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Conselhos perigosos de um consultor ingênuo Flavio Farah* Introdução Este trabalho pretende demonstrar que dar conselhos é algo arriscado, e que dar conselhos de forma apressada, superficial e irrefletida pode ser fatal para o aconselhado. O caso Um leitor anônimo, que vou chamar pelo nome fictício de Heitor, enviou ao consultor de uma revis-ta, que vou chamar pelo nome fictício de Carlos, a seguinte questão: “Recentemente, eu e um colega melhoramos vários processos na empresa em que trabalhamos, com redução de custos e aumento de produção. Inesperadamente, isso despertou o ciúme de nosso chefe – que passou a nos tratar com grosseria e limitar o escopo de nossa atuação. Não entendi o comportamento, porque não acho que representamos ameaça ao cargo ocupado por ele. O que fa-zer numa situação dessas?” A resposta do consultor foi a seguinte: “Trabalhar num ambiente corrosivo é péssimo para a produtividade das pessoas, sobretudo quan-do o problema acontece entre chefe e subordinado. As pessoas deixam de gastar energia para rea-lizar o melhor trabalho e passam a se concentrar nas desavenças. Tornam-se menos criativas e in-teressadas em fazer mais e melhor. É um prejuízo para a organização e também para a felicidade e para a qualidade de vida das pessoas. Para enfrentar uma situação conflituosa no trabalho, cada um tem seu estilo próprio. Eu recomendo a conversa franca. A melhor maneira de contornar os problemas é fazendo com que todos se sentem com o objetivo de expor claramente o que aconteceu, numa conversa aberta e clara, sem agressão. Nessa ocasião, procurem estabelecer um sonho co-mum, procurem resultados futuros extraordinários que vocês, juntos, gostariam de atingir. O certo seria sua chefia receber as metas do setor e fazer um planejamento anual de como vocês trabalha-riam juntos para atingi-las. Trabalhar junto e unido no ideal de realizar sonhos e alcançar metas é muito bom e é motivo de satisfação. (...) O maior fator de união da equipe é justamente criar um sonho comum e metas anuais para ser alcançadas. No final do ano comemorem juntos. Não gastem sua vida com atritos e desavenças. É um desperdício. Existe aí, no seu local de trabalho, um Eve-rest para vocês galgarem e para trazer alegria de vida e crescimento profissional.” A resposta que Carlos deu para a questão colocada por Heitor apresenta aspectos questionáveis. Vamos por partes.

Conselhos perigosos de um consultor ingênuo

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Conselhos perigosos de um consultor ingênuoFlavio Farah*

Introdução

Este trabalho pretende demonstrar que dar conselhos é algo arriscado, e que dar conselhos de forma apressada, superficial e irrefletida pode ser fatal para o aconselhado.

O caso

Um leitor anônimo, que vou chamar pelo nome fictício de Heitor, enviou ao consultor de uma revis-ta, que vou chamar pelo nome fictício de Carlos, a seguinte questão:

“Recentemente, eu e um colega melhoramos vários processos na empresa em que trabalhamos, com redução de custos e aumento de produção. Inesperadamente, isso despertou o ciúme de nosso chefe – que passou a nos tratar com grosseria e limitar o escopo de nossa atuação. Não entendi o comportamento, porque não acho que representamos ameaça ao cargo ocupado por ele. O que fa-zer numa situação dessas?”

A resposta do consultor foi a seguinte:

“Trabalhar num ambiente corrosivo é péssimo para a produtividade das pessoas, sobretudo quan-do o problema acontece entre chefe e subordinado. As pessoas deixam de gastar energia para rea-lizar o melhor trabalho e passam a se concentrar nas desavenças. Tornam-se menos criativas e in-teressadas em fazer mais e melhor. É um prejuízo para a organização e também para a felicidade e para a qualidade de vida das pessoas. Para enfrentar uma situação conflituosa no trabalho, cada um tem seu estilo próprio. Eu recomendo a conversa franca. A melhor maneira de contornar os problemas é fazendo com que todos se sentem com o objetivo de expor claramente o que aconteceu, numa conversa aberta e clara, sem agressão. Nessa ocasião, procurem estabelecer um sonho co-mum, procurem resultados futuros extraordinários que vocês, juntos, gostariam de atingir. O certo seria sua chefia receber as metas do setor e fazer um planejamento anual de como vocês trabalha-riam juntos para atingi-las. Trabalhar junto e unido no ideal de realizar sonhos e alcançar metas é muito bom e é motivo de satisfação. (...) O maior fator de união da equipe é justamente criar um sonho comum e metas anuais para ser alcançadas. No final do ano comemorem juntos. Não gastem sua vida com atritos e desavenças. É um desperdício. Existe aí, no seu local de trabalho, um Eve-rest para vocês galgarem e para trazer alegria de vida e crescimento profissional.”

A resposta que Carlos deu para a questão colocada por Heitor apresenta aspectos questionáveis. Vamos por partes.

1) Ao recomendar uma “conversa franca”, Carlos está dando um conselho a Heitor. Muitas pessoas são rápidas em dar conselhos porque não têm consciência das sérias implicações desse gesto. Em primeiro lugar, quando diz a Heitor o que fazer, Carlos o está tratando como criança, como incapaz. Em outras palavras, Carlos está sendo paternalista, está impedindo Heitor de crescer. Carlos está impedindo que ele desenvolva e exercite sua capacidade de analisar situações, de so-lucionar problemas e de tomar decisões. Em resumo, Carlos está impedindo que Heitor exerça a autonomia na condução de sua vida. Em segundo lugar, quando Carlos aconselha Heitor, ele se torna moralmente responsável pelo que acontecer se Heitor seguir seu conselho. Se Heitor fizer o que Carlos recomendou e for prejudicado, por exemplo, se for demitido, ele não culpará o con-sultor? Por outro lado, poderá Carlos dizer honestamente que não é responsável pelo dano que Heitor sofreu?

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Alguém, todavia, poderia argumentar que Heitor seguiu o conselho porque quis. Seguindo essa linha de raciocínio, porém, também se poderá contra-argumentar que Carlos deu o conselho por-que quis. Assim, se ele decidiu dá-lo, tem que arcar com as responsabilidades morais decorren-tes de seu ato. Alegar, porém, que Heitor seguiu o conselho porque quis significa adotar uma postura cínica que tenta renegar o próprio sentido do aconselhamento, pois ninguém dá um con-selho esperando que a recomendação seja ignorada. No caso, Carlos deu o conselho por sua livre decisão, esperando que Heitor o siga. Este, por outro lado, se seguir a recomendação, estará re-nunciando a seu próprio julgamento e adotando o julgamento de seu conselheiro. Isto torna Car-los solidariamente responsável pela decisão que Heitor tomar e pelas respectivas consequências.

É arriscado dizer a uma pessoa adulta o que fazer. Melhor do que aconselhar é mostrar ao outro alternativas que talvez ele não tenha percebido, bem como os prós e contras de cada alternativa, e mesmo outros modos de ver o problema. Isto significa ajudar a pessoa a raciocinar. Dizer, po-rém, que curso de ação o indivíduo deve tomar é coisa bem diferente, trata-se de uma séria res-ponsabilidade. É melhor pensar duas vezes antes de dar um conselho.

2) Carlos recomenda uma conversa franca afirmando que essa é “a melhor maneira de contornar os problemas”. Neste ponto, a questão que se coloca é a seguinte: as metodologias de solução de problemas estabelecem, em geral, como primeira etapa do processo, a identificação do problema e, como segunda etapa, a determinação de suas causas.1 Assim sendo, pergunta-se: será possível fornecer uma solução padronizada válida para qualquer problema de relações humanas sem identificar as respectivas causas? Se não identificarmos as origens do problema, não correremos o risco de propor uma solução absurda? Por exemplo, faria sentido procurar ter uma conversa franca com um indivíduo que nos odeia e que pretende nos destruir?

3) Carlos diz a Heitor generalidades como: “Trabalhar junto e unido (...) é muito bom”, “O maior fator de união da equipe é (...) criar um sonho comum”, “Existe aí, no seu local de trabalho, um Everest para vocês galgarem”. Essas exortações óbvias, além de ineficazes e algo ingênuas, não combinam com a gravidade da situação. Carlos também diz a Heitor: “Não gastem sua vida com atritos e desavenças”, como se Heitor fosse culpado pela situação, ou tivesse se comportado de modo imaturo, ou ainda, tivesse dito ou feito algo com o objetivo consciente de criar um confli-to com seu chefe, o que, evidentemente, não é verdade.

Em resumo, a resposta que Carlos deu para a questão colocada por Heitor, além de conter exorta-ções e conselhos inócuos, representa uma solução apressada e descuidada para o problema deste último e, por isso mesmo, uma solução perigosa.

A meu ver, a primeira coisa que Heitor deve fazer não é partir para a ação, mas sim, formular três perguntas: 1) Por que seu chefe está agindo assim? 2) Qual o objetivo dele? 3) Considerando as res-postas às duas primeiras questões, que fazer? Daqui por diante, vou chamar o chefe de Heitor pelo nome fictício de Gilson.

1) Por que Gilson está agindo assim?

Heitor afirma que ele e um colega melhoraram vários processos na empresa, com redução de custos e aumento de produção, e que isso despertou ciúme em Gilson e causou a mudança de seu comportamento. Vou partir do pressuposto de que Heitor está certo, isto é, vou assumir que a causa da mudança de comportamento de Gilson são, de fato, as benfeitorias implantadas por Hei-tor e um colega. Em tais condições, pergunta-se: por que as benfeitorias provocaram em Gilson ciúme, comportamento grosseiro e a decisão de limitar a atuação dos dois funcionários? Vou for-mular algumas hipóteses a respeito, isto é, algumas suposições que são possíveis causas da mu-dança de conduta de Gilson.

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Gilson não sente ciúme de Heitor, mas sim, inveja. Esses dois sentimentos costumam ser confun-didos. Ciúme é um sentimento associado a um desejo de posse exclusiva. Sentimos ciúme de uma pessoa pela qual sentimos afeto. O ciúme significa o desejo de ter exclusividade na atenção da pessoa pela qual temos afeição. Já a inveja é um sentimento associado ao desejo de ter algo que a outra pessoa tem. Sentimos inveja do que o outro é (sua personalidade) ou do que ele tem (seus bens materiais, como dinheiro, objetos ou valores, ou bens imateriais, como amigos ou popularidade) ou do que ele faz (suas ações) ou de sua imagem (sua reputação). Gilson sente in-veja de seus funcionários porque as benfeitorias representam ações que ele, Gilson, queria ter executado, bem como trouxeram resultados que ele queria ter obtido.

Qual o motivo do comportamento grosseiro de Gilson? Uma das razões pelas quais reagimos ris-pidamente a algo que uma pessoa diz ou faz é que aquilo que o outro disse ou fez feriu a nossa auto-estima. As benfeitorias podem ter ferido a auto-estima de Gilson porque o fizeram parecer incompetente. Não estou afirmando, porém, que os outros pensam que Gilson é incompetente, mas sim, que Gilson pensa que os outros o vêem como tal. Essa é sua percepção da situação e ele reage com base nessa percepção que fere sua auto-estima. Outra possibilidade é que Gilson pode estar se sentindo incompetente e isso também ofende seu amor-próprio.

Heitor não entende o comportamento de Gilson porque acha que não representa uma ameaça ao cargo do chefe. Novamente, essa é a percepção de Heitor, mas não é necessariamente a de Gil-son. Este pode, sim, estar percebendo Heitor como ameaça à sua posição. Gilson pode estar se sentindo inseguro e vendo Heitor como concorrente. Se Gilson fosse um profissional competente e seguro de si, ele estimularia, apoiaria e aplaudiria as iniciativas de Heitor, em vez de combatê-las. Ele veria seu funcionário não como concorrente, mas como sucessor, como um profissional competente com potencial para progredir na carreira. Como Gilson parece ser um profissional incompetente e, portanto, inseguro, ele adota uma atitude egoista para proteger a própria posição, uma atitude antiética que prejudica Heitor e a empresa.

2) Qual o objetivo de Gilson?

Penso que existem quatro possibilidades no que se refere aos objetivos de Gilson. A primeira possibilidade seria apenas controlar Heitor para que este não tome outras iniciativas que façam o chefe sentir-se mal. A segunda possibilidade é Gilson iniciar um processo de assédio moral con-tra Heitor com o objetivo de fazê-lo pedir demissão. Nesse caso, Gilson implementará várias ações com objetivo destrutivo, ou seja, atitudes com a finalidade de criar um ambiente de traba-lho hostil a Heitor, fazendo-o perder o equilíbrio mental e emocional. A terceira possibilidade é Gilson demitir Heitor, não imediatamente, mas depois de algum tempo, para que seu ato não pa-reça retaliação. A quarta possibilidade é Gilson assediar Heitor moralmente e demiti-lo posterior-mente usando como pretexto a redução de desempenho de Heitor que fatalmente ocorrerá como resultado do assédio.

3) Considerando as respostas às questões anteriores, que fazer?

Antes de decidir o que fazer, o dado essencial que Heitor deveria levar em conta é como sua em-presa trata a questão da Ética. A organização se importa com a Ética? A empresa se preocupa em fazer valer valores morais como Justiça e Respeito? A organização possui um Código de Ética? Possui uma Comissão de Ética? A empresa possui canais de comunicação para que os funcioná-rios apresentem queixas e reclamações sobre comportamentos antiéticos no ambiente de traba-lho, como por exemplo, agressividade por parte dos gerentes em relação à sua equipe? Os fun-cionários podem recorrer a uma instância superior se considerarem injusta uma decisão de seu chefe? A empresa protege os funcionários contra retaliações por parte dos gerentes? Anterior-

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mente, já houve casos como o de Heitor? Como a empresa tratou esses casos? Como é o chefe de Gilson? Existe alguma vaga para Heitor em outro departamento?

Se a organização levar a sério a questão da Ética, será menor o risco de Heitor sofrer retaliação caso tome alguma atitude.

Penso que, teoricamente, Heitor tem as alternativas descritas abaixo. Digo teoricamente porque, na prática, essas opções existirão ou não dependendo da situação real de Heitor. De qualquer mo-do, não direi a ele qual alternativa escolher. A decisão é de Heitor porque ele é que sofrerá as eventuais conseqüências de sua escolha.

Falar com Gilson

Se decidir falar com Gilson, Heitor terá dois assuntos a tratar. O primeiro é a restrição de suas atribuições. Sobre isso, penso que não há muito a fazer. Gilson dificilmente voltará atrás porque a restrição é sua garantia de que Heitor não mais tomará iniciativas que deixem Gilson mal.

O segundo assunto é o comportamento rude de Gilson. O objetivo, evidentemente, é que Gilson abandone a grosseria. Ao falar com o chefe, Heitor não deverá colocar-lhe rótulos, dizendo-lhe, por exemplo: “Você é grosseiro”, pois isso o ofenderia. A meu ver, Heitor deveria falar sobre o comportamento concreto de Gilson, dizendo-lhe algo como: “Você tem gritado comigo e isso me ofende.” Neste caso, Heitor deverá decidir com antecedência o que fará se Gilson lhe der uma resposta malcriada do tipo: “Eu sou o chefe e falo como quiser!”

Falar com o chefe de Gilson

Antes de optar por essa alternativa, Heitor deverá procurar saber que tipo de pessoa é o chefe de Gilson e o que pode esperar dessa conversa. Heitor também deverá levar em conta o risco de que o chefe de Gilson fale com este sobre o problema e acabe tomando posição em seu favor. Nesse caso, não só Heitor ficará sem o apoio do chefe de Gilson como também é possível que este fi-que furioso com Heitor.

Pedir transferência para outro departamento

Se Heitor pedir para ser transferido, Gilson poderá concordar com a transferência para livrar-se de um funcionário que ele considera ameaçador, ou poderá negar o pedido, como forma de vin-gança, ou para poder executar seu plano de assediar Heitor moralmente, ou para poder demiti-lo.

Não fazer nada, submetendo-se a Gilson

Nesse caso, se o objetivo de Gilson for apenas controlar Heitor, é possível que as relações entre os dois se normalizem caso este se mantenha submisso e obediente a Gilson. A meu ver, porém, essa é uma situação que não durará muito tempo porque Heitor parece ser um profissional de ini-ciativa que não se restringe às atribuições do próprio cargo. Nesse caso, a tendência de Heitor se-ria rebelar-se, fazendo ressurgir o conflito.

Pedir demissão

Caso as alternativas anteriores não dêem certo, Heitor deverá pensar em mudar de emprego. Se Gilson, porém, começar a assediá-lo moralmente, Heitor deverá pensar na hipótese de simples-mente pedir demissão imediatamente, para manter a própria sanidade.

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Conclusão

Alguns leitores poderão considerar que as suposições feitas ao longo deste trabalho são exageradas, irreais, implausíveis ou até mesmo absurdas. Quem conhece algo da natureza humana, porém, sabe que essas hipóteses, longe de serem irreais, são perfeitamente possíveis.

Notas

1 V. por exemplo, “Problem-Solving Process”. Disp. em: http://www.cls.utk.edu/pdf/ls/Week3_Lesson21.pdf , “Seven steps to problem solving”. Disp. em: http://www.pitt.edu/~groups/probsolv.html , “Effective problem-solvingtechniques for groups”. Disp. em: http://www.unce.unr.edu/publications/files/cd/other/fs9726.pdf