger (2007a)

pode-se concluir que as deficiências dos EES

concentram-se nas debilidades estruturais,

impactando sobre a sua forma de inserção no

mercado e limitando sua capacidade de gerar

excedentes com a capacidade de garantir a sua

autonomia econômica, retribuições aos

trabalhadores, investimentos em qualificação e

coesão do grupo.

Considerações finais

Conclui-se que os empreendimentos da

economia solidária se caracterizam, sobretudo,

por incorporarem uma racionalidade

específica, relativa ao modo como ativam as

suas atividades. Trata-se de uma relação

orgânica que envolve a dimensão solidária, de

autogestão, cooperação, empreendedorismo e

gestão dos fatores produtivos com vistas à

realização de metas específicas. A presença de

uma racionalidade distinta tem como objetivo

um projeto político-social amplo que supera a

Page 110: Opará Revista vol. 2 julho/2014

107 DO SINGULAR AO PLURAL: INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE NA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013. ISSN: 2317-9465

dimensão econômica. São diferenças

substanciais que a distinguem de outros tipos

de empreendimentos.

Tal evidência implica na aceitação de

uma economia substantiva. Assim, as

iniciativas da economia solidária não podem

ser compreendidas fora dessa dimensão. Desta

forma, a análise da sustentabilidade desses

empreendimentos precisa ser definida sobre a

ótica de uma sustentabilidade plural. Essa

hipótese representa um avanço, na medida em

que considera um novo patamar de análise na

economia solidária, mas ao mesmo tempo

representa um campo de dificuldades, visto

que se trata de uma temática que carece de

estudos empíricos e teóricos.

Assim, fica evidente a importância dos

indicadores de sustentabilidade na economia

solidária. Trata-se de um processo de

construção de parâmetros com o intuito de

direcionar os estudos acerca da

sustentabilidade de tais projetos.

REFERÊNCIAS:

ANDION, Carolina. A gestão no campo da economia solidária: particularidades e desafios. RAC. Revista de Administração Contemporânea, Rio de janeiro, v. 9, n.1, p. 79-99, 2005. FRANÇA FILHO, Genauto; LAVILLE, Jean-Louis. Economia solidária: uma abordagem internacional. Rio Grande do Sul. Editora da UFGS. 2004. GAIGER, LUIZ INACIO. A outra racionalidade da economia solidária; conclusões do primeiro Mapeamento Nacional no Brasil. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 79, p. 57-77, 2007a. GAIGER, LUIZ INACIO. A economia solidária no Brasil: refletindo sobre os dados do primeiro mapeamento nacional. In: II Seminário Nacional Movimentos Sociais, Participação e Democracia, 2007, Florianópolis. Anais do II Seminário Nacional Movimentos Sociais, Participação e Democracia, 2007b. GAIGER, Luiz Inacio. Sentido e possibilidades da economia solidária hoje. In: KRAYCHETE, Gabriel; Lara, Francisco; Costa, Beatriz. (Org.).

Economia dos setores populares: entre a realidade e a utopia. Rio de janeiro: Vozes, 2000, v. p. 199-218. LISBOA, A. M. Economia solidária e autogestão: imprecisão e limites. RAE. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 45, n.3, p. 109-115, 2005. KRAYCHETE, G. Economia popular solidária: indicadores para qual sustentabilidade? In: KRAYCHETE, Gabriel; CARVALHO, Patrícia. (Org.). Economia popular solidária: indicadores para a sustentabilidade. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2012, v., p. 15-25. KRAYCHETE SOBRINHO, G. Puxando o fio da meada. Viabilidade econômica de empreendimentos associativos I. Rio de Janeiro: Capina, 1998. v. 2. 43p. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000. RAY, C. Endogenous sócio-economic develoment and trustful relationchip: partnerships, social capital and individual agency. Working Paper 45, Centre for Rural Economy, University of Newcastle upon Tyne, 2000. REIS, T. A.; FRANÇA FILHO, G. Economia solidária e sustentabilidade plural: o caso da COOPAED. In: III Encontro Internacional de Economia Solidaria: Desenvolvimento Local, Trabalho e Autonomia, 2005, São Paulo. ROSENFIELD, C. L. A autogestão e a nova questão social: repensando a relação indivíduo e sociedade. In: LIMA, Jacob Carlos. (Org.). Ligações Perigosas; trabalho flexível e trabalho associado. São Paulo: AnnaBlume, 2007, v. 1, p. 1-311. SANTOS, V. G. ; MATOS FILHO, J. ; ARAÚJO, M. M.; FERNANDES, V. V. F. A economia solidária na encruzilhada: eficácia ou eficiência econômica? Conjuntura & Planejamento, 2013. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SILVA, R. M. A. Sustentabilidade dos Empreendimentos Econômicos Solidários: desafios da construção de indicadores. In: KRAYCHETE, Gabriel; Carvalho, Patricia. (Org.). Economia popular solidária: indicadores para a sustentabilidade. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2012, p. 93-110.

Page 111: Opará Revista vol. 2 julho/2014

NOS RASTROS PARA PENSAR A CIDADE: DE

METÁFORAS À REFLEXÃO SOBRE A

CONDIÇÃO URBANA

Márcio Nicory Costa Souza1

RESUMO O presente artigo apresenta, a partir de um olhar sobre a obra “A alma encantadora das ruas”, de João do Rio, considerações sobre a cidade, o urbano. Das metáforas procuramos tecer algumas reflexões sobre a condição urbana. Para tal, recorremos ao aporte teórico social sobre as urbanidades, daquilo que se constituiu como questões fundantes para uma sociologia urbana, para a construção de um entendimento sobre o prisma das sociabilidades ou interações do/no urbano às dimensões estruturais dos espaços urbanos. Dessa forma, o texto desloca-se para o caráter híbrido e metamoforseante da experiência citadina/urbana, reconvergindo para novas metáforas. Palavras-chave: João do Rio. Condição urbana. Rural-urbano. Metamorfose-recriações. ABSTRACT Thisarticlepresents, from a glanceatthework "A alma encantadora das ruas" by João do Rio, considerations about urban city. The metaphors we make some reflections about the urban condition. To this end, we used the contribution social theorist about the urbanities, what constituted as deep questions for an urban sociology, to build an understanding on the prism of social arrangements or interactions of structural dimensions in urban of urban spaces. In this way, the text shifts to the hybrid character and to be transformer into the city/urban experience, reconverging for new metaphors. Keywords: João do Rio. Urbancondition. Rural-urban. Metamorphosis-recreations.

1 Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA, câmpus de Paulo Afonso. Mestre em

Ciências Sociais pelo PPGCS/UFBA. Pesquisador do Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação – Opará/UNEB.

Page 112: Opará Revista vol. 2 julho/2014

109 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

“Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma.” João do Rio “A realidade urbana perceptível desaparece com as transformações das ruas em „ruas de passagem‟ que negam o tempo do „flanar‟ e impõem um tempo da velocidade, criando um novo „modo de usar‟ essas ruas, que limitam passos e redefinem encontros até torná-los ausentes.” Ana F. Carlos

Em 1908, Paulo Barreto, homem de

impressa, crítico literário, cronista, também

conhecido como João do Rio, publicou uma

conhecida crônica social, como era chamado o

gênero na época, entitulada: A alma

encantadora das ruas.

Um tipo fino de observador, com

requintado estilo cômico de descrição do

cotidiano, João do Rio imprimiu uma narrativa

cheia de graça, leveza, repleta de frases firmes

e um tanto contundentes – fruto de

reelaborações sobre os exaustivos registros dos

costumes e peculiaridades, de emoções

colhidas das ruas, das pessoas com quem

conversava. Se os incidentes mais

aparentemente banais, os detalhes mais

miúdos não escapavam aos olhos, como nos dá

a ver pelos seus escritos, nem ao registro; hoje

seus escritos nos iluminam ao que poderíamos

chamar de peculiaridades de um período de

grandes transformações.

É dos rastros de João do Rio e suas

“ruas almadas e encantadoras” e na companhia

de uma variedade intencionalmente sorteada

de outros autores que – de uma forma e de

outra falaram ou falam de gente, das relações e

interações nas cidades, igualmente

descrevendo e interpretando processos e

tendências – que tecemos estas linhas em

sintonia a um objetivo: traçar algumas

considerações sobre o fenômeno urbano, mas

especificamente pensando nas relações entre

urbano e rural e nas leituras sobre a cidade.

Bem, localizemos o cronista. De que

época estamos falando? Paulo Barreto, nascido

em 1881 e falecido em 1921, viveu num

contexto de grandes mudanças urbanas. Como

carioca, e crítico social, pôde acompanhar de

perto as mudanças no Rio de Janeiro, as

transformações nos espaços físicos e suas

conseqüências às pessoas, aos hábitos. No

início do século XIX, sob a inspiração da Belle

époque, o espaço urbano da capital pouco

condizia aos novos padrões infra-estruturais de

modernidade parisiense. Para um país que

atraía investidores e alavancava as primeiras

posições na produção mundial de café, muita

coisa precisava ser alterada. Inspirada nas

reformas urbanas de Paris da segunda metade

do século XIX, dirigidas pelo então prefeito da

cidade das luzes, Georges EugéneHaussmann,

o prefeito do distrito federal, Francisco Pereira

Ramos, vai perpetrar, igualmente, um conjunto

de reformas urbanas no Rio de Janeiro.

Estamos falando do interregno de 1902 a 1906.

A citada crônica e outras2 são exemplos

desses olhos vasculhadores, do refinado

cotejamento do aparente marasmo cotidiano.

Por que nascem elas? Da necessidade de alargamento das grandes colméias sociais, de interesses comerciais, dizem. Mas ninguém o sabe. Um belo dia, alinha-se um tarrancol, corta-se um trecho de chácara, aterra-se lameiro, e aí está: nasceu uma rua. (RIO, 2007, p. 29)

Por amor ao estilo – ou mesmo às ruas

– nosso cronista parece preferir entregar às

nebulosas razões e intencionalidades a escolha

por descrever os usos e imbricamentos entre o

homem e as ruas. As ruas, mais que espaços

físicos apropriados, nomeadas e nomeadoras

de gente e situações/condições, são

2 Por exemplo: “O que se vê nas ruas” em RIO (2007).

Page 113: Opará Revista vol. 2 julho/2014

110 Márcio Nicory Costa Souza

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

verdadeiros entes, possuidoras de alma, alma

que é capaz de embeber o flâneur, de atrair as

crianças, de criar o garoto (idem, p. 27).

Como obra e criadora, as ruas descritas

pela pena de João do Rio apresentam uma

propriedade humana, a sua virtude mágica da

fecundidade, isto é, essa capacidade de

transformar, significar, erigir, apropriar os

espaços, criando e sendo criado, de

simplesmente usar, fundindo-se a ela num

todo espaço-temporal eterno. A rua faz o

homem e o homem faz a rua e a si mesmo.

Como uma espécie de simbiose autogênica que

atesta a simultaneidade homem-espaço-tempo,

as ruas e os homens representam uma

metáfora existencial e referencial. As ruas,

como os homens, são testemunhas e autoras

das misérias e alegrias humanas.

A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres [...] A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. (RIO, 2007, p. 26-27)

Se as ruas têm alma e as suas presença

e abundância marcam o nascimento e

desenvolvimento dos centros urbanos, a rua

“está para a grande cidade como a estrada

está para o mundo” (idem, p. 36). Ora, “a rua

é a civilização da estrada”, afirma o autor.

“Nas grandes cidades a rua passa a criar o

seu tipo, a plasmar o moral dos seus

habitantes, a inocular-lhes misteriosamente

gestos, costumes, hábitos, modos, opiniões

políticas”. (idem, ibidem)

Se assim o é, se as ruas impingem

motivações, gostos, valores nos seus

habitantes, usuários ou usadores, podemos

pensar num estilo (ou estilos) associados aos

espaços (as ruas) nas cidades. Os espaços

conformam e são conformados pelos homens.

Aqui nos parece que a rua, mais que espaço

físico, aproxima-se à abstração do espaço

público, do ser social. Vejamos outro

fragmento:

Se a rua é para o homem urbano o que a estrada foi para o homem social, é claro que a preocupação maior, a associada a todas as outras idéias do ser das cidades, é a rua. Nós pensamos sempre na rua. Desde os mais tenros anos ela resume para o homem todos os ideais, os mais confusos, os mais antagônicos, os mais estranhos, desde a noção de liberdade e da difamação – idéias gerais – até a aspiração do dinheiro, da alegria e de anos, idéias particulares. Instintivamente, quando a criança começa a engatinhar, só tem um desejo: ir para a rua! (RIO, 2007, p. 39)

Não é claro. E essa não parece ser a

intenção do autor. Ao falar das ruas, eis que ele

está necessariamente falando dos homens, dos

citadinos em especial. Seja um recurso poético,

no depósito de responsabilidade aos feitos e

práticas dos homens nas ruas, estas são

antropomorfizadas quando apresentadas como

antropomorfizadoras. É o jogo entre fazer e ser

feito, um criar e ser criado. E é uma

característica também que coloca às ruas, este

espaço público por excelência nas grandes

cidades, no jogo dialético, como fundamental

para entender o homem e suas interações.

A sua “metáfora” sobre o caminho, as

estradas e as ruas, nos parece revelador de um

estilo de vida urbano, um mundo urbano

moderno marcado por novas formas de

sociabilidades, novas interações, sociações3,

novos mapas de orientação sociocultural

associados a modelos específicos de

individualidade (SIMMEL, 1979 e 1983b;

VELHO, 1995).

3Simmel (1983b, p. 166) define sociação por “a forma (realizada

de incontáveis maneiras diferentes) pela qual os indivíduos se

agrupam em unidades que satisfazem seus interesses.”

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111 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Assim, se lançar-se pelos caminhos –

principalmente os fazendo – tornou possíveis

os desbravamentos e a consolidação de uma

vida sedentária nos primórdios da

humanidade, as estradas passaram a interligar

os novos “isolamentos” (estes agora possíveis

pelo não nomadismo), os lugares, os

agrupamentos humanos.

E dos agrupamentos humanos às

cidades e nelas as vias internas de

comunicação: as ruas. O homem precisou

ganhar as ruas. E é esse o sentido do “desejo de

ir à rua”, é “partir para a vida”, é o “ganhar o

mundo” etc. É na rua que a “vida, a cidade

acontece”.

O homem, no desejo de ganhar a vida com mais abundância ou maior celebridade, precisava interessar à rua. Começou pois fazendo discursos em plena ágora, discursos que, desde os tempos mais remotos aos meetings contemporâneos da estátua de José Bonifácio, falam sempre de coisas altivas, generosas e nobres. Um belo dia, a rua proclamou a excelente verdade: que as palavras leve-as o vento [...] (RIO, 2007, p. 40)

As ruas, ao demarcarem fronteiras, ao

rotular pessoas e situações, ao servirem de

referência e serem loci de ação, são territórios.

E como tal, estão encharcadas de regras,

normas de uso e circulação, são apropriadas,

significadas, ocupadas – estão repletas de

demarcações, embebidas de poder, de

hierarquias. “Nela se fazem negócios, nela se

fala mal do próximo, nela mudam as idéias e

as convicções, nela surgem as dores e os

desgostos, nela sente o homem a maior

emoção.” (idem, p. 39)

Parece-nos importante ressaltar que

nesses escritos de João do Rio não aparecem as

relações sociais tradicionais implodidas pelas

mudanças nos modos de uso do espaço e nas

funções dos lugares dentro da cidade, com as

transformações radicais na morfologia urbana.

Não há um antes e um depois. O autor não

compara um passado marcado por antigas

relações, mas um conjunto de relações em

curso. O seu tempo não parece ser o da

transição. Dada a intensidade, testemunhada

na paisagem ainda hoje, das transformações na

capital federal de então, e sabendo-se que “os

ritmos da vida cotidiana se ligam à duração das

formas e de suas funções” (CARLOS, s.d, p.

209), podemos entender as proporções das

mudanças nas vidas das pessoas.

Pensando na cidade, estilo(s) de vida e

no “viver urbano”

Nos primórdios ou na idéia de uma

Sociologia urbana está o pensar articulado a

soluções. Ora, a cidade, o fenômeno urbano,

com o seu crescimento proporcionado pela

industrialização e desenvolvimento do

capitalismo, veio acompanhada de uma série

de problemas (sub-habitação, delinqüência,

marginalidade etc.), problemas que

demandavam soluções. Aquilo que era

nascente surge em atendimento a novas

necessidades, novas urgências. A ciência, ou

especialidade deste contexto surgida, tem sua

motivação ligada a essas demandas urgentes de

uma nova realidade: as grandes cidades. As

novidades, as suas manifestações, e,

principalmente, a tentativa de compreensão

para efetivas soluções, ajustes, incitavam e

recrutavam os pesquisadores, lançando-os à

descrição, comparação, interpretação e

elaboração de subsídios a intervenções4.

O pensamento sobre a cidade é antigo

e parece se confundir com a própria história

dessas aglomerações. “Pensar e sentir a cidade

fora muitas vezes uma tarefa dos poetas, dos

4 “O impacto e os efeitos da cidade moderna na vida da sociedade e dos indivíduos mobilizava, como se sabe, não só o

mundo acadêmico universitário, mas a intelligentsia em geral.”

(VELHO, 1995, p. 227)

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112 Márcio Nicory Costa Souza

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

cronistas e romancistas, dos teólogos, também

dos arquitetos e dos filósofos – mas neste

último caso sempre como um caminho para

compreender problemas humanos mais

gerais, para pensar os modelos ideais de

organização do mundo político, para impor

hierarquias sociais” (BARROS, 2007, p. 9).

Contudo, uma reflexão moderna sobre a cidade

como formas específicas de organização social

data do século XIX. Em especial com a

historiografia e a sociologia, muitos aspectos

urbanos foram descobertos e aninhados.

Assim, facilitando e/ou dificultando, a

pergunta permanece: o que é a cidade? No

esforço de responder a isso, as respostas

parecem iniciar-se com o seguinte arranjo

vocabular: “é como se...” As reticências, de

diferentes formas, são preenchidas por

metáforas e/ou imagens. Seja como recursos

descritivos-analíticos, as metáforas/imagens

dão a ver a multiplicidade do fenômeno urbano

e ao mesmo tempo recortam sua leitura.

De acordo com Barros (2007), o

pensamento do cientista moderno também

opera por modelos, frequentemente

espacializados. O autor sinaliza para a

importância e presença de recursos

metafóricos fabricados pelos cientistas sociais

conformadores de imagens sobre a cidade.

Para ele, essas imagens e metáforas “carregam

já dentro de si certas potencialidades e

limitações que devem ser manejadas com

vistas a determinadas finalidades, ou em

função da constituição de determinados

objetivos” (idem, p. 21). São as novas

abordagens, perspectivas, métodos etc. no

âmbito de cada disciplina que podem fazer

surgir uma nova imagem ou ressuscitar uma

antiga metáfora.

O surgimento e desenvolvimento das

grandes cidades pelo mundo todo, a partir do

final do século XVIII, está relacionado ao

desenvolvimento capitalista e à expansão

industrial. “A cidade tornou-se o locus, por

excelência, dessas mudanças, não como

receptáculo passivo, mas como produtora de

novas formas de sociabilidade e interação

social, de modo genérico” (VELHO, 1995, p.

228).

As metrópoles surgem e respondem ao

processo em curso ao longo dos séculos XIX e

XX, quais sejam a explosão demográfica, as

correntes migratórias e a intensificação da

divisão do trabalho, além de inúmeras

inovações tecnológicas e econômicas. De uma

forma ou de outra, a rapidez e magnitude

dessas mudanças trouxeram conseqüências

assistidas ainda hoje em todo o mundo. Seja a

melhoria na expectativa de vida e nas

condições médico-sanitárias, sejam as novas

regras do capitalismo emergente que destruiu

modos de vida, alterou antigas relações entre a

cidade e o campo, o modo de produção

hegemônico assumiu tentáculos de alcance

planetário. E, nesse processo, “as cidades,

sobretudo, por suas atividades comerciais e

industriais, constituíram-se nos pontos de

articulação dessa grande rede que passou a

conectar esferas diversificadas de vida social de

sociedades distantes, geográfica e

culturalmente, uma das outras” (idem, p. 229).

A criação, desde a expansão marítima

européia, de todo um sistema complexo de

trocas, ainda assim não provocou a total

homogeneização das sociedades, e sim

aproximou-as. Ora, o que isso quer dizer? O

capitalismo moderno está associado a intensas

e significativas mudanças em todas as

dimensões da vida social. Dizer que a expansão

capitalista não tem significado mera

homogeneização é assumir que, sociedades e

grupos sociais, em nível mundial, foram

extintos, outros expandiram e se fortaleceram.

O colapso e a emergência caminharam lado a

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113 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

lado da convivência entre o diferente e o

radicalmente antagônico. “Certamente foi uma

das maiores transformações na história da

humanidade, e é neste quadro que se

desenvolvem as metrópoles moderno-

contemporâneas” (idem, ibidem).

Assim, as grandes cidades podem ser

pensadas como cadinhos em que se fundem ou

se amalgamam diferentes domínios, nem

sobrepostos, nem alinhados, mas em múltiplos

planos e dimensões.

O estilo de vida urbano moderno-contemporâneo leva ao paroxismo os mecanismos universais de diferenciação, base da vida social. A interação intensa e permanente entre atores variados, circulando entre mundos e domínios, um espaço social e geograficamente delimitado, é um dos seus traços essenciais (idem, p. 230).

Ainda que as ruas de João do Rio

pareçam mais encantadoras que

desumanizadoras, como a experiência urbana

passou a ser pensada5, os seus escritos nos

levam à remissão de um processo ou momento.

Momento em que o aumento do número de

habitantes numa mesma espacialidade tende a

afetar as relações entre eles e suas relações

com os espaços. Como assinala Wirth (1979, p.

100): “o aumento do número de habitantes de

uma comunidade para mais de algumas

centenas obrigatoriamente limitará a

possibilidade de cada um dos membros da

comunidade conhecer pessoalmente todos os

outros”.

As novas conformações espaciais

“mexem”, reviram as antigas relações entre as

pessoas co-habitantes. Os novos ingressos,

migração, bem como o adensamento nos

núcleos citadinos pelas novas funções e

5 Conforme o recente trabalho de Normando Melo (2007): “Não

contavam com minha astúcia – ensaio sobre uma experiência de

cidade”.

equipamentos contribuem para mudanças nos

estilos de vida, nas formas de vida, nas redes

de relações ou nas formas de sociabilidades.

Os contatos da cidade podem na verdade ser face a face, mas são, não obstante, impessoais, superficiais, transitórios e segmentários. A reserva, a indiferença e o ar blasé que os habitantes da cidade manifestam em suas relações podem, pois, ser encarados como instrumentos para se imunizarem contra exigências pessoais e expectativas de outros. (WIRTH, 1979, p. 101)

No esquema postulado por Durkheim,

o anonimato, o superficialismo, a

impessoalidade são desdobramentos esperados

em sociedades complexas, constituídas e

organizadas com base em uma intensa e

especializada divisão do trabalho, uma

solidariedade orgânica geradora de inevitável e

necessária interdependência entre os

indivíduos. Em oposição, e num patamar

anterior, estariam as sociedades ditas

tradicionais, baseadas em uma restrita divisão

do trabalho, uma solidariedade mecânica que

possibilitava pela baixa densidade material,

isto é, baixo número de habitantes por área

ocupada, estreitas relações entre os indivíduos.

Ora, a partir desse esquema, podemos

entender que nos grandes centros, a divisão do

trabalho, geradora de maior especialização, de

funções, tarefas, dota os indivíduos de maior

liberdade, comparativamente ao maior e mais

abrangente controle das aldeias, vilarejos,

pequenas comunidades etc.

Dessa forma, na metáfora do cronista,

as ruas, marcantes e fundamentais nas cidades

que crescem e se desenvolvem, são – vistas

como protagonistas, coadjuvantes,

testemunhas, figurantes e palcos das ações

humanas –, nessa totalidade, expressão desse

indivíduo anônimo, que aparece pelos rótulos,

pelos brocardos e estigmas que lhes impingem

Page 117: Opará Revista vol. 2 julho/2014

114 Márcio Nicory Costa Souza

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

as ruas. Ora, se já não se pode conhecer todos,

conheça-se pelo menos de onde provém. Se as

relações já são estreitas e pouco intensas, vai

pela receita metonímica: conhece-se o todo e

generalizam-se as partes. Não que em

grupamentos tradicionais, digamos, em que se

conhecem mais as pessoas, os estigmas e os

estereótipos não orientem os contatos com as

pessoas. Mas, no meio urbano, aos olhos de

João do Rio, as excentricidades pessoais

tendem a desaparecer, dando lugar ao

“encanto” dos lugares.

Do lado subjetivo, conforme sugeriu Simmel, o contato físico estreito de numerosos indivíduos produz necessariamente a mudança nos meios através dos quais nos orientamos em relação ao meio urbano, especialmente em relação aos nossos concidadãos. (WIRTH, 1979, p. 103)

A maneira de se orientar nas cidades é

diferente. As relações são outras, os contatos

possuem um caráter de impessoalidade e

reserva, reina o desconhecido e não familiar.

Mas, diferente em relação ao quê? Sabemos

sobre as causas do que é tomado como

diferente, mas não conhecemos o estado, a

condição anterior, a um momento e situações

pretéritas que servem de comparação.

Com cada atravessar de rua, como o ritmo e a multiplicidade de vida econômica, ocupacional e social, a cidade faz um contraste profundo com a vida de cidade pequena e a vida rural no que se refere aos fundamentos sensoriais da vida psíquica. A metrópole extrai do homem, enquanto criatura que procede a discriminações, uma quantidade de consciência diferente que a vida rural extrai. (SIMMEL, 1979, p. 12)

Na descrição e caracterização do que é

ou seria um estilo de vida urbano (WIRTH),

um tipo metropolitano (SIMMEL), um modo

de vida típico de aglomerados urbanos, típicos

das cidades grandes, estes e outros autores –

no enxugamento e sobreposição de aspectos (a

partir de casos ou análise comparativa) –

fabricam imagens, esquemas, abstratos ou

concretos, sobre o fenômeno humano das

cidades. Como podemos depreender da ulterior

citação de Simmel, no seu esforço de pensar a

“vida psíquica” na metrópole, opera com uma

noção de homem, bem como com certas

imagens sobre “a vida rural” e sobre a “vida

metropolitana”. Assim, haveria uma diferença

na base psicológica no homem metropolitano e

no homem que vive em cidades pequenas, o

homem rural. Para Simmel, se na vida rural “o

ritmo de vida e do conjunto sensorial de

imagens mentais flui mais lentamente, de

modo mais habitual e mais uniforme” (1979,

p. 12); na metrópole, há uma “intensificação

dos estímulos nervosos, [o] que resulta da

alteração brusca e ininterrupta entre

estímulos exteriores e interiores” (idem,

ibidem). A metrópole, ainda para Simmel, cria

rápidas convergências de imagens,

descontinuidade na apreensão e inesperadas

impressões súbitas. Dessa forma, o estilo de

vida do típico metropolitano de Simmel

precisaria desenvolver “um órgão que o

[protegesse] das correntes e discrepâncias

ameaçadoras de sua ambientação externa, as

quais, do contrário, o desenraizariam” (idem,

ibidem).

Na teia dessa imagem do viver urbano,

encontramos, portanto, um certo “consenso

operacional”, isto é, uma espécie de conclusão

convergente: a vida nas cidades é

profundamente diferente daquela no campo. E

a sua transição igualmente impactante. A

experiência urbana, em especial nas grandes

cidades, traduz-se na formação de um outro

homem. São novos e inevitáveis espaços e

relações, novas expectativas e vínculos, novas

sociabilidades marcadas pela intensificação da

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115 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

divisão do trabalho, pela especialização. O

anonimato e a intensa especialização vêm

acompanhados de certa fragmentação da

experiência social. Isto é, se no mundo do

trabalho, o fracionamento da produção

intensifica o processo de alienação – já que é

inviável no mundo da sociedade urbana

industrial quaisquer tipos de identificação com

a produção, reconhecendo-se nele – soma-se a

isso a ampliação de horizontes e o trânsito

múltiplo por diversos mundos ou esferas: a

religiosa, da atividade política, etc. Nesse

sentido, a rigor, não haveria um estilo de vida

urbano, mas estilos de vida urbano

reproduzidos e recriados na experiência

individual ou do grupo. Há um

enfraquecimento da dimensão holista e

hierarquizante da sociedade e desenvolvimento

paralelo de individualismos (VELHO, 1995).

Esses autores operam com “este”

diferente. Operam analiticamente com o

“contraste profundo” entre certos hábitos e

condições psicológicas ulteriores e as novas

condições postas e exigidas nas grandes

cidades. Wirth (1979), ao pensar o “urbanismo

como modo de vida”, sinaliza, de certo, para a

tendência transbordante e avalanchadora do

modo de vida urbano. Encantado, talvez, com a

intensa urbanização que trouxe profundas

modificações nos Estados Unidos, Wirth pensa

a cidade como “o local característico do

urbano”, mas entende que o modo de vida

urbano transborda as cidades, vai além dos

limites das cidades. É por isso que Wirth

entendia urbanização não somente como o

processo de atração de pessoas para as cidades,

e sim como uma acentuação cumulativa de

várias características que distinguem um modo

de vida ligado às cidades. Wirth chega a falar

de uma espécie de encantamento pelas coisas

da cidade, como às coisas relativas ao

transporte e comunicação.

Divisão do trabalho, cidade e campo,

rural e urbano

A reflexão sobre estilos de vida

distintos, no campo e nas cidades, nos remete

ao que torna possível essa distinção. Distinção

esta que advém de uma separação originária

entre campo e cidade.

Quando se pensa qualquer sociedade humana que tenha atingido o estágio de civilização urbana – em que a produção e/ou a captura de um excedente alimentar permite a uma parte da população viver aglomerada, dedicando-se a outras atividades que não à produção de alimentos – a divisão entre urbe e campo aparece claramente aos olhos. (SINGER, 1973, p. 11)

O fragmento de Paul Singer fala da

separação, oposição, subordinação, inter-

relação entre os pares cidade e campo ou

urbano e rural. Se a divisão do trabalho6 – que

tornou possível as diferenciações entre áreas

mais ou menos aglomeradas, ou com

conformações físico-espaciais distintas –

aparece como fator desencadeador desses

âmbitos das agregações humanas sobre a

superfície terrestre, o trato conceitual e

operacional7 das categorias ou tipos cidade e

6 “As condições políticas e sociais que permitiram a divisão

sócio-espacial do trabalho, originando a contraposição entre o

rural e o urbano, existem há mais de 5500 anos, ou seja, desde a Antiguidade.” (ENDLICH, 2006, p. 11) 7 Ângela Endlich (2006) realiza um pequeno, mais abrangente,

inventário dos principais critérios para definição de rural e

urbano. Segundo esta autora, o rural e o urbano foram/são

pensados como: a) adjetivos territoriais, “declaram como urbanos os residentes em lugares com uma certa forma de

administração”; b) patamares demográficos, o rural é sinômino

de dispersão e o urbano como aglomeração, “o espaço rural nesse caso define-se por contraposição, de maneira residual”; c)

densidade demográfica, urbano e rural expresso em habitantes

por km²; d) ocupação econômica predominante da população, conforme a natureza das atividades desenvolvidas (setores

primário, secundário e terciário). Além do critério de

centralidade urbana. Todos são critérios limitados e com severas restrições ainda que combinados. A autora insiste na

necessidade, dada a pouca eficácia das definições, em analisar a

historicidade e contextualizar a realidade estudada ante as tentativas de classificações. Endlich (ibidem) preocupa-se em

recuperar e listar critérios classificatórios mais utilizados como

medidas ou indicadores. Ao contrário, Bernadelli (2006) –

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116 Márcio Nicory Costa Souza

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

campo, urbano e rural não parece ser

consensual.

Dessa forma, a capacidade de

produção de excedentes de víveres por parte de

alguns homens, tornou possível que outros

desempenhassem outras atividades, ao os

liberar. De acordo com a tradição marxista, a

separação entre cidade e o campo encontra

fundamento com as divisões do trabalho, a

biológica e a técnica. Dessas divisões desdobra-

se a separação entre trabalhos material e

intelectual. Assim, às cidades cabem as funções

administrativas, diretivas, as atividades

políticas, militares e de conhecimento.

Segundo Lefebvre (1969, p. 31-32 apud

ENDLICH, 2006, p. 11), possível reconhecer a

separação somente pela divisão do trabalho.

Por sua vez, Marx (1984), ao descrever a

economia urbana nas cidades européias da

Idade Moderna, pautando a análise no

desenvolvimento de um novo padrão de

exploração (substituindo o sistema estamental

pelo de classes), entende a divisão social do

trabalho, separando o campo das cidades,

como fundamental ao desenvolvimento das

cidades. A divisão social do trabalho aos

moldes capitalistas separa o trabalho material

do trabalho espiritual, o campo da cidade. Esse

novo sistema de exploração mercantiliza as

relações, delineia a constituição das classes

(burgueses e homens livres) e coloca nas

cidades –com o desenvolvimento das

manufaturas e a destruição e subordinação das

relações de servidão no campo – o locus onde

esses dois novos sujeitos sociais se encontram

partindo da noção de “a concepção do urbano extrapola a

própria cidade, consubstanciando-se na relação cidade-campo, tendo na divisão técnica, social e territorial do trabalho a sua

base (p. 33)” – elenca critérios geralmente listados nas tentativas

de definição de cidade. Por isso, acrescenta como critérios definitórios, a partir de Ângulo e Dominguez (1991) os aspectos

morfológicos, a saber as formas urbanas assumidas no processo

de produção, sua expressão material; bem como o modo de vida, as interelações urbanas e o caráter gerador de inovações (e

dispersor delas) das cidades.

e interagem. Daí, é inevitável pensar a oposição

entre cidade e campo e a subordinação deste

àquela como condição do desenvolvimento do

modo de produção capitalista. Ora, o espaço

urbano, mesmo que não tenha sido criado pelo

capitalismo, proporcionou o seu

desenvolvimento.

A intensidade do processo de

urbanização no capitalismo, as proporções

planetárias disso, interfere e acirra as reflexões

e imagens sobre as cidades e o urbano. Tal

como Wirth (1979) com a noção de “urbanismo

como modo de vida”, outros autores mais

recentes, nesses rastros e incitados por

questionamentos como “desaparecerá a cidade

e o planeta será todo umacolméia urbana?”

(novamente outra metáfora, agora ecológica)

ou “o processo de urbanização atingirá todo o

espaço geográfico?”, vão desenvolver outras

metáforas e imagens a partir de noções como a

civilização urbana (BEAUJEU-GARNIER apud

ENDLICH, 2006), rede urbana (Milton Santos)

ou sociedade urbana (LEFEBVRE, 2002).

No primeiro caso, a noção de

civilização urbana é pensada como algo que se

propaga das cidades, tal como pensava

Raymond Wirth, e não se limita a elas. E

civilização é pensada como costumes, hábitos,

como um estilo de vida. De qualquer sorte,

completa a reflexão a perspectiva de pensar o

urbano como não restrito a um território.

Nesse sentido, é preciso pensar a cidade e o

urbano8.

Endossa e complementa isso Santos

(1997) ao pensar que “o modo de vida urbano

estende-se até os limites geográficos

alcançados pelos interesses, ações e conteúdos

presentes nas cidades”. Sejam os

investimentos, seja o modo de vida,

8 “O urbano irradia-se a partir da cidade e atinge territorialmente os limites das influências dela. Desde que o urbano extrapole a

cidade, a tarefa de conceituação torna-se dupla” (ENDLICH,

2006, p. 20)

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117 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

historicamente, o urbano atinge e afeta o rural.

“Há predominância da mentalidade

econômica e domínio monetário, imposições

dos interesses urbanos”.

Para Lefebvre (1969 apud ENDLICH,

2006, p. 22), o urbano e o rural se referem a

diferentes condições de vida. O modo de vida

urbano, gerado pelo avanço do capitalismo no

campo (propriedade da terra e a produção

agrícola como negócios dos capitalistas

urbanos) e pela industrialização/urbanização

(crescimento territorial e populacional)

penetra no campo, comportando sistemas

urbanos de objetos e valores. Para o autor, em

paralelo ao processo de

industrialização/urbanização, ocorreu o que

denomina de implosão/explosão das cidades9.

Um certo racionalismo, que ignora o urbano,

produz separações e rompe com a essência do

urbano (a reunião) teria causado a morte da

cidade tradicional. Para Lefebvre, há uma crise

da vida camponesa tradicional, mas também

uma crise mundial da cidade tradicional.

Produzindo uma vida cotidiana pobre e cheia

de coação, “uma sociedade urbana está se

constituindo sobre as ruínas da cidade”.

Para ele, a urbanização tende a apagar

a distinção cidade-campo, mas, por conta da

maneira contraditória e abrupta como ocorre,

“admite” a permanência de ilhas de ruralidade.

“A relação urbanidade-ruralidade ao invés de

desaparecer, intensifica-se”.

A partir desse modelo, seria possível

distinguir o que se pode tomar por rural e

urbano. O primeiro seria a condição de vida

pretérita, que vem sendo superada material e

9 “A metáfora da implosão-explosão retrata esse processo, no

qual a cidade, em função da industrialização, concentra (pessoas,

atividades, riquezas, coisas, objetos, instrumentos, meios, idéias) e projeta fragmentos múltiplos e disjuntos (periferias, subúrbios,

residências secundaristas, satélites etc.). A cidade leva tudo para

ela e o explode numa dimensão nunca vista: junto à concentração urbana e ao êxodo rural se produz a extensão do

tecido urbano e a subordinação completa do agrário ao urbano.”

(SOBARZO, 2006, p. 59)

culturalmente, ainda que não seja total nem

uniforme10; o segundo seria a condição social

em que teoricamente é possível superar a

precariedade.

As transformações produzidas nas comunidades rurais no processo de urbanização são marcadas pela proposição ou imposição ao homem rústico, de certos traços de cultura material e não material. Impõe, por exemplo, novo ritmo de trabalho, novas relações ecológicas, certos bens manufaturados, racionalização do orçamento, abandono das crenças tradicionais, individualização do trabalho e, finalmente, passagem à vida urbana. (CÂNDIDO, 1971 Apud ENDLICH, 2006, p. 24, re-elaboração da autora)

Há, portanto, uma nova condição de

vida, a condição urbana. Condição esta que

poderia gerar uma nova sociedade, a sociedade

urbana. Ao pensar a transição, ou

transformações proporcionadas pelo acesso

aos objetos e valores urbanos, de uma maior

para uma menor precariedade, Lefebvre

reconhece que os benefícios não são para todos

– a superação real das vidas precárias ainda é

uma perspectiva. As contradições inerentes,

ainda que o capitalismo tenha criado as

condições para a superação das precariedades,

impedem que toda a sociedade possa

apropriar-se dos avanços alcançados. O urbano

existe e está marcado pela precariedade.

Diante de fenômenos novos, como o

adensamento das metrópoles, concentração

populacional, o novo rural etc., novas

elaborações são feitas no rastro de

compreender a possível dicotomia constituída

e consolidada com o modo de produção

hegemônico e todas as formas “sobreviventes”,

10 “Para Lefebvre, o urbano, a „sociedade urbana‟, é uma

virtualidade que carrega a constituição de uma sociedade planetária, uma totalidade que modifica e transforma a

agricultura e a indústria, mas que não faz com que elas

desapareçam.” (SOBARZO, 2006, p. 58)

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118 Márcio Nicory Costa Souza

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

“resistentes” ou reincorporadas pela tendência

homogeneizadora do capitalismo.

Possível mesmo, já que estamos longe

do consenso e que as definições restringem-se

a usos específicos. Como nos lembraBernadelli

(2006, p. 49): “os conceitos devem ser

pensados sempre em função do movimento,

da realidade, e que, portanto, não podem ser

entendidos de modo estático, pois o real é

prenhe de transformações que são operadas

em diferentes escalas e dimensões”.

Lembra-nos Bernadelli o quanto

complexa é a realidade, bem como é

importante na discussão sobre o urbano e o

rural, a preocupação em sempre se pautar no

contexto espacial e histórico. Interpretando

Lefebvre, essa autora resgata suas

contribuições quanto a necessidade de

compreender o urbano como síntese

cumulativa de todos os conteúdos (movimento

dialético). E, para tal, é preciso ter em mente

que é o conteúdo socioespacial que diferencia

os espaços rural e urbano11.

Outro recado é dado por Sobarzo

(2006):

Reconhecemos a importância ou a utilidade que as definições estatísticas ou funcionais podem ter como uma forma de aproximação rápida, geral e inicial de algum fato, mas acreditamos que elas não podem ser projetadas como formas hegemônicas e exclusivas de entendimento da realidade caracterizada pela sua complexidade. (p. 61)

Ainda que usados como sinônimos, ou

variações sobre um mesmo tema, cidade-

11Bernadelli (2006) recupera o que denominamos de dicas

metodológicas: não basta considerar, nos estudos urbanos, só a forma a função ou mesmo a estrutura isoladamente, nem a

sobreposição de uma as outras; é essencial evitar a descrição

pura e simples, dada a insuficiência para a compreensão do fenômeno ou pela possibilidade de esconder sob a aparência uma

ideologia. Nesse sentido, “a análise não pode reduzir os

fenômenos abordados a meros elementos ou fatores numéricos, quantitativos, estatísticos e, no limite, estáticos, perdendo-se a

noção de processo e de totalidade”. (LEFEBVRE, 1978, p. 104

apud BERNADELLI, 2006, p. 51)

campo e rural-urbano são equivocadamente

igualados. Como manifestações distintas do

viver humano, a cidade e o campo têm

experimentado alterações ao longo do tempo.

Assim, num primeiro momento a diferenciação

clara está na fundamental divisão do trabalho.

No período industrial, podemos observar a

“absorção” do campo pela cidade, seja como

loci das indústrias, atração populacional e de

matérias-primas, bem como a “explosão” da

cidade no campo, isto é, a extensão de um

estilo de vida urbano, do tecido urbano como

prefere Lefebvre. Nesse momento, assistimos a

invasão da tecnologia no campo, o modo de

vida e os símbolos e a intensificação das trocas

entre os dois espaços. (idem, ibidem) E, como

corolário, o entendimento do urbano

ultrapassa a cidade, ainda que esta seja parte

essencial da sua totalidade.

Com variações nas formas pelas

mudanças e incrementos nos conteúdos,

cidade e campo permanecem, as relações entre

eles se transformam. Nesse sentido, e isso

explica o equívoco em igualar cidade-campo e

rural-urbano12, a construção do urbano é

marcada pela superação da divisão originária.

Ora, uma sociedade urbana, como prefere

Lefebvre, assume dimensões planetárias, mas

não supõe o desaparecimento das atividades

agrícolas. Isso não quer dizer que o campo

deixe de existir, mas sim que ele está articulado

sobre outras particularidades com o conjunto

do território. Bem como, a expansão da

sociedade urbana, sua condição planetária, não

supõe a sua vivência em todos os lugares, mas

sim como tendência, caminho do processo de

reprodução do espaço, expresso em novas

12 “Numa analogia arriscada, poderíamos pensar no campo e no

rural. O campo poderia ser entendido como a base prático-sensível e o rural, a realidade social, mas logo nossa analogia

perde sentido porque o urbano não se restringe à parcela da

sociedade que mora na cidade.” (SOBARZO, 2006, p. 58)

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119 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

atividades, novas relações entre áreas, novos

conteúdos às antigas e recicladas formas.

Ditados ou expressões para a rua e a

casa: conciliações, fragmentação,

potencial de metamorfose e recriações

Se as metáforas13 são recursos de estilo

e expressam uma comparação implícita,

presentes no discurso científico, e, como se

sabe, muito mais antigas se fazem presentes

nos ditados e expressões populares. Deslocadas

ou realocadas, estas aparecem nas descrições

do cronista e reaparecem em outras leituras do

cotidiano.

O próprio João do Rio no texto aqui

citado por nós sugere isso ao assinalar uma

série de hábitos, expressões e brocardos,

verdadeiras adjetivações, qualitativos

generalizáveis e metonímicos de situações,

definições do senso comum. Por exemplo:

“Ponha-o no olho da rua! – bradou o pai ao

filho no auge da fúria” (RIO, 2007, p. 39). Há

uma demarcação expressa na separação entre a

casa, o lar, o privado, a proteção e a rua, o

público, o de ninguém, o de todos, o

incontrolável, o perigoso. “Ah! Menina, o filho

de d. Alice está perdido! Pois se até anda

sozinho na rua!” (idem, ibidem)

Na descrição do cotidiano e das

práticas estaria João do Rio descrevendo

aquilo que Da Matta (1997) chama

degramática social dos lugares. Isto é,

práticas e condutas apropriadas para a casa e

outras apropriadas para a rua. O cronista nos

descreve regras de convivência, sociabilidades.

E nestas, as maneiras de ser e sentir a vida

cotidiana. Assim, está na rua ou na casa, ou

13A metáfora é figura de linguagem. Gramaticalmente é definida

como: “Recurso do estilo em que se substitui a significação natural de uma palavra por outra que apresenta relação de

semelhança com ela (ex. a flor da idade)” (XIMENES, 2000, p.

624).

mesmo transitar de uma para outra, é operar

com um conjunto de expectativas

compartilhadas. Aprendemos e sabemos como

nos portar em cada um destes espaços,

sabemos que há coisas que podem ser feitas e

são esperadas, sem que causem mal-estar ou

comentários reprovativos.

Os citados exemplos da crônica de

João do Rio aparecem numa interpretação do

próprio Da Matta (1997, p. 54): “„vá para a

rua!‟ ou „vá para o olho da rua!‟ Estas

expressões denotam o rompimento violento

com um grupo social, com o conseqüente

isolamento do indivíduo, agora situando-se

diante do mundo „do olho da rua‟, isto é, de um

ponto de vista totalmente impessoal e

desumano”.

São ditados ou expressões, metáforas

populares, maneiras de falar e representar os

espaços e situações, enxugamentos

metonímicos, símbolos como “o olho da rua”,

“a sarjeta” ou “a rua da Amargura”, em que a

rua é contrastada com a casa, em que os

códigos próprios para cada um desses espaços

aparece e, como tal, reviva as fronteiras e

expectativas para cada um deles. E na

gramática normativa dos espaços, a casa é o

familiar, a proteção, a lealdade, a referência, a

pessoa; e a rua, é o de ninguém, o impessoal, o

perigoso, o incontrolável, o desprotegido, o

desamparado, o lugar cheio de tentações.

Nesse sentido, as duas “falas” retiradas da

crônica de João do Rio se aproximam nas

imagens sobre a rua.

Na compreensão da sociedade

relacional brasileira, Da Matta, no ensaio

“Espaço – casa, rua e outro mundo: o caso do

Brasil” (idem), ao tomar metaforicamente o

espaço como “o ar que se respira” (p. 29),

ilustrando com exemplos de orientação,

entende que “o espaço se confunde com a

própria ordem social”, de modo que não seria

Page 123: Opará Revista vol. 2 julho/2014

120 Márcio Nicory Costa Souza

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

possível interpretar o espaço, sua concepção,

sem o entendimento da sociedade e suas redes

de relações sociais e valores.

Assim, na eleição e afirmação de que

“casa” e “rua” são categorias sociológicas para

os brasileiros, o autor quer dizer que:

entre nós, estas palavras não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas, imagens esteticamente emolduradas e inspiradas” (idem, p. 15)

A casa e a rua são pares opostos e

complementares, delimitadores da identidade

do ser “brasileiro”. Como categorias, procuram

dar conta daquilo de como e do que uma

sociedade se pensa, instituindo seu código de

valores e idéias. E, portanto, seu sistema

classificatório e de ação.

Ainda neste ensaio, Roberto DaMatta

descreve o que denomina por nossa capacidade

de operar com os dois âmbitos, a casa e a rua,

de buscar as intermediações, de amenizar as

oposições, de tecer aproximações. “Somos

mestres das transições equilibradas e da

conciliação” (idem, p. 21). A sociedade

brasileira, para o autor, teria conseguido

sintetizar de modo singular o tradicional (a

casa e suas regras próprias) e o moderno (o

âmbito legal, do objetivo, do impessoal etc.).

No Brasil, mais que os opostos, um ou outro

elemento em predominância ou em processo

de ajuste/desenvolvimento, interessa a

conexão entre eles, os elos.

Para mim, é básico estudar aquele “&” que liga a casa-grande com a senzala e aquele suposto espaço vazio, terrível e medonho que relaciona dominantes e dominados. [...] o estilo brasileiro se define a partir de um “&”, um elo que

permite batizar duas entidades e que, simultaneamente, inventa seu próprio espaço. (idem, p. 25)

Nem tradicional, nem moderno. Os

dois? Talvez. A “solução” Damattiana se

aproxima da “coluna do meio”. No

entendimento da sociedade racional, no

cotidiano, as pessoas classificam e significam

as práticas em diálogo tenso entre os dois

domínios, a casa e a rua.

Se pensarmos na experiência urbana,

resgatada por Gilberto Velho (1995), como

uma experiência de fragmentação, vamos nos

rastros da crítica a uma visão de mundo

orientada por modelos evolucionistas

modernizantes, produtores de efeitos

homogeneizadores. Segundo este autor, estes

modelos se baseiam numa tendência linear à

racionalidade econômica, centrada na

existência de um indivíduo autônomo,

racional, que calcula e opera com fins de

maximização dos benefícios e vantagens. A

observação do cotidiano da nossa sociedade,

continua Velho (idem), contrasta com essa

visão: “particularmente, nas grandes cidades

onde, ao lado da notória desigualdade social,

geradora de tensão e conflitos, as diferenças de

interpretação e construção da realidade

estabelecem descontinuidades culturais que

repercutem em todo o sistema de relações

sociais”.

Apesar da força do impacto da,

genericamente, modernidade capitalista, as

transformações decorrentes interagem

inevitavelmente com diferentes tradições

culturais. Sobre isso Gilberto Velho (idem) fala

de “sincretismos, combinações e reinvenções

culturais”14. Os valores, as crenças, as práticas

não desaparecem diante da expansão de um

certo individualismo modernizante. Se

14 E referindo-se ao caso brasileiro, define como “potencial de

metamorfose” (VELHO, 1995, p. 236).

Page 124: Opará Revista vol. 2 julho/2014

121 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

pensarmos numa sociedade multidimensional

e heterogênea, como corolário, somos levados

a pensar em alternativas, novos domínios ou

até “colunas do meio”. Quase sempre produtos

de muita negociação, conflito e tensão, novos

domínios aparecem na pulverização de estilos

de vida urbano, na combinação de práticas,

reinvenções cotidianas.

Metáforas, reflexões, condição urbana,

metáforas

Seja pela via da literatura, seja pela via

da ciência, a cidade vem sendo objeto de

reflexão. Da descrição dos estilos de vida, das

morfologias, das intersecções com o campo,

dos esforços em entender as novas

configurações de vida, nas sociabilidades e nas

individualidades, as metáforas aparecem e

“enxugam” nas recorrências ou repetições, nas

regularidades, o viver urbano, do que se trata

essa experiência urbana.

A parte pelo todo, diz a receita

metonímica, isto é, eleger como recurso

estilístico, falado ou escrito, um aspecto e

generalizar ao todo. É uma forma de enxergar

na secção, o volume inteiro, de dar a ver na

parte a presença do todo, da totalidade. Assim

nos aparecem as ruas de João do Rio, como

síntese ou elemento do complexo urbano,

intencionalmente eleito para divagar sobre a

totalidade, ou pelo menos ter tido isto como

meta.

As ruas, das ruas ou nas ruas, a vida

urbana, nos tempos do cronista, acontece. As

ruas de João do Rio, almadas, são

encantadoras. Arrastam as pessoas, seduzem,

chamam a atenção, atraem os meninos etc.

Com um certo exagero, quase como novidades

aos olhares curiosos, elas representam a

espacialidade de novas interações e/ou

sociabilidades urbanas; e, como metáforas,

imagem do viver urbano. Como formas, as ruas

estão carregadas “de valor social; isto é, faz

[em] parte do quadro de referências da vida,

compondo a prática sócio-espacial.” (CARLOS,

s.d, p. 208).

A metáfora de João do Rio, mais que

meramente urbana, é uma metáfora humana.

Se o homem é o fim, as ruas são seus

caminhos. Se preferirmos, podemos pensar a

imagem-metáfora do cronista como uma

metonímia sobre a condição urbana e como tal,

da própria condição humana. Das ruas aos

homens e destes às ruas.

O entendimento do urbano e da sua

produção implica olhares por múltiplas

dimensões, e não somente a dimensão

econômica. Se estendermos a metáfora das

ruas à noção de espaço urbano, entendendo-o

como condição para reprodução do capital e da

própria vida humana, temos o espaço, tais

quais as ruas de João do Rio, como produto e

palco das ações humanas. A rua, o espaço, é

produzido, é trabalho materializado. Na

produção das condições de vida, a sociedade

produz o espaço geográfico e com ele modos de

vida, maneiras de pensar, sentir etc., todo um

conjunto de sociabilidades e outras sociações,

estilos de vida, hábitos. Nessa perspectiva,

“pensar o urbano significa pensar a dimensão

do humano” (CARLOS, 1994, p. 24)

No início do texto aparecem duas

frases, duas epígrafes. Na primeira, as ruas

aparecem pelos olhos de João do Rio, como

fatores da vida nas cidades. Como dissemos, as

ruas do cronista são encantadoras, seduzem,

atraem os meninos etc. Na segunda frase, as

ruas aparecem não mais como encantadoras,

mas esvaziadas. Desaparecem os usos, e junto

com eles os usadores. Às ruas não caberiam

mais os flaneries, os garotos, nem o uso

prolongado.

Page 125: Opará Revista vol. 2 julho/2014

122 Márcio Nicory Costa Souza

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

As ruas no contexto de transformações

urbanas intensas da metrópole moderna são

vigiadas, apitadas, fiscalizadas, temidas,

assustadoras. As crianças não fogem mais às

ruas, a ocupação das ruas nos grandes centros

não é mais a mesma, causam pavor, apreensão,

existem toques de recolher, as portas são

trancadas e à noite os hábitos se restringem ao

domicílio – se tornam somente não-lugares,

esgotam-se na função de passagem, de

transição. As mudanças nas formas urbanas

mexem nos ritmos da vida cotidiana, já que

estes “se ligam à duração das formas e de suas

funções, e estas à construção da identidade.”

(CARLOS, s.d, p. 209) Se mudam os ritmos,

mudam as relações, as sociabilidades. Os

tempos, ou temporalidades, são outros15. Nas

“novas” ruas configuram-se novas regras de

uso, novas demarcações, novos territórios.

Tempos diferentes, olhares e

conclusões sobre o que vêem igualmente

distintos. São metáforas e práticas observadas

em dois tempos. Encanto e esvaziamento,

respectivamente, definem as ruas aos olhos de

João do Rio e de Ana Fani Carlos.

Como dissemos no início, o caminho,

ou a tentativa, foi trilhado nos rastros de João

15 As novas sociabilidades nas/das ruas de hoje está talvez cada

vez mais distante do tipo puro, da sociação ideal, artificial, como pensava Simmel (1979 e 1983b). Ora, se já é criticável a noção

de sociabilidade postulada por Simmel enquanto ideal, no

resgate da verdadeira sociação, da reunião como um fim humano e bom, como forma pura de reciprocidade, essas formas parecem

estar cada vez mais distantes, inalcançáveis, como metas. E o

“jogo do faz de conta” (idem, 1983b, p. 173) – menos que a

mentira como a arte ou o jogo, no sentido de autonomização das

formas aos conteúdos – talvez, numa perspectiva do viver urbano como experiência, mais para um apanágio num processo

de desumanização nas grandes metrópoles. Encontramos em

Simmel, é possível, a possibilidade da crítica e a argumentação que endossa a crítica. Ora, “o jogo do faz de conta” aparece

como um subterfúgio, já que: “A vida moderna é sobrecarregada

pelos conteúdos objetivos e pelas exigências; e esquecendo todas essas sobrecargas diárias numa reunião social, imaginamo-nos

de volta à nossa existência natural-pessoal” (idem, ibidem).

Como se para esquecer e relaxar das pressões da vida urbana metropolitana, os encontros sociáveis, lúdicos são aliviadores,

paliativos. Interessante observar a aproximação dessa

perspectiva da sociologia formal de Simmel com a reflexão de Lefebvre sobre o conceito de sociedade urbana. A sociedade

urbana pressupõe uma transformação no cotidiano, que deve ser

apropriado pelo ser humano.

do Rio e na companhia de autores. Na medida

do possível, boas companhias, que, se

entendidas as dicas e orientações, nos

permitiram não traçar linhas definitivas, nem

“a” trilha certa, mas incitaram novas pistas,

fizeram ver os vestígios e os submeter aos

intermináveis, contudo delimitáveis,

inquéritos. Assim, pedindo licença a um dos

mestres, tomamos a liberdade de destacar-lhe

uma citação sobre a nossa relação e expectativa

com a vida metropolitana. Com a palavra,

Simmel:

A metrópole se revela como uma daquelas grandes formações históricas em que correntes opostas que encerram a vida se desdobram, bem como se juntam às outras igual direito. Entretanto, neste processo, as correntes da vida, quer seus fenômenos individuais nos toquem de forma simpática, quer de forma antipática, transcendem inteiramente a esfera para a qual é adequada a atitude de juiz. Uma vez que tais forças da vida se estenderam para o interior das raízes e para o cume do todo da vida histórica a que nós, em nossa efêmera existência, como uma célula, só pertencemos como uma parte, não nos cabe acusar ou perdoar, senão compreender. (1979, p. 25)

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Page 126: Opará Revista vol. 2 julho/2014

123 Nos rastros para pensar a cidade: de metáforas à reflexão sobre a condição urbana

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

doutorado apresentada ao Departamento de Antropologia da FFLCH/USP. CARLOS, Ana Fani A. Possibilidades e limites de uso. In:____. Espaço-tempo na metrópole: a fragmentação da vida cotidiana. São Paulo: Contexto, s.n. ____. A (re)produção do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 1994. DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil.5 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. ____. Individualidade e limiaridade: considerações sobre os ritos de passagem e a modernidade. Mana, v. 6, n. 1, 2000, p. 7-29. DAWSEY, John Cowart. “Cainda na cana” com Marilyn Monroe: tempo, espaço e “bóias-frias”. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 1997, v. 40, n. 1. ENDLICH, Ângela Maria. Perspectivas sobre o urbano e o rural. In: SPOSITO, Maria Encarnação B.; WHITACKER, Arthur Magon (Org.) Cidade e campo. São Paulo: Expressão popular, 2006. LEFEBVRE, Henry. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001. Tradução: Rubens E.Farias. MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política. Livro primeiro: o processo de produção do capital, volume II. 9. ed. São Paulo: Difel, 1984. Tradução de Reginaldo Sant’anna. MELO, Normando Jorge de A. “Não contavam com a minha astúcia” – ensaio sobre uma experiência de cidade. Recife, 2007. Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação em Antropologia da UFPE. MORAIS, Evaristo de Filho. Formalismo sociológico e a teoria do conflito (Introdução). In: SIMMEL, Georg. Georg Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. Coleção Grandes Cientistas Sociais, n. 34, organizada por Evaristo de Morais. NEVES, Delma Pessanha. Os miseráveis e a ocupação dos espaços públicos. Caderno CRH, Salvador, n. 30/31, p. 11-134, jan./dez. 1999. REZENDE, Cláudia Barcellos. Os limites da sociabilidade: “cariocas” e “nordestinos” na

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Page 127: Opará Revista vol. 2 julho/2014

MEMÓRIA, FÉ E MOVIMENTOS SOCIAIS EM

CANUDOS

Floriza Maria Sena Fernandes1 RESUMO O presente artigo faz uma breve análise do catolicismo popular vivenciado em Canudos, antes e após a experiência de Belo Monte, protagonizada por Antonio Conselheiro no século XIX, como também verifica a sobrevivência desse catolicismo mesmo depois das duas investidas do Exército para destruir a cidade. Tal fenômeno é observado a partir de depoimentos e observação das práticas sócio - culturais da população local, bem como através da metodologia utilizada pelas Comunidades Eclesiais de Base surgidas que em simbiose com a religiosidade popular gerou uma nova consciência da população em relação aos seus direitos, desencadeando na década de 80 uma serie de movimentos sociais na cidade. Palavras-chave: Movimentos Sociais. Comunidade Eclesial de Base.Catolicismo Popular.. ABSTRACT The present article brings a short analyses about popular Catholicism in Canudos, before and after Belo Monte’s experience, who protagonist was Antonio Conselheiro in Nineteenth Century, as well as this text verify the surviving of Catholicism even after the two arms attacks to destroy the city. This phenomenon is observed through depositions and social and cultural practice observations on that local population, and also among the methodology used by Eclesiais de Base Communities which in a symbiosis with the popular religiosity cause a new conscience of the populations about it rights, and it also make happened in the 80s years a series of social movements in that city. Key-words: Social Movements. Eclesial de Base Community. Popular Catholicism.

1 Bacharel em Ciências Sociais e Professora da Universidade do Estado da Bahia. Vice - Coordenadora do Centro de Pesquisa em

Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação OPARÁ/UNEB.

Page 128: Opará Revista vol. 2 julho/2014

125 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

1 CANUDOS: SEU TEMPO, SEU CHÃO,

SUA HISTÓRIA

Canudos ou Antiga Canudos, como se

refere o povo da região para falar do povoado

fundado em 1893 pelo beato Antônio

Conselheiro, foi palco da maior guerra civil já

vivida no Brasil nos últimos séculos, na visão

do historiador Marcos Antônio Villa(1995).

Motivados por uma profunda religiosidade e

liderados por Antonio Conselheiro, os

sertanejos conseguiram organizar numa

fazenda abandonada uma comunidade

igualitária que chamaram de Belo Monte.

Temendo aquele núcleo de poder que colidia

frontalmente com a estrutura social,

econômica e política do Estado e com os

interesses da classe dominante e da Igreja, em

05 de abril de 1897, o exército republicano

destruiu Belo Monte e seus moradores em uma

das batalhas mais vergonhosas da história do

Brasil.

Anos depois, com a teimosia própria

do catingueiro, que com bravura desafia a seca

e a morte, alguns remanescentes da guerra,

bem como outras pessoas de regiões vizinhas,

retornaram e reconstruíram o povoado, a

segunda Canudos, que na visão de Silva (1996)

se transformou no símbolo da minoria, no

símbolo dos “vencidos”.

Em 13 de março de 1967, o povoado

foi, pela segunda vez, destruído pelas águas do

Açude Cocorobó, construído pelo DNOCS2,

que se instalou na região com o propósito de

introduzir uma agricultura capitalista no

coração do semiárido e para apagar da

memória das pessoas não só a história de um

Estado assassino, como também a lembrança

2 Departamento Nacional de Obras Contra as Secas.

daquela experiência comunitária vivida em

Belo Monte. Para Silva (1996), as águas do

açude serviriam de tumba onde não apenas

repousariam os mártires da guerra, senão

também as casas, o cemitério, a escolinha, o

cruzeiro, grandes referências daqueles que

reconstruíram Canudos depois da guerra. Seus

moradores foram transferidos para o povoado

vizinho de Bendegó e Cocorobó, cujo açude

levou o nome.

Em 1985, Cocorobó/BA se

transformou em Nova Canudos, desmembrada

do município de Euclides da Cunha /BA pela

Lei 4.4053, de 25 de fevereiro deste mesmo

ano. Consta de uma extensão de 2.986 Km2.

Sua população no censo realizado pelo

Governo Federal em 1991 era de 13.786

habitantes, desse total 5.236 hab. moravam no

centro urbano e 8.550 hab. na área rural4. A

densidade demográfica é de 4,62 habitantes

por Km2. Percebe-se, em comparação ao censo

de 1980, um crescimento populacional de

5.077 habitantes, ou seja 58,29% numa década

marcada por períodos de estiagens.

Na pesquisa observamos a diferença

populacional entre moradores da área rural em

relação à área urbana, dado que se põe

extremamente em contraste com as estatísticas

nacionais, pois ainda no início da década de

90, o número da população rural no município

era de 62,02%, maior que o número da

população urbana, conforme dados

preliminares liberados pelo IBGE5, que

demonstra essa tendência da população rural

nos municípios brasileiros.

3 Lei 4.405 sancionada pelo governo do Estado da Bahia em 25

de fevereiro de 1985.

4 Censo realizado pelo IBGE em 1991.

5 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Page 129: Opará Revista vol. 2 julho/2014

126 Floriza Maria Sena Fernandes

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

Possivelmente, a explicação para esses

dados – crescimento populacional e uma maior

concentração no campo que na cidade – tão

contrários às estatísticas nacionais,

provavelmente ocorreu pela forma tradicional

de apropriação e uso da terra, conhecida como

fundo de pasto, outrossim, é conceituado

por Garcez (1987, p.38) como “o agrupamento

de pequenos produtores rurais organizados

comunitariamente para o exercício do

pastoreio extensivo em sistema de propriedade

aberta”. Devido ao tipo de clima - uma caatinga

semiárida, de solo pedregoso, vegetação

escassa e com períodos de longas estiagens,

apenas poucos hectares de terras podem ser

destinados à agricultura. A caatinga tem

vocação natural para a caprinocultura, pois

esta se mantém resistente às adversidades

climáticas próprias desse ambiente e, portanto,

se constitui a principal atividade econômica da

população rural de Canudos – BA. No fundo de

pasto, o gado é criado solto para que ande

livremente em busca de alimento. Os criadores

marcam suas cabras e ovelhas e deixam que

pastoreiem em grandes extensões de terras

com possibilidade de se movimentarem a

procura de água e folhagens. Tendo o caprino

como principal atividade econômica, o bovino

e o ovino aparecem como atividades

complementares, bem como uma lavoura de

subsistência realizada em pequenas áreas

individuais cercadas, próximas às casas de

morada de cada um dos membros da

comunidade, suficiente apenas – e às vezes

insuficiente – para assegurar a sobrevivência

do grupo familiar. É interessante se atentar

para o fenômeno de fundo de pasto

relacionado à densidade demográfica. Se por

um lado ele é inibidor do processo migratório,

porém requer pouca mão-de-obra para a

produção de caprinos e ovinos, o que indica

que o crescimento populacional está ligado à

reprodução da população ali fixada; por outro

lado, a densidade demográfica rural é muito

baixa se comparada aos municípios baianos de

Euclides da Cunha, Tucano e Jeremoabo, cuja

produção está mais voltada para a agricultura

exigente de abundante mão-de-obra.

A partir da década de 60, o governo

federal investiu em políticas econômicas

visando o desenvolvimento do país e a

expansão do capital nacional. Esta política

atingia fortemente a população rural do norte,

via projetos de colonização da Amazônia e do

Nordeste através dos outros planos de

desenvolvimento dos vales dos rios ali

existentes, conforme se verifica nos estudos de

Iann (1981) e Martins (1982). Observamos que

data dessa época a construção do Açude de

Cocorobó às margens do Rio Vaza Barris, sob a

responsabilidade do DNOCS. Os objetivos do

governo, no limite, foram atingidos, pois,

atraíram médios e grandes proprietários de

terras que se fixaram na região. Na prática, as

terras foram valorizadas e em contrapartida

gerou-se um sério problema social, devido às

formas de apropriação e uso das mesmas. O

empresário para ali se estabelecer expropriou a

população camponesa, isto é, as terras

disponíveis para a circulação dos rebanhos

foram cercadas, seus moradores expulsos e

seus rebanhos confinados a poucas áreas,

ainda não apropriadas pelos latifundiários

procedentes de Sergipe, Bahia e sudeste do

país. A concentração de terras nas mãos desses

latifundiários se acentuou, pois, além da

compra de terras por estes, muitos daqueles

que haviam saído para Salvador, Rio ou São

Paulo, retornaram para a região, pois além de

cuidar das suas propriedades se apropriaram

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127 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

de outras áreas sob a forma de compra ou de

apropriação de terras devolutas. Rolin (1987)

confirma a questão quando diz:

Os proprietários ou pretensos proprietários dos latifúndios abandonados ou de solicitantes de terras devolutas que requeriam uma posse ao estado e, ao demarcá-la e cercá-la, invadiam áreas de ocupação comunitária, determinando uma acentuada ocupação dos espaços antes utilizados como fundo de pasto e restringindo substancialmente a área de pastoreio.(p.46)

Delires Braun (1996), uma das

religiosas que atuou na ação pastoral de

Canudos ( 1994 a 1996), também falava sobre o

fato:

‘Os grandes fazendeiros da região não moram aqui, eles moram em Salvador, Feira de Santana, Aracaju. Chegam, compram uma pequena área e na hora de cercar não tem limites.’

Percebia-se até 19976, na região que

envolve o município de Canudos, a

coexistência tanto do sistema comunitário

desenvolvido pelo pequeno produtor na criação

de caprinos, como o latifúndio que crescia e

ameaçava esta forma tradicional de

apropriação e uso da terra.

Aproveitando as águas do açude, o

governo, através do DNOCS, introduziu uma

produção agrícola para o consumo externo e

uma acumulação de capital nas mãos de

multinacionais como a AGROCERES, que

comercializava as sementes selecionadas,

vendiam máquinas e adubos químicos. Ao

mesmo tempo inseriu no projeto de

colonização segmentos da população pobre que

foram transformados em colonos. Estes

agricultores envolvidos estavam sempre

endividados apesar de conseguirem bons

6 Data que foi realizada a pesquisa na região.

índices na produção. Criou-se uma cooperativa

para comercialização dos produtos, mas sem

caráter reivindicatório, entretanto até 1986 a

organização não era suficiente para animar os

colonos que sempre reclamavam da

descontinuidade do apoio dado pelo DNOCS

no início da implantação do projeto. Outro

fator importante na produção econômica do

município é a pesca nas águas do Açude.

Observamos nesse período um grande número

de famílias que viviam da pesca, tanto

consumindo o produto garantindo sua

alimentação, quanto comercializando o

excedente na feira-livre.

Na sede administrativa do município

estavam situadas as instituições públicas e um

pequeno centro comercial. Dado que a

emancipação política de Canudos é muito

recente, datando de 1985, prevaleceu por

muito tempo aquela administração feita por

meio de um chefe do povoado ou

administrador, que geralmente era alguém de

família tradicional, que tinha relevo especial

devido à posse de muitos hectares de terra e

ligado ao grupo que estava no poder político no

município sede, neste caso, Euclides da Cunha.

Com a emancipação política do município, o

povo começou a escolher por meio do voto

direto e secreto seus representantes para o

Poder Legislativo e para o Executivo. Ainda

assim não houve mudanças substanciais na

qualidade da representação, porque a

independência política não promoveu

nenhuma transformação na estrutura da

propriedade da terra. Os sertanejos

continuaram sem terra dependendo dos

favores dos proprietários para sobreviver,

continuaram agregados. Como diz uma

liderança da Igreja Católica da região “Os

coronéis se apropriaram da água, assistência à

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128 Floriza Maria Sena Fernandes

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

saúde, escola, terra, deixando o povo numa

completa dependência.” (MILAN, 1997). Tal

dependência colocava o sertanejo sob o

domínio da vontade dos fazendeiros e

lideranças políticas da região e vinha a se

tornar um grande capital político nas

contendas eleitorais. A grande massa de

empobrecidos era usada sob a forma do

clientelismo e assistencialismo para

manutenção da classe dominante no poder

político. A assistência à saúde era precária

havendo apenas uma maternidade de

propriedade do ex-prefeito, e médico,

transformando o direito à assistência à saúde

em um favor, cuja obrigação deve ser o voto a

quem prestou o serviço ou a um dos seus

aliados políticos. O sistema educacional era

deficiente, existindo apenas uma escola do

Ensino Médio que se destinava à formação

para o magistério. A mesma estava vinculada

ao Estado e foi construída na área

administrada pelo DNOCS. Outras escolas de

Ensino Fundamental estavam distribuídas pelo

município e área rural.

Como se pode verificar, Canudos,

apesar de suas especificidades, não difere de

muitos outros municípios situados no sertão

semiárido. O sertanejo vivendo inicialmente

sob o julgo dos coronéis tradicionais, veem as

relações sociais se modernizarem, porém

continuam dominados pelos filhos desses ou

seus prepostos, os médicos, engenheiros,

advogados e outros. O que vai marcar a

especificidade desse município é a história de

camponeses sem terras que se aglutinaram em

torno de Antônio Conselheiro e reagiram à

prepotência dos coronéis da região, exigindo o

acesso à terra. Fato que culminou em uma das

maiores guerras camponesas do século passado

(XIX), cuja extinção teve como resultante a

mobilização de vários destacamentos do

exército e a mortandade de aproximadamente

25 mil camponeses e soldados.

2 CATOLICISMO POPULAR: FÉ,

SIMBOLOGIA E RESISTÊNCIA NO

SERTÃO

Antes de ser criada a paróquia de

Santo Antônio de Pádua de Canudos, em 1987,

a freguesia de Cocorobó era atendida por dois

vigários distintos: o vigário de Jeremoabo/BA,

que atuou até 1973, e, a partir desta data, as

responsabilidades dos trabalhos religiosos

passaram para o vigário de Euclides da Cunha

/BA, como registra o livro de Tombo das

respectivas paróquias. As atividades dos dois

vigários reduziam-se a algumas visitas

obedecendo a um calendário fixo condicionado

pelas festas dos padroeiros dos povoados

maiores, tais como: Santo Antônio, dia 13 de

junho; Nossa Senhora do Rosário, 07 de

outubro; e, Nossa Senhora de Fátima, 13 de

maio. Outras visitas faziam parte de um serviço

religioso anual conhecido como "desobriga". O

vigário estabelecia algumas rotas na geografia

paroquial7 e ia pernoitando uma noite em cada

um dos povoados maiores. Nessas visitas,

seguiam um esquema mais ou menos

semelhante. Realizavam-se os sacramentos, as

visitas às famílias e aos doentes para conversas

individuais e aconselhamentos. Prevalecia

aquela visão da Igreja católica anterior ao

Vaticano II, segundo a qual cada instituição

tinha sua função na sociedade. A função da

Igreja era rezar para que tudo funcionasse

bem. Na prática o que se podia perceber é que

7Área que compreende os limites de atuação pastoral de um

vigário que nem sempre corresponde a divisão geográfica feita

pelo Estado.

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129 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

existia uma aliança: Igreja, Estado e classe

dominante, herança do padroado iniciado no

Brasil no período colonial. No entendimento de

Castro (1984), o padroado além de auxiliar o

colonizador a organizar a produção, foi

também responsável pela organização e

legitimação da estrutura social de dominação,

gerando o coronelismo, com suas práticas de

paternalismo, clientelismo e assistencialismo,

o que significa adentrar noutras dimensões.

Daí que se observa na assistência religiosa

deste período certo dualismo, pois o padre se

achava responsável pela dimensão

exclusivamente espiritual, contudo interferia

na dimensão social e política apesar de negar a

interferência nessas outras instâncias. Dona

Zefa (1987), membro das CEBs8, fala sobre

esse modelo de evangelização anterior à década

de 80 em Canudos/BA:

Naquele tempo era diferente a gente não lutava pela terra, não fazia cisterna em mutirão. Ave Maria de se falar em política na Igreja. O padre aqui até que ficava na casa da gente, mas nas roças vizinhas comia na

casa do fazendeiro.9

Além do catolicismo oficial ministrado

pela hierarquia da Igreja Católica Apostólica

Romana, havia uma outra prática religiosa que

já existia antes de Antonio Conselheiro, mais

especificamente voltada para o plano de

pastoral popular, esta prática está presente nas

expressões religiosas populares motivadas pela

festa, dor (morte) e ameaças climáticas.

Oliveira (1989, p.14) chama essas expressões

de Catolicismo Popular, porque "canalizam

8 Comunidades Eclesiais de Bases - Movimento religioso

surgido na Igreja católica na década de 60 motivado pela elaboração teórica Teologia da Libertação.

9 As entrevistas feitas com Dona Josefa foram utilizadas por diversas vezes por se tratar de uma das moradores e lideranças

religiosas mais antigas do município, vindo desde a 2ª

reconstrução de Canudos.

através de símbolos e das mediações que se

percebem como próprias da Igreja Católica

Romana". Segundo Otten (1990: 93), esta

forma de catolicismo veio para o Brasil trazido

por portugueses pobres. No país se expandiu

na zona rural onde vivia a massa camponesa e

recebeu elementos religiosos das culturas

indígenas e africanas, desenvolvendo tradições

próprias.

Para Otten (1990, p.96), “ na imagem

do santo encerra-se o mundo divino. Nela há

um pouco do céu. O lugar onde o santo está

vira santuário, pois do contrário se diz: casa

sem santo é estribaria".

Passados quatrocentos anos de seu

surgimento e convivência com a Igreja oficial,

o Catolicismo Popular vai sofrer represálias,

quando incorporam um elemento novo: o

protesto social, a exemplo da experiência

comunitária ocorrida em Canudos idealizada

por Antônio Conselheiro. A alternativa

encontrada pela Igreja foi implantar o

Catolicismo Romano iniciado no pontificado

de Pio IX (1846-1878). Na verdade, era mais

uma vez uma demonstração do apoio da Igreja

ao Estado e à classe dominante ameaçada. Fato

que ratifica a separação da convivência entre a

Religião oficial e a religiosidade popular. A

presença dos leigos como animadores do culto,

bem como a centralidade dos santos, era vista

pelo clero romanizado como "ignorância

religiosa" a ser combatida. Entendiam o

catolicismo popular como crendices,

superstições, fanatismo e imoralidade. Eram

práticas que teriam que ser substituídas pelo

"verdadeiro catolicismo". O Concílio Vaticano

I, na interpretação de Oliveira (1996), "oferece

bases para a implantação do catolicismo

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130 Floriza Maria Sena Fernandes

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

romano"10 porque substitui as devoções

tradicionais do povo, por outras adequadas ao

modelo romano.

Em Canudos, entretanto, pela pouca

presença do clero, o catolicismo popular

permaneceu vivo. Mesmo com o combate

violento da Igreja e do Estado, seus

remanescentes conseguiram manter muitos de

seus traços, embora conservando aquela idéia

de uma ordem cósmica-social estabelecida por

Deus e que os seres humanos não podem

mudar. Expressões religiosas que encaravam a

sociedade como uma reprodução terrena da

ordem celeste, concepção anterior à criação do

povoado de Belo Monte de Antônio

Conselheiro. Sem a presença do padre, o

sertanejo canudense desenvolvia seu

catolicismo trazendo para o espaço religioso os

acontecimentos vividos cotidianamente. Os

santos eram companheiros em todos os

momentos da vida: no trabalho, na família, nos

momentos de dor e festa. Dona Zefa (1997),

moradora antiga do período da reconstrução

de Canudos, após a primeira destruição e

desde aquele período animadora do culto, fala

com a convicção de quem viveu estes

momentos: “A Festa de Santo Antônio aqui é

uma tradição, que existia do tempo de Antônio

Conselheiro, Canudos foi destruída, mas Santo

Antônio ficou passou pra segunda Canudos,

onde eu morei, e agora veio pra Nova Canudos

e continua protegendo a gente.”

As lideranças leigas com

predominância das mulheres, rezadeiras,

10Os autores tomados como referência para o estudo da

romanização e catolicismo popular, foram: Pedro de Oliveira, com sua obra Religião e Dominação de Classe (1985) e

Religiões Populares (1996), Alexandre Otten com a obra Só

Deus é Grande e José Maria de Oliveira Silva em sua tese de doutorado: Rever Canudos: Historicidade e Religiosidade

Popular (1940-1995). São Paulo, FFLCH/USP, 1996

benzedeiras, catequistas, dirigiam o culto e as

rezas, catequizavam as crianças e

desempenhavam a função de ponte entre os

moradores e a liderança clerical. Segundo

Dona Zefa (Ibidem),

O padre marcava as missas e eu avisava o pessoal, porque lá em Canudos Velho eu já participava e estava por dentro de tudo. Quando o padre chegava, os que vinham celebrar como padre Francisco de Jeremoabo, depois padre Pedro de Euclides da Cunha se arranchavam na casa de meu padrinho, então todo mundo me procurava.

Os espaços privilegiados por aquelas

lideranças era o culto relacionado com festas e

oração, motivados pela presença da doença nas

pessoas e nos animais, ou do tempo climático

adverso à agricultura. Dona Dora (1987)

conhecia todo tipo de planta medicinal e hoje

na comunidade ela assume papel de liderança

na medicina alternativa desenvolvida pelas

CEBs. Ela fala de como desenvolvia seu

trabalho na arte de produzir chás e xaropes que

ajudariam às pessoas a se curar das doenças,

numa realidade social onde a presença de um

médico não passava de desejos daquela gente:

A gente fazia de tudo, médico não existia, só em sonho, eu dava assistência a todo mundo que precisava, daí eu rezava, recomendava meus chás, banhos, mas não era só isso não minha filha, a gente sabia que Deus é poderoso e a reza é o melhor remédio.

Existiam vários momentos de

expressão religiosa liderados por leigos,

optamos aqui por destacar dois desses por

considerarmos mais abrangentes. O primeiro é

a festa do Santo, e mais precisamente Santo

Antônio cuja imagem foi levada para Cocorobó

em 1967. A mudança das pessoas da segunda

Canudos para Cocorobó (posteriormente Nova

Canudos) não significou o fim dos festejos.

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Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

Pelo contrário, o que é nove dias de reza, se

transformou em Cocorobó em 13 dias de

homenagem àquele que era "companheiro

inseparável". Muito antes do início da trezena,

os responsáveis faziam os preparativos,

arrecadando donativos e visitando as famílias

convidando-as para as celebrações. Para isso

contavam com a ajuda dos pífanos e zabumbas

que entravam de casa em casa, tocando e

solicitando ajuda material. O primeiro dia da

festa era animado com alvorada de fogos de

artifícios, o zabumba e os pífanos tocando de

rua em rua alertando aos moradores sobre o

grande dia. Durante toda trezena, o processo

era o mesmo, estes músicos só paravam de

caminhar e tocar pelas ruas parte da tarde,

para o almoço e o descanso. No momento da

celebração a população reunia-se na casa do

noiteiro e se dirigiam à Igreja para tocar o sino

ao som do zabumba, dos pífanos e dos

foguetes. Depois daquele momento de êxtase,

parava-se com o barulho e já dentro do templo

as rezadeiras assumiam seu papel no culto,

cantando benditos e ladainhas religiosas

diversas em homenagem ao Santo, rezavam a

ladainha e o ofício. Quando terminava a

celebração, os fiéis faziam a entrega do ramo

na casa do responsável pela noite seguinte.

Essa entrega acontecia com uma procissão ao

som dos benditos entoados pelas rezadeiras e

com acompanhamento dos músicos. Quando

era feita a entrega do ramo, os que

acompanhavam a procissão entravam e se

fartavam com comidas e bebidas na casa do

noiteiro. Ao voltarem para frente da Igreja, era

realizado o leilão com objetos ou animais

doados, a fim de arrecadar recursos financeiros

para as despesas religiosas. Geralmente as

danças como Lundum, São Gonçalo do

Amarante e Reisados Alagoanos eram

realizadas no final da tarde. Neste culto, a

presença do padre era muito pouca, este só

participava nos dois últimos dias da festa para

celebrar casamentos, batizados e rezar a missa.

É interessante observar que a festa

representava um momento extraordinário de

integração da comunidade onde os

desencantos com a vida difícil cedem lugar à

fartura e alegria. Percebe-se que o culto aos

santos organizava-se através de animadores

leigos. Aos sacerdotes restava apenas o papel

de consagrar a hóstia e reavivar a fé e moral do

povo.

O segundo momento, que destacamos

como um acontecimento privilegiado que

propiciava a presença de lideranças religiosas

leigas em Canudos, era a Morte que, como a

festa, era transformada num momento

religioso, misterioso e gerador de

solidariedade. As lideranças religiosas se

faziam presentes em três momentos diferentes,

nas últimas horas do doente, no velório ou

sentinela e na visita à cova. Elas sabiam

acompanhar a família do doente, rezavam

diante dele, faziam recomendação da alma,

punham a vela nas mãos do moribundo e

quando este morria ajudavam na troca de

roupa, vestiam nele muitas vezes indumentária

típica dos frades, amarrando inclusive o cordão

de São Francisco. O corpo do falecido era

velado por uma noite na casa onde morava.

Durante horas, parentes, amigos e vizinhos

contavam casos da vida do morto, bebiam

cachaça ou café. O clima era de descontração.

A sentinela é feita com rezas das rezadeiras e

os amigos contando “causos” e piadas no

alpendre da casa. Depois da morte, dentro de

sete dias posteriores, as famílias orientadas

pelas rezadeiras fazem a visita à cova, todos

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132 Floriza Maria Sena Fernandes

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

chorando e vestidos de preto. Padre Tiago11,

vigário da paróquia de Canudos interpreta este

gesto como “uma forma que os sertanejos

expressam a fé na ressurreição e aparece

também como uma certa vingança contra a

morte”.

Sem dúvida nos períodos que

compreenderam os três momentos de

Canudos, o de Belo Monte de Antônio

Conselheiro, o Pós-Conselheiro e a Nova

Canudos, era o catolicismo popular que

predominava na prática religiosa da população.

Evidentemente que com a especificidade

exigida pelo momento histórico, mas com

aquelas características próprias de uma

religiosidade vivida e praticada pelo povo

simples. Uma religiosidade laica, intuitiva,

inclusive pela presença forte de mulheres,

alegres, com um profundo senso de Deus, que

para aquele povo era ao mesmo tempo

indulgente e severo. Dava-se muita

importância às imagens, às bênçãos, aos

lugares, as velas, a água benta e demais

símbolos religiosos. As promessas, os tríduos,

novenas, trezenas e procissões mostravam uma

grande capacidade de oração, de aceitação da

vida e, até mesmo, certo conformismo,

aderindo à Deus a culpa pela pobreza e pelos

problemas de ordem climática, como as secas

ou as tempestades. Como dizia Dona Tereza12,

"no dia de São José fazíamos procissões

pedindo chuva". Esse povo vive uma cultura

carregada de valores da fé cristã, faz uma

simbiose religião-cultura que dificilmente se

conseguiria separar. Deus é capaz de resolver

todos os problemas humanos, ao homem cabe

agradar a esse Deus.

11 Entrevista realizada com sacerdote da Paróquia em 1997. 12 Entrevista realizada em 1997 com dona Tereza, uma

liderança que coordenava as Comunidades Eclesiais de Base em

Canudos.

Essa fé e esse universo simbólico-

popular são características predominantes da

religiosidade vivida em Canudos, antes da

criação da paróquia em 1987, quando surgem

as Comunidades Eclesiais de Base e tentam

articular sua trajetória histórico-política,

reflexiva, que já vinha de uma longa

experiência no resto do país, com o universo

popular que traz uma cultura permeada pela

dimensão simbólica, afetiva, celebrativa, mas

também, conformista e legitimadora da

estrutura social de exploração e dominação

implantada no sertão da Bahia. Este foi um

grande desafio para as novas agentes das

CEBS: encontrarem uma solução dialética para

o encontro das duas concepções de prática

religiosa. Teriam que apresentar sua proposta

respeitando a experiência do catolicismo

popular praticado há séculos na região.

Religiosas vindas, quase todas, da região sul do

país, encontraram o desafio de se integrarem

nessa nova realidade geográfica e cultural

completamente distinta da sua e teriam que

enfrentar o encontro com o diferente, o choque

cultural. Seria desafiante conseguir apresentar

a perspectiva pastoral das CEBs,

complementando a vivência religiosa anterior

sem classificá-la num degrau de categoria

inferior.

3 FERMENTO NA MASSA: CEBs,

SANTOS, PROCISSÕES E

MOVIMENTOS SOCIAIS.

A Paróquia do município de Canudos

foi criada no dia 03 de fevereiro de 1987 e tem

como padroeiro Santo Antônio de Pádua. Foi

desmembrada da Paróquia de Nossa Senhora

da Conceição do município de Euclides da

Cunha/BA e o primeiro vigário, Santiago

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133 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

Milan, tomou posse em 20 de março de 1987,

como consta no livro de ata da secretaria

paroquial13, contou com a colaboração de três

religiosas que já se encontravam na região

desde 1986. Entre as inúmeras dificuldades

encontradas, o conhecimento da realidade era

a primeira delas, porque sem essa inserção na

vida social e política do povo, seria impossível

para os novos agentes atuarem conforme a

metodologia das CEB’s: conhecimento

científico e prático, reflexão e ação, inclusive,

porque as religiosas do sul do país, pouco ou

nada conheciam da vida no sertão nordestino.

Observa-se na metodologia utilizada

pelos agentes de pastoral – o intelectual

orgânico segundo a concepção gramsciana14 –

uma valorização do "saber do povo" que era

como uma marca, uma característica da

atuação da fração "progressista" da Igreja

naquele período, superando aquela concepção

que colocava o saber científico como único

saber autêntico. A ação pastoral de Canudos, a

partir de 1986, foi acompanhada da concepção

herdada de Paulo Freire (1979), na qual o

"conhecimento se processa através das relações

dialéticas:educandos-realidade. Era visível a

preocupação dos novos agentes em sintonizar-

se com realidade empírica da comunidade. Daí

a necessidade de uma convivência,

participação nas conversas, nas festas, nos

acontecimentos locais diversos. A Bíblia era o

centro da reflexão dos grupos. Relendo-a a

partir da ótica dos empobrecidos, comparando

13 Ereção canônica, nomeação e posse do vigário, registrado no

livro de Tombo da então Paróquia de Santo Antônio de Canudos.

14 Para Gramsci o “intelectual orgânico”, age como elemento integrador de um novo bloco histórico formado pelas classes subalternas que é chamada a suplantar a hegemonia burguesa, consolidando a unificação nacional italiana no interesse das massas trabalhadoras.

suas histórias com os fatos sócio-econômicos e

políticos da vida do sertanejo, surge deste livro

uma nova forma do agir religioso, a medida em

que fundamenta a utopia igualitária do povo

em todas as esferas de sua vida, inclusive na

Igreja. Para Josineide (1997), animadora dos

jovens e monitora de Educação Popular, os

momentos celebrativos foram muito

importantes no resgate da cultura sertaneja.

Ela diz:

Nos festejos a gente celebra dentro e fora da Igreja. Os mais novos e os velhos se juntam para dançar o Reisado e São Gonçalo, o pessoal se veste de boi, canta, toca a zabumba. A gente está recuperando nossa cultura.

Segundo o Padre Tiago (1997):

A receptividade ao trabalho das comunidades era bem mais intensa na população rural que urbana, onde existiam pequenos blocos de pessoas protegidas por algumas lideranças políticas segundo os moldes do coronelismo sertanejo. Esses blocos reagiam mais às mudanças e preferiam manter os privilégios que se faziam merecedores os seguidores deste ou daquele líder político.

O que se pode entender através do

depoimento do padre Tiago é que as mudanças

introduzidas pelas CEBs começavam a criar

uma força contestatória em relação à ordem

econômica, política e social ali existente. Daí a

rejeição dos dominantes locais e seus

apaziguados políticos. A descoberta da

consciência crítica e histórica por parte do

povo proporcionou em Canudos uma nova

prática pastoral. Martins (1984) afirma que

As CEBs invertem a prática religiosa tradicional ao refletir sobre a vida cotidiana à luz do Evangelho, ao examinar sua própria experiência diária, seus problemas diários, os reflexos dessa experiência e desses problemas na sua fé e na sua vida à luz da experiência evangélica.

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Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

Em nossas andanças, nas conversas

mantidas com os membros das CEBs e agentes

de pastoral, observamos quatro elementos

importantes na constituição desse projeto de

pastoral e nessa transformação da consciência.

Primeiro: baseados em conhecimentos

históricos e no processo de reflexão com a

população, os agentes pastorais, juntamente

com o povo, foram resgatando a história local.

Relacionando fatos do passado ao cotidiano,

entendiam ser este o processo formado de

elementos que davam consistência ao sujeito e

ao grupo, ao tempo em que o inseria em um

contexto mais amplo; o segundo elemento era

a Bíblia, lida e interpretada pelo grupo a partir

da realidade presente, como relatava Dona

Zefa; o terceiro elemento está ligado ao

analfabetismo. Para vencer esta dificuldade,

foi introduzida a experiência de Educação

Popular para alfabetização de adultos,

seguindo a metodologia proposta por Paulo

Freire. Vários monitores foram treinados para

adquirir um mínimo de capacitação e

embasamento dos elementos essenciais dessa

pedagogia. Essa experiência objetivava ajudar

aos adultos a valorizarem a própria cultura e a

adquirir uma nova consciência que os

tornassem agentes da própria história, ao

tempo que propiciou a muitos deles um

domínio elementar da leitura e da escrita.

Pretendia-se com a Educação Popular que

houvesse uma participação consciente das

pessoas no contexto social e político. D.

Etelvina (1997), 59 anos, membro da Educação

Popular numa comunidade rural, nos contava

com muitos gestos e alegria:

Sabe, minha filha, eu antes não sabia ler nem escrever. Hoje, além de aprender a ler e escrever alguma coisa, eu aprendi a pensar e pensando eu descobri que sabia

muita coisa, e mais eu agora sei que mentiram pra mim durante muito tempo.

A Experiência de Educação Popular

não só contribuiu para multiplicar e qualificar

as lideranças que já poderiam fazer os círculos

bíblicos, encontros e reuniões independentes

das religiosas, como também suscitou a

necessidade de buscar meios para garantir o

ensino da verdadeira história de Canudos nas

escolas gerenciadas pelo poder público. Foi

assim que munidos de abaixo-assinados e forte

presença no plenário da Câmara Municipal de

vereadores, conseguiram, na elaboração da Lei

Orgânica do Município, em 1988, que o

currículo escolar incorporasse o estudo da

história de Canudos, a defesa do Fundo de

Pasto e a preservação da fauna e da flora

característicos do sertão15. O quarto elemento

diz respeito à organização interna das

Comunidades e sua articulação com outras

CEBs em nível tanto local, quanto regional. As

CEBs, na área que compreende o município,

estavam distribuídas por comunidades rurais e

na cidade por grupos de ruas. Não tinham uma

coordenação ou diretoria, privilegiavam a

participação igualitária dos membros nas

decisões. Entretanto, existiam aqueles que

animavam a reunião, os que tocavam, os que

preparavam o local onde aconteceria o

encontro. Quando havia um retiro para

15 Lei Orgânica do Município é a Constituição Municipal

elaborada em 1988 pelas Câmaras de Vereadores em todos os municípios brasileiros. As conquistas às quais o texto se refere

encontram-se no Capítulo V nos respectivos artigos: 184 - o

sistema escolar, através das unidades escolares e do professorado afim à disciplina de história e OSPB, oferecerá aos educandos

condições para chegarem a uma compreensão objetiva do fato

histórico protagonizado por Antônio Conselheiro, bem como das causas reais que provocaram o dito fato e suas consequências no

que se refere à organização popular, resistência ativa e modelo

sócio-político-religioso do projeto Canudos. 185 - Por ser a Serra da Toca localizada nesta município, o habitat natural da arara

azul, espécie em extinção, o sistema de ensino local incluirá nos estudos sociais noções de ecologia e proteção da flora e fauna

nativa para que os educandos respeitem a natureza e valorizem a

harmonia entre o ser humano, a fauna e a flora.

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135 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

formação ou planejamento, seja a nível

paroquial ou diocesano (regional), o grupo

escolhia quem iria representá-lo. As

Comunidades aos poucos foram se

“independentizando” da presença do padre ou

das religiosas, porque não era a hierarquia que

decidia e sim o conjunto. A relação de poder

era praticada de forma verticalizada, de baixo

para cima. Esta metodologia despertou uma

nova consciência dos membros que irrequietos

começaram a buscar soluções para as

dificuldades que o contexto social lhes

proporcionava: o uso e posse da terra (fundo

de pasto), o direito à semente e insumos para

plantação (colonos do DNOCS), a

comercialização dos produtos (pescadores e

colonos do DNOCS), o direito à água

(construção de cacimbas), o acesso aos serviços

sociais, entre outros, propiciou a gestação de

uma nova forma de atuar na realidade

concreta.

Aquele coletivo humano de Canudos,

antes muito voltado para satisfazer

necessidades imediatas da sobrevivência, foi se

abrindo após um período de convivência nas

CEBs, para outro tipo de organização e

assumindo um discurso mais relacionado a

direitos sociais, políticos e econômicos,

despertando para a estruturação de

movimentos sociais de cunho mais político.

Surgem então, a partir de 1987, várias formas

de organização popular. Iniciam por fundar o

Sindicato dos Trabalhadores Rurais e adotou-

se inclusive uma cartilha com o intuito de

estudar as bases, o significado de um sindicato

e o processo de fundação. Percebendo que os

fazendeiros da região, juntamente com pessoas

ligadas a burocracia do DNOCS tinham a

intenção de organizar um sindicato pelego

antes deles, então as lideranças se adiantaram

convidando o presidente do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Heliópolis /BA,

também ligado às CEBs daquele município, e

fundaram, em 24 de janeiro deste mesmo ano,

o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de

Canudos16. Este atuaria na defesa dos direitos

dos trabalhadores rurais, na defesa da terra e

na luta pela reforma agrária.

Outra forma de organização gestada foi

a Associação de Pequenos Criadores para a

defesa da propriedade e uso coletivo da terra

através da experiência tradicional de Fundo de

Pasto que, para o sertanejo da região de

Canudos, é muito mais que garantir o

alimento. Trata-se de defender uma solução

regional, secularmente adotada para integrar

um segmento social ao sistema produtivo local,

em áreas menos férteis e impróprias para a

atividade agrícola. Seus associados

enfrentaram dois tipos de embates. Primeiro,

contra os fazendeiros e latifundiários que,

agraciados com as políticas

desenvolvimentistas agrediam os pequenos

criadores cercando áreas destinadas ao pasto,

limítrofes às terras adquiridas. Com o avanço

das cercas diminuíam-se as áreas de pastagens

livres, secularmente utilizadas pela população

pobre. Outra agressão foi a liberação do gado

nas pastagens abertas, consumindo parte do

alimento destinado ao pastoreio dos caprinos.

O segundo embate dos pequenos criadores

deu-se com grupos que aparecem na região

desenvolvendo atividades extrativas vegetais,

devastando ainda mais a caatinga. Rolim

(1987) apresenta alguns exemplos dessas

atividades:

A destruição da área verde decorre inclusive das atividades extrativas

16 Ata de fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de

Canudos.

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136 Floriza Maria Sena Fernandes

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

vegetais – a exemplo do corte de madeira para lenha, carvão, ou utilização em cercados – e a extração da casca de angico, rica em tanino, com mercado assegurado para o beneficiamento do couro, uma das atividades derivadas da pecuária regional. (p.37)

Adelson (1997), membro da diretoria

da Associação de Pequenos Criadores da

Região, fala sobre a importância da Associação.

As Associações de Pequenos Criadores representam a defesa de um sistema produtivo histórico. Defende o coletivismo como forma de organização social, reivindicando a posse coletiva da terra através da reforma agrária, solução que tem recebido a resistência de órgãos governamentais para a sua implantação. Hoje, são várias associações aqui em Canudos e já estamos integrados numa organização a nível regional. Tudo começou com trabalhos pequenos de Comunidades de Base e agora estamos organizados por grupos de trabalhadores (categorias específicas). Canudos deu um grande salto. Temos aqui não só os conflitos, a briga na justiça e a derrubada de cerca. Com outros companheiros, estudamos formas de convivência com a seca, construção de cacimbas, os períodos de chuva, mais o porquê da chuva e da seca, o tipo de solo e vegetação. Enfim, unimos a prática à teoria. Vem muito gente boa nos ajudar, como a CPT (Comissão Pastoral da Terra), do IRPAA (Instituto Regional da Pequena Agricultura Apropriada) e PALMA (Palavra Movimento Ação). Eles nos ajudam na organização, fornecem material e assessoram encontros de estudos, representantes das comunidades participam dos estudos e repassam para os companheiros.

A fala desse pequeno criador de

caprinos suscita duas questões que estão sendo

discutidas neste texto. Primeiro, a importância

que ele dá às Comunidades Eclesiais de Base

no incentivo à criação de formas de

organização popular por categorias específicas,

fato comum nas paróquias onde existem CEBs.

A segunda questão que ele levanta é a

necessidade que eles sentiam de unir o saber

popular e o saber científico. Teoria e prática.

Ele percebeu que embora o sistema produtivo

utilizado se constituísse em uma experiência

secular, a prática carecia de aportes teóricos.

Os técnicos que fazem parte do IRPAA17

ajudaram tanto no que diz respeito à

articulação das comunidades quanto

contribuíram para a compreensão científica

dos fenômenos naturais, proporcionando aos

criadores o conhecimento e utilização de novas

técnicas. E nesse contexto cabe, talvez, uma

questão levantada por Oliveira (1990):

O saber prático é sem dúvida, o mais importante, mas não é suficiente para elaboração de projetos em escala macro social. A contribuição do saber teórico trazido pelo técnico ou assessor é também indispensável quando a ação não se limita ao pequeno âmbito local, ou ao campo social que se conhece por familiaridade.

Enfim, um aspecto importante de

cunho sociológico, neste tipo de sistema

produtivo conhecido como fundo de pasto, é a

identidade coletiva do grupo. A proximidade

de seus membros que propicia um alto grau de

solidariedade e de organização comunitária e a

consciência de que para alcançar objetivos

comuns devem manter e assegurar suas bases

societárias.

No Açude de Cocorobó muitas famílias

vivem da pesca e, incentivados também pela

ação pastoral, fundaram em 1993, no povoado

do Barrentão, pertencente ao município de

Canudos, a Colônia de Pescadores, com a

finalidade de organizar a comercialização do

peixe e do camarão, e ao mesmo tempo, lutar

contra a poluição aquática, a pesca predatória e

17 Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada

organização não governamental sediada em Juazeiro – Bahia

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137 Catolicismo popular e movimentos sociais: fé, simbologia e resistência no sertão

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

tudo que prejudica o meio ambiente, como

narra seu estatuto no artigo terceiro, item “c”

aprovado na mesma data18.

Outro grupo que, a partir daquele

momento, descobre a importância de se

organizar como categoria específica, são as

mulheres, donas de casa, sertanejas que

trabalham a terra, cuidam da criação, educam

os filhos e realizam afazeres domésticos. Essas

mulheres perceberam na organização uma

possibilidade de sair do estado de miséria em

que viviam. Preocupadas com a manutenção

do movimento e com a situação econômica de

algumas companheiras, elas organizaram

teares artesanais para a produção de redes e

tapetes, confecção de roupas e ainda

participavam junto às CEB’s das lutas por elas

levantadas.

Scherer-Warren (1993) dá relevância

ao trabalho pastoral das CEBs no

desenvolvimento da organização das mulheres

enquanto categorias específicas:

No trabalho pastoral, a perspectiva da mulher aparece como parte da luta pela igualdade de direitos humanos, eliminando diferenças de gênero. As CEBs estimularam a criação de organizações específicas de mulheres, como clubes de mães, movimentos de mulheres camponesas.(p.44)

Em Canudos, foi criado também, desta

vez não como Associação, um grupo para

desenvolver a medicina alternativa com o

objetivo de realizar pesquisa de plantas

medicinais, produção de remédios, pomadas e

elaboração de cartilhas que recolhiam a

sabedoria popular com relação ao valor

18Art. 3.- A Colônia de Pescadores tem como finalidade:.. c) lutra pelo meio ambiente equilibrado, contra todas as formas de

poluição, especialmente a poluição aquática, contra a pesca

predatória e contra tudo que prejudica o Meio Ambiente. Estatuto da Colônia de Pescadores do Barentão fundada em

1993.

curativo das plantas. Dona Júlia (1997), mais

conhecida por Duru, nos relata sua

experiência:

Tudo começou com a ajuda da irmã Verônica, ela já era enfermeira, eu também desde nova que mexia com saúde, fazia meus chás, e receitava pra o povo. Agora, depois das CEBs, comecei a fazer cursos em Salvador, Tucano e Paulo Afonso. Criamos a Pastoral da Saúde e começamos a produzir remédios caseiros, xaropes, pomadas, essência de ervas, Temos uma farmácia, vendemos pouco porque o pessoal só quer de graça. A Associação de Mulheres Pobres vende muito. Sai mais remédios pra gripe e dores. Fizemos umas cartilhas junto com o pessoas de Uauá e agora muita gente já sabe fazer os remédios. Também compramos um tensiômetro e o pessoal vem em casa pra gente medir a pressão e ensinamos com cursos ao pessoal fazer comida aproveitando as cascas de verduras e frutas. É bom pra saúde.

4 CONCLUSAO: PONTO ALTO DA

FUSÃO ENTRE CATOLICISMO

POPULAR E CEBs – AS ROMARIAS

Enfim, o ponto alto da Ação Pastoral

das CEB’s em Canudos são as romarias, talvez

o símbolo mais importante da mística do

sertanejo canudense, que deu uma visibilidade

maior à união entre fé e política e as lutas pela

posse da terra, pois extrapolaram o espaço

local atingindo outros municípios e estados,

instituições nacionais e internacionais,

envolvendo grupos e concepções distintas a

respeito de Canudos, enquanto resgatavam

aspectos próprios da religiosidade sertaneja: a

peregrinação e o simbólico. As Romarias de

Canudos uniam e unem elementos próprios do

catolicismo popular, como a peregrinação feita

com orações e cantos, inserindo reflexões em

torno de temas relacionados aos

acontecimentos sociais, políticos e a luta pela

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Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.

conquista da terra. Fazem uma conexão entre

fé e a ação pela justiça e libertação dos

oprimidos, rompendo aquela bipolaridade

existente no catolicismo tradicional entre

mística cristã e práxis política. Articulam a fé

com várias formas de resistências

desenvolvidas no sertão. Procuram, portanto,

recuperar a experiência mística e resgatar

símbolos que refletem a espiritualidade do

sertanejo.

Embora o pensamento que permeia o

catolicismo popular seja uma reprodução

terrena da ordem celeste, legitimando o

sistema de dominação coronelístico, houve

momentos que este catolicismo inspirou

movimentos sociais de protesto contra a

opressão econômica e social, como é o caso das

experiências de Canudos, Contestado,

Caldeirão, entre outros. Esta visão religiosa

por eles engendradas, parecem ter sido

experiências históricas em que as CEB’s de

Canudos se basearam para organizar os seus

trabalhos. Tentaram na ação pastoral uma

complementaridade com o catolicismo

popular, valorizando a devoção a Santo

Antônio, às procissões e outras manifestações

religiosas típicas, bem como o incentivo e

apoio às lideranças leigas. De outro lado, as

CEBs contribuíram com a religiosidade local

no sentido de não deixar o catolicismo popular

ali vivenciado intocado e, através de uma

metodologia reflexão-ação, ajudaram os fiéis a

descobrirem tanto os elementos libertadores

quanto os elementos alienantes desse

catolicismo, procurando conservar e vitalizar

os primeiros, dando a esta expressão religiosa

uma nova concepção de mundo, de Deus e da

história.

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CONTRIBUIÇÃO HISTÓRICA PARA A

REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA CATEGORIA

DOS VENDEDORES AMBULANTES PELA

POPULAÇÃO DE SALVADOR

Pablo Mateus dos Santos Jacinto

Carla Liane Nascimento dos Santos

Apoio:

*Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia

*Universidade do Estado da Bahia

Autores atuantes na Universidade do Estado da Bahia

RESUMO Desde o período colonial do Brasil havia sinais da constituição de uma profissão dependente das ruas. Como consequência do modelo escravista, esta nova categoria formou-se carregando alguns estigmas já pertencentes à classe escrava e incorporando novos outros, oriundos da sua participação secundária na economia. Transformações econômicas e políticas na sociedade criaram excedentes de mão de obra desqualificada para trabalhos formais, favorecendo assim a expansão do comércio ambulante. Apesar desta expansão, ocorre um movimento de repulsa social para com estes profissionais que são acusados pelo Estado e por outras camadas a enfraquecerem a malha social, devido ao seu serviço irregular e, por conseguinte, ilegal. Espera-se, neste artigo, ponderar estes fatores, demonstrando como se desenvolveu a categoria dos vendedores ambulantes e como esta se configura nos dias atuais. Palavras-chave: Comércio Ambulante. Desqualificação Social. Trabalho. ABSTRACT Since the Brazilian colonial period there are signs of the formation of a profession dependent on the streets. As a result of the slave model, this new category was formed carrying some stigmas belonging to the slaves and others, due to their low participation in the economy. Economic and political changes in society have created excess of manpower disqualified from formal work, favoring the expansion of street trading. Despite the expansion, there is a movement of social rejection to these professionals who are accused by the state and other social layers to weaken the social stability due to their irregular, and therefore illegal, service. It is expected in this article, considering these factors, showing how the category of street vendors was developed and how it is configured today. Keywords: Itinerant Trade. Social Disqualification. Labor.

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141 Contribuição histórica para a representação social da categoria

dos vendedores ambulantes pela população de Salvador

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é pormenorizar

histórica e sociologicamente a categoria dos

vendedores ambulantes – com o enfoque na

Bahia – expondo fatos econômicos e políticos

ocorridos neste percurso e que afetaram direta

ou indiretamente a realidade da mão de obra

livre neste país. Pretende-se com isto melhor

compreender esta classe na atualidade, que

cada vez mais agrega trabalhadores de diversas

áreas e que vive com o estigma da

desqualificação social por parte do governo e

população em geral.

Foi levantado – no acervo da Biblioteca

Pública do Estado da Bahia –um banco de

dados com reportagens sobre a categoria dos

vendedores ambulantes contidas nos principais

jornais da Bahia e que foram publicados em

um período que vai do ano de 1939 até o ano

de 2009. Estas reportagens contêm entrevistas

feitas com a população e que serão expostas a

fim de demonstrar a representação que os

populares sustentam a respeito dos vendedores

ambulantes e como esta representação foi

modificada – ou não – através do percurso

histórico registrado pela mídia.

Um apêndice do modelo escravista

Por volta do século XIX, a cidade de

Salvador tinha um caráter econômico baseado

na agricultura, sendo seu mercado pouco

proeminente. A atividade comercial existente

era regida por negros e mulatos, que se

encarregavam de carregar materiais pela

cidade e fazer outros serviços pesados da

estrutura mercantil.

Neste seio, o comércio de pescados já

demonstrava vestígios do que se tornaria, mais

tarde, a realidade do comércio ambulante. Os

produtos de pesca eram vendidos por

negros,escravos ou não, que deveriam

obedecer a regras específicas, aplicadas pela

administração pública, para a comercialização.

Ao término das vendas, caso o negro

comerciante não fosse alforriado, o lucro iria

aos senhores. Os comerciantes que eram livres,

por sua vez, constantemente tinham seus

produtos confiscados pelo fisco (representante

da lei nesta instância) que alegavam

irregularidades nos produtos. (IVO, 1975)

Nota-se, neste contexto, que não havia

muita distinção, no âmbito do trabalho, entre

os escravos e os trabalhadores livres que

exerciam funções semelhantes nas vias

urbanas. Homens livres e escravos ofereciam

igualmente sua força de trabalho, negociavam

contratos e eram remunerados da mesma

maneira. (MATTOSO, 2000)

Os trabalhadores das ruas comumente

reuniam-se em locais específicos, esquinas,

“cantos”, que eram peculiares e sugeriam uma

ideia de lugar, um pertencimento simbólico

àqueles trabalhadores. Estes “cantos” eram

delimitados pela polícia e abrigavam

ganhadores e ganhadeiras (pessoas que

trabalhavam nas ruas, seja como marceneiros,

engraxates, pedreiros, quituteiras,

carregadores) libertos, que lá se

disponibilizavam para exercer suas funções.

Frente a esta situação, o poder público

viu a necessidade de implantar algumas

medidas de controle e fiscalização. Então se

institui o tributo de dois mil réis como

necessário a ser pagoà Câmara Municipal por

cada ganhador que quisesse exercer suas

atividades. Além deste pagamento, era

necessária a aquisição de uma placa (no valor

de três mil réis) que deveria ser usada no

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142 Pablo Mateus dos Santos Jacinto e Carla Liane Nascimento dos Santos

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

pescoço pelos trabalhadores durante o serviço.

Além destas exigências, os ganhadores que

fossem escravos libertos deveriam apresentar

fiadores que se responsabilizassem pelo seu

comportamento. Durães (2006) pontua que

em 1887 havia cerca de 1703 ganhadores

registrados, com a ressalva de que as mulheres

não eram registradas, logo o real número era

provavelmente bem maior.

Em certo marco, tais exigências

serviram de combustível para o

descontentamento dos trabalhadores, que em

1857 cruzaram os braços como forma de

contestar a administração pública. Era a

“Greve Negra” de 1857. Esta demonstração de

revolta antecipa fenômenos que ocorreriam

mais tarde quando, já no século XX, explodem

as confusões e contestações a cada tentativa do

governo de padronizar e/ou fiscalizar os

profissionais informais, como mostra uma

reportagem do Jornal A Tarde de 2004:

“Chegada de agentes da Sesp ao calçadão da Avenida Sete, no Centro, termina em revolta e pneu queimado. Mais uma vez, os ambulantes reagem à presença dos fiscais da Secretaria de Serviços Públicos, mais conhecidos como rapas, e desencadeiam uma manifestação no Centro de Salvador. Ontem, o alvo foram os que estavam instalados no calçadão que liga a Avenida Sete de Setembro à Praça do Relógio de São Pedro. Revoltados, eles interditaram a pista, nos dois sentidos, queimando pneus e papelões. [...] A maioria dos manifestantes, segundo depoimentos de pessoas que assistiram ao ato, era formada por mulheres e crianças. Todos vítimas das ações da fiscalização, tidas como truculentas.” (A TARDE, 19 de Junho de 2004)

Este descontentamento mostrava-se

por parte dos trabalhadores ambulantes para

com o poder político, que no século XIX era

composto essencialmente por uma elite

branca. Ivo (2008) argumenta que o modelo

oligárquico rural que perdurava naquela época

associava uma ideia de demérito aos não

proprietários. Assim, os “homens-livres” que

não tinham posses eram supostamente

incapazes para o trabalho, sendo considerados

vadios, ociosos, vagabundos. Outro fator que

fortalecia este conceito é a não aceitação por

parte dos homens livres (sejam eles negros

alforriados, mestiços ou imigrantes) às

mesmas condições de trabalho que eram

demandadas aos escravos.

Para Barbosa (2008), a falta de

mecanismos legais reguladores e de códigos

morais internalizados transformavam a ilusão

da liberdade, por parte da massa de

trabalhadores informais livres, em proposta de

sujeição absoluta. O vendedor ambulante não

estava associado à produção mercantil, sendo

considerado dispensável às bases econômicas.

Tal processo demonstra grande grau de

desqualificação social, que ilustra um paradoxo

do trabalho na economia colonial, onde o

escravo protagonizava a base da economia,

enquanto o trabalhador “livre” representava

um não agente econômico.

Diante destas intempéries, os

vendedores ambulantes precisavam se mostrar

criativos, de forma a conseguir desenvolver seu

sustento apesar do não reconhecimento da

sociedade, que os julgam à margem econômica,

política e moral, sendo muitas vezes associados

à criminalidade. Tal concepção pode ser

constatada neste trecho de uma reportagem do

Jornal A Tarde, no ano de 2004:

“„Perdemos segurança e clientes, caiu de uma média de 500 por dia para 300‟, conta o proprietário de uma farmácia que não quis se identificar por medo de represálias dos camelôs clandestinos. Segundo ele, a maioria dos clientes da farmácia são pessoas idosas que estão

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143 Contribuição histórica para a representação social da categoria

dos vendedores ambulantes pela população de Salvador

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

deixando de entrar na loja, ou por escorregarem nas frutas que ficam esmagadas pelo chão, ou por causa dos empurrões e pequenos furtos. „Se você quiser passar, vai ser assaltado‟, diz. „Eles colocam suas tendas na porta do estabelecimento e se recusam a sair argumentando que a rua é pública. É muito difícil a situação dos lojistas disputando espaço com pessoas agressivas que não têm nada a perder e se sentem os donos da rua. As barracas aumentam a cada dia e estão no meio da ladeira de forma totalmente desordenada‟, reclama outra proprietária de farmácia que também não quis se identificar.” (JORNAL A TARDE, 16 de Setembro de 2004)

Durante o século XIX, foram

frequentes as lutas por espaço, por parte dos

trabalhadores informais. Estes trabalhadores

ganhavam e perdiam cantos pela cidade de

Salvador. Quando não disputavam com a

administração pública, disputavam entre si por

um lugar nestes pontos, para que pudessem

expor seus produtos ou sua força de trabalho.

Vale ressaltar que os cantos se

caracterizam por diversos fatores, dentre eles,

o fácil acesso e a passagem constante de

pessoas. São em ambientes com grande fluxo

que os ambulantes irão se instalar,

conquistando assim maior visibilidade e

facilidade de comercialização. Nota-se, em

períodos mais recentes, que a administração

pública fez tentativas de estruturar áreas

específicas para os trabalhadores ambulantes.

Tentativas que foram frustradas, por estes

ambientes não atenderem aos requisitos de

público, que é essencial ao trabalho informal,

sendo localizados em pontos pouco

movimentados ou mal distribuídos.Esta

reportagem do Correio da Bahia ilustra uma

destas ocorrências:

“Ambulantes resistem a deixar áreas do centro. Os ambulantes estão

indignados com mais uma ação dos fiscais da Secretaria Municipal de Serviços Públicos (Sesp) que aconteceu esta manhã em frente ao Shopping Center Lapa e nas ruas Coqueiro da Piedade e Junqueira Aires, nos Barris. Desta vez, os „rapas‟, como são chamados os fiscais, entregaram notificações para que os ambulantes deixassem o local. [...] Os 20 ambulantes que ficam no local e os outros 20 da Junqueira Aires vendem desde água e sombrinhas, até acessórios para celular e óculos. A predileção por esses pontos se deve ao grande fluxo de pessoas que transitam pela área. [...] „Aqui a gente conhece o movimento, a clientela, já sabemos os horários bons e os ruins, já estou há três anos neste ponto‟, acrescentou Santana, que, por ser morador de Nazaré, ainda conta com a vantagem de não gastar com transporte para ir ao trabalho. „Vou a pé ou de bike‟, diz. O colega de ofício, José Alberto Barbosa, 27 anos, conta que o ponto oferecido pela Sesp [...] não agradou aos ambulantes, porque as vendas cairão. „Não passa ninguém ali. Como podemos aceitar uma proposta como essa?‟” (CORREIO DA BAHIA, 05 de Maio de 2006)

A Abolição da Escravatura (1888) e a

Proclamação da República (1889) foram

marcos institucionais na sociedade brasileira.

Estes fatos, aliados à crise da agricultura vivida

naquele momento, contribuíram para que, no

final do século XIX, o contingente de

trabalhadores livres crescesse no país.

A expansão do comércio informal na

nova realidade econômica

Alguns anos mais tarde, na década de

1930, governo de Vargas, houve um aumento

na regulamentação do trabalho, com a

Consolidação das Leis Trabalhistas.

Entretanto, grande parte da população ficou de

fora desta regulamentação; eram profissionais

do pequeno comércio que trabalhavam no

meio urbano em atividades de “subocupação”

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144 Pablo Mateus dos Santos Jacinto e Carla Liane Nascimento dos Santos

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

(que veio a se tornar o setor informal da

economia). (IVO, 2008)

A nova realidade econômica,

protagonizada pela revolução industrial,

favoreceu que atividades que não se

encaixassem nos moldes capitalistas vigentes

perdessem força, a exemplo do artesanato – já

que, nesta lógica, o sujeito não é mais detentor

do seu meio de produção e torna-se reificado,

tendo como moeda de troca apenas a si

próprio, seu tempo, sua força de trabalho. Este

contingente que não se adequava ao novo

modelo gerou um excedente de trabalhadores

que não eram absorvidos pelo sistema e

acabavam se inserindo na modalidade informal

de emprego.

Em se tratando do comércio

ambulante em Salvador, na década de 1930,

esta atividade já era corriqueira no espaço

urbano. No ano de 1939, a imprensa local

registrou uma proposta do governo de

regulamentação da atividade. A reportagem a

seguir retrata esta constatação:

“os vendedores de generos alimentícios ficarão obrigados a rigoroso asseio e ao uso de uniforme – Bôa saúde e conducta exemplar – Nenhum menor de 14 annos – Todos deverão saber ler e escrever – Oito horas de trabalho. O ministro do Trabalho – encontra em mãos o ante - projecto de regulamentações da profissão de vendedor ambulante. Ambulantes para os efeitos da futura lei – todos s indivíduos que, por conta própria ou de terceiros, exercerem o commercio ambulante nos logradouros públicos, realizando com isto actos que por sua natureza fiquem perfeitamente caracterizados como de commercio. Ninguém poderá ser licenciado para exercer a profissão de ambulante sem que apresente carteira profissional do Ministério do Trabalho e attestado de idoneidade passado pela autoridade policial competente. „Todos os vendedores ambulantes de sorvetes, refrescos, dôces e outros artigos alimentícios

promptos para immediata ingestão, ou que não tiverem de sofrer fervura, quando no exercício do seu commercio serão obrigados a apresentar carteira profissional, uma vez, pelo menos, em cada anno, ao medico sanitário federal, estadual ou municipal, da localidade em que trabalhar, o qual gratuitamente lançará nella o „Visto‟,depois de lhe examinar a saúde, providenciando o afastamento do serviço, no caso de doença contagiosa ou infecciosa.‟„Os menores de 12 a 14 annos poderão exercer o commercio ambulante, segundo o ante-projecto, desde que o façam por conta de estabelecimentos em que trabalhem pessôas de uma só família sob a autoridade de paes, avós ou irmão mais velho‟. Prohibido o trabalho noturno de menores de 18 annos.” (JORNAL O IMPARCIAL, 21 de julho de 1939)

É possível perceber que a

administração pública sazonalmente tenta

regulamentar a situação dos vendedores

ambulantes. Crachás, uniformes, licitações,

todas essas ferramentas são aplicadas na busca

para conter a expansão desenfreada da prática

de venda ambulante. Sejam as antigas placas

de três mil réisque os negros usavam no

pescoço aos recentes coletes verdes, a recentes

coletes verdes e documentos de cadastramento,

sempre há uma maneira de diferenciar os

trabalhadores contribuintes, que se tornam

aceitos pelo governo, dos trabalhadores

informais que não têm contrato com o

município. Esta cisão cria três classes de

vendedores: os lojistas, os ambulantes

registrados e uma última, os vendedores

ambulantes não registrados pela prefeitura,

que é malvista pelas outras duas, sendo alvo de

reclamações e demérito, por julgarem ser uma

classe que não tem o direito de estar exercendo

a profissão, já que não contribuem com os

tributos ao governo.

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145 Contribuição histórica para a representação social da categoria

dos vendedores ambulantes pela população de Salvador

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

A matéria seguinte é do jornal Correio

da Bahia, da década de 1980, e demonstra de

forma clara o comentado anteriormente:

“Camelôs superlotam o calçadão do Relógio. „O Prefeito passou por aqui e disse que iria cadastrar todo mundo. Mas o que a gente vê é a invasão de pessoas não cadastradas e não é justo quem paga dividir o espaço com quem não paga. [...]‟ [...] Só nas imediações do Relógio São Pedro estão instalados mais de 100 camelôs, entre cadastrados e não cadastrados, o que motivou o envio de um ofício, por parte do presidente da Associação dos Lojistas da Avenida Sete ao prefeito. [...] De acordo com a colocação de que é necessário organizar para vender melhor, os camelôs da Avenida Sete se dividem quando o assunto é a infiltração de outros não registrados. Colocam que o excesso de vendedores tumultua a venda, mas por outro lado reconhecem que os que chegam estão na mesma situação em que estavam há algum tempo.” (CORREIO DA BAHIA, 07 de Outubro de 1987)

É importante ressaltar o caráter que o

comércio ambulante tem tomado,

historicamente, ultrapassando as questões

associadas à escravidão e reunindo os aspectos

da nova constituição econômica mundial, como

a expansão das atividades informais, e os

processos migratórios e de urbanização.

Entretanto nota-se que a

representação dos vendedores ambulantes por

parte da população nos períodos mais recentes

não se constitui de maneira muito diversa da

que era vigente no século XIX. Os jornais

demonstram que a figura do comerciante

informal ainda é associada à marginalidade e à

criminalidade, sendo considerados vândalos e

ameaçadores da ordem social, que seriam

dignos da repressão fiscal, como é descrito na

reportagem que segue:

“a praça Cairú – quartel general dos ambulantes. Vendedores de frutas, cigarros, bombons, bolachinhas de

goma, engraxates. Não faltam também, os malandros, alguns maconheiros, lanceiros, principalmente à noite. Proximidade dos meretrícios da Conceição, da Misericórdia e do Julião – sem contar com a própria praça – bem pertinho do Elevador Lacerda – é circunstância favorável para que êsses tipos marquem encontro naquela praça. Esta é mais dos ambulantes, dos malandros do que do público. O ponto de ônibus foi transformado em mercado. Mercado promíscuo e imundo. Transformado também em um grande albergue. Pela manhã, homens maltrapilhos, ainda dormindo as résteas de um sono miserável, sono de pedinte, de mendigo que não tem onde morar estão ali. Há outros homens que dormem dentro de caixotes vazios, trepados em cadeiras de engraxate ou deitados nos tabuleiros que, mais tarde, estarão exibindo ao público uvas, umbus ou cigarros. Adotam as pôses mais diversas, tôdas impróprias para um ambiente público. Camisas abertas mostrando o peito nu, calças abaixo da virilha deixando os pêlos à mostra. As cenas são presenciadas pelos transeuntes que já estão acostumados e “não dão muita bola” para os detalhes „exóticos‟ da praça Cairú. Os visitantes talvez sintam o impacto de tanta vergonheira. Os turistas que vêm de outras cidades brasileiras, ou de outras partes do mundo, estão nêsse caso. Instalaram-se na porta do Elevador Lacerda, impedem o livre acesso dos passageiros ao elevador. Se chove os vendedores de guarda-chuvas, tentam “empurrar” a mercadoria a um e a outro passante. Com o correr das horas o número de camelôs cresce, a gritaria aumenta e os tôlos são enganados. Sim, porque camelô raramente vende mais barato que o comerciante da loja. Quem salta, ou que vai pegar ônibus, tem que andar pelo meio da rua porque a mulher que vende acarajé e peixe frito não lhe dá passagem; da mesma maneira age o vendedor de cigarros, os vendedores de bombons, de laranja, de uvas, de umbú, os engraxates. Êstes já foram retirados uma vez da praçaCairú pela Fiscalização Municipal, que exige cadeiras padronizadas, de metal, pintadas etc. Agora não. As cadeiras são feitas de caixotes, feitas „a facão‟ como se diz na gíria. São imundas, medonhas, talvez únicas no mundo. A fumaça do azeite ardido da mulher que frita peixe faz arder os olhos e a

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146 Pablo Mateus dos Santos Jacinto e Carla Liane Nascimento dos Santos

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

gente tem que andar com cuidado para não se esburrachar no chão por conta de uma casca de umbú.” (JORNAL A TARDE, 05 de abril de 1968)

Outro fator importante a ser avaliado

acerca deste aspecto é que ainda quando não

ligados diretamente à criminalidade, através

das entrevistas concedidas aos jornais pela

população e até pelos próprios camelôs, a

classe dos vendedores ambulantes torna-se –

na óptica destas entidades – parte de um

estigma de “criminosos em potencial”. Os

trechos de reportagem seguintes confirmam

esta afirmação:

“a questão dos ambulantes tem dois lados. „Eles estão lutando para sobreviver numa cidade onde não tem emprego para todos, e é melhor do que estarem roubando, mas, por outro lado, eles desorganizam demais a cidade, enchem de sujeira.‟” (JORNAL A TARDE, 16 de Junho de 2005)

“„Somos excluídos de tudo. Não temos como sobreviver e estamos cada vez mais sendo empurrados para a marginalidade. Só queremos ganhar a vida honestamente‟, diz a ambulante.” (JORNAL A TARDE, 03 de Junho de 2004)

“De acordo com a colocação de que é necessário organizar para vender melhor, os camelôs da Avenida Sete se dividem quando o assunto é a infiltração de outros não registrados. Colocam que o excesso de vendedores tumultua a venda, mas por outro lado reconhecem que os que chegam estão na mesma situação em que estavamhá algum tempo. „As pessoas se infiltram aqui com fome‟ Conta Francisco Santana, camelô desde os 12 anos de idade, „e montando a banca aqui é menos um a roubar‟.” (CORREIO DA BAHIA, 07 de Outubro de 1987)

Os trechos citados explicitam que,

embora haja um movimento de integração dos

vendedores ambulantes à realidade econômica

e social, ainda restam vestígios da carga de

negatividade associada a esta categoria durante

sua constituição histórica. A sociedade

demonstra compreender o comerciante

informal como executor da sua profissão ao

invés de estar roubando, por colocar estas duas

possibilidades como as alternativas acessíveis

aos membros desta categoria.

Apesar da evolução produtiva e da

implantação do projeto de substituição de

importações, a Bahia permaneceu, no período

entre 1940 e 1960, marcada pelo crescimento

de atividades relacionadas à economia urbana,

na qual se insere o comércio, inclusive o

ambulante. Neste período houve uma

decadência da agroindústria açucareira e

fumageira, o que criou um excedente de mão

de obra. Paralelamente, a região metropolitana

de Salvador passava por um processo de

industrialização, principalmente pela atividade

do refino do petróleo promovida pela

Petrobrás, no polo petroquímico de Camaçari.

Esta transição de modelo

agroexportador para industrial ocasionou uma

reestruturação do mercado de trabalho Baiano.

Entretanto houve pouca mudança no padrão

econômico que imperava, que continuou sendo

o comércio de mercadorias aliado ao setor de

serviços. Esta predominância é oriunda da

incapacidade da indústria em absorver a mão

de obra disponível e da decadência da

agricultura na região, que gerou sobra de

trabalhadores, os quais muitos migraram para

as áreas urbanas. O comércio informal foi a

válvula de escape para estas pessoas que

vinham em busca de sobrevivência nas cidades

e não encontravam um emprego

regulamentado. Logo estes trabalhadores

foram vistos como problema, associados ao

caos urbano e que deveriam sofrer

interferência do Estado, como sugere a

reportagem a seguir:

Page 150: Opará Revista vol. 2 julho/2014

147 Contribuição histórica para a representação social da categoria

dos vendedores ambulantes pela população de Salvador

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

“Cursos e treinamentos, fiscalização e

orientação. Nada disso tem surtido o

efeito esperado em relação ao

inusitado crescimento de vendedores

e ambulantes ilegais nas principais

vias e nos pontos turísticos de

Salvador. O fato, que além de

incomodar turistas, prejudica aqueles

que estão regularizados e acabam

perdendo clientes para aqueles que

burlam a fiscalização.” (CORREIO DA

BAHIA, 14 de Outubro de 2004)

Mais uma vez o cenário de

desqualificação social se destaca, no qual os

vendedores ambulantes protagonizam

descontentamentos a turistas, vendedores

legalizados, Estado e população em geral.

Em contrapartida à situação de

descaso historicamente vivida pelos

vendedores ambulantes, a sua prática não tem

mostrado sinais preocupantes de

enfraquecimento, pois o comércio informal a

cada dia se expande mais, por abrigar tanto os

trabalhadores que não têm qualificação para

executar os serviços do mercado formal quanto

para os trabalhadores que por alguma razão

tenham deixado um emprego regularizado.

Estas peculiaridades podem ser vistas pelo

trabalhador como vantajosas, causando a falsa

impressão de liberdade proporcionada pelo

serviço informal, quando, na verdade, há toda

uma questão de exploração e vulnerabilidade

que fica camuflada no meio dos atrativos.

A estrutura criada pelo pequeno

comércio nutre o sistema capitalista de forma

complementar, pois atinge classes econômicas

que, no geral, não são alvo principal do grande

mercado (CARVALHO; SOUZA, 1978). Assim,

o comércio ambulante favorece a dinâmica do

capital, pois introduz as classes mais pobres

como ativas no sistema econômico.

Constata-se então que há pelo menos

duas maneiras de se analisar o comércio

ambulante. Se por um lado é o responsável por

absorver a mão de obra que não se qualifica

para ser inserida no sistema formal de

empregos, por outro lado é palco de

desvalorização social, ausência de direitos e de

proteção, instabilidade de renda e

vulnerabilidade física e econômica.

A configuração do comércio ambulante

é dinâmica e se adéqua a padrões típicos do

comércio formal. O mercado global influencia

no que é comercializado nas ruas; um exemplo

disto é a grande comercialização de produtos

tecnológicos, que hoje abrange tanto as lojas de

tecnologia quanto as barracas de camelôs nas

passarelas, pontos e esquinas. Ademais, o

comércio informal atual registra características

que são típicas do modelo formal ao passo que

as barracas têm aparência de lojas, com

vitrines, banners, algumas têm funcionários

com seus turnos de trabalho e outras possuem

até máquina para cartão de crédito.

Segundo a SECRETARIA DA

INDÚSTRIA E COMÉRCIO (1983) o comércio

ambulante é um conjunto de atividades

exercidas por indivíduos que se deslocam com

suas mercadorias, vendendo de casa em casa,

nas praias, terminais de transporte, escolas,

locais de trabalho e em locais de concentração

eventual, além daqueles que operam de forma

fixa, com barracas armadas em áreas livres, em

pontos regulares concentrados em zonas

comerciais da cidade e em outras áreas livres

onde ocorre um fluxo regular e intenso de

pessoas. Este tipo de comércio mostra-se

heterogêneo tanto pelas diversas formas – já

expostas neste artigo – de adentramento nesta

prática, quanto pela diversa gama de atividades

que são exercidas neste meio. Esta

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148 Pablo Mateus dos Santos Jacinto e Carla Liane Nascimento dos Santos

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

configuração favorece uma fragmentação da

categoria, colocando-a numa posição de tripla

pressão: a pressão da atividade informal, que

aprisiona o sujeito num regime de trabalho

obrigatório, apesar dos seus pontos negativos;

a pressão da administração pública que, com

seu trabalho fiscalizador, dificulta o regime de

trabalho de quem vive do comércio informal; e

a pressão causada pela falta de seguridade

social, queaprisiona o trabalhador deixando-o

com pouca perspectiva de mudança em relação

à situação econômica vivida. (DURÃES, 2002).

Druck e Oliveira (2008) retratam

estatisticamente como é configurada a classe

dos vendedores ambulantes em Salvador.

Segundo eles, a maioria é constituída por

homens negros, com baixa escolaridade, que

são chefes de família e residem nos bairros

populares da cidade. O modo de vida urbano

vigente, aliado às altas taxas de desemprego e

falta de qualificação profissional são fatores

que justificam a condição. Estes autores

pontuam que, embora o trabalho informal seja

visto como uma solução paliativa à falta de um

serviço formal, ele obedece a padrões que

acabam prendendo o trabalhador a esta

prática.

Conclui-se que, neste contexto, não é

difícil perceber como os resquícios negativos

do modelo escravista ainda imperam na

categoria dos vendedores ambulantes, que

foram alvos de descaso social durante toda a

sua trajetória e que assim continuam sendo,

apesar das políticas públicas a eles

direcionadas e do contexto socioeconômico

vigente, que cria a ilusão de que estes

vendedores são parte importante da malha

social.

Pouco mudou em relação às condições

de trabalho dos ambulantes, pois estes –

apesar das promessas do governo que os

iludem como microempreendedores, ou

simplesmente vendedores autorizados – ainda

enfrentam as péssimas condições das ruas, o

perigo de assaltos, uma carga horária não

delimitada, inexistência de férias, remuneração

fixa, dentre outros direitos civis. Isto acrescido

ainda do modo em que a sociedade representa

esta categoria, associando-a à marginalidade

política e econômica, sendo assim ameaçadora

da homeostasia social.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Alexandre de Freitas. A Formação do Mercado de Trabalho no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Alameda Editorial, 2008. CARVALHO, Inaiá Maria M.; SOUZA, Guaraci Adeodato A. A Produção não-Capitalista no desenvolvimento Capitalista de Salvador. Salvador: PLANEJAMENTO, CPE, 6 ( 4): 425-55, out/dez.1978. Camelôs superlotam calçadão do relógio. Correio da Bahia, Salvador, 10 Out. 1987. Onda de boatos atrapalha trabalho da Sesp. _____, Salvador, 14 Out. 2004. Ambulantes resistem a deixar áreas do centro. _____, Salvador, 05 Mai. 2006. DRUCK, M. G.; OLIVEIRA, L. P. A condição “provisória permanente” dos trabalhadores informais: o caso dos trabalhadores de rua da cidade de Salvador. Revista VeraCidade. Salvador. Ano 3 - Nº 3 – Maio de 2008. DURÃES, B. J. R. Trabalhadores de Rua de Salvador: Precários nos cantos do século XIX para os encantos e desencantos do século XXI. São Paulo: Dissertação de Mestrado em Sociologia, Unicamp, 2006. _____. Trabalho Informal: Um Paralelo entre os Trabalhadores de Rua da cidade de Salvador no Séc XIX e no Séc.XXI. Caderno do CRH. Nº 37. Trabalho, Flexibilidade e Precarização. Salvador: UFBA, jul./dez. 2002.

Page 152: Opará Revista vol. 2 julho/2014

149 Contribuição histórica para a representação social da categoria

dos vendedores ambulantes pela população de Salvador

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

IVO, Anete B. L. Pesca: Tradição e Dependência. (Dissertação de Mestrado Apresentada ao Mestrado em Ciências Sociais da UFBA). Salvador, UFBA, 1975. _____. Viver por um fio: pobreza e política social. São Paulo, Annablume, 2008. A praça dos ambulantes. Jornal A Tarde, Salvador, 05 Abr. 1968. Ambulante decide enfrentar o rapa. _____, Salvador, 03 Jun. 2004. Rapa volta a assustar no Centro. _____, Salvador, 19 Jun. 2004. Os camelôs estão soltos nas ruas. _____, Salvador, 16 Set. 2004. Ambulantes ocupam ruas do Itaigara. _____, Salvador, 16 Jun. 2005. Jornal O Imparcial, 21 Jul. 1939. MATTOSO, Kátia Maria Queiroz. Sociedade Escravista e Mercado de Trabalho: Salvador-Bahia, 1850-1868. Bahia Análise e Dados, nº10, v.1. Salvador: jun. 2000. Secretaria da Indústria e Comércio do Estado da Bahia. O gigante invisível: estudo sobre o mercado informal do trabalho na região metropolitana de Salvador. Salvador, 1983.

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UMA ABORDAGEM DO RASTAFARISMO

NOS MOLDES DA PSICOLOGIA SOCIAL

Geórgia de Castro Machado Ferreira1

RESUMO Urdido nas favelas de Kingston, capital jamaicana, o rastafarismo consiste num movimento mileranista, messiânico e revivalista que defendia as seguintes concepções: HailléSelassié, imperador etíope, como Deus-vivo cuja missão seria redimir os rastas jamaicanos, conduzindo-os em retorno a terra prometida; a Etiópia como paraíso e a repatriação como condição necessária a liberdade. O discurso de resistência e afirmação étnico-politico, característico desse movimento, foi disseminado pelo reggae, ritmo musical cuja criação fora atribuída aos rastas jamaicanos. Sendo assim, o presente artigo tem como finalidade analisar esse movimento, a partir do discurso rasta veiculado nas letras de música do reggae, incluindo as composições do cantor Edson Gomes, tomando como referência os conceitos de ideologia, enraizamento, preconceito e humilhação social, componentes basilares da psicologia social. Para tanto, recorreu-se a autores como Chauí (1983), Bosi (1996), Zizek (1996), Crochík (2006; 2008) e Gonçalves Filho (2007), haja vista, trabalharem com tais conceitos em suas obras e principalmente, por trazer à baila, a perspectiva da psicologia social como uma ciência que visualiza o homem enquanto ser social e histórico dentro de um contexto que o influencia e por ele é influenciado. Palavras – chave: Ideologia. Rastafarismo. Reggae.Humilhação social.Preconceito. ABSTRACT: Hatched in the slums of Kingston, the Jamaican capital, the Rastafari was a movement millenarian, messianic and revivalist that preached following ideas: HailléSelassié, Emperor of Ethiopia, as God-alive, whose mission would be to redeem Jamaican Rastas then return to earth promised; the Ethiopia as a paradise and repatriation as a condition necessary freedom. The discourse of resistance and affirmation ethno- political characteristic of this movement was disseminated by reggae, musical rhythm whose creation was attributed to Jamaican Rastafarians. Therefore, this essay has for what aim to examine this movement, from the rasta speech conveyed in the lyrics of the reggae music, including compositions singer Edson Gomes, taking as reference the concepts of ideology, rooted, prejudice and social humiliation, components basic social psychology. For this purpose, we used the authors as Chauí (1983), Bosi (1996), Zizek (1996), Crochík (2006; 2008) e GonçalvesFilho (2007), given deal with those conceptions in his works and especially, for bringing to the fore the perspective of social psychology as a science that see man while social being and history whitin a context that influences him and for he is influenced. Key-words: Ideology. Rastafarimovement. Reggae. Social humiliation. Prejudice.

1 Polícia Militar da Bahia, [email protected]

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151 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

INTRODUÇÃO

O propósito deste artigo foi analisar o

movimento político, religioso, mileranista e

social, conhecido como rastafarismo e de

forma sucinta, sua repercussão em Salvador,

tomando como referência as definições de

ideologia, enraizamento, humilhação social e

preconceito, conceitos basilares da psicologia

social.

Segundo Rabelo (2006), o rastafarismo

se configura num movimento cultural híbrido e

contestatório, oriundo da mesclagem de

elementos religiosos protestantes e afro-

caribenhos com tradições culturais do

continente africano, também ligado à figura do

pan-africanista Marcus Garvey, que pregou a

ideia de liberdade do povo negro disperso no

processo de escravidão, pelo retorno ao

continente africano e nas concepções

etiopianistas.

Sendo assim, pode-se entender o

movimento rastafari como

[...] um amplo conjunto de práticas e idéias que começaram a se esboçarem movimentos político-religiosos e, sobretudo, étnicos na Jamaica desde o século XIX. [...] relacionados com a luta contra a opressão da estrutura escravista britânica, tinham vínculos com associações religiosas, organizações e igrejas do sul dos Estados Unidos e do Caribe que, a partir de uma interpretação étnica da Bíblia, começaram a fazer junto aos negros jamaicanos pregações nas quais o "paraíso" e a Terra Prometida se localizavam na Etiópia/África. Tal territorialização do mito bíblico permitiu uma ruptura radical com toda uma ideologia colonial e protestante que durante séculos justificou a escravidão apoiada em interpretações religiosas. (CUNHA, 1993, p.122).

Com a coroação de Haillé Selassié

(cujo primeiro nome era Ras Tafari), na

Etiópia, os afro-jamaicanos enxergaram nesse

episódio o cumprimento da profecia ora

atribuída a Garvey (a coroação de um rei

africano como símbolo da chegada da

libertação), intitulando-se rastafaris. Surgiu,

então, um movimento, um profeta e um

símbolo de luta: o rastafarianismo, Garvey e

Selassié, respectivamente.

Esse movimento surgiu na Jamaica na

década de 1933 (RABELO, 2006), num

momento de extrema tensão social, marcado

pelo avanço da pobreza, a luta pela

independência e a formação de favelas.

Caracterizando um determinado grupo, o

rastafarismofoi um movimento que, por meio

de uma leitura étnica e individualizada da

HolyPibe, versão bíblica trazida do Panamá

(PINHO, 1997), conduzira os afro-jamaicanos à

adoração incondicional a Jeovah (cuja

abreviação gera a palavra Jah) identificado na

figura de Selassié; à crença no “repatriamento

como uma condição necessária à redenção dos

afro-jamaicanos espalhados na diáspora, o

orgulho por ser negro e a Etiópia, como o

paraíso” (FERREIRA, 2007).

Além da adoção dos dreadlocks, como

uma marca dos seus adeptos, tal movimento se

constitui num intercruzamento das concepções

do Etiopianismo; Pan-Africanismo;

Garveyísmo; bem como algumas influências

revivalistas e hindus (RABELO, ibidem), ou

seja, esse conjunto de tradições como matrizes

imagéticas e discursivas, evidenciando o

caráter híbrido e rizomático do movimento.

Trata-se da construção de um sistema

simbólico próprio interpretado como uma

identidade diásporica caribenha, atravessado

pela emoção do contexto e pela linguagem.

Tais idéias passaram a ser

disseminadas por rituais promovidos pelos

rastas jamaicanos nas comunidades, e

principalmente, pode-se afirmar que o reggae,

de certo modo, “foi o responsável pela

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152 Geórgia de Castro Machado Ferreira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

internacionalização do rastafarismo e, mais,

ajudou nas estratégias de negociação e maior

aceitação da sociedade envolvente jamaicana,

embora os rastas ainda sejam discriminados

nesse local” (FERREIRA, 2007, p. 34).

Urdido nas favelas de Kingston, capital

Jamaicana, o reggae e o rastafarismo estão

relacionados ao cenário sócio-político desse

país, marcado pelo desemprego, brigas

políticas, levante de trabalhadores, pelo

preconceito ao qual eram submetidos os rastas

jamaicanos devido a sua estética tanto quanto

pelo consumo de ganja. A conjunção desses

fatores contribuiu vertiginosamente para o

aumento dos confrontos entre esses sujeitos

históricos e a polícia.

A criação do reggae é atribuída aos

rastas jamaicanos, embora não exista nenhuma

comprovação para esta afirmação (RABELO,

2006), uma vez que ele é tido como uma

música profana do dia a dia, pois a verdadeira

música rastafari é o nyabhingi. Porém, o

reggae pode ser entendido

[...] como conseqüência de toda uma evolução rítmica e musical, desde as tradições negro-africanas, passando pelo mento, pelo rock-steady, rhythmand blues, além das influências marcantes do rastafarianismo. Desde o seu início, o reggae foi considerado música dos becos, porque reflete nas suas letras, os anseios das populações de baixa renda. (SILVA, 1995, p. 51)

Resumindo, o encontro do

rocksteadycom o rastafarianismo, faz brotar a

reggae music, termo este que apareceu pela

primeira vez, em 1968 quando o grupo

TootandMaytals lançaram a música Do The

Reggay. O significado desta palavra é

desconhecido. Do ponto de vista de Cardoso

(1996), o reggae

[...] de todas as manifestações jamaicanas é a mais explicitamente

revolucionária. É satírico e por vezes cruel, porém as letras também não hesitam em falar de amor, lealdade, esperança, ideais, justiça, novas coisas e novas formas. É essa afirmação de possibilidades revolucionárias que coloca o reggae numa categoria a parte (p. 17-18)

Esta categoria a parte seria exatamente

a política, pois o reggae possui um poder

elevado de comunicação, marcado pela sua

básica rítmica e pela mistura de variados

temas, ora de amor e paz, ora de pedidos de

justiça e igualdade. Por isso, Mota (2009) vai

afirmar que “esta tradição musical [...] foi um

dos principais meios de denúncia e combate

contra a exclusão social e a invisibilidade dos

negros que se mundializou reassumindo novas

leituras sonoras e referenciais de identidade”

(MOTA, 2009 a, p.1), caracterizando-se numa

identidade sócio-cultural.

Sendo a música uma fonte histórica, as

letras desse novo ritmo portavam conteúdos

sócio-políticos que denunciavam a situação de

marginalização, a qual a maioria da população

jamaicana, residente nas favelas e moradoras

das conhecidas “casas de lata”, se encontravam

subjugadas.

Percebe-se, portanto, que o reggae

encontrou um ambiente propício para

denunciar o descontentamento da população,

que desejava o aniquilamento da Babilônia,

cujo simbolismo nos remete a interpretação

bíblica, de um espaço onde ocorrem as coisas

mais iníquas. O reggae tem um cunho de

protesto, “[...] capaz de mobilizar a população

negra e mostrar a sua insatisfação perante a

realidade e o preconceito, tentando reverter

essa opressão mediante a valorização de suas

raízes. O reggae é um grito dos despossuídos,

desescolarizados e miseráveis” (FERREIRA,

2007, p.38).

Com a disseminação desse novo ritmo

na Jamaica, surgem cantores como Jacob

Page 156: Opará Revista vol. 2 julho/2014

153 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Miller, Peter Tosh, BurningSpear, Gregory

Isaacse um dos principais divulgadores desse

estilo, o cantor Bob Marley. Este último

tornou-se o maior ícone da aspiração rastafari.

Suas canções revelavam o seu caráter

humanista e revolucionário, alertando a

população a cerca das falsas verdades impostas

pela concepção eurocêntrica. Era a não

aceitação da subalternidade como apenas um

processo fatalístico, mas de caráter também

histórico.

A chegada do reggae em Salvador:

mundo jamaicano e a indústria

fonográfica

Os registros históricos apontam que o

rastafarismo e o reggae não passaram

despercebidos na capital baiana, tendo

desencadeado um movimento de auto-

afirmação e influenciando, consequentemente,

os blocos afros e os movimentos de resistência

que passaram a aderir à estética,

comportamento e discurso rasta, como

referencial de uma busca identitária.

O reggae e as músicas advindas do

Caribe foram tocados a princípio, em

prostíbulos e nas ruas do Maciel, no bairro do

Pelourinho. Contudo, as primeiras

aglutinações da população soteropolitana em

torno do discurso rasta, se deram com esta

música tocada nos ensaios dos blocos afros,

bailes de periferia e reuniões (CUNHA, 1993).

Esse processo fez com que, a partir da

década de 1970, os afro-baianos adotassem

uma consciência que perpassava pela

valorização das raízes africanas. Toda essa

movimentação,

[...] se deve à explosão reggae, a notícia a cerca da independência de alguns países africanos e o sucesso de bandas comandadas por negros, que

desencadeia na cidade um movimento de auto-afirmaçãoidentitária que incluía a adoção de comportamentos, atitudes e da estética negra jamaicana. (FERREIRA, 2010, p. 6)

Faz-se necessário pontuar que, embora

não existam evidências de um forte processo

migratório entre a população baiana e a

jamaicana, “[...] o princípio da fronteira

imaginada. [...] onde estão relacionadas à

história, à geografia, representam um espaço

de imaginação, onde se evidencia a identidade

cultural.” (AGERKOP, 2009, p. 394), é a

explicação para o elo existente entre essas duas

localidades distantes geograficamente.

Viu-se que, a partir da

internacionalização do reggae, as ideias do

movimento aportaram em Salvador e

imediatamente foram apropriadas e traduzidas

culturalmente (FERREIRA, ibidem) pelos afro-

baianos. A influência desse movimento na

cidade foi, e ainda é, tão significativa, que

possibilitou duas experimentações: a Legião

Rastafari, tentativa de reviver o ideário e

tradições rastas e a música, o principal elo,

contribuindo como elemento de referência

para formação da negritude baiana

(GUERREIRO, 2000).

O reggae se sedimentou nos bairros

populares e periféricos de Salvador tão

expressivamente que os blocos afros como

Muzenza, autodenominado Muzenza do

Reggae, Ilê Aiyê e Olodum adotaram suas

batidas rítmicas, embora com algumas

adaptações locais, evidenciando-se o caráter

imprescindível da cultura reggae na criação

desses blocos, assim como, no estabelecimento

de uma estética de negritude (MOURA 2009).

O reggae, segundo Cunha (1993),

representará para a maioria dos afro-baianos, a

principal fonte de informação do ideário e

discurso rastafari, mesmo que, nem sempre

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154 Geórgia de Castro Machado Ferreira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

sejam devidamente tematizadas nas canções.

Isso porque, as letras de reggae não se

restringiam “[...] a falar apenas sobre o messias

negro e a redenção, mas expunham os

sentimentos dos próprios rastas e

denunciavam o preconceito e as terríveis

condições a que eram subjugados.”

(FERREIRA, 2010, p.7). Por esta razão,

continua a ser o principal veículo difusor do

ideário defendido pelo movimento rastafari,

evidenciando uma forma de articulação dos

descendentes africanos que se utilizam de uma

cultura de massa e da tradição refletindo numa

apropriação para construção de uma alteridade

(PINHO, 1997).

Além disso, nesse cenário, a música

aparece como

[...] texto de resistência, protesto e afirmação no qual eram registradas as histórias, evocadas e forjadas ligações passadas e registrado o presente, alegrias e tristezas, anseios e revoltas, tradição e história constituem a temática básica de um discurso de afirmação identitária e de protesto que caracteriza as produções poéticas e musicais negras. (SOUZA, 2001, p. 202)

Percebe-se, portanto, que o movimento

rastafari encontra adeptos em Salvador.

Todavia, a “[...] absorção da cultura jamaicana

se dá pela via da música reggae, que passa a

ocupar um lugar de destaque no gosto musical

de grupos negros” (GUERREIRO, 2000, p. 95),

haja vista, essas canções trazerem em suas

letras não apenas poemas de amor, mas

também, um discurso de auto-afirmação com

uma vertente altamente combativa contra a

opressão racial e social, conquistou uma parte

da juventude baiana, que com este discurso

veio a se identificar.

E, foi justamente, por meio dessa

aproximação e tomada de consciência, que

surgiu no recôncavo baiano cantores de reggae,

cujo maior expoente é Edson Gomes, que

passaram a adotar os dreadlocks, a usar roupas

e adereços que nos remetem àquele país e a

cantar o Reggae Resistência, valorizando a

palavra do negro oprimido, narrando protesto

e lamento (FALCÓN, 2009).

Edson Gomes, na cidade do Salvador,

tornou-se um ícone pela cadência encontrada

em seu ritmo e o seu discurso, que em muito se

assemelha com os elementos encontrados no

imaginário rastafari. Sua poética passada por

meio de um “discurso ético e filosófico contra o

establishment [...]” (idem, ibidem, p. 16) é

marcada pela exposição dos problemas

enfrentados pela população afro-baiana como a

violência, a desigualdade social, o racismo e

outras mazelas, constituindo aparentemente, o

cunho ideológico do rastafarismo.

Getup, Stand up! O cunho ideológico do

movimento rastafari.

O termo ideologia pode ser entendido

como um conjunto de preposições elaborado

pela sociedade burguesa, com o objetivo de

transformar os interesses da classe dominante

num ideal coletivo, construindo assim, a sua

hegemonia, a exemplo da religião, filosofia,

moral. Desta forma, a “ideologia é, pois, um

instrumento de dominação de classe, como tal

sua origem é a existência da divisão da

sociedade em classes contraditórias e em luta”

(CHAUÍ, 1983, p.102), tendo como papel

específico impedir “que a dominação e a

exploração sejam percebidas em sua realidade”

(idem, ibidem, p.103), revelando-se como um

instrumento a serviço da dominação.

Corrobora com essa perspectiva, Mello

(2008), ao pontuar que

A ideologia é, de certa forma, a negação do sentido da experiência dos

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155 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

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homens diante do mundo e substitui a necessidade dos sujeitos de encontrar explicações e justificativas próprias, pois constrói um mundo de significações arbitrário que oferece, aos seus participantes, uma explicação total. (p. 32)

Trazendo essa concepção como

referencial analítico do movimento rastafari,

pondera-se a princípio que, pelas explicações

de Marilena Chauí, o rastafarismo não seria

uma forma ideológica. Observando-se que a

ideologia se inicia como “um conjunto

sistemático de idéias que pensadores de uma

classe em ascensão produzem para que esta

nova classe apareça como representante dos

interesses de toda a sociedade [...]” (CHAUÍ,

1983, p. 108); embora, o discurso rastafari seja

marcado por crenças e valores que se

concretizaram a partir da coroação de

HailléSelassié, ele não se tornou dominante na

Jamaica, ou seja, não se transformou no “[...]

ponto de vista e a opinião de todas as classes e

de toda a sociedade [...]” (idem, 2002, p. 174)

que a compunham.

Ao contrário, com receio de o

movimento avançar tanto no caráter religioso

como político, a elite jamaicana tentou

aniquilá-lo, através da prisão dos seus

principais divulgadores e numa tentativa

frustrada de incorporar os rastas, ora

oprimidos, à sociedade jamaicana.

Além disso, a “ideologia ocorre quando

as idéias e valores da classe emergente são

interiorizados pela consciência de todos os

membros não dominantes da sociedade [...]”

(CHAUÍ, 1983, p. 108), sedimentando-se no

senso comum, mesmo quando a classe

emergente assume o papel de dominante, com

o objetivo de ocultar a divisão de classe e as

diferenças sociais. Nesse sentido, os rastafaris

não formaram uma classe que ostentava o

poder na Jamaica. Esses sujeitos criaram um

movimento cujo foco foi o discurso religioso

embasado em ideais de resistência, militância e

afirmação étnico-política, na busca da

repatriação.

Por outro lado, o filósofo esloveno

SlavojZizek (1996), afirmou que a realidade,

em si, é ideológica, assim como, o ideológico

comporta em si o real; provocando uma

desmistificação no conceito marxista. Para

este autor, ideologia

[...] pode designar qualquer coisa, desde uma atitude contemplativa, que desconhece sua dependência em relação à realidade social, até um conjunto de crenças voltados para ação; desde o meio social até idéias falsas que legitimam o poder dominante. Ela pode surgir exatamente quando tentamos evitá-la e deixa de aparecer onde claramente se esperaria que existisse. (p.9)

Se a ideologia representa conceitos,

valores e símbolos que servem para justificar a

desigualdade social mascarando a realidade,

logo o rastafarismoé uma contra ideologia, já

que a desvela. Isso por que, os rastas

jamaicanos não apenas fomentaram uma visão

de mundo, a partir da criação de seus próprios

preceitos; mas prescreveram ações e

comportamentos cuja referência era

HailléSelassié, veiculadas por meio do reggae,

que os guiava no fazer um mundo, que só seria

construído através do repatriamento. Um

exemplo seria a posição das mãos durante as

orações (figura 1).

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Figura 1: Postura de Selassié - posição das mãos durante as orações

Fonte: Rabelo, 2006, p. 406.

Não se sabe ao certo, a origem dessa

posição para as mãos, embora se reconheça o

simbolismo da lança, como instrumento de

caça, guerra e luta pela sobrevivência e do

coração, como a vontade e as emoções

humanas, nesse gesto. Contudo, Rabelo

(2006), exemplifica algumas inferências que

podem ser feitas, a exemplo de que

[...] pode se tratar de um ritual religioso etíope; ou tratar-se-ia de um hábito pessoal de HailléSelassié, como uma forma de posicionar elegantemente as mãos, ao invés de deixá-las soltas ao lado do corpo, cruzá-las nas costas ou sobre a pélvis como muitos homens fazem; bem como poderia tratar-se de ambas as explicações anteriores. (p. 405-406)

Deste modo, a crença incondicional na

divindade de Selassié, intitulado o leão

Conquistador da Tribo de Judah, levou a

adotar seu comportamento e discurso. Outro

exemplo seria a adaptação que Bob Marley,

cantor e ícone jamaicano, fez de um discurso

proferido por Selassié, perante a Liga das

Nações em 19362, transformando-o na canção

War. Nessa canção, o racismo e a

discriminação são apontados como fatores

capazes de originar a guerra, assim como a não

garantia dos direitos mais básicos e a limpeza

étnica. Essa letra, de natureza altamente

combativa, evidencia a presença das ações do

Leão de Judá no discurso rastafari. Eis a letra:

Até que a filosofia que considera uma raça superior e outra inferior, ser final e definitivamente, desacreditada e abandonada; terá guerra em todo lugar. Enquanto houver cidadãos de primeira classe e os de segunda classe em uma nação; enquanto a cor da pele de um homem influenciar tanto

2Ele promoveu este discurso perante a Liga das Nações porque o

seu país fora invandido por Mussolini. Foi um pedido de ajuda para seu povo que estava sendo massacrado por tal fascista.

quanto a cor dos seus olhos, eu terei que dizer guerra. Enquanto os direitos humanos mais básicos não forem garantidos para todos sem distinção de raça, há guerra. E até esse dia, o sonho de uma cidadania mundial, finalmente pacífica, continuará a ser uma mera ilusão a ser seguida e nunca atingida. Haverá guerra, rumores de guerra. Guerra no leste, guerra no oeste, guerra no norte, guerra no sul. Enquanto regimes ignóbeis e infelizes envolverem nossos irmãos, em condições subumanas, em Angola, Moçambique e na África do Sul não forem superados e destruídos, enquanto o fanatismo, os preconceitos, a malícia e os interesses desumanos não forem substituídos pela compreensão, tolerância e boa-vontade, enquanto todos os Africanos não se levantarem e falarem como seres livres, iguais aos olhos de todos os homens como são no Céu, até esse dia, o continente Africano não conhecerá a Paz. Nós, Africanos, iremos lutar, se necessário, e sabemos que iremos vencer, pois somos confiantes na vitória do bem sobre o mal.3

Marley, em suas canções, discute

temas como tolerância e respeito, evidenciando

a diferença do seu pensar (conjunto de idéias)

em relação aos da elite dominadora. Isso

significa, portanto, que o conceito de ideologia

é sinônimo de falseamento da realidade, ou

seja, uma acepção voltada para o em-si,

parafraseando Zizek “[...] destinadas a nos

convencer de sua “veracidade”, mas, na

verdade, servindo a algum inconfesso interesse

3Música original: Until the philosophy which hold one race

superior and another inferior is finally and permanently

discredited and abandoned Everywhere is war, me say war. That until there are no longer first class and second class citizens af

any nation Until the color of a man's skin is of no more

significance than the color of his eyes Me say war. That until the

basic human rights are equally guaranteed to all, without regard

to race, Dis a war. That until that day the dream of lasting peace, world citizenship rule of international morality will remain in

but a fleeting illusion to be pursued, but never attained Now

everywhere is war, war. And until the ignoble and unhappy regimes that hold our brothers in Angola, in Mozambique, South

Africa sub-human bondage have been toppled, utterly destroyed,

Well, everywhere is war, me say war. War in the east, war in the west war up north, war down south war, war, rumours of war.

And until that day, the African continent will not know peace,

we Africans will fight we find it necessary and we know we shall win as we are confident in the victory. Of good over evil,

good over evil, good over evil. Good over evil, good over evil,

good ever evil. Disponível no DVD – One Love the Bob Marley all-star tribute.

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157 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

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particular de poder [...]” (ZIZEK, 1996, p. 15).

Mas, representa também, a relação imaginária

do indivíduo com suas condições reais de

existência, a realidade que se mostra falha e

incompleta, a exemplo dos rastas jamaicanos,

que por meio de uma leitura sintomal do real,

tentaram desaprender a cultura da elite local,

para adotar outra visão de mundo, que será

discutida abaixo: a repatriação como uma

confissão de desenraizamento.

“[...] Eu era inquilino das prisões e

liderava as rebeliões. Agora estou

retornando para casa do meu pai. Na

casa do meu pai, lá tudo é amor sem

restrição de cor” (Edson Gomes)

Partindo do pensamento de Simone

Weil, de acordo a sistematização de Bosi

(1996), este tópico se inicia trazendo a

conceituação de enraizamento, mais um tema

de relevância para os estudos em psicologia

social. De acordo com esta autora, este termo,

pode assim, ser definido:

O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. [...] Um ser humano tem raiz por sua participação real, ativa e natural na exigência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural, ou seja, ocasionada automaticamente pelo lugar, nascimento, profissão, meio. Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber a quase totalidade de sua vida normal, intelectual, espiritual, por intermédio dos meios dos quais faz parte naturalmente. (p.411)

Dessa feita, o enraizamento abrange

laços culturais como relações sociais, pois o

homem enraizado participa de grupos que

conserva a herança de seu passado, e que

buscam transmitir tais referenciais pela

oralidade, ensinamentos dos mais velhos ou

por meio de bens materiais, a exemplo dos

objetos memoriais.

Todavia, quando os negros africanos

chegaram à ilha jamaicana, forçosamente uma

vez que, arrancados do seu território formando

uma diáspora, todas as suas referências

ficaram no território de origem. Do seu

passado, apenas conservava as imagens e

lembranças, mesmo que fosse a de um passado

em ruínas. Essa travessia pode ser entendida

como um desenraizamento, processo este

provocado em razão de conquistas militares e

processos migratórios forçados.

Sobre este aspecto, Bosi ainda

esclarece que para Weil “o desenraizamento é,

evidentemente, a mais perigosa doença das

sociedades humanas, porque se multiplica a si

própria” (BOSI, 1996, p. 415) e a destruição do

passado que este processo acarreta como um

dos maiores crimes contra o homem. Por esta

razão, uma alternativa aos afro-jamaicanos foi

recorrer ao pensamento etiopianista e ao

panafricanismo, como um elo com o passado,

que não exprime um caráter de retrocesso ou

uma idolatria desprovida de reflexão, mas que

os impulsionou na criação de um sistema

simbólico, como reação às circunstâncias que

vivenciavam.

A conjunção das idéiasetiopianistas,

pan-africanistas e garveyístas, fez do

rastafarismo um movimento híbrido e

rizomático, evidente nas canções de reggae,

como as de Marley, nas quais o conceito de

repatriação se torna evidente aproximando

assim, o movimento do conceito de des

(enraizamento). Na canção África Unite,

Marley canta

África, une-te, porque estamos saindo da Babilôniae estamos indo para terra de nosso pai.Como seria bom e agradável, diante de Deus e do

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homem, ver a unificação de todos os africanos. [...]Nós somos as crianças do Rastaman, nós somos as crianças do homem mais elevado, portanto, África, une-te, porque nossas crianças querem vir para casa. [...], porque temos que sair da Babilônia e nós estamos trilhando a terra do nosso pai. [...].4

Por certo, essa poesia musical solicita

aos afro-jamaicanos e demais afro-

descendentes a se unirem em prol e benefício

do continente africano, pois somente desta

forma e pela luta é que esses sujeitos

espalhados pela diáspora presenciarão a queda

do sistema opressor, a Babilônia, e

concretizariam o desejo de repatriamento. A

pregação de uma união pan-africanista

representa os ecos do pensamento garveyísta

no discurso rastafari. Outra canção de Marley

em que aparece o ideal de repatriação é

RastaMan Chant, onde ele cantou “Eu ouço as

palavras que o Rastaman diz: Babilônia, seu

trono vai cair! Eu digo: vá para casa, vá para

Sião. Numa bela manhã, quando o trabalho

acabar; o homem irá para casa”. 5

A letra Exodus, mais uma canção de

Marley, é outro exemplo que aponta a terrível

passagem pela diáspora numa similaridade

com a jornada de Moisés e o povo hebreu,

assim como reflete, a saída desta terra

perversa, entendida por eles como a Babilônia,

ou seja, a Jamaica seria o inferno para os

rastafaris. Eis a canção:

4Música original: Africa, Unite, 'Cause we're moving right out

of Babylon and we're going to our father's land. How good and how pleasant it would be before GOD and man, yeah o see the

unification of all Africans, yeah As it's been said already let it be

done, yeah we are the children of the Rastaman, we are the children of the Higher Man Africa, unite 'cause the children

wanna come home. [...] 'cause we're moving right out of Babylon

And we're grooving to our father's land. […]Africa, Unite. Disponível em:<http://vagalume.uol.com.br/bob-marley/>.

Acessoem: 14 de abr. de 2012. 5Letra original: I hear the words of the Rastaman say: Babylon, your throne gone down. I say fly away home to Zion. One bright

morning when my work is over man will flay away home.

Disponível em: < http://vagalume.uol.com.br/bob-marley/>. Acesso em: 10 de jan. de 2012.

[...] Êxodo, [...]! Movimento do povo de Jah! Abra seus olhos e olhe dentro de você mesmo: Você está satisfeito (com a vida que você está vivendo)? Sabemos onde estamos indo, uh! Nós sabemos de onde viemos. Nós estamos deixando a Babilônia, nós estamos indo para a terra do Nosso Pai.[...]6

Verifica-se, dessa maneira, por meio

das letras das canções acima citadas, que o

desejo de repatriação evidencia o quão

desenraizados sentiam-se os rastas

jamaicanos, uma “[...] espécie de solidão vivida

nas grandes metrópoles, onde a massa de

indivíduos não se reconhecem como habitante

do mundo que está entre os homens, e assim,

não tem a experiência do senso comum

compartilhada [...]” (MELLO, 2008, p.33).

A similaridade com a história da

migração judaica e o processo transferencial

freudiano que envolve duas instâncias – o

passado e o presente -, que os fez enxergarem

na personalidade de HailléSelassié, o messias

cuja missão era conduzi-los à Etiópia;

denuncia que lhes faltava o sentimento de

pertença à sociedade jamaicana da época bem

como uma tentativa de negar a cultura local, e

não ser cooptado por ela, mesmo que, talvez, se

recai em sonhos apocalípticos, parafraseando

Weil.

Soma-se a isto, o fatos dos rastas

jamaicanos terem deslocado todas as suas

emoções, pulsões, sentimentos, defesas,

expectativas e sonhos, fosse de liberdade,

justiça e dias melhores que se encontravam

mascarados no inconsciente coletivo ao profeta

e líderes do ideário rastafari. Traduz-se-ia

numa espécie de transferência idealizada, em

6Letra original: Exodus, […]! Movement of Jah people! Open

your eyes and look within: Are you satisfied (with the life you're

living)? We know where we're going, uh! We know where we're from. We're leaving Babylon, We're going to our Father land.

Disponívelem:< http://letras.terra.com.br/exodus/ >. Acessoem:

14 de jan.de 2012.

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159 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

que tais personagens tornam-se objetos de

veneração, que pelo efeito perverso de um

respeito exagerado, leva os seus fiéis

seguidores a crenças irrealistas. E, diante da

não concretização de atitudes por parte desses

líderes, a exemplo do fiasco da repatriação,

acarreta grandes desilusões ou passagens

despercebidas, a exemplo da frase,

“We’llbeforeverloving Jah!” (significa - nós

sempre amaremos a Jah, e é o título de uma

música de Bob Marley).

Contudo, mas que uma quebra de

imagem, ou a negação de atitudes errôneas,

esse fenômeno deve ser entendido, também,

num conjunto de sentimentos que esses

sujeitos dirigiram a essas lideranças, que

embora não sejam justificáveis pelas suas

atitudes, mas estam pautadas em sua história,

marcada pelo estranhamento com relação ao

local onde se vive, como canta Edson Gomes ao

proferir “[...] Vivo na Babilônia, mas não sou

daqui/ Não dobro meus joelhos/ diante de

imagens,/ não sigo seus conselhos/ pois, meu

Deus é estrangeiro. [...]” (Edson Gomes,

Babylon Vampire, 2001).

A analogia à busca pela terra

prometida se faz marcante, principalmente a

partir das interpretações que refletem o

entendimento sobre viver em um mundo

branco com o prevalecimento de ideias

eurocêntricas. Além disso, prenuncia a luta de

homens negros visionários que iniciaram o

combate contra o preconceito e a

discriminação (questões a serem abordadas),

denunciando a oratória colonial, marcada por

inculcar nas populações colonizadas

estereótipos e fundamentos que definam a sua

falsa superioridade. E mais: creditando na

ressonância do seu discurso, os rastas

tentavam conscientizar as massas.

Outra canção de Marley que confirma

o sofrimento provocado pelo desenraizamento

é Redemption Song, lançada no álbum

Uprising que significa rebelião, lançado em

1980 (RABELO, 2006). Redemption

Songsignifica Canção da redenção, e nela o

cantor narra a terrível experiência dos

africanos que fizeram a travessia do oceano

Atlântico e construíram a diáspora bem como

convoca o oprimido a sair do seu estado de

domínio mental, constituído pela inoculação de

mitos fomentados pela elite, a atingir um

estado de consciência transitivo-crítica

(FREIRE, 1999) para defender a verdade. Essa

canção diz:

Velhos piratas, sim, me roubaram, me venderam aos navios mercantes, minutos depois eles me tiraram do fosso sem fundo, mas minha mão foi feita forte. Pela mão do Todo Poderoso, nós avançamos nesta geração triunfantemente, tudo o que eu sempre tive foi canções de liberdade, você não vai me ajudar a cantar estas canções de liberdade? Porque o que sempre tive foram canções de redenção, canções de redenção. Emancipem suas mentes da escravidão mental, ninguém além de nós mesmos pode libertar sua mente, não tenha medo da energia atômica, porque nenhum deles pode parar o tempo. Até quando eles mataram nossos profetas? Enquanto ficamos de lado e olhamos. Temos que cumprir o Livro. Você não vai me ajudar a cantar estas canções de liberdade? Porque o que sempre tive foram canções de redenção, canções de redenção. Tudo o que eu sempre tive foram canções de redenção, essas canções de liberdade, canções de liberdade.7

7Letra original: Old pirates, yes, they rob I; Sold I to the merchant ships, Minutes after they took From the bottom less

pit. But my hand was made strong By the hand of the Almighty.

We forward in this generation Triumphantly. Won't you help to sing these songs of freedom. 'Cause all I ever have: Redemption

songs, Redemption songs. Emancipate yourselves from mental

slavery; None but ourselves can free our minds. Have no fear for atomic energy, 'Cause none of them can stop the time, How long

shall they kill our prophets?, While we stand aside and look ,

Oh! Some say it's just a part of it: We've got to fulfill the book. Won't you help to sing these songs of freedom? 'Cause all I ever

have: Redemption songs, Redemption songs, These songs of

freedom. (RABELO, 2006, p. 307-308)

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160 Geórgia de Castro Machado Ferreira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

A partir da análise dessa canção de Bob

Marley percebeu-se, também, o discurso

emancipatório presente na contra ideologia

rastafari. Primeiramente, porque os rastas,

enquanto oprimidos identificaram o seu

opressor e partiram para uma posição de

engajamento “na luta organizada por sua

libertação” (FREIRE, 1987, p. 52), mesmo que

simbólica por meio de crenças e da música,

cujo ato consiste numa ação de amor e

esperança. Em segundo lugar, porque esses

sujeitos restritos à condição de marginalização,

resistiram à tentativa da sociedade jamaicana

de adequá-los e acomodá-los aos padrões

sociais da elite buscando incessatemente a

repatriação, conforme retratatado,

anteriormente, permanecendo com o seu

pensar, embora contraditório em alguns

momentos. Sendo que isso não pode tirar o

caráter emancipador da contra

ideologiarastafari, um complexo de idéias

híbridas e difusas entre si, que permitiu aos

rastas construírem uma identidade na

diáspora.

Por fim, como pensar diferente é

perigoso, principalmente para as elites, que

vêem seu poder ameaçado, os rastas sofreram

severas repressões tanto físicas quanto

psicológicas caracterizadas pelos rótulos de

marginais e drogados, caracterizando o

preconceito e a humilhação.

“Somos barrados no baile, eles dizem

que é só para gente bonita”: nuances do

preconceito e humilhação social

O preconceito deve ser entendido

como uma projeção (CROCHÍK, 2006), pois o

indivíduo enxerga um objeto a partir de suas

experiências, que constituem idéias pré-

concebidas, portanto rígidas, que os fazem

avistar a realidade apenas a partir de sua ótica.

Sendo assim, o termo preconceito é um juízo

preconcebido, manifestado geralmente numa

atitude discriminatória contra algum cidadão,

cultura ou lugar, considerados como diferentes

e que causem estranheza. Logo, caracterizando

uma idéia preconcebida, significa dizer que o

preconceito gira em torno de pré-conceitos.

A distinção chave entre os dois termos

é: recorrendo à teoria do conhecimento,

existem três elementos que o compõem o

saber, que são um sujeito, um objeto e uma

imagem. O indivíduo irá ler o objeto a partir

das idéias preconcebidas que possui, o que

compõe os seus pré-conceitos. Contudo, a

formação do saber é interrompida quando o

sujeito não devolve as características do objeto,

a partir da experimentação, fazendo com que a

imagem formada mantenha-se igual;

transformando o pré-conceito em preconceito.

Nesse sentido, o preconceito não é

inato, mas sim, introjetado através dos

processos de socialização, a exemplo da

convivência familiar e social e na transmissão

de culturas por meio do universo das gerações.

Isso nos leva a refletir que o preconceito é

embutido no indivíduo na primeira infância,

gerando predisposições para incorporar os

saberes transmitidos, sem reflexão,

confirmando assim, que “o preconceito não é

um fenômeno, sobretudo cognitivo; antes, ele é

contrário ao ato de conhecer: obsta o

conhecimento [...]” (CROCHÍK, 2008, p.78),

negando o desconhecido.

Uma pessoa com características que

predispõe ao preconceito se julga superior ao

objeto, grupo ou sujeitos, na tentativa de

ocultar a impotência que sente para lidar com

os sofrimentos oriundos da realidade,

fingindo-se “de morto frente ao objeto que gera

estranheza” (idem, 2006, p. 16), criando

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161 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

especulações que giram em torno da rejeição

ou complacência benevolente, perante aos

sujeitos que apresentam determinadas

particularidades que rompem com a percepção

daquilo considerado comum ou normal.

Verifica-se, então, que no caso dos

rastas jamaicanos e rastas baianos uma das

reações foi à rejeição manifestada na tentativa

de eliminá-los por considerá-los sem nenhum

valor e, noutro momento, a partir da

legitimação desse movimento, a tentativa de

cooptar Bob Marley, com fins eleitoreiros,

como um espécie de benevolência. Entretanto,

essas reações apontam para uma cegueira

daquele que não reconhece que a reação

causada pelo outro possui respaldo nele

mesmo, uma vez que, “quanto maior a

debilidade de experimentar e de refletir, maior

a necessidade de nos defendermos daqueles

que nos causam estranheza. [...] porque o

estranho é demasiado familiar” (CROCHÍK,

2006, p. 17).

A sociedade envolvente os rotulava de

marginais, drogados, fanáticos religiosos,

maconheiros, sujos. A respeito do consumo de

ganja, eles justificavam a necessidade para fins

espirituais e para meditação. Trata-se de um

aspecto cultural, mas enfatiza-se que este

artigo não tem caráter apologético, bem como

não irá se ater a este costume. Entretanto, de

certo, alguns foram presos quando vendiam

ganja para sustentar a Pinnacle (um dos

acampamentos rastafaris). Mas, não se pode

esquecer que, em todo e em qualquer

movimento social, há seus elementos

corruptíveis, e isso não se configura numa

razão para se desconsiderar este importante

movimento da diáspora afro caribenha, que

tem na resistência sua marca.

Já em relação ao uso dos dreadlocks,

estes causavam ojeriza e assustavam os não

adeptos ao rastafarismo, em razão do seu

aspecto sujo e mal-cuidado. Certamente,

recorrendo às nuances etnográficas, se

descobrirá que esses gomos nos cabelos

possuem raízes históricas (ROSA, 2008). Eles

representam um patrimônio jamaicano

materializado em gomos nos cabelos,

concernentes com a Bíblia, a partir da

interpretação de um versículo do Velho

Testamento que prediz “que nenhuma lâmina

deverá tocar a cabeça do justo”, e com a

imagem do leão.

Figura 2: Dreadlocks Fonte: Disponível

em:<vivlefreak.blogspot.com>. Acesso em: 25 de jan. de 2012.

O simbolismo do leão, mais um

símbolo que orienta as crenças e práticas

cotidianas dos rastas jamaicanos, possui razões

variadas, como alertou Rabelo (2006). A

imagem do leão nas escrituras bíblicas é

notória, principalmente, a associação desse

animal a Tribo de Judá que originou a

linhagem de Davi e Salomão, estendendo-se a

Jesus e a Selassié, presentes no capítulo 49, do

livro gênesis, e no capítulo 5 do livro revelação.

É preciso relembrar, que um dos títulos de

Selassié era o Leão Conquistador da Tribo de

Judá, símbolo ostentado, também, na bandeira

do seu reino, a Etiópia, até a sua derrocada.

Soma-se a isto, o fato desse animal ser

uma espécie característica das savanas

africanas, continente sagrado para os rastas

jamaicanos. É sinônimo de força, agilidade,

agressividade e poder e a “juba desgrenhada

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162 Geórgia de Castro Machado Ferreira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

dos leões se assemelha à cabeleira de locks que

a maioria dos rastafaris exibe” (RABELO,

ibidem, p. 390), conferindo-lhes o título de

guerreiros. O uso dos dreadlocks remetem a

tradições milenares, revelando a busca, pela

tradição e referência identitária, numa atitude

de afirmação étnica. Sendo assim, a adoção

dessa estética traduzia-se num elemento

contundente de africanidade cuja intenção era

a de chocar o gosto do cidadão comum

jamaicano. Em contrapartida, “a aparência dos

dreads, contudo, continua a ser um estereótipo

e uma fonte de estigma como uma aparência

suja, desleixada e anti-higiênica entre as

pessoas de fora do movimento rastafari [...]”

(RABELO, 2006, p. 492)

Por esta razão, complementa Rabelo

que

Não somente os dreads, mas os rastafaris em geral, costumavam e costumam ter bastante cuidado com a higiene do corpo. Seu sentido simbólico de impureza, como por exemplo, suas representações sobre os fluxos femininos, fazem com que tenham apreço pelo uso purificador da água. O cuidado com o cabelo e o corpo é feito com o uso de água e de ervas, pois eles rejeitam produtos químicos e industrializados como sabão e xampu. Os cachos não são penteados, mas deixados crescer livremente. Alguns enrolam, aplicam cera e lustram seus cachos, embora os cabelos afros não adquiram o brilho que possuem os cabelos lisos, permanecendo sua aparência fosca. É somente pelo preconceito de que o cabelo sem brilho é necessariamente um cabelo mal descuidado ou mal tratado que faz com que os locks sejam considerados como algo realmente horrível [...] (RABELO, 2006, p. 492)

Revela-se, portanto, que a música de

caráter étnico e combativo assim como o

discurso do rastafarianismo foi desconsiderada

por uma maioria, predominando esses

atributos fixos como características, fundando

mais uma estereotipia. Os estereótipos são

criados pela cultura, com o intuito de fortalecer

o preconceito, que nada mais é do que uma

reação individual, fortalecendo e servindo de

justificativa para ele.

Na verdade, os estereótipos

configuram-se na principal estratégia do

discurso colonial (BHABHA, 1998), que se

constitui em um modo ambivalente de

conhecimento e poder. Segundo este autor,

como o estereótipo rejeita as diferenças

reduzindo o outro a um conjunto limitado de

características, confluindo com o pensamento

de Crochík (2006), conseqüentemente, rejeita

alteridade e nega as diferenças existentes no

processo de construção da identidade, e com

isso, desconsidera a sua necessidade assim

como a do hibridismo nessa construção;

pressupondo existir identidades puras e não

híbridas.

Dessa forma, é possível inferir que a

elite jamaicana e afro-baiana, discrimina tal

movimento, porque parte das considerações

presentes no discurso colonial e na sua ênfase

na desconsideração das singularidades nas

identidades dos grupos tidos como

subalternos, os apresentando como

degenerados. Esse falseamento tenta ocultar o

hibridismo, o dinamismo e o constante

processo de transformação da cultura e da

identidade, estratégia de sobrevivência de

caráter transnacional e tradutória, conforme

esclareceu Bhabha (1998). Por esta razão, faz-

se necessário buscar as referências históricas

para adoção de determinados

comportamentos.

Completando esse pensamento, Rosa

(2008), afirma que

oRastafarianismofoi estudado pela visibilidade que conferiu às tradições milenares africanas do Egito e Etiópia através das performances musicais jamaicanas do século XX, em que o reggae construído na diáspora fez

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163 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

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emergir sentimentos de orgulho negro elegendo fatos históricos para serem recontados sob a luz de ideais panafricanistas fortemente difundidos na América do Norte e Caribe. (ROSA, 2008, p. 10)

Isso vem comprovar que juízos

provisórios se transformam em preconceitos

(PATTO, 2008). Dessa forma, é interessante

perceber que, às vezes, o preconceito se

estabelece porque o sujeito atribui ao objeto

características que lhe são próprias. Sendo

assim, os atributos que constituem o

preconceito, não são imediatos, mas são frutos

da combinação de fatores ideológicos,

econômicos, psíquicos, religiosos entre outros,

com argumentos desprovidos de

experimentação e reflexão.

Corrobora, também, com esse

pensamento Crochík, ao afirmar que

O preconceito diz respeito a um mecanismo desenvolvido pelo indivíduo para poder se defender de ameaças imaginárias, e assim é um falseamento da realidade, que o individuo foi impedido de enxergar e que contém elementos que ele gostaria de ter para si, mas se vê obrigado a não ter; quanto maior o desejo de poder se identificar com a pessoa vítima do preconceito, mais esse tem de ser fortalecido. (CROCHÍK, 2006, p. 22)

E sendo um mecanismo,

Como esclarece Sartre, o preconceituoso sofre da nostalgia da impermeabilidade. Temendo a forma precária e transitória da verdade, resiste à razão e à experiência que lhe apontam contornos indefinidos da verdade, renega a dúvida e a hesitação e anseia pelo estado de pedra no qual se mantém impermeável. [...] recusa o diálogo e é surda aos bons argumentos, erguendo uma convicção que nada mais é do que o fruto da negação da experiência e da razão. [...] (SCHMIDT, 2008, p. 60)

É difícil apontar os geradores dos

preconceitos, mas podem-se elencar alguns

possíveis contribuidores para tal fenômeno,

como os sentimentos de medo e a intolerância

ao diferente, a ignorância, a educação

domesticada, que prepara os indivíduos para

se tornarem meros reprodutores e

mantenedores de uma sociedade gerenciada

pelas regras e lógica da indústria. Essas

atitudes evidenciam uma espécie de defesa

frente à angústia que o objeto alvo de

preconceito provoca na imaginação de quem

visualiza, sendo assim, deve ser entendido

como uma necessidade psíquica,

parafraseando Crochík.

Talvez se possa afirmar, ou conjeturar,

que o resultado do preconceito seria a

formação de estereótipos, discriminação e

principalmente o fenômeno da humilhação

social. Isso porque, se o preconceito pode ser

entendido como a expressão de atitudes hostis

contra minorias e produto das relações entre as

necessidades psíquicas e ideológicas, gera-se, a

partir dele uma humilhação, uma vez que “no

preconceito estou voltado para o outro como

para um estranho, mas não só: encontro-me na

contingência de dirigir-me a ele (ou poder a

qualquer instante fazê-lo) como alguém abaixo

e a meu serviço” (GONÇALVES FILHO, 2007,

p. 212).

A Canção “Barrados no baile” de Edson

Gomes evidencia bem os estereótipos e

estigmas atribuídos aos afro-baianos e rastas,

que culminariam numa espécie de

rebaixamento. Eis a canção:

Ando meu cansado (não desisto), por várias vezes barrados no baile (ainda insisto), acredito em tudo aquilo que faço e persisto em tudo aquilo que faço, acredito naquele que vem do espaço [...]. Ainda ontem no condominio que moro, uma senhora quando me avistou, apertou a bolsa, ela escondeu sua bolsa. Apertou a bolsa, a branca segurou logo a bolsa. São cenas da minha cidade, uma doença da sociadede. Cenas da minha cidade uma doença talvez incuravel, e você aí, comopassa? Você aí o que

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acha? Somos barrados no baile,todos barrados no baile eles dizem, que só é para gente bonita. [...] (Edson Gomes, Barrados no Baile, 2005)

As letras do cachoeirano Edson Gomes

são simples em suas rimas, e de fácil

entendimento, atingindo facilmente as massas,

a exemplo da letra acima, na qual ele denuncia

o racismo, a discriminação e o preconceito pela

estética rastafari e pela cor da pele,

precisamente ao afirmar “uma senhora me

avistou e escondeu sua bolsa”, permanecendo o

estigma de que todo afro-descendente e afro-

rasta seriam ladrões. Além disso, a sua

vociferação, ainda aparece contundente, ao

apontar esses sentimentos como “uma doença

da sociedade incurável”, capaz de humilhar

esses sujeitos.

O termo humilhação deriva da palavra

abaixar, consistindo numa “ação pela qual

alguém põe um outro como inferior,

abordando-o soberbamente” (GONÇALVES

FILHO, 2007, p. 188). Nesse sentido,

retomando a música acima, esses sujeitos

sofrem por não serem considerados dignos

para adentrar em determinados locais, devido

à sua condição social, status, raça e aparência,

visível nas expressões “ando cansado, por

várias vezes barrados no baile/ eles dizem que

só é para gente bonita”, traduzindo-se numa

negação ao gozo de espaços, um dos

sentimentos que caracteriza tal fenômeno.

Em virtude disso, recorrendo

novamente a Gonçalves Filho, se percebe que

Os espaços e caminhos públicos, na sociedade de classes, são imantados pelo poder de segregar, pelo poder de sempre atualizar a desigualdade. [...] o humilhado não pode evitar “despencar em sua realidade”, arrastado para perto de seu pai ou sua mãe, seu irmão ou seus amigos, todos excluídos da praça onde a presença dos pobres não pode contar, a não ser a serviço dos que despendem dinheiro e ordens. O sabor da alegria vai logo

amargar, misturado ao fel da desigualdade, ao sentimento de que a cidade é fechada para os humildes. (GONÇALVES FILHO, 2007, p. 200)

Somam-se a isto as denominações

pejorativas em que são apelidados, a exemplo

de “ladrões” e “drogados”. Embora, as

elucubrações aqui apresentadas não sejam de

caráter fantasioso, reconhecendo-se a presença

nessa comunidade de indivíduos, cuja índole,

princípios e atitudes variam de acordo a

postura adotada por cada um; o que se percebe

é a interiorização desses estigmas, como se

fosse ao todo verdadeiros e, portanto

banalizados. É importante frisar que esses

elementos pejorativos

[...] São gestos ou frases dos outros que penetram e não abandonam o corpo ou alma do rebaixado. O adulto e o idoso, já antes o jovem ou a criança, vão como que diminuir, vão guardar a estranha e perturbadora lembrança de quem a eles se dirigiu como quem se tenha dirigido a um inferior. São lembranças que vão desarrumar a percepção e a fantasia, a memória, a linguagem, o sono e o sonho. [...]. (GONÇALVES FILHO, 2007, p. 196)

Isso nos mostra que os estigmas

impelidos à categoria são mormente criados e

inseridos de forma tão profunda e incisiva por

um longo período de tempo, que se torna até

difícil “hidrolisar” tal figura. Contudo,

percebeu-se que tais temas abordados nos

discursos dos rastas, são feitos com alegria e

um sorriso na face; evidenciando a felicidade

guerreira, parafraseando o professor

Raimundo Sodré, que consiste numa

característica da população afro, que

independente do seu sofrimento, continua a

exaurir suas forças na luta diária, sem perder a

esperança, a fé e a alegria.

Outro sofrimento provocado pela

humilhação social é a invisibilidade, a qual foi

combatida pelos adeptos ao rastafarismo; pois

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165 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

por meio do reggae, os rastas jamaicanos

disseminaram para o mundo as principais

ideias do movimento, e estas, foram traduzidas

culturalmente pelos rastas baianos,

considerando seu contexto social e histórico,

verificando-se assim, esboços de reação

principalmente pelo grito, ação impulsiva,

discurso e ações sóbrias, por meio da música.

Por exemplo, Bob Marley na melodia

intitulada Getup stand up cantava:

Levante, resista: erga-se pelos seus direitos! Levante, resista: não desista da luta! [...]. A maioria das pessoas pensa que o grande Deus surgirá dos céus e levará tudo, E fazer todo mundo se sentir elevado. Mas se você sabe o quanto vale a vida, vai procurar o céu aqui na terra. E agora que você enxerga a luz, lute pelos seus direitos, Jah! Estamos cheios e cansados do seu jogo de ismos, morrer e ir pro céu em nome de Jesus Senhor. Nós sabemos e entendemos, o Deus poderoso é um homem vivo. Você pode enganar algumas pessoas às vezes, mas não pode enganar todo mundo, o tempo todo. Então agora que você enxerga a luz (o que você vai fazer?)Vamos lutar por nossos direitos!8

A canção de Marley é clara em seu

propósito: alertar a população acerca das falsas

verdades impostas pelo eurocentrismo, sendo

que uma delas na visão desses sujeitos é a

criação do céu como um mundo ultraterreno

que garantirá a salvação aos bons homens após

8Letra original: Get up, stand up: stand up for your rights! Get up, stand up: don't give up the fight! […]. Most people think,

Great God will come from the sky, Take away everything And

make everybody feel high. But if you know what life is worth, You will look for yours on earth: And now you see the light,

You stand up for your rights. Jah! Get up, stand up! (Jah, Jah!)

Stand up for your rights! (Oh-hoo!) Get up, stand up! (Get up, stand up!) Don't give up the fight! (Life is your right!). We sick

an' tired of-a your ism-skism game - Dyin' 'n' goin' to heaven in-

a Jesus' name, Lord. We know when we understand: Almighty God is a living man. You can fool some people sometimes, But

you can't fool all the people all the time. So now we see the light

(What you gonna do?), Wegonna stand up for our rights! (Yeah, yeah,) So you better: Get up, stand up! (In the morning!Git it

up!), Stand up for your rights! (Stand up for our rights!), Get up,

stand up! Don't give up the fight! (Don't give it up, don't give it. Disponível em:<http://vagalume.uol.com.br/bob-marley/>.

Acesso em: 14 de abr. de 2012.

a morte (VASQUEZ, 1997). O céu como paraíso

seria a única solução contra os males sociais.

Para eles, conforme citado anteriormente, o

paraíso fica na terra e em solo africano. Sendo

assim, os afro-jamaicanos renegam a cultura

do colonizador, reafirmando a necessidade de

se construir a própria história do negro e do

continente africano.

Soma-se a isto o clamor que Bob

Marley faz, ao chamar o povo oprimido a

erguer-se, adotando uma postura

revolucionária para conquistar seus direitos,

como a única alternativa de concretizar a “sua

vocação de ser mais, que não é um privilégio de

alguns, mas direito dos homens” (FREIRE,

1987, p.81), evidenciando a angústia provocada

pela dominação, outro sentimento oriundo da

humilhação social.

Portanto, de acordo com Cunha, essas

letras estimulam a

[...] busca por outros referenciais que não os divulgados pelo sistema, as partir de uma “outra história”,construída de forma a restabelecer vínculos míticos, históricos e políticos com a África / Etiópia, ao contrário da orientação eurocêntrica difundida pelo “opressor”. (CUNHA, 1993, p. 127)

Por outro lado, quando Marley canta

“estamos cheios e cansados do seu jogo de

ismos, morrer e ir pro céu em nome de Jesus

Senhor” não implica dizer que esses sujeitos

sociais estejam negando a divindade de Jesus

Cristo, ao contrário; a situam no passado. Isso

porque acreditavam que Jesus era negro e

tinha como missão salvar sua etnia. Logo,

Selassiê se tornou símbolo dessa nova epifania,

o paraíso esperado por eles, ao passo que a

terra africana governada por esse monarca se

tornar à nova Sião.

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166 Geórgia de Castro Machado Ferreira

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Na canção intitulada “O país é

culpado”, Edson Gomes apontará mais uma

tradução cultural referente ao rastafarismo:

Não existe nenhum lugar pra ir, só Jesus pode nos salvar! Somos senhores das favelas, somos senhores da pobreza, falta alimento em nossas mesas. Conclusão: o país é culpado! Quando o mestre então voltar, quando o mestre nos resgatar, enquanto não vem, somos senhores das calçadas, enquanto não vem, somos senhores das sinaleiras, enquanto não vem, superlotamos as penitenciárias. Conclusão: o país é culpado! Somos sobreviventes do tempo, somos filhos da santa esperança, somos passivos, resistentes, mergulhados em toda essa lama. A razão do nosso viver, meu Deus, é teu filho que vem nos salvar, enquanto não vem, somos os analfabetos, enquanto não vem, orgulhosos e discretos, enquanto não vem, grandessíssimos idiotas. Conclusão: o país é culpado. (Edson Gomes, O país é culpado, 2001)

A culpabilidade da situação de pobreza

e marginalização é atribuída ao país

(identificado com o Sistema ou o Status quo).

Por outro lado, a esperança referida na canção

deve ser compreendida como uma crítica. Isso

não significa que Edson Gomes desconsidere a

fé, ao contrário. Nessa canção, ele evidencia

que a fé em Deus é que dá forças ao homem

para resistir a toda espécie de sofrimento, pois

proporciona a esperança em dias melhores.

Porém, o que o cantor alerta é que a

esperança sem luta para atingir a libertação

conduz à passividade e à aceitação da situação

de subalternidade. Além disso, os sujeitos

oprimidos aparecem subentendidos, o que na

canção “Somos nós”, Edson Gomes tratará de

uma maneira dura os negros como esses

sujeitos:

Sim, somos nós que estamos nas calçadas. Sim, somos nós estamos nas prisões, nos alagados. Sim, somos nós os marginais. Sim, somos nós brutalizados, os favelados, dos porões,

do inferno, o inferno é aqui. Sim, somos nós os sem diretos. Sim, somos nós os imperfeitos, somos os negros. Sim, somos nós filhos de Jah. Sim, somos nós os perseguidos, os habitantes dos porões do inferno, o inferno é aqui! (Edson Gomes, Somos nós, 1992)

Na poesia musical acima, Edson

Gomes evidencia as condições perversas a que

os negros são submetidos como agravante da

situação de marginalização social em que se

encontram. Trata-se de uma imagem negativa

forjada pela elite opressora, para manter seu

status quo cercado de regalias, e introjetada

nos afro-descendentes, para mantê-los na

situação de perseguição e condicionados a

situações subumanas como a vida miserável

nas favelas, confirmando assim, o fenômeno da

humilhação compreendido também como “o

rebaixamento que atinge alguém só depois de

haver atingido sua família ou raça [...] às vezes

uma nação ou povos inteiros” (GONÇALVES

FILHO, 2007, p. 187).

Deduz-se, portanto, a identificação dos

negros baianos com o reggae e que a sua

produção na cidade tornou-se um campo

propício para tematizar as questões

relacionadas ao preconceito, à humilhação e à

exaltação da negritude. A diversidade de ideias

presentes nas letras dessas canções sejam

aquelas produzidas no seu berço – a Jamaica

ou nas músicas de Gomes em Salvador possui

um marcante intercruzamento. Existe,

portanto, um elo de africanidade, evidenciado

na semelhança dos discursos exteriorizados

por meio do reggae, uma vez que o

rastafarismo em Salvador é uma tradução

cultural desse movimento urdido na Jamaica.

Considerações finais

Movimento urdido na Jamaica, o

rastafarismo pode ser entendido como um

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167 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

movimento emancipador marcado por um

discurso de resistência e afirmação étnico-

política caracterizado pelas seguintes ideias: a

Etiópia como paraíso, HailléSelassié conhecido

como Deus Vivo capaz de reconduzir os rastas

jamaicanos a terra prometida, condição

essencial para libertação desses sujeitos

sociais.

Sendo a música o principal veículo

disseminador do rastafarismo foi o reggae,

estilo musical cuja criação fora atribuída aos

rastas jamaicanos; por esta razão, as letras

veiculadas nessas canções se tornaram um

instrumento essencial para elaboração desse

escrito, pois foram analisadas a partir de temas

e conceitos basilares da psicologia social, como

enraizamento, preconceito, humilhação social

e ideologia.

Verificou-se que o movimento

rastafari é uma contra ideologia de cunho

político, religioso, filosófico e étnico. Isso

porque rastafarismo é composto por conjunto

de idéias e valores orientadores da prática de

seus adeptos, a exemplo de sua estética e o

desejo da repatriação, com o objetivo de

construir uma identidade, marcadamente

híbrida e rizomática, na luta contra as práticas

e pensamentos pregados pelo discurso

colonial.

O conceito de repatriação, por sua vez,

revelou o sentimento de desenraizamento dos

afro-jamaicanos, outro conceito da psicologia

social o qual se recorreu como referencial

analítico. Em suma, a necessidade da

repatriação, concebida como a aspiração de

retornar ao continente africano,

especificamente a Etiópia, evidenciou a

sensação de não pertença dos afro-rastas à

sociedade envolvente, ficando nítido o quão

desenraizados sentiam-se.

Decerto, a elite local desprezava os

valores, as práticas, costumes e estética dos

intitulados rastafaris, a exemplo do consumo

de ganja e do uso dos dreadlocks; tornando

esses sujeitos sociais em alvos de preconceito e

discriminação, tanto na Jamaica quanto na

Bahia, recaindo-se nos aspectos da humilhação

social.

A humilhação social é política e

justaposta ao indivíduo ou grupo em razão da

diferença de classes, repassando por gerações o

sentimento de estar abaixo do outro. Desse

processo resultou a negação do gozo de

espaços, pois os rastas não podem adentrar em

determinados locais, a angústia de ser

dominado e a desigualdade, em termos da

retirada de direitos e possibilidades. Visíveis

socialmente, os afro-rastas jamaicanos e

baianos, o são; mas, como alvo de ojeriza,

repúdio, medo e marginalização.

Todavia, percebeu-se que contra os

processos de discriminação, preconceito

humilhação e desenraizamento, os rastafaris

empreenderam ações principalmente através

do discurso étnico e de caráter afirmativo,

veiculado por meio reggae, que aborda

inúmeras temáticas, ora de amor e paz assim

como clamores de justiça e conquista de

direitos, por esta razão, é reverenciada como

música de protesto e sinônimo de

conscientização.

Faz-se necessário se despir dos rótulos,

nesse caso aqueles atribuídos aos rastafaris.

Não é preciso se tornar um, nem tampouco

aceitar todas as suas doutrinas. Contudo, é

preciso empatia para tentar entendê-las e

enxergar a sua importância, pois vale lembrar

que cada cultura tem suas próprias

idiossincrasias, contradições, processos de

exclusão que, para bem ou mal, estabelecem

sentidos e identidades.

Page 171: Opará Revista vol. 2 julho/2014

168 Geórgia de Castro Machado Ferreira

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

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CASAMENTO REALIZADO EM TERREIRO DE

CANDOMBLÉ

Joelma Boaventura da Silva Bomfim1 RESUMO O presente artigo discute o reconhecimento dos efeitos civis do casamento realizado em cerimônias de Umbanda e Candomblé como manifestação de cumprimento constitucional do respeito à crença. Alguns institutos serão tratados, tais como, casamento e religião, visando ao aprofundamento da temática. O desenvolvimento do tema permite a interface das áreas jurídica e antropológica. Palavras-chave: Casamento. Lei de Registros Públicos. Religião. Constituição Federal. Candomblé. Umbanda. ABSTRACT This article discusses the recognition of civil effects of marriage performed in Umbanda and Candomblé ceremonies as a manifestation of constitutional fulfillment of respect to belief. Some institutes will be processed, such as marriage and religion, aimed at deepening the subject. The development of the subject allows the interface between the legal and anthropological areas. Keywords: Marriage. Public Records Act. Religion. Federal Constitution. Candomblé. Umbanda.

1 Graduada em Direito. Especialista em Metodologia do Ensino, Pesquisa e Extensão. Advogada, Professora Universitária junto a UNEB/

Campus VIII – Paulo Afonso - Bahia. Contatos: [email protected]; [email protected]

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171 Casamento realizado em terreiro de Candomblé

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

INTRODUÇÃO

A temática aqui discutida discorrerá

sobre os requisitos habilitatórios do

casamento, em especial no que se refere ao

casamento religioso com efeito civil. As

religiões Candomblé e Umbanda serão

abordadas em conjunto quanto ao

reconhecimento das celebrações realizadas em

suas casas/terreiros para fins de casamento

civil. Faz-se necessário construir todo um

arcabouço conceitual relacionado ao

casamento e a religião, bem como recorrer à

fonte do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística – IBGE, com dados censitários.

O caráter procedimental do casamento

será tratado com base no Código Civil

Brasileiro e Lei de Registros Públicos. A base

constitucional tanto para a liberdade de crença

e suas expressões, bem como, o

reconhecimento do casamento como formação

da família, será trazido à baila neste trabalho.

A fundamentação teórica faz-se com autores

civilistas de renome como Diniz (2007), Lobo

(2009) e Gonçalves (2007), enquanto que a

discussão constitucional e religiosa baseia-se

em Abbagnano (1982), Ribeiro (1996),

Scherkerkewitz (2011), Silva (1989), Vergê

(2009) e Dallari (1989).

A apresentação de um julgado atual

envolvendo a temática será um recurso

empregado para favorecer a compreensão do

tema.

1. SOBRE CASAMENTO

O casamento é um instituto jurídico

civil com disciplinamento disposto no Código

Civil Brasileiro de 2002 (CCB/02) e na Lei de

Registros Públicos2, além de ter status

2Lei nº 6.015/ 73.

constitucional pelo artigo 226 e seus incisos3.

Apresenta-se a seguir breve conceituação do

instituto casamento, tendo por base Lobo

(2009), que assim preleciona:

O casamento é um ato jurídico negocial solene, público e complexo, mediante o qual um homem e uma mulher constituem família, pela livre manifestação de vontade e pelo reconhecimento do Estado (p. 76, grifo nosso).

Merece o destaque da citação acima,

quanto ao reconhecimento do casamento pelo

Estado, tendo em vista que nossa temática

discutirá a necessidade desse reconhecimento

nas celebrações matrimoniais advindas de

religiões como Candomblé e Umbanda. Nesse

diapasão cita-se, também, Gonçalves (2007)

com o conceito de casamento, o qual assim

dispõe:

Casamento é a união legal entre um homem e uma mulher, com o objetivo de constituírem a família legítima. “Reconhece-se-lhe o efeito de estabelecer” comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges (p.09, grifo nosso).

Observa-se que a conceituação trazida

por Gonçalves (Ibidem) também trata do

reconhecimento do casamento, mais

especificamente quanto ao efeito deste para

estabelecer comunhão plena de vida entre os

cônjuges. Por derradeiro, traz-se a

conceituação de Diniz (2007) para melhor

esclarecer a temática:

O casamento é o vínculo jurídico entre o homem e a mulher que visa o auxílio mútuo material e espiritual, de modo que haja uma integração fisiopsíquica e a constituição de uma família (p.38, grifo nosso).

3A família é a base da sociedade e tem especial proteção do

Estado.§ 1º O casamento é civil e gratuito a celebração. §2º O

casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

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172 Joelma Boaventura da Silva Bonfim

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

Vale ressaltar o caráter vinculatório do

casamento na esfera jurídica, logo, inferindo-se

ainda o controle do Estado4 sobre as

manifestações de vontade das pessoas. Por ter

um caráter de vínculo jurídico, necessário faz-

se cumprir algumas formalidades como

habilitação e celebração.

A primeira dessas formalidades,

habilitação, é preliminar e desenvolve-se

perante o oficial do registro civil conforme

preceitua o artigo 15265 do Código Civil

Brasileiro (CCB). Segundo Gonçalves (2007,

p.03), “destina-se a constatar a capacidade

para o casamento, a inexistência de

impedimentos matrimoniais e dar publicidade

à pretensão dos nubentes”. Sendo assim, o

Estado, através do Ofício de Registro,

regulamenta preliminarmente o casamento,

pois é expedido o certificado de habilitação, o

qual “é documento indispensável para que haja

celebração civil ou religiosa do casamento”

(LOBO, 2009, p.91).

A segunda formalidade referente ao

casamento é a celebração, que pode ser

definida com ato formal, solene e público. Por

ser ato, é manifestação expressa clara, livre e

consciente dos nubentes não isentando a

autoridade competente de manifestação

conforme artigos 1533 e 1535 CCB6.

Pode-se classificar o casamento quanto

à celebração e seus efeitos, em civil e religioso.

4Estado deve ser aqui entendido conforme conceitua Dalmo de

Abreu Dallari como sendo "organização jurídica soberana que

tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território”. DALLARI, Dalmo de Abreu in "Elementos de teoria

geral do Estado". São Paulo, Saraiva, 1989. 5 Art. 1526 CCB. A habilitação será feita pessoalmente perante o oficial do registro Civil, com a audiência do Ministério Público. 6Art. 1533 CCB. Celebrar-se-á o casamento, no dia, hora e lugar

previamente designados pela autoridade que houver de presidir o ato, mediante petição dos contraentes, que se mostrem

habilitados com a certidão do art. 1531.

Art. 1535 CCB. Presentes os contraentes, em pessoa ou por procurador especial, juntamente com as testemunhas e o oficial

do registro, o presidente do ato, ouvida aos nubentes a afirmação

de que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento, nestes termos: “de acordo com a vontade

que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes

por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados”.

Pela Constituição da República Federativa do

Brasil de 1988 (CRFB/88), artigo 226, § 1º7, o

casamento é civil com celebração gratuita. Já o

casamento religioso aparece no § 2º deste

mesmo artigo, ressalvando-se que essa

modalidade de casamento terá efeito civil, nos

termos da lei.

Faz-se necessária uma breve digressão

sobre os casamentos civis e religiosos no Brasil

para melhor entendimento da temática

inaugurando assim mais um item deste artigo.

2. BREVE HISTÓRICO DOS

CASAMENTOS CIVIL E RELIGIOSO

De início, o casamento no Brasil era

regulado pela Igreja Católica de forma titular

quase absoluta conforme relata Diniz (2007)

que:

[...] a Igreja Católica foi titular quase que absoluta dos direitos matrimoniais; pelo decreto de 3 de novembro de 1827 os princípios do direito canônico regiam todo e qualquer ato nupcial, com base nas disposições do Concílio Tridentino e da Constituição do arcebispado da Bahia (p. 52-53, grifo nosso)

Como bem se percebe da transcrição, o

casamento era regido pelo direito canônico, ou

seja, o Estado até a metade do século XIX

estava em segundo plano na celebração do

casamento. Cabe ainda destacar que a Igreja

Católica tinha a titularidade dos direitos

matrimoniais. Essa situação muda ainda no

século XIX, a partir de 1863, com o advento da

Lei nº 1.144, quando se encaminhou a

institucionalização do casamento civil. Tal

mudança adveio em decorrência do processo

7Art.226 CRFB/88 A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º o casamento é civil e gratuita a

celebração. § 2º o casamento religioso tem efeito civil, nos

termos da lei.

Page 176: Opará Revista vol. 2 julho/2014

173 Casamento realizado em terreiro de Candomblé

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

imigratório8 que introduziu novas crenças no

país e, então, na perspectiva do legislador da

época era necessário ou prudente

regulamentar os casamentos entre pessoas não

católicas ou ainda entre pessoa católica e não

católica. A contribuição de Diniz (Ibidem) para

aclarar essa informação é crucial quando narra

que,

Com a imigração, novas crenças foram introduzidas em nosso país. Assim, em 19 de julho de 1858, Diogo de Vasconcelos, Ministro da Justiça, apresentou um projeto de lei, com o objetivo de estabelecer que os casamentos entre pessoas não católicas fossem realizados de conformidade com as prescrições de sua respectiva religião. Esse projeto, em 1863, transformou-se na Lei n. 1144, regulamentada pelo decreto de 17 de abril de 1863, dando um grande impulso à instituição do casamento (p. 53).

O processo de institucionalização do

casamento civil prosseguiu durante o século

XIX como bem descreve Diniz (Ibidem) ao

tratar do advento da República Brasileira e da

perda do caráter confessional do casamento,

Com o advento da República, o poder temporal foi separado do poder espiritual, e o casamento veio a perder seu caráter confessional; com o Decreto n. 181 de 24 de janeiro de 1890, que instituiu o casamento civil em nosso país, no seu art. 108, não mais era atribuído qualquer valor jurídico ao matrimonio religioso (p.53, grifo nosso).

É perceptível, pelo esclarecimento de

Diniz, a inversão do status do casamento

religioso, antes amplamente admitido, depois

rechaçado, havendo inclusive circular do

Ministério da Justiça9 descredenciando

8O processo imigratório no Brasil do século XIX, diz respeito a

imigração para povoamento do Sul do Brasil, iniciada em 1824 com os alemães, seguida em 1875 pelos italianos, como fonte de

mão-de-obra substituta a mão-de-obra escrava. Percebe-se que

nesse contexto imigratório, o africano (negro) não está incluído. 9 Circular do Ministério da Justiça, de 11 de junho de 1890,

chegou até a determinar que “nenhuma solenidade religiosa,

ainda que sob a forma de sacramento do matrimônio, celebrada

qualquer cerimônia religiosa com efeito de

casamento. A ideia separatista entre

casamento civil e religioso continuou através

da Constituição Federal de 1891, no artigo 72 §

4º, assim escrito: “A República só reconhece o

casamento civil, cuja celebração será gratuita”.

É plausível concordar com Diniz

(2007) 10, quanto ao fato de que, o casamento

religioso passou a constituir apenas

consciência individual de cada um e de

ocorrência paralela ao civil. Como forma de

arremate deste item podemos citar LOBO

(2009, p.77): “O casamento é civil, ainda que a

celebração seja religiosa, pois desde a

Proclamação da República foi secularizado ou

laicizado, subtraindo-se da religião oficial a

competência para regulá-lo”.

A Constituição Cidadã estatuiu o

casamento civil e deu ao casamento religioso

efeitos civis, nos termos da lei conforme artigo

226 §§ 1º e 2º, já citados neste trabalho. Cabe

salientar que o disciplinamento do casamento

presente na lei 6.015 de 1973 está hoje

absorvido pelo Código Civil de 2002, nos

artigos 1515 e 151611. Não há porque pensar em

nos Estados Unidos do Brasil, constituiria, perante a lei civil, vínculo conjugal ou impedimento para livremente casarem com

outra pessoa os que houverem daquela data em diante recebido

esse ou outro sacramento, enquanto não fosse celebrado o casamento civil”. DINIZ, 2007, p. 53. 10... constituindo o religioso apenas um interesse da consciência individual de cada um. Deu-se, então, a generalização do

casamento civil, celebrado paralelamente ao religioso, hábito

social que perdura até hoje. DINIZ, 2007. Pag. 53 11Art 1515. O casamento religioso, que atender as

exigências da lei para a validade do casamento civil,

equipara-se a este, desde que registrado no registro

próprio, produzindo efeitos a partir da data de se

celebração.

Na conformidade deste artigo e do artigo seguinte, o casamento

religioso, para que gere efeitos civis, deve seguir as mesmas formalidades do casamento civil, tendo iguais impedimentos.

Desse modo, o casamento religioso que não atende ao disposto

nestes artigos configura-se juridicamente como união estável (ais. 1.723 a 1.727) (v. Maria Helena Diniz, Curso de direito

civil brasileim, 16. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, v. 5, p. 46-9).

Art. 1516. O registro do casamento religioso submete-se aos mesmos requisitos exigidos para o casamento civil.

* 1o O registro civil do casamento religioso deverá ser

promovido dentro de noventa dias de sua realização, mediante comunicação do celebrante ao oficio competente, ou por

iniciativa de qualquer interessado, desde que haja sido

homologada previamente a habilitação regulada neste Código.

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174 Joelma Boaventura da Silva Bonfim

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

duas formas de casamento, pois o que existe é

o casamento civil, e se a celebração ocorrer em

espaço religioso, este poderá ser reconhecido

por seus efeitos civis. É preciso esclarecimento

de Lobo (2009), quando diz que:

Não há, conseqüentemente, casamento religioso ao lado do casamento civil, mas efeitos civis da celebração religiosa do casamento, conferindo-se ao ministro de confissão religiosa a autoridade para realizá-la, equiparada ao do juiz de direito (p.80).

3. DA RELIGIÃO

Para inaugurar esse tópico, necessário

faz-se conceituar etimologicamente religião

enquanto “obrigação” e relegare, sendo este

último termo indicado por Cícero12 na

configuração de “Aqueles que cumpriam

cuidadosamente com todos os atos do culto

divino e por assim dizer os reliam atentamente

foram chamados de religiosos do relegare”

(ABBAGNANO, 1982, p.814).

Na busca por conceituação do termo

religião, tem-se ainda auxílio em Santo

Agostinho, que a definia enquanto a

correspondência entre religio e Threspéia13, ou

seja, as técnicas da religião. Nessa perspectiva

Após o referido prazo, o registro dependerá de nova habilitação.

§ 2o O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do

casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil,

mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e observado o prazo do artigo 1.532.

§ 3o Será nulo o registro civil do casamento religioso se, antes

dele, qualquer dos consorciados houver contraído com outrem casamento civil. 12 Marco Túlio Cícero foi adversário perseguido pelo imperador

Júlio Cesar (106 a 43 a.C). Foi senador proeminente da política romana. Obrigado a deixar a vida política, recolheu-se à vida

privada e retomou a meditação filosófica por volta de 51 a.C. seu

conjunto de obras contempla: Sobre os Fins; A natureza dos Deuses; O Orador; A República e Sobre as leis. Articulou-se em

torno de idéias que fundamentam a vida moral e social,

principalmente da existência de Deus e sua providencia. (Os Pensadores. Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sênega. São Paulo: Nova

Cultura, 1988). 13Conforme página 814 de ABBAGNANO, Nicola. Dicionário

de Filosofia. 2ª Ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

de análise, pode-se valer do pensamento de

Abbagnano (Ibidem, p.813) quando define

religião enquanto: “A crença numa garantia

sobrenatural oferecida ao homem para sua

salvação; e as técnicas orientadas para obter e

conservar esta garantia. Observe-se que este

autor debruça-se sobre as técnicas da religião,

assim como fez Santo Agostinho.

De maneira didática far-se-á breve

exposição sobre a garantia pela qual a Religião

apela, sendo a primeira em essência

sobrenatural e impondo aos homens uma

relação implicada em poderes, como bem se

percebe sobre o que pontua Abbagnano

(Ibidem, p.813): “A garantia, para a qual a

religião apela, é sobrenatural, no sentido de

que se situa além dos limites aos quais podem

chegar os poderes reconhecidos como próprios

do homem”.

Ultrapassada a explicação didática da

garantia na religião, cabe aprofundar-se sobre

as técnicas da religião, pois esta análise leva ao

enriquecimento do tema, esclarecendo que

através das técnicas permite-se a obtenção ou

conservação da garantia religiosa, ou seja,

estas duas características (garantia e técnica)

estão imbricadas. O próprio Abbagnano

(Ibidem, p.814) elucida que: “convém

sublinhar a diferença entre a crença na

garantia sobrenatural e as técnicas que

permitem obter ou conservar tal garantia”.

Analisar a técnica na religião é crucial

dentro da temática do casamento, pois as

técnicas podem ser entendidas como: “todos os

atos ou as práticas do culto: oração, sacrifício,

ritual, cerimônia ou serviço divino.”

(ABBAGNANO, Ibidem, p.814). Utilizaremos a

expressão cerimônia enquanto sinônima de

celebração. Sendo assim, o casamento compõe-

se em uma de suas etapas, de

celebração/cerimônia, a qual é uma das

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175 Casamento realizado em terreiro de Candomblé

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

técnicas da religião para conservar a garantia

sobrenatural da religião, configurando-se

assim seu lado objetivo e público, logo,

essencialmente institucional, como bem

esclarece Abbagnano (Ibidem, p.814): “uma

religião positiva é constituída essencialmente

por estas técnicas”.

A este ponto da discussão cabe

perguntar: Seria a religião sinônimo de crença?

A resposta requer uma reflexão filosófica, a

qual se baseia com serenidade em Abbagnano

(Ibidem), quando explica que:

Analogicamente, não tem necessariamente um alcance religioso, não é necessariamente crença a verdade revelada, isto é, fé; mas por outro lado também não exclui essa determinação e nesse sentido se pode dizer que uma crença, pode pertencer ao domínio da fé (p.202, grifo nosso).

A fé encontra destaque por representar

o aspecto sobrenatural da garantia religiosa,

anteriormente esboçado. Tendo a crença

alcance religioso ou não, o legislador

constitucional fugiu a essa dicotomia e

protegeu a liberdade de crença de forma

inequívoca conforme se apreende do texto

constitucional de 1988, no artigo 5º, inciso

VI14, o qual abre um grande espectro de

abordagem, pois contempla não só a liberdade

de crença, como também assegura o livre culto

religioso. Enfatiza-se que um dos atos ou

expressão da técnica religiosa é o culto.

Outra ênfase que se deve dar é sobre a

expressão “culto religioso”. Entende-se por

essa última expressão que o legislador não quis

deixar nenhuma dúvida sobre a extensão da

proteção constitucional, incluindo a

espacialidade dos cultos. Ainda no artigo 5º da

Constituição Federal de 88, mais

14 CRFB. Artigo 5º VI: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos

religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de

culto e a suas liturgias.

especificamente no inciso VIII15, há menção a

crença religiosa, novamente, e desta vez

atrelada à proibição de privar alguém de

direitos por motivos de crença religiosa.

Percebe-se que o legislador buscar evitar

preconceitos ou atitudes discriminatórias

negativas em razão da escolha religiosa ou de

crença.

A discussão sobre religião esbarra no

conceito de liberdade, pois é impossível tratar

das técnicas da religião sem ressaltar a

necessidade de liberdade para sua expressão.

Nesse sentido, a contribuição de

Scherkerkewitz16 (2011) faz-se importante

quando distingue três formas de liberdade

relacionadas à religião no Brasil, a saber: a

liberdade de crença; a liberdade de culto; e a

liberdade de organização religiosa. Sendo

assim, a primeira forma de liberdade religiosa

implicaria na

[...] liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo (SILVA, 1989, p. 221).

Pode-se dizer até que essa seria a

forma mais ampla de liberdade religiosa, pois

contempla inclusive a descrença no

sobrenatural, bem como, impede que o

indivíduo descrente seja obrigado a participar

de práticas religiosas, o que desembocaria em

afronta de direitos. Já a segunda forma de

liberdade religiosa é mais restritiva, pois incide

sobre “A liberdade de culto e na liberdade de

15CRFB. Artigo 5º, VIII: ninguém será privado de direitos por

motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou

políticas [...] 16Procurador do Estado de São Paulo, Mestre e doutorando em

Direito pela PUC/SP e Professor Universitário em seu texto

intitulado:O Direito de Religião no Brasil. www.pge.sp.gov.br/centrode

estudos/revistaspge/revista2/artigo5.htm. Acesso em 20 de

janeiro de 2011.

Page 179: Opará Revista vol. 2 julho/2014

176 Joelma Boaventura da Silva Bonfim

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

orar e de praticar os atos próprios das

manifestações exteriores em casa ou em

público, bem como a de recebimento de

contribuições para tanto” (SILVA, Ibidem,

p.221). Por fim, sucintamente, a terceira forma

de liberdade religiosa aplica-se à “liberdade de

organização religiosa”, que diz respeito à

possibilidade de estabelecimento e organização

de igrejas e suas relações com o Estado.”

(Idem, ibidem, p.221).

É preciso entender que a liberdade

religiosa não faz acepção a grupos religiosos e

que os direitos decorrentes desta liberdade

devem ser aplicáveis a todas as formas de

religião sobre o solo brasileiro. Na sequência

deste trabalho, far-se-á a análise de duas

religiões brasileiras seculares, as quais, muitas

vezes sofreram discriminação negativa, como

por exemplo, a elaboração da Lei n. 3.895, de

22 de março de 1977, a qual determinava que o

funcionamento dos cultos de Candomblé e

Umbanda fosse comunicado regularmente à

Secretaria de Segurança Pública, através do

órgão competente a que sejam filiados,

comprovando-se o atendimento de condições

preliminares. É perceptível a discriminação

negativa devido ao fato de haver controle sobre

religião e ainda controle policialesco, pois

dependeria da comunicação atualizada

anualmente à Secretaria de Segurança Pública.

A discriminação incide no fato de tal

exigência ser feita a apenas uma modalidade

religiosa. O texto constitucional de 1988

revogou tacitamente tal disciplinamento, pois

propugna pela liberdade religiosa.

3.1 DO CAMBOMBLÉ

Na compreensão de Vergê (2009), o

termo Candomblé tem uma definição peculiar

na Bahia, como se pode inferir da citação

transcrita,

A palavra Candomblé, que designa na Bahia as religiões africanas em geral, é de origem bantu. É provável que as influências das religiões vindas de regiões da África situadas nas imediações do quadro não se limitem apenas ao nome das cerimônias, mas tenham dado aos cultos gêge e nagô, na Bahia, uma forma que os diferencia, em certos pontos, dessas mesmas manifestações na África. (p.21)

Na definição proposta por Ribeiro

(1996) o Candomblé é definido enquanto

“denominação originária do termo

kandombile, cujo significado é culto e oração,

constitui um modelo de religião que congrega

sobrevivências étnicas da África e que

encontrou no Brasil, campo fértil para sua

disseminação e reinterpretação” (LODY 1987

apud RIBEIRO, 1996, p.10). Ambas definições

têm em comum a ligação com a África e a

existência de cultos.

É perceptível, a partir dessa definição,

que o Candomblé é uma religião de matiz

africana com acolhimento em território

brasileiro, restando, no entanto, salientar que

esse acolhimento em nada se deu de forma

pacífica, tendo em vista que havia desde o

período de Colonização Brasileira17 uma

religião oficial e hegemônica, a saber, a religião

católica. A existência de uma religião

dominante no Brasil de outrora certamente

gerou problemas de tolerância religiosa para

com outras matrizes religiosa e credos, como

foi bem documentado por Vergê (2009),

Não se sabe com precisão a data de todos esses acontecimentos, pois, no início do século XIX, a religião católica era ainda a única autorizada. As reuniões de protestantes eram

17 Entende-se o período de Colonização Brasileira desde 1530, quando ocorreu a fixação de portugueses no solo brasileiro até a

instalação do Império em 1808 com a Vinda da Família Real

para o Brasil.

Page 180: Opará Revista vol. 2 julho/2014

177 Casamento realizado em terreiro de Candomblé

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

toleradas só para os estrangeiros; o islamismo, que provocara uma série de revoltas de escravos entre 1808 e 1835, era formalmente proibido e perseguido com extremo rigor; os cultos aos deuses africanos eram ignorados e passavam por práticas supersticiosas. Tais cultos tinham um caráter clandestino e as pessoas que neles tomavam parte eram perseguidas pelas autoridades (p.19, grifo nosso).

Observa-se que os cultos aos deuses

africanos, logo, o Candomblé, eram

considerados como práticas supersticiosas e

por vezes ignorados. No entanto, cabe uma

relativização a essa ignorância ao culto

africano, pois o próprio Vergê (Ibidem) relata

perseguição das autoridades aos mesmos em

mais de uma passagem de seu livro,

Um artigo do Jornal da Bahia, de 3 de maio de 1855, faz alusão a uma reunião na casa Ilê Iyanassô: foram presos e colocados à disposição da policia Cristóvão Francisco Tavares, africano emancipado, Maria Salomé, Joana Francisco, Leopoldina Maria da Conceição, Escolástica Maria da Conceição, crioulos livres; os escravos Rodolfo Araújo Sá Barreto, mulato; Melônio, crioulo, e as africanas Maria Tereza, Benedita, Silvana... Que estavam no local chamado Engenho Velho, numa reunião que chamava de Candomblé. É curioso encontrar nesse documento o nome, pouco comum, de Escolástica Maria da Conceição, o mesmo com o qual seriam batizados, trinta e cinco anos mais tarde, Dona menininha, a famosa mãe-de-santo do Gantois, cujos pais, a essa época, sem dúvida, freqüentavam ou faziam parte do terreiro de Ilê Iyanassô, onde houve essa ação policial (p. 19, grifo nosso).

Para que não se torne exaustiva a

explanação histórica sobre a intolerância e

represália a religião do Candomblé,

informamos por último, que segundo Vergê

(Ibidem), em passado recente, ou seja, no

século XIX,

Por volta de 1826, a polícia da Bahia havia, no decorrer de buscar

efetuadas com o objetivo de prevenir possível levantes de africanos, escravos ou livres, na cidade ou nas redondezas, recolhido atabaques, espanta-moscas e outros objetos que pareciam mais adequados ao Candomblé do que a uma sangrenta revolução. Nina Rodrigues refere-se a certo quilombo, existente nas matas de Urubu, em Pirajé, o qual se mantinha com o auxílio de uma casa de fetiche da vizinha, chamada a Casa do Candomblé (p. 19).

Não seria exagero admitir que até hoje,

no Estado laico brasileiro, ainda existe uma

predominância do catolicismo de cunho

administrativo-estatal, como bem salienta

Scherkerkewitz (2011) “Como é possível se

falar que não existe uma religião oficial quando

ao abrir-se qualquer folhinha nota-se a

existência de feriados oficiais de caráter

religioso. E mais, de caráter santo para apenas

uma religião”. (Scherkerkewitz, Ibidem, p. 6).

Para que não reste nenhuma dúvida sobre a

classificação religiosa do Candomblé,

acostamos a tabela 1.1.2 do Instituto Brasileiro

de Geografia e Estatística – IBGE,

correspondente ao Censo 2000, como anexo, e

destacamos desta tabela a inclusão do

Candomblé como religião com o total de

125.548 adeptos, percebendo-se que o maior

percentual de adeptos está na zona urbana,

com o número de 123.214. Reforçando esse

caráter urbano do Candomblé, encontramos

em Vergê (2009) referências suficientes para

afirmar que esta religião tem expansão na

cidade, como então se vê:

Na Bahia, no início do século (XX), os terreiros dedicados ao culto dos orixás eram freqüentemente instalados longe do centro da cidade. Com o crescimento da população e a extensão tomada pelos novos bairros, eles progressivamente encontravam-se incluídos na zona urbana. Esses terreiros são geralmente compostos de uma construção, denominado barracão, com grande sala para as danças e cerimoniais públicas, de uma série de casas, onde são instalados os

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178 Joelma Boaventura da Silva Bonfim

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¨pejís¨, consagrados aos diversos orixás, e de casas destinadas à residência das pessoas que fazem parte do Candomblé (p.35).

Se Candomblé tem esse perfil urbano e

abriga um número tão significativo de adeptos,

como negar a um contingente religioso tão

expressivo o direito de casar e ter a celebração

deste instituto reconhecido pelo Estado?

Cabe neste momento discorrer sobre a

cerimônia do casamento dentro do

Candomblé, já que não restam dúvidas de que,

enquanto religião, cultos e cerimônias são lhes

inerentes. Uma vez que o Candomblé está

diretamente ligado ao culto dos orixás, estes,

então, são consultados sobre atitudes e atos

importantes para a vida dos adeptos, como se

pode apreender da citação retirada da obra de

Ribeiro (1996):

Somente Orumilá conhecedor do ipin ori - destino do ori pode adequadamente sondar o futuro e orientar quem o procura. Por isso é consultado nos momentos críticos da existência - fundação de aldeias; início da construção de casas; realização de contratos; negociações; início e término de guerras; casamentos; nascimentos (p.66-67, grifo nosso).

Encontra-se referência ao orixá recém-

citado, também em Vergê (2009) e com a

mesma incidência sobre o casamento, como se

pode verificar pela transcrição em que

“Orunmilá é consultado em caso de dúvida,

quando as pessoas têm uma decisão

importante a tomar a respeito de uma viagem,

de um casamento, de uma compra ou venda,

ou ainda por aquelas que procuram determinar

causa de doenças” (p.60, grifo nosso).

Assevera-se que um orixá específico é

consultado sobre casamento, podendo-se

inferir que este instituto dentro do Candomblé

tem bastante importância. Esta inferência é

corroborada pelo trecho a seguir, Ribeiro

(1996),

Os laços de parentesco determinados por vínculo consangüíneo ou por casamento constituem uma das maiores forças na vida tradicional africana e controlam as relações entre as pessoas da comunidade, determinando o comportamento de cada indivíduo em relação aos demais. (p.34)

3.2 DA UMBANDA

O surgimento da Umbanda está

associado ao surgimento do Candomblé. Estas

duas religiões, além de terem a matiz africana

em comum, têm ainda elementos de

nascimento no Brasil, como percebe-se da

transcrição de Ribeiro (1996),

Bastide (1971) traçou uma geografia das religiões africanas no Brasil. De um modo geral, nesse conjunto identificam-se duas grandes vertentes: a que deu origem aos Candomblés e xangôs e outra que originou os Candomblés de caboclo e Candomblés de angola. No contexto urbano, sujeitos a novas influências do catolicismo e do espiritismo de Allan Kardec, surgiu a Umbanda (p.108, grifo nosso).

Há, no entanto uma peculiaridade na

base teórica da Umbanda, qual seja: as

influências do Catolicismo e do Espiritismo de

Allan Kardec18. Denota-se que as duas

influências são europeias e não africanas como

já se explanou neste texto. Em comum teriam o

Candomblé e a Umbanda um contexto urbano.

Ainda sobre as influencias sofridas pela

Umbanda, cabe destacar o comentário de

Ribeiro (Ibidem),

Na Umbanda ocorre, conforme mencionado acima, o encontro de elementos de múltiplas origens étnicas e religiosas. Num altar ou

18 Allan Kardec é o codificador da doutrina espírita.

Page 182: Opará Revista vol. 2 julho/2014

179 Casamento realizado em terreiro de Candomblé

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

congá encontramos imagens cristãs, budistas, tradicionais africanas, além da representação de personagens como índios, pretos-velhos, marinheiros, ciganos, crianças (ere) etc. As orações incluem cânticos em português aos orixás e rezas cristãs como o Pai Nosso e a Ave Maria (p.109, grifo nosso).

A múltipla origem étnica e religiosa da

Umbanda certamente é uma forte

característica definidora desta religião ao

mesmo tempo em que a diferencia do

Candomblé, com o qual é costumeiramente

confundida. Por isso é bem elucidativa a

ressalva feita na obra de Ribeiro (Ibidem),

quando escreve que:

No dizer de Magnani (1986,p.13), a Umbanda certamente não é uma espécie de degeneração de antigos cultos africanos ou do espiritismo Kardecista e sim o resultado de um processo de reelaboração, em determinada conjuntura histórica, de ritos, mitos e símbolos que adquirem novos significados no interior de uma nova estrutura (p.109, grifo nosso).

Os relatos históricos sobre a Umbanda,

aos quais tivemos acesso, remetem seu início

em terras brasileiras, para o Rio de Janeiro, e

também o fato de que seu surgimento dá-se em

datas mais recentes em relação ao surgimento

do Candomblé. Infere-se que local e época de

surgimento da Umbanda são também

elementos diferenciadores desta religião para o

Candomblé. Com apoio em Ribeiro (1996)

pode-se afirmar que,

A chamada macumba surgiu no Rio de Janeiro por volta da segunda metade do século XIX: a cabula banto assimilou, sem o suporte de uma mitologia ou doutrina capaz de integrar seus elementos, a estrutura dos cultos nagôs e alguns orixás, caboclos catimbozeiros, práticas mágicas européias e muçulmanas, santos católicos e influências do Espiritismo de Kardec (p.108).

Corroborando com a citação acima,

que esclarece o surgimento da Umbanda e seus

laços doutrinários, apresenta-se a contribuição

de Vergê (2009) com a seguinte transcrição:

No Rio de Janeiro, em Santos e Porto Alegre, o culto de Iemanjá é muito intenso duram até a última noite do ano, quando centenas de milhares de adeptos vão, cerca de meia-noite, acender velas ao longo das praias e jogar flores e presentes no mar. São seguidores de uma religião nova chamada Umbanda, uma mistura entre as religiões africanas, o espiritismo de Alan Kardec e doutas elaborações filosófico-religiosas de tendências universalistas (p.76, grifo nosso).

A citação de Vergê, acima transcrita,

acrescenta mais elementos, desta vez, sobre os

adeptos da Umbanda, os quais são melhor

explicitados a partir do texto de Ribeiro (1996),

no qual cita militares e profissionais liberais

dentre outros.

Desse complexo surgiria a Umbanda, na década de 1920, também no Rio de Janeiro: profissionais liberais, militares e funcionários públicos, advindos do kardecismo, migraram para esses cultos, impondo-lhes nova estrutura e desencadeando um processo de institucionalização (p. 110).

Pondera-se para melhor entendimento

dessa religião que os seus fundadores eram

dissidentes de outros ramos religiosos e que

advinham de classes sociais mais abastadas do

que aqueles que compunha o Candomblé. A

origem social dos fundadores certamente

funcionou com elemento de proteção à

iniciante religião, colocando-se assim em

oposição clara ao quadro de perseguição

sofrida pelo Candomblé.

Como última característica da

Umbanda a ser explanada, tem-se a presença

da divindade para a qual os cultos e rituais são

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180 Joelma Boaventura da Silva Bonfim

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

celebrados, como está descrito por Vergê

(2009):

Esse movimento espiritual conhece, no Brasil e em vários outros países das Américas, um sucesso espetacular. Seus adeptos tomaram Iemanjá como a personificação do bem e da maternidade austera e protetora. Ela é representada como uma espécie de fada, com a pele cor de alabastro, vestida numa longa túnica, bem ampla, de musselina branca com uma longa cauda enfeitada de estrelas douradas; surgindo das águas, com seus longos cabelos pretos esvoaçando ao vento, coroada com um diadema feito de pérola, tendo no alto uma estrela-do-mar (p. 76).

A Umbanda consta também da lista de

religiões oficiais do Brasil segundo o Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, no

Censo de 2000, apresentando os seguintes

números, conforme tabela em anexo: 397.43

adeptos no Brasil, sendo 172.393 homens e

225.038 mulheres. Como é uma religião

urbana, tem 385.148 adeptos nesta zona. É

possível se fazer a seguinte comparação:

existem mais adeptos da Umbanda que do

Candomblé e o percentual de mulheres é maior

que o de homens que comungam desta

religião. Estaria esse numerário de adeptos do

gênero feminino relacionado com a principal

divindade da Umbanda? Não se têm elementos

suficientes para responder a essa questão e não

é o objetivo deste artigo adentrar nesta

particularidade, resta apenas deixar esta

especulação.

4. DA CELEBRAÇÃO RELIGIOSA DO

CASAMENTO

Casamento Religioso com Efeito Civil é

aquele que é celebrado fora das dependências

do Cartório, porém quem preside o ato do

casamento não é o Juiz e sim a autoridade

religiosa. Da mesma forma que o casamento

em Cartório, este deve ser realizado de forma

pública, a portas abertas durante todo o ato de

sua realização. Esta modalidade de casamento

tem base legal na Lei dos Registros Públicos

(lei. 6015/ 73) dos artigos 71 a 75. A partir

deste momento, far-se-á a análise detalhada

desta modalidade de casamento, tomando por

base o texto legal que o prevê.

O artigo 71 da referida lei assim prevê

que “Os nubentes habilitados para o

casamento poderão pedir ao oficial que lhes

forneça a respectiva certidão, para se casarem

perante autoridade ou ministro religioso, nela

mencionado o prazo legal de validade da

habilitação”, ou seja, faz-se necessária a

habilitação para o casamento e com

equivalente certidão em mãos dos nubentes,

poderá a autoridade religiosa fazer o

casamento. Assevera-se que não há aqui

qualquer alusão a um tipo de religião ou

exigência legal de averiguação sobre a

autoridade religiosa.

A inteligência do artigo 72 da lei 6015

disciplina que o termo ou assento de

casamento expedido pela autoridade religiosa

deverá cumprir todos os requisitos enunciados

no artigo 7019. Dispõe este artigo in verbis: “O

termo ou assento do casamento religioso,

subscrito pela autoridade ou ministro que o

celebrar, pelos nubentes e por duas

testemunhas, conterá os requisitos do art. 70,

exceto o 5º.” Observa-se que a autoridade

religiosa deve cumprir quase todos os

19Do matrimônio, logo depois, de celebrado, será lavrado

assento, assinado pelo residente do ato, os cônjuges, as

testemunhas e o oficial, sendo exarados: 1º os nomes, prenome, nacionalidade, data, lugar do nascimento,

domicílio e residência atual dos cônjuges;

2º os nomes, prenome, nacionalidade, data, data de nascimento ou de morte domicilio e residência atual dos pais;

3º os nomes, prenomes dos cônjuges precedentes e a data de

dissolução do casamento anterior, quando for o caso; 4º a data de publicação dos proclames e da celebração do

casamento;

6º os nomes, prenome, nacionalidade, profissão, domicílio e residência atual das testemunhas;

7º o regime de casamento...

8º o nome, que passa a ter a mulher em virtude do casamento.

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181 Casamento realizado em terreiro de Candomblé

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

requisitos exigidos como se o casamento fosse

feito no cartório.

Após a celebração de casamento feita

por autoridade religiosa e dentro do prazo de

30 dias, deverá o celebrante ou interessado

apresentar o termo ou assento e requerer o

registro do ato no cartório que expediu a

certidão de habilitação, conforme determina o

artigo 73 da Lei de Registros Públicos com seus

respectivos parágrafos20.

Os artigos 74 e 75 da lei de Registros

Públicos21 tratam de casamentos celebrados

por autoridades religiosas, sem a observância

do disposto no artigo 70, já explicitado. É

possível reconhecer e validar a cerimônia de

casamento realizada por autoridade religiosa

sem certidão de habilitação expedida

previamente, desde que os nubentes

apresentem como requerimento as provas de

que a ato se realizou e desde que suprimam

eventuais faltas de requisitos do termo de

celebração. Para isso, é necessário que os

noivos compareçam ao cartório, juntamente

com 2 testemunhas, (após a cerimônia

religiosa) com os documentos habituais

20 Art. 73. No prazo de trinta dias a contar da realização, o

celebrante ou qualquer interessado poderá, apresentando o assento ou termo de casamento religioso, requerer-lhe o registro

ao oficial do cartório que expediu a certidão. § 1º. O assento ou termo conterá a data da celebração, o lugar, o culto religioso, o

nome do celebrante, sua qualidade, o cartório que expediu a

habilitação, sua data, os nomes, profissões, residências, nacionalidades das testemunhas que o assinarem e os nomes dos

contraentes. § 2º. Anotada a entrada do requerimento, o oficial

fará o registro no prazo de 24 (vinte e quatro) horas. § 3º. A autoridade ou ministro celebrante arquivará a certidão de

habilitação que lhe foi apresentada, devendo, nela, anotar a data

da celebração do casamento. 21Art. 74. O casamento religioso, celebrado sem a prévia

habilitação perante o oficial de registro público, poderá ser

registrado desde que apresentados pelos nubentes, com o requerimento de registro, a prova do ato religioso e os

documentos exigidos pelo Código Civil, suprindo eles eventual

falta de requisitos no termo da celebração. Parágrafo único. Processada a habilitação com a publicação dos editais e

certificada a inexistência de impedimentos, o oficial fará o

registro do casamento religioso, de acordo com a prova do ato e os dados constantes do processo, observado o disposto no art.

70. Art. 75. O registro produzirá efeitos jurídicos a contar da

celebração do casamento.

(Certidões e R.G.), o Requerimento de

Casamento Religioso com Efeito Civil e o

Termo de Celebração de casamento Religioso

com Efeito civil, feito pela Igreja, ou entidade

religiosa, já com a firma reconhecida do

Celebrante (que realizou a cerimônia religiosa).

Assim podem dar entrada nos papéis de

casamento no cartório.

4.1 CELEBRAÇÕES RELIGIOSAS DO

CASAMENTO NO CANDOMBLÉ E NA

UMBANDA.

As religiões brasileiras de origem

africana (Candomblé, Umbanda, tambor de

mina e xangô) podem realizar e realizam

cerimônias de batismo, de iniciação e de

casamento, pois são religiões conforme

explanamos exaustivamente neste trabalho e

porque possuem autoridades religiosas

denominados de sacerdotes, babalorixás ou

iyalorixás.

Uma ata deve ser lavrada no ato da celebração

do casamento no terreiro ou seção de

Umbanda e sua transcrição funciona como

certidão, caso não se tenha providenciado a

certidão de habilitação previamente.

A celebração deve ocorrer em local de

cultos dessas religiões (terreiros ou sessão de

mesa de branca). O ritual deve ser aberto ao

público e geralmente algumas peculiaridades

se fazem presentes, tais como leitura de Textos

sagrados africanos; os noivos costumam lavar

as mãos e o rosto em água misturada com

ervas e folhas. Essa mistura também é bebida.

Na Umbanda, ocorre até mesmo a leitura de

trechos da Bíblia.

5. EXPLORANDO EXEMPLOS SOBRE O

TEMA

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182 Joelma Boaventura da Silva Bonfim

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

O julgado que se passa a analisar tem o

número 7000329655522 junto ao Tribunal de

Justiça do Rio Grande do Sul na seção cível da

8ª Câmara Cível. O processo foi protocolado

em 24.09.2001, logo, antes da vigência do

Código Civil de 2002. Esse processo teve

acórdão expedido em 17.10.2002 pelo

desembargador Rui Portonova. A decisão

exarada pelo desembargador já contempla o

novo texto do Código Civil e faz referência ao

artigo 226 da Constituição Federal. Como foi

uma decisão prolatada em 2002, o site do

referido tribunal não permite acesso ao inteiro

teor da mesma, portanto transcreve-se apenas

trecho significativo do acórdão, ao qual foi

possível o acesso através de noticiário gaúcho:

“O Casamento no Candomblé ou na Umbanda

tem o mesmo valor dos casamentos realizados

nas religiões católicas e israelitas”.

Há também neste acórdão um

chamado para o reconhecimento não só do

casamento, um dos rituais legítimos das

religiões de matriz africana, como também um

reconhecimento à própria religião, quando o

referido desembargador assim se expressa:

“Não devemos valorizar mais os pactos

realizados em grandes sinagogas ou catedrais

pomposas, pelo fato de este casamento ter sido

realizado em terreiro”.

O relato que se segue não tem cunho

judicial, pois transcorreu como expressão livre

de direito a crença e a religião. No município

de Governador Mangabeira – Bahia, no ano de

22 Ementa da Apelação Cível: 1. ACÃO DECLARATÓRIA.

UNIÃO ESTÁVEL. EXISTÊNCIA E RECONHECIMENTO. 2. CASAMENTO RELIGIOSO. RELIGIAO AFRO-

BRASILEIRA. VALORIZACÃO. 3. CURADOR ESPECIAL.

SUBSTITUICÃO. QUANDO SE JUSTIFICA. 4. UMBANDA. 6.CANDOMBLÉ. 7. UNIÃO ESTÁVEL.

RECONHECIMENTO. REQUISITOS. SEGUNDA E

CONCOMITANTE UNIÃO ESTÁVEL. PROVA. 8. PETICÃO INICIAL. REQUISITOS. 9. NULIDADE DO PROCESSO.

QUANDO NÃO SERÁ DECRETADA. 10. CERIMÔNIA

RELIGIOSA. PROTEÇÃO DOS ORIXÁS. TEMPLO RELIGIOSO NA SOCIEDADE UMBANDISTA CACIQUE

PERI.Referências Legislativas: CF-226 PAR-3 DE 1988 CPC-

249 PAR-1

2009, foi realizado o primeiro casamento em

casa de Umbanda com reconhecimento civil.

Como se pode perceber da transcrição que

segue, a celebração atende os requisitos

impostos pelo ordenamento jurídico brasileiro.

O Centro de Umbanda Iemanjá, situado num afastado bairro do centro da cidade de Governador Mangabeira viveu no dia 22 de outubro de 2009 um momento histórico para o povo de santo com a celebração do primeiro casamento religioso e reconhecimento civil, no Recôncavo baiano, dos jovens Luis Carlos dos Santos (25) e Gisele Lopes Conceição (20) 23

Esse segundo relato resgata a

perspectiva política de luta dos povos de santo

para terem sua religião reconhecida, bem como

seus rituais, e acima de tudo, o

reconhecimento da liberdade religiosa com

cunho jurídico. A citação abaixo ilustra esse

raciocínio,

Visivelmente emocionada, a sacerdotisa, ao encerrar as bênçãos dadas aos noivos, disse que a realização do primeiro casamento num centro umbandista com validade civil, no Recôncavo, representava uma grande vitória para os adeptos das religiões de matrizes africanas. “Foi uma grande luta que travamos para chegar até aqui, pois ainda há muito preconceito e discriminação contra o povo de santo. É uma grande vitória, eu não posso deixar de reconhecer”, declarou Mãe Nice que fundou o Centro de Umbanda Iemanjá há oito anos24.

CONSIDERACÕES FINAIS

O ordenamento jurídico brasileiro

disciplina o casamento como instituto civil, o

qual poderá ser celebrado ante um juiz ou ante

a autoridade religiosa com consequente

obtenção de feitos civis. O mesmo

ordenamento jurídico garante a liberdade de

23 COSTA, Alzira.2009. 24 Ibidem,2009.

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183 Casamento realizado em terreiro de Candomblé

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

crença, culto e religião como forma de

expressão de liberdade. A religião então

nutrida por amparo legal manifesta-se na

sociedade através de suas técnicas, ou seja,

cultos, cerimônias.

A celebração do casamento ante

autoridade religiosa com reconhecimento dos

seus efeitos civis é a uma das formas de

materializar a liberdade religiosa e demonstrar

que intolerância e perseguições que, outrora,

foram a tônica do direito local em face de

adeptos de religiões africanas, são práticas

desrespeitosas e que não coadunam com o

Estado Democrático de Direito, nem refletem a

realidade “pluri-étnico-religiosa” brasileira.

O casamento reveste-se de celebração

de compromisso e de acordo, portanto, sua

cerimônia feita em ambiente religioso, ao qual

há relações de pertencimento dos nubentes,

nada mais faz que permitir realismo e

juridicidade ao ato solene.

REFERÊNCIAS

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COSTA, Alzira. Umbanda realiza casamento civil em mangabeira. Universidade Federal do Recôncavo Baiano. In: Link Recôncavo: Notícias do Recôncavo da Bahia. Bahia, out, 2009. Disponível em www.ufrb.edu.br/linkreconcavo. Acesso em: 20 jan. 2011.

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DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de família. 5º volume. São Paulo: Saraiva, 2007.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito de Família. 11ª ed. Volume 2. São Paulo: Saraiva, 2007.

LOBO, Paulo. 2009. Direito Civil - Famílias. 2ª ed..São Paulo: Saraiva.

RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Alma africana no Brasil: os iorubas. São Paulo: Editora Oduduwa, 1996.

SCHERKERKEWITZ, Iso Cahitz. O Direito de Religião no Brasil. www.pge.sp.gov.br/centrode estudos/revistaspge/revista2/artigo5.htm. Acesso em 20 de janeiro de 2011.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 5 ed. rev. e ampl. de acordo com a nova Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.

VERGÊ, Pierre Fatumbi. Orixás. Rio de Janeiro: UUCA União Umbandista dos cultos afro-brasileiros, 2009.