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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Priscila Gomes de Azevedo Vida de filho de criação na Zona da Mata de Minas Gerais Campinas 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Priscila Gomes de Azevedo

Vida de filho de criação na Zona da Mata de Minas Gerais

Campinas

2017

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Priscila Gomes de Azevedo

Vida de filho de criação na Zona da Mata de Minas Gerais

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Suely Kofes Este exemplar corresponde à versão final da tese defendida pela aluna Priscila Gomes de Azevedo e orientada pela Profa. Dra. Maria Suely Kofes.

Campinas

2017

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES, 11836-13-0

Ficha catalográficaUniversidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências HumanasCecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Azevedo, Priscila Gomes de, 1981- Az25v AzeVida de filho de criação na Zona da Mata de Minas Gerais / Priscila Gomes

de Azevedo. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

AzeOrientador: Maria Suely Kofes. AzeTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas.

Aze1. Filhos de criação. 2. Família. 3. Narrativas. 4. Socialização. I. Kofes,

Suely, 1949-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia eCiências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Filho de criação life in Zona da Mata, Southeast of Minas GeraisPalavras-chave em inglês:Foster childrenFamilyNarrativesSocializationÁrea de concentração: Ciências SociaisTitulação: Doutora em Ciências SociaisBanca examinadora:Maria Suely Kofes [Orientador]Frédéric Raoul Nadine Marie VandenbergheJohn Cunha ComerfordDaniela Tonelli ManicaCarolina Cantarino RodriguesData de defesa: 18-12-2017Programa de Pós-Graduação: Ciências Sociais

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora da Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos

Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 18 de dezembro de

2007, considerou a candidata Priscila Gomes de Azevedo aprovada.

Profa. Dra. Maria Suely Kofes

Prof. Dr. Frédéric Raoul Nadine Marie Vandenberghe

Prof. Dr. John Cunha Comerford

Prof. Dra. Daniela Tonelli Manica

Prof. Dra. Carolina Cantarino Rodrigues

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

processo de vida acadêmica da aluna.

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Para Daniel e David.

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AGRADECIMENTOS

Uma das “máximas” de François La Rochefoucauld diz que a confiança que

temos em nós mesmos reflete-se, em grande parte, na confiança que temos nos outros.

Comigo, a confiança tem sido menos refletiva do que reflexiva. Não foram poucas as vezes

durante a realização deste trabalho que minha autoconfiança adveio da confiança que tenho

naqueles que me acompanhavam e em mim confiavam. Digo isso em relação, sobretudo, aos

professores que considero referenciais: Frédéric Vandenbergue, Bernard Lahire e Suely

Kofes. A confiança da Unicamp no meu projeto; a confiança da Capes nas minhas capacidade

e honestidade nas várias vezes em que justifiquei meu descumprimento dos prazos; a

confiança dos filhos de criação na minha conduta ética e a confiança dos familiares e dos

amigos na legitimidade da minha causa também foram essenciais para minha autoconfiança.

Portanto, sou profundamente grata a todos, pessoas e instituições, pela confiança e pelos

diversos auxílios que possibilitaram esta tese:

À Capes, agradeço o auxílio financeiro para minha dedicação exclusiva à pesquisa

e para o enriquecedor estágio na École Normale Supérieure de Lyon.

À Unicamp, por acolher o projeto e me proporcionar a estrutura necessária para

desenvolvê-lo.

À École Normale Supérieure de Lyon, de modo especial ao Centre Max Weber,

pelas férteis oportunidades de aprendizado.

Aos protagonistas desta tese, Laura, Anita, Clara, Maria, Joana, Alessandro,

Sebastião e João Paulo, por terem me recebido e compartilhado de maneira tão generosa suas

histórias de vida.

À professora Suely Kofes, minha orientadora, por aceitar compartilhar meu

desafio, respeitando minhas escolhas e me apoiando sempre.

Ao professor Bernard Lahire, meu coorientador, cuja generosidade é proporcional

à erudição sociológica, por me orientar atenciosamente antes de qualquer formalidade, por me

receber em Lyon e possibilitar atividades e diálogos fundamentais, dedicando a mim parte do

seu precioso tempo.

Ao professor Frédéric Vandenberghe, atencioso “orientador informal”, meu

agradecimento vai além das leituras cuidadosas, das sugestões, das críticas, das indicações e

das oportunidades que me concedeu; agradeço a amizade e o incentivo que não me deixaram

desistir.

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Ao professor Jessé Souza, meu orientador no mestrado, por ter me apontado o

caminho.

Ao professor Luís Augusto de Gusmão, pelos profícuos comentários na defesa da

dissertação de mestrado e pelas indicações de leitura que muito contribuíram para o

prolongamento da pesquisa.

Ao professor Valeriano Mendes, enquanto coordenador deste programa de

doutorado em Ciências Sociais, pela ética, bom senso e respaldo.

Ao professor Fernando Loureço, pelo estímulo inicial.

Ao professor Josué Silva, pela sociologia com humor, pelos comentários na

qualificação e pela atenção que sempre me concedeu.

Ao professor John Comerford, com quem compartilho o interesse pela Zona da

Mata mineira, pela leitura minuciosa deste texto e de algumas versões anteriores, pelos

interessantes comentários e sugestões.

Ao professor Benoît de L’Estoile, pela gentileza com que leu e comentou meu

projeto de pesquisa, pelas indicações de leitura e por me instigar um olhar mais antropológico.

À secretária e ex-secretários do programa de doutorado em Ciências Sociais,

Beatriz, Maria Rita e Reginaldo, pela prestimosidade e eficiência. De modo especial, sou

muito grata à Maria Rita e atribuo a ela minha permanência na Unicamp.

À secretária do Centre Max Weber, Férouze Guiton, pela hospitalidade que tornou

mais aprazível minha estadia em Lyon.

Aos coordenadores do GT “Sociologia e Antropologia da Moral” da ANPOCS,

professores Alexandre Werneck e Luís Roberto Cardoso de Oliveira, pelas oportunidades e

ricos comentários.

À professora de francês Yasmine Daas, pela refinada revisão da tradução de

partes deste texto para o II seminário “Les approches philosophiques et sociologiques de la

domination” na ENS-Lyon.

À professora de francês Walquíria Cardoso Vale, por me preparar e estimular ao

longo de alguns anos.

Ao amigo Joailton Menini, pelas generosas e cuidadosas traduções para o inglês

de resultados parciais desta pesquisa.

Ao amigo e colega Leandro Ribeiro da Silva, pelo incentivo ao doutoramento na

Unicamp.

Aos colegas de turma da Unicamp, pelas partilhas e pelo coleguismo.

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Aos amigos: Marlene e Vinícius, Ana e Agostinho, Viviane e Paulo, Thiago, Seu

Sydney, Mazinha, Luciane e Paolo, Aline e Marcos Vinícius pelo ombro amigo sempre

disponível.

À amiga e funcionária Silvana, por seu profissionalismo e sua dedicação, sem os

quais eu não teria retomado minha vida acadêmica.

Às minhas tias, Janice e Neuza, pelo carinho e intermediação em campo,

fundamental para que a pesquisa acontecesse.

Às minhas amigas de infância, Roberta, Analídia e Jordane, por compartilharem o

olhar nativo, me esclarecendo dúvidas e se colocando à minha disposição. De modo especial à

Roberta e à sua mãe, Nina, pela indicação de João Paulo, intermediação e ajuda na obtenção

de materiais etnográficos.

Aos familiares de Jaboticabal, agradeço o carinho e a compreensão da nossa

ausência em momentos importantes. De modo especial à Maria Alice e à Gabriela.

À minha mãe, Tereza, e ao meu irmão, Renato, minha gratidão é intensa. Aprendi

com esta pesquisa a reconhecer a seriedade e o valor do cuidado. Agradeço imensamente

todas as vezes em que deixaram suas casas para cuidar da minha e dos meus estimados

animais, me permitindo prosseguir com a pesquisa; especialmente nos últimos meses, em que

cuidaram tão amorosamente também do meu filho para que eu pudesse acabar logo com isso.

Ao Daniel, meu companheiro, espero que a dedicatória possa expressar a

profundidade da minha gratidão. Há dezessete anos nossa história começava paralelo à minha

com as Ciências Sociais. Sempre dividiu com elas a minha presença, a minha atenção.

Sempre compreensivo, respeitoso, cuidadoso e grande incentivador.

Ao meu filho, David, pela força que me fez descobrir com o seu nascimento;

fundamental para dar à luz, para lidar com o medo da perda e, finalmente, para enfrentar o

dilema natureza/cultura e conseguir concluir esta tese.

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E você acha que existe alguma diferença entre filho de criação e filho adotivo? A maneira de falar. Eu acho que é maneira de falar. É de região. É igual mandioca e aipim... é uma coisa só, né? Eu acho que é tudo uma coisa só, não muda nada não, criação com adotivo. E é sempre assim, ó: você tem uma filha adotiva. Aí, geralmente, um filho adotivo sempre é moreno. Repara pra você ver. Infelizmente, querendo ou não, é. Ou é moreno ou é negro. Isso é uma grande... injustiça que as pessoas criam. Aí, a pessoa vira para o outro e fala assim, já pergunta assim, você sente uma maldadezinha na pergunta: “essa aí é a sua filha?” A pessoa fala assim: “é, essa daqui é a menina que eu adotei”. Ela não vai te responder: “é, é minha filha.” Ponto e acabou o assunto. Nunca vai te responder. Nunca. Senta do lado, convive com uma pessoa... Você vai ver, se surgir essa pergunta, se a resposta não vai ser essa. Sempre vai ser. É sempre assim: “peguei pra criar”. Né? “Ela não é minha filha, é uma pessoa que eu peguei pra criar”. [silêncio] [...] E eles te moldaram para ser criado assim: a mesma coisa que um robozinho. Você criou um robozinho na função de ser faxineiro, ele vai viver naquilo ali. Infelizmente é assim. Querendo ou não, é assim. [silêncio] Vida de filho adotivo.

Laura, filha adotiva

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RESUMO

Este trabalho procura acessar e compreender as formas morais e costumeiras por

meio das quais os habitantes da Zona da Mata de Minas Gerais reconhecem os filhos de criação e estabelecem o imaginário dos princípios e regras que lhes define o perfil da própria identidade e a gramática dos relacionamentos. Filho de criação é a categoria nativa utilizada para se referir a pessoas que foram dadas, ainda bebês ou durante a infância, pela família consanguínea para outra família criar. O desempenho de algumas funções pelos filhos de criação e a divisão sexual destas funções estruturam a prática de pegar para criar. A família de criação apresenta a criança acolhida como se fosse da família, suprimindo qualquer diferença com relação aos filhos consanguíneos. Contudo, apenas os filhos consanguíneos têm direito ao estudo de modo sistemático, têm tempo livre para brincadeiras, passeiam, viajam, namoram, trabalham fora de casa, se casam etc. A vida de filho de criação é dedicada desde a mais tenra idade ao cuidado da casa e dos pais. A articulação de narrativas biográficas com pesquisa etnográfica revelou o cuidado dos pais até a morte como uma espécie de missão que o filho de criação deve cumprir em retribuição à “dádiva da vida” que o acolhimento representa para, então, ser reconhecido socialmente e, no limite, merecer a graça divina da salvação.

Palavras-chave: filhos de criação, família, narrativas, socialização.

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ABSTRACT

This study aims at access and understanding of the moral and customary ways by

means of which the inhabitants of Zona da Mata in the southeast of Minas Gerais recognise filhos de criação (foster children) and establish the imaginary of principles and rules which defines the profile of their own identity and the grammar of relationships. Filho de criação is the native category used to refer to people who have been given, even babies or during childhood, by the inbred family to another family to be raised. The performance of some roles by the filhos de criação and the sexual division of these roles structure the practice of pegar para criar (picking a child to raise). The família de criação (foster family) introduces the welcomed child as being part of the family suppressing any differences between them and the inbred children. However, only inbred children are entitled to systematic schooling, have free time to play, walk, travel, date, work outside home, get married etc. The life of a filho de criação is dedicated from a very early age to take care of the house and their parents. The articulation of biographical narratives and ethnographic research revealed this parent care till death as a sort of mission that filhos de criação must comply with in return to the "gift of life" that this welcoming represents so as to be socially recognized and, at the limit, to deserve the salvation by grace.

Keywords: foster children, family, narratives, socialization.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14

PARTE I

Construção: Sociogênese da categoria coletiva filho de criação

CAPÍTULO 1 – NOTAS DE UMA SOCIOLOGIA EM ESCALAS ................................. 21CAPÍTULO 2 – CIRCULAÇÃO X CONFINAMENTO .................................................... 302.1 – “Circulação de crianças” e criação de crianças .......................................................... 30

2.1.1 - A naturalização da desigualdade dos filhos de criação ............................................. 31

2.1.2 – Filhos de criação em contextos rurais ...................................................................... 362.2 – Filhos de criação e outras categorias do contexto rural ............................................. 392.3 – O parentesco (ir)revogável dos filhos de criação ........................................................ 42

2.3.1 – Temporalidade vitalícia ............................................................................................ 472.3.2 – Temporalidade perpétua? ......................................................................................... 48

CAPÍTULO 3 – PAISAGENS ............................................................................................... 503.1 – A Zona da Mata de Minas Gerais ................................................................................ 503.2 - Modos de sociabilidade e suas expressões .................................................................... 60

3.2.1 – “Rede de observação” ............................................................................................... 603.2.2 – Você é filho de quem? ............................................................................................... 623.2.3 – Religiosidade ............................................................................................................ 653.2.4 – Celebrações religiosas e sociais ................................................................................ 693.2.5 – A roça e a rua ........................................................................................................... 733.2.6 – Ser filho .................................................................................................................... 753.2.7 – Os pais cuidam dos filhos para depois os filhos cuidarem dos pais ........................ 773.2.8 – Filhos de criação cuidam dos pais até a morte ........................................................ 783.2.9 – Filhos de criação e filhos adotados .......................................................................... 79

PARTE II

Desconstrução: De perto, ninguém é igual.

CAPÍTULO 4 – LAURA ........................................................................................................ 82CAPÍTULO 5 - ANITA ........................................................................................................ 103CAPÍTULO 6 – CLARA ...................................................................................................... 122CAPÍTULO 7 – MARIA E JOANA .................................................................................... 143CAPÍTULO 8 – ALESSANDRO ......................................................................................... 167CAPÍTULO 9 – SEBASTIÃO Mundinho ........................................................................... 185

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CAPÍTULO 10 – JOÃO PAULO ........................................................................................ 203

ENTREATOS

CAPÍTULO 11 – ETNOGRAFIA DOS INDÍCIOS .......................................................... 22111.1 – Adoção/criação como favor .................................................................................... 22111.2 – Desigualdade racial dos filhos de criação ............................................................... 22411.3 – Desigualdade de gênero dos e entre filhos de criação ............................................. 22611.4 – Da naturalização à valorização do sofrimento ......................................................... 232

RETORNO AOS FILHOS DE CRIAÇÃO ......................................................................... 237 Considerações preliminares ................................................................................................. 238CAPÍTULO 12 – ANITA ..................................................................................................... 241CAPÍTULO 13 – CLARA .................................................................................................... 255CAPÍTULO 14 – LAURA .................................................................................................... 271CAPÍTULO 15 – Entrevista com os pais de Laura .......................................................... 295CAPÍTULO 16 – ALESSANDRO – Conversa com a esposa Patrícia ............................. 310CAPÍTULO 17 – ALESSANDRO ....................................................................................... 318CAPÍTULO 18 – JOÃO PAULO - Conversa com Henrique ........................................... 338

PARTE III

Reconstrução: Vida de filho de criação

CAPÍTULO 19 – RECONHECIMENTO E SOFRIMENTO .......................................... 342

19.1 – Dó: o reconhecimento social do sofrimento ............................................................ 34219.2 – A dádiva da vida ...................................................................................................... 34819.3 – O sacrifício como dádiva ......................................................................................... 351

CONCLUSÃO: A servidão (in)voluntária dos filhos de criação ...................................... 356

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 359 ANEXO I - Dados do Sistema Nacional de Informação de Gênero - Uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010 - Barão de São João Batista ............................. 365ANEXO II – Dados do Sistema Nacional de Informação de Gênero - Uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010 - Bagre Bonito .................................................... 368ANEXO III – Carminha Mendonça ................................................................................... 371

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INTRODUÇÃO

Era Françoise, imóvel e de pé no enquadramento da pequena porta do corredor, como uma estátua santa no seu nicho.

(Marcel Proust, No caminho de Swann)

Entre as lembranças da minha infância, nos idos de 1985, estão as estadias na casa

da minha avó materna, localizada em um município da Zona da Mata de Minas Gerais que,

ficticiamente, chamo de Bagre Bonito. Nessas ocasiões, o estranhamento fecundava minha

curiosidade; a paisagem rural, os costumes, as relações de proximidade, a religiosidade, a

temporalidade, o vocabulário, os sabores, os odores, a sonoridade orgânica dos bichos... tudo

muito diferente do que eu conhecia na capital de São Paulo, lugar onde nasci e até então vivia.

Ao mesmo tempo, eu também era alvo da curiosidade nativa; a neta de fora1 da dona

Lourdinha. Entre tantos estranhamentos, um deles deu origem a este trabalho. Nas visitas a

parentes e amigos em que eu acompanhava minhas tias, era comum sermos recebidas por

uma pessoa solícita, geralmente mulher, negra, que nos acomodava e nos anunciava aos donos

da casa, preparava e nos servia um café, mas não se sentava à mesa conosco; voltava logo aos

seus afazeres ou se recolhia à soleira da porta, participando de longe da conversa. Para minha

surpresa, essa pessoa não era a empregada, era a filha de criação.

_ Mas, tia, isso lá em São Paulo é empregada! _ Psiu! Não fala assim! Ela é como se fosse da família! Aceitei sem entender, talvez pelo paralelo inevitável a uma mente infantil entre

como se fosse e faz de conta. Posteriormente, pela banalização da prática; quando me mudei

aos 9 anos de idade, com minha mãe e meu irmão, para um município limítrofe de Bagre

Bonito, que aqui chamarei de Barão de São João Batista,2 e então revi inúmeras vezes um

filho de criação ser tratado como se fosse da família.

Este é um tipo de relação oriunda da prática de pegar para criar, muito comum

até o fim do século 20 nos contextos rurais brasileiros, mas ainda presente na organização

social de algumas regiões, preservada e reordenada pela “memória histórica e coletiva”

1 Adotei itálico para categorias nativas e aspas para conceitos.2A pesquisa foi realizada nestes dois municípios. Embora os nomes sejam fictícios, procurei reter alguns códigos significantes que os originais têm para os moradores. “Barão de São João Batista”, por exemplo, às vezes aparecerá no texto apenas como “São João”, preservando a abreviação costumeira nas comunicações cotidianas.

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(HALBWACHS, 2006; POLLAK, 1989, 1992). No contexto da Zona da Mata de Minas

Gerais, filho de criação é a categoria utilizada para definir a filiação oriunda da prática de

pegar para criar. Como a própria expressão informa, a intenção é criar, de modo que é

preferível pegar para criar bebês ou crianças bem pequenas a crianças maiores. Embora seja

comum referir-se à prática como adoção e ao filho de criação como adotivo, não se trata de

adoção legal. A criança é dada pela família consanguínea para outra família criar. Vários são

os motivos que levam uma família a dar um ou mais filhos. O mais comum é a pobreza

econômica para o sustento de uma prole numerosa, embora outros sejam igualmente (ou,

analiticamente, mais) relevantes; como a doação de um filho em retribuição a um favor ou a

mãe consanguínea não gostar de filha mulher. Do outro lado, são também diversos os

motivos que levam famílias a pegar para criar, mas, entre eles, há algo em comum, seja em

famílias de criação que têm dinheiro, seja naquelas economicamente pobres: o desempenho

de funções preestabelecidas segundo o sexo e a expectativa de retribuição à criação. Para a

família de criação, não tem diferença entre filho de criação e filhos de sangue, mas apenas

estes estudam (ou têm o direito de estudar com sistematicidade), trabalham fora de casa, têm

direito à herança etc. Para os filhos de criação também não há diferenças; sou como se fosse

da família. A incompatibilidade deste “discurso público” (SCOTT, 1990) de pais e filhos de

criação com a observação das práticas constitui o ponto de partida desta pesquisa.

Até recentemente carreguei a aproximação entre como se fosse e faz de conta; não

por um prolongamento da primeira impressão, mas por um olhar sociológico demasiadamente

exógeno. Através do que percebia nas narrativas, coletiva e individuais, como contradição,

convencia-me de que como se fosse não é ser. Porém, os avanços e retornos que compõem

mais de uma década de pesquisa, me fizeram perceber que tais contradições estão mais para

“contraposições”3 e que não há espaço para antagonismos tão ferrenhos. 4 A questão aqui, ao

contrário da que coloca a problemática existencial tecida por Shakespeare, não é “ser ou não

ser” porque não se trata de “ser” ou de “não ser” (Parmênides). Como se fosse tem a sua

própria autenticidade que está em “ser, não sendo” ou “não ser, sendo” um pouco, menos, um

pouco menos: menos semelhante e menos diferente, menos de fora quando se está dentro; isto

3 No sentido que lhe é conferido por João de Pina-Cabral (2000: 880), a contradição diz respeito primordialmente ao embate dinâmico de princípios que geram conflitos, e não à incoerência, no sentido de falta de harmonia ou de convergência de princípios. Assim, já estamos falando mais de “contraposições” do que de “contradições”. 4 Em uma etnografia conduzida na mesma região da Zona da Mata de Minas Gerais, John Comerford (2003) observou que a categoria nativa família tem uma amplitude maior do que se supõe comparativamente. As relações sindicais que o autor observou, por exemplo, são concebidas como relações “de família”, daí sua preferência em falar de “processos de familiarização” e “desfamiliarização”. Sugestão que acolho aqui.

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é, coabitando a mesma casa. Ser um pouco e não-ser um pouco, ponto de vista que oscila

ocasionalmente. O “vir a ser” (Parmênides) como horizonte dos processos de “parentesco

performativo” (GOW, 1991; McCALLUM, 1989, 1990; VIEGAS, 2007), encontra na

ideologia do sangue que configura as relações de parentesco nos municípios observados, uma

razão tão intransponível quanto aceitável que não lhe permite jamais “ser”, ao contrário do

caminho pressuposto por Parmênides, o que impede, assim, a (re)configuração do

antagonismo ser-não ser. Como se fosse é, portanto, o apanágio de uma relação de

“familiarização” (COMERFORD, 2003).

A recordação desta experiência com a inquietação inicial aconteceu em 2006,

lendo Pierre Bourdieu. Na ocasião, então cursando o mestrado, compartilhei a lembrança com

meu orientador, professor Jessé Souza, e a partir daquela tarde começou minha dedicação à

vida de filho de criação. Não se tratou de uma ruptura com meu tema de pesquisa, pelo

contrário; os filhos de criação apareceram como a objetivação daquilo que eu investigava

teoricamente, a saber, a complementaridade das noções de “habitus precário” (SOUZA, 2003)

e de “magicização do catolicismo” (SANTOS, 2005). Fui a campo no fim de 2006 munida de

uma abordagem hipotético-dedutiva e de um aparato metodológico fortemente inspirado nos

Retratos Sociológicos de Bernard Lahire (2004). Tudo pretensamente pensado e analisado,

bastando “apenas coletar os dados”, não fosse a desconstrução de tudo logo na primeira

entrevista biográfica – efeito, justamente, da “variação de escala de análise”, como pressupõe

a metodologia de Lahire, mas para o qual eu não estava preparada.5

A primeira filha de criação que tive a oportunidade de entrevistar foi Laura, 22

anos.6 Saí aturdida de nossa conversa. Laura possuía uma “capacidade crítica” (BOLTANSKI

e THÉVENOT, 1991) que lhe permitia transformar a experiência filho de criação, sua e dos

outros, em uma experiência reflexiva que não condizia com o que preconiza o conceito

unificador “habitus precário”. Sem saber bem o que fazer e com o tempo exíguo para a

conclusão do trabalho, resolvi preservar o cunho biográfico das entrevistas em profundidade

proposto pela metodologia dos “retratos”, perfazendo o maior número possível de contextos

de ação (família, rede de sociabilidade, religiosidade, lazer, escola, trabalho etc.), e me guiar, 5 De fato, eu estava lidando com abordagens contrárias. De um lado, o conceito de “habitus precário” (SOUZA, 2003) fora pensado como uma variante, contextualizada, do conceito de “habitus de classe” de Bourdieu. De outro lado, Lahire, (auto)considerado “herdeiro heterodoxo de Bourdieu”, propõe, através da flexibilização do conceito de habitus em uma “pluralidade de disposições”, muitas vezes heterogêneas e contraditórias, que a realidade individual não pode ser deduzida diretamente das regularidades estabelecidas a partir de uma escala coletiva de análise. 6 Para preservar o anonimato, todos os nomes citados, exceto os que se referem à minha própria família, foram cuidadosamente trocados, guardando referências contidas nos originais; como analogias, regionalismos e apelidos, por exemplo.

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não pelas singularidades reveladas, mas pelas semelhanças; cuja recorrência me pareceu

importante “indício” (BERTAUX, 2010) da vida de filho de criação.

Em razão da distância contextual entre meu campo de pesquisa e aquele onde

Lahire desenvolveu a metodologia dos “retratos” e da diferença de objetivos dos trabalhos, ao

findar a primeira série de entrevistas, me vi diante de importantes questões que não seriam

respondidas apenas por mais entrevistas com as mesmas pessoas, mas etnograficamente.

Buscando empreender uma sociogênese das disposições e valores que observei com

recorrência, ainda sob inspiração de Lahire, variei a “escala de análise” e retornei à

etnografia, trabalhando na interseção de duas abordagens: diacronicamente, procedendo a um

estudo em profundidade da “memória histórica e coletiva” (HALBWACHS, 2006) através de

documentos, fotografias, livros de memórias e de um levantamento de categorias próximas ou

correlatas; e, sincronicamente, através da investigação dos modos de sociabilidade e dos

contextos destacados pelas narrativas, utilizando a observação participante, entrevistas

semidirigidas com conhecidos e moradores dos contextos rural e urbano dos dois municípios

e rodas de conversa. A análise etnográfica é fundamental para o que, posteriormente, Lahire

definiu como “biografia sociológica” (2010).

A recorrência de situações, disposições e condições, de fato, são imprescindíveis

para a compreensão do que é unificado como vida de filho de criação. Contudo, as variáveis

(geração, gênero, raça, classe, escolaridade, trajetória etc.) e as variações disposicionais inter

e intraindividuais reveladas pelas narrativas individuais apontavam para uma “pluralidade”

(Lahire) de vidas de filhos de criação. Adentrar as singularidades das trajetórias e

compreender as dinâmicas envolvidas no processo de unificação da experiência pela

categorização constituem o prolongamento da pesquisa. Assim, articulei as narrativas

biográficas colhidas e ordenadas com base no aparato teórico-metodológico de Lahire (2004,

2010) com a proposta de “etnografar uma experiência” desenvolvida por Suely Kofes (2001a:

13) para então sociobiografar uma experiência ao mesmo tempo individual e coletiva,

cotidiana e histórica, com configurações de outrora e implicações hodiernas: filho de criação.

***

A tese está estruturada em três partes e um entreatos que faz a ponte entre as duas

etapas da pesquisa de campo, realizadas entre dezembro de 2006 e fevereiro de 2007 e entre

julho e setembro de 2012. Como a compreensão do objeto de investigação foi possível através

da variação das escalas de análise, me pareceu importante objetivar este processo na

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estruturação do texto. Deste modo, forma e conteúdo seguem o mesmo movimento dialético

que constituiu a pesquisa (empírica e analítica): construção, desconstrução e reconstrução.

Parte I – Construção: sociogênese da categoria coletiva filho de criação

No primeiro capítulo, aprofundo a articulação dos pressupostos teórico-

metodológicos que orientaram a pesquisa (LAHIRE, 2004, 2010; KOFES, 2001)

posicionando melhor minhas escolhas e abordagens. No segundo capítulo, proponho uma

análise teórico-comparativa a partir de estudos da experiência filhos de criação em contextos

diversos. Abordo pesquisas no âmbito da “circulação de crianças” (FONSECA, 1994;

MOTTA-MAUÈS, 2004, 2006, 2007; GODOI, 2009), filhos de criação em contextos rurais

(GALANO, 2002; GODOI, 2009) e indígenas (GOW, 1991; McCALLUM, 1989, 1990;

VIEGAS, 2007), além de categorias fronteiriças próprias do mundo rural (HERÉDIA, 1988;

MOURA, 1988; CARVALHO FRANCO, 1997; GALANO, 2002). Em seguida, no terceiro

capítulo, procuro contextualizar, inicialmente através de um panorama histórico-geográfico da

Zona da Mata de Minas Gerais (VALVERDE, 1958; IBGE, 2010) que culmina na paisagem

social dos dois municípios pesquisados e, posteriormente, através de uma análise etnográfica

das formas morais e costumeiras que reconhecem os filhos de criação e estabelecem o

imaginário dos princípios e regras de um código que lhes desenha o perfil da própria

identidade e a gramática dos relacionamentos.

Parte II – Desconstrução: de perto, ninguém é igual

Esta parte do trabalho é dedicada às narrativas biográficas. Os capítulos 4 a 10

constituem “retratos sociológicos” de oito filhos de criação, cujas narrativas foram colhidas

na primeira etapa da pesquisa. Um entreatos, capítulo 11, apresenta a etnografia dos

“indícios”7 apontados pelas narrativas como elucidativos do processo de unificação da

experiência e de naturalização da desigualdade da categoria, buscando analisar a homologia

que se pretende de trajetórias singulares com base na ancestralidade de uma categoria comum.

Por fim, nos capítulos 12, 13, 14, 15 e 16, retorno, etnograficamente às narrativas biográficas

ou biograficamente à etnografia, compartilhando o senso comum com os filhos de criação que

consegui restabelecer contato e propondo uma análise conjunta através de uma reinserção

mais reflexiva de avaliação e atualização.

7Inspirada por Daniel Bertaux (2010: 89), “não se trata de extrair de uma narrativa de vida todas as significações que ela contém, mas somente aquelas pertinentes ao objeto de pesquisa e que adquirem aí o status de indícios.” (grifos do autor)

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Parte III – Reconstrução: vida de filho de criação

Nesta parte do trabalho, capítulo 17, analiso o horizonte normativo descortinado

pela articulação narrativas-etnografia8 que justifica a reunificação da experiência social em

vida de filho de criação. Na primeira parte do capítulo, procuro explorar o reconhecimento

social do sofrimento chamando atenção para situações em que o desrespeito à “pessoa de

direito” (HONNETH, 2003) não configura “insulto moral” (CARDOSO DE OLIVEIRA,

2002) no sentido de falta de “reconhecimento” (TAYLOR, 1997; HONNETH, 2003). Na

segunda parte, abordo a prática de pegar para criar como “dádiva da vida” (MAUSS, 2003;

CAILLÉ, 1998, 2002) e, na terceira e última parte, sua retribuição como “sacrifício e dádiva”

(MAUSS & HUBERT, [1899] 2005; CAILLÉ, 1997) tentando objetivar a temporalidade e o

paralelismo relacional que engendra a experiência filho de criação.

8 Tal articulação, como reitera Mariza Peirano, trata, na verdade, de uma coisa só: “(...) é necessário ultrapassar o senso comum ocidental que acredita que a linguagem é basicamente referencial, que ela apenas diz e descreve com base na relação entre uma palavra e uma coisa. Ao contrário, palavras, como sabemos, fazem coisas, trazem consequências, realizam tarefas, comunicam e produzem resultados. E palavras não são o único meio de comunicação: silêncios comunicam, outros sentidos como olfato, visão do espaço, tato... têm implicações que é necessário avaliar e analisar”. (PEIRANO, M. “Etnografia é método?” Aula inaugural no programa de pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal de Goiás, abril de 2014.) Apesar da aparente desarticulação que didaticamente opero, a pesquisa não se afasta deste espírito, como, espero, pode ser percebido não apenas na ênfase conferida à análise do silêncio, da observação do espaço, da interação etc., mas na complementaridade interdependente (sobretudo no que chamei de “etnografia dos indícios”) entre as histórias de vida/narrativas individuais e a narrativas coletivas/pesquisa social que estrutura o texto.

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PARTE I

Construção: Sociogênese da categoria coletiva filho de criação

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CAPÍTULO 1 – NOTAS DE UMA SOCIOLOGIA EM ESCALAS

Às vezes procuro concentrar-me na história que gostaria de escrever e me dou conta de que aquilo que me interessa é uma outra coisa diferente, ou seja, não uma coisa determinada mas tudo o que fica excluído daquilo que deveria escrever: a relação entre esse argumento determinado e todas as suas variantes e alternativas possíveis, todos os acontecimentos que o tempo e o espaço possam conter. É uma obsessão devorante, destruidora, suficiente para me bloquear. Para combatê-la, procuro limitar o campo do que pretendo dizer, depois dividi-lo em campos ainda mais limitados, depois subdividir também estes, e assim por diante. Uma outra vertigem então se apodera de mim, a do detalhe do detalhe do detalhe, vejo-me tragado pelo infinitesimal, pelo infinitamente mínimo, como antes me dispersava no infinitamente vasto.

(Italo Calvino, “Exatidão”, em Seis propostas para o próximo milênio.)

A unificação de uma categoria coletiva pode ser desconstruída tão logo ajustamos

as lentes sobre os indivíduos. Bernard Lahire (1998, 2004, 2006, 2008, 2010, 2012 e 2013),

tem insistido na variação de escalas de análise para uma apreensão empiricamente mais

detalhada da realidade individual, ao invés de deduzi-la de regularidades típicas ou

probabilísticas estabelecidas por escalas coletivas de análise. O autor chama atenção para os

limites das abordagens macrossociológicas quando se passa do estudo de grandes categorias

coletivas, como classes sociais, para a análise do “social individualizado”, isto é, para análise

de como indivíduos específicos vivenciam múltiplas e, em parte, incoerentes, experiências

sociais. De perto, percebemos que as diferentes experiências socializadoras do indivíduo

podem singularizar sua apreensão de categorias coletivas.

A sociologia em escala individual proposta por Lahire inscreve-se em uma longa

tradição sociológica que, de Émile Durkheim a Norbert Elias passando por Maurice

Halbwachs, procura ligar cada vez com mais minúcia a economia psíquica aos quadros da

vida social. O que era comumente circunscrito ao “psicológico” se expande e passa a compor

o programa do que fora inicialmente chamado “sociologia psicológica” (LAHIRE, 1998) e

posteriormente melhor conceituado como “sociologia em escala individual” (LAHIRE,

2005)1. Estudar o indivíduo, para o autor, é estudar a realidade social na sua forma

1 Lahire tem feito o seguinte esclarecimento: “utilizei de forma imprudente a expressão ‘sociologia psicológica’ para qualificar a minha abordagem. Digo ‘imprudentemente’ porque desencadeei expectativas por parte dos psicólogos sociais, que me perguntavam nomeadamente qual era o uso que eu fazia dos seus trabalhos. Ao falar em ‘sociologia psicológica’, eu não fazia senão retomar uma expressão que havia sido utilizada por Durkheim,

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incorporada, interiorizada, com a particularidade de atravessar instituições, grupos, campos de

forças e de lutas diferentes. Como é que a realidade exterior, mais ou menos heterogênea, se

faz corpo? Como é que as experiências se instalam de modo mais ou menos duradouro em

cada corpo e como é que elas intervêm nos diferentes momentos da vida social ou da

biografia de um indivíduo? Questiona-se Lahire.

De acordo com Lahire, o desencadeamento dos esquemas de ação incorporados

está longe de ser automático, exclusivamente “pré-reflexivo” e intuitivo, resultado de um

“senso prático” despertado pela analogia das disposições passadas e da lógica da situação

presente (tal como evoca o conceito bourdieusiano de habitus) que não leva em conta a

possibilidade de reflexividade e de racionalização (antes, durante e depois) da ação

(“objetivação da memória”, planejamento do futuro, programação, prevenção, “autodomínio”,

controle sobre si e sobre o tempo, reproblematizações de situações passadas etc.) produzidas

corriqueiramente pelos agentes por meio de “técnicas de objetivação” a partir das quais

estabelecem um distanciamento em relação a si e ao curso imediato da ação, de modo a

intencionalmente obter (ou pelo menos pretender um) maior controle sobre suas práticas.

Nesse sentido, Lahire refuta o uso das expressões “fórmula geradora” ou “princípio gerador e

unificador” das práticas e condutas que não os condiciona ao contexto de ação a que se

referem, generalizando-os simplesmente. Ao visualizar as várias possibilidades de

socialização, decorrentes dos variados contextos possíveis de ação, é possível a constituição

de novas disposições, novas concepções, novas práticas e novos comportamentos. Assim,

analisando a variação disposicional intra-individual em função dos contextos de ação,

podemos perceber o mesmo indivíduo ser egoísta em determinados contextos e altruísta em

outros; dominador em certos contextos e submisso em outros; consumir bens culturais

“legítimos” em algumas situações e “menos legítimos” em outras etc., independente de sua

classe, religião, raça, gênero ou posicionamento político. Em vez de buscar reduzir o conjunto

das práticas e comportamentos de um indivíduo a uma “fórmula geradora”, Lahire sugere

Mauss, ou Halbwachs. Estes autores falavam por vezes em ‘sócio-psicologia’. A minha intenção era dizer que o indivíduo (na época, excluído do campo legítimo da investigação sociológica) era integralmente um objeto sociológico e que um conceito como o habitus nos conduzia logicamente ao seu reconhecimento: o social existe no seu estado individualizado, incorporado, ‘dobrado’, assim como no seu estado coletivo, objetivado, ‘desdobrado’. É, pois, preferível falar em sociologia em escala individual, de sociologia de patrimónios individuais de disposições e de competências (do social no seu estado incorporado) e de sociologia das variações inter e intraindividuais dos comportamentos.” Entretien avec Bernard Lahire por Sofia Amândio. Versão em português disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1332346897S5iCO2di6Vv51AI5.pdf

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tentar reconstruir – parcialmente, a partir de uma visão necessariamente sempre limitada – o

“patrimônio de disposições” dos entrevistados.2

Nessa busca, Retratos Sociológicos: disposições e variações individuais ([2002]

2004) surge como um trabalho experimental, onde o autor desenvolve um dispositivo

metodológico que tenta dar conta da pluralidade de contextos nos quais os agentes estão

inseridos e os momentos de “ruptura biográfica” nas suas trajetórias (momentos de orientação

escolar; de escolha no fim dos estudos; de saída ou retorno à casa dos pais; de trabalho; de

desemprego; de escolha do cônjuge; de chegada dos filhos; de divórcio; de novo casamento

ou relação; de escolha ou abandono de determinada atividade cultural, lúdica, esportiva; de

mortes em um ambiente mais próximo etc.), de modo a captar as disposições e as variações

intra-individual dos comportamentos. Trata-se de uma série de seis longas entrevistas (três

horas, em média, de duração) realizadas com o mesmo interlocutor sobre suas práticas,

comportamentos, maneiras de ver, sentir e agir em diferentes domínios de prática (ou esferas

de atividade) ou em micro-contextos (no interior desses domínios de práticas) diferentes. O

mesmo pesquisador entrevista as seis vezes o pesquisado sobre temas relacionados a escola,

trabalho, família, sociabilidade, lazer, práticas culturais, corpo-saúde, alimentação, esporte,

estética etc. Nos deparamos, então, com um narrador complexo, em vez de uma unidade

2Encontra-se em Lahire (2004: 27-30) o primeiro esforço de definir conceitualmente o que vem a ser “disposição”: 1°) Toda disposição tem uma gênese que podemos nos esforçar para situar ou para reconstruir. A sociologia disposicional está ligada a uma sociologia da socialização. Desse modo, ela pressupõe que o pesquisador dedique uma parte de seu trabalho ao estudo da constituição (e das condições sociais de produção) das disposições (incorporação); 2°) A noção de disposição supõe que seja possível observar a recorrência, a repetição, de comportamentos, atitudes e práticas. Ela proíbe deduzir uma disposição a partir do registro ou da observação de apenas um acontecimento; 3°) Como uma disposição é o produto incorporado de uma socialização (explícita ou implícita) passada, ela só se constitui através da duração, isto é, mediante a repetição sistemática e cotidiana de experiências relativamente semelhantes. Consequentemente, uma disposição pode ser reforçada por solicitação contínua ou pode enfraquecer por falta de treinamento; 4°) Embora a noção de disposição implique uma operação cognitiva que evidencia a coerência de comportamentos, opiniões, práticas diversas e muitas vezes dispersas, não se deve pensar que, obrigatoriamente, a disposição deva ser geral, transcontextual e ativa em todos os momentos da vida dos atores. Deve-se lutar contra os abusos de generalização dos supostos efeitos de uma disposição; 5°) Uma disposição não é uma resposta simples e mecânica a um estímulo, mas uma maneira de ver, sentir ou agir que se ajusta com flexibilidade às diferentes situações encontradas. Devido a essa flexibilidade, as disposições podem entrar em estado de “vigília” ou serem transformadas; 6°) Conceitualmente, é necessário distinguir “competências” ou “capacidades” de “disposições”, reservando este termo para as situações em que há tendência, inclinação, propensão e não um simples recurso que pode ser utilizado potencialmente; 7°) Como certas disposições se combinam entre si para dar conta dos comportamentos neste ou naquele contexto? Possuem existência relativamente diferente uma das outras e se combinam de forma diferente entre si conforme os contextos de ação? Como podem entrar em conflito e travar a ação ou decisão? Essas questões ainda devem ser resolvidas empiricamente, em vez de regulamentadas pela ordem meramente teórica e retórica.

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coerente, portador de um “patrimônio de disposições” (em vez de habitus) heterogêneas e, em

alguns casos, opostas e contraditórias.

Em 2010, Lahire publica uma “biografia sociológica” de Franz Kafka,

personalizando o esforço teórico desenvolvido nos trabalhos anteriores através de pesquisas

anônimas. Neste trabalho, Lahire parte de um estudo preciso de la fabrication sociale de

Kafka desde as suas primeiras experiências familiares até as mais tardias em contextos

díspares através de múltiplas técnicas de pesquisa; histórica, documental, memorial e, claro,

literária e autobiográfica, como Carta ao Pai (1919), concebida por Lahire como “un exercice

de réflexivité”.3 Para Lahire, apenas uma “biografia sociológica” possibilitaria traçar os

diferentes quadros de socialização do escritor e suas diferentes experiências vividas, pois

procede por etapas, variando a escala de observação, tal como o “movimento de câmera na

realização de um filme”: “Zoom après zoom, on en parvient à de très gros plans qui focalisent

l’attention sur des éléments ou des dimensions particuliers de la vie du createur, et

notamment sur ses textes litteraires”. (Lahire, 2010: 11)

Lahire se propôs ultrapassar o gênero biográfico que privilegia, enquanto gênero

discursivo, a coerência de um percurso, de uma vida ou de um procedimento, em detrimento

de todas as incertezas, incoerências ou mesmo contradições de que estão cheias as

personagens históricas reais.4 Não se trata de ceder à ilusão positivista de poder apreender a

3 Vale notar que já em 1998, no seu L’ Homme pluriel: les ressorts de l’action, Lahire chama atenção para a escrita enquanto um processo de distanciamento do senso prático e apreensão mais objetivada das coisas, do mundo e de si. E de modo mais sistemático em 2008 nos textos “De la reflexivité dans la vie quotidienne: journal personnel, autobiographie et autres écritures de soi”. Sociologie et Sociétés, vol. 40, n. 2, p.165-179; e em “Linguistique, écriture et pédagogie: champs de pertinence et transferts illégaux”, La Raison escolaire. École et pratiques d’écriture, entre savoir et pouvoir, PUR, Paideia, Rennes, p.59-67. 4 No texto “L’homme pluriel ou la sociologie à l’échelle de l’individu”, Lahire cita exemplos do que considera “biografias unificadoras e parciais”: “Em uma obra que defende filosoficamente a ideia de um sistema de disposições coerente e homogêneo, Emmanuel Bourdieu (Savoir faire. Contribution à une théorie dispositionnelle de l'action, Paris, Seuil, 1998) utiliza o exemplo do célebre trabalho de Erwin Panofsky sobre Galileu (E. Panofsky, Galilée critique d'art, Paris, Gallimard, 1992), que põe em evidência o fato de que ‘os múltiplos investimentos intelectuais’ do grande físico ‘não se reduzem a uma justaposição de atividades separadas, formando, pelo contrário, um sistema de práticas homólogas’ (1998: 7). A fórmula geradora das práticas científicas do físico é assim designada por Panofsky: trata-se de ‘purismo crítico’. E. Bourdieu conclui, pois, que ‘através da ideia de purismo crítico, Panofsky apreende a propriedade fundamental em função da qual se organiza todo o comportamento do grande físico, conferindo-lhe a sua coerência e o seu ‘estilo’ próprio.’ (Idem: 8). No entanto, Panofsky não diz que o ‘estilo’ próprio de ‘Galileu’ se condensa nessa fórmula disposicional (‘purismo crítico’). Ele não fala de ‘todo o comportamento’ de Galileu, mas do comportamento erudito do Galileu-físico. A diferença é enorme. Poderia este ‘purismo crítico’ constituir a disposição social geral que daria conta dos comportamentos domésticos, amicais, amorosos, alimentares, indumentários...? Difícil imaginá-lo. Da mesma maneira, quando se evoca o habitus literário de um romancista como Flaubert (cf. P. Bourdieu, Les Règles de l'art. Genèse et structure du champ littéraire, Paris, Seuil, 1992), podemos nos questionar em que medida este último importa o mesmo ‘sistema de disposições’ para toda uma série de situações sociais extraliterárias. O conjunto de seus comportamentos sociais – qualquer que seja o domínio considerado – seria redutível a esse sistema? A observação dos comportamentos reais mostra que tal pressuposto está longe de ser evidente e de se confirmar”. LAHIRE, B. (2016). “O homem plural ou a sociologia em escala

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totalidade de uma “personalidade” em todas as facetas da sua experiência, mas evitar o

apagamento ou a eliminação sistemática dos dados heterogêneos e contraditórios. Para Lahire,

cruzar os múltiplos dados de arquivo sobre o mesmo indivíduo, abordando-o a partir de

aspectos diferentes da sua atividade social, em vez de simplesmente lhe desenhar o retrato

coerente como artista, escritor, político, padre ou, acrescento, filho de criação, é uma maneira

de renovar o gênero biográfico na história tornando-o um lugar experimental (no sentido de

lugar de experiências, de tentativas) de reflexão metodológica.

Inspirada pelo conjunto da obra de Lahire, me deparei com duas frentes de

trabalho, inter-relacionadas, porém distintas: ao pesquisar a experiência social filho de criação

através de uma sociologia das socializações em escala individual eu poderia proceder à

reconstrução sociológica da pluralidade disposicional dos indivíduos desconstruindo mais

sistematicamente a unificação que se pretende categorialmente, o que me exigiria um

aprofundamento rigorosamente biográfico que configuraria mais um exercício metodológico

do que responderia às minhas questões. A percepção deste efeito nasceu de uma terceira

perspectiva de investigação que se abriu em campo (decorrente da variação de escala de

análise). No nível individual, o processo de desconstrução da unificação social da experiência

filho de criação através da revelação de trajetórias singulares foi sucedido por um processo de

reconstrução; não do indivíduo singular em sua pluralidade, mas da própria unificação da

experiência. A reconstrução sociológica das biografias que caberia a mim realizar com o

auxílio de ferramentas teórico-metodológicas não faria jus à reconstrução moral da

experiência social que se fazia diante de mim, pelos próprios indivíduos. O que fiz, então, foi

observá-la e tentar compreendê-la.

A justificação moral para a experiência social filho de criação que se destacava

nas narrativas revelava dinâmicas sutis de reconstrução e resistência. O que no início

identifiquei grosseiramente como contradições, posteriormente como “variações narrativas”

(em analogia às “variações disposicionais” em função das variações contextuais),

recentemente, na etapa final de análise da pesquisa, com o auxílio de James Scott (1990),

pude perceber que se tratava de “discursos públicos” e “discursos ocultos” (public transcript e

hidden transcript). Ainda que isto não estivesse claro para mim no momento da pesquisa de

campo, minha escolha pela compreensão da reconstrução endógena da experiência social, em

detrimento da reconstrução sociológica das biografias, se deu pelo potencial heurístico do

individual”. In: VANDENBERGHE, F. & VÉRAN, JF. (org) Além do habitus: teoria social pós-bourdieusiana. Rio de Janeiro: 7Letras.

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horizonte normativo que permeava as narrativas culminando na unificação da vida de filho de

criação.

À questão inicial que motivou a investigação empírica, “o que transforma uma

relação objetiva de dominação e servidão em relação familiar”, foi acrescida uma questão

analítica: “por que trajetórias singulares são unificadas pela experiência social?” Buscando

respondê-las, retive a inspiração da “biografia sociológica”, no que tange à variação de escalas

e à multiplicidade de técnicas investigativas para a compreensão da vivência individual de

uma experiência social, mas abandonei o pressuposto de reconstrução do “patrimônio de

disposições” dos meus interlocutores. Me concentrei em uma sociogênese de disposições e

valores que permitissem compreender por que era tão importante para aqueles indivíduos

serem reconhecidos como filhos de criação. Assim, mais próxima de “retratos sociológicos”

de uma experiência ao mesmo tempo social e individual, cotidiana e histórica, articulei uma

sociologia das socializações a uma sociologia da moral da vida de filho de criação.

A lucidez no trato das ferramentas teórico-metodológicas de Lahire para atingir

meus objetivos de pesquisa veio da conciliação com a proposta teórico-metodológica

desenvolvida por Suely Kofes em Uma trajetória, em narrativas (2001). Assim como Lahire,

Kofes se mostra “convicta de que a experiência de um sujeito preciso não escapa das

concretudes socioculturais que tensamente o realizam enquanto pessoa”, propondo-se a fazer

“da intenção biográfica um exercício etnográfico” (Op. cit.: 13).

Envolta em uma trama narrativa, iniciada com um relato quase mítico sobre

Consuelo Caiado, Kofes procurou “compreender, mais que reconstruir” (Op. cit.: 19), não a

vida de uma mulher excepcional, mas uma trajetória sui generis. “Nem é biografia, nem

compartilho o pressuposto de trajetórias excepcionais, nem considero ‘mulher’ uma

identidade fixa.” (Op. cit.: 15) Não se trata também de “história de vida” uma vez que a

compreensão/reconstrução não se esgota nas narrativas; os fatos e os relatos sobre Consuelo

vão sendo desvelados e compreendidos por uma trama paralela de investigação etnográfica. A

inspiração para esta “abordagem biográfica”, segundo a autora, veio do ensaio de Hebert

Baldus, “O Professor Tiago Marques e o caçador Aipobureu”, e do texto de Darcy Ribeiro,

Uirá sai à procura de Deus, cujas abordagens focalizam a experiência de um sujeito sem a

pretensão de reconstruir sua vida. Kofes chama atenção para a sensibilidade destes autores no

encadeamento das informações, não sendo preciso ir além delas para que “o nexo entre a

experiência social e a trajetória singular” dos sujeitos em questão se torne compreensível. (Op.

cit.: 15)

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Definindo trajetória como “o processo de configuração de uma experiência social

singular”, Uma trajetória, em narrativas sofistica a noção bourdieusiana de trajetória (série de

posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente – ou mesmo grupo – em um espaço

ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes) ao ultrapassar a rede estrutural

em que atravessa os sujeitos valendo-se das narrativas como elementos de integração e

reconstrução de espaços, temporalidades, pessoas e personagens. Não se trata portanto de contar a vida de Consuelo, nem, evidentemente, etnografar a cidade de Goiás. Seguindo os rastros da primeira, e para isso incorporando a segunda, escrevo sobre o que pode ser construído, tecido através de indagações sobre uma pessoa. [...] Os que a recriaram como personagem, ao contar sobre ela, falam da pessoa Consuelo, mas também de si, de relações, de valores, de política e da história local. Não estarei, portanto, operando com oposições como indivíduo/sociedade; método biográfico/método etnográfico ou sociológico. O foco sobre uma singularidade, no caso uma trajetória, revelou várias relações, permitindo que a pesquisa guardasse na intenção biográfica um procedimento etnográfico: orientada pelas perguntas sobre Consuelo Caiado fui seguindo seus caminhos, e o que ouvi e encontrei foi sobre muitas coisas. (KOFES, Op. cit.: 22-23)

Por razões semelhantes, não me caberia uma etnografia de Bagre Bonito e de

Barão de São João Batista e nem a biografia de um ou mais filhos de criação. Minha

abordagem biográfico-etnográfica se limitou à investigação dos “indícios” (BERTAUX,

2010) apontados pelas narrativas individuais e coletiva que explicariam a vida de filho de

criação. Do mesmo modo, meu interesse pelas narrativas individuais restringia-se ao estudo

sociobiográfico de uma experiência social que, disposicionalmente, normativamente e

literalmente, configuram uma vida.

***

Na primeira fase da pesquisa, realizada nos meses de novembro e dezembro de

2006 e janeiro de 2007, me dediquei, inicialmente, a uma investigação etnográfica sobre filhos

de criação. Fiz entrevistas com moradores das regiões rurais e urbanas dos dois municípios

em questão,5 entrevistas com conhecidos de filhos de criação, participei de rodas de conversa

e investiguei os modos de sociabilidade interligados ao processo de parentesco,

“familiarização” (COMERFORD, 2003) e filiação por criação. Assim, levantei alguns nomes

de filhos de criação e, dentre eles, escolhi oito para realizar a pesquisa. Meu critério de

5 Me guiei mais pela classificação nativa baseada nos modos de vida e de sociabilidade do que pelos critérios políticos e administrativos utilizados pelo IBGE de distinção entre rural e urbano.

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escolha baseou-se nas singularidades das “histórias de vida” narradas pelos seus conhecidos e

na diversificação das variáveis idade, sexo e localidade de habitação (rural/urbano). Minha

ideia, tão logo definido os filhos de criação que entrevistaria, era trabalhar

concomitantemente as narrativas biográficas e a etnografia, contudo, logo após a primeira

entrevista biográfica, foi preciso segmentar as etapas de investigação. Algumas informações

da entrevista (como perguntas feitas) tornaram-se públicas e renderam conversas (importante

modo de sociabilidade que analisarei no capítulo “Modos de sociabilidades e suas

expressões”) especulativas sobre a vida particular da minha interlocutora e sobre meus

supostos interesses de pesquisa.6 Para evitar esta interferência e resguardar as próximas

entrevistas, tentei condensá-las, reduzindo o máximo possível o intervalo de tempo entre elas.

Posteriormente, retomei a investigação etnográfica de modo mais contextual, sem mais

conversas prolongadas com os moradores sobre os filhos de criação. Mantive esta

segmentação na estruturação da tese não apenas para preservar o movimento, as variações de

escalas e as etapas da pesquisa empírica, mas para ressaltar o quão se interconectam

fundamentando-se biografia e etnografia.

As entrevistas biográficas, como mencionado, seguiram a orientação

metodológica dos “retratos sociológicos” tentando perfazer o maior número possível de

contextos de ação de modo a captar transferências ou variações, reproduções ou novas

constituições disposicionais. A inspiração de Lahire me ajudou a identificar fissuras,

heterogeneidades e descontinuidades, intra e interindividual, no “habitus de filho de criação”

que o senso comum dos municípios pesquisados evoca com grande sistematicidade e também

correlações sociais na constituição de disposições chaves para pensar, sentir e agir como filhos

de criação.

A segunda fase da pesquisa de campo, realizada entre julho e setembro de 2012,

foi orientada pelos avanços analíticos ocorridos neste intervalo. Novamente comecei com uma

análise macrossociológica através de uma “etnografia dos indícios” que identifiquei

reanalisando as narrativas biográficas e coletiva. Realizei mais algumas entrevistas com

6 Pensando a respeito, cheguei a uma hipótese sobre a publicização da entrevista. Como mencionado, a primeira entrevista biográfica que realizei foi com Laura. Assim que concluímos, seus pais me interrogaram, privadamente, com interesse em saber detalhes da nossa conversa. Me esquivei dizendo que a entrevista não entrara nas questões que lhes interessavam. Posteriormente, imagino que tenham feito o mesmo com Laura. Esta, para se preservar, pode ter dito que conversamos sobre educação e política, uma vez que, de fato, conversamos longamente sobre estes temas, haja vista meu interesse inicial em acessar o “patrimônio de disposições” dos filhos de criação. A elaboração desta hipótese veio do conteúdo das interceptações de alguns moradores no dia seguinte à entrevista: Morador: Você está fazendo entrevista de filho de criação ou de política? Moradora: Por que que ela não foi para o Coluni [Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa]?

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moradores, participei de novas rodas de conversa e me dediquei à investigação do contexto

religioso, cuja compreensão revelou-se central para a compreensão da vida de filho de

criação. Com relação às narrativas biográficas, pensei em uma retomada mais reflexiva e

compartilhada; pautei o roteiro de entrevista, preservando a orientação biográfica, pelas

narrativas que considerei mais objetivantes das entrevistas anteriores. Assim, compartilhei

com os filhos de criação, com os quais consegui restabelecer contato, tanto suas próprias

narrativas, quanto a narrativa coletiva e, anonimamente, as narrativas de outros filhos de

criação, deixando-os livres para se posicionarem, atualizarem e avaliarem o que fora dito,

prolongando, concordando ou discordando. Ciente que este novo formato poderia intensificar

as conversas, apesar do anonimato que mantive diligentemente durante toda a pesquisa,

organizei a realização das entrevistas novamente de modo condensado, mas, desta vez, no fim

da minha estadia.

Enfim, tentei estruturar a tese deixando o mais claro possível minhas abordagens,

a interconexão biografia-etnografia e a construção teórica articulada com a pesquisa empírica.

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CAPÍTULO 2 – CIRCULAÇÃO X CONFINAMENTO

As “crias” eram meninas que vinham do interior [...] Lembro o primeiro dia quando alguma delas chegava. Era choro, choro sentido de dar dó. As “velhas” compreendiam e observavam. Já no segundo dia, o choro era menos intenso; no terceiro dia, começavam o tratamento. Primeiro, um purgante para vermes que invariavelmente tinham. Era respeitado o resguardo e em seguida, vinha o tratamento fortificante com ervas e se não me engano o vinho reconstituinte Silva Araújo e boa alimentação. Não sei o que passava na cabeça delas, na minha eu sei, havia muita pena. Eram meninas pouco mais velhas do que eu e iam servir, enquanto que eu só brincava.

(MARIA CECÍLIA, Uma casa chamada 14)

2.1 – “Circulação de crianças” e criação de crianças

A categoria nativa filho de criação aparece com frequência nas pesquisas sobre

“circulação de crianças”. Circulation des enfants (Lallemand, 1993) ou fosterage são

expressões que designam a mobilidade infantil entre unidades domésticas com a transferência

da responsabilidade parental. Trata-se de um tema estudado há bastante tempo no cenário

internacional, em diversos contextos.1 Dois pressupostos são apontados para a configuração

da prática: o caráter reversível da adoção e a preservação dos vínculos com a família de

origem. No Brasil, a “circulação de crianças” começou a ser observada na década de 1980

pela antropóloga Claudia Fonseca, cujo estudo foi desenvolvido em bairros populares e em

arquivos públicos de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Posteriormente, a antropóloga (“e

avó”, como faz questão de salientar) Maria Angélica Motta-Mauès (2004) chamou atenção

para a “circulação de crianças” também nas classes média e alta e para as configurações que a

prática assume na Amazônia (Motta-Mauès, 2006; 2007). No contexto rural, a mobilidade

1 Margaret Mead ([1928] 1961, [1935] 2000), nas etnografias clássicas dos Arapsh e de Samoa, faz uma das primeiras descrições etnográficas de arranjos familiares e residenciais na criação e educação dos filhos. Ainda na Oceania (CARROLL, 1970; BRADY, 1976; CHARLES, 1997), na África Ocidental (GOODY,1982; LALLEMAND, 1980; DUPIRE, 1988; GOODY, 1969; ALBER, 2003), na Ásia (MASSARD, 1983 e 1988) e entre os esquimós (DUFOUR, 1984; GUEMPLE, 1979).

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infantil é transversalmente observada há mais tempo.2 Recentemente, a antropóloga Emília

Pietrafesa de Godoi (2009) dedicou-se às várias faces da “circulação de crianças” entre os

camponeses do sertão do Piauí.3

O modo e a frequência com que a expressão filho de criação é utilizada pelos

nativos pesquisados são, contudo, variados. Fonseca observa que seus interlocutores

reconhecem a categoria, mas raramente a utilizam, pois, de acordo com a autora, a ênfase está

mais no vínculo, o menino que eu criei, do que no indivíduo autônomo. Em Motta-Mauès, a

categoria mais utilizada para a circulação que não envolve parentesco consanguíneo é cria de

família e nos contextos de socialização por onde as crianças das classes média e alta circulam,

a expressão é descabida. Tradicionalmente, como apontam os estudos de antropologia e

sociologia rural, filhos de criação são frequentes entre camponeses, de modo que é na

pesquisa de Godoi onde encontramos mais referências. O primeiro esforço de definição e

diferenciação de filho de criação de outras categorias próprias do universo rural, como

agregado, foi da socióloga Ana Maria Galano (2002).

A “circulação de crianças” também é intensamente observada nas zonas rural e

urbana dos dois municípios pesquisados na Zona da Mata de Minas Gerais. Contudo, a

criança que circula não se transforma em filho de criação, sua posição familiar de origem é

preservada: é minha sobrinha, está morando comigo; é filho da minha vizinha que está

passando por um problema difícil; é meu neto, cuido dele para minha filha trabalhar em

outra cidade etc. A categoria filho de criação é utilizada apenas para os casos oriundos da

prática de pegar para criar, cuja separação radical da família consanguínea4 e a imobilidade

do filho de criação, isto é, seu pertencimento apenas à família de criação, a aproximam mais

dos pressupostos da adoção formal do que da “circulação de crianças”.

2.1.1 - A naturalização da desigualdade dos filhos de criação O que me chamou atenção nos estudos sobre “circulação de crianças” nos

diferentes contextos brasileiros, foi a recorrência daquilo que me instigou a pesquisar filhos de

2 Moacir Palmeira (1973), Afrânio Garcia (1983), Margarida Maria Moura (1988), Beatriz Herédia (1988) entre outros. 3Certamente existem outros trabalhos, estes são os que conheço e utilizei como referência.4 Apesar da manutenção do sobrenome dos pais consanguíneos e do “papel referencial” que desempenham ao longo de toda a vida do filho de criação, através da genética, como veremos adiante.

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criação na Zona da Mata de Minas Gerais, qual seja, a naturalização de sua desigualdade

reiterando formas iníquas de tratamento. Apesar de abundantes referências, o foco dos estudos

aqui abordados é a relação entre famílias, isto é, a rede de “ajuda”, “solidariedade” e

“reciprocidade” que se constitui através da transferência de crianças. Desigualdade é um elemento de fosterage geralmente aceito. Exceto em situações que envolvem avós, raro é o caso de um filho de criação ser tratado em igualdade de condições com um filho “legítimo” da família. Quando a criança já é “meio grandinha” (sete ou oito anos), ao chegar na família de criação, sua posição subalterna é um ponto pacífico. Nos casos que eu observei, estas crianças não eram matriculadas nas escolas da vizinhança com a mesma presteza que as crianças “legítimas” da família; elas não ganhavam roupas e presentes nas mesmas proporções; e esperava-se que fizessem uma desproporcional quantidade de trabalhos domésticos. Apesar de serem tratadas assim, estas crianças não demonstravam grande ressentimento e deixavam claro que estavam naquelas residências voluntariamente. (Fonseca, 1995: 33, grifo meu) [Em nota: (Fosterage) palavra usada em inglês para designar a transferência temporal e parcial de direitos e deveres paternos entre um adulto e outro. A noção faz contraste com a adoção legal que implica a transferência total e permanente desses direitos.]

As palavras de Fonseca descrevem o que encontrei na Zona da Mata de Minas

Gerais, inclusive a atribuição aos filhos de criação de uma “servidão voluntária” (LA

BOÉTIE [1548] 2002). Contudo, ao contrário da perspectiva adotada nos estudos sobre a

“circulação de crianças”, isto é, a relação entre famílias doadoras e receptoras de crianças, me

proponho a investigar tal “servidão voluntária” a partir das narrativas dos próprios filhos de

criação com base em uma sociologia das socializações.

A pesquisa documental realizada por Fonseca nos arquivos públicos de Porto

Alegre sobre disputas judiciais pela guarda de menores entre 1900 e 1926 nos fornece, além

de uma importante historicização da socialização concebida como “adequada” aos filhos de

criação, a essencialização de uma desigualdade a priori que justificaria a desigualdade de

tratamento. Como definir, no entanto, uma “educação adequada”? A menor Irene “esteve num collégio durante cerca de trêz annos não conseguindo a ler porque é muito rude (...), depois ela aprendeu bordado com a viúva Camboim”. A mãe desta menina, insatisfeita, pretendia tirar sua filha da família adotiva onde, segundo ela, “fazia os trabalhos mais rudes da casa”. O juiz não concordou, estimando sua educação “adequada ao desenvolvimento intelectual da menor”. Outra mãe se queixou que seu marido tirara seu filho

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de 12 anos do colégio e do lar da madrinha para deixá-lo em uma “pensão de baixa espécie” onde trabalhava como carregador de viandas e servente de cozinha, sendo preparado “por essa escola de vadiagem e de vício para um “futuro horrível”. O juiz, ouvindo do pai que “mora na Doca na companhia de um bulicheiro de nome Zeca e que o menor cuidava da venda durante o dia”, resolveu que o pai estava oferecendo uma educação mais do que adequada às necessidades do menor. Nos dois casos, o juiz estava reconhecendo tacitamente uma forma alternativa de educação – uma educação adquirida pela convivência no dia-a-dia com adultos – na qual as crianças forneciam uma boa parte da mão-de-obra doméstica. Essa mão-de-obra podia ser gratuita, como no caso de crianças ainda com seus pais, ou de certos “criados”. Mas, a partir de uns 8 anos, esse trabalho podia ser negociado mediante algum pagamento. [...] (Op. cit.: 54, 55)

De modo semelhante, entre meus interlocutores, eu sei fazer de tudo! (menos

ler e escrever) é destacado como herança da criação recebida. Paralelo ao abandono escolar

por falta de jeito, o trabalho precoce é, individual e socialmente, apreciado como a pedagogia

que os transformou em pessoas de bem.

Fonseca nos traz a informação de que a discussão nos dossiês girava em torno de

quem tinha direito a dirigir a educação e usufruir dos serviços da criança, não de quem tinha

direito moral à identidade de “mãe”. Com base nos relatos, a autora chega a importantes

conclusões:

1) que a criança pequena era considerada um peso na economia da família que a criava, exigindo algum tipo de recompensa, 2) que, a partir de 7 ou 8 anos, a criança prestava serviços economicamente significativos e 3) que a “adoção” de uma criança não implicava, necessariamente, colocá-la em pé de igualdade com outras crianças da família. (Op. cit.: 63)

O embate entre pais consanguíneos e adotivos pela guarda da criança,

analisado por Fonseca como infração de uma relação de dádiva, aponta para uma relação de

dádiva paralela, baseada no “dever” de contraprestação da criança “adotada”. Esta segunda

relação de dádiva constitui outro ponto comum com o que observei na Zona da Mata de

Minas Gerais, diretamente relacionada à desigualdade de tratamento dos filhos de criação. [...] Os genitores apoiavam a visão da criança como dádiva: o pai pardo que, “com a morte da filha do casal A., consentiu que sua filha (de cinco anos) ficasse em companhia do referido casal” [...] No entanto, será que o valor imanente da presença da criança era retribuição suficiente para compensar o trabalho e os gastos envolvidos na sua criação? Diante do juiz, os pais adotivos enfrentavam um dilema. Não queriam derrubar sua imagem de bons

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cristãos, mas pelo tamanho da indignação que demonstravam em face da tentativa do genitor de retomar seus filhos, tem-se a impressão de que, atrás do ato caridoso, havia também um investimento calculado. Contavam com um retorno quando a criança fosse maior: sua ajuda nos trabalhos domésticos, uma contribuição em espécie para a economia familiar, o sustento dos pais adotivos na sua velhice... [...] Quem conseguiu criar alguém desde a primeira infância até os 12 ou 15 anos não aceitava de bom grado perdê-lo sem alguma compensação. (Op. cit.: 65, grifos da autora)

Sob o adágio “o sangue puxa”, Fonseca analisa que, cedo ou tarde, as mães

consanguíneas reaverão seus filhos, pois, nessa ideologia do sangue, “mãe é uma só”. Tendo

como certo este retorno dos filhos, a autora coloca a pertinente questão, objetivando, mais

uma vez, a dívida dos filhos de criação: Indaga-se então por que certas mulheres – as mais velhas e um pouco mais abastadas – infalivelmente adotam crianças. Por que minhas informantes buscam tanto uma criança, ao ponto de se dirigirem à pesquisadora: “Tu não sabes de nenhum nenê por aí, para eu criar?” Certamente as pessoas esperam que os filhos adotivos lhes dêem a mesma satisfação que seus próprios rebentos pela vida afora – talvez até mais, pois se acredita que crianças adotadas “devem mais” a essas pessoas que cuidam delas por caridade e não por obrigação. Não há dúvida de que esperam que essas crianças lhes sirvam de amparo na velhice [...]. (Op. cit.: 41, grifos meus)

Caridade e não obrigação são categorias centrais da prática de pegar para criar

que observei, reafirmadas cotidianamente pela família de criação ao longo de toda a vida do

filho de criação, paradoxalmente, como cobrança da dívida de retribuição. Ninguém tinha

obrigação de ficar com ela, explicou-me uma mãe de criação. A expressão utilizada pelos

filhos de criação para falar desta dívida mostra que se o acolhimento é por caridade, a

retribuição é por obrigação: Eu devo muita obrigação a eles. 5

Concomitante ao provérbio “mãe é uma só”, Fonseca destaca outro em operação:

“mãe é quem criou”. Mais uma vez, fica claro nesta disputa entre mães o interesse menos pela

guarda da criança do que pela “contraprestação” obrigatória à condição de filho, seja legítimo

ou adotivo. No meu contexto de análise, à obrigatoriedade social de contraprestação do filho

(Os pais cuidam dos filhos para depois os filhos cuidarem dos pais) é acrescida a

obrigatoriedade moral proveniente da adoção como caridade, aumentado a dívida do filho de

criação (os filhos de criação mais ainda, porque adotar uma criança é uma escolha.

5 Dever obrigação é uma expressão utilizada sempre em referência à retribuição de favores/ajudas importantes.

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Quer sejam os pais ou os próprios filhos que escolham a família de criação, a circulação de crianças se insere dentro de um sistema de troca no qual os adultos pesam cuidadosamente os “dons” e “contradons”. [...] A genitora que aceita colocar seu filho pode achar que está agindo pelo bem tanto do filho quanto da mãe adotiva. Pode esperar, em troca, uma certa retribuição da mãe adotiva. Não considera necessariamente que tenha aberto mão de seu direito de ser amparada pelo filho uma vez que este tenha crescido. A mãe adotiva, pelo contrário, ao acentuar as tribulações provenientes da lida materna cotidiana, apresenta a criança como um “peso”, deixando subentendido ser ela a merecedora de eventuais recompensas futuras. A longo termo, o que se espera da parte dos filhos adotivos é simples: que eles “não esqueçam” seus pais adotivos quando estes envelhecerem, e que lhes dêem o mesmo apoio afetivo e material que filhos “legítimos” dariam. Argumenta-se que a criança foi tratada exatamente como um filho “legítimo” e, assim sendo, o retorno deve ser o mesmo. Mas este “tratamento igual” está longe de ser evidente, e o objetivo a longo termo dos pais adotivos acaba frequentemente sendo frustrado. (Op. cit.: 127, 128, grifos meus)

A pletora da desigualdade, embora naturalizada, algumas vezes encontra

resistências, como mostram os casos de “autocirculação” trazidos pela autora: A partir de certa idade, muitos menores não se conformavam mais com o papel de objeto (passivo) de barganha; impunham-se de uma forma ou de outra como atores. A rebeldia juvenil podia ser dirigida contra os próprios pais da criança. Certos menores pediram para não voltar ao lar onde sofriam “maus-tratos”, tinham que “dormir no chão por não haver cama”, e “até fome passavam”. É manifesto que certos pais recorreram à Justiça para subjugar seus filhos maiores, mais do que para contrariar pais adotivos. [...] E sempre havia aqueles [crianças e adolescentes] que pretendiam exercer uma opção na escolha do lar substituto/empregador. Um menino de 11 anos procurou, por conta própria, o juiz, a quem declarou que tinha “sido entregue como empregado gratuito”, em lugar onde “faz todo o serviço e é muito maltratado, apanhando surras de palmatória e que até apresenta cicatriz de ferimento produzido por uma lata que foi-lhe atirada pela esposa do aludido capitão (seu tutor)”. (Op. cit.: 70,71)

Por que nos municípios pesquisados da Zona da Mata de Minas Gerais não obtive

referência a nenhum caso de autocirculação e a mera possibilidade soou absurda é uma

questão cuja explicação envolve vários domínios da vida social sobre os quais esta tese

pretendeu se debruçar: apego a valores tradicionais de dominação patriarcal/parental,

importância social do pertencimento familiar, socialização “adequada” ao filho de criação,

dívida pela dádiva da vida, valorização religiosa do sofrimento e reconhecimento social da

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submissão/servidão. Por enquanto, cabe um exemplo comparativo: veremos na história de

vida de filho de criação de Alessandro, a cicatriz de um tratamento muito próximo ao deste

menino de 11 anos citado por Fonseca, mas sem o mesmo desfecho. Apesar de consciente dos

maus-tratos, Alessandro nunca cogitou deixar a casa dos pais de criação. Ao contrário da

criança que “circula” por diversas casas, ampliando a heterogeneidade do seu “patrimônio de

disposições” (Lahire) e a capacidade reflexiva, o “confinamento” (VIEGAS, 2007: 115) à

casa dos pais de criação e aos contextos sociais que respaldam a socialização “adequada”,

não apenas tendem à homogeneidade das disposições como a obscurecer possibilidades de

mudança.

2.1.2 – Filhos de criação em contextos rurais Como pode-se perceber, a compreensão da experiência social filho de criação

(como de qualquer outra) articula-se a uma análise contextual. Além da variável rural/urbano,

condições históricas, culturais, sociais, econômicas e religiosas são fundamentais; assim como

idade, sexo, raça, escolaridade etc. o são em nível individual. Tantas variáveis conferem à

prática uma miríade de possibilidades, tornando indevida qualquer generalização; como a que

segue abaixo, associando determinadas características a um “costume rural”. Não é incomum no interior do Brasil que as famílias mais pobres estabeleçam uma relação clientelista com seus senhorios ou simplesmente com conhecidos mais prósperos mandando uma criança em idade escolar para trabalhar como babá ou empregada doméstica em troca de casa, comida e algum tipo de instrução. [...] Contudo, a prática de colocação de crianças que descobrimos na vila é muito diferente para ser interpretada como mera continuação do costume rural. Na situação rural, não há ambiguidades em torno do status da criança – ela é recebida temporariamente já na idade de ser útil nos afazeres domésticos, e muitas vezes passa a ser criada das outras crianças da casa. Embora a criança receba o título de “filho” ou “filha de criação”, ele ou ela se referem aos adultos da casa como “Dona Fulana” ou “Seu Fulano”. Já as crianças da vila são transferidas mais cedo (geralmente na primeira infância) em maior número, e são absorvidas em pé de igualdade com os filhos que por ventura existam na família adotiva. [...] Finalmente, a suposição de que pais dão seus filhos para “ricos” não parece caber aqui. [...] Parece então que, na vila, a maioria das “mães doadoras de filhos” não são motivadas pela esperança de estabelecer um vínculo utilitário patrão-cliente (Fonseca, op. cit.: 79-80, grifo meu)

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Contradições internas à parte, cabe-me dizer que a prática da criação em

contextos rurais pode ser bastante diferente do contexto urbano tanto quanto

intracontextualmente. O modo como a categoria filho de criação é concebida no sertão do

Piauí, é bastante diferente da concepção nativa da zona rural da Zona da Mata de Minas

Gerais ou do cerrado do Alto Paranaíba ou da Mata Atlântica do Sul da Bahia ou do interior

do Pará. Godoi (2009: 292), por exemplo, registra que no sertão do Piauí, “fosterage,

corresponde, exatamente, aos chamados ‘filhos de criação’”. Diferente do que observei na

Zona da Mata de Minas Gerais, o termo criação é utilizado pelos sertanejos para tratar de

modalidades de “circulação de crianças” ou fosterage e para se contrapor à adoção legal.

Além disto, Godoi propõe uma interpretação alternativa às abordagens que reduzem as

“várias faces” da “circulação de crianças” encontradas no meio rural a “relações utilitário-

clientelistas”. Parece-lhe necessário “restituir essa prática ao universo da reciprocidade como

parte de uma ética segundo a qual ela é dada como generosa e obrigatória entre vizinhos,

parentes e compadres”. (GODOI, op. cit.: 289) Na etnografia que realizei nas zonas rurais dos

dois municípios em questão, a hipótese de uma “relação utilitário-clientelista” foi uma das

primeiras a ser refutada. Logo no início, registrei a recorrência, em igual medida e condições,

da prática de pegar para criar tanto em famílias consideradas pobres quanto em famílias

ricas. De acordo com meus interlocutores, existiam várias maneiras de pegar uma criança

para criar. Na maioria das vezes, a adoção era intermediada por terceiros, de modo que a

família de criação não chegava a conhecer a família consanguínea. A senhora quer uma

menina? Eu sei de alguém que dá. Os pais consanguíneos, quando escolhem, não escolhem

pais ricos para seus filhos, escolhem quem vai cuidar. A única relação de troca que registrei

não se explica como utilitária ou clientelista, tratou-se da transferência de filhos como mostras

de gratidão a um favor inicial, concebido como generosidade.6

Ainda em contraponto à Fonseca, no contexto mineiro, “ambiguidade” revelou-se

uma característica intrínseca tanto à categoria quanto à experiência filho de criação, tal como,

entretanto, decorre de sua própria explicação: “Embora a criança receba o título de ‘filho’ ou

‘filha de criação’, ele ou ela se referem aos adultos da casa como ‘Dona Fulana’ ou ‘Seu

Fulano’”. Como veremos, filho de criação é uma categoria ambígua e polissêmica definida

relacionalmente (a filha de criação que é considerada como uma mãe pelos irmãos que

6São os casos, como veremos, das irmãs Maria e Joana.

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ajudou a criar, entre outros exemplos). Observei que os filhos de criação que não se referiam

ao casal acolhedor como pais não tinham sido adotados na primeira infância, o que, ao

contrário do afirmado por Fonseca, não é usual e nem apreciado, haja vista a possibilidade de

rompimento da relação que, mais uma vez contrapondo a autora, não deve ser considerada

“temporal”. Não dá certo adotar criança grande porque já vem com a cabeça formada e,

quando cresce, dá na louca de ir embora, explicou-me uma mãe de criação.

No sertão do Piauí, concomitante à reciprocidade “entre compadres, senão iguais

em condições materiais, pelo menos iguais em honra” (WOORTMANN, 1990 apud GODOI,

op. cit.: 294), Godoi observou, de fato, relações menos simétricas em que o acolhimento não

se dava por genuína ajuda, corroborando a análise de Fonseca e a desigualdade dos filhos de

criação. Dentro desse contexto, um filho ou filha de criação não goza do mesmo status de um filho ou filha nascido na família. Será aceito e apreciado enquanto desempenhar seu papel filial de forma adequada. Não há constrangimentos em mandá-lo de volta para o lugar de origem – a criança ou o(a) jovem não é concebido(a) como emocionalmente frágil, à semelhança da percepção também encontrada nos estudos de Fonseca (1995 e 1987) em uma vila porto-alegrense. (GODOI, op. cit.: 295).

Finalizando, diferente da conclusão similar de Fonseca e Godoi sobre seus

referidos contextos, [...] Nessa visão hierárquica do mundo, a diferença não representa necessariamente uma ameaça. Da mesma forma, a discriminação entre filhos “legítimos” e filhos de criação não é necessariamente vivida como uma injustiça. Entretanto, é justamente nesta discriminação que reside, para quem sustenta uma filosofia individualista e igualitária, a “desvantagem” do sistema de circulação de crianças. (FONSECA, op. cit.: 132-135, grifo meu) Nessa visão hierárquica do mundo, própria do universo camponês (Woortmann, 1990), a diferença não representa necessariamente uma ameaça. Desta forma, a discriminação entre “filhos legítimos” e “filhos de criação” não é concebida e vivida como uma injustiça. (GODOI, op. cit.: 296, grifo meu)

a pesquisa etnográfica das narrativas biográficas dos oito filhos de criação realizadas na Zona

da Mata mineira revelam como a injustiça é “vivida” e por que eufemizada ou calada.

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2.2 – Filhos de criação e outras categorias do contexto rural Se a mobilidade que caracteriza a “circulação de crianças” ou fosterage não se

aplica aos filhos de criação observados, a “imobilidade” a uma única casa/família que os

caracteriza não é insólita; outras categorias próprias do contexto rural, como morador,

agregado e cria de família também a experienciam, fazendo com que as semelhanças

apaguem as diferenças.

Em “Formas de dominação e espaço social” (1988), Beatriz Heredia ressalta que

“para garantir a mão de obra necessária era preciso, pois, imobilizá-la, e o engenho o fez [...]

Cronologicamente, a imobilização foi conseguida primeiro mediante a escravidão e, após a

abolição, mediante as relações de morada” (Op. cit.,116). No mesmo sentido, Margarida

Maria Moura, em Os deserdados da terra (1988), observa que a condição de agregado é masculina e intransferível. O acesso do agregado às terras da fazenda se dá por um pedido de morada. [...] O caráter dessa dominação não se funda na exploração do trabalho no sentido estrito, mas no controle dos movimentos do agregado, entendidos como seu deslocamento pelo espaço da fazenda, e seu tempo social, mesmo quando este não incide sobre a atividade produtiva. Nesse sentido, não é o trabalho contínuo que caracteriza sua subordinação às solicitações do proprietário. O nexo fundamental que liga o agregado à teia da dominação é estar à disposição do fazendeiro. (Op. cit., 81-82 grifos da autora)

É comum encontrar nos trabalhos de sociologia e antropologia rural a categoria

filho de criação imiscuída na categoria “agregado”. De fato, analiticamente, o filho de criação

não deixa de ser um agregado e seu dever de estar sempre “à disposição” para servir também

é uma característica comum. Contudo, nos municípios que pesquisei, o agregado não é

considerado como se fosse da família e sim empregado; não há coabitação e nem partilha da

mesma comida (não digo comensalidade, uma vez que os filhos de criação não se sentam à

mesa com a família). Além destas, outra diferença se mostra primária: o agregado não é

criado/educado/socializado pela família à qual se agrega. Como observa Maria Sylvia de

Carvalho Franco em Homens livres na ordem escravocrata (1997), a relação do agregado (ou

“morador em terra alheia”) com o proprietário baseava-se em “afirmada cordialidade”. O

proprietário era visto, apesar da amizade, como patrão e não como pai, como no caso dos

filhos de criação.

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Se ia agradando, dava um jeitinho de ficar na terra. O fazendeiro também ia gostando dele, ia-lhe fazendo as vontades e ele acabava encostando na fazenda. Era amigo, por isso estava lá; se não fosse, ia embora. (Op. cit: 100)

Uma breve e profícua passagem do artigo de Ana Maria Galano, “Êxodo rural,

fazendas e desagregação” (2002), cuja pesquisa de campo ocorreu na década de 1980 no

cerrado do Alto Paranaíba, Minas Gerais, constitui o primeiro esforço de distinção das

categorias agregado e filho de criação. Já no título da sessão, “A força de trabalho oculta:

agregados e filhos de criação”, opera-se uma segregação das categorias. Ao se dedicar à

história de constituição de uma fazenda, Galano analisa as singularidades da experiência filho

de criação: Além desses trabalhadores [agregados], o casal [proprietário da fazenda] sempre teve outras pessoas, sob suas ordens, para executarem diferentes tarefas. Não se trata aqui de participação eventual, sazonal, no processo produtivo na roça ou em atividades dentro de casa. Através da criação, dos filhos de criação, d. Maria Fernanda e o marido sempre tiveram criados [...] A prática de utilizar “filhos de criação” como força de trabalho certamente apresentou vantagens do ponto de vista da constituição do patrimônio e da acumulação real do capital. Até uma certa idade, enquanto as crianças não puderam trabalhar, o casal teve de fornecer meios de vida sem nenhuma contrapartida dos “filhos de criação”. Mas, desde que começaram a trabalhar, aqueles filhos de criação continuaram a ter acesso apenas a meios de vida necessários para sua reprodução e não à totalidade do valor gerado por eles. Os pais adotivos guardavam para si e apara os seus filhos biológicos o excedente acumulável que lhes permitiu não só reproduzir-se como produtores, mas também capitalizar sua exploração. [...] o padrão de consumo para os criados foi calculado para que se reproduzissem como trabalhadores sob a continuada dominação da família que os acolheu. [...] Do ponto de vista dos que cedem terras em parceria a agregados, há consideráveis vantagens em se ter meeiros que foram filhos de criação. No sistema de obrigações e direitos, que regem tradicionalmente as relações de dominação pessoal da morada, as obrigações devidas ao proprietário não se apóiam, neste caso, apenas na retribuição pelo acesso à terra. O filho de criação deve mais: sua própria sobrevivência inicial; a comida, a roupa, a escolaridade etc. ao longo de muitos anos. Quantas vezes não terão escutado o relato aparentemente pitoresco da criancinha alimentada com leite de cabra? [Em nota:] “Um dia apareceu aqui uma mulher com uma criancinha de dez dias que a mãe deu (...) não quis a criança, enjeitou e eu não queria. Mas eu peguei assim mesmo e criei essa menina com leite de cabra, não foi? Foi na outra fazenda. Ainda não tinha leite naquela época. Ele arranjou uma cabrita e a menina criou mamando na cabrita. Eu punha ela em cima da mesa, a cabrita, e trazia a menina embrulhadinha no pano e punha debaixo

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da cabrita e segurava no pé da cabrita. Ela mamava. A menina chorava e a cabrita berrava. É assim que eu criei ela. E é uma menina muito sadia, graças a Deus, até hoje”. (Op. cit.: 23-27, grifos da autora)

Minhas observações e abordagens são muito próximas das de Galano: também

priorizo a relação entre pais e filhos de criação em detrimento da relação entre famílias

doadoras e receptoras de crianças7; também me dedico a uma sociogênese da naturalização da

desigualdade dos filhos de criação; assim como Galano destaca a dívida pela “sobrevivência

inicial”, tomo como ponto de partida a “dádiva da vida” para explicar por que o filho de

criação “deve mais” e por que este dever é concebido como obrigação; por fim, também

concebo como lembrança da dívida relatos de sobrevivência graças à criação, menos

pitorescos do que “o relato da criancinha alimentada com leite de cabra” e mais objetivos, tal

como: se não fosse por nós, você nem vivo estaria.

A ocorrência predominantemente rural da prática no período em que Galano

realizou sua pesquisa também ocorria na Zona da Mata. De lá para cá, a intensificação do

êxodo rural destituiu a estreita correlação entre “filhos de criação/trabalho-excedente

monetário”, observada pela autora, e intensificou o que poderíamos expressar pela correlação

“filha de criação-cuidado”. Como veremos, a categoria cuidado é central na pesquisa pelo

seu duplo significado: é utilizada no sentido do care (GILLIGAN, 1990; TRONTO, 2009;

PAPERMAN & LAUGIER, 2005; HIRATA & GUIMARÃES, 2012) como no sentido de

trabalho doméstico, ambas atividades consideradas femininas. No contexto urbano, a

demanda por cuidado explica o maior número de filhas de criação em detrimento de filhos de

criação encontrado hodiernamente.

A diferença de gênero, associada à imobilidade, observada na Zona da Mata de

Minas Gerais como atualização da experiência filho de criação (o sistema categorial nativo

opera a unificação pelo masculino, apesar da experiência se atualizar pelo feminino), encontra

equivalência na categoria cria de família, observada por Motta-Mauès (2006; 2007; 2008) e

seus orientandos no Pará. Majoritariamente constituída por meninas (entre 6 e 10 anos) que

7 De todo modo, meu recorte não poderia ter sido outro, uma vez que filho de criação, na Zona da Mata de Minas Gerais, se tornou uma categoria histórica, utilizada apenas para crianças oriundas da prática de pegar para criar, considerada ilegal desde 1979, o que torna meus interlocutores representantes das últimas gerações desta prática. Não descarto a possibilidade de casos de acolhimento ainda hoje, porém, como é sabidamente proibido, as famílias não entram em detalhes sobre a origem da criança de quem detém a guarda; dizem apenas que é adotada, sem saberem distinguir se legal ou “à brasileira”.

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saem do interior para serem “cuidadas e brincar com as crianças da família” na qual são

acolhidas, as crias de família logo assumem a totalidade do serviço doméstico e se vêm

“imobilizadas” em uma relação de dependência da “família criadora”; sem estudo, sem

pagamento pelo serviço prestado e confinadas ao espaço da casa, sobretudo à cozinha e à área

de serviços. Contudo, apesar da relação de apadrinhamento que se estabelece, não há a

configuração “pais e filha”, como no caso das filhas de criação, além da preservação do

contato com a família consanguínea, ainda que progressivamente mais raro, o que inscreve a

categoria cria de família na lógica da “circulação de crianças”.

2.3 – O parentesco (ir)revogável dos filhos de criação Conceitualmente, o estudo sobre filho de criação tem como base analítica os

processos de “parentesco”. Categorialmente, entretanto, na região pesquisada da Zona da

Mata mineira, parentesco se constitui, exclusivamente, por consanguinidade. Marido também

não é parente; é agregado (Laura). Neste processo, parentes e não parentes podem pertencer

a uma mesma família. Com relação ao filho de criação, o que assegura o seu pertencimento

familiar é a categorização como se fosse. Em situações conflituosas, a ambiguidade vem à

tona; o sangue é responsabilizado pelo comportamento desviante do esperado. Ela é parente

daquela gente lá, explicou-me o pai de Laura, referindo-se à sua consanguinidade como

justificativa para o seu “mal comportamento”. Analisarei melhor os usos das categorias

família e parente quando discorrer sobre a importância do nome de família como pilar de

sociabilidade. John Comerford (2003), em sua etnografia realizada também na Zona da Mata

de Minas Gerais, por motivos diferentes, propõe os termos “familiarização” e

“desfamiliarização” (em vez de “família”) para se referir à intensa dinâmica de processos de

consideração e desconsideração que observou como formas de sociabilidade entre parentes e

não-parentes consanguíneos em contextos diversos. “Familiarização” me parece adequado aos

processos de constituição familiar que envolvem filhos de criação por compreender a

ambivalência e a instabilidade do como se fosse, isto é, sua possibilidade de revogação,

embora ideologicamente rechaçada. Por estas razões, utilizarei “familiarização” na vertente

dos estudos sobre “parentesco performativo”.

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As pesquisas que tomo como referência convergem para o caráter processual do

parentesco em um tempo revogável, reversível, que não só faz, como desfaz laços entre

pessoas. Nestas abordagens, o foco recai sobre a “casa”, destacando, particularmente, as

práticas alimentares como constitutivas das relações (COLLIER e YANAGIZAKO, 1987;

BLOCH 1973, 1993a; BODENHORN, 2000; CARSTEN 1995, 1997 e STAFFORD 1995,

2000). 8 A valorização da casa e do dar de comer tem lugar no debate etnográfico

americanista quando se fala da comensalidade como ato constitutivo da produção de parentes

resultantes da partilha das mesmas substâncias (VIVEIROS DE CASTRO, 1986; VILAÇA,

1992; FAUSTO, 2002), mas também em dar de comer e cuidar bem como um processo que

constitui afetividade e, sobretudo, “memória afetiva” (GOW, 1991; McCALLUM, 1989,

1990; VIEGAS, 2007) .

As análises de “parentesco performativo” iluminaram a dinâmica que identifiquei

como relação de “dádiva” (MAUSS, [1924] 2003). Apresentarei brevemente e grosso modo

alguns pontos que me permitiram tal identificação, cuja análise será desenvolvida na terceira

parte do trabalho.

Peter Gow (1991), em sua etnografia sobre os Piro, na Amazônia, analisa a ênfase

na separação entre hijo legítimo (real child) e intenado (adopted child), cuja importância não

está no parentesco fisiológico e sim no parentesco afetivo, destacando a relevância do

carinho. Nesse contexto, o parentesco só se constitui na medida em que envolve atos de criar,

cuidar, dar carinho e dar de comer. Cecília McCallum (1989) em sua análise do parentesco

entre os kaxinawá, também observa a diferenciação entre os filhos por “consanguinidade”

(ibu) e por “adoção” (aniva), concluindo que o parentesco é um processo “criado e recriado”

8 Maurice Bloch (1993: 131) propôs considerar a existência de “sistemas baseados na comida”, configurando laços de pertença a um espaço de habitação. Assim, aos “sistemas baseados na comida” Bloch acrescenta os “sistemas baseados na casa”, distinguindo ambos dos “sistemas baseados no nascimento”. O estudo de Janet Carsten (1997: 273) sobre Langkawi demonstra que os parentes “se tornam” parentes e não “nascem” parentes. O parentesco funda-se na partilha de uma substância que é definida como “sangue” e que cresce fisicamente dentro das pessoas, desde os primeiros tempos de sua existência fetal, correspondendo ao arroz ingerido (CARSTEN, 1995: 224). O arroz é a hipérbole da comida e o processo de parentesco constitui-se numa dupla associação entre o consumo de comida no mesmo fogo (dapur) e o ato de viver junto (CARSTEN, 1997: 12). Assim, os “laços de sangue” são considerados “performativos” por serem dependentes daquilo que se come e da convivência entre pessoas. Charles Stafford (2000: 42-43) observa que um dos aspectos centrais do “parentesco informal” ou “experiência vivida do parentesco” em uma comunidade chinesa, diz respeito àquilo que é traduzido como “ciclo de Yang”. Segundo o autor, Yang (criar) permite construir relações filiais entre pessoas que não são descendentes; caso dos foster children e yang mothers. Enquanto as crianças, por entrarem em ciclos de Yang, se transformam em filhos efetivos, aqueles que o são por nascimento (natural child) podem deixar de ser considerados parentes se o Yang cessar.

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pela construção das pessoas, considerando existir uma coexistência entre dois planos de

parentesco: o que se traça genealogicamente (enfatizado pelos nativos pela consanguinidade)

e o que se constrói pelo “afeto” e “cuidado”, sendo a este último, segundo McCallum, que os

kaxinawá atribuem mais valor e categorizam com a expressão parentes verdadeiros. No

estudo de Suzana de Matos Viegas (2007) sobre os Tupinambá de Olivença, Mata Atlântica

do Sul da Bahia, a mesma diferenciação se faz presente e a categoria filho de criação aparece

com mais sistematicidade além de em claro contraponto à adoção e à “circulação de

crianças”. Viegas utiliza a expressão “dar sustento” para envolver tanto o dar de comer e o

cuidar bem quanto uma terceira e importante dimensão que revelou-se base das demais: o

agradar. Nesse contexto, é a prática de agradar que transforma os filhos dos outros em filhos

de criação.

O estudo dos filhos de criação entre os Tupinambá de Olivença permite um

comparativo interessante com o que observei na Zona da Mata de Minas Gerais devido à

ausência de mobilidade (o que os assemelha) e, sobretudo, de desigualdade de tratamento dos

filhos de criação (o que os diferencia).

Viegas destaca como central o papel desempenhado pelas mulheres na

constituição do parentesco, pois são elas as responsáveis pelo agradar e com isso atrair as

crianças para junto de si. Tal prática, observa a autora, gera disputas veladas entre as

mulheres, cada uma se esforçando ao máximo para agradar seus próprios filhos (para não

perdê-los) e os das outras (para atraí-los), que nunca culminam em conflito aberto, pois, nesse

contexto, “é a criança que escolhe a mãe”. O que não significa, ressalva Viegas, que “estamos

perante vontades pessoais, como se elas fossem agentes autônomos” (Op. cit.: 126). A autora

se preocupa em demonstrar exaustivamente que escolher é ser atraído por quem oferece

“sustento diário” e “agrado”. Assim como em outros contextos ameríndios, é a “memória

afetiva” que constitui o parentesco, para a qual é necessário além de dar de comer e cuidar,

agradar cotidiana e persistentemente. (Op. cit.: 133) Na ausência dessa regularidade, os laços

de parentesco podem ser revogados.

Ao contrário do parentesco “cumulativo” característico da “circulação de

crianças”, entre os Tupinambá de Olivença, em cada fase da vida a criança pertence a uma só

mãe e a uma só casa (Op. cit.: 113); os laços parentais não são sobreponíveis. Apesar de

viverem em locais próximos e serem parentes, as crianças não têm contato efetivo. Até os 7

anos de idade, o espaço de suas vidas é o da casa junto à mãe, seja legítima ou de criação. É

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comum, de acordo com Viegas, que os filhos de criação não tenham qualquer contato com os

pais legítimos durante muitos anos ou nunca o tenham. Em contraposição à “circulação de

crianças”, Viegas fala do “confinamento” das crianças ao espaço dos lugares (Op. cit.: 115).

Confinamento que se dá, entre outras coisas, como prevenção dos agrados de outras

mulheres.

Além desta, existem outras duas modalidades de transferência de papéis parentais

entre os Tupinambá que, segundo a autora, não se confundem com a constituição de filhos de

criação: trata-se das práticas de dar o filho para uma família da zona urbana criar e de

entregar para adoção (legal). A primeira é mais “histórica” e a segunda, “muito rara”. Com

relação à primeira, trata-se de uma questão de ordem geracional e de gênero. Viegas observa

que criar é entendido como “educar”, o que envolve alimentação, ensino de um ofício e

prestação do mesmo; bastante diferente de “dar sustento”, cuja base principal, que constitui

filhos de criação, é o agrado. A situação laboral das meninas criadas por famílias na zona

urbana se inscreve em uma “relação servil” (Op. cit.: 160). Segundo a autora, uma “valiosa

informante” pertencente à burguesia que se instalou na vila de Olivença, na década de 1930,

contou ter criado em sua casa, ao todo, 35 “caboclinhas da roça”. A senhora em questão narra

com satisfação ter levado a bom termo esse processo de criação que se enquadra em um

projeto que marcou toda a sua atuação na vila, lamentando-se apenas a “falta de

reconhecimento” da parte das meninas em relação à educação que ela lhes oferecia,

queixando-se que muitas das caboclinhas iam embora sem dar nenhum tipo de explicação:

“umas casavam, mas outras fugiam”. (Op. cit.: 160)

A situação descrita acima, isto é; relação servil, necessidade de “reconhecimento”

como mostra de gratidão pela criação recebida e expectativa de imobilidade que, para os

Tupinambá de Olivença, difere as meninas dadas dos filhos de criação, configura a

experiência das filhas de criação da Zona da Mata de Minas Gerais. Contudo, o que faz com

que as filhas de criação do contexto mineiro não “fujam” ou deixem a família de criação pelo

casamento, pode ser explicado por uma dinâmica correlata, porém invertida, da que constitui

filhos de criação entre os Tupinambá.

“Dar comida” também é destacado pela família de criação na Zona da Mata

mineira, mas como um laço de dívida, não necessariamente de familiarização (menos ainda de

parentesco): enquanto comer da minha comida, me deve respeito (Vera, filha consanguínea e

irmã de criação). Em contraprestação, os filhos de criação retribuem a comida recebida com

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trabalho. Isso fica claro na lógica de compensação utilizada pelo meu interlocutor João Paulo:

nos dias em que não trabalhava por estar passando mal em decorrência da cachaça

consumida, também não comia nada, ficava o dia inteiro sem comer. Para constituir

familiarização, o “dar de comer” deve estar atrelado à coabitação prolongada, dar casa e

comida. As dinâmicas envolvidas no sentido de habitar revelam que coabitar a mesma casa

por alguns anos equivale a se tornar como se fosse da família, chegando a compartilhar o

capital social do nome de família. Para os filhos de criação, coabitar significa,

especificamente, morar dentro de casa. Nos casos em que os filhos de criação moravam em

um cômodo externo à casa da família, o sentimento de filiação ou mesmo de pertencimento

familiar, quando não substituído por outras formas constitutivas de familiarização (como

compadrio e apadrinhamento9), é relativizado.

Dar casa e comida, então, constitui a parte que cabe aos pais de criação,

completando o ato inicial de pegar para criar, constituindo a “dádiva da vida”. “Eles [pais de

criação] acham que eu tenho que viver agradecendo a eles porque foram eles que me deram a

vida; que se não fosse por eles, eu talvez nem viva estaria. Tudo o que eu sou de bom é

graças a eles.” (Laura)

Se o trabalho/cuidado dos filhos de criação retribui a casa e a comida, viver

agradecendo retribui a caridade de pegar para criar. Em síntese, a criação, isto é,

acolhimento mais casa e comida, é retribuída com gratidão e cuidado da casa e dos pais.

Entre os Tupinambá de Olivença, “cuidar bem e agradar” é o papel dos pais de criação, no

contexto mineiro, cuidar bem e agradecer cabe ao filho de criação. Se “cuidar bem” para os

Tupinambá implica dar casa e de comer, no contexto mineiro cuidar também se constitui de

dupla função: cuidar dos pais, no sentido do “care” e cuidar da casa, no sentido de trabalho

doméstico, ou melhor, serviço.10 Se “lá” não basta cuidar bem, deve-se agradar; “aqui” não

basta cuidar bem, deve-se agradecer. Concluindo essa analogia com o trabalho de Viegas,

temos, então, que ao filho de criação cabe “a árdua tarefa” de cuidar bem da casa e dos pais e

de agradecer “cotidiana e persistentemente” a dádiva da vida. Esse ponto é fundamental

porque remete ao princípio do “parentesco performativo”: a temporalidade.

9Como explicarei adiante, prefiro distinguir “apadrinhamento” de “compadrio” para fazer jus à hierarquia que o primeiro pressupõe às relações observadas. Veremos também que familiarização por apadrinhamento/compadrio trata-se de um tipo de “parentesco por consideração” (MARCELIN, 1996; 1999).10Como veremos, o trabalho doméstico é desconsiderado como trabalho, mesmo quando remunerado e legalizado. Os termos mais utilizados são ajuda e serviço.

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2.3.1 – Temporalidade vitalícia Como vimos, entre os Tupinambá de Olivença, a prática de agradar está ligada a

uma temporalidade marcada pela persistência diária. O parentesco só se constitui quando se

transforma em “memória afetiva” e para que isso aconteça, é preciso “cuidar bem e agradar

cotidiana e persistentemente” em um processo que, se interrompido, pode ser revertido; o que

faz do parentesco um “processo revogável”. No contexto mineiro, a familiarização por

criação é a priori irrevogável, seja com base no deu, tá dado!, seja na doxa que envolve os

filhos de criação: são pessoas especiais, escolhidas por Deus, que cuidam dos pais até a

morte. Contudo, é exatamente a possibilidade de descumprimento que paira no horizonte o

que torna a familiarização por criação um processo potencialmente revogável, inscrevendo-a

na lógica da “dádiva”. Como aponta Caillé (1998: 13), é “a incerteza de retribuição que faz o

dom”. Por enquanto, cabe assinalar que a revogação é algo que infringe o pacto moral que une

pais e filhos de criação e só é socialmente aceito mediante fortes justificativas. Partindo da

família de criação, a revogação só é admissível e socialmente legitimada uma vez que o filho

de criação não cumpra a sua missão de cuidar dos pais, mas duramente criticada em outras

situações, como veremos no caso de Anita. Partindo dos filhos de criação, é mais difícil

encontrar justificativas para o rompimento que os livrem de represálias. Tive acesso a dois

casos em que o rompimento pelos filhos de criação foi considerado traição e eles se mudaram

do município.11 Por outro lado, dois outros casos de revogação foram citados e justificados

pelo excesso de violência física.12 Em comparação com a situação das meninas que viviam

uma “relação servil” com as famílias que as criavam na zona urbana, observada por Viegas,

as “fugas” de retorno para a casa dos pais consanguíneos só eram possíveis porque não eram

julgadas pela comunidade dos lugares como ingratidão ou desonra. No caso dos filhos de

criação que observei, tanto homens, quanto mulheres, a “relação servil” é socialmente

naturalizada como inerente à experiência filho de criação. Salvo criteriosas exceções, para

manter vivos os laços de familiarização, os filhos de criação devem cuidar dos pais até a

11 Trata-se dos meio-irmãos de Laura, cujas histórias serão abordadas em sua entrevista. 12 São os casos de Alessandro, mas o rompimento não se deu com os pais de criação (onde também havia maus-tratos) e sim com o irmão de criação, com quem passou a morar após a morte dos pais, e de uma senhora que sempre teve filhos de criação, mas nenhum ficava com ela muito tempo porque ela judiava muito deles e as pessoas tomavam dela (depoimento da neta consanguínea dessa senhora). No último caso, as revogações não partiram dos filhos de criação.

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morte. Chegamos, então, a uma conclusão semelhante à de Viegas: a relação de parentesco

entre a família e o filho de criação se inscreve em uma vertente “performativa”, porque

potencialmente revogável, porém, aqui, a temporalidade vitalícia é o epítome.

Mediante as experiências que registrei, não fica claro sobre a morte de quem o

senso comum (do cuidado dos pais até a morte) se refere. Maria e Joana, 82 e 80 anos,

respectivamente, quando da primeira fase da pesquisa, isto é, em 2007, serviam à quarta

geração da família de criação. Clara, 52 anos, também em 2007, após a morte dos pais,

precisou se mudar do município, sem ninguém entender por que, para escapar dos chamados

de um irmão de criação para ir morar em sua casa e cuidar dos seus filhos, já que ela gostava

tanto deles.

2.3.2 – Temporalidade perpétua? Outras vezes, a morte (de ambas as partes) não implicou o fim. Relatos do

passado e no passado sobre filhos de criação são sempre nostálgicos, destacando a doxa de

pessoas especiais que foram escolhidas por Deus para servir, e referenciais, atuando

ideologicamente sobre os filhos de criação hodiernos (e, de modo ainda mais tenso, sobre os

filhos adotados legalmente, como veremos). Não é difícil encontrar quem peça ajuda ou

recorra à intercessão de filhos de criação já mortos para a resolução de situações difíceis ou

ajuda em algum serviço. Em um livro autobiográfico de memórias, da mãe de um amigo

pessoal, nascida em 1920 em Dona Euzébia, município também pertencente à Zona da Mata

mineira, encontrei o seguinte relato: Bazilia era uma moça criada pela tia Cota e era para nós como uma segunda mãe. Ela fazia quase todos os serviços da casa. Todos nós devemos muito a ela. Só nos ensinava coisas boas. [...] Deus é mesmo meu pai, sempre me ajuda nos piores momentos da minha vida. Mais um fato, dia 11/10/1990. Fui ao médico com minha filha [...] Quando cheguei do Hospital Fabiano de Cristo, estava muito desanimada e ainda tinha que fazer o almoço. Então pensei na Bazilia: _ Por favor, ajuda-me querida a fazer o almoço. Fica perto de mim, você que sempre me ajudou, ajuda-me agora. Depois que terminei o almoço, almocei e pequei um livro do Zeitor [seu filho, José Heitor] que estava comigo, Tronco do Ipê. Sinceramente chorei

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de alegria, Bazilia para provar que me ajudara e que me ouvira, caiu de dentro do livro um retratinho dela. [...] (VASCONCELLOS, s/d: pp. 7 e 28-29)13

13 VASCONCELLOS, Jandyra Fernandes. Castelo dos meus sonhos: arquivo de lembranças e ensinamentos de vida. Impressão independente.

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CAPÍTULO 3 – PAISAGENS

3.1 – A Zona da Mata de Minas Gerais

De acordo com a última “regionalização” do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE), realizada em 1990, o estado de Minas Gerais encontra-se divido em doze

mesorregiões1 (mapa 1). A mesorregião da Zona da Mata situa-se no sudeste do estado, na

fronteira com os estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, e, por sua vez, é subdivida em

sete microrregiões (mapa 2) que, juntas, abarcam 142 municípios. Destes, segundo dados de

2012 do IBGE, 70% têm menos de 10.000 habitantes.

1De acordo com a “Divisão regional do Brasil em mesorregiões e microrregiões geográficas” (IBGE, 1990:8) “entende-se por mesorregião uma área individualizada em uma Unidade da Federação que apresenta formas de organização do espaço geográfico definidas pelas seguintes dimensões: o processo social como determinante, o quadro natural como condicionante e a rede de comunicação e de lugares como elemento da articulação espacial. Estas três dimensões possibilitam que o espaço delimitado como mesorregião tenha uma identidade regional”. Já as microrregiões “foram definidas como partes das mesorregiões que apresentam especificidades quanto à organização do espaço. Essas especificidades não significam uniformidade de atributos, nem conferem às microrregiões auto-suficiência [...]. Essas especificidades referem-se à estrutura de produção agropecuária, indústria, extrativismo mineral ou pesca. Essas estruturas de produção diferenciadas podem resultar da presença de elementos do quadro natural ou de relações sociais e econômicas particulares, a exemplo, respectivamente, das serras úmidas nas áreas sertanejas ou à presença dominante da mão de obra não remunerada numa área de estrutura social capitalista”.

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Mapa 1 – Mesorregiões de Minas Gerais Fonte: Governo do Estado de Minas Gerais

Mapa 2: Microrregiões da Zona da Mata de Minas Gerais Fonte: Governo do Estado de Minas Gerais

Não obstante a lógica da homogeneidade operante na divisão do estado em

mesorregiões para fins de planejamento, a Zona da Mata é em si bastante heterogênea; donde

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advém a sua subdivisão em microrregiões.2 Por esta razão, cabe especificar que os dois

municípios e seus distritos3 onde realizei a pesquisa ficam na microrregião de Ubá.4

Se a heterogeneidade é marcante na Zona da Mata, a microrregião de Ubá possui

características históricas, de origens inquietantemente desconhecidas, que a tornam ainda

mais singular. Como aponta o estudo histórico-geográfico de Orlando Valverde (1958),

“Estudo regional da Zona da Mata de Minas Gerais”, “do ponto de vista físico, a região de

Ubá é em tudo semelhante à de Leopoldina e Cataguases, mas do ponto de vista da atividade

humana é tão diferente que levaria ao desespêro um determinista”. (VALVERDE, op. cit.:

51) Sabe-se que os atuais dezessete municípios que compõem essa microrregião são oriundos

“de povoamento antigo” (Ibdem: 29). Devido à combinação de fatores políticos e naturais, a

“marcha de povoamento” da Zona da Mata foi, comparativamente, tardia; aconteceu em

meados do século XIX.5 A densa e contínua cobertura florestal, nativa da Mata Atlântica, que

caracterizava a região – de onde adveio o nome Zona da Mata –, constituía um obstáculo à

sua penetração. Valverde aponta como complemento desse obstáculo, os índios cataguás e

puris.6 Com o objetivo de impedir o “descaminho do ouro”, a coroa portuguesa adotou a

política de manter desfavoráveis as condições nativas da região. Tal medida só foi anulada em

1805, com a decadência da produção aurífera. Não tardou para que a região fosse desbravada.

“O governo - a princípio lusitano, depois brasileiro -, quanto os colonos, por iniciativa

própria, facilmente venceram o homem e a natureza agrestes” (Ibdem: 25). O que não

aconteceu, entretanto, sem resistências. “Para o norte, a penetração se processa rapidamente,

de modo que, ao terminar a década de 1870, a frente do povoamento já deveria extravasar da

2No que concerne especificamente à categoria filho de criação, é importante destacar que ela é observada, com a mesma “moldura” (GOFFMAN, 1975) em toda a Zona da Mata, mesmo na microrregião de Juiz de Fora, considerada a mais desenvolvida delas. Em qualquer um dos 142 municípios, dificilmente a pergunta “Você conhece algum filho de criação” ficará sem a lembrança de alguns nomes. Nos municípios por onde passei, mesmo a pergunta é prescindível: _Eu estudo casos de pessoas que foram acolhidas como se fossem da família e cuidaram dos pais até a morte’ _Ah! Eu conheço um caso assim! 3Distritos são subdivisões administrativas dos municípios. 4A preservação do anonimato limita a descrição de características importantes. Para contornar este obstáculo, vou me ater a informações regionais e a dados deliberadamente aproximativos a fim de contextualização. Os aspectos socioculturais imprescindíveis para a compreensão do tema em questão serão abordados etnograficamente. 5As referências bibliográficas são escassas, como lamenta Valverde. Carlos Prates (1906), A lavoura e a indústria da Zona da Matta, e Afonso de Taunay (1945), A Pequena História do Café no Brasil (1727-1937), constituem as principais referências. 6Valverde apresenta a hipótese de que representantes do grupo tupi “devem ter se juntado aos primitivos ocupantes da Zona da Mata em virtude de terem sido rechaçados pelos povoadores brancos da faixa litorânea” (Op. cit.: 25).

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Zona da Mata. Isto se deve, em grande parte, à circunstância de que o fluxo povoador vindo

do sul encontrou em Ubá e áreas vizinhas povoamento mais antigo, proveniente do oeste”.

(Ibdem: 29).

Mapa 3 – Povoamento da Zona da Mata Fonte: Valverde,1958.

A paisagem que encontramos hoje nessa região não destoa muito da paisagem

descrita por Valverde nos idos de 1950: “paradoxalmente, pode-se afirmar que uma das

características atuais da paisagem da Zona da Mata é a falta de matas. Por toda parte, o

homem substituiu o manto escuro das florestas pelo pasto claro e aveludado de capim-

gordura (Melinis minutiflora)” (1958: 5). A devastação generalizada se deu em função do

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cultivo do café, em maior escala, de outras culturas agrícolas e de gado de corte e leiteiro, em

menor escala.

Além do “povoamento antigo” como fator histórico, fatores geográficos, como o

clima, são considerados agentes importantes de singularização da microrregião de Ubá. A

Zona da Mata tem o relevo montanhoso, constituído de colinas, vales estreitos e de algumas

serras. Dentre as regiões de maior altitude, destaca-se a Serra do Caparaó, na divisa com o

Espírito Santo, cujo ponto culminante é o Pico da Bandeira, 2.891m, e a Serra da Mantiqueira,

situada na porção sudoeste da Zona da Mata. Todas as regiões habitadas possuem menos de

1.000m de altitude. Nas regiões de menor altitude, encontram-se áreas em torno de 70m. Por

conta dessas características, o clima da região é o tropical. A classificação cultural “terra alta

– terra fria” e “terra baixa – terra quente” explica o cenário produtivo de cada microrregião.

Ao contrário dos grandes latifúndios de café, cuja produção se alastrou sobretudo na região

norte da Zona da Mata, Carlos Prates observou ao percorrer a região de Ubá em 1905, que

esta era preponderantemente caracterizada por pequenos lavradores. É considerada terra

quente, com altitudes entre 200m e 350m. De acordo com Valverde, o coffea arábica não

suporta bem as temperaturas elevadas das terras baixas, de modo que se dedicaram à criação

de gado, cultivo de cana, café e, sobretudo, roças de subsistência. Posteriormente, diferente da

trajetória de ascensão, auge e queda do café, essa região manteve sua configuração produtiva,

consolidando os cultivos do fumo e da cana. Em meados de 1950, Valverde observa: É interessante conhecer como surgiu essa área apreciável de pequenos proprietários, bem entrosados numa estrutura capitalista, no meio de regiões de velhos latifúndios decadentes ou estagnados numa sociedade rural semifeudal. […] Como apareceu, não sabemos; mas, hoje, os sitiantes dominam uma área composta da maior parte dos municípios. (Ibdem: 55).

Nesse período, a microrregião de Ubá era considerada (de modo generalizante) a

“zona dos sítios de fumo” (Ibdem: 51), cuja área era ocupada principalmente por pequenos

proprietários rurais que possuíam em média 4 a 5 alqueires e poucos empregados, geralmente

de 2 a 3, além da mão de obra familiar. A comercialização do fumo era dinâmica, com a

proliferação de “firmas compradoras” na região. “Em Astolfo Dutra existem cerca de 60

compradores de fumo; em Ubá, muito mais” (Ibdem: 55). Contudo, o pesquisador é arguto em

reconhecer matizes, de variadas intensidades, neste mesmo território, apontando para

importantes singularidades. Em alguns povoados, é a pecuária leiteira associada à produção

de fumo que denota a variante local. “De manhã, nas portas dos sítios, os bujões de leite

aguardam o transporte no caminhão da cooperativa. A entrosagem da produção do leite com

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a do fumo concorre, sem dúvida, para dar maior estabilidade econômica aos sitiantes”

(Ibdem: 56). Em outros municípios, não eram o fumo e nem o leite a principal atividade

econômica, mas a cana de açúcar. Tratou-se de uma cultura agrícola de grande relevância

econômica e social para os municípios observados, cujo impacto da falência subsiste nos dias

atuais. O início de seu cultivo data de 1822, de modo que por volta de 1880, a região já

contava com aproximadamente 130 engenhos e duas usinas para a produção de açúcar e

álcool, com linha férrea particular.7

Figura 1: Sede de uma usina açucareira na microrregião de Ubá Fonte: Acervo Público Mineiro

As usinas, pertencentes a um mesmo grupo de investidores com sede no exterior,

possuíam grandes extensões de terra para o cultivo da cana que abrangiam municípios

circunvizinhos. Conta-se em torno de 1.000 hectares distribuídos em dez fazendas, além de

outras fazendas arrendadas. Metade desta extensão era dedicada à cana, a outra metade, à

pastagem para o gado utilizado no transporte. Nos municípios vizinhos às usinas

predominavam o cultivo e o fornecimento de cana. Porém, ao contrário das usinas, que não

tinham interesse em outras culturas além da cana, os fornecedores de cana se dedicavam aos

cultivos de milho, café, arroz de brejo em áreas iguais ou menores que as destinadas à cana,

além da criação de gado, mestiço de holandês e zebu, para corte e leite.

Nessa porção da região dedicada à cana, além da considerável presença de

pequenos produtores, encontravam-se também grandes produtores, fazendeiros, além de

meeiros e relações de morada; estes com a utilização intensiva da mão de obra familiar.

Constituía-se, assim, uma “aristocracia rural” muito semelhante à observada na “zona do

café”, como observou Valverde. Embora em menor escala, a microrregião de Ubá também 7A linha férrea possuía 13 quilômetros de extensão, com 2 locomotivas e 95 vagões. Se ligava à já existente Estrada de Ferro de Leopoldina.

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contou com mão de obra escrava. Um dos dois municípios etnografados, segundo informação

do IBGE, foi fundado por um senhor de escravos, de origem portuguesa, que se mudou do

litoral fluminense para a região com sua família e escravos e cujas ações repercutem nos dias

atuais, como por exemplo, as capelas construídas para o seu santo de devoção e a

consideração hodierna desse santo como padroeiro da cidade, definindo seu calendário

festivo. Até a abolição, as construções rurais na Zona da Mata reproduziram fielmente os modelos do vale do Paraíba: a casa grande, vasta, acachapada, quase sempre de dois pavimentos; muitos quartos, paredes grossas, janelas de guilhotina envidraçadas e telhados grandes, formando largos beirais, com telhas de meia calha. As vêzes, tem uma varanda atrás ou do lado, dando para o terreiro, que é um grande quadrilátero cercado pelas casas da senzala. Durante o dia, no período da colheita, o fazendeiro podia assistir confortàvelmente da varanda à secagem do café. A noite distraía-se tôda a família com a música dolente, os batuques e as danças dos escravos. Velava, assim, de perto o fazendeiro as suas "peças da Guiné'', que representavam o seu maior empate de capital e que, com o decorrer do tempo, se foram tornando cada vez mais caras. (VALVERDE, op. cit.: 30)

O que nos importa destacar é a influência política desse cenário, característico do

norte da Zona da Mata, sobre as demais regiões, mesmo naquelas onde a produção de café

não era tão expressiva:

A essa aristocracia rural vieram muito cedo juntar-se, na camada superior da sociedade da Mata, descendentes de tradicionais famílias mineiras, que passaram a controlar toda a vida econômica, política e social da região até o fim da primeira República (1930). Esta gente formava uma classe de senhores rurais sem títulos nobiliárquicos, uma espécie de nobreza sem crachás, pois não era menos fechada, nem menos cônscia dos seus direitos. Eram os MONTEIRO DE CASTRO, os JUNQUEIRA, de Leopoldina; os TOSTES, de Juiz de Fora; os RESENDE, de Cataguases, e tantos outros. (Idem, loc. cit.)

Veremos adiante que o histórico controle econômico, político e social por parte de

“famílias tradicionais” tem ressonância hodierna. Para finalizar esta breve e fragmentada

contextualização, é preciso atualizá-la com informações mais recentes.

A intensiva produção de fumo e de cana ficou no passado. Atualmente, a região

conta com poucos e pequenos engenhos para a produção de rapadura. A falência e

desativação das usinas na década de 1990 ocasionou, obviamente, grande impacto social nos

municípios, entre eles, os dois pesquisados. Durante cem anos, as usinas constituíram o mais

importante manancial de empregos, diretos e indiretos, tanto nas zonas urbanas, quanto nas

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zonas rurais. Muitas famílias entrevistadas em 2006 e em 2012 relembraram a crise vivida

com o desemprego em massa e ainda sentida: Nunca mais a vida foi igual.

Hoje, a microrregião de Ubá se destaca pela produção industrial em larga escala

de móveis e alimentos (aves, sucos, polpa de frutas, leite e derivados). Esses dois setores

geram a maior parte dos empregos, diretos e indiretos. No que concerne aos empregos

indiretos, podemos citar, nas zonas urbanas, a atividade de transporte, isto é, carretos e fretes,

que emprega grande parte dos homens dos dois municípios observados, por intermédio das

cooperativas constituídas para esse fim. Já nas zonas rurais, os empregos indiretos são

gerados pelo cultivo e fornecimento da “matéria prima”, isto é, aves, milho para a fabricação

de ração para as aves, frutas para as indústrias de suco e de polpa e leite para os laticínios.

Alguns dos municípios menores8 concentram a produção industrial nos produtos lácteos

(queijos e iogurte), o que envolve uma organização em cooperativas bastante eficaz. Outro

setor industrial relevante, sobretudo como gerador de empregos diretos e indiretos para as

mulheres, são as confecções de roupas, como são popularmente chamadas essas unidades

fabris. Existem confecções de variados portes, algumas com renome nacional, mas

predominam as de menor porte. As mulheres trabalham sobretudo como cortadeiras,

costureiras e arrematadeiras9, seja na própria confecção, seja no sistema de facção.10

8Maior e menor são categorias nativas para descrever, respectivamente, municípios mais desenvolvidos e menos desenvolvidos e não fazem jus, necessariamente, à extensão territorial. Alguns municípios considerados menor ou pequeno, possuem extensão territorial maior do que municípios maiores. Essa expressão está ligada à densidade demográfica. 9Essas foram as principais ocupações observadas, mas existem outras especialidades que são hierarquicamente dividas e agrupadas em classificações. O “Sindicato dos oficiais alfaiates, costureiras e trabalhadores nas indústrias de confecções de roupas, cama, mesa e banho (SOAC)” opera a seguinte classificação: “grupo I - auxiliar de costura”; “grupo II - costureira”; “grupo III - costureira I”; e “grupo IV - pilotista e costureira de peça inteira”. O piso salarial em 2012 era, respectivamente, de: R$ 685,00; R$ 710,00; R$ 740,00 e R$ 760,00. As cortadeiras encontram-se no grupo IV. É a função mais prestigiosa. Uma única cortadeira produz, com a máquina de corte, uma quantidade de peças suficiente para o trabalho de várias costureiras. É uma profissional valorizada, pois é difícil arrumar uma boa cortadeira, e, por isso, recebem melhor. As costureiras do grupo II ficam à cargo de serviços “pontuais” (pregar botões, colocar etiquetas, fazer bainhas etc.). Já as costureiras do grupo III são as responsáveis pelas montagens das peças. Neste grupo, as profissionais são subdividas em função das máquinas que utilizam (além da “tradicional” máquina de costura, doméstica ou industrial, utilizam-se máquinas mais especializadas, tais como: overloque, interloque, galoneira, pespontadeira, máquina para costura reta, fechadeira de braço, casadeira, botoneira, ziguezague e travete). Por fim, as arrematadeiras são as responsáveis pela finalização das peças, isto é, a retirada de linhas e tecidos residuais do processo de costura. Porém, suas funções podem ir além; como passar, dobrar e embalar as peças, além da preparação dos aviamentos (botões, colchetes, ilhoses etc.) para as costureiras. Nas confecções maiores, existem as passadeiras e as embaladeiras. A ocupação de arrematadeira exige menos especialização e por isso, acredito, seu salário é o mais baixo da categoria. Estão situadas no “grupo I”. Para mais informações, consultar “Convenção coletiva do trabalho”, Sindivest-MG e SOAC, disponível em: http://www.sindivestmg.com.br/scripts/elfinder/files/convencoes/CCT%20MURIAE%20e%20Regiao%202013.pdf 10O sistema de facção pode ser explicado, grosso modo, como a terceirização da produção. Pode ser de toda a produção ou de parte dela, como acontece na região observada. As confecções enviam as peças já cortadas para as facções para serem costuradas (fechar as peças) e recolhem para arremate e inspeção. Existem algumas formas de facção: “empresas de facção”, “cooperativas de facção” e “faccionistas independentes” ou

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Tabela 1: Percentual população – variáveis sexo e região.

Município Homens Mulheres População urbana

População rural

Bagre Bonito 50,83% 49,17% 48,58% 51,42%

Barão de S. João Batista 49,28% 50,72% 82,73% 17,27%

Fonte: IBGE. Tabela elaborada a partir dos dados inteiros do “Resultados do Censo 2010”.

Os municípios maiores também são responsáveis pelo atendimento especializado

em saúde e educação. Os municípios menores contam com Unidades Básicas de Saúde (UBS)

que fazem os primeiros socorros e encaminhamento para os hospitais dos municípios maiores.

Vale destacar que as UBSs só funcionam durante o dia. Quanto à educação, a maioria dos

municípios não possui ensino superior. As faculdades privadas dos municípios maiores

recebem o contingente mais expressivo de jovens dos municípios vizinhos.11 As prefeituras

disponibilizam, gratuitamente, ônibus para conduzir os estudantes, o que reduziu

significativamente a “circulação” de jovens nas casas de parentes e amigos dos municípios

maiores. Os cursos técnicos da antiga Escola Agrícola de Rio Pomba (criada em 1956), atual

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, também são muito procurados. Já as

universidades federais de Juiz de Fora e de Viçosa, ficam com o menor contingente dos

jovens, sobretudo Juiz de Fora, devido à distância.

Os municípios maiores também são responsáveis pelo abastecimento comercial da

região. Como veremos melhor a seguir, alguns municípios menores não contam com

comércio especializado; a estrutura comercial é condensada pelas vendas, espécie de

mercearias que disponibilizam produtos de primeira necessidade.

No espectro da microrregião de Ubá, Barão de São João Batista e Bagre Bonito

são considerados municípios menores. Contudo, inter-relacionados, Barão de São João Batista

é considerado maior do que Bagre Bonito12, exercendo, em primeira instância, as funções

citadas acima dos municípios maiores devido à proximidade (são municípios limítrofes).

Deste modo, Barão de São João Batista é referencial de Bagre Bonito, e o trânsito dos

moradores de Bagre Bonito em São João, como intimamente abreviam o nome, é intenso. “faccionista por conta própria” (costureiras que trabalham em casa para as confecções e recebem por peça costurada). 11Os principais cursos oferecidos pelos institutos privados de ensino são: normal superior, pedagogia, educação física, administração de empresas, enfermagem e direito. 12Como dito, demograficamente e em estrutura de bens e serviços. Em extensão territorial, Bagre Bonito é maior do que Barão de São João Batista. Demograficamente, em 2010, de acordo com o censo realizado pelo IBGE, Barão de São João Batista possuía, aproximadamente, 35 mil habitantes e Bagre Bonito, 8 mil, também aproximadamente. Ambos incluindo seus distritos.

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Outra característica dos municípios menores dessa região é a organização urbana

em Strassendorf, como apontou Valverde: “Quando se visita a Zona da Mata, chama a

atenção a série numerosa de núcleos urbanos do tipo Strassendorf (agrupamento linear, ao

longo de uma rua). Os exemplos que se podem citar são inúmeros (...)”. (VALVERDE, op.

cit.: 64). Os dois municípios pesquisados têm este tipo de organização originária: em Barão de

São João Batista, presente atualmente apenas nas zonas rurais e em Bagre Bonito, configura

tanto as zonas urbanas, quanto as rurais13, desempenhando importante papel nos modos de

sociabilidade que veremos na sequência.

Figura 2 - Vista aérea de Bagre Bonito. Organização urbana (direita) e uma localidade rural (esquerda). Fonte: Acervo da Prefeitura Municipal de Bagre Bonito, s/d. Consultado em 2012.

13 Zonas urbanas e zonas rurais, no plural, em função dos três distritos que compõem o município, cuja divisão nativa rural/urbano não coincide, como mencionado, com as do IBGE.

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3.2 - Modos de sociabilidade e suas expressões

Nesse dia especial, Nosso Senhor te livre de todo mal. Se tem algum mal no teu comer, no teu beber, No teu deitar, no teu vestir, No teu andar, no teu dormir, Na tua formosura. Com dois te botaram, Com três eu tiro.

(Dona Mariinha, benzedeira em Bagre Bonito. Bênção recebida em 2012, na ocasião do meu aniversário.)

3.2.1 – “Rede de observação”

A baixa demografia e a organização em “Strassendorf” (VALVERDE, 1958) das

localidades pesquisadas em Bagre Bonito e em Barão de São João Batista favorecem uma

“rede de observação” (COMERFORD, 2003: 32) que, apesar de informal, é muito eficaz e à

qual todos estão sujeitos, ainda que cuidar da vida dos outros seja criticado por todos. Como

apontou Comerford, nas localidades rurais da Zona da Mata mineira, há um controle por parte

dos moradores sobre a movimentação das pessoas nas estradas, sobre quem entra e sai da casa

de quem, sobre a presença de gente de fora, sobre a vida e os relacionamentos entre parentes,

vizinhos, entre eles todos e os outros. Destas observações, nascem os temas que modulam as

narrativas cotidianas, as conversas.

A conversa constitui um importante pilar de sociabilidade. Ao mesmo tempo em

que todos dela participam, é temida por todos. De um lado, ela pressupõe as ações; deve-se ou

não deve-se fazer isso ou aquilo para evitar conversa, evitar que os outros falem. De outro, as

interações; tem que conhecer, saber de onde veio, de que família é... Diferente da fofoca,

repudiada nos dois municípios observados como essencialmente mentirosa e negativa, a

conversa possui caráter investigativo. Distorções, cruzamentos, comparações, novas

interpretações, suposições etc., são, sabidamente, constitutivos da conversa, cujas narrativas

metamorfoseiam e revigoram os acontecimentos na medida em que são transmitidos. Assim, a

conversa é sempre viva e atual, por mais antigo que seja o acontecimento narrado.1

1A exemplo da “sociogênese do preconceito” empreendida por Norbert Elias (2000), chamando atenção para os paradoxos engendrados pela “fofoca” entre os habitantes de “Winston Parva”, as conversas que observei, embora não sejam consideradas pelos nativos como fofoca, também são responsáveis pelos três paradoxos apontados por Elias: “realidade na aparência”, “independência na submissão” e “distância na proximidade”.

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Durante a pesquisa exploratória de filhos de criação a ser entrevistados, meu norte

de investigação foi dado pelas conversas a respeito deles. Não foi preciso conhecê-los para

poder apurá-las; suas próprias contradições e inexatidões revelavam seu caráter fantasioso e

que se trata mais de um mecanismo de sociabilidade do que de uma fonte fidedigna de

informação. Todos sabem que a conversa é construída sobre bases incertas, o que não retira a

sua eficácia; ao contrário, é exatamente por isso que a conversa anda. A incerteza é o embrião

da conversa. Não sei se é verdade, mas ouvi dizer que...; dizem que...; diz que...; como diz o

outro... A conversa é construída e reconstruída na medida em que é narrada. A dúvida

compartilhada (né?), lançada sempre a cada informação, abre frente para novas

interpretações, novas suposições, enfim, novas conversas. Uma conversa entre Hermínia, uma

informante e funcionária na casa de minha avó, e minha tia Neuza, ambas moradoras de

Bagre Bonito, a respeito de Alessandro, cuja história de vida de filho de criação é apresentada

neste trabalho, constitui um bom exemplo:

[...] Hermínia: Diz que ele não tinha pai nem mãe [consanguíneos], né? Neuza: Ouvi dizer que mãe ele tinha. Pai é que eu não sei, mas mãe, diz que tinha. Hermínia: Vai ver que era [filho] de alguma mulher que não foi casada, que era mãe solteira, né? Neuza: É, que o pai abandonou, né? Hermínia: Ou então era daquelas que tem um filho de cada pai. Só se for, uai! Neuza: Nossa senhora! [em tom de reprovação, imputando verdade ao que acabara de ser suposto]

Evidentemente, este é apenas um excerto da conversa. Para que uma conversa

tenha força reprodutiva, deve conter fatos verdadeiros e verificáveis, como é o caso de

algumas informações trazidas por Hermínia, presentes em todas as versões e confirmadas pelo

próprio Alessandro. Os fatos distorcidos não são vistos propriamente como mentira, mas

como uma ampliação de fundamentos originais, uma espécie de caricatura narrativa. O ditado

popular “o povo aumenta, mas não inventa” é utilizado como legitimação da conversa.

Em Barão de São João Batista, como em Bagre Bonito, a calçada das casas,

conhecida como passeio, é o principal ponto de encontro para a “rede de observação” colocar

a conversa em dia. Em uma localidade rural de Barão de São João Batista, registrei a

incorporação de bancos de concreto à fachada de algumas casas e estabelecimentos

comerciais, as vendas, para mais conforto de quem “observa” e conversa.

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Figura 3: Moradores sentados no banco de concreto no passeio da casa. Foto: Azevedo, P.G., 2012

Figura 4: Seu José Mario2, ex-filho de criação3, e uma vizinha no passeio de sua casa. Foto: Azevedo, P.G., 2012

3.2.2 – Você é filho de quem? Uma pessoa de fora que chega a Bagre Bonito ou a Barão de São João Batista,

seja a uma casa ou a um local público, não escapa à costumeira pergunta: você é filho de

quem? (mais exatamente “cê é fi de quem?”, como é agilmente pronunciado). A partir da

resposta, as relações de cordialidade ou de hostilidade são traçadas. Através do nome de

família os habitantes se identificam, não como indivíduos, mas como parte de um grupo.

Sobre o indivíduo pesa a história familiar, seus “estigmas” (GOFFMAN, 1988) ou sua honra.

Ao perguntar você é filho de quem? imediatamente e indiretamente uma gama de informações

é acessada: a condição econômica, se é gente boa ou não, onde mora, o que faz da vida, a

2José Mário fez questão de aparecer na pesquisa. Sua história é uma das que utilizo apenas contextualmente, isto é, sem a descrição de sua narrativa biográfica. Esta foi uma alternativa que encontrei para preservá-lo e ao mesmo tempo atender ao seu pedido. Trabalhar com o anonimato quando as imagens estão dadas, é uma difícil questão na qual me vi envolvida e ainda não estou certa de tê-la resolvido. 3Falarei adiante a respeito da flexibilidade da categoria.

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religião etc. Conhecer, conhecer de vista e ser (bem) conhecido são categorias chaves de

navegação social, como mostra o registro pessoal abaixo, vivido na primeira fase da pesquisa,

em 2006. _ Por favor, uma água mineral. Quanto é? _ Um real. Cê é fi de quem? _ Da Terezinha, [filha] do Osvaldo Coelho. _ Ah! Dos Coelho. E sua avó é Vaz de Melo. _ É. _ Cê tem uma tia que não casou, né? _ Tenho. _ Eu sempre vejo ela na missa. Seu pai é quem? _ Meu pai não é daqui não. _ É de onde? _ De São Paulo. _ Ah... Como é que cê chama? _ Priscila [ainda sem obter a água]. O conceito bourdieusiano de “capital social de relações pessoais” (2002) nos

ajuda a pensar o nome de família como um importante “capital” em diversos contextos

sociais. Na política, por exemplo, duas famílias revezam a administração municipal há

gerações, tanto em Barão de São João Batista, quanto em Bagre Bonito.4 O mercado local

também se organiza sob a égide do nome de família, sobretudo em Bagre Bonito e nas zonas

rurais de Barão de São João Batista, onde o comércio é condensado pelas populares vendas:

espécie de mercearias com grande diversidade de produtos (alimentos, material escolar,

roupas, chinelos, artigos para casa e presentes etc.) que suprem a ausência de lojas

especializadas. As relações de compra e venda nas vendas são realizadas, em primeira

instância, pelo “capital familiar”; tudo é vendido a prazo, sem qualquer garantia formal de

pagamento (cheque, promissória etc.). O dono da venda anota o que foi comprado em um

pequeno caderno, popularmente conhecido como caderneta, que o próprio comprador guarda

consigo. O acerto das contas pode ser feito semanalmente, quinzenalmente ou mensalmente.

A caderneta é de uso familiar e fica no nome do chefe da família. Nem toda família possui

conta na venda e sua respectiva caderneta, apenas aquelas que “contam”.5

4 Em Bagre Bonito, a eleição de um padre como prefeito em 2004 rompeu temporariamente com a tradição do revezamento familiar. Porém, o padre não se recandidatou na eleição seguinte e as duas famílias voltaram a disputar o poder local. O fato de apenas um padre conseguir romper tal tradição objetiva outro pilar de sociabilidade, como veremos adiante. 5 Como apontou Comerford (2003: 339), há “famílias que contam” e “famílias que não contam”, referindo-se a “famílias-nomes” que se destacam por motivos diversos (extensão em número de membros, prestígio, poder econômico, poder político etc.). Famílias “chefiadas” por mulheres, famílias muito pobres e famílias estigmatizadas (pelo uso de álcool, por ter vindo de fora há pouco tempo, por trabalhos irregulares etc. ) são exemplos que observei de famílias que “não contam” e não têm acesso à caderneta.

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Ainda que usufruam do “capital familiar” da família de criação, uma vez que

concebidos como se fossem da família, os filhos de criação não recebem o sobrenome dos

pais de criação. Mesmo nos casos de acolhimento realizado em tenra idade, o nome dos pais

consanguíneos, geralmente apenas o da mãe, é mantido.6

Figura 5: Venda em uma localidade rural de Barão de São João Batista. Geralmente o proprietário mora na casa contígua. À esquerda, banco de concreto no passeio. Foto: Azevedo, P.G., 2012

Figura 6: Venda em outra localidade rural de Barão de São João Batista Foto: Azevedo, P.G., 2012

Como pode ser percebido, minha relação pessoal com os municípios observados é

outra situação que ilustra a importância no nome de família. A própria pesquisa em questão

dependeu desta relação. Meus avós maternos, minha mãe e minhas tias, como já mencionado,

são nativos de Bagre Bonito e lá permanecem, algumas delas em Barão de São João Batista.

Foi através do intermédio de duas tias, Neuza, em Bagre Bonito, e Janice, em Barão de São 6Ao que tudo indica, como veremos a seguir, isto parece estar relacionado à preservação da herança dos pais de criação aos filhos consanguíneos.

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João Batista, e de minha mãe, nos dois municípios, que consegui ser recebida dentro de casa

e fazer perguntas tão diretas sobre a vida dos outros, algo visto com desconfiança devido à

possibilidade de gerar conversa. 7 Quando sozinha, repetidas vezes minha ascendência

materna foi esboçada entre meus interlocutores, a partir da evocação da minha filiação, como

justificativa para minha aceitação. Uma dessas ocasiões está registrada na segunda entrevista

com os pais de Laura.

3.2.3 – Religiosidade

E o contra-senso mais avultava, porque, já então - e excluída quanta coisa-e-sousa de nós todos lá, e outras cismas corriqueiras tais: sal derramado; padre viajando com a gente no trem; não falar em raio: quando muito, e se o tempo está bom, “faísca”; nem dizer “lepra”; só o “mal”; passo de entrada com o pé esquerdo; ave do pescoço pelado; risada renga de suindara; cachorro, bode e galo, pretos; e, no principal, mulher feiosa, encontro sobre todos fatídico; - porque, já então, como ia dizendo, eu poderia confessar, num recenseio aproximado: doze tabus de não-uso próprios; oito regrinhas ortodoxas preventivas; vinte péssimos presságios; dezesseis casos de batida obrigatória na madeira; dez outros exigindo a figa digital napolitana, mas da legítima, ocultando bem a cabeça do polegar; e cinco ou seis indicações de ritual mais complicado; total: setenta e dois - noves fora, nada.

(João Guimarães Rosa, “São Marcos”, em Sagarana).

Nos dois municípios, a religião católica abarca mais de 80% da população.

Repetidas vezes, a pergunta você tem religião? soou descabida e a resposta, católica!,

demasiadamente óbvia. Tanto em Barão de São João Batista, quanto em Bagre Bonito,

praticam-se o que Santos (2005) define como “catolicismo magicizado”: aparições de santos,

benzeções, oferendas, simpatias, promessas etc. Todas essas e outras práticas funcionando

7Como veremos, o pai de Laura chegou a me pedir para não levar a conversa adiante. Minha própria tia Neuza, sobre quem farei algumas referências por ser representante da “categoria” filha que não casou para cuidar dos pais, até o fim da pesquisa não havia compreendido seu por quê. Que trabalho ruim esse seu, heim, Priscila! Ficar querendo saber da vida dos outros. Foi para não me aborrecer que ela intermediou os contatos, visivelmente constrangida. Na pesquisa em equipe realizada na Zona da Mata Pernambucana, L’ESTOILE, Benoît de & SIGAUD, Lygia (2006: 67-76) levantam uma questão semelhante: “a própria possibilidade da pesquisa dependia da existência dessas relações pessoais preexistentes [através de Lygia Sigaud e de Afrânio Garcia], essa constatação permite colocar em evidência o quanto a produção de um saber etnográfico passava pela mobilização e o desenvolvimento de uma rede de relações pessoais com os pesquisados [...]”.

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com uma lógica de causa e efeito intimamente ligada ao cotidiano, sem comprometer a

religião oficial dos praticantes.

Tabela 2: Religião da população residente Município

Religião Católica Apostólica Romana

Religiões Evangélicas

Religião Espírita

Religião Umbanda

Sem Religião

Barão S. João Batista 81.2 % 14.8 % 1.8 % 0.1 %

2.1 %

Bagre Bonito 88.9 % 10.9 % 0.1 % 0.0 %

0.0 %

Fonte: IBGE - tabela elaborada a partir dos dados inteiros do “Resultados do Censo Demográfico 2010 – amostra Religião”.

A religiosidade nas zonas rurais é intensa e imagética. A maioria das

localidades rurais possui nome de santos, embora sejam popularmente chamadas de córrego

com algum complemento, como importantes nomes de família, “córrego dos Oliveira”, ou

posicionamento geográfico, “córrego de cima; córrego de baixo”. Muitas casas, independente

da condição financeira, possuem à entrada uma capelinha para os santos de devoção dos

proprietários.

Figura 7: Entrada de uma fazenda na zona rural de Barão de São João Batista. Foto: Azevedo, P.G., 2012

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Figura 8: Interior da capelinha. Foto: Azevedo, P.G., 2012

Figura 9: Seu José Mario e a capelinha que ele próprio construiu para N.S. Aparecida em sua casa. Foto: Azevedo, P.G., 2012 No interior das casas, tão abundantes quanto os retratos de família, as imagens

sacras são expostas com devoção e intenção de proteção. Pequenos altares e oratórios no

quarto dos proprietários ou na sala também são comuns.

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Figura 10: Seu José Mário e São Jorge8 Foto: Azevedo, P.G., 2012

Figura 11: vista da sala (porta do quarto da sala) Foto: Azevedo, P.G., 2012

Figura 12: vista da sala (portas da copa e da cozinha) Foto: Azevedo, P.G., 2012

8As fotografias foram tiradas após a nossa entrevista, em 2012. Quando pedi sua autorização para fotografar apenas a capelinha, Seu José Mario me pediu: tira também uma minha com São Jorge. Foi até o quarto, vestiu uma camisa melhor sobre a regata que usava, colocou à mostra a medalhinha de São Jorge que carrega no peito e posou abaixo da imagem do santo. Diante do seu interesse, pedi para fotografar outros ângulos de sua sala a fim de ilustrar as tantas casas semelhantes que visitei durante a pesquisa.

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A religião, católica, sobretudo, em decorrência da maioria de fiéis, está

intimamente interligada à “rede de observação”, seja como formadora do horizonte normativo

que norteia os julgamentos, seja como locus privilegiado de “observação”. As missas

dominicais na Igreja Matriz, nos dois municípios, constituem um importante evento social

para os moradores e principal para as filhas de criação. Pelo o que pude perceber, são

momentos de lazer carregados de tensão; em que todos são avaliados enquanto avaliam. Além

das regras litúrgicas9, há códigos sociais de comportamento que devem ser seguidos, senão os

outros falam, tal como a roupa de ir à missa, isto é, roupa adequada à ocasião e bonita, que

não se usa no dia a dia. Há quem tenha apenas uma roupa de ir à missa, usada também em

ocasiões especiais. É observado ainda, com bastante acuidade, quem faltou, quem vai pouco e

quem nunca vai à missa. Depois da missa, na praça da igreja ou na caminhada de retorno às

casas, as conversas ganham fôlego para o decorrer da semana; as novidades e as observações

feitas na igreja são compartilhadas.

Um dos eventos religiosos que mais propiciam mobilidade e “observação” é a

peregrinação da Mãe Peregrina. Uma imagem de Nossa Senhora, considerada padroeira do

movimento apostólico, é solicitada pelo bispo local para estadia na diocese e peregrinação por

algumas casas do município. Apenas as mulheres que fazem parte do Sagrado Coração de

Jesus (cuja principal exigência é ser casada na igreja) podem receber a Mãe Peregrina em

sua casa por alguns dias. A casa que recebe a Mãe Peregrina, recebe também visitas de

moradores devotos. Trata-se de um período de bastante circulação entre as casas.

3.2.4 – Celebrações religiosas e sociais

Antigamente, em maio, eu virava anjo. A mãe me punha o vestido, as asas, me encalcava a coroa na cabeça e encomendava: ‘canta alto, espevita as palavras bem’. Eu levantava voo rua acima.

(Adélia Prado, “Verossímil”, em Bagagem) Todos tiritavam: ‘nunca vi tanto frio como em junho deste ano!’ Celebrávamos Santo Antônio e só os muito doentes mesmo, ou os declarados ateus, não iam ao Santuário que ficava lotado. De primeiro a treze de junho rezávamos a trezena e os santoantoninhos –

9Responder e cantar nos momentos sinalizados no folheto; não deixar de se levantar, de se sentar e de se ajoelhar também quando sinalizado; não conversar; não sair antes da bênção final; entre outras. O descumprimento destas regras é visto como desrespeito. Um texto explicativo, “A missa parte por parte”, fixado na casa paroquial da Igreja Matriz de Barão de São João Batista, orienta os fiéis.

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contrapartida das coroadeiras de maio – entravam ao final da missa, vestidos de frade, para levar os lírios até a imagem, que era a de um moço bonito que bulia comigo.

(Adélia Prado, “Antônios”, em Filandras) As celebrações religiosas, sobretudo na Semana Santa e nas semanas dos santos

padroeiros dos municípios, mobilizam todos os moradores, fiéis ou não. As ruas são

decoradas e o trânsito modificado em função das procissões, há cultos e encenações religiosas

em praça pública, barraquinhas que vendem iguarias para arrecadar fundos para a igreja etc.

Todos os filhos de criação entrevistados participam ou já participaram dos eventos, alguns até

de sua organização (as filhas de criação com a preparação dos quitutes para as barraquinhas

e os filhos de criação com a montagem das mesmas e dos palanques). É importante destacar

que a participação é sempre nos bastidores; não observei, por exemplo, um(a) filho(a) de

criação coordenar uma barraquinha ou subir nos palanques para sortear e anunciar os

números das tômbolas e seus prêmios (geralmente frangos e leitões assados).

O mês de maio também é bastante movimentado nos dois municípios em função

das coroações da Virgem Maria. A descrição etnográfica desta comemoração revela muito

dos valores subjacentes às sociabilidades. Nas noites de maio, nas igrejas e capelas da cidade

e das zonas rurais, uma menina por vez, geralmente entre 3 e 8 anos, coroa Nossa Senhora.

Na prática, observa-se que a coroação é da coroadeira do dia e não da Virgem Maria. Hoje é

a coroação da filha de fulano de tal, amanhã da filha de cicrano. A coroadeira, vestida de

anjo-princesa10 com uma coroa de flores nas mãos, sai de um ponto estabelecido ou de sua

residência, quando próxima à igreja, acompanhada por um cortejo de outras crianças, meninos

e meninas, vestidos só de anjo11. Ao chegarem à igreja, a coroadeira sobe no altar montado

para a santa entoando os cânticos religiosos que ensaiou cuidadosamente e coroa a imagem

com a coroa de flores. Findada a coroação, a expectativa de todos, sobretudo dos anjos que

acompanharam a coroação, é com a entrega dos cartuchos: espécie de lembrança da coroação

que contém, além de algo que realmente a lembre (como anjinhos feitos de gesso com o nome

da coroadeira grafado), doces, balas e brinquedos.

O processo de coroação da Igreja Matriz de Barão de São João Batista destaca-se

pela busca de “distinção” (BOURDIEU, 2002). As “famílias-nome” (Comerford) competem

10 Vestido rodado geralmente de cetim, em tons claros como rosa, azul, amarelo ou branco, bordado artesanalmente com muito brilho, mangas bufantes e asas de penas brancas presas às costas. 11 Geralmente uma túnica branca com asas de penas brancas.

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pela coroação mais bonita e mais memorável. Isso envolve, evidentemente, inúmeros gastos:

o vestido da coroadeira geralmente é trazido de fora (cidades próximas, consideradas

maiores), o cortejo até a igreja inclui uma volta na praça central, embalada pela banda de

música da cidade e queima de fogos de artifício com organização pirotécnica (cascatas de

fogos que pendem da torre da igreja à chegada da coroadeira, explosões que iluminam a noite

com o nome da coroadeira etc). Os cartuchos são bastante sofisticados, contém doces

refinados e brinquedos caros. Há famílias que recorrem a empréstimos bancários ou de

agiotas para que a simplicidade não comprometa a importância social do evento. Só coroa na

Igreja Matriz a menina cuja família tem dinheiro para pagar a ornamentação e a taxa da igreja

(de um salário mínimo12). As filhas de famílias que não possuem condição financeira para

estes gastos não deixam de coroar; observei que a coroação funciona como uma espécie de

segundo batismo para as meninas, elas coroam em igrejas de bairro ou em capelas rurais onde

não há taxa da igreja, nem necessidade de ornamentação, nem de fogos de artifício e nem de

cartuchos caros (mas tem que ter cartucho). No fim das contas, são sempre as meninas das

mesmas “famílias-nome” que coroam na Igreja Matriz, as demais crianças da cidade viram

anjos.

Em Bagre Bonito, a coroação na Igreja Matriz também é mais prestigiosa, mas

não há esta disputa por distinção. Neste sentido, as coroações nas zonas rurais dos dois

municípios constituem um contraponto interessante que permite identificar diferenças que

definem a roça e a rua. Nas zonas rurais, em vez de disputa, as famílias se unem para ajudar

nas coroações das filhas umas das outras: emprestam vestidos de coradeira; disponibilizam

vestidos de anjo para a igreja fornecer gratuitamente para crianças mais pobres; se ajudam na

preparação dos doces dos cartuchos (só há doces), na organização do cortejo, no ensaio dos

cânticos, enfim, no que mais for preciso para que todas as meninas possam coroar. As filhas

das famílias mais abastadas coroam sem nenhuma distinção; pela observação, não é possível

dizer se se trata da coroação de uma menina rica ou pobre.

Nenhuma das filhas de criação entrevistadas coroou na Igreja Matriz, nem

mesmo em Bagre Bonito. Laura e Anita coroaram em capelas na zona rural, Clara sempre foi

anjo e Maria e Joana nunca coroaram e nem foram anjos.

12 Consultado na primeira fase da pesquisa, em 2006.

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Figura 13: altar de coroação da Igreja Matriz de Barão de São João Batista Fonte: acervo da Prefeitura Municipal de Barão de São João Batista. Consultado em 2006.

Figura 14: Coroação na zona rural de Barão de São João Batista Foto: Acervo pessoal, 2010. Em Barão de São João Batista, também há “contrapartida das coroadeiras de

maio”, como definiu Adélia Prado. Em junho, a celebração de Santo Antônio ocorre tal como

Prado descreveu. Em julho acontece a celebração do Sagrado Coração de Jesus, que deveria

ser em junho, mas por causa da festa de São João, fica pra julho (moradora de Barão de São

João Batista). As coroações dos meninos são muito mais simples, não tem fogos e nem isso de

andar na praça (moradora de Barão de São João Batista, referindo-se à volta na praça da

Matriz, tal como um desfile, na coroação das meninas). Nenhum filho de criação entrevistado

participou destas celebrações.

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Figura 15: Celebração de Santo Antônio, Barão de São João Batista. Foto: Acervo pessoal, 2016.

Figura 16: Celebração do Sagrado Coração, Barão de São João Batista. Foto: Acervo pessoal, 2016.

3.2.5 – A roça e a rua Rua é o modo como os moradores das zonas rurais se referem às zonas urbanas

e como os moradores das zonas urbanas se referem ao centro da cidade, isto é, à região da

praça central, definida pela proximidade da Igreja Matriz e pela variedade comercial e

institucional. Na praça de Barão de São João Batista, há lanchonetes, os típicos trailers de

hambúrguer, restaurantes, padaria, supermercado, farmácia, hotel, loja de tecido, lojas de

roupas e calçados, academia de ginástica, salões de beleza, bancos, cartórios, sede da

prefeitura, da câmara e banda de música municipal e escolas estaduais, além, é claro, da

Igreja Matriz. Em Bagre Bonito, a estrutura é relativamente a mesma, porém menos

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diversificada (não há restaurantes, academia de ginástica, salões de beleza; em contraposição,

há loja agropecuária e um terminal rodoviário). Devido ao processo de gentrificação na região

central dos dois municípios, poucos são os imóveis residenciais que restaram, configurando

um signo de distinção morar na praça.

Com exceção da praça, um estrangeiro não identifica facilmente diferenças

significativas entre as comunidades rurais e os bairros urbanos, sobretudo em Bagre Bonito.

Na rua também se observa o cultivo de hortas e criações (animais domésticos para consumo,

como vacas, cabras, galinhas e porcos) nos terreiros das casas. Os próprios terreiros

aproximam a rua da roça: são quintais de terra batida nos fundos das casas, às vezes com

árvores frutíferas, onde, geralmente, há um fogão a lenha. O vai e vem de charretes também é

observado com intensidade nas zonas urbanas. As vendas são tão comuns nos bairros da rua,

quanto na roça. De outra perspectiva, na roça também há escola, campos de futebol, praça

com igreja, bar, trailer de hambúrguer, além das vendas. Contudo, para os moradores de

ambas localidades, roça e rua são completamente diferentes. Além da infraestrutura de bens e

serviços, a principal diferença apontada é o jeito das pessoas. Apenas pontuando, pois foge do

escopo deste trabalho aprofundar esta percepção, mais inteligente, nervoso, metido, muito

doido e veiaco [esperto] foram predicados apontados com recorrência pelos moradores das

zonas rurais aos moradores da zona urbana. Entre as características apontadas no sentido

inverso, simples, humilde, bravo, trabalhador e mão de vaca [avarento], a narrativa de uma

moradora da zona urbana de Barão de São João Batista é bastante sintetizadora e referencial,

não como regra, evidentemente, mas como um retrato humorado de determinado modo de

vida.

Meu tio mora na roça lá [em Bagre Bonito]. Você precisa de ver a casa que ele mora! Só tem um quarto, uma cozinha e um banheiro. Nem televisão ele não tem! Mas vive cheio de carrão parado na porta dele para pedir dinheiro emprestado. Ele é aposentado, tem casa de aluguel e tudo, mas não para de trabalhar. Tem quase 80 anos e não para de trabalhar. E não adianta falar; ele não gosta que fala. Tem dia que a gente fala: “Ô, tio, o senhor precisa parar de trabalhar um mucado, arrumar alguma coisa pra se distrair, ver uma televisão...” Ele vira e fala com raiva: “O distraimento meu é trabaiá!” [risos]13.

De fato, quanto mais próximo da roça, menor a ostentação de riqueza. Em

algumas localidades rurais, é comum encontrar famílias proprietárias de terras, gados, imóveis

alugados etc., vivendo com o mínimo necessário, sem qualquer luxo ou conforto, tal como

13Esta mesma informante fez a seguinte observação: “Meu marido trabalha no Banco do Brasil. Não teve que fazer um recadastramento um tempo atrás? Meu marido ficava bobo de ver; gente que chegava lá de chinelo, às vezes nem dente na boca não tinha, analfabeto... e quando ia ver, tinha um saldo enorme na conta! [...]”.

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seus empregados. Farei a descrição de uma dessas situações na apresentação de Laura. O que

importa reter deste modo de vida é a educação dos filhos como aporte de mão de obra para a

construção do patrimônio familiar. Trata-se de algo mais objetivo nas zonas rurais e

referencial nas zonas urbanas, como um “tipo ideal” (Weber) de filho.

3.2.6 – Ser filho

Você sempre me recriminou (só na minha presença ou na de estranhos – para a humilhação que isso representava você não tinha sensibilidade, os assuntos dos seus filhos eram sempre públicos) de que, graças ao seu trabalho, eu vivia sem qualquer privação, na tranquilidade, no calor e na fartura. Penso aqui em certas situações que devem ter literalmente riscado sulcos no meu cérebro, como: “Já aos sete anos eu precisava levar a carroça pelas aldeias”; “Precisávamos dormir todos num cubículo”; “Ficávamos felizes quando tínhamos batatas”; “Durante anos, por falta de roupa de inverno suficiente, fiquei com feridas abertas nas pernas”; “Quando eu ainda era menino já precisava ir para a loja em Pisek”; “Dos meus eu não recebia nada, nem mesmo durante o serviço militar, ainda tinha que mandar dinheiro para casa”; “Mas apesar de tudo – de tudo – o pai era sempre o pai. Quem é que sabe disso hoje? O que é que os filhos sabem? Ninguém sofreu assim. Será que um filho entende isso hoje?”. Essas histórias poderiam ter sido, em outras circunstâncias, um excelente recurso educativo, teriam podido oferecer estímulo e força ao filho para resistir às mesmas trabalheiras e privações pelas quais o pai tinha passado. Mas você não queria isso, pois graças justamente aos seus esforços a situação era outra, não havia chance para alguém se distinguir como você o tinha feito.

(Franz Kafka, em Carta ao pai)

Egressos das zonas rurais, os moradores mais antigos das zonas urbanas dos dois

municípios são unânimes em descrever, corroborando fontes historiográficas e análises

sociológicas e antropológicas de contextos rurais14, a construção do patrimônio familiar com a

ajuda dos filhos, biológicos15 e de criação. Antigamente, não tinha isso de criança ficar à toa. Desde cedo a gente trabalhava; ajudava tirar leite, cercar vaca, candiar boi, debulhar milho... Antes do dia clarear, já estava de pé. E não tinha isso de responder [aos pais] igual hoje em dia. (Morador de Bagre Bonito)

14Palmeira (1976), Sigaud (1979), Garcia (1983), Moura (1988), Herédia (1988), Galano (2002) entre outros. 15Biológico é considerado o jeito certo de falar dos filhos de sangue, legítimos ou verdadeiros. Como o sangue é determinante de ideologias e relações de parentesco, preferi utilizar o termo “consanguíneo” mesmo quando meus interlocutores utilizam biológico.

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Ser filho, neste contexto, é ajudar os pais. Quando questionei nas entrevistas se o

filho de criação era tratado “como filho”, as respostas foram sempre afirmativas em função de

sua ajuda: Como filho! Como filho! Fazia de tudo, ajudava... era como um filho mesmo. De

acordo com as narrativas, as crianças eram treinadas desde cedo para o trabalho. Poucas eram

as famílias que investiam na educação escolar dos filhos, mesmo dos consanguíneos. No caso

dos filhos de criação, o aprendizado era decorrente apenas do serviço, prescindindo a escola.

Serviço e trabalho são categorias distintas que contrapõem espaço doméstico e

espaço público, informalidade e formalidade, feminino e masculino, criança e adulto. Como

trabalho, as pessoas entendem atividades regulares e sistematizadas, principalmente com

carteira de trabalho assinada e retorno financeiro certo. Atividades esporádicas, os bicos, são

mal vistos e desprezados como trabalho, mas valorizados como serviço, ocupação. Nota-se

aqui uma correspondência demarcadora de hierarquias e desigualdades de gênero: o trabalho

realizado por crianças é considerado ajuda ou serviço, assim como o trabalho doméstico

regular, sistemático, inclusive formalizado, donde ajudante é o termo utilizado para designar

“empregada doméstica”, regularizada ou não. Verifica-se também nesta divisão, uma primeira

agencialidade de gênero: o feminino pela mãe, o masculino pelo pai. As meninas ajudam no

serviço da mãe e os meninos no trabalho do pai, geralmente na roça, embora sobressaia nos

relatos a ajuda das mulheres nos roçados e dos meninos, enquanto crianças, no interior das

casas. Veremos futuramente desdobramentos desta agencialidade sobre a prática de pegar

para criar e a subsequente criação.

A educação pela inculcação de uma admiração compassiva dos pais e pela

agressão física exercida pelo pai consanguíneo é recorrentemente citada nas entrevistas. Eu

não tive infância sintetiza os castigos e trabalhos pesados e eu admiro muito a minha mãe

porque ela teve uma infância sofrida demais, de trabalhar pesado mesmo, de carregar peso

igual a um burro legitima a “pedagogia do sofrimento” (COMERFORD, 2003) como

formação de pessoas de bem. A dominação parental, inspirada na hierarquia religiosa

Pai/Deus-filhos, é bastante forte ainda hoje, sobretudo a dominação parental-masculina.

Observando a hierarquia religiosa dentro de casa, destaca-se, nos núcleos familiares, a

seguinte configuração: (Pai/Deus como referência)-pai-mãe-filhos-filhas-filhos de criação-

filhas de criação. Mais próximos de Deus (Pai), os pais devem ser honrados pelos filhos,

seguindo o mandamento religioso “honrar pai e mãe”. A obrigatoriedade de tomar a bênção

configura o reconhecimento prático desta proximidade e, consequentemente, da superioridade

dos pais, ainda que tomar a bênção se estenda a todos os parentes mais velhos e aos

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padrinhos. É considerado desaforo chegar à casa de avós, tios e padrinhos de batismo ou de

crisma e não lhes tomar a bênção.

O apadrinhamento religioso constitui outro modo de filiação, além das práticas da

adoção e de pegar para criar.16 A posição de afilhado, tal como a de filho (e sobretudo de

filho de criação), é hierarquicamente subalterna. Me parece adequado dissociar

apadrinhamento de compadrio devido à verticalidade das relações. Veremos na história de

vida de João Paulo, a objetivação das diferenças; exercendo as posições de afilhado,

compadre e padrinho na mesma família, sua relação com um e outro é bastante diferente.

Embora sirva a todos da mesma maneira, como afilhado, ele o faz por obrigação; como

compadre, por reciprocidade, isto é, em sistema de trocas mais simétricas para manutenção da

horizontalidade do compadrio; e como padrinho, é ele quem dá a bênção.

3.2.7 – Os pais cuidam dos filhos para depois os filhos cuidarem dos pais Tal reciprocidade parece constituir a base da relação entre pais e filhos. Contudo,

o cuidado, no sentido do care, é considerado uma atividade essencialmente feminina, de

modo que, a rigor, apenas as filhas cuidam dos pais ou, na ausência de filhas, a esposa de um

filho. As famílias que possuem filho de criação, cabe a “ele” o cuidado dos pais, mas o

mesmo se observa; isto é, apenas as filhas de criação, de fato, cuidam dos pais. Com relação

aos filhos de criação homens, registrei algumas situações: a maioria dos relatos apontam a

esposa do filho de criação como a responsável pelo cuidado dos sogros, mas houve um caso

do filho de criação cuidar do pai quando a mãe falecera primeiro; casos de filhos de criação

dividir com uma filha consanguínea o cuidado dos pais e casos do filho de criação ficar como

guardião da casa enquanto as filhas consanguíneas dividiam o cuidado entre si.

A divisão do cuidado entre as filhas consanguíneas é outra situação que merece

atenção devido à personagem social filha que não casou e cuida dos pais. É comum observar

nas famílias mais antigas a presença de uma filha que não casou cuidando da casa e dos pais.

Embora outras, senão todas, filhas participem do cuidado, é sempre de modo desigual,

cabendo à filha que não casou a obrigação. É importante destacar que não se trata apenas de

não se casar, mas de não estudar na mesma proporção dos irmãos, de não trabalhar fora, de

16O sistema de consideração constitui “familiarização”, mas não filiação. Pode se dar de várias formas: entre amigos de longa data, vizinhos prestativos e também, como demonstrou Comerford (2003), entre membros de uma fundação, associação, sindicato etc. Evidentemente, a consideração também envolve filhos de criação, mas o que os transforma em como se fosse filho, é a criação.

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ser dependente financeiramente e de coabitar a casa dos pais. Como mencionado em nota

anteriormente, minha tia Neuza é uma representante desta “categoria”. Seu tratamento

diferenciado dos demais filhos, seu cuidado com a casa desde muito antes dos meus avós

precisarem de cuidado, aproximam sua experiência da experiência filha de criação; o que

constituiria um problema de pesquisa não fosse a ideologia do sangue operante. Apesar da

proximidade de trato e de funções, a filha que não casou possui uma série de prerrogativas

decorrentes da consanguinidade que escapam à filha de criação. Ainda assim, fica a questão:

por que algumas famílias têm filhas que não se casam e cuidam dos pais e outras têm filhas

de criação? Não cheguei a uma conclusão uma vez que não aprofundei a pesquisa neste

sentido, mas uma conversa com a minha avó me pareceu bastante sugestiva. De acordo com a

Dona Lourdinha, minha avó, a tia Neuza é diferente dos demais filhos porque nasceu

empelicada, isto é, envolta na bolsa amniótica que não se rompeu antes ou durante o parto, e

por isso ela é mais devagar, custa aprender as coisas. A narrativa de minha avó remete a um

cuidado maior que minha tia exigiria, o que justificaria sua dependência dos pais e o fato de

não ter se casado, mas, ao contrário, é a tia Neuza quem sempre cuidou dos pais, da casa e dos

irmãos mais novos. Como pude apurar, a narrativa de minha avó sobre ser mais devagar e

custar a aprender as coisas é o senso comum em Bagre Bonito a respeito de quem nasce

empelicado. Objetivamente, não há nenhuma diferença entre a tia Neuza e seus irmãos além

daquelas constituídas pela socialização específica que recebeu, fadada ao nascer.17

3.2.8 – Filhos de criação cuidam dos pais até a morte Nos dois municípios pesquisados, existe uma doxa em torno dos filhos de criação:

são pessoas especiais, escolhidas por Deus, que cuidam dos pais até a morte. De modo que: é

melhor ter filho de criação do que filho de sangue, porque ele não abandona os pais; filho

adotado é muito bom, melhor do que filho da gente, parece que dá mais valor aos pais; é

17Minha avó faleceu em janeiro de 2016, um ano depois do meu avô. Seus últimos dez anos foram vividos em cima de uma cama, sem mobilidade nas pernas e sem reconhecer ninguém, em função do mal de Alzheimer que a cometia, menos a tia Neuza. Nervosa, como sempre fora, com problemas de insônia, minha avó gritava Neeeeeeuza noite e dia, como contam minhas outras tias. Certo dia, minha tia Janice chegou à casa para sua visita rotineira e viu a tia Neuza batendo a cabeça na parede, se punindo porque perdera a paciência com a minha avó. A partir de então, minha avó passou a viver sob calmantes e a tia Neuza foi obrigada a aceitar a contratação de uma cuidadora, Hermínia. Tia Neuza nunca admitiu outra ajuda com o cuidado dos pais que não fosse a de seus irmãos ou de parentes, como nós, sobrinhos/netos. Sempre sobrecarregada, emagreceu demais, adoeceu e pedia incessantemente para morrer. A morte da minha avó, um dia antes do aniversário da tia Neuza, foi muito simbólica para mim. Era como se ela morresse para a tia Neuza renascer. Atendendo ao meu pedido, minhas tias organizaram o sepultamento da minha avó no mesmo dia do seu falecimento, já tarde da noite, poupando a tia Neuza de receber concomitantemente “pêsames” e “parabéns” na intensa sociabilidade que os velórios prolongados propiciam naquele contexto.

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difícil de ver um filho com tanto carinho e cuidado com os pais como filho de criação tem etc.

A categoria filho de criação, unificada no masculino, goza de conspícua “distinção” devido

ao seu histórico benfazejo de devoção aos pais. É reconhecida como especial, bênção de Deus

e até deuses em todas as camadas sociais. Durante a pesquisa exploratória, chamou-me

atenção o modo como os moradores, dos dois municípios, atrelavam o reconhecimento social

à comiseração pela servidão: vai lá entrevistar ela, tadinha, é uma pessoa muito boa, só cê

vendo!; dava dó de ver o tanto que ela trabalhava; ele toda a vida foi um menino muito bom,

coitadinho; elas são tratadas igual escravo, mas não abandonam a família! Na medida em

que a pesquisa avançava, cada vez mais essa correlação se revelava determinante, como

analisarei na terceira parte do trabalho. Por enquanto, cabe destacar que as narrativas coletivas

unificam a categoria filho de criação sob um “habitus de classe” (Bourdieu), forjado pela

doxa, sobrepujando as singularidades individuais. Por isso minha opção de preservar a

expressão nativa, sem distinção de gênero.

3.2.9 – Filhos de criação e filhos adotados Para concluir este panorama etnográfico, é preciso comentar outra unificação; a

que iguala filho adotado e filho de criação. As duas expressões se mesclam nas narrativas. É

comum a família apresentar um filho adotado legalmente como filho de criação: esse aqui é o

meu de criação. Mas o contrário é mais frequente: o filho de criação ser classificado e se

autoclassificar como adotado ou adotivo.18 No âmbito das comunicações, não existe diferença

entre adotado, adotado e de criação, como fica claro na prosaica explicação de Laura: é igual

mandioca e aipim; é tudo uma coisa só. Contudo, existe uma diferença decisiva entre adotar e

pegar para criar: o acesso à herança. O direito à herança insinua-se nas narrativas coletivas

sempre que se fala do filho adotado, sempre depreciativamente e em contraposição ao filho de

criação. Antigamente, as crianças não ficavam pelas ruas aí, passando fome. Quem podia, pegava. Dava comida, dava roupa... Agora não pode mais, a assistente social vem e toma. Agora é só falar que tem direito a isso, àquilo... Por isso que ninguém adota mais. (Morador de Bagre Bonito)19

18 Para fazer jus a essa dinâmica comunicativa, utilizei itálico, adotivo/adotado/adoção, sempre em referência à adoção ilegal, incluindo a prática de pegar para criar, haja vista a não dissociação narrativa nativa entre pegar para criar e adotar e entre adotar e adotar legalmente. 19 O depoimento deste morador, considerado uma pessoa referencial devido à sua idade e experiência de vida, deve ser relativizado, uma vez que não há registro de crianças pelas ruas em Bagre Bonito. Contudo, sua narrativa pode ser uma explicação para o atual baixo número de adoção legal naquela região comparado à cultura de pegar para criar do passado.

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Embora não receba herança, as narrativas informam que não é comum a família

deixar o filho de criação desamparado. O modo de ampará-lo é concebê-lo, ele próprio,

como “herança”. 20 Na maioria dos casos aos quais tive acesso, direto ou indiretamente, após a

morte dos pais, o filho de criação foi morar com um irmão, reproduzindo a mesma relação de

cuidado. Mais uma vez, trata-se de algo mais comum e prolongado entre as mulheres filhas de

criação, uma vez que os homens filhos de criação logo começam a desempenhar atividades

remuneradas nos roçados ou na rua e diminuem sua dependência familiar, o que não acontece

com filhas de criação, como mostram os casos de Maria e Joana que estão servindo à quarta

geração do casal que as acolheu.

Ficou evidente que não cabe a inclusão do filho de criação na divisão da herança

familiar. Quando ela acontece, como no caso de Clara, é por consideração da família, não por

obrigação, e de modo desigual. Tal desigualdade, entretanto, é assumida como honrosa pelo

próprio filho de criação, mostrando ser inadequado e constrangedor aceitar sua participação

em paridade com os filhos consanguíneos: eu preferi ficar com a menor parte, justificou-se

Clara. Ao perguntar a Marcelo, 42 anos, um interlocutor cuja história de vida de filho de

criação utilizo contextualmente, se ele recebeu alguma coisa como herança dos pais de

criação, sua resposta foi enfática e positiva: o que eu recebi deles foi a criação.

Sem vínculos com a família consanguínea desde que foi dado a outra família,

embora possua registro com o nome dos pais consanguíneos, o filho dado, que se tornou filho

de criação, também não é incluído na divisão do que, porventura, os pais consanguíneos

deixarem como herança.

Pelo o que pude observar, a relação dos filhos de criação com o dinheiro é uma

questão pública e delicada. Consideram-se que filho de criação não precisa de dinheiro

porque tem de tudo na casa da família de criação. Além disso, é como se fosse filho e filho

não recebe para cuidar dos pais. Soma-se, ainda, que dar valor a dinheiro é moralmente

ignóbil, o que não condiz com uma pessoa especial, tal como um filho de criação. Quando

questionei meus interlocutores, moradores dos municípios, se os filhos de criação recebiam

algum pagamento pelo trabalho de dedicação exclusiva à família, mais uma vez minha

pergunta soou descabida: Não, recebe não, uai! Mas eles [os pais] não deixa faltar nada.

Veremos em casos de filhos de criação aposentados, a família administrar o dinheiro da

aposentadoria.

20Assim como as personagens Juliana, de Eça de Queirós, e Françoise, de Marcel Proust.

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PARTE II

Desconstrução: De perto, ninguém é igual.

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CAPÍTULO 4 – LAURA

A primeira vez que me encontrei com Laura foi em janeiro de 2007, ela tinha

então 22 anos.1 Nos conhecemos através de minha tia Neuza, sua conterrânea em Bagre

Bonito. A relação das duas não é de amizade, apenas se conhecem de vista da igreja e de

outros lugares comuns. Laura é morena clara, alta (1,75m) e magra, bem magra. Seus longos

cabelos escuros e encaracolados emolduram um rosto de expressão alegre, cujos sorriso solto

e olhar curioso passam uma impressão comunicativa. Sua vida de filha de criação é plena de

singularidades que escapam à unificação pela categoria social.

Pontuando, o acolhimento de Laura obteve um registro em cartório,

caracterizando o que o ordenamento jurídico brasileiro criminaliza como “adoção à

brasileira”. Alheios à ilegalidade, seus pais e a própria Laura entendem tal registro como uma

legalização do acolhimento visando resguardar de modo inexorável não os direitos que cabem

a um filho adotivo, mas os deveres que cabem a um filho de criação. Apesar da adoção2,

Laura é conhecida em Bagre Bonito como filha de criação, mas melhor do que filho de

sangue. Seus conterrâneos desconhecem a formalização da criação. O matrimônio e a

maternidade em coabitação com os pais adotivos também singularizam sua vida de filho de

criação. Laura é casada com André, 23 anos, e mãe de um casal de gêmeos de um ano e meio

de idade, Pâmela e Patrick. O fato de ter trabalhado fora, ainda que por pouco tempo,

também é algo inédito entre os casos. Laura trabalhou por três meses em uma lojinha de

roupas em sociedade com um irmão de seu marido. Sua parte no investimento era o serviço;

ela não receberia qualquer pagamento enquanto a loja não desse lucro. Além disso, Laura foi

a única entre os pesquisados a frenquentar a escola de modo contínuo, chegando a concluir o

Ensino Médio e a vislumbrar um vestibular para psicologia. Como veremos, esta experiência

constitui uma fissura no habitus atribuído à categoria filho de criação. O acesso a contextos

diferentes, seja no ambiente escolar, na relação com colegas e professores, seja através da

leitura, fomentou a incorporação de novas e contraditórias disposições (LAHIRE, 2004) e a

capacidade crítica de objetivação e reflexão. Por tudo isso, Laura se tornou minha principal

interlocutora e sua entrevista, um manancial de “indícios” (BERTAUX, 2010).

Durante minha busca por filhos de criação, Laura foi muito citada. Minha tia se

dispôs a me apresentá-la. Este intermédio revelou-se fundamental para que eu, alguém de

1 Todos os dados citados referem-se à data da realização da entrevista, isto é, janeiro de 2007. 2 Preservarei o itálico para “adoção à brasileira” em contraponto à adoção legal.

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fora, conseguisse me aproximar da família e ser recebida dentro de casa, algo que pressupõe

conhecimento e consideração. Laura mora com o marido e os filhos na casa de seus pais

adotivos, Antônio e Maria das Graças (Tãozim e Graça), 66 e 61 anos, respectivamente.

Trata-se de um sítio de subsistência, localizado na zona rural de Bagre Bonito a 11

quilômetros de distância da rua, isto é, da zona urbana, sendo que 7 quilômetros não têm

pavimentação, são estrada de chão. Laura sempre morou naquela casa, vim pra cá com

quatro meses de idade e estou até hoje. De acordo com o padrão local, a casa é boa; para os

padrões da zona urbana, é simples, mas se destoa das casas vizinhas, ainda mais simples. A

casa de Laura é rodeada por um quintal de terra batida, o terreiro, onde há flores, galinhas

soltas e uma enorme antena parabólica fixada no chão. Na propriedade também há um curral,

pasto para o gado, um chiqueiro e uma horta. Seu pai, Tãozim, possui uma condição

financeira considerada muito boa. Além do sítio em que moram, ele possui outras

propriedades (terras e casas). De acordo com Laura, grande parte da boa condição financeira

de seu pai deve-se à sua mãe, isto é, à herança que a família rica lhe deixou. Se não fosse a

narrativa de Laura e o conhecimento etnográfico, eu teria sido ludibriada pela observação.

Para alguém de fora, a família vive de maneira bastante simples: se alimentam basicamente

do que plantam e criam no terreiro; as roupas que usavam estavam bastante puídas; o

mobiliário da casa é da época do casamento da minha mãe, já está precisando trocar; a

charrete é o principal meio de transporte, embora possuam um carro popular dos anos 1980; o

lazer da família consiste em frequentação esporádica (porque é muito longe) às missas

dominicais na Igreja Matriz e em visitas a parentes e amigos por motivos especiais (festas de

aniversário, casamentos, nascimentos, mortes etc.), ocasiões em que o carro é posto em

movimento e a roupa de ir à missa, guardada com esmero, sai do armário. Contudo, como

mostra a etnografia, este é o modo de vida característico daquelas localidades rurais e

independe da condição econômica.

Chegamos, minha tia e eu, sem contato prévio. Chamamos por Laura, mas foi

Graça quem nos atendeu surgindo ao fundo do terreiro de mãos dadas com os gêmeos. De

longe, perguntou o que queríamos com Laura. Não foi uma recepção simpática, talvez por me

desconhecer e por não ter reconhecido minha tia. Antes de nos apresentar e explicar o motivo

da visita, Laura surgiu em uma das janelas laterais e cumprimentou minha tia com

familiaridade. Muito sorridente, veio até nós abrir a porteira do terreno e nos convidar a

entrar, como se fôssemos uma visita esperada. Diante do desprendimento da filha, a reserva

da mãe se desfez; gentilmente, nos ofereceu água e suco para arrefecer aquela tarde

escaldante de janeiro.

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Nos instalamos na sala. Laura, de fato, é bastante comunicativa. As crianças nos

distraíam e constituíam o assunto. Em momento algum nos perguntaram o motivo da visita.

Logo Tãozim chegou, também muito simpático e receptivo, mudando o rumo da conversa

para os contatos que tivera com meu avô e seu interesse em saber mais sobre uma das minhas

tias que trabalha como oficial de justiça. Esta conversa inicial, que durou cerca de quarenta

minutos, me permitiu conquistar a confiança dos pais para que eu pudesse ficar a sós com

Laura. Expliquei que estudava filhos de criação na zona rural e que nossa conversa versaria

sobre este tema. Minha intenção era agendar uma visita para a realização da entrevista, mas,

muito solícita e talvez curiosa, Laura se prontificou naquele momento: Estou sem fazer nada!

Já lavei a roupa toda na parte da manhã. Em concordância, Tãozim reiterou que não seria

necessário voltar outro dia e, espontaneamente, convidou a todos a nos deixar a sós.3

Na sala azul decorada com imagens sacras, dois antigos retratos em molduras

ovaladas chamavam atenção. Um exibia um menino de, aparentemente, 12, 13 anos, no outro

estavam Tãozim, Graça e Laura, vestida como dama de honra do casal, como Graça fez

questão de frisar. Um conjunto de sofá e uma televisão pequena sobre um móvel terminavam

de compor a sala. Assim que ficamos a sós, Laura me perguntou: você é de onde? Pensei em

compartilhar um pouco a minha trajetória para deixá-la mais à vontade para compartilhar a

sua, porém, quando lhe disse que nasci em São Paulo, ela me interrompeu com exaltação: Ah!

Eu fui lá! Assim a entrevista começou e se estendeu por uma hora e quarenta minutos.

4.1 – A breve experiência de trabalhar fora

Laura foi a São Paulo no fim de 2006 acompanhada de sua concunhada, esposa de

seu sócio, com o propósito de fazer compras para a loja de roupas em que trabalhava e era

sócia. Esta foi a primeira viagem interestadual de sua vida. Seu relato concentra-se em

descrever o choque cultural e em tecer comparações etnocêntricas. Em seguida, justifica sua

breve participação na loja, apenas três meses, pela percepção de estar sobrecarregando seus

pais com o cuidado das crianças e judiando de seus filhos com a sua ausência. Em momento

algum ela menciona a influência de alguém na decisão de parar de trabalhar fora, apesar de

seus pais se posicionarem radicalmente contra. Continuando o assunto, discorre sobre o seu

dia a dia com as crianças e a difícil tarefa de dar conta delas. Esta foi sua segunda gestação,

na primeira, sofreu um aborto espontâneo.

3 A espontaneidade e o desembaraço de Tãozim me surpreenderam. Não houve questionamentos (tão frequentes em campo, tais como: para que serve essa pesquisa? A gente pode ajudar a responder?) e sequer a necessidade de pedir privacidade com Laura.

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P: E como era o seu trabalho lá na loja? Eu era sócia, no caso, da loja. Era eu, o meu cunhado que mora em São Paulo, que foi fazer compra comigo, e aquela menina que hoje está lá na loja [...]. A sociedade era de nós três. Aí eu resolvi sair, porque a babá dos meninos, ela talvez ia sair... Ela não me garantiu que ia ficar para tomar conta deles. Igual eu falei: eu não posso deixar eles na responsabilidade do pai mais da mãe [Tãozim e Graça]. E eles [os pais] não têm idade mais, eles não têm pique mais para aguentar os dois. E eles [os filhos] são fogo! Aí eu falei: não, eu não posso fazer isso. É assim: quando eles querem colo, tem que ficar no colo, sabe? E eles são muito pesados. E também eles têm só um aninho... Eu morro de dó! Ah! Eu não vou judiar deles! Loja eu ponho mais para frente, deixa eles crescerem e tudo mais... É tão chato perder a infância, né? Não volta mais. Aí eu falei: “Ah! Deixa pra lá! Eu não vou judiar deles.” Aí eu saí da sociedade. [Pausa]4

4.2 – Dependência dos pais, interrupção dos estudos e maternidade precoce: uma inter-relação

A maternidade precoce aparece neste momento como uma vontade, como algo

que Laura sempre quis. É importante chamar atenção para suas abnegações: eu quis; eu

preferi; eu escolhi; não tô querendo; falei que era por mim etc. Como veremos, trata-se de um

recurso empregado com frequência para evitar conflitos. Mais à frente, reconhece que ser mãe

novinha era algo que seus pais sempre quiseram para ela. Entretanto, a maternidade passou a

ser entendida por Laura como sua única possibilidade de individuação após a interrupção dos

estudos, como indica aqui (Agora, se eu estudasse...), mas só desenvolve, de fato, na segunda

fase da pesquisa. Nesta entrevista, destaca-se a identificação que ela faz de sua posição na

família com a de empregada, bem como a alegoria que utiliza como autoimagem (esteio da

casa), chamando atenção para a dependência que os pais têm dela. Eu sempre quis ser mãe novinha, sabe? Assim: casada ou pelo menos com uma relação estável. Eu sempre quis ter filho novinha. Nunca quis ter filho velha, assim, com uns 25, 27 anos não. [Pausa] Agora, se eu estudasse... Eu sempre fui apaixonada com escola. Não estudei mais porque eles [seus pais] são sozinhos, moram na roça, não são conformados de mudar para a rua [zona urbana]. Se eles mudassem, pelo menos eu saberia... Assim: se eu fizesse faculdade fora ou qualquer outra coisa, pelo menos eu saberia que eles estão na cidade, não tem um risco tão alto. Porque aqui na roça é assalto, o pessoal faz sacanagem... P: É mesmo? É. Às vezes eles sacaneiam feio! O meu pai tem problema de coração, não pode passar susto. Quem não leva um susto num assalto? Deus me livre! Não tem esse nem aquele! E, assim... eles nunca foram contra eu estudar, mas também nunca foram a favor. Assim... pelo fato... eu vou afastar, vou vir em casa só nos finais de semana e olhe lá! É muito

4 A narrativa de Laura é permeada de pausas, longas e curtas. Atendo-me ao conteúdo, distingui pela forma; “silêncio” e “pausa”. O silêncio, pausa longa, encerra o que foi perguntado, uma conclusão. A pausa curta aparece em duas situações: quando Laura procura organizar o raciocínio antes de falar e após dizer algo ao qual atribui importância e merecimento de nota de seu interlocutor.

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caro! Não compensa! Já é caro para você estudar, se for para você vir em casa todo final de semana, não compensa estudar. [Pausa] Aí eu preferi assim: eu vou abandonar os estudos e vou me dedicar a eles. Mas eu sempre fui alucinada com escola. [Pausa] [...] Ela [mãe] sempre teve problema de coluna. Quando eu era pequenininha, com os meus quatro anos, ela descolou a retina. Então ela perdeu a visão de um olho. [...] E ela sempre foi doente. Aí ela operou, fez a colagem da retina, mas sempre teve problema seriíssimo de coluna. Ela é dependente. Então... Assim: ela não é dependente, vamos supor, do pai. Se ela fosse dependente só de um marido, de um homem, era uma coisa. Mas, como é que uma pessoa que não enxerga bem faz uma comida, se os olhos não estão bem? [...] O meu pai fez cirurgia do coração também. Tem onze anos. Ele já fez uma ponte de safena, duas mamárias, duas angioplastias, dois cateterismos... Então os dois são dependentes de uma pessoa. Então é aquele caso: se eu sair, é como se eles estivessem perdendo o esteio da casa. Porque se ele não pode sair, sou eu quem vai pegar o carro, dirigir e levar onde precisa. Com ela a mesma coisa: se não tem ninguém para arrumar a casa, sou eu quem arrumo; ninguém para lavar a roupa, sou eu quem lavo; ninguém para fazer comida, sou eu quem faço. Então, assim: se eu saísse, eu estaria prejudicando eles, nesse sentido, em muito; porque pagar uma empregada e pagar um estudo... Você sabe que um estudo fica caríssimo e a partir do momento que engajar na meta do estudo, você tem que ir. Esse negócio de chegar até o meio do caminho e parar, você perde; perde dinheiro, tempo, perde tudo. Então, ele [pai] falou assim comigo: “Você quer estudar? Tudo bem...” Mas eu sei que ele abriu mão assim: “Você vai, mas... [pausa - risos] é contra a minha vontade!” [risos] Entendeu? Então eu falei assim: “não, eu não vou estudar mais não. Não tô querendo, tô cansada e tal...” P: Falou que era por você. Isso. Falei que era por mim, mas não; eu sempre fui apaixonada com escola. Adorava, adorava! Sua explicação remete à abstenção que preferiu fazer de sua aprovação no

rigoroso exame de seleção do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa

(COLUNI-UFV) para cursar o Ensino Médio. Laura fala com orgulho e um toque de pesar

dos estímulos que recebia de seus professores para que prosseguisse os estudos.

4.3 – Uma meio irmã: outra filha de criação

O fato de falar com desenvoltura e possuir um universo vocabular muito acima de

seu grupo social, deve-se, segundo Laura, à sua curiosidade e ao seu gosto pela leitura, mas

também ao ingresso precoce na escola para acompanhar sua meio irmã, outra filha de criação

da família. [...] Na minha época, eu entrei muito fora de faixa, porque... morava uma menina aqui em casa. Ela já tinha idade para ir para a escola, mas para ela não ir sozinha para a aula, aí minha mãe me colocou em um psicólogo, para eu fazer uma prova para saber se eu tinha competência para poder entrar na aula junto com essa menina. [...] P: E essa menina? Ela era sua irmã?

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É, era meio que irmã. Ela era filha de um vizinho meu, que mora aqui pertinho. Mas, era assim: a mãe dela largou a família toda pequena. Largou o filho mais novo dela acho que era de colo ainda. Largou a família toda e foi embora. E eles eram muito pobres, tinham muitos filhos e ela [a menina] gostava muito de vir aqui. Ela veio aqui pra casa, com nove anos de idade, pedir para morar aqui. E os meus pais acabaram que ficaram com dó, porque eu era muito sozinha, era bom ter uma criança para mim brincar e também para ajudar ela, porque a família dela era muito pobre e aqui poderia dar mais condições para ela. Aí ela veio morar aqui, com nove anos. Quer dizer; ela tinha nove e eu tinha cinco e ela não tinha estudado até então. [...] Essa menina foi5 sua meio irmã até a adolescência, quando começaram os

conflitos. Laura não estende o assunto e atribui a saída de casa à própria menina,

cuja situação difere-se da sua por dois motivos interligados, além do fato de não

ter sido registrada no nome da família: primeiro porque a menina não passou a

primeira infância com a família acolhedora, não constituindo, assim, as

“disposições”, o habitus de filho de criação (tal como a própria Laura analisa: a

cabecinha dela já era formada) e, segundo, porque ela nunca reconheceu o casal

acolhedor como pais, sua filiação continuou à família consanguínea, com a qual

não perdeu o contato.

P: E o que deu dela? Ela morou aqui em casa dos nove aos quatorze anos. Quando ela fez quatorze anos, ela deu na louca de ir embora: “Ah! Eu vou embora, quero morar com o meu pai agora”. Mas não era, a irmã dela já morava em São João e tirou ela de cabeça: “Ah! Vem morar em São João, morar na casa dos outros não presta!” Aquilo entrou na cabeça dela. Ela disse: “Eu quero ir embora para morar com o meu pai! Quero tomar conta do meu pai”. [Em tom levemente agressivo:] Que morar com o pai dela que nada! Então, assim: ela foi embora para São João, de lá ela perdeu o controle da vida; acabou engravidando novinha, o pai não assumiu o filho... a filha, no caso, e ela veio embora, veio morar com o pai dela, já grávida, aí ela conheceu o novo namorado dela e hoje ela já vive com ele. Aí desse novo relacionamento ela já tem duas filhas. [...] P: E ela também chamava os seus pais de “pai e mãe”? Não, não. Porque quando ela veio morar aqui ela já tinha nove anos, a cabecinha dela já era formada. Ela chamava os pais dela lá de pai e mãe, os meus ela chamava pelo nome. [...] Eu sempre chamei eles de pai e mãe e ela não. P: Você veio para cá com quatro meses, não é? É, com quatro meses.

4.4 – A relação dos pais: problema da mãe pelo machismo do pai

5Assim como apontou Comerford (2003) sobre os processos de “familiarização” e “desfamiliarização” que observou, a familiarização pela criação também guarda a possibilidade de ser desfeita, embora não deva ser considerada, como analisei no capítulo 2.

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Os pais de Laura não tiveram filhos consanguíneos. Apesar dos tratamentos

médicos, Graça teve sucessivos abortos. Depois de algum tempo, descobriram que o

problema provinha de Tãozim, mas, para todo mundo, continuou atribuído a Graça. “Ela”

não podia ter filhos. Não é sem rodeios e evasivas que Laura revela o machismo do pai. Em

momento algum ela o julga, pelo contrário; procura compreendê-lo e até justificá-lo. Sua

capacidade de empatia é notória também em outras passagens. P: E como era a relação dos seus pais? O fato dele não poder ter filhos criou alguma coisa entre eles? Sua mãe entendeu bem o fato dele não querer encarar um tratamento? Não... Na verdade [Laura baixa o tom da voz], o meu pai, ele é muito fechado. Ele é de família antiga, muito fechada. Ele foi criado naquele regime antigo, nunca conversava sobre isso. Nem comigo, nem com ninguém. Eu descobri, a minha mãe me contou, quando eu já estava grande, com os meus quinze, dezesseis anos. Até então, não; para todo mundo, era ela. [Pausa] Ela sempre colocou a culpa nela. “Ela” não podia ter filhos. Entendeu? Ninguém sabia que o problema era com ele. Mas o problema é com ele. E ele também não queria expor para ninguém que o problema era com ele. [Silêncio] P: Machismo? Exatamente. Por machismo. E para não criar problema, ninguém nunca tocou ou insistiu no assunto. [...] Então eu vejo assim a relação dos meus pais: a minha mãe preferiu se culpar, carregar a verdade só entre ela e ele. E o meu pai meio que assim: “o problema é com ela porque eu sou o tal, eu sou o homem, não posso ter esse tipo de problema... O problema não é comigo, é com ela”. Mas, na verdade, ele sabe que o problema é com ele. Ele sabe que eu sei disso, mas eu não gosto de comentar. Eu sei que machuca, então é bobeira. [Silêncio]

4.5 – O processo de adoção: de cor eu não tenho preferência, mas eu quero uma menina A narrativa de sua adoção é muito rica e aparentemente confusa. A polissemia de

suas “contraposições” (PINA CABRAL, 2000) só poderá ser compreendida mediante as

narrativas da segunda fase da pesquisa. Tentarei, contudo, destacar alguns pontos sem

adiantar o porvir. Aqui, Laura relata que ficou na área de adoção do hospital até ser adotada

e que quando isto aconteceu, sua mãe consanguínea teve que tomar injeção para secar o leite.

Primeiramente, lidei com a hipótese de sua mãe ir ao hospital amamentá-la até que fosse

adotada. Posteriormente, na segunda fase da pesquisa, devido à incongruência com a versão

de seus pais adotivos, chequei que o hospital de Barão de São João Batista nunca teve área de

adoção ou área de orfanato. Veracidade à parte, fica a importância que Laura atribui à

formalização de sua adoção, ao fato de sua mãe consanguínea querer que adote de papel

passado ao invés de dar a filha para qualquer um. É importante perceber que, de um lado,

Laura elabora uma narrativa reflexiva para a mãe consanguínea e, de outro, reproduz a

narrativa da mãe adotiva, ressaltando o trabalhão que lhe deu. P: E como foi o caso da sua adoção? Como a sua mãe chegou até você?

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[...] “Ô Graça, você quer adotar uma menina? Tem uma menina lá no hospital que está na área de adoção e ela é muito bonitinha! [...]” [Recado de uma vizinha que estava hospitalizada para parir seu filho] P: Ela já estava resolvida a adotar? É, ela estava resolvida que ia adotar uma criança. Aí a minha vizinha falou assim: “você tem preferência de sexo?” A minha mãe falou: “Eu quero uma menina. De cor eu não tenho preferência, mas eu quero uma menina”. [...] Aí a mãe chegou lá no hospital, mas tinha mais crianças para serem adotadas, tinha mais crianças, mas a minha mãe olhou e falou assim: “eu quero essa aqui”, que, no caso, era eu. Aí tinha um cara que morou aqui na época também, que também não era nada dos meus pais, mas morou aqui muito tempo, e ele também falou assim: “Eu quero que leva essa! E tal...”. Aí foi aquele caso: foi procurar a família da minha mãe [consanguínea] para saber como é que era direitinho. [...] Aí procurou minha mãe [consanguínea] e ela falou: “eu quero que adota ela. Mas, assim, eu quero que adote ela de papel passado. Eu não quero dar ela pra ninguém não. Eu quero que adote de papel passado. Eu não quero ela comigo porque eu não tenho condições de tratar dela. E eu não quero ter um filho... Assim, eu era para ter pensado antes de engravidar, mas, assim, já que eu engravidei, eu não quero passar ela para uma pessoa que não tem condições igual eu não tenho. Então eu prefiro enviar para a adoção, porque na adoção não se tem disso; lá só se adota quem tem condições”. [...] Aí a minha mãe [consanguínea] teve que tomar injeção para secar o leite, porque ela tinha muito leite na época, e eu vim embora. Mas dei um trabalhão! Porque eu mamava no peito, aí chega aqui não tem peito para mamar... eu não pegava mamadeira! Era muito difícil!

4.6 – Um cara: outro filho de criação Trata-se do menino exposto no retrato da sala. A história deste outro filho de

criação é semelhante à da meio irmã. Ele também foi acolhido com a cabeça formada, deu a

doida nele também e ele quis ir embora. Mais uma vez, seu pai não pôde impedir, não tinha

nenhum domínio sobre ele, o menino já era registrado, como explica Laura, reproduzindo a

narrativa do pai. P: Você falou de uma outra pessoa que também morou aqui só que não era filho... Isso, isso... Ah, não! Ele já morava aqui. Era um menino e já morava aqui. [...] P: Ele mora aqui? Não, não. [...] Ele foi embora, já se casou. P: E como é a história dele? Ele, assim... Os avós dele é que eram conhecidos do meu pai, e... a mãe dele era muito louca, era drogada. E os avós dele falaram assim: “Ah! Tãozim, deixa ele ficar com você, que você é uma boa pessoa para cuidar dele. Se ele for ficar com a mãe dele, ele vai ter uma péssima influência, vai crescer vendo aquilo, vai ficar a mesma coisa”. [...] Só que ele era muito cabeça fraca, sabe? Ele era muito sem juízo. Aí deu a doida nele também e ele quis ir embora. Aí o meu pai [Tãozim] deu a ele dinheiro – que ele [Tãozim] tinha dinheiro em conta no banco. O pai deu tudo para ele. A mãe dele comeu tudo! Comeu tudo do menino, sabe? [...] P: A relação que ele tinha com seu pais era de pais e filho também? Isso, também. P: E ele ajudava o seu pai?

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Ajudava, ajudava. Meu pai sempre mexeu com leite e ele ajudava tirar leite. Ele fazia de tudo! Ele fazia de tudo, tudo. Era como um filho mesmo. [...] Mas aí ele decidiu ir embora. É como o meu pai falou: “ele já veio pra cá registrado, eu não tinha nenhum domínio sobre ele”. Como ele não tinha pela outra menina que eu te falei. Então não tem como você mandar, né? Você quer ir embora, vai fazer o quê? Você tem pai e mãe, está registrado no nome deles, então, “não tem como eu comandar”. P: Com você é diferente? Comigo é diferente! Se eu falar que vou embora, não é bem assim [risos], né? [Pausa] Aí já não dá... [Pausa] O meu caso é outro.

4.7 – Implicações práticas de sua adoção Os termos domínio, mandar, comandar são emblemáticos do registro em cartório

do seu acolhimento. A narrativa de Laura a respeito desses meio irmãos e até de si própria, no

que tange à sua adoção, é idêntica à narrativa de seus pais. Em uma conversa que tivemos no

fim desta entrevista, a adoção apareceu como uma alternativa aos fracassos experienciados

com a prática de pegar para criar. Desinteressados em entrar em detalhes, apenas deixaram

claro que não dá certo adotar criança grande porque já vem com a cabeça formada e quando

cresce, dá na louca de ir embora. Para não repetir o destino dos casos anteriores, Tãozim e

Graça resolveram ter um documento que não deixa [o adotado] fazer o que quiser e adotar

uma criança que não tem a cabeça formada. Assim, aos quatro meses de idade, Laura foi

adotada direitinho, como explicou Graça: com papel no nome da gente, não pode fazer o que

quiser, deve satisfação a nós.

Apesar da visão crítica que Laura tem da experiência filho de criação –

progressivamente proeminente com o avanço da pesquisa – ela age, disposicionalmente, de

acordo com a visão naturalizada dos pais. Tem para si que seu caso é outro por estar presa ao

nome de família, mas faz de sua vida a mesma luta de um filho de criação; assume para si

todas as tarefas da casa, ajuda, faz de tudo, para ser reconhecida como um filho mesmo.

A ideologia do sangue, determinante naquele contexto, atribui legitimidade

apenas ao filho consanguíneo, filho legítimo, como dizem demarcando a diferença. Além de

características físicas, como a cor dos olhos ou da pele, personalidade, temperamento,

inteligência, bondade/maldade etc. também são considerados herança genética; o que causa

em Laura a angústia de se sentir meio sem identidade: Como é que eu posso ser comparada a

uma pessoa que eu não conheço? Ainda mais porque se trata, apenas, de comparações

depreciativas. Aquilo que o regime fechado dos pais adotivos reconhece como problema, é

atribuído à consanguinidade: puxou à sua mãe, é igualzinha ao pai. O mesmo não se observa

com as qualidades; estas se devem à criação que recebeu.

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4.8 – A mãe consanguínea: uma mulher fácil, manipulável

Aos 14 anos, Laura quis reencontrar sua mãe consanguínea. Novamente a empatia

é preponderante; há crítica, desacordo, mas sem julgamentos. Laura se coloca nas condições

de ingenuidade e miséria nas quais a mãe engravidou.6 Nutre genuína compaixão por aquela

mulher fácil, manipulável, cuja história de quando trabalhava, ainda muito jovem, como

empregada doméstica na casa de uma família renomada de Barão de São João Batista, traz

elementos que contextualizam a ilegalidade do emprego doméstico nos municípios

pesquisados. Nota-se que as contas não fecham: se a mãe de Laura tem 36 anos e Laura tem

22, ou Laura se equivocou com a idade da mãe ou a mãe a teve com 14 anos e não com 16. Se

for este o caso, o que piora a situação, sua mãe engravidou do primeiro filho (um ano e alguns

meses mais velho do que Laura) com 11 ou 12 anos de idade, do filho da patroa, recém

formado em odontologia.

[...] eu sempre soube que eu fui adotada, só que eu só fui ver a minha mãe de novo, de conversar, de tentar conversar com ela mesmo, quando eu fiz 14 anos. [...] P: Ela tem hoje quantos anos? A minha mãe tem uns 36. P: Ela é nova. É, ela é muito nova ainda. Ela teve o primeiro filho aos 14 anos. Ela me teve com 16. [...] P: Você tem algum ressentimento quanto ao fato dela não ter te criado? Não, não. Quanto a isso, eu acho que ela fez certo. Não vou dizer que se eu estivesse no lugar dela eu faria a mesma coisa. Não! Eu não faria a mesma coisa! [grifo de Laura] Mas eu acho que se ela viu que não tinha condições, ela fez mais do que certo. [Pausa] Porque se ela fosse tão irresponsável, ela daria a criança para qualquer um. Não queria nem saber. Ela colocaria na porta da casa dos outros, jogaria no lixo, igual acontece hoje em dia, o que é um absurdo. Então, assim, ela agiu com um pouco de bom senso e consciência, porque ela sabia: se fosse para adoção, não seria qualquer pessoa que poderia adotar. Eu não julgo ela por isso não. Eu acho assim, o que eu admiro na minha mãe é ela conseguir conviver com esse problema, porque isso pra ela é um problema. [Silêncio] A minha mãe era alegre, hoje a minha mãe é triste. Entendeu? Eu sinto que ela se puniu pelo o que ela fez. Mas ela não tinha outra alternativa a não ser isso: ou ela entregava à adoção ou ela via a filha dela morta de fome. Porque quando ela estava grávida de mim, a patroa dela... Porque é assim: a minha mãe engravidou primeiro do Rafael. P: É um irmão mais velho? É, ele tem vinte e três anos. Ela engravidou dele morando na casa da patroa dela e o Rafael é filho do filho da patroa dela. A patroa deixou ela ficar na casa para abafar o caso,

6Em sua narrativa, ecoa Carolina de Jesus em Quarto de despejo: “O dinheiro não deu para comprar carne. Fiz macarrão com cenoura. Não tinha gordura, ficou horrível. A Vera [sua filha caçula] é a única que reclama e pede mais. E pede: Mamãe, vende eu para a dona Julita, porque lá tem comida gostosa.”

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porque a família era renomada, o avô do Rafael era sargento... Não poderia manchar a imagem. Então, assim, deixou ela ali para embaçar a situação. P: Não para ajudar? Não, para ajudar também. O marido [da patroa] era muito carrancudo, assim, muito certinho... A dona Maria Helena [a patroa] não, ela era mais amorosa. Ela deixou a minha mãe ficar ali para embaçar o caso e porque ela tinha dó também. Aí a minha mãe falou assim: “Olha, eu vou dar ele para a adoção porque eu não tenho condições de tratar dele”. Aí a dona Maria Helena falou: “Por mim tudo bem. Eu não posso cuidar dele também”. Quer dizer, se ela cuidasse, é lógico que ia dar na cara que era do filho dela. E ele tinha formado de pouco, ia prejudicar ele no trabalho... Aí tudo bem. Ela deu ele para a adoção. Aí ela [patroa] falou: “Olha Marlene (a minha mãe chama Marlene), se você engravidar de novo, eu não vou aceitar que você trabalhe aqui mais; porque você trabalha o dia todo, vai para casa, a noite sai por aí... cai na gandaia, arruma namorado... Você não se previne, acaba engravidando e vem trabalhar. Como é que você vai trabalhar grávida? A sua sorte é que você não passa mal e consegue trabalhar, mas toda gravidez não é igual à outra”. Aí minha mãe falou assim: “Pode deixar que eu não vou arrumar filho mais não”. Aí passou um ano, estava ela lá; com filho de novo. Aí a patroa falou: “Olha, infelizmente... Eu já tinha falado para você que ia te mandar embora se você engravidasse de novo”. [Pausa] Aí mandou ela embora. [Pausa] Mas aí passou uns cinco, seis meses, e ela [a patroa] se arrependeu: “Quero saber o que a Marlene está arrumando... Porque ela é muito pobre e eu mandei ela embora... Quero saber o que está acontecendo com ela”. Aí ela chegou na casa dela [da mãe], a minha mãe já estava com uns sete meses de gravidez, aproximadamente. E ela estava comendo macarrão, mas macarrão cozido na água: não tinha gordura [óleo], não tinha sal, não tinha alho, não tinha nada! Era o cúmulo da pobreza! [Pausa] Ela [a patroa] ficou “morta” e disse: “Você pode voltar para a minha casa. Você pode até não trabalhar, mas comer você vai! Porque não é possível! Como é que você pode ficar grávida sem se alimentar? Como é que essa criança vai nascer?” [Pausa] Aí ela acabou voltando e depois eu nasci. [...] A minha mãe, eu não considero ela uma pessoa... assim... depravada, uma mulher oferecida. Porque nós somos em cinco irmãos. [...] o mais novo tem quatorze anos. Nós somos cinco filhos. Cinco de cada pai. Nós não somos todos do mesmo pai. Então isso classifica a minha mãe como uma mulher sem vergonha, né? “O que é isso? Ter cinco filhos e um de cada pai?” Né? Mas eu não posso classificar ela dessa forma porque eu não sei como é que foi acontecer isso com ela, entendeu? [Pausa] Mas hoje, se você sentar com a minha mãe... Você sentar e conversar com ela, você vê que ela é uma pessoa completamente manipulável. Ela é uma mulher fácil! Chega um homem perto dela, conta uma história, ela se apaixona, ela se entrega. [Pausa] E a vida não é assim. Entendeu? Aí ela vai e toma um tombo. E qual é a consequência do tombo dela? Um filho. [Pausa] E assim vai. Até completar os cinco filhos que ela tem hoje. [...] Às vezes falam para mim... Assim... Quando a minha mãe [consanguínea] era mais nova ela era muito nervosa, muito brava. Assim... Ela nunca aceitou ser desrespeitada, nunca aceitou. Se você desrespeitasse ela, ou xingasse ela, ela tinha que tirar satisfação daquilo, entendeu? E aí, às vezes, quando eu fico nervosa: “Ah! Você é igualzinha a sua mãe!” Entendeu? Meus pais falam comigo: “Ah! Você é igualzinha à sua mãe!” Na hora! Aí pronto, me ferra de vez! Eu não tenho mais nada para falar. Porque eu não sei como ela é. Porque, de repente, eles sabem mais dela do que eu, né? Ou às vezes eles falam: “Ah!

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Você é igualzinha ao seu pai.” Porque o meu pai é um mulherengo de mão cheia! [risos] Ele tem a família dele hoje, mas não panha juízo, entendeu? Ele sai hoje aqui, aí é uma mulher aqui, outra na outra cidade, outra na outra cidade, outra na outra... Entendeu? Ele é assim. Mas é gente finíssima, é um amor de pessoa, um doce! Mas tem esse problema. [risos] Tem uma lábia, minha filha, você nem imagina! [risos] Então é assim: às vezes chegavam [os pais adotivos] perto de mim, se eu tivesse conversando com alguma pessoa, ou com algum rapaz, quando eu era solteira, e falavam: “Ô meu Deus do céu! Não sei se você puxou mais o pai ou se você puxou mais a mãe; porque não pode ver homem!” Sabe? Essas coisas assim. Mas não era nesse sentido! Eu sempre fui conversada assim, tanto faz ser homem ou ser mulher, eu converso com todo mundo mesmo. E no regime fechado deles, não existe isso. Mulher conversa com mulher e homem com homem, entendeu? Naquela época não existia isso. A defesa deles é o ataque para mim. Entendeu? Então eles chegavam para mim e diziam que não sabiam a quem eu tinha puxado. Para mim isso é muito difícil. Como é que eu posso ser comparada a uma pessoa que eu não conheço? [...] A narrativa de Laura sobre a mãe consanguínea traz implícitos os julgamentos de

seus pais adotivos, sobretudo de sua mãe. Laura se sente ofendida com as críticas mordazes,

tanto por empatia, quanto pelas comparações. Percebendo isso, sua versão do processo de

adoção começa a se justificar.

4.9 – O pai consanguíneo: reconhecimento tardio da paternidade Com relação ao pai consanguíneo, também não há julgamentos e sua narrativa é

ainda mais amorosa. Talvez eu gosto mais dele do que da minha mãe. Mesmo a mágoa que

sente por ele ter desacreditado a paternidade é, no limite, redirecionada à ingenuidade da mãe,

que não insistiu em convencê-lo da veracidade. Nutria muita expectativa de convivência após

o tardio reconhecimento da paternidade, mas colocou-a de lado, reduziu seus sentimentos a

uma coisa boba, em detrimento dos sentimentos de outros. P: E o seu pai, quando a sua mãe engravidou, ele não assumiu? Não, não. Quando a minha mãe engravidou, ela falou com ele que estava grávida. Só que ele não acreditou. Achou que era sacanagem [brincadeira] dela. E ela muito boba, em vez de insistir no assunto, já que ela estava realmente grávida dele; não! [...] Ele foi se tocar que realmente tinha uma filha quando eu já estava maior. Quando eu já tinha meus quatro, cinco anos... por aí. P: E como ele se tocou? Aí ele percebeu a semelhança do meu rosto com a família dele. [Pausa] Aí ele percebeu que a gente tinha semelhanças. [...] Quando eu engravidei de gêmeos, nossa! Aí que ele foi num mundo e voltou noutro! Porque ele também é gêmeo! [Pausa] Ele é gêmeo com a irmã dele, eles são um casal de gêmeos, e ele é pai de gêmeos. Aí ele falou: “Não! Não tem como ela não ser minha filha mesmo.” Porque a questão da gravidez gemelar, ela é hereditária, né? [Pausa] Aí ele veio aqui em casa, chorou muito e tudo mais... Mas, assim, eu gosto muito dele. [Pausa] Talvez eu gosto mais dele do que da minha mãe. [Pausa] Não sei te explicar por quê. Mas, assim, às vezes eu me sinto chateada com ele, por que

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ele demorou tanto a se tocar? [Pausa] Entendeu? Que eu era realmente filha dele. [Pausa] Mas isso é um caso mal resolvido entre ele e a minha mãe. Eu não tenho nada a ver com isso. Eu acho que vai fazer mal pra mim ficar aprofundando nisso, porque se eles nunca se preocuparam em sentar e falar: “não, ela é sua filha sim e tal e tal...” Pra quê que eu vou ficar fazendo isso agora, né? Eu senti também que se eu me aproximasse muito dele, eu estava prejudicando a relação dele com a família dele, sabe? Porque a família dele despertou ciúmes, a mulher dele ficou enciumada... [...] Aí eu falei assim: “eu vou prejudicar a relação dele com a família por uma coisa boba. Eu vivi vinte e dois anos sem ele, não vai me fazer falta agora.” Mas, assim, quando eu vou a São João, que eu vejo ele, eu cumprimento, passo lá na loja dele...7 Mas não chamo ele de pai, eu chamo ele de Paulo; de pai, não. Assim... Não tem vínculo para eu chamar ele de pai. A minha avó eu chamo ela de “vó”, a minha avó materna. A avó da parte dele eu não chamo de “vó”, entendeu? Eles [avós paternos] sempre conviveram comigo aqui em Bagre Bonito, sempre me viam na igreja, desde quando eu era criancinha de colo, sempre souberam que eu era neta deles, mas nunca chegaram e disseram: “Ah! Essa daqui que é a minha neta?” Entendeu?

4.10 – O sentimento diferente de quem é adotado, adotado ou de criação. A narrativa de Laura a respeito das intenções de sua mãe adotiva em arrumar uma

menina conjuga naturalidade, senso de humor e discordância. É explícita a correlação de sua

adoção ao desempenho de uma função e esta à divisão sexual do trabalho que impera em

Bagre Bonito. Trata-se de uma passagem muito rica e angular. Quando Laura fala de sua

adoção é de uma geração que está falando, na qual a prática de pegar para criar foi

(juridicamente) substituída pela adoção legal. Entretanto, sua análise empreende uma

sociogênese do sentimento que toca qualquer filho de criação de seu município. Pelos

motivos vistos no capítulo etnográfico (só tem direito, nada de dever), a adoção legal não é

comum em Bagre Bonito. Quando Laura narra a contrariedade da família de Tãozim sobre

sua adoção (com registro no nome da família), a dúvida com relação ao filho adotivo vem à

tona: Isso vai crescer e você não sabe o que vai ser. Ao contrário do filho de criação, de

quem todos sabem o que esperar. Paradoxalmente, apesar de não se saber o que vai ser, pesa

sobre o filho adotivo uma projeção estigmatizante, uma maquiagem: crescem e revoltam, tem

conflito com os pais. Como bem analisou Laura, isso é o que atrapalha o processo de adoção,

sem se dar conta, entretanto, de que endossando essa conclusão está reproduzindo sobre o

filho adotivo a expectativa coletiva de submissão que pesava (e ainda pesa) sobre o filho de

criação. Proibido por lei de pegar para criar, não se adota. Por outro lado (e Laura bem o

sabe), a sociedade também maquia o filho de criação, mas como um “tipo ideal” de filho,

invertendo o esforço: é constitutivo da vida de filho de criação crescer provando que se é

7O pai de Laura é proprietário de uma loja de calçados bastante popular em Barão de São João Batista.

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aquilo que maquiaram. De todo modo, isto é, adotado, adotado ou de criação, o sentimento é

diferente; você se sente mais sofrida do que as outras crianças.8 P: E você acha que a sua mãe, quando te adotou, ela já pensava nisso? Ou seja, ela fazia questão que fosse uma menina porque queria uma companheira? Isso, isso. Sempre pensou assim. Porque, na cabeça dela, ela pensava o seguinte: como ela já tinha problema [de saúde], se ela arrumasse um menino a tendência seria ele ajudar no serviço do homem, do pai. Então ela pensou assim: “Eu vou dançar nessa! [risos] Então eu quero arrumar uma menina, porque uma menina vai me ajudar”. Entendeu? [Pausa] Ela pensou nela, você tá entendendo? [grifos de Laura] E nessa o meu pai também entrou... [...] P: E você passa isso na criação dos seus filhos? Quero dizer, você trata os seus filhos da forma como você foi tratada? Não. É como eu falo para o meu marido: o sentimento de uma pessoa adotada é diferente do sentimento de uma pessoa que não é. P: É mesmo? É. Eu classifico assim. P: Mesmo tendo vindo pra cá ainda bebê e sendo criada como filha, como você disse? Mesmo assim. Sabe por quê? A sociedade te vê de uma forma diferente. [Pausa] Você é especial para a sociedade porque você é adotada. É comum todo casal ter filho, né? Não é comum todo casal ter filho adotado. É difícil! Uns crescem e revoltam, tem conflitos com os pais... E isso é o que atrapalha o processo de adoção. Mas é igual eu falo com ele [o marido], é difícil! Você pensa de uma forma diferente. Parece que você se sente mais sofrida do que as outras crianças, entende? Eu sempre me senti assim, sabe? P: Tipo “menos” alguma coisa? Não... Assim... A família do meu pai meio que ficaram revoltados. Eles pensavam assim: “Deixa de ser bobo! Você vai deixar de ter filho para adotar filho dos outros? Isso vai crescer e você não sabe o que vai ser.” [Pausa] Entendeu? Então você cresce tentando mostrar para eles que você pode ser normal, como qualquer outro filho, mesmo se fosse um filho biológico, se fosse deles, um filho normal. Então você tem que crescer meio que provando para os outros que você não vai ser aquilo que maquiaram. [Pausa] É um pouquinho diferente. [...] A família da minha mãe nunca se conformou, sempre atacou a minha mãe mesmo: “Ah! Você é muito boba de adotar filho!” Ou às vezes as pessoas chegavam perto dela: “Ah! Como é bonitinha... e tal.. e tal..”, mas na verdade chegavam porque achavam bonitinha mesmo e às vezes era pela curiosidade, para poder ver se eu era branquinha, cê tá entendendo? Às vezes as pessoas pegavam na minha mãozinha, quando eu era pequenininha, para ver se as minhas unhas eram roxinhas para saber se quando eu crescesse, eu seria negra ou não. Porque a minha mãe [consanguínea] é bem moreninha mesmo, já o meu pai [consanguíneo] é branquinho. Era essa bobeira assim...

4.11 – A naturalização da desigualdade do filho de criação/adotivo

8 Na segunda fase da pesquisa, Laura discorre, com uma lucidez crítica admirável, sobre a indiferença de expectativa coletiva que iguala o modo de criação do filho de criação e do filho adotivo.

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A narrativa de Laura a respeito da infância sofrida de sua mãe adotiva objetiva a

naturalização da desigualdade do tratamento conferido ao filho adotivo/de criação. Além

disso, como se trata de uma resposta para o que mais admira em sua mãe adotiva, coloca em

evidência o reconhecimento social do sofrimento. É importante mencionar que Laura não

soube me responder de imediato. Criticamente, ela sabe que a imagem que tem da mãe (a

mesma que a mãe tem de si, como percebi mais tarde) é a imagem que a mãe gostaria de ter

dela, de Laura. Com isso, Laura acessa a gênese de sua relação com os pais: a criação que

recebeu segundo a “dádiva da vida”. Eles me criaram com a mente o seguinte: eu tenho que

viver agradecendo somente a eles porque foram eles que me deram a vida.

P: O que você mais admira na sua mãe adotiva? Na minha mãe? Hum... [Pausa] deixa eu ver o que eu mais gosto nela... [Silêncio] A minha mãe é muito trabalhadora. [Pausa] Ela sempre trabalhou demais. Ela teve uma infância sofrida demais, sabe? De trabalhar pesado mesmo. De carregar peso igual a um burro! Sabe? [Pausa] Ela sempre trabalhou muito, desde muito novinha. Então, assim, eu acho ela muito guerreira, sabe? P: E no seu pai? Meu pai também, nesse sentido. E meu pai é muito alegre. Eu acho o meu pai muito alegre, muito brincalhão, muito extrovertido. Eu gosto desse lado dele; de brincar, de tirar sarro das coisas que às vezes tem que ser levadas a sério, mas ele leva na sacanagem para que aquele problema não se torne maior, sabe? Ele prefere brincar para não ter que encarar o problema. [...] Eles trabalharam muito, muito. Eu lembro que, às vezes, quando eu era pequena, a minha mãe me contava histórias que ela não se tocava que me machucava e eu também não falava nada... Até que um dia o meu pai falou pra ela: “‘Minha filha’, você está contando um caso seu, mas que machuca ela!” O caso era assim: o pai dela obrigava ela a trabalhar muito e ela não tinha o direito de reclamar. Se um dente estivesse dolorido, não se tinha o direito de ir lá e consertar o dente. Aquilo tinha que apodrecer e cair pra lá. [Pausa] Tanto é que uma época a minha mãe infeccionou o canal de um dente que chegou de perfurar o rosto dela! Ela tem a cicatriz! [Pausa] Chegou a perfurar! E o pai dela não deixava ela procurar um médico. Até que isso deu uma febre muito forte que ela trincou [cerrou] os dentes! Ela não conseguia abrir a boca para comer, para beber... [Pausa] Chegou no limite! E o pai dela, muito rico (oh só pro cê vê!), não deixava ela ir ao médico. Aí quando chegou no limite do limite, que ele viu que não tinha recurso mais, que ia manchar o nome dele na sociedade... Imagina: filha de homem rico nessa situação! Aí ele deixou ela ir ao médico, mas também assim: para fazer o que fosse preciso com o menor preço possível! E tinha que ir e vir do médico debaixo de sol quente, a pé! Se desse hemorragia, que desse! É a pé e pronto! [Pausa] Então, assim, quando eu era menor, eles queriam passar isso para mim, a forma de criação deles. Mas eu nunca aceitei muito isso não. [Pausa] O que é isso, gente? Isso é um absurdo! Mas, assim, eles nunca quiseram que eu trabalhasse muito não. Mas, voltando ao assunto, quando ela [mãe] cresceu, estava numa faixa maior de idade, ela chegou para ele [pai] e falou assim: “Ô, pai, eu sou filha adotiva?” E o pai respondeu: “Não, por quê?” E ela disse: “Não, porque quando o filho é adotivo é que a gente judia. Por que o senhor judia tanto de mim?” [Pausa] Entendeu? Ela

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falava assim com ele, só que contava para mim. Ou seja, se judiassem de mim, eu tinha que aguentar porque eu sou adotiva. P: E você não falava nada? Não. Quando eu era pequena, havia mais conflito em relação a isso, sabe? Às vezes eles falavam coisas que me ofendiam e se eu tentasse responder ou tentasse conversar a respeito do problema, eles falavam comigo que não; que eu deveria ser muito agradecida a eles, porque se eu estivesse com a minha mãe lá em São João, talvez nem viva eu estaria. Eles me criaram com a mente o seguinte: eu tenho que viver agradecendo somente a eles porque foram eles que me deram a vida. Entendeu? Eles nunca entenderam que... independentemente deles terem me adotado, mesmo se eu morasse lá, eu não seria uma pessoa... como a minha mãe [consanguínea] é; que sempre teve filho sozinha, que eu ia levar esse tipo de vida. [Pausa] Quando eu era mais nova, eles pensavam assim. E até hoje; às vezes, eles pensam assim. Por exemplo: se eu fico nervosa com os meninos [os filhos] e digo: “Eu vou te dar uma coça [surra], menino!” Claro que eu não vou bater numa criança de um ano! Eles falam: “Não vai bater não! Ah se você for fazer igual a sua mãe fez, heim!” Entendeu? [Pausa] E às vezes isso me machuca. É igual eu falo com você: o sentimento de uma pessoa adotada é completamente diferente, porque uma criança normal, que não seja adotada, ela nunca vai passar por isso. Nunca. [...] Eu puxei a minha mãe [consanguínea]? Como? Se eu não convivi com ela e não sei como ela é. Eu puxei o meu pai [consanguíneo]? Também não sei, eu não convivi com ele. Então é igual eu falo com o meu marido: às vezes eu sou meio que sem identidade, porque eu sei quem é meu pai, eu sei quem é minha mãe, mas eu não sei quem sou. [Pausa] Porque eu não sei que tipo é minha mãe; se ela é brava, se ela é calma, o que ela pensa, como são os sentimentos dela... Eu não sei. Com o meu pai também, a mesma coisa. [Pausa] O pouco de tempo que eu convivi, eu entendo o seguinte: sou sentimentalista igual ao meu pai [consanguíneo]. Assim... Se você quer me ofender, é pelo sentimento, é pelo o que você fala. Se você me bater ou qualquer coisa, não tô nem aí! Agora, se você me falar alguma coisa que ofenda... Aí sim! Você vai me pegar pelo sentimento. Isso aí eu sei que eu puxei do meu pai porque ele realmente é assim. Agora, a minha mãe [consanguínea] não. A minha mãe já é mais fria. A minha mãe, ela é... mais dura, sabe? Mas eu também não sei se ela é assim desde sempre. Às vezes ela é assim porque a vida que ela teve tornou ela assim. Então é como eu te falei, eu não sei como falar se eu sou assim do jeito que sou porque eu puxei pai, puxei mãe ou puxei avó. Eu não sei. [Silêncio] P: E isso te incomoda? Às vezes sim. P: E no que você se apega? Nesses momentos em que você se sente sem identidade. Hoje eu me agarro nos meu filhos. Hoje eu formei a minha família, então hoje eu me agarro nos meus filhos. Entendeu? [...] Antes não. Antes eu ficava pra baixo, eu chorava muito... P: E você retrucava, reclamava de alguma coisa? Não, não. [Pausa] É igual eu te falei, sofro pelo sentimento. Porque, assim: não adianta você retrucar porque a pessoa que não é adotada, não importa o que eu vou dizer, ela nunca vai entender. Você está entendendo? Não adianta. Você pode explicar: é por isso, isso... Mas ela nunca vai entender porque não está nela. Ela é filha normal. Ela teve mãe, avó, avô... normal. Entendeu? [...]

4.12 – Casamento: eu tinha que me casar nova, mas com a pessoa que ele achasse certo

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Laura tem três anos de casada. O fato de ter se casado nova é reconhecido agora

como uma exigência dos pais, anterior à sua vontade. Sua narrativa aponta alguns indícios da

intenção de seu pai com o seu casamento. Mais tarde, conversando com Tãozim (e de modo

mais prolongado na segunda fase da pesquisa), suas críticas decorrentes da falta de ajuda

corroboram a intenção frustrada de fazer do futuro marido de Laura uma espécie de filho de

criação. P: Como é que você conheceu o seu marido? Você se casou nova, com 19 anos, seu pais aceitaram isso bem? Meus pais sempre foram loucos para que eu casasse novinha. Tinha que casar nova. É como eu estava te falando: na cabeça deles, eles tinham que me criar naquele regime deles. A minha mãe se casou nova, com 14 anos. Entendeu? Eles queriam me criar do modo deles. P: Como a sessenta anos atrás? Isso. Era daí que surgia o conflito. Como aquela questão do trabalho pesado. Eles queriam me criar na época deles. [...] Queriam que eu me casasse nova. P: Então o seu marido foi bem recebido. Foi, foi bem recebido. Mas era assim: eu tinha que me casar nova, mas com a pessoa que ele [pai adotivo] achasse certo. Então era assim: “esse aqui é bom para você casar, porque ele é trabalhador, é honesto...” Isso eu nunca aceitei, mas, para não criar conflito, eu despistava: “Não, não... Não tô a fim de me casar agora...” Entendeu? [Pausa] Me casei o com o meu marido porque eu realmente gostava dele. Entendeu? P: Foram seus pais que escolheram o seu marido? Não, não. Eu conheci ele primeiro e depois apresentei ele. Mas eles não gostaram dele de cara não! Porque ele foi criado no regime de hoje em dia; os pais dele pensam de forma diferente, são mais modernos, mais descontraídos, mais novos... A mãe do meu marido tem 42 anos. Então, o regime em que ele foi criado é um pouco diferente. Então é assim: já gerou conflito nessa área. Mas: “tá bom; já assumiu compromisso, quer casar, já é meio caminho andado!” Então é assim, eles tentam sempre moldar a situação.

4.15 – Dois núcleos familiares divergentes: conflitos Mesmo condescendente com as condições impostas, a pessoa escolhida por Laura

frustrou enormemente as intenções de seu pai. Apesar de viverem todos na mesma casa, são

dois núcleos familiares distintos e, não raro, divergentes: a família dos pais de Laura e a que

ela formou com o marido. Laura pertence aos dois, depende dos dois, por isso, fica no meio,

equilibrando a situação; recebendo o que vem de todos os lados, como um para-raios.

Os contextos sinalizados como conflituosos são exatamente os que singularizam

sua história de vida de filho de criação: a lacuna geracional entre ela e os pais, a interferência

dos pais no seu casamento e na sua maternidade e a proibição da continuação dos estudos

(como veremos melhor na segunda entrevista). A análise dos conflitos nos permite perceber

mecanismos de reprodução, mas também de resistência. Nota-se que, inicialmente, Laura

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assume as imposições como abnegações para evitar conflitos, tal como, culturalmente,

espera-se de um filho de criação. Com isso, consegue tempo e condições menos tensas para

alguma margem de manobra que reverta a situação ao seu favor. Por exemplo: com relação à

imposição do trabalho pesado desde à infância, eu não falava nada, eu ficava pra baixo, eu

chorava muito, mas eu nunca aceitei muito isso não; quanto ao casamento precoce e aos

pretendentes a marido que seu pai lhe apresentava, eu despistava: “não, não... Não tô a fim

de me casar agora...” para, finalmente, me casei o com o meu marido porque eu realmente

gostava dele, eu conheci ele primeiro e depois apresentei. Laura compreende esse jogo de

condutas de primeiro e segundo planos, de reprodução e resistência, respectivamente, como

uma arte de sobrevivência, infelizmente necessário, como veremos na segunda entrevista. P: E seu marido sempre aceitou bem essa situação [os pais “moldarem a situação”]? Não! Ele nunca aceitou bem! [Pausa] Nunca. [risos] Porque eu, eu já estou acostumada; tem 22 anos que eu convivo com isso. Eu falo pra ele: “Você, em três, não vai acostumar”. Às vezes isso gera conflito no meu casamento. E... assim... Às vezes eu penso em sair daqui e largar os dois sozinhos. E se acontecer qualquer coisa no dia de amanhã e eu me punir, entendeu? [Pausa] Porque não era para eu fazer isso. Mas aí eu penso: “Meu Deus! Mas se eu não sair, eu vou acabar com o meu casamento!” [...] Às vezes o problema é com nós dois, problemas do cotidiano, e eles se intrometem, querem dar opinião... Sabe? P: E o seu marido? Nossa! O meu marido fica “p da vida”! Mas ele reclama só comigo. Então é assim: eu sou o para-raios da casa, você tá entendendo? Eu recebo tudo! Eu recebo o que vem dos meus pais, eu recebo o que vem dele... Entende? [Pausa] Eu meio que sou o para-raios, meio que fico no meio, equilibrando: “calma fulano, não é bem assim...” Às vezes eu escuto coisas que vêm de lá [dos pais] que ofendem muito. Mas eu fico calada [...] Quando Laura se casou, já estava decidido que morariam na casa de seus pais,

uma precondição devido à idade avançada e à saúde frágil dos dois. Iniciados os conflitos

entre as duas famílias, Laura chegou a cogitar a ideia de se mudar com o marido e os filhos. A

obrigação de acompanhar o marido é algo que relativiza a obrigação de ajudar os pais, pois,

nesse contexto, mulher separada é um estigma. Contudo, os valores relativos à relação

pais/filhos adotivos projetaram em Laura arrependimento, prejuízo, punição, auto-punição e,

em seu marido, dó. Assim a ideia não se realizou e Laura vive um dilema: às vezes eu penso

em sair daqui e largar os dois sozinhos. E se acontecer qualquer coisa no dia de amanhã e eu

me punir, entendeu? [Pausa] Porque não era para eu fazer isso. Mas aí eu penso: “Meu

Deus! Mas se eu não sair, eu vou acabar com o meu casamento!” Ou então: porque pai e

mãe não dura para sempre, mas marido também não é parente, é um agregado, no dia de

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amanhã resolve se separar e aí? Para conseguir contornar e equilibrar a situação, Laura se

atém ao que considera seguro: seus filhos e a religião. P: E o seu marido aceitou bem [morar na casa dos sogros]? Aceitou, mas... assim: antes de a gente se casar, o comportamento dos meus pais era um pouco diferente. É assim: no início todo mundo vive num mar de flores, não é? Ele [o marido] não morava aqui, não sabia como era o negócio. “André (meu marido se chama André), você tem certeza que quer morar aqui? Porque se você não quiser e se seu tomei a decisão de me casar com você e se você quiser morar em outro lugar, a minha obrigação é morar em outro lugar com você.” [Pausa] Porque pai e mãe não dura para sempre. [Pausa] Marido também não é parente, é um agregado; no dia de amanhã resolve se separar, e aí? Não adiantou de nada! Mas ninguém se casa pensando em se separar, né? [risos] [...] É igual ele [marido] falou comigo um dia: “Eu vim morar aqui não por eles, tenho dó deles e tudo, mas eu vim morar aqui por você. Porque eu noto que a dó que eu tenho de você não é a mesma que eles têm. Porque às vezes eles falam coisas que te machucam muito e eles deveriam enxergar que não deveriam te falar. Então eu vim morar aqui por você e não por eles.” É como eu estava falando com você: eu sou meio que o para-raios da casa porque tenho que ficar no meio equilibrando a situação. Assim; ele [marido] já fez o favor de vir morar aqui para amenizar a situação porque sabe que eu tenho que ajudar eles [os pais], mas ele também não está conformado com a situação, porque os meus pais se intrometem onde não deveriam. [...] Eu me apego aos meus filhos para tentar despistar... Assim, para não ficar deprimida em relação aos meus sentimentos. Aí eu me apego aos meus filhos. Eu não tento moldar eles como os meus pais tentaram me moldar. Agora, quando o problema é maior, que não tem nada a ver com eles, aí eu me apego, realmente, na religião. É muito forte isso para mim.

4.16 – Convite para um café: conversa com os pais A entrevista estava no fim quando Graça abriu a porta da sala e perguntou se

ainda faltava muito, pois as crianças estavam impacientes. Assim concluímos e todos, exceto

Tãozim, vieram para a sala. Graça me ofereceu um café. Recusei e agradeci, mas ela insistiu.

Para não fazer desfeita, aceitei um copo d’água. Então ela fez questão que eu a acompanhasse

até a cozinha. Laura permaneceu na sala com as crianças e minha tia. O convite para o café

tratou-se de uma “eufemização prática” (BOURDIEU, 1980); enquanto me servia a água,

Graça baixou a voz e perguntou: Ela te respondeu tudo direitinho? Sem esperar pela resposta,

continuou: Ela te contou que ela nem liga pra nós? Que outro dia eu até passei mal da

pressão por causa dela? Parecia se tratar apenas de uma implicância senil, mas mudei de

ideia e aceitei o “café”.9

Graça me serviu lamentando a ingratidão e a falta de reconhecimento de Laura

depois de tudo o que fizeram por ela. Ressaltou que ela é muito nervosa porque puxou à mãe 9 Esta conversa não foi gravada. Reproduzi o diálogo em meu gravador tão logo cheguei à rua e deixei minha tia em casa.

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consanguínea. Graça parecia afoita para me contar a sua versão da relação com Laura; os

assuntos eram entrecortados e emendados um no outro e sua fala ágil denotava pressa e

revolta. Me chamou atenção o modo como frisou em vários momentos a “formalização do

acolhimento”, análogo à legalização de uma propriedade. Graça: Ela não gosta da roça. Se dependesse dela, ia embora e venderia toda nossa terra para comprar tudo em loja. Mas ela não pode fazer isso porque ela foi adotada direitinho, com papel no nome da gente. Ela é registrada no nosso nome, não pode fazer o que quiser, deve satisfação a nós. Ela não é agradecida a nós não. Ela tinha que agradecer muito a nós porque adoção é uma decisão! Nós não era obrigado a ficar com ela. Ela diz que não quer nada nosso, que nós pode levar nossa terra no caixão. Sem que eu percebesse, Tãozim escutava a nossa conversa de uma varanda

contígua à cozinha. Só me dei conta disto quando ele se levantou e veio até nós. Ao adentrar,

Graça adiantou ao marido: Ah! Tãozim... Ela [Laura] não contou nada de verdade pra moça.

Ela nem disse que outro dia eu passei mal por causa dela. Tãozim, já inteirado, entrou na

conversa preservando a voz baixa, mas desacelerando o ritmo. Com uma fala mansa e

assertiva, resumiu as queixas da esposa com a frase: A Laura mudou muito depois do

casamento. E prosseguiu: Tãozim: O marido dela não ajuda em nada. Outro dia eu estava com muita dor na coluna e, você sabe, né, minha filha, eu já fiz duas pontes safenas e não posso me esforçar muito. Pedi a ele que me ajudasse a tirar o leite das vacas, ele não ficou nem dez minutos e disse que já estava bom de leite, que não precisava de mais, que já estava cansado. Ele é muito desaforado, sabe? E danado na preguiça. Como Laura havia dito, seus sogros são mais novos do que seus pais, mais

modernos, e a incentivam a fazer coisas (trabalhar fora, estudar, passear, comprar roupas etc.)

que vão contra a sua criação. Laura entende como ciúmes as críticas do pai ao marido e à sua

família, de gente que não presta. De fato, Tãozim mostrou se sentir preterido pela vida

compartilhada de Laura com sua nova família. Apesar de contrariado, nada é dito de forma

agressiva ou requerido de modo explícito. Sua causa é induzida por uma sucessão de

perguntas retóricas. Tãozim: Você vê bem, minha filha: onde é que a Laura foi criada? Quem é que fez de tudo para ela? Então, onde é que tinha que ter sido feito o batizado dos meninos [filhos de Laura]? Nós nem fomos! Eles não queriam que nós fosse. Nem vieram buscar a gente. Só chamou a gente para ir almoçar lá, mas nós nem fomos! Disse a eles que ia visitar um conhecido nosso lá em L. [distrito de Bagre Bonito]. Seu descontentamento aparece na exaltação de tudo o que fizeram por Laura, nas

críticas ao marido e à sua família, nas queixas das doenças que os tornam dependentes de

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ajuda e sobretudo na indignação pela possibilidade de infração da retribuição do cuidado que

cabe ao filho de criação. A lamentação funciona simultaneamente como defesa e ataque,

como bem definiu Laura: a defesa deles é o ataque para [a] mim. De modo peculiar e

proposital, Tãozim consegue relativizar a lamentação com o humor; tanto as queixas como as

críticas são feitas sorrindo, às vezes achando graça da situação. É como uma pessoa muito

alegre, que não guarda raiva, que ele se apresenta. Alegria um tanto cáustica, talvez como,

novamente, Laura definiu: (...) de brincar, de tirar sarro das coisas que às vezes tem que ser

levadas a sério. Tãozim: Mas eu nem ligo mais para isso [o batizado]. Já esqueci. Eu sou muito alegre, não guardo raiva das pessoas. Eu costumo dizer que a vida muda, igual a gente quando está dormindo: nós não muda de lado? Então, a vida também. Quando os outros me perguntam como estou, eu digo sempre: “estou mudando”. Eu já tive chance de mostrar pra Laura que aquela gente não presta, mas não fiz por causa das crianças. Vai que ela fica muito nervosa e desconta nas crianças? Ela é nervosa igual à mãe [consanguínea] dela. Mas, também; nem precisou! Ela sozinha já está percebendo isso. Eu sei porque mando gente investigar ela... A ideia de participar de sócia lá naquela loja foi deles [da família do marido] e veja bem no que deu: Laura perdeu muito dinheiro com isso. Ela puxou o pai [consanguíneo] dela nessa ideia de loja. Aquilo pra mim não é homem não. Você vê bem, minha filha, ele nunca quis assumir ela, agora vem chorando querer ser pai? Tive a impressão, a partir do modo como me tratava e me atentando para o fato de

que tenho idade próxima à de Laura, de que Tãozim me colocou em posição de inferioridade

(filial, talvez) frente à sua sabedoria de vida. Com um tom paternal de ensinamento (me

chamando sempre de minha filha), tentou durante toda a conversa me convencer de sua razão.

Em momento algum desconfiei de outra intenção.

Tãozim: Eu acho que esse casamento não dura muito não. Eu queria saber se ela [Laura] já viu que eu tenho razão. Aí quando você chegou hoje aqui, eu pensei: foi Deus que mandou você aqui para eu saber das coisas! A iniciativa de me deixar a sós com Laura se explicou. Me desculpei dizendo que

a entrevista não abordara essas questões. Muito tranquilo e sempre sorridente, Tãozim aceitou

minha desculpa e não me fez mais perguntas, apenas reiterou que sempre manda gente

investigar a vida de Laura e por isso sabe que ela está percebendo que ele tem razão. Disse

ainda que acredita que as coisas vão mudar e voltar a ser como antes.

Bagre Bonito, 19 de janeiro de 2007.

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CAPÍTULO 5 - ANITA

Se fôssemos operar com categorizações teóricas, Anita poderia ser definida como

“agregada” ou “empregada doméstica”, esta com menos exatidão, pois nunca foi remunerada

de acordo e nem regulamentada. Porém, não é assim que seus conhecidos de Bagre Bonito a

reconhecem. Durante a etnografia, o seu nome foi muito lembrado, porém de modo inusitado;

em vez do costumeiro como se fosse da família, Anita era reconhecida como se fosse filha de

criação. Uma vez mais fui atraída pelo como se fosse. A inclusão de sua narrativa no formato

de “retrato” (LAHIRE, 2004), em vez de contextualmente, se justifica por dois motivos

comparativamente elucidativos: a aproximação nativa de sua posição familiar à de filha de

criação se deve ao regime de subserviência que a caracterizava, o que faz da servidão uma

característica primária da experiência filho de criação; além disto, sua história confirma um

“indício” apontado por Laura e sua família, tornando-o fundamental para a compreensão da

vida de filho de criação, qual seja, a necessidade do acolhimento ser realizado em tenra idade.

Anita não foi acolhida na infância (ela já tinha a cabeça formada) e, não por acaso, houve

rompimento com a família. Por não ter sido um rompimento nos moldes citados por Laura

(deu na louca de ir embora), o desfecho de sua história também é diferente.

Anita viveu a maior parte de sua vida na casa da família de Conceição

considerando-se como se fosse membro. Popularmente lembrada como o braço direito de

Conceição, foram trinta e cinco anos de cuidado da casa e da família, sem remuneração.

Quando nos encontramos, havia menos de um ano que morava sozinha. Fui até sua casa no

dia 20 de janeiro de 2007, acompanhada da minha mãe. Anita tinha, então, 58 anos. As rugas

e pintas que marcam sua pele negra, os cabelos grisalhos presos em uma pituca (coque

pequeno) e o modo casto de se vestir – rigorosamente de acordo com os preceitos de sua

ordem religiosa –, aumentam bastante a idade de sua aparência. Muito alegre e comunicativa,

refere-se amiúde aos mandamentos da Igreja10 que frequenta. Deixou o catolicismo há cerca

de dez anos e virou crente. Durante aproximadamente meia hora, conversamos sobre sua nova

vida com a saída da casa de Conceição, o que, de modo demasiado feliz, ela remeteu à

vontade de Deus. Marcamos a entrevista para o dia seguinte, um domingo, à tarde.

A casa em que Anita mora foi cedida por Conceição e seu esposo, Altair, e situa-

se na praça, centro da cidade, muito próxima à deles. 11 Os ex-patrões/família são

10 Recorri à capitular sempre que indicar religião. 11 Como mencionado no panorama etnográfico introdutório, configura uma “distinção” morar na praça devido ao processo de gentrificação que transformou a maioria dos imóveis em pontos comerciais.

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proprietários dos principais pontos comerciais situados na praça. Ao contrário da casa de

Conceição, a casa de Anita é de fundos e fica abaixo do nível da rua. Entre um

estabelecimento e outro, um beco em declive conduz à casa, geminada a outras duas (também

propriedades de Conceição e Altair) e a um depósito comercial, formando juntos o entorno de

um pequeno pátio compartilhado. Uma varandinha (aproximadamente dois metros

quadrados) cercada de grades até o teto guarda as duas portas de entrada, da sala e da cozinha.

O imóvel possui três quartos, dois banheiros, sala, cozinha e uma área de serviços. Tudo

estava extremamente limpo e bem arrumado, o chão de piso claro reluzia os móveis que Anita

comprou com seu próprio dinheiro e também os que ganhou de seus conhecidos como ajuda

no recomeço de sua vida. A entrevista aconteceu na cozinha e durou duas horas e vinte

minutos. Anita estava sozinha e me recebeu muito bem; chegou a preparar uma gelatina na

noite anterior para me oferecer.

5.1 – Eu não tive infância

Nascida na zona rural de Bagre Bonito, em uma localidade ainda hoje

economicamente bastante pobre, porém menos habitada, sua narrativa da infância corrobora a

narrativa coletiva e os estudos históricos da região (VALVERDE, 1958; PRATES, 1910)

sobre práticas que ficaram no passado, outras ainda atuais e outras ressignificadas ao longo do

tempo, tais como: as relações de pais e filhos, de gênero, o modo de criação/educação de

filhos e filhas, a economia familiar, a religiosidade etc. P: A senhora nasceu onde? Eu nasci na roça. P: Mas em uma roça aqui em Bagre Bonito? É. Eu nasci numa roça aqui de Bagre Bonito, mas quando eu tinha sete anos, nós mudamos para o Machado [outra região rural no mesmo município]. P: Moravam o seu pai, a sua mãe... É, meus pais, meus irmãos. P: A senhora tem quantos irmãos? Legítimos somos só nós três, mas por parte de pai eu tenho mais seis irmãos e por parte de mãe mais dois. A mamãe era viúva e o papai era viúvo. Ela já tinha dois filhos do primeiro casamento e ele mais seis. Mas, legítimos mesmo, somos só eu, a Elisa e a Antônia. P: E moravam todos juntos? Não, morávamos só meus pais e nós três. Os meus outros irmãos, quando eu nasci, eles já tinham ido embora para fora. [...] P: Quando a senhora morava com a sua família lá na roça, como era a sua vida, a sua relação com seus pais, suas irmãs, o seu dia a dia...? O dia a dia era na roça, plantando. Eu não tive infância. Com nove anos eu já fui para a enxada. Ali eu capinava, ajudava plantar, ajudava colher... À medida que eu fui crescendo

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também foi assim: era cada vez mais serviço. Eu fazia de tudo. [...] Eu trabalhei a minha vida toda, eu e minhas irmãs. Ajudávamos o meu pai na roça e depois a minha mãe em casa. A minha mãe tinha problema de pressão, então ela só fazia a comida, nem levar a comida na roça para a gente ela podia levar. [...] P: E o seu pai? Meu pai também era trabalhador de roça. Passava o dia inteiro na roça. Fazia forro de casa, de taquara, sabe? Eu ajudei ele muito! Ele tecia de um lado, eu de outro. A gente trabalhava na roça, mas também fazia essas coisas, sabe? [...] P: E todos trabalhavam igual lá na roça? É. Mas aos poucos os homens foram saindo... P: E eles saíram por quê? Ah, porque queriam ganhar a vida, né? “Ah! Não vou ficar na roça não!” P: Os homens saíam mais do que as mulheres? Saíam, saíam mais do que as mulheres. As mulheres só saíam casadas. [...] P: Como era a relação do seu pai com a sua mãe? Era boa, era boa... P: E como era a educação que eles davam para vocês, porque a educação de antigamente era muito diferente, né? Ah, era! Ó [olha], eu só fui registrada em 1970. Até 1970 eu não existia, né? Porque só existe quem é registrado. Eu mesma registrei eu. Papai não registrava filho nenhum. Escola ele nunca deu. Só a mais nova, a Antônia, é que estudou um pouquinho, porque a minha mãe disse que ao menos uma tinha que saber ler. P: Isso partiu da sua mãe? Foi, foi da minha mãe. Ela disse: “ao menos uma”. Aí a Antônia estudou até o quarto ano. Os outros filhos [da parte do pai] aprenderam ler depois de velhos, com as muié [esposas]. Eu hoje sei ler muito; aprendi na bíblia, foi Deus que me deu. [...] P: E quando vocês faziam alguma coisa errada? Aí era só no olhar! De primeiro era só no olhar! Olhava e a gente já corria, senão apanhava! P: Era esse tipo de educação? Era esse tipo. Meu pai batia muito na gente. Vamos supor, se ele estivesse pregando um prego numa cerca, ele falava: “Ô, Anita, pega o prego para mim que está em cima da geladeira”. Mas eu olhava e não estava, aí eu chegava para falar com ele que não estava lá, a resposta dele era um pescoção [murro, pancada com a mão]! Aí, lá um belo dia, a minha mãe respondeu a ele de verdade! Nunca esqueci! Ele falou assim para mim, eu tinha uns dez anos: “Pega os pregos para mim que está em tal lugar”. Aí eu falei: “Ô, mãe, ele falou que os pregos estavam lá e não estão... Eu tô com medo de apanhar”. Ela falou assim: “Hoje vai ser diferente! Eu estou aguardando o seu pai: se não estiver no lugar que ele falou, eu que vou levar a resposta para ele”. Aí ela foi lá e viu que não estava. Aí ela foi lá: “Eu vim pra falar com cê que não está em nenhum lugar que você falou. Vai lá você e eu quero ver você achar no lugar que você falou!” P: E ele? Aí ele foi lá olhou e não estava. Aí ele falou: “Uai! Mas eu pus aqui!” Aí a minha mãe falou com ele: “Você fala o lugar errado e ainda bate nelas! De hoje em diante você não põe mais a mão nas meninas”. Eu achei isso certo. P: Você admira a sua mãe? Admiro muito! Ela é uma mulher maravilhosa! Não estou me gabando não, mas a única que puxou a mamãe fui eu. Eu pareço muito. Meus irmãos mais velhos chegam aqui e dizem: “Você é a mamãe pura!” Até na bondade, até nos outros pisar... Os outros

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pisavam, pisavam nela e ela estava sempre feliz. A mesma coisa é eu: os outros pisa, pisa, pisa, pisa, eu estou sempre feliz. Eu puxei isso dela. P: Você acha isso bom? Acho bom, é de pessoa boa, coração bom. É... é bom. Todo mundo gostava dela e todo mundo gosta de mim. [...] P: E a sua mãe, ela ainda é viva? Não. Tem cinco anos que ela morreu. Ela morreu com oitenta e nove anos. [...]

5.2 – Conversão religiosa Anita nunca frequentou uma escola, aprendeu a ler sozinha há apenas quatro anos;

ou melhor, sozinha não, Deus me deu. O excerto abaixo altera um pouco a ordem dos

acontecimentos, mas preserva a ordem narrativa. É importante mantê-la porque compreender

sua religiosidade nos ajuda a contextualizar o que virá a seguir. A influência religiosa é

marcante em todas as esferas de sua vida. Embora tenha mudado de religião há relativo pouco

tempo, a narrativa de seu passado passa pelo crivo do seu olhar atual, substituindo o viés

reflexivo pelo de adequação. É importante destacar que a relação personificada com Deus, as

curas religiosas, as premonições e sobretudo a valorização religiosa do sofrimento que

caracterizam sua religião atual não são, entretanto, estranhas à sua religião anterior. P: Mas como a senhora aprendeu [a ler]? Sozinha? Não, foi Deus que me deu. Eu pedia a ele todo dia. Eu pegava a bíblia e algumas letras eu já conhecia, só que eu não sabia juntar. Eu falava: “Ô, meu Deus, eu queria tanto ler...”. Aí eu ia tentando e as palavras que eu não conseguia eu perguntava aos outros. Todos os dias eu clamava de joelhos nas minhas orações: “eu queria saber ler a Sua palavra”. Às vezes os outros até riam de mim por trás. Mas eu queria saber ler. Só a bíblia, não precisa saber ler outra coisa não, só a bíblia já estava bom. E foi assim: eu lia e depois pedia para a Conceição ler para mim. Eu falava assim: “veja se isso aqui está certo”. Sempre eu pedia para a Conceição, mas ela não gostava não. Ah.... ela não gostava! [...] P: E os seus pais eram religiosos? A minha mãe era, o meu pai não era muito não... Ah, não! Papai também era, porque ele era até rezador! P: Como assim, rezador? Ele benzia? É, ele benzia e rezava. Além dele benzer, ele era rezador, rezava na casa dos outros, fazia novenas... Os outros pediam e ele rezava. P: Por quê? Ele era “diferente”? Ah... ele tinha esse dom! Os outros pediam para ele rezar, para fazer novena... E nós crescemos ali junto, rezando também. [...] P: E qual era a religião dos seus pais? Era católica. P: Ah, então a senhora foi educada com a religião católica?

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É, mas já tem dez anos que eu sou crente. Não, tem mais... Só que eu batizei tem oito anos, mas antes de batizar, eu vivi três anos na crença... ia lá nos crentes, assistia culto... [...] P: E qual é a sua religião? A sua Igreja? A minha Igreja é a Assembleia de Deus. Eu congregava em São João, não era aqui não. Mas, foi indo, ficou difícil para mim ir para lá, né? Congregar lá. Mas foi bom! Deus começou a mandar os vasos daqui trazer o recado para mim (as pessoas mais antigas na Igreja, nós fala “vaso”, né?) que aqui não era o meu lugar, que eu tinha muito que aprender. E os vasos traziam o recado para mim, sabe? P: Recado de quem? De Deus. “Deus manda te falar”, porque Deus usa as pessoas, né?, “manda te falar que o lugar onde você está congregando não é o seu lugar. Seu lugar é com os irmãos. Lá eles vão te receber de braços abertos e vão te ensinar muito, você vai aprender muito”. [...] Aqui eu fiquei um ano. Aí eu fui num encontro lá em Teresópolis e na volta eu parei em São João. Aí o bispo da Igreja de São João [...] virou para mim e falou: “Ó [olha], Deus mandou te falar para você parar de teimar. Você já teimou muito! Seu lugar é aqui, onde você está”. Meu lugar era lá. Aí eu falei: “Ah... quer saber de uma coisa? Eu não vou mais teimar, eu vou!”. Aí eu fui. Eu ia segunda e terça. Quando eu podia, eu dormia lá na terça, porque eu saía daqui às seis horas [18h] e o culto terminava tarde. Aí eu dormia na casa de uma irmã [da Igreja] que mora lá perto. Mas quando eu não podia, eu ficava esperando o ônibus que passava lá onze e meia [23:30]. E assim foi durante quatro anos e meio. Eu congreguei lá, numa igreja grande, de dois andar...

5.3 – Como se fosse da família Aos 22 anos, logo após a morte de seu pai, Anita, sua mãe e uma irmã se

mudaram para a zona urbana. A passagem a seguir é central, posto que condensa sua vida

toda; modo como ela se refere aos trinta e cinco anos de convivência com a família de

Conceição. É notório um vai e vem narrativo entre antes e depois de sua conversão religiosa.

Em grande parte, isto se deve à minha insistência nos retornos (“e antes da senhora se

converter a esta religião?), na tentativa de acessar seu passado menos ressignificado pela

oratória religiosa atual. A conversão religiosa de Anita pode ser lida como uma “ruptura

biográfica” (LAHIRE, 2010), de tal modo que ela tem dificuldade de voltar ao passado

anterior sem desfigurá-lo. Todavia, sua narrativa é muito rica e nos ajuda a compreender por

que ela é reconhecida como se fosse filha de criação. Gostaria de chamar atenção para alguns

pontos: o modo “desfamiliarizado” com que ela percebe a sua situação inicial na zona urbana

(comecei a ficar na casa dos outros), o que nos revela a interdependência entre coabitação e

consideração (de ser como se fosse da família); a consciência de sua importância e

dependência dos patrões de seus serviços, implícita na estratégia utilizada (alusão a voltar

para a roça) para obter uma proposta de coabitação; a mudança em coabitação para a casa de

Conceição e, com isso, as ambiguidades de sua posição no núcleo familiar – resultando em

sobrecarga de trabalho por acúmulo de funções, em transformação do trabalho em cuidado e

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em comprometimento da relação trabalhista (Não pagava, mas eu precisava!; Não aceitei

[pagamento], eu olhei esse menino porque eu tenho ele como meu neto!) – e, finalmente, para

o modo como a autoestima resultante de seu dom religioso interferiu na relação familiar,

ampliando sua posição na casa (para além da cozinha) e na família (de cuidadora a

curadora).

P: Então, quando a senhora tinha sete anos, a sua família saiu da região onde vocês nasceram? É. Mudamos eu, meus pais e minhas irmãs. Lá nós ficamos até quando eu tinha vinte e dois anos, depois nós mudamos para a rua [zona urbana]. E aqui eu estou até hoje... Tem mais de quarenta anos que eu moro aqui. P: Mudaram todos? A senhora, seus pais, suas irmãs? Não, não. Papai já tinha morrido. A minha irmã mais velha já tinha casado. Mudamos eu, minha irmã e a minha mãe. E aí eu comecei a ficar na casa dos outros. P: Como assim? Assim, trabalhando e ficando na casa dos outros durante o dia e à noite na casa da minha irmã Antônia. A minha mãe morava com a Antônia, ela tinha casa. P: E a Elisa, a outra irmã? A Elisa dormia onde ela trabalhava. Ela não tinha casado ainda. Aí eu passava o dia trabalhando e à noite ia dormir na Antônia. Até que um dia deu uma confusãozinha lá e eu falei: “Você quer saber de uma coisa? Eu vou dormir onde eu trabalho!” Eu não tenho casa... né? Aí eu falei com os meus patrões que estava decidida a voltar para a roça, aí eles falaram: “Mas por quê?” Eu falei: “Ah, porque eu não tenho casa...” Aí eles falaram: “Uai! Então fica aqui!” Aí eu fiquei lá um ano e depois saí e vim para a Conceição. E na Conceição eu fiquei minha vida toda, saí agora, tem menos de um ano. Eles eram a minha família mesmo. Eu tinha eles como a minha família, de verdade. P: A senhora ficou então uns trinta anos lá na Conceição? Mais de trinta anos! Quando eu fui para lá, o Lucas, o filho mais velho dela, não tinha nem nascido. Aí eu trabalhava e tomava conta dele. E foi assim com os outros, Rodrigo e Leonardo, eu vi gerar, vi nascer e criei. Até do netinho deles quando nasceu, era eu quem tomava conta. [...] P: Como era a relação de vocês? Ah, ela confiava muito em mim! Tudo era por minha conta. Tudo, tudo. P: E a senhora fazia de tudo lá? De tudo! Não tinha máquina [de lavar roupas], não tinha tanquinho [outro tipo de máquina de lavar roupas]... Era tudo aqui, ó: na mão! Há pouco tempo ela [Conceição] comprou um tanquinho, aí quebrou bem o galho. Mas antes era tudo na mão. Eu arrumava a casa, fazia o almoço, lavava a roupa; tudo com os três meninos aqui, ó: grudados [na barra da saia]! Ainda tinha que fazer muita comida, muito café... por causa dos pedreiros [os patrões têm uma espécie de construtora]. A Conceição dava aula de manhã e à tarde ela ficava na padaria. P: Então eles são uma família que tem posses, né? Tem, tem... Aquele hotel ali é deles, a padaria é deles, a pizzaria, aquelas casas ali depois da fábrica são todas deles, aquele prédio aqui na praça é deles, muitas terras na roça... Graças a Deus, eles estão bem! P: É uma família conhecida, né?

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É! Família Cardoso, gente muito conhecida. P: A senhora era tratada como se fosse da família? É, como se eu fosse da família! Era tudo direitinho! Meu quarto era dentro de casa, eu dormia de porta aberta. Ninguém lá trancava a porta... Eles iam passar o natal na praia e me levavam. Não porque eu queria, mas porque eu sabia que a Conceição não ia dar conta sozinha daqueles meninos levados na praia. Eles não obedeciam ela! Aí eu ia para tomar conta deles, fazer o almoço para quando eles voltassem da praia, lavar a roupa deles... Na praia mesmo, eu ia nada. Mas ela [Conceição] falava comigo: “Depois eu tomo conta dos meninos para você ir um pouquinho na praia”. Mas eu que não queria; eu já tinha ido com eles, né? P: A senhora se sentava à mesa com eles? Não, porque não dava tempo. Quando os meninos eram menores, eu dava a comida para eles enquanto eles [os patrões] almoçavam. Depois, quando eles cresceram, na mesa não me cabia, porque eles eram em cinco. Então eu ficava limpando o fogão para adiantar. Depois eu sentava e comia. P: A senhora era o “braço direito” dela, né, dona Anita? O braço direito! Tudo aqueles meninos falavam comigo. O Lucas estava estudando no estado do Rio, aí o telefone tocou, a mãe dele atendeu e ele falou assim: “Passa para a Anita, mãe”. Eu estava lá na cozinha, sequei a mão e atendi. Ele falou assim comigo: “Ô, Anita, eu estou passando muito mal e tenho que fazer uma prova, mas eu não estou aguentando de tanta dor. Mas eu preciso passar nessa prova”. Eu falei: “Ô, meu filho, você está nervoso. Ó [olha], eu vou orar pro cê. Eu vou terminar de falar com você e vou entrar para o quarto e vou orar pedindo para você melhorar e fazer boa prova. Logo você liga, fala com a sua mãe e ela fala comigo se você melhorou, se fez boa prova”. Isso era mais ou menos meio dia. Eu falei com ele: “Você pode crer; eu vou orar para você e você vai melhorar e vai fazer uma boa prova. Fica com Deus!” Fui para o quarto, fechei a porta, fechei a janela e fiquei quietinha lá orando. Cinco horas da tarde o telefone tocou, era ele: “Chama a Anita lá!” A mãe dele falou: “Tudo você chama a Anita! Pode falar comigo.” Ele disse: “A senhora não acredita, mãe. Então não resolve nada.” Eu perguntei: “Sarou meu filho?” Ele disse: “Sarei. Acabou a dor. Eu acreditei e melhorei.” Eu falei: “Tem que crer em Deus. Ele é vida! Ele é quem cura nós. Ele ensina a palavra na bíblia e cura nós.” Aí a Conceição começou a reclamar que eu estava falando muito e ia ficar cara a ligação. Ela é meio miserável, sabe? Mas ela estava era com ciúme... [...] [...] P: E antes de você se converter para essa religião, como você era? Como era o dia a dia de vocês? Eu vivia bem também. A gente nunca brigava, nunca! Nunca discutimos. Tinha dia que a gente ia para o terreiro brincar de queimada com os meninos... Brincava de um monte de coisas! Era assim... Era uma relação muito boa. Eu sentia mesmo, assim, que era minha família. A casa era minha. Quando eles viajavam a casa era minha; eu ficava muito à vontade. Eu tomava conta do hotel, ia lá na padaria para ver se estava tudo certinho... Eles chegavam e eu dava o dinheiro tudo direitinho. Nunca mexi em nada, nunca! P: O que a senhora fazia quando terminava o seu serviço? Nos fins de semana...? Ah, nos finais de semana, quando eu terminava meu serviço, eu trabalhava lá na pizzaria deles. P: Ah, além do seu serviço, a senhora trabalhava na pizzaria? Trabalhava. Mas lá eles me pagavam dez reais por final de semana. P: Então a senhora não tinha nenhum divertimento? Ah, quando tinha festa eu ia, mas não bebo nada de álcool, nem refrigerante. Só quando tinha algum casamento é que eu bebia refrigerante.

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P: Como é aquele negócio que a senhora estava comentando aquele dia com a minha mãe, de que o seu patrão pedia para colocar as coisas no nome da senhora? Ah, é. Pedia. Ele confiava tanto em mim, porque ele já me conhecia e sabia que eu era uma pessoa do bem, que não mexia em nada, que ele colocava as coisas no meu nome quando ele precisava. Aquele prédio ali na praça ficou no meu nome um bom tempo, mais de cinco anos. Quando ele não precisou mais, ele trouxe os papéis para mim assinar a desistência, tudo direitinho. Eu só falava para ele que eu não queria que aquilo prejudicasse eu na minha aposentadoria, só isso. Fui lá, assinei tudo, sem criar caso. Sempre foi assim. Para depois, até hoje eu não sei por que, ela [Conceição] brigar comigo. P: Eles te pagavam o salário direitinho? Não. Eles nunca me pagaram salário. [Silêncio] É... As pessoas falavam comigo que eu era muito boba. P: Tudo era por sua conta e a senhora não recebia? Não, eu não recebia salário, mas eles me davam dinheiro se eu precisasse. Às vezes me davam cinquenta reais, às vezes sessenta... era assim. Ela [Conceição] falava comigo que não me pagava, mas que se preocupava com a minha aposentadoria. Ela dizia que quando chegasse na época de me aposentar, ela ia pagar o INPS para eu aposentar com uns dois salários, para eu poder comprar meus remédios, pagar um médico direitinho se eu precisasse... Mas ela não pagou. P: E como a senhora fez para aposentar? Foi por tempo de serviço. [...] E a Margarida, minha vizinha, trabalhava lá dentro do INPS. Aí eu conversei com ela [...]. Aí ela chegou e falou: “Ó [olha], Anita, quando você tiver cinquenta e sete anos, eu te aposento”. E foi assim. P: Como a senhora fez para comprovar que trabalhou lá trinta anos? Porque a carteira ela [Conceição] assinava. P: Mesmo sem a senhora receber? Mesmo sem eu receber, na minha carteira tinha salário. P: E é uma família de posses, né? É, eles tem muitas casas, muitas terras na roça, tem o hotel, a padaria, a pizzaria... Graças a Deus, eles estão bem. Em 2004 eles me pagaram meu primeiro salário, mas foi só esse. P: E a senhora acha que é por quê? Por que uma família com tanto dinheiro não te pagava direito? Ah... miséria. Eu acho que é miséria. P: Será que é porque eles pensavam que a senhora não precisava, já que tinha casa, comida... É, mas eu precisava! [Silêncio] É. [Silêncio] Mas eles não pensaram nisso. Eu acho que quanto mais eles tinham, mais eles queriam ter. P: E a senhora nunca reclamou? Não. E nunca pedi ajuda. Nunca pedi dinheiro a ela. Se alguém falar que eu pedi, é mentira. Deus está vendo! Nunca pedi! P: Em que ano a senhora se aposentou? Foi em setembro de 2005. [...] P: Então a senhora viu todos eles nascerem... Vi. Vi eles todos nascer, minha filha. Os dois mais novos eu vi gerar! O Lucas eu não vi gerar; quando eu fui para lá, a Conceição já estava grávida, daí quinze dias depois que eu cheguei, o Lucas nasceu. Mas os outros dois, não; eu vi gerar, vi crescer nos nove meses, vi nascer e criei. [Silêncio] Fui eu que criei!

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[...] P: A senhora os tem como filhos, né? Tenho! Como filhos! Todos eles! O Rodrigo é o mais levado deles, sempre foi. Ele me pisa... mas eu tenho ele como meu filho. P: Ele é o mais novo? Não, o mais novo formou agora. Acabou de formar e ficou noivo, tem vinte e dois anos. O Rodrigo é o do meio. Ele é casado e tem um filho com três anos já. A moça casou grávida. [...] P: A senhora falou que ele (Rodrigo) te pisa, como assim? Me pisa! Assim, ele tomou o filho dele de mim... Ignorância! Era eu quem olhava o filho dele também, desde que nasceu. Aí um dia eu falei assim com a esposa dele: “Eu vou dar um pulinho ali na rodoviária [que fica no outro lado da rua] e já volto.” Ela falou: “Tudo bem!” Mas antes que eu saísse, ele falou: “Não vai não! Você só sai daqui depois das cinco.” Eu falei com ele: “Como é que é?” E ele repetiu: “Você só vai depois das cinco.” Eu olhei assim para ele, ele olhou assim para mim... Eu olhei para o relógio e fiquei calada. P: A senhora não respondeu? Não, nunca. Eu olhei pro relógio e fiquei calada. Se eu falasse alguma coisa naquela hora, podia dar briga. Aí eu saí, sabe? Fiquei uns cinco minutos lá fora, voltei e falei: “Ó [olha], Rodrigo, depois nós vamos conversar. Eu quero falar com você, mas depois, tá?” Aí quando deu cinco horas eu fui até ele e falei: “Agora nós vamos conversar.” Ele nem ligou e saiu. Eu falei: “Ô, Rodrigo, vem aqui! Nós vamos conversar!” Mas ele não voltou. Aí no outro dia ele não mandou o menino mais. P: Ele trabalhava? Trabalha. De dia ele trabalha lá no serviço dele, à noite ele fica no hotel [do pai dele]. Aí a mulher dele veio até me trazer dinheiro, mas eu não aceitei: “Não! Eu olhei esse menino porque eu tenho ele como meu neto!” Mas aí eu falei com ela: “Ó [olha]: se esse menino aguar [sentir, se abater, adoecer pelo sentimento], eu ponho ele [Rodrigo] na cadeia!” Porque o menino já estava muito acostumado comigo. Ele ficava o dia inteiro comigo. Eu dava banho nele, dava comida... Arrumava leite com Nescau, comprava aquele biscoito de chocolate, sabe? Ele comia um pacote daquele! Eu lavava a roupinha dele. [...] À tarde eu forrava um lençol no chão e ficava brincando com ele... Puxava ele pela casa toda... Ih! Ele adorava! Aí eu falei: “Você pode falar com ele! Ele não quis nem me ouvir... E se eu tiver que brigar com ele, eu brigo; porque eu tenho ele como meu filho. Você dá o recado pra ele! Fala pra ele cuidar desse menino direito porque se ele aguar, eu ponho ele na cadeia! Ele vai ver!” Eu mandei falar daquele jeito mesmo. Precisava ele tirar o menino de mim? Se ele não gostou de alguma coisa, brigasse comigo, mas o menino não tinha nada a ver com isso. [...] Eu mandei ela falar mesmo! O menino não aguou não, mas adoeceu. Eu fui lá ver. Ele [Rodrigo] ficou morrendo de medo de eu falar que a doença dele [da criança] era de sentimento. Ficou lá de costas, nem olhou pra mim direito. Mas eu não falei nada não. Se eu falasse alguma coisa, ia esquentar, né? Então eu deixei pra lá. Mas que o menino adoeceu, adoeceu. Eu cheguei lá e perguntei: “O quê que o menino tem?” A mãe dele falou assim: “Ah... ele está com febre.” Aí eu falei: “Esse menino está muito miúdo, heim? Se ele afundar os olhos, é porque está aguado!” Aí ele [Rodrigo] falou: “Ah! Não sabia que você era médica!” Ele falou comigo. Eu falei: “Eu sou a mió [melhor] médica do mundo! Cê não sabia? Você não sabe porque tirou o menino de mim. Eu sou a mió médica!” Mas aí eu não falei mais nada, para evitar briga. [...] Um dia eles passaram de carro e o menino me viu, começou chorar e ele nem parou. Aí a minha vizinha disse: “Ele tem ciúme do menino gostar de você.” Mas o ciúme não é de Deus.

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Você pode acreditar! Onde existe ciúme, o demônio está ali; porque o demônio gosta de briga. Deus gosta de briga? Não! O ciúme é do demônio. P: A senhora recebia para tomar conta do menino? Não! Eu olhei esse menino porque eu tenho ele como meu neto!

5.4 – Vida familiar X vida religiosa Como mencionado, a relação de Anita com aqueles considerados sua família

mesmo se transformou depois de sua conversão religiosa. A gente não tem que olhar pai nem

mãe. Porque a bíblia diz: “Aquele que deixar o pai, a mãe e os filhos para poder ir para o

meu amor, esse é digno de mim”. Os mandamentos religiosos passaram a regê-la e a legitimar

suas ações. Seu dom transcendeu sua posição indefinida, conferindo-lhe autoestima e

expressão. No âmbito familiar, gerou conflitos, ciúmes e sobrecarga, tornando cada vez mais

difícil conciliar obrigações domésticas e obrigações religiosas. Interiormente, os conflitos

despertaram antigas angústias, compartilhadas apenas com Deus e com alguns irmãos de fé:

Senhor, eu ainda não tenho a minha casa... Socialmente, Anita, que já contava com o

reconhecimento social de sua servidão e bondade, passou a ter a palavra requisitada; sua voz,

até então inaudita, se transformou em fonte de orientação, de premunições e de proselitismo. P: A família com quem a senhora morava também era crente? Não! Não eram não. P: E como eles lidaram com isso? Aceitaram bem? Ih... não! Foi difícil! Eles brigavam... Eles falavam: “Ah... deve tá faltando serviço pra você! Fica largando o serviço para ir para a igreja...” Aí eu falava: “Nada, bobo! Eu já trabaiei muito... Já fiz tudo!” Eu toda a vida acordei cedo, sabe? Mas nos dias que eu ia para a igreja [no município vizinho], eu acordava mais cedo; ia buscar água para fazer o café, arrumava a casa, fazia o almoço, fazia tudo, arrumava a cozinha, tomava um banho e ia. Eles não gostava não. Os meninos falavam: “Ah! Isso é bobeira sua! Aqui tem igreja...” Eu dizia: “Tem, mas a minha é lá, uai!” E foi assim quatro anos e meio. Mas quando você começa a ir na igreja, Deus começa a usar os vasos lá; e nisso você pode acreditar: Deus usa as pessoas! Aquele que se pega com Ele de verdade, que não teima com Ele, que segue todos os mandamentos da Igreja direitinho, Deus usa. Deus já me usou para ajudar a curar. P: É mesmo? É! Eu estava dormindo e aí eu acordei com o Lucas [Anita bate na mesa simulando batidas na porta]. Eu nunca tranquei a porta do quarto, mas os meninos sempre batiam antes de entrar. Toda vez que algum deles passava mal, era eu quem eles procurava. Aí eu falei com o Lucas: “Entra fio, tá aberto!” Ele já era grande já, mas qualquer coisa que acontecia, ele me procurava. Aí ele disse: “Ô, Anita, eu tô com uma dor aqui na barriga e tá doendo demais!” Aí eu falei: “Deita aqui que eu vou orar pra você.” Aí eu forrei a cama com um lençol limpinho (o meu estava limpo, mas eu não gosto que os outros deitem em lençol usado). Aí ele disse: “Eu não chamei a minha mãe porque ela não resolve nada.” Aí eu falei: “Esquece a sua mãe, ela está dormindo. Deita aí!” Aí eu ajoelhei no chão perto da cama, fui esfregando a barriga dele e fui orando, fui esfregando e fui orando, fui esfregando e fui orando... E a dor passou. Aí ele dormiu, mas eu não acordei não. Aí eu peguei uma almofada da sala, sentei no chão do meu quarto, abri a

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bíblia e fiquei lendo. Isso era duas horas da manhã, eu fiquei ali lendo até as seis da manhã. [...] Aí quando deu seis horas eu falei: “Bom, já está na hora de coar o café.” Aí levantei, lavei o rosto... e estava todo mundo dormindo. A Conceição não viu nada. Ela tem o sono pesado, pode fazer movimento que ela não acorda. Aí eu estava na cozinha, a Conceição chegou e disse: “Ué, Anita! O Lucas não está no quarto dele! Onde ele foi?” Aí eu falei: “O Lucas está no meu quarto. Aconteceu assim, assim, assim... ele estava com muita dor, foi lá e me pediu para eu orar ele. Aí eu fui orando e fui esfregando e a dor passou, mas aí ele dormiu.” Aí ela disse: “E por que ele não foi dormir na cama dele?” Aí eu falei: “Ah... porque eu não quis acordar ele.” P: E ela acreditava nas suas orações? Ela não acreditava muito não, mas quando era com um filho dela, ela não acreditava muito não, mas ficava balanceada. [...] [...] P: Deus é muito presente na sua vida, né? Graças a Deus! Tudo o que eu sei foi Deus. Tudo o que é meu é de Deus, porque foi Ele que me deu com as minhas orações. Eu pedi e Ele me atendeu com a sua misericórdia. Tudo o que é meu, é Dele. É igual eu estava te falando, Deus usa a gente para dar recado. Um dia, Ele me chamou para levar um recado para uma moça daqui que estava com câncer. Ele falou comigo até as palavras. Eu falei: “Ué, Senhor, o que o Senhor quer comigo?” P: Você estava acordada? É, acordada. Ele me acordou, eu estava dormindo. Ele falou: “Ó [olha]: leva a palavra para a Eva, para aquela lá que está doente. Leva para ela um consolo. Lê para ela o João 14 e canta para ela um cântico.” Eu falei: “Tá, pode deixar! Hoje mesmo, agora mesmo o dia amanhece e eu vou.” Aí levantei, coei café e falei com a Conceição: “Eu vou lá na rua Nova [nome popular da rua] porque Deus falou pra mim ir lá hoje levar essa palavra para a Eva.” P: E ela? Ela ficou me olhando... Mas ela não falou nada não. Aí eu estava indo levar a palavra e encontrei no caminho com uma conhecida minha e ela me perguntou: “Onde ocê lá vai?” E eu falei: “Na casa da Eva. Deus mandou eu dar um recado pra ela.” Aí ela me falou: “Ah, Anita, eu tinha uma vontade de ouvir a palavra de Deus...” Aí Deus falou: “Sossega!” E eu fiquei ali conversando com ela, li Mateus para ela. E ela me disse: “Ah! Eu gosto tanto de ouvir a palavra de Deus!” Aí eu falei: “Por que você não vai [à igreja]?” Ela disse: “Ah, porque meu pai não vai.” Eu falei: “A gente não tem que olhar pai nem mãe.” Porque a bíblia diz: “Aquele que deixar o pai, a mãe e os filhos para poder ir para o meu amor, esse é digno de mim.” Né? Porque Deus fala: aquele que largar pai e mãe para ficar do lado Dele, esse é digno Dele. Fiquei conversando ali com ela toda vida e deu nove e meia da manhã. P: E você não tinha ainda levado o recado para a Eva? Não, porque eu encontrei com ela ali e às vezes era para eu ficar ali, né? Porque ela falou comigo daquele jeito... né? Aí eu falei: “Ô, meu Deus, já deu nove e meia... Até eu ir lá na rua Nova, levar o recado num galope e voltar, não vai dar tempo, porque eu tenho que aprontar o almoço. Eu vou para a casa e depois que eu arrumar a cozinha, eu vou.” P: É... porque você tinha as suas obrigações, né? É, na casa da Conceição. Aí eu falei: faço o almoço, arrumo a cozinha e vou. Eu tinha que ter ficado ali porque ela quis ouvir a palavra, né? Aí voltei. Aí, quando eu estava voltando, encontrei com uma “irmã”. Ela falou assim: “Oi, irmã! Lê para mim a palavra, irmã?” Aí nós ficamos conversando ali e bateu [no relógio da igreja] dez horas. Nós ficamos ali meia hora conversando! Aí bateu dez horas e eu falei assim: “Ô, irmã, vamos

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comigo lá pra casa, porque eu tenho que começar o almoço. Eu vou fazendo o almoço e nós vamos conversando.” Aí ela falou: “Ô, irmã, eu também preciso fazer o almoço, mas eu também precisava ouvir a palavra.” Aí eu falei com ela que à tarde nós conversava tudo o que ela precisasse. E fui para casa, coloquei o arroz no fogo, que eu já tinha deixado lavado, fui fazendo o almoço, arrumando a cozinha e conversando com Deus: “Ô, meu Deus, eu não fui porque essas duas que me parou precisavam ouvir a palavra e depois eu tinha que fazer o almoço. Eu ainda não tenho a minha casa...”. Aí terminei e fui lá na rua Nova. Aí fui chegando e falando: “Tá chegando a enjoada!” Porque o pai dela falou uma vez que crente é tudo enjoado. Aí ela [Eva] falou assim: “Ih, boba! Eu gosto quando você vem aqui.” Aí eu falei: “Hoje eu vim porque Deus mandou!” [...] Aí eu falei: “Bom, irmã, agora eu vou embora. O recado de Deus está dado. A minha parte que Deus mandou eu fazer está feita.” [...] Aí eu falei: “Tchau, irmã”. Dei tchau para o Sebastião [pai de Eva] e ele falou: “Volta outras vezes, irmã, eu gosto da sua presença.” Eu falei: “Tá”. Da outra vez que eu voltei lá, foi ele quem abriu a porta para mim. Aí eu falei: “A enjoada tá chegando de novo!” Aí ele falou: “Que enjoada o que, irmã! A senhora é uma maravilha! Pode entrar, a porta está aberta pra você, fique à vontade. Você trouxe a bíblia? Ah, eu queria que a senhora lesse um versinho para mim, igual você leu para a Eva.” Eu pensei: “Opa! Então tá bom!” Aí li, expliquei para ele que aquele dia foi Deus quem mandou eu ir lá. [...] Agora eu estou trabalhando na igreja e o pastor falou que Deus escolhe mesmo as pessoas. E Deus manda mesmo as pessoas dar recado. E Ele já me escolheu várias vezes para dar recado. Um dia, eu morava lá [na casa da Conceição] ainda, eu estava tirando um cochilo à tarde e Deus me acordou. Eu estava ainda dormindo, acordei sonolenta e Deus me mostrou a Conceição com as munhecas cortadas! Ele cortou as munhecas dela assim, ó [olha]: [imita punhos quebrados, mãos caídas]! Que mostrava até o nervo! Aí eu lembrei que aquela máquina que ela mexe é muito perigosa. P: Ela trabalha com o quê? Ela mexe na máquina da padaria, é uma máquina elétrica muito perigosa. Aí eu pensei: “Deus está me mostrando para dar o livramento!” Aí levantei, lavei meu rosto e fui lá dar o recado para ela. Cheguei lá, e a Rute ainda estava lá [empregada da padaria], e falei: “Conceição! Quem me trouxe aqui agora foi Deus! Ele me mostrou você com as munhecas cortadas, penduradas! Eu vi até os nervos brancos! Você toma cuidado com essa máquina!” Aí a Conceição duvidou e falou assim: “Não era eu não, boba! Era outra pessoa.” Eu falei: “Não, era você! Deus me mostrou você! É você! Você toma cuidado!” Aí a Rute falou: “Acredita em Deus, Conceição.” Aí passou quinze dias e, graças a Deus, nada aconteceu. No fim de quinze dias, a Rute chegou lá em casa e falou comigo: “Ô, Anita, Deus não cortou as munhecas dela não, mas cortou as mãos dela todinha!” Onde tinha um pedacinho, estava tudo cortado. E aquilo queimava! Ela não podia fazer nada com as mãos. Ela chegou em casa, me mostrou, mas não comentou nada. Aí eu falei: “Lembra das minhas palavras?” Aí ela falou: “Ah! Deixa de ser boba! Isso não tem nada a ver com aquilo.” Aí eu falei: “Ainda duvida? Mesmo com as mãos toda cortada, ainda duvida? Eu, se fosse você, eu parava. Cuidado que Deus existe. Deus não cortou a sua munheca, mas olha o estado das suas mãos.” Ela ficou com muita raiva por eu ter falado assim com ela. P: Isso aconteceu tem quanto tempo? Ah... tem uns dois anos.

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5.5 – Rompimento com a família de Conceição O status taumaturgo e a relação com seus irmãos de fé lhe proporcionaram

sentimentos de importância, familiarização e reconhecimento que progressivamente

sobrepujaram os advindos de sua relação com a família. A dedicação ao cuidado da família e

da casa também deixou de ser exclusiva. Contudo, a pedra de toque do rompimento familiar

foi sua independência econômica resultante da aposentadoria. A narrativa a seguir expõe a

preocupação e a expectativa, de Anita e de Conceição, com sua aposentadoria. As passagens

de lamentação sugerem uma projeção de mudança após a conquista da independência

econômica. De outro lado, a tensão que caracterizou seu processo de aposentadoria revela que

a família não via com bons olhos esta independência. Revela mais: Anita percebeu isto e se

precaveu. O excerto a seguir traz suas manobras e estratégias para driblar a situação sem

comprometer seus objetivos e o bom relacionamento com a família. O apoio de terceiros

nesse processo foi fundamental, o que é muito significativo para a pesquisa, haja vista se

tratar do enfrentamento de uma quase filha de criação, algo socialmente reprovável. É preciso

destacar a influência do pastor da Igreja e de sua esposa, que é advogada, tanto no processo

de requisição de direitos após o rompimento quanto nas mudanças de comportamento que

certamente conduziram a ele. Nota-se a diferença de discursos, isto é, aquele utilizado

estritamente com quem se compadecia de suas penas, um “discurso oculto” (SCOTT, 1990),

e aquele utilizado com Conceição, remetendo a um discurso padrão, “público” (SCOTT,

1990), próprio da categoria filho de criação. Outro ponto sociologicamente importante é o

fato de, no fim das contas, ter sido Conceição quem brigou com Anita e não o contrário, o que

a livrou do julgamento social sob a pecha da ingratidão (depois de tudo o que fizeram por

ela). O reconhecimento social advindo da comiseração foi preservado. Pronto, dona Anita,

agora ninguém vai mais judiar da senhora. Como veremos, a manutenção do reconhecimento

como uma pessoa boa, sempre disposta a ajudar deve-se à reprodução das disposições servis

e de resignação (os outros pisa, pisa, pisa, pisa, eu estou sempre feliz) na relação com a

Igreja. Amparada por seus irmãos de fé e até por quem não compartilha sua religião, mas

conhece e reconhece a sua história (vizinhos, advogado, escrevente do cartório etc.), Anita

conseguiu legalmente o usufruto de uma das casas dos patrões. Não de qualquer casa, mas

daquela casa, situada na praça, da qual ela bateu o pé que não abria mão. Satisfez-se apenas

com o usufruto, apesar das orientações que recebeu, preferiu deixar para lá todos os seus

direitos: Eu tenho eles como a minha família. Tal como aponta Sigaud (2004: 133): “dívidas

morais tendem a anular dívidas jurídicas”.

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Podemos perceber em sua narrativa a expectativa febril a cada início de mês, por

mais de trinta anos, com o pagamento de alguma coisa pelo serviço prestado. Nem os 20

reais? O que contraria o senso comum de que filho de criação não precisa de dinheiro ou

reafirma que como se fosse não é ser; isto é, Anita não era filha de criação (embora fosse

considerada como se fosse) e por isso esperava (e podia esperar) algum pagamento pelo seu

serviço (expectativa descabida a um filho de criação). O excerto a seguir traz ainda sua

análise crítica da situação (Eles querem jogar eu fora; Isso aí foi o Altair que mandou ela

falar, porque ela é boba, nesse ponto ela é boba; Ô, meu Pai, eu sei que eu estou errada, eu

sei que falar mentira é pecado...) e seu método de argumentação persuasiva (Não sou eu que

vou levar vocês à justiça, são vocês que vão me levar). P: Então sete meses depois que a senhora se aposentou a Conceição brigou com a senhora? É, brigou. E depois que eu aposentei, nunca mais ela me deu nenhum centavo. P: Mas por que ela brigou? Isso aí é uma coisa que eu também tinha vontade de saber. Não sei por que, não sei. No princípio eu ficava frustrada: “Meu Deus, por que ela brigou comigo?” Mas depois eu comecei orar. Aí eu falei com Deus: “Me apego a você, Senhor, não quero mais saber não. Tô em paz; em paz com o Senhor! Não quero saber disso mais não.” Né? Eu não sei o motivo e ninguém sabe, porque ela não fala com ninguém. Se ela falasse para alguém, pelo menos a pessoa vinha e falava comigo... Eu terminei de fazer minhas coisas na cozinha e fui para o meu quarto. Aí ela entrou gritando, brigando comigo no quarto. O por quê, eu não sei. Nessa hora o marido dela foi para o quarto deles, o Lucas foi para o quarto dele e eu fiquei ali, ouvindo ela brigar comigo. Ela estava gritando! Os vizinhos até ouviram. Eles falaram que escutaram ela gritar. Eu acho que ela não queria que eu aposentasse, porque ela falava assim: “Você acha que eu vou te dar alguma coisa depois que você aposentar? Você pensa que eu vou te pagar alguma coisa?” Aí quando eu aposentei, ela todo dia perguntava para mim: “Recebeu a carta, Anita?” Eu dizia: “Não”. Todo dia ela perguntava da carta, todo dia. P: Que carta era essa? Era uma carta do INPS avisando que o dinheiro já estava no banco para mim. Mas a Margarida [a vizinha que trabalhava no INPS e a ajudou com o processo] não colocou o endereço lá de casa. Tudo o que eles tivessem que me mandar ia para a casa dela. Aí um dia a Margarida mandou um recado para eu ir lá na casa dela. Eu fui sem a Conceição saber. Quando eu cheguei lá, ela falou [Anita abaixa a voz]: “Aqui está o seu papel. O dinheiro já está lá.” Isso foi dia 06 de outubro. Aí eu falei para a Margarida: “Eu estou com medo de falar para a Conceição que o dinheiro saiu. Até quando esse dinheiro pode ficar lá?” Ela disse: “Ah... até o dia 26.” “Ah, então dá tempo... Até dia 15 dá pra eu ver se ela vai me pagar alguma coisa esse mês ou não.” Aí voltei para casa com a carta escondida e não falei nada. Aí todo dia ela me perguntava: “E a carta, Anita? Você não recebeu uma carta, um papel, do INPS não?” Eu falei: “Ainda não, Conceição.” Ela: “Está demorando!” Eu perguntei: “Uai! Por que, Conceição? Tá não, ué!” Ela: “À toa [por nada].” Eu pensei assim: assim que passar os dias de ela me pagar alguma coisa, eu coloco a carta no meio das cartas dela, porque o correio jogava um monte de coisa lá na varanda. E assim eu fiz. Quando foi dia oito do mês, ela me pagou um bocadinho. Aí,

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dois dias depois, o carteiro jogou aquele monte de carta lá na varanda e eu coloquei a minha no meio. Aí o Leonardo chegou da rua e pegou a carta: “Ô, mãe, essa carta aqui é para a Anita, abre!” Ela falou assim: “Não posso ler sem ordem dela. Ela está lá embaixo.” Aí eu já tinha acabado as minhas coisas mesmo e subi. Ela falou assim: “Ô, Anita, a carta chegou agora de tarde.” Eu fiz de boba: “Que carta?” Ela falou: “Do INPS.” Eu falei: “Ah, é? Que bom! O que que diz?” Ela falou: “Eu não li.” Aí eu falei: “Pode ler.” Aí ela abriu e falou: “Ó [olha]: o seu dinheiro já está no banco, mas não veio tudo.” Eu falei: “Não vem tudo mesmo não, eu sei. O resto vem só depois de um mês.” P: Você se aposentou em que ano? Foi em setembro de 2005. Mas ela [Conceição] já estava desconfiando que eu já tinha recebido a carta, porque ela perguntava todo dia. Teve um dia que ela falou: “Também, você não ia me contar mesmo!” Óia pro cê vê! De tanto eu falar que a carta não chegou, ela desconfiou. Eu falei: “Uai! Por que, Conceição? Você vai ser a primeira pessoa a saber. Você que vai ler para mim, você sabe que eu não sei ler muita coisa.” P: Ela não te incentivava a ir à escola, a aprender a ler? Não, nunca. Mas aí eu falava com Deus: “Ô, meu Pai, eu sei que eu estou errada, eu sei que falar mentira é pecado, mas se eu contar para ela da carta, ela não me paga mais nada. Perdoa eu, eu sei que é feio.” E foi assim mesmo; depois que ela ficou sabendo que eu comecei a receber o dinheiro da aposentadoria, nunca mais ela me deu mais nada. Eu, um dia, perguntei para ela: “Você não vai mais dar nada a eu não?” Ela falou: “Não!” E eu perguntei: “Nem os vinte reais [valor que recebia com mais frequência]?” Ela disse: “Vou pensar.” Mas nunca mais me deu nenhum centavo. Nesses sete meses que eu fiquei lá, depois que eu aposentei, eu trabalhei de graça. O pastor, a mulher dele é advogada, ele falou comigo que eu tenho muitos direitos. Mas eu falei: “Ah, deixa pra lá. Eu sei que ela não fez certo, mas eu tenho eles como minha família.” Essa casa aqui é deles. Para eu conseguir morar aqui foi um sacrifício! Eles queriam que eu fosse para um apartamento que eles têm. Aí eu falei: “Não vou não. Não abro mão daquela casa ali, ó! Apontei da janela. Aquela ali é que é a minha casa.” Eles falaram: “Ah! Mas aquela ali está alugada.” Eu falei: “Tem importância não, eu espero. Eu não tô saindo corrida de ninguém. Eu não posso morar debaixo de uma árvore e nem de uma ponte, uma pessoa que trabalhou a vida inteira igual eu.” P: E o marido da Conceição? Qual era a postura dele nessa história? Ele ficava do lado dela. Ele chegou ao ponto de mandar o advogado bater no contrato dessa casa que eu não podia receber ninguém aqui! Que ninguém podia vir morar comigo aqui! P: Eles colocaram essa casa no seu nome? É, mas só enquanto eu for viva. Eles não queriam. Queriam que eu fosse para o apartamento, mas eu não quis. Eles sabiam que eu tinha direito. Quem mora sozinho, tem que morar onde tem mais gente, é mais fácil. Aqui, essa parede é de meia [geminada], é mais seguro. Eu falei com o Lucas: “Filho, seu pai mais a sua mãe não gostam de mim, eles querem jogar eu fora. Mas eu não abro mão daquela casa.” Ele falou: “Ô, Anita, mas eles querem deixar você morar no apartamento que está vazio.” Eu falei: “Não quero! Eu vou morar sozinha, quero aquela casa.” [...] Mas não tem escritura não, é contrato. P: Na verdade a senhora não queria nada para a senhora, queria apenas morar na casa, é isso? É. Eu quero morar na casa enquanto eu estou viva. Depois que eu morrer, eu não preciso de mais nada, né? Eu falei com eles: “Ó [olha], eu não tô corrida de polícia não. Eu não tô corrida de polícia! A minha casa é aquela lá, ó! (eu apontei). E não abro mão dela! Eu não

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posso morar debaixo de uma árvore e nem de uma ponte. Eu não vou sair daqui correndo. Se vocês não me deixarem morar naquela casa, aí nós vamos partir para a justiça. Aí nós vamos para a justiça! E não sou eu que vou levar vocês à justiça, são vocês que vão me levar para a justiça. Vocês estão entendendo? É vocês que vão levar eu para a justiça, é vocês.” Eu cheguei para os meninos e falei: “Se o seu pai não me der aquela casa para mim morar, eles é que vão levar eu para a justiça, porque eu não posso morar debaixo de uma árvore e nem de uma ponte. Então tá explicado. Vocês estão todos velhos e já entendem. Eu só não levo o pai mais a mãe de vocês na justiça por causa de vocês, porque eu tenho vocês como filhos. Mas se ele não me der a casa, eles é que vão levar eu.” P: E enquanto o inquilino se arrumava para sair daqui, a senhora continuou na casa deles? Continuei. E ia pra onde? Para a casa dos outros? Não, eu tinha os meus direitos! Não podia! Não podia! P: E como é que foi esse período? A senhora trabalhava? Trabalhava, trabalhava. Mas eu falei com ela: “Olha, Conceição, só vou conversar com você o que precisa. E outra coisa, Conceição, eu não tenho raiva de você não.” [...] Mas eu continuo orando por eles, não tenho raiva deles não. No princípio eu ficava frustrada, querendo saber por que ela fez isso comigo, mas raiva eu não tive. Depois eu vi que ela estava fora de si quando fez aquilo comigo. Não era ela não, ela estava com o demônio no corpo. Eu falei com ela: “Olha, Conceição, eu não tenho raiva de vocês não, mas agora as coisas mudaram. Se chegar algum recado da Igreja pedindo para eu ajudar, levar algum recado, eu vou. Agora eu não tenho mais obrigação com vocês. Eu vou atender ao chamado. Pode ter o serviço que for, que eu largo e vou atender ao chamado. Se aparecer algum encontro da Igreja lá em Ponte Nova ou em Teresópolis, eu vou arrumar minha bolsa e tô indo!” Ela não gostou muito não, mas ela não podia fazer nada, porque ela não me pagava nada e eu tinha os meus direitos. Eu falei tudo isso com ela! P: A senhora demorou trinta anos para poder falar essas coisas para ela, não é Anita? Trinta anos! A vida inteira. [...] Eu nunca briguei com ela; nem em pensamento, Deus tá vendo! [...] Eu tive uma sorte danada porque eu arrumei um advogadinho bom! Nosso Deus! Que advogadinho bom! É o Felipe, filho do Tatão Ferreira, formou em Viçosa. Ele falou: “Eu vou pegar a causa da senhora. Qualquer coisa que a senhora precisar, a senhora pode vir aqui.” E ele não me cobrou nenhum centavo! P: Todos aqui conhecem a sua história? Conhece e todo mundo gosta de mim. É jovem, é adolescente, é criança... todo mundo gosta de mim. Graças a Deus! Não tenho inimizade, sabe? Ele falou comigo: “Eu vou pegar a sua causa e não vou cobrar nenhum centavo da senhora.” Eu falei pra ele: “Olha, Felipe, eu vou tornar repetir [repetir novamente]: isso é mão do satanás! Estava indo tudo direitinho... Não tinha motivo deles fazerem isso comigo.” Ele falou assim comigo: “Eu conheço eles, meu pai conhece, meu sogro conhece... A senhora pode ficar tranquila que eu vou fazer direitinho.” E não me cobrou um centavo! Mas eles [a família de Conceição] não sabem que ele não me cobrou. Se perguntarem, eu falo que cobrou. Eles não precisam saber de mais nada, né? Eu não pergunto nada deles. E eu não acreditei deles baterem o contrato, porque eles queriam bater do jeito deles e só trazer pra mim assinar. Aí ele [Felipe] que fez o contrato. Mas eles criaram caso. Ele [Felipe] pediu os documentos deles, aí a Conceição agarrou! Mandou só o dela e do marido e mandou dizer que dos meninos não precisava. Aí o Felipe disse: “Precisa sim.” Aí eu fui falar com ela.

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Cheguei lá, ela estava na cozinha: “Ô, Conceição, cê não vai mandar os documentos dos meninos não?” Ela disse: “Não precisa.” Isso aí foi o Altair [marido] que mandou ela falar, porque ela é boba; nesse ponto ela é boba, foi o Altair que falou isso com ela. Eu falei com ela: “Então, Conceição, eu vou te falar uma coisa: enquanto você não me der os documentos dos meninos, eu não bato o contrato. E vou falar outra coisa: está nas suas mãos.” Eu falei com ela: “Tá nas suas mãos!” Aí ela mandou. Mas aí precisava abrir firma no cartório, eles não queriam abrir. O Altair e o Lucas já tinham, mas os outros não. Eu fui lá, com o meu dinheiro, abri firma para eles, eles foram lá e só assinaram. Aí o Felipe bateu o contrato direitinho e falou: “Ó [olha], dona Anita, agora está tudo certinho. A senhora vai querer registrar?” Eu falei: “Vou!” Aí fomos lá no cartório e registrou. O moço do cartório falou assim: “Pronto, dona Anita, agora ninguém vai mais judiar da senhora!” Mas aí, quando eu mudei para cá, estava com uma mão na frente e a outra atrás! Eu não tinha nenhum centavo, só tinha um pouco de arroz e de feijão, não tinha nem um ovo, nem uma carne... o resto tudo tinha que comprar. Eu gastei todo o meu dinheiro nesse contrato. Nem a cópia do contrato deles, eles pagaram; tudo foi eu. Mas, graças a Deus, deu tudo certinho, fiquei muito satisfeita. Fiquei assim até chegar o outro mês e eu receber a aposentadoria. Aí eu comecei comprar minhas coisas. Mas as pessoas me ajudaram muito! Me deram panela, mesa, cama... Graças a Deus! Tudo que é meu, é Dele. Olha a minha casa hoje; não está faltando nada! Todos os dias eu agradeço a Deus: “Senhor, muito obrigada pela minha casa, pelos meus móveis... muito obrigada!” Tudo o que é meu é do Senhor, porque foi Ele quem me deu.

5.6 – Não pode parar de trabalhar, senão eu fico doente. Anita insiste em dizer que não guardou raiva de Conceição, o que confirma suas

vãs tentativas de reatar a relação pela reciprocidade, através pedidos de favores ou convites

para um café. Todavia, a não correspondência não abala a satisfação e o contentamento com

sua nova vida. Sua narrativa transborda auto-realização. O tema da casa, presente pela falta

(eu ainda não tenho a minha casa) ou pela pseudoposse (a casa ficava na minha mão!) desde

o início da entrevista retorna com vigor agora no fim, consolidando a correlação entre casa

própria (não necessariamente a posse do imóvel, mas a habitação livre da dívida do

acolhimento) e autonomia/liberdade. Em sua casa, Anita detém, até certo ponto, o controle de

sua vida, planejando e administrando o seu tempo, os seus rendimentos e as suas vontades.

Até certo ponto; o que lhe escapa, entretanto, a domina. Algo, como diria Bourdieu, “mais

forte do que ela” a faz adoecer se não trabalhar à exaustão para os outros. Sua casa serve (ao

Senhor) para hospedar os irmãos que vêm de fora para as festividades religiosas, sem

qualquer ajuda de custo, pois tudo o que é seu, é de Deus. Além disto, ela reserva parte de

seus rendimentos para a Igreja e trabalha com afinco na limpeza e organização do templo e

como missionária. Seu tempo continua consumido pela sobrecarga de trabalho. Além das

tarefas desempenhadas na e para a Igreja, Anita trabalha o dia todo, todos os dias da semana,

em duas casas diferentes, sem regulamentação trabalhista e sub-remunerada. Mas é paga, o

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que, para ela, muda tudo. Apesar da reprodução das disposições servis na relação com a

Igreja, em relação aos seus empregos, ela coloca em prática os novos modos de agir e de

pensar apreendidos durante o processo de rompimento com a família de Conceição. Anita

aprendeu a se impor, a negociar persuasivamente o valor que acha justo para o seu trabalho e

a não permitir que extrapolem os limites acordados.

P: E a sua casa tem tudo? Geladeira, televisão...? Tenho, tenho tudo: geladeira, fogão, televisão... [...] Tudo aqui é meu! Aquela cama foi cara e eu comprei com o meu dinheiro, aquele guarda-roupas também. Comprei a colcha, comprei lençol... tudo é meu. Tem uma colega minha que quando viu a cama falou pra mim: “Ô, Anita, quando você morrer, você deixa a cama para mim?” Eu falei: “Se Deus me der tempo...” [risos] Porque eu peço a Deus uma morte instantânea. Então, se Ele me der tempo... Vamos ver para quem vai ficar a televisão, o aparelho de som... porque tudo é meu, aquele sonzinho ali, ele é meu, comprei com o meu dinheiro. A televisão, o sofá... P: Então hoje você tem tudo o que sempre quis? Graças a Deus! Agora vou fazer exame de vista, o resto eu vou fazendo aos pouquinhos. [...] Eu estou muito feliz, graças a Deus! [...] Agora eu lavo a roupa do Chico. P: Você trabalha para ele? É. Eu chego, arrumo a casa dele, coloco a roupa dele de molho e faço o almoço. P: Ele mora sozinho? É, ele ficou viúvo e ficou sozinho. Aí eu lavo a roupa dele. É fácil de lavar, ele toma banho todo dia, a roupa não tem sujeira não. Aí, enquanto ele almoça, eu lavo a roupa. Depois deixo de molho no amaciante, pegando cheiro, né? E vou arrumar a cozinha. Termino de arrumar, deixo tudo limpinho para ele; passo o pano direitinho, estendo a roupa e vou. Eu falo com ele: “Tchau, seu Chico, já vou indo.” Ele fala: “Mas já?” Eu falo: “Já, meu filho, eu tenho mais compromissos. Fica com Deus!” Também não falo o que é não, só falo que tenho compromisso. P: Você trabalha lá de manhã? É. Eu saio daqui sete, sete e pouco... Fico lá até meio dia. Tem dia que eu atraso um pouco, o tempo passa muito rápido. Aí desço de lá, passo aqui, escovo [os dentes] e aí vou para a casa do “Fulano” [não consegui entender o nome] lavar a roupa. Lavo roupa até quatro, quatro e meia [16:30]. P: Você almoça lá com o seu Chico? É, almoço lá com ele. P: E nessa outra casa você só lava a roupa ou faz tudo também? Não, só lavo a roupa. P: Passa? Não, só lavo. O resto é deles. P: E eles te pagam? Pagam! Pagam cinquenta reais por mês.12 [...] Eu acho que tá bom porque eles têm tanquinho e máquina, né? P: E o outro, o seu Chico, ele te paga?

12 O salário mínimo em 2006 era de R$350,00.

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Ele me paga cento e vinte [R$120,00], mas, a partir de fevereiro agora, ele vai começar a me pagar cento e cinquenta [R$150,00]. Eu falei com ele: “Olha, seu Chico, agora mudou. Cento e vinte é muito pouco.” Aí ele: “Ah, o salário só sobe em abril...”13 Eu falei: “Ó, seu Chico, cento e vinte é muito pouco; agora é cento e cinquenta.” Ele falou: “Ah, mas você trabalha poucas horas por dia...” Rapidinho ele fez a conta, sabe? Aí eu falei: “Ó [olha], vou falar com o senhor, presta atenção: tá no senhor; o senhor que resolve, o senhor é que sabe.” Aí ele resolveu me pagar. Agora eu ganho duzentos [R$200,00, somando os dois empregos] mais a aposentadoria! É porque eu me apeguei com Deus. A minha conta lá na venda [mercearia] tem mês que dá noventa [R$90,00], tem mês que dá noventa e cinco... Agora que eu não como aqui durante a semana, eu só janto em casa, aí ficou mais barato, né? Mesmo assim, não abaixou muito não, porque eu gosto de coisa boa também! Eu gosto de comprar fruta, eu gosto de comprar o iogurte do bom, eu gosto de tudo do bom. [...] P: E a senhora trabalha porque acha que o trabalho dignifica a pessoa ou trabalha ainda hoje porque precisa do dinheiro? Não, todas as duas coisas. O trabalho é uma fisioterapia para mim. E também ajuda, o dinheiro ajuda muito, mas não porque eu preciso. Mas o trabalho é uma fisioterapia para mim. P: Você trabalhou a vida inteira, né, Anita? A vida toda, eu não tive nem infância. Agora não pode parar, senão eu fico doente.

Fica mesmo, como veremos na segunda etapa da pesquisa.

A entrevista já havia terminado quando Anita fez questão de retornar e esclarecer uma

passagem que, posteriormente, revelou-se central para a análise do processo de unificação da

categoria. Aquele negócio da morte instantânea eu não te expliquei direito. Não é que eu tenho medo da morte, não é isso. Mas é que quem fica sofrendo em cima de uma cama, não que eu acho que a gente não tem que sofrer, mas eu não tenho ninguém para cuidar de mim. Então eu peço a Deus uma morte instantânea para não amolar os outros, não encher o saco de ninguém. Se eu tivesse um filho, um marido, para me olhar, tudo bem. Mas eu não tenho. É por isso, é para não amolar ninguém. Eu não tenho medo de sofrer não.

Bagre Bonito, 21 de janeiro de 2007

13 Em abril de 2007 o salário mínimo subiu para R$380,00.

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CAPÍTULO 6 – CLARA

Durante a pesquisa exploratória, Clara foi, sem dúvida, a mais lembrada pelos

moradores de Bagre Bonito. As narrativas de seus conterrâneos eram muito próximas e não

lhe poupavam reconhecimento. P: Você conhece algum filho de criação? _ Ah! A Clara! Aquela ali não teve vida, viu? A vida inteirinha cuidou do seu Geraldo e da dona Fátima. _ A casa era um brinco, cê precisava de ver! Ela toda vida foi muito caprichosa. _ Ih, boba! A dona Fátima tinha um ciúme dela! A Clara não podia passear, ir pra lugar nenhum. _ Era tratada como filha mesmo, igual os outros. Tanto que, no fim, só tinha ela. Ela nunca abandonou eles. Eles gostavam muito dela. E ela também gostava deles, era muito carinhosa com a mãe. Clara tinha cinco anos quando a pegaram para criar. Foram 45 anos de

convivência. Depois da morte dos pais, ela ficou apenas mais um ano em Bagre Bonito e

resolveu se mudar do município; decisão que intriga seus conhecidos: Até hoje ninguém sabe

por que ela quis sair daqui. Atualmente, casada, mora com seu marido em Barão de São João

Batista, em uma casa comprada com o dinheiro que recebeu como herança dos pais.

Cheguei até Clara por intermédio de minha tia Janice, sua conterrânea, conhecida

desde a infância e atual vizinha em um bairro de Barão de São João Batista. Inicialmente,

minha tia lhe explicou que eu estava fazendo uma pesquisa sobre filhos de criação e pediu

sua colaboração. Posteriormente, me acompanhou ao encontro que Clara marcou em sua casa,

na noite de 18 de janeiro de 2007.

6.1 – Primeiro encontro: observação da interação de Clara e seu marido

Fazia muito calor naquela noite. A maioria das casas estava aberta e seus

moradores sentados nas calçadas, conversando. Alguns metros distante da casa de Clara era

possível escutar a música que tocava em seu interior. Apesar das janelas abertas, ela não

conseguia ouvir nossos chamados. O torpor auditivo e os gritos surdos tornavam a noite ainda

mais abafada. Bons ventos sopraram entre uma música e outra e Clara nos escutou. Foi muito

receptiva; desligou o aparelho de som e nos convidou a entrar com animação.

Sua casa fica bem acima do nível da rua, uma escada estreita conduz até a porta

da sala. É uma casa de laje, isto é, sem telhado, e possui dois quartos, sala, cozinha, banheiro

e um terreiro nos fundos. Nos acomodamos no sofá da sala. Clara e minha tia sentaram-se

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juntas na mesma peça e eu na outra. Além dos sofás, havia um rack sustentando uma

televisão, o potente aparelho de som e um equipamento de antena. Duas portas davam saída

para o quarto da sala e para a cozinha, de onde continuava o restante da casa.

Clara é uma mulher de “meia idade” (a julgar pela sua aparência), negra, baixa

estatura, corpo um pouco acima do peso e cabelos curtos. Usava bermuda, camiseta regata e

chinelos, além de brincos, um fino cordão (colar) dourado e anéis.

Durante aproximadamente meia hora, ficamos apenas nós três conversando sobre

temas diversos: o calor, a pesquisa, as nossas famílias em Bagre Bonito, a antiga relação de

amizade entre ela e minha tia... Nós temos história para contar, né Janice?!, animava-se

Clara. Passado esse tempo, seu marido, Edson, chegou. Um homem também de meia idade,

branco, cabelos claros e bem curtos, estatura mediana e corpo acima do peso, cujo abdômen

protuberante e desnudo pendia sobre a bermuda que vestia. Estava alcoolizado. Sem que a

esposa o apresentasse, entrou na conversa e dela se apoderou. Pediu desculpas a mim por

estar sem camisa e uma cerveja à Clara. Sentou-se no chão, recostando-se na parede, e então

quis saber quem eu era, de onde era, quanto tempo e onde morei em Barão de São João

Batista etc. Prolongou minhas respostas pontuais com simpatia, tentando ser agradável.

Falava alto. No embalo de sua exaltação ébria, destacou que sua família é rica e conhecida na

cidade e que sua mãe os ajuda bastante com muitos presentes, apontando para a televisão e

para o equipamento de antena. Edson me pareceu bastante autoritário, mas não agressivo.

Durante todo o tempo, procurou ser simpático e engraçado. O comportamento de Clara

mudou com a chegada do marido: antes alegre e comunicativa, depois, calada e constrangida.

Visivelmente incomodada com a postura de Edson, preferiu se calar a lhe chamar a atenção.

Em um momento, entretanto, quando estava a caminho da cozinha para lhe trazer outra

cerveja e ele se dirigiu a ela de forma ríspida dizendo que fosse mais rápido, Clara parou,

olhou firme para o marido e lhe disse: menos! E buscou a bebida.

Ficamos aproximadamente mais meia hora conversando após a chegada de Edson.

Marcamos a entrevista para cinco dias depois, à tarde. Clara me parecia bem disposta a

colaborar, não apresentando qualquer resistência ou sinal de desconforto.

6.2 – Segundo encontro – entrevista: uma recepção difícil

Cheguei no horário combinado. Clara estava sozinha preparando um doce de

mamão na cozinha, onde ficamos. Ela não foi receptiva como na primeira vez; parecia

arrependida de ter aceitado me contar sua vida. À primeira pergunta, sobre o seu local de

nascimento, sorriu e ironicamente respondeu: Não sei. É passado, não me lembro mais...

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[risos] Essa aí pula que eu não sei. Pedi então que me falasse como fora sua infância com os

pais consanguíneos e novamente ela se absteve, como se estivesse em um jogo de perguntas e

respostas: Vou pular essa também. Concluí duas coisas deste comportamento inicial: que ela

aceitou me conceder a entrevista apenas em consideração à minha tia e que não gostava de

falar de uma parte do seu passado, não dele todo, pois, em nosso primeiro encontro, evocou

espontaneamente várias passagens de sua juventude. Pedi, então, que me contasse livremente

o que se lembrava da infância. Clara se levantou em silêncio, foi até o fogão e começou a

remexer o doce. Com o olhar esquivo de mim e perdido na panela, iniciou sua narrativa com

brevidade e de modo um tanto hostil, como que se rendendo à minha insistência.

6.3 – Rejeição da mãe consanguínea

Eu morei com os meus pais até o quinto ano. Até os cinco anos de idade. Depois eu fui morar com uma outra família. Eu fui criada com essa família até os 49 anos e aí eles morreram. P: Hoje você está com quantos anos? 52. P: E você lembra como era a relação de vocês (com a família consanguínea)? Como era o dia-a-dia...? Eu tive pouco contato, quando pequena, com os meus irmãos. Depois de mais velha que eu fui ter mais contato com eles. P: Você tem quantos irmãos? Eu tive cinco irmãos, um morreu. P: E você tem contato com eles hoje? Tenho, hoje eu tenho contato com eles, porque antes eu não tinha. P: Por quê? Ah, porque eu não ia mais na casa da minha mãe... Porque o negócio com a minha mãe é o seguinte: quando ela me teve, eu sou a mais velha, ela não queria filha mulher. Ela não quis filha mulher. P: Por quê? Porque ela queria filho homem. Ela não gostava de filha mulher. Ela achava que ia dar muito trabalho para ela. P: E o seu pai? Como ele se posicionava nessa história? Ah, o meu pai não optava nada não. Ela que optava tudo. [risos nervosos] P: Você viveu com a sua família até os cinco anos. E como foi a convivência com a sua mãe nesse período? Não combinava! A gente não combinava! P: Mesmo você com apenas cinco anos? Não combinava! Eu não dormia na casa dela de jeito nenhum! Ela me batia... Eu creio assim; que ela me batia, me fazia muito medo... Porque as poucas coisas de medo que eu lembro, era ela que me fazia. P: E seu pai não interferia? E eu amava meu pai, ó pro cê vê! A gente combinava demais da conta! P: E seus irmãos são homens?

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Eu tenho uma irmã. A caçula é mulher. P: E como é a relação da sua mãe com ela? Não, a minha mãe é apaixonada com ela. A minha mãe é doida com ela! P: Como assim? O negócio era só comigo. Que eu ia dar muito trabalho, que eu não ia ser nada na vida... Eu não ia ser nada na vida. Que eu só ia dar desgosto a ela... P: Ela te falava isso? Falava, falava. Que eu ia arrumar barriga... sabe? Que eu ia casar grávida... Tudo assim, essas coisas. P: Carinho nunca? Nunca, nunca! Ela nunca me deu carinho. Sabe assim? Ela nunca me deu uma laranja! [Silêncio] Para falar a verdade, nunca me deu nada! P: E como foi a sua ida para a casa dessa família onde você morou tanto tempo? Ela que me deu. Ela me deu. Deixa eu te explicar, ela me deu para uma mulher que morava em Belo Horizonte. P: Deu mesmo? Deu, deu. Tipo assim: “Pode levar para você, eu não quero ela!” Tipo assim. Aí eu fui morar na casa da mãe dessa menina que ia me levar para Belo Horizonte, porque na época ela era solteira, tinha ido trabalhar... Ia ficar difícil para ela cuidar de mim. Aí eu fiquei morando com a mãe dela, a Fátima. Aí depois que eu cresci, que ela arrumou um emprego e queria me levar para Belo Horizonte, aí eu não quis ir porque eu já tinha acostumado com ela [Fátima]. Aí eu não podia largar ela [Fátima] para ir morar em Belo Horizonte. P: E nesse tempo que você morou com a Fátima, em nenhum momento a sua mãe se arrependeu? Foi te procurar...? Não. A minha mãe toda vez que encontrava comigo, ela brigava comigo. Então, assim: não sentia falta nenhuma, né? Mas, assim, eu era muito atrevida, tá?! Eu era muito atrevida! Eu respondia [elevando a voz]: “Você não gosta de mim!” Uai! Do jeito que ela me criou eu tinha que fazer com ela também. P: Como ela era dentro de casa? No cotidiano... Como era o dia-a-dia? Ah... ela era meio maluca. [risos] Não sei não, mas era mesmo! Você sabe por quê? De vez em quando ela cismava que ia suicidar... Toda problemática também, tá? Toda problemática! Porque o pai dela morreu matado. Toda problemática... Então, quer dizer, ela ainda tinha as razões dela também, sabe? P: A família dela era de Bagre Bonito? Era de Bagre Bonito. P: Você conheceu seus avós? Não, não. P: E seus avós paternos, você os conheceu? Só a minha avó, mas também bebia demais. Me carregava para todo lado com ela... Aquela loucura! E eu ia! Mas, assim: bebia, bebia, bebia, mas não me deixava perder de jeito nenhum! Sabe? Ficava ali, segurando na minha mão. Era aquela avó carinhosa. P: Então o carinho que você teve na sua infância foi da sua avó? Era. Da minha avó. Da minha mãe, nunca. [...] P: E o seu pai? Quando você foi morar com a Fátima, ele não se opôs? Não. O negócio do meu pai era o seguinte: todo dia ele ia me ver! Sabe aquele pai, assim... pai e mãe ao mesmo tempo? Ele era assim. Ele nunca deixou de ir me ver. Às

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vezes eu brigava com ele, mas no outro dia ele estava lá para me ver. Era aquele pai carinhoso. A minha mãe, não. Ela era... pirracenta! P: A sua mãe te teve com quantos anos? Também não sei. [risos] Esses detalhes eu nunca quis... nunca entrei, sabe? P: É uma coisa, pelo jeito que você está falando, que você não fez questão de saber, que você não gosta de falar, que já passou... É isso? É, é. Nunca fiz questão de saber. Não gosto de falar. Passou, passou. E outra coisa: quando a minha mãe morreu, eu não senti! Agora, quando a minha mãe adotiva morreu, aí eu senti. Porque ela é que era minha mãe, que me dava tudo, sabe? [...]

6.4 – Infância e juventude com a família de criação A hostilidade de Clara diminui quando começa a falar da família adotiva.

Diminui, mas não desaparece. O seu temperamento oscila durante toda a entrevista,

destacando “variações disposicionais” mediante diferentes contextos (Lahire), mas também

variações narrativas sobre os mesmos contextos. É importante destacar que a narrativa de

Clara, até certo ponto da entrevista, não condiz com a narrativa de seus conhecidos de Bagre

Bonito a seu respeito. Cruzando as informações e atentando para as contradições (até mesmo

quanto à sua idade; ora 52, ora 54 anos), supus que não lhe agrada a lembrança da servidão

com a qual a reconhecem e que, assim como procurou esquecer seu passado com a família

consanguínea, ela reelaborou seu passado com a família de criação tão logo se mudou de

cidade e deu início a uma nova vida. Ao falar de si, Clara se multiplica em Claras: atrevida,

que respondia a tudo e a todos, e boba, que aceitava humilhações e chorava calada;

encapetada, que fazia o que queria, e tímida, que não sabia expressar suas vontades; alegre e

feliz no seio de uma família muito festeira e amargamente infeliz no seio desta mesma família. P: Você foi morar com a Fátima com cinco anos. Ela era casada? Tinha mais filhos? Casada. Todos os filhos dela eram bem mais velhos. P: Você virou a caçula? Virei, virei a caçula. Depois veio o Pedro. A diferença de nós dois são de dois anos também. Ele era o caçula. P: Como eles te criaram? Como filha. [Silêncio] Eles até deixaram essa casa aqui para mim, como herança para mim. P: Você estudou, Clara? Fiz até o segundo grau. P: No tempo certo ou depois? Foi depois, porque eu não gostava de estudar... [risos] P: Como você era? Eu era encapetadinha! [risos] Eu era encapetada! Você sabe o que é encapetada? Eu era! P: Mesmo quando você foi morar com a Fátima? É, toda vida. Eu melhorei tem pouco tempo. [risos]

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P: Como assim, “encapetada”? Arteira, levada? É, arteira. Fazia arte, não estava nem aí para nada, sabe? Se hoje me desse vontade de ir lá em Ubá tomar um chopp, eu saia escondida e ia. Juntava uma turma e ia. P: E a Fátima não te repreendia? Ah, depois o castigo corria solto! Mas eu não estava nem aí, ia para a farra de novo. P: E os seus irmãos, por parte da Fátima, eles te acompanhavam? Não, cada um ia para um lado. A Rosana é a mais velha, vai fazer 70 anos agora em março; o João vai fazer 60; a Cida 53; eu 54 [?] e o Pedro 51. Eu, Cida e Pedro, nós éramos muito ligados, sabe? Fomos criados juntos. P: Eles estudaram? O Pedro estudava e a Cida também estudava. P: Você não? Eu nunca quis estudar. Eu e o João. P: João é um dos irmãos mais velhos? É, ele vai fazer 60 anos. P: Seus pais te estimulavam estudar? Estimulavam. A Cida é dentista, mora em Sete Lagoas. P: Então você não estudou porque você não quis? Porque eu não quis. Nunca quis estudar. Hoje eu tenho arrependimento, né? P: E como era o seu dia-a-dia? Você ajudava a Fátima? Ajudava. Cada um tinha sua obrigação. Isso aí não adianta falar que um trabalhava mais do que o outro não; cada um tinha o seu serviço certinho. Eu tinha o meu, o Pedro o dele e a Cida o dela. Sabe? Por exemplo: uma semana ficava eu na casa, a Bete na cozinha e o Pedro varrendo o quintal, sabe? [...] P: Era dividido o trabalho, né? Era dividido. O trabalho era todo divido. Aí não tinha briga, não tinha confusão, não tinha nada. Era gostoso. Quando a gente é criança, tudo é gostoso de fazer. P: E como era a condição financeira deles? Tinham uma condição estável? Tinha, tinha uma condição estável. P: É uma família conhecida na cidade? É. É a família Oliveira. É conhecida. A família mais conhecida no Bagre Bonito é a família Oliveira. [...] P: Você em algum momento foi tratada diferente? Se sentiu melhor ou pior do que alguém? Não, não. E até hoje, né? Pode me enfiar em qualquer lugar; pode ser chique, pode ser o que for, que eu entro de nariz empinadinho! Como se eu fosse rica, igual a todo mundo. P: Você é autoconfiante? Eu sou! Não passo vergonha em lugar nenhum, não faço vergonha em ninguém. [...] P: E como foi a sua mudança para uma cidade maior? Você sentiu diferença? Não senti porque eu nunca gostei de Bagre Bonito. Nunca gostei de morar lá; eu não me sentia do interior, sabe? Do interior de Bagre Bonito. P: É mesmo? Eu nunca gostei de lá, sabe? Nunca gostei. P: Desde nova? Desde nova. Nunca gostei. Eu gostava de cidade grande, sabe? P: Mesmo sem nunca ter morado em uma?

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Sem nunca ter morado. Sem nunca ter morado. [...] De Bagre Bonito eu nunca gostei. Nunca gostei e nem gosto de lá. Eu não me sentia bem no Bagre Bonito. Você sabe o que é chegar final de semana e eu não ficar no Bagre Bonito? Era eu. Eu não ficava! P: E você ia para onde? Eu vinha para São João, ia para Ubá, ia para Juiz de Fora, ia para Viçosa... P: Ficava em casa de parentes? Não, de amigos. Eu passava férias no Rio [de Janeiro], quando eu não estava estudando nem nada, e eu ficava lá um mês. Não era dois dias não; era um mês! P: E seus pais iam juntos? Não. Eu ia e ficava na casa de tios. P: E seus pais? Ficavam sozinhos? Uai... ficavam sozinhos [Clara fica tensa e um tanto agressiva. A voz se eleva e começa a bater a mão na mesa, como que marcando o compasso de sua narrativa]. Eu tinha parentes em São Paulo. Eu ia para lá e ficava quinze dias... Eu ia para a praia... Por exemplo, se eu chegasse de viagem hoje, com um real no bolso, você chegasse e me chamasse para ir para a praia, eu ia. Com um real no bolso! Eu ia e ficava na sua casa. Não esquentava não. Ih, menina! Quantas vezes eu já fiz isso! P: E seus pais não se importavam com esse seu jeito? Importavam não. Toda a vida eu fui assim. Muita gente me perguntava se eu era carioca! Pelo meu jeito de ser... sabe? Assim, meio estabanada. Todo mundo achava que eu tinha que gostar dali, que eu tinha que gostar do Bagre Bonito. Então, no dia em que eu mudei do Bagre Bonito pra cá, lógico que você sente sim, mas eu não senti por causa dos amigos que eu deixei lá, eu senti por causa da minha família. Mas, assim, não era da minha família biológica; era dos meninos e do Pedro [irmão de criação] P: Seus sobrinhos [filhos do Pedro]? Meus sobrinhos. Era deles que eu sentia. Eu chegava aqui em São João, tinha que voltar para o Bagre Bonito de novo. Aí eu chegava lá, me dava vontade de vir embora... Aí eu chegava aqui e queria ir para lá... Foi assim uns quatro meses. Depois eu pensei: “não, gente! Eu moro não é mais no Bagre Bonito, eu moro é em São João. Eu tenho que sossegar.” Foi aí que eu sosseguei aqui. Aí eu sosseguei. P: Você disse que foi dada, na verdade, para a filha da Fátima, que morava em Belo Horizonte. Mas você se apegou à Fátima e não quis ir morar com a filha, não é? É, eu não quis. Eu me apeguei à Fátima. P: Mesmo gostando de cidade grande? Mesmo gostando. P: Você abriu mão dessa sua vontade? Mas de Belo Horizonte eu já não gostava. Não sei por quê. Não gosto de Belo Horizonte. [...]

6.5 – Morte dos pais: cumpri minha missão Clara diz ter vivido até os 49 anos com a família de criação, somando um total de

45 anos de convivência, sendo os últimos cinco anos, apenas com sua mãe. Porém, sua mãe

morreu há 15 anos e Clara diz ter 52/54 anos. Apesar disso, a passagem a seguir é central para

a pesquisa, pois nela ecoa a vida de filha de criação em Bagre Bonito. Contrariando a intensa

mobilidade citada anteriormente, Clara chama atenção para a imobilidade das filhas de

criação devido à missão que lhes cabe: o cuidado da casa e o cuidado (care) dos pais.

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Contudo, contrariando também a “expectativa coletiva”, seu audacioso projeto de se mudar de

cidade após a morte dos pais subverteu a imobilidade que tentavam lhe impingir (todo mundo

achava que eu tinha que gostar do Bagre Bonito ou o convite do irmão Pedro para morar em

sua casa e cuidar dos seus filhos). P: Você ficou com eles por quantos anos mesmo? 45 anos. P: E os outros filhos? Também ficaram até eles morrerem? Não, os outros filhos foram casando. [...] Todos já eram casados, quem era solteira, era só eu. P: Então todos se casaram, foram embora e ficou só você, a Fátima e o marido dela? Isso, ficou só nós três. P: Por quanto tempo? Meu pai morreu primeiro. Faz 20 anos agora em março que ele morreu. A minha mãe tem 15, a adotiva, tem 15 anos que ela morreu. P: E você ficou com eles até eles morrerem? Até morrer! [longo silêncio] Aí eu cumpri a minha missão. Fiquei com eles até eles morrerem. Depois que ela morreu, eu fiquei em Bagre Bonito só mais um ano e saí de Bagre Bonito. P: “Cumpri minha missão”? Cumpri minha missão! P: Você foi uma companhia para eles, principalmente para ela, não é? Fui uma companhia. Porque não tinha mais os filhos dela. O que tinha [na mesma cidade] era o Pedro, mas ele tinha a esposa, tinha o filho e já não morava com a gente mais. Aí eu e ela ficamos assim no final. Inclusive, quando ela morreu, estava só nós duas dentro de casa, assistindo televisão. Não esqueço disso, gente! Quando ela passou mal, ela levantou, fez a caminhada dela – ela caminhava todo santo dia, bem ou mal – e falou assim: “Hoje eu não estou bem”. Aí eu falei: “O que que foi?” P: Você chamava ela de mãe? De mãe-vó. P: Mãe-vó? Mãe-vó! [risos] Aí mediu a pressão... Aí ela falou: “Hoje eu não quero almoçar, não quero deitar...” Mas pediu para mim fazer jiló para ela. Era eu que fazia o almoço, né? Aí fiz o jiló, ela almoçou bem. Depois deitou e falou: “De tarde eu não vou jantar! Vamos assistir televisão, boba! Nós duas.” Aí fomos assistir televisão. Quando chegou no quarto ela pediu para tomar uma gelatina. Dali ela já começou a passar mal. Mas também não deu tempo de nada, viu? P: Foi o quê? Coração? Foi. Coração. P: Ela tinha quantos anos? 81. P: O seu pai morreu antes né? Quando ele morreu, como é que foi? Ela sentiu muito? Sentiu. Sentiu muito. Ele... foi até engraçado. Ele estava construindo a casa para a gente morar. Aí nos dias que estava acabando de construir a casa ele já estava triste porque já estava acabando de construir. Ele falava: “Tô fazendo essa casa aqui pro ceis. Eu não vou morar nessa casa”. [...] Aí no dia que o pedreiro entregou tudo... já tinha passado o sinteco, entregou tudo; aí, no outro dia, ele morreu. Ainda chamou a gente para ir na roça

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com ele, para contar os gados dele, mostrar pra gente o que que era dele, o que que era à meia... Mostrou tudo, tudo. P: E o seu pai morreu com quantos anos? Ele morreu com 84. Clara narra sua participação nos momentos finais de seus pais com muita

tranquilidade. Sua voz é baixa e as palavras são pronunciadas com lentidão, como se estivesse

relembrando as cenas.

6.6 – Momentos felizes com a família de criação

A seguir, o tom e o ritmo se alteram, fazendo jus ao contexto. As festas de

família são narradas energicamente. Não há agressividade ou qualquer sinal de

descontentamento. Com jactância, Clara se intitula o xodozinho dos pais, a única de quem

pediam a opinião quando precisavam. P: E qual era o divertimento de vocês nas horas vagas? Ah... Lá era mais assim: se tivesse uma festa, aí ia. Se não tivesse, também não... sabe? P: Vocês faziam festas na casa de vocês? Não, a gente ia em festa na casa de amigos. Lá em casa de vez em quando tinha festa também... Festa de família. P: Aniversários? Aniversários... Por exemplo: eu tenho família lá em Goiânia aí vinha tudo para Bagre Bonito. Aí amanhã reunia na sua casa, um dia reunia na casa do tio Tonico, no outro dia na casa do outro... Era assim; cada dia reunia numa casa. Aí vinha a família toda! A família de Oliveira toda; juntava os pais, com os irmãos de Ubá e ia tudo para uma casa só! P: Bem festeiros, então. Festeiros, festeiros demais! “Hoje nós vamos para a fazenda!” Aí ia todo mundo para a fazenda. P: Você gostava? Nossa Senhora! Era bom de mais da conta! Eu toda vida fui festeira. Sempre fui alegre, sabe? Todo lugar que eu vou, eu sou bem recebida. Se eu não te conheço eu puxo conversa com você para fazer amizade, sabe? Descubro tudo da sua vida... Eu não sou de esquentar a cabeça com nada não. P: E você se relacionava bem com os dois? Tanto com pai quanto com a mãe? Com os dois. Com os dois [Silêncio]. Tanto que eu era o xodó! Eu era o xodozinho! Tinha vez que eles queriam fazer alguma coisa, pediam opinião para mim, sabe? Tanto que os meninos, os meus irmãos adotivos, eles tinham ciúmes de mim. O Pedro, o caçula, é meu irmão mesmo [de consideração], sabe? Meu irmão mesmo! Os filhos deles vêm aqui pra casa, sabe? Se os meninos quiser vim toda semana, deixa! Não esquento não. Ele sabe que eu não vou judiar, não vou. É aquele amor mesmo de... [Silêncio] P: De família? De família.

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6.7 – O trabalho fora de casa: variações narrativas Desta vez, ao falar de trabalho, a narrativa de Clara se aproxima das narrativas de

seus conhecidos a seu respeito. O trabalho acerbo marca sua trajetória desde a infância. Além

disso, traços de seu modo de ser e de agir há pouco esboçados adquirem novos contornos.

Clara faz um autorretrato bem diferente daquela menina atrevida, encapetadinha, que não

esquentava a cabeça com nada, para os mesmos período e contexto de sua vida. Importante

notar que ela percebe um antes e um depois de sua experiência no frigorífico, seu primeiro

trabalho fora de casa, demarcando uma importante “ruptura biográfica” (Lahire). De fato, o

emprego formal no frigorífico constitui situações e contextos inéditos: sozinha; outra cidade;

pessoas desconhecidas; pagamento em dinheiro pelo serviço prestado; funções, ritmo e

horário de trabalho completamente diferentes; relações tensas com colegas etc. Clara está há

três anos afastada do trabalho para tratamento médico (cirurgia e sessões de fisioterapia) em

uma das mãos, lesionada por esforço repetitivo. Aqui também há variações disposicionais e

narrativas: inicialmente, é com repulsa que relembra seu trabalho, classificando-o como uma

experiência traumática; pouco depois, relembra a dificuldade de se afastar para cumprir a

licença médica por sentir falta do trabalho e dos amigos que fez.

Considerando o fato de que Clara era solteira, sozinha, no período em que

trabalhou no frigorífico, é possível que seu olhar sobre o trabalho tenha sido reelaborado no

decorrer desses três anos de afastamento sob influência do seu marido, cujo início do

relacionamento coincide com o início da sua licença. Além de uma reelaboração do passado, a

relação com Edson parece ter influenciado uma nova concepção do futuro no ambiente de

trabalho: Agora muita coisa mudou... Agora eu já tenho padrinho lá dentro! Meu cunhado é

chefão! Nesta passagem, como em outras, é nítida a importância que Clara atribui ao “capital

familiar” (Bourdieu) de seu marido, assim como atribuía ao de sua família de criação –

família Oliveira, a mais conhecida de Bagre Bonito. Essas e outras semelhanças remetem a

uma “transferência de disposições” (BOURDIEU 1996, 2002; LAHIRE 2004) de um contexto

para outro. Clara valoriza o status (em sentido mais amplo; além de “distinção” e prestígio,

proteção e facilidades de navegação social: confiança, crédito, poder etc. – que tornam o

nome de família um “capital”) conferido pelo pertencimento a estas famílias conhecidas, não

se incomodando, entretanto, de ocupar posições servis em ambas. Aproveitando sua licença

médica, ela começou a trabalhar como empregada doméstica nas casas da mãe e da irmã de

seu marido. Não se trata de empregos formais, tanto para não infringir sua licença médica (o

frigorífico nem pode saber), mas, sobretudo, para não macular a relação familiar com uma

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relação trabalhista. Como era de se esperar, o pagamento por este trabalho é feito em forma

de ajuda (como o intermédio de seu concunhado chefão no frigorífico) e de presentes

(televisão e antena usadas, roupas novas e usadas, peças de decoração, alimentos etc.), tal

como Edson demonstrou no primeiro encontro. O que não era de se esperar é a omissão de

Clara ao classificar sua ajuda como trabalho deixando subentendido o pagamento em

espécie.1 P: Você trabalhava fora [no período em que vivia com a família de criação]? Não. Eles nunca quiseram que eu trabalhasse fora. Eu só fui trabalhar depois que eu mudei aqui para São João, depois que eles morreram. P: E você tinha vontade? Eu tinha sim. Mas, assim... eu tinha vontade de ter o meu dinheiro. P: E por que você não foi trabalhar fora se você tinha vontade? Tinha vontade, mas não tinha coragem, sabe? Tinha só vontade, mas não tinha coragem... de enfrentar. Porque aí, depois que eles morreram e eu fiquei sem pai nem mãe para me dar dinheiro, eu falei: “agora vou ter que enfrentar. Vou ter que enfrentar qualquer coisa”. Mas eu só tenho arrependimento... Quer dizer; tenho e não tenho, porque eu fui trabalhar no frigorífico e ali eu cresci, aprendi muita coisa. P: Três anos você ficou lá, né? Três anos. [Silêncio] Porque eu não sabia o que era dureza e lá eu fui aprender. P: Você achava que o serviço de casa era mais fácil do que o que você fazia no frigorífico? Era fichinha, fichinha! Era uma beleza! Aí depois que eu entrei no frigorífico que eu vi como o bicho pega. Aí que eu comecei a passar humilhações... entendeu? P: Que tipo de humilhação? Ih, minha filha! Ali você passa todo tipo de humilhação que você possa imaginar. [Pausa] Os outros te xingam, praticamente te chamam de prostituta... P: Eram pessoas que estavam trabalhando que faziam isso? Era. Como é que o cara me chamou lá, gente? [Pausa] Um cara lá me chamou de quenga. P: Do nada? Do nada! “Aí fulano, chegou mais uma quenga aí pro cê!” P: E o supervisor não repreendia esses funcionários? Ih, menina! Eu já arrumei muita confusão naquele frigorífico... Eu tenho trauma daquilo lá! Eu começo passar mal quando eu lembro que tenho que voltar pra lá. P: Quando você voltar, é para o mesmo posto, para o mesmo lugar?

1Outras situações em que Clara trabalha em troca de ajuda serão explicitadas por Edson na segunda fase da pesquisa. Em nenhuma delas partiu de Clara dizer que seu pagamento não é feito em espécie. Ao contrário, quando ela diz que é paga, é em dinheiro que deixa subentendido, haja vista que pagamento é uma expressão que não condiz com a categoria ajuda – exatamente por isso, Edson não a utiliza. O trabalho de Clara, na visão de Edson, é a contrapartida de uma relação de reciprocidade. Clara concorda em parte, como sugere a substituição de ajuda por trabalho e, assim sendo, o incômodo em reconhecer sua gratuidade. Os anos de trabalho sem remuneração à família de criação, embora tenha sido o que a familiarizou e lhe rendeu reconhecimento social, lhe rendeu também a pecha de boba (mais uma ambiguidade entre tantas que permeiam a relação em questão), à qual Clara já demonstrou seu desagrado.

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Aí isso eu não sei. Não sei. Mas só que agora eu não sou boba como eu era quando entrei lá, né? Porque agora muita coisa mudou... Agora eu não aceito. Agora eu já tenho padrinho lá dentro! Meu cunhado trabalha lá, sabe? Meu cunhado é chefão! P: Seu cunhado como, irmão do seu marido? É... É meu concunhado na verdade, é marido da minha cunhada. P: Irmã do seu marido? É. Então, quer dizer; agora as coisas modificaram! P: Você diz: “agora eu não sou mais boba”, por quê? Quando você entrou lá você era boba? Eu era boba! P: Por quê? Porque eu era boba! Eu era boba! P: Pelo fato de ter vindo de Bagre Bonito, uma cidade muito pequena? É... de aceitar todo tipo de humilhação. Os outros vem te humilhar, você chora e não fala nada. P: É? Você era assim? Era. Eu era assim, ué?! P: Mesmo sendo atrevida, como você disse, você aceitava humilhação? Mas eu aprendi foi lá [no frigorífico]. P: Nesses últimos anos? Nesses últimos anos. Porque eu aceitava... Os outros falavam as coisas comigo e eu ficava calada. Eu chorava, mas não revidava. P: E você sempre foi assim? Na sua infância, adolescência... os outros te falavam coisas que você não gostava e você aceitava? É, eu ficava calada, guardava aquilo para mim. P: E agora você é diferente? Agora não! Agora se você me ofender aqui, você pode ter certeza que vai ser ofendia ali na frente. Eu acabo com você aqui! P: Você retruca? Eu retruco na hora! Vou falando, vou falando, vou falando até... chegar no ponto. Eu chorava, chorava, chorava muito... P: E não retrucava, guardava para você? Não falava nada, guardava tudo para mim. E com isso eu fui sofrendo muito, sabe? Sofri demais da conta com isso. Até lá no frigorífico era... Depois de um certo tempo, até um ano e pouco eu aceitei, depois eu não aceitei mais. Aí comecei a soltar os cachorros: o que eles faziam comigo, eu fazia com eles; gritavam comigo, eu gritava com eles. Nossa Senhora! Eu era impossível! Eu acho que eles devem dar graças a Deus por eu não estar lá, sabe? Porque eu acho que se eu voltar, eu faço a mesma coisa. [...] Quando o cara me chamou de quenga, tinha uns quatro meses que eu estava lá, aí eu saí [de perto do cara] e falei: “Não vou mais trabalhar aqui”. Mas aí eu resolvi voltar. Cheguei nele e falei: “Do que você me chamou?” Ele disse: “Não, eu não te chamei de nada não.” Eu falei: “Chamou sim. Repete aqui agora! Eu sei muito bem do que você me chamou. Você me chamou de quenga. Eu não sou quenga não! Você me conhece? Você sabe quem eu sou? Eu posso ser uma espiã aqui dentro, meu filho. Eu não sou boba não!” Aí fui falando, falando, falando... Aí saí igual a uma vaca brava e fui falar com o chefão: “Olha, eu não vou mais trabalhar ali porque fulano fez isso, isso e isso... Eu estava

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quietinha no meu canto. Ele não me conhece e eu não conheço ele. E eu não tenho culpa se ele não soube escolher uma mulher para ele”. [...] Aí ele [o operário que a ofendeu] me pediu desculpas e virou meu amigo. Ele falou: “Eu pensei que você fosse igual às outras que entram aqui e dão confiança para a gente.” [...] P: Clara, você me disse que está há três anos afastada do trabalho por causa de um problema na mão. Como foram esses três anos longe do trabalho? Você sentiu falta? Nos primeiros meses eu senti falta, depois não, sabe? Eu com doze dias de cirurgia, eu voltei a trabalhar. Com doze dias! Eu estava com os pontos ainda e cismei que ia voltar a trabalhar. Aí eu voltei, trabalhei uns quatro dias e aí começou o carnaval. Eu não podia trabalhar de jeito nenhum! Aí trabalhei esses quatro dias e depois entrou o carnaval e eu não voltei mais. No dia que acabou o carnaval, eu voltei para trabalhar, só que eles não deixaram eu trabalhar. Eu estava sozinha, nem o Edson [marido] estava comigo. Eu morava sozinha aqui. [...] P: Qual era o seu cargo lá no frigorífico? Auxiliar de produção. P: E como era? Você tinha que colocar a mão na massa mesmo? Mão na massa mesmo. Eu só mexia com peito de frango. Só com peito. [...] P: Oito horas de trabalho? Oito horas que nada! Doze horas. P: Doze horas? Doze horas de trabalho! Doze horas! P: Fazendo o mesmo movimento? O mesmo movimento! [...] Em três segundos você tinha que encher uma caixa daquela de vinte quilos! Enquanto um vai enchendo o outro vai tirando, o outro faz outra coisa... tudo rápido! Tudo rapidinho! Aí depois a gente embalava. P: Então você tinha mais de uma função? Tinha mais de uma função. Mas, só no filé de peito. Eu só mexia com filé. Todo mundo trocava de esteira, eu, eles não me trocavam. Eu ficava ali o tempo todo. [...] P: Qual é a importância do trabalho para você? Você trabalha por que precisa ou por que gosta? Porque eu preciso e porque eu gosto. Porque precisar, eu acho que todo mundo precisa. Eu gosto de trabalhar, eu não gosto de ficar à toa. Nunca gostei de ficar à toa. Eu comecei a trabalhar com sete anos de idade! Sete anos! Com sete anos eu comecei a lavar vasilha, se não desse altura, eu colocava um banquinho; mas que eu trabalhava, eu trabalhava! Aprendi a fazer comida... Então, assim: eu sei fazer de tudo que você possa imaginar. Eu sei costurar, eu sei bordar, eu sei fazer crochê... sabe? P: E quem te ensinou? Foi a minha mãe adotiva. Então, quer dizer; nada me dá medo não! Nada é difícil para mim não. Adoro arrumar casa, adoro fazer doce... tudo eu sei fazer um mucadinho [bocadinho]! P: E nesse tempo em que você ficou afastada, você ficou só com o serviço de casa? Nada, boba! Eu trabalho na minha sogra, eu trabalho na minha cunhada... Eu lavo roupa, eu passo, eu bordo, eu costuro... P: Para os outros?

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Não, para mim. P: E o trabalho fora, na sogra e na cunhada? Aí só na minha sogra e na minha cunhada. P: Nesse período de licença? Nesse período de licença. P: Mas não é registrado, né? Não, não é nada. O frigorífico nem pode saber, né? P: E o que você faz na casa delas? Eu lavo, passo, cozinho... Faço de tudo, de tudo. P: Nas duas? É, nas duas. P: Elas te pagam? Me pagam. P: É um trabalho? É um trabalho. P: Na sua sogra e na sua cunhada? Na minha sogra e na minha cunhada. Na minha cunhada eu vou só uma vez por semana, na minha sogra é que eu vou todo dia. P: Então você não consegue ficar parada? Consigo não. Ainda tenho a minha casa. Eu chego três e meia da manhã... P: Você trabalha em que horário [no frigorífico]? Das três às três [15h às 3h], até chegar em casa, três e meia. P: Você vem de ônibus? Venho, até a esquina ali, né? Porque dali eu tenho que vir a pé. Aí eu durmo até nove e pouca [9h] e está bom! Eu vou para a dona Guiomar [sua sogra]. Arrumo as coisas, faço o almoço para ela e dali eu já vou para o trabalho. Dá tempo! Pouco tempo, sabe? Porque aí, no caso, já vai ter a minha casa e a dela. A da minha cunhada eu vou ter que largar. P: E o seu marido não reclama de você trabalhar tanto? Não adianta reclamar não. P: Por quê? Você não ouve? [Faz um meneio negativo e começa a rir] Para mim, quanto mais dinheiro estiver entrando, para mim é melhor. Porque eu acho assim: a mulher tem suas necessidades... Ela quer comprar as coisas dela e ficar pedindo dinheiro ao marido, não dá certo! Eu já falei: quando eu arrumar as coisas do meu jeito, aí eu paro de trabalhar um mucado [bocado]. Eu quero comprar um armário para mim, sabe? Quero comprar uma bicama para aquele quarto ali, quero trocar meu jogo de sofá... Então quando eu fizer tudo... Quero fazer uma varanda ali atrás... Aí eu paro de trabalhar.

6.8 – O relacionamento de Clara e Edson O casal mora junto há três anos na casa de Clara. Considerando a narrativa acima

e o fato de Edson receber um salário mínimo de aposentadoria do qual subtrai a pensão

alimentícia para seus dois filhos do casamento anterior, suponho que as despesas da casa são

arcadas, principalmente, por Clara. A aposentadoria por invalidez é decorrente de um acidente

de motocicleta em que Edson perdeu o nervo do braço. Visivelmente, entretanto, não há

sequelas que prejudiquem seus movimentos ou que o impeçam de continuar a utilizar o

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veículo. Antes de se aposentar, Edson teve vários empregos intercalados por períodos de

desemprego em que contava com a ajuda financeira de sua mãe e do seu capital familiar para

a conquista de novos postos de trabalho. Os conhecidos que me passaram essas informações o

descreveram como a ovelha negra de uma família de gente rica e conhecida.

Durante a entrevista, Edson chegou da rua e veio nos cumprimentar na cozinha.

Embora não tenhamos conversado muito, este breve reencontro foi importante para observar

seu comportamento sóbrio e a interação mais ativa de Clara. Mais comedido em entusiasmo,

gestos e palavras, Edson se apresentou como se não me conhecesse, repetindo partes da

conversa anterior: Você é de onde? Clara não hesitou em interrompê-lo: Ô, Edson! É a

sobrinha da Janice! E voltando-se para mim, sem se intimidar com a presença do marido,

completou: Ele estava tão tonto naquele dia que nem se lembra! Logo em seguida, Edson foi

para o quarto e ligou a televisão, nos deixando a sós. Seu comportamento me passou a

impressão de ter sido orientado a não atrapalhar.

A história do relacionamento de Clara e Edson nos ajuda a conhecer um pouco

mais de Clara. Mais uma vez, sua narrativa não condiz com a narrativa de seus conhecidos.

Ao falar sobre namoro e casamento, Clara cita o pavor de sua mãe diante a possibilidade de

ficar sozinha caso ela se casasse, com Edson ou com qualquer pessoa. Outra compreensão

importante a partir da análise do seu relacionamento diz respeito à idade de Edson. Em

versões anteriores deste texto, trabalhei com a suposição, baseada em sua aparência, de que

ele tinha idade próxima à de Clara, pois não me lembrava de ter feito esta pergunta, como, de

fato, não a encontrei na transcrição da entrevista. Recentemente, na redação desta tese, além

de reler as transcrições, busquei reviver as entrevistas escutando as narrativas, me atendo ao

ritmo, à entonação das palavras e aos momentos de silêncio. Embora eu não tenha perguntado

a idade de Edson, ela foi dita. Sua importância não está na informação em si, mas na

entonação com que foi proferida, algo que escapa aos limites de uma transcrição. Ao

questionar a aposentadoria de Edson, haja vista ele ser “novo” para se aposentar, Clara me

corrigiu de chofre, sem, contudo, responder à minha pergunta: O Edson tem 40 anos! Meu

interesse em saber o motivo da aposentadoria nublou a própria informação da idade e,

sobretudo, o desagrado de Clara com a diferença de idade entre eles. Aqui pode estar a

explicação para a imprecisão de sua idade (ora 52, ora 54 anos). Contudo, ao me dar conta

disso, passou a me chamar mais atenção as passagens cujas contas não fecham e mais

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desagradável a diferença de idade ficou: 49 anos (idade com que ficou sozinha) + 15 anos

(tempo que a mãe morreu) = 64 anos.2 P: Quando foi que você resolveu se casar? Foi sempre uma vontade desde novinha? Não, de casar eu nunca tive vontade. Eu tinha vontade de morar junto. P: Então você tinha vontade de ter alguém, um namorado, um companheiro...? Não, não tinha. Nada, nada, nada... [risos] Aconteceu num estalo! P: Então, quando você morava com a sua mãe, você não tinha vontade de sair, de ir morar com alguém? Tinha. Tinha vontade, mas toda vez que eu arrumava um namorado, ela [a mãe] já ficava com aquele medo, com pavor de que eu ia deixar ela sozinha, sabe? P: É, só tinha você... Só tinha eu dentro de casa com ela. Ela ficava com aquele medo de que eu ia casar e ela ficar sozinha dentro de casa. P: Aí aquilo te cortava. Aquilo me cortava e eu acabava. Aí eu falava: “Ih, gente! Agora não tem jeito mais não!” Mas você precisava ver o pavor que ela ficava. P: É mesmo? E o que ela te falava? Ela falava: “É, agora eu vou te perder mesmo, porque você vai casar e vai embora...” Eu falava: “Uai, a senhora vai morar comigo! Não importa aonde que seja, a senhora vai morar comigo.” Ela: “Ah, mas não dá certo!” Eu: “Ah, dá certo sim!” [Silêncio] P: Aí ela te convencia? Aí ela me convencia. P: Você conheceu o Edson aqui em São João? Ih! Eu conheço o Edson ó [olha]: [estala os dedos indicando muito tempo]. Nossa Senhora! Há séculos! Tem vinte e dois anos que eu conheço o Edson. P: Então é desde que você morava em Bagre Bonito? Nossa! Toda a vida. P: E a família dele é daqui de São João? A família dele é daqui. Nós éramos amigos, mas amigos mesmo. Na época ele era casado. [...] P: E como foi que começou? [risos] Ah, minha filha! Essa história nossa foi do nada! Eu vinha da fisioterapia [que fazia na mão após a cirurgia] [...] e ele estava num barzinho. Foi numa quarta-feira, dez de março... Eu não esqueço disso! Aí ele perguntou: “Ô, Clara, o que você vai fazer hoje?” Eu falei: “Nada! Eu vou arranjar um lanche e vou dormir.” Ele disse: “Ah, vamos sair!” Eu falei: “Não, porque eu estou sem dinheiro. Ainda não recebi...” Ele falou comigo: “Ah, vamos sair, boba! Eu também não tenho muito, mas eu tenho dez reais no bolso.” [risos] Aí nós saímos, fomos num barzinho. Aí ele me trouxe em casa e falou comigo: “Você não vai me convidar para entrar não?” Eu falei: “Não!” Ele: “Mas eu vou entrar assim mesmo e tomar um cafezinho.” Aí entrou, ficamos conversando da vida... Aí

2Não tenho condições de afirmar a idade real de Clara. Aparentemente, acho que 54 anos lhe seja mais justo. Embora esta não seja uma informação imprescindível para a pesquisa, tentei investigá-la, delicadamente, com seus conhecidos (entre eles, minha tia) no sentido de melhor compreender seu problema com a idade. O que me chamou atenção não foi o fato de ninguém saber ao certo, mas a recorrente justificativa para a possibilidade de ser 64 anos: pessoa negra não aparenta idade, custa envelhecer. Tal senso comum me fez pensar em uma possível correlação com o trabalho pesado atribuído aos filhos de criação (todos de origem negra, com exceção de Sebastião Mundinho) até idades avançadas.

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ele veio aqui para o quarto, ligou a televisão e disse: “Ah, tá passando jogo [futebol], né? Vou dormir aqui na sua casa hoje!” E está dormindo até hoje! [risos] Eu conto essa história para os outros, que nós não namoramos [resolveram logo se casar, morar junto] e ninguém acredita! [risos] Nós não namoramos! P: E nessa época ele já tinha se separado da mulher? Já tinha separado. P: Ele tem filhos? Ele tem dois. P: E você? Eu não. P: Tem vontade de ter? Não. Agora que eu não vou ter filho mesmo, né? Por causa da idade. P: E você se arrepende de não ter tido antes? Não... Eu quando eu era mais nova, que não tinha juízo, eu tinha vontade de ter um filho. Quando eu não tinha juízo, com uns 18 anos assim, sabe? Eu tinha vontade sim, mas até que eu pensava bem, boba! Eu falava assim: “Gente, eu vou ter filho... eu não tenho marido. Quem vai me ajudar?” P: É, você morava com a sua mãe ainda... É, morava. Eu pensava: “Eu não vou dar esse desgosto a ela, de ter um filho dentro de casa.” Porque para você ter um filho, você tem que pensar muito. Eu não tinha condições de ter um filho, agora que eu acho que eu tenho condições, agora eu já não posso mais. Eu falava que eu ia adotar... Agora já não quero mais, não tenho paciência mais. Passou. É igual o Edson fala: “Se nós tivermos um filho agora, quem vai olhar? Você vai curtir o seu filho? Não vai.” P: E como é a sua relação com os filhos dele? Maravilhosamente bem! O pequenininho, de 13 anos, que é o caçula, me chama de mãe... Ele tem dois, um está com 19 anos e o outro está com 13. P: E com a ex-mulher dele? Como é a sua relação? [Em tom seco] Não conheço. [Silêncio] Ela não mora aqui, né? Ela mora em São João Del Rei. P: E as crianças moram com ela? Moram com ela. [...] [...] P: Ele é aposentado, né? É, aposentado. P: Por quê? Ele é novo. O Edson tem 40 anos! P: Então, ele é novo para se aposentar. Ele teve um acidente e perdeu o nervo do braço. Acidente de moto. P: Ele trabalha, mesmo aposentado? Não, trabalha não. P: Vive só da aposentadoria? Só da aposentadoria. P: E ele fazia o que antes? Trabalhava na distribuidora [de bebidas] com o cunhado dele. O Edson já trabalhou na cooperativa, já trabalhou na retífica, trabalhou na distribuidora... Ele era representante da distribuidora. P: E ele fica em casa? Fica em casa.

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P: O tempo todo? O tempo todo. P: E você não se importa? Não! Ah, eu nem esquento! Ele estando em casa perto de mim, eu acho melhor, sabe? Ele já foi muito arteiro! Nossa Senhora! Mas não é por causa de mulher não, sabe? [Com voz baixa:] Ele gostava de droga, bebia muito... O Edson era das noitada, menina! Você não achava o Edson em casa à noite não. Ele saía na quinta-feira e chegava na segunda! Depois que está comigo, não! Agora ele é outra pessoa. Bebe uma vez por semana. P: Isso foi instituído? Não, não. P: Foi disciplina dele mesmo? Disciplina dele mesmo. Porque, igual ele falou; ele nunca teve uma companheira mesmo, de verdade. Ele chegava, os outros brigavam com ele e tudo... Eu não! Quando ele está bêbado eu não falo nada, mas, no outro dia, eu falo tudo o que eu tenho de falar. Igual naquele dia [nosso primeiro encontro], ele estava chato... Eu não falei nada. Mas no outro dia eu sentei e falei com ele, até ele entender. [...]

6.9 – Participação na herança Como mencionado no capítulo etnográfico, a inclusão do filho de criação na

divisão dos bens materiais dos pais, historicamente, não é comum. Entre os filhos de criação

entrevistados, apenas Clara foi incluída na divisão da herança, de modo desigual. Sua

narrativa sobre querer só uma casa remete à narrativa coletiva sobre a família de criação não

deixar o filho de criação desamparado. Pedro, seu irmão caçula, insistiu que ela fosse morar

em sua casa, já que era tão ligados e Clara tão afeita aos seus filhos. Os demais irmãos lhe

propuseram uma casa em Bagre Bonito. Clara negou ambas as situações; muito antes decidira

que não moraria em Bagre Bonito após a morte dos pais. Na segunda entrevista, Clara

mencionará uma justificativa bastante plausível para que os irmãos aceitassem sem resistência

a sua decisão: não ficaria em Bagre Bonito porque sentiria muita saudade dos pais.

Nota-se que, mais uma vez, as contas não fecham. Inicialmente, Clara diz que

seus irmãos tiraram a parte menor, depois, ao detalhar a divisão, explica que seus irmãos

receberam o dinheiro resultante da venda da casa dos pais, mais terras e gados e que ela

preferiu só o dinheiro da casa; isto é, 30 mil reais. Como ela informa, a casa de seus pais foi

vendida por 120 mil reais e resultou em 30 mil reais para cada filho. Considerando apenas os

quatro filhos consanguíneos do casal, sim, a conta é exata.

Outra variação relevante apontada pela narrativa de Clara diz respeito ao

conflito entre o ideal moral de não valorizar dinheiro e sua necessidade real, individual.

P: Ah! Então os seus pais não te deixaram essa casa, te deixaram o dinheiro?

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É, deixaram o dinheiro. Eu que escolhi aqui em São João. Eles [os irmãos] queriam que eu comprasse em Bagre Bonito, mas eu falei que em Bagre Bonito eu não moro! P: Como foi a divisão do dinheiro? Eles deixaram um testamento? Não, eles tinham uma casa muito boa em Bagre Bonito. Uma casa que foi vendida por 120 mil [reais]. P: Eles tinham terras? Tinham terras... Mas eu quis a casa. No caso eu quis uma casa. Porque terra... O que que eu vou fazer com terra? P: São mais cinco irmãos, não é isso? É, são mais quatro; comigo, cinco. Aí os outros irmãos tiraram, tipo assim, a parte menor... Todos tiraram terra no valor da casa, que foi trinta mil para cada. Eles ficaram com terras. Terra e boi. P: Ah, então essa casa rendeu 30 mil reais para cada filho, mais as terras? É, 30 mil mais terra. Mas eu preferi só o dinheiro da casa. P: Aí você ganhou 30 mil e escolheu onde queria comprar a sua casa? É. Eu fiquei com 30 mil e escolhi onde eu quis comprar. Para mim não precisava ser uma casa muito grande, né? P: Aí você veio morar sozinha? Vim morar sozinha. [...] P: Você acha que dinheiro traz felicidade? Para mim não! [risos] Não faz falta para a felicidade não. Para mim não! [...] P: O que te deixa triste? Ficar sem dinheiro [risos]. Por exemplo: eu quero comprar uma coisa e não ter dinheiro para comprar. É muito triste, gente! P: O que te deixa alegre? [Silêncio] Tá! Dinheiro me deixa alegre, mas trabalho me deixa alegre, saber que eu tenho alguma coisa para fazer, sabe? Me deixa alegre. P: Você é reconhecida no seu trabalho? Você acha que as pessoas valorizam o seu trabalho? Isso eu sou. Eu sou valorizada. P: Isso ajuda na sua autoestima? Ajuda e muito! P: Quando você está triste, sem saber o que fazer... a que você se apega? Eu quero o meu marido! P: É? Ele me dá força. [...]

6.10 – Religiosidade, preconceito racial, desigualdade de gênero e importância da família

Clara compartilha tanto os princípios morais quanto os preconceitos que orientam

a maioria dos moradores dos dois municípios pesquisados. Excetua-se apenas sua resposta

inusitada sobre a importância da família.

P: Você acredita que uma vida de sofrimento é sinal de felicidade depois da morte? É... eles dizem, né?

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P: Mas você acredita? Não acredito muito não. [Silêncio] P: Você acredita que as pessoas que sofrem têm mais chances de ser salvas? Ah, nisso eu acredito. P: Você acredita em céu, inferno? Acredito. P: Em diabo...? É... Não... Eu acredito que existe céu. O inferno é aqui, aqui na terra. Aqui se faz, aqui se paga. A gente paga é aqui na terra. [...] P: Você acredita em outras vidas? Tem outras vidas. P: E você acha que vai voltar em outra vida? Eu creio que sim. P: Como você queria voltar? Queria voltar homem! [risos] Queria ser homem! P: O que você faria na próxima vida que você não fez nessa? Eu ia estudar. P: Você se arrepende de não ter estudado, né? Hoje, né? P: Você já sofreu algum tipo de preconceito? Não... P: Você acha que os negros são vitimas de preconceito? Ah, são! São muito! Eu falo com o meu marido que eu não sou negra, eu sou achocolatada [risos] e ele morre de rir! Eu sou achocolatada! [risos] Mas eu amo a minha cor, tá?! Sou apaixonada com a minha cor! Sou mesmo! [...] P: Você acredita em índole? As pessoas nascem boas ou más? Oh! Tem sim, tá? Tem gente que nasce ruim! P: Você acha que as pessoas podem mudar ao longo da vida? Olha, é meio difícil mudar, tá? P: O que você acha que pode mudar uma pessoa? [Silêncio] P: Religião? Trabalho? Não. Eu acho que é a família. P: Você acha que a família é importante? Vou ser sincera: família é importante, mas para mim, não. [Silêncio] P: Mas você sempre teve família... Sempre tive, mas nunca fui muito ligada à família não. [Silêncio] P: Você era independente? Era. Acho que pelo jeito que eu fui criada... sou mais deligada.

6.11 – Tudo o que eu era, eu sou hoje. Para concluir a entrevista, tentei uma espécie de síntese através de uma

recapitulação pontual por decênios. Contudo, a resposta de Clara foi mais sintética do que eu

poderia imaginar, tornando irrelevante a continuação. Ao longo da entrevista, a variação

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narrativa trouxe à tona um discurso libertador e práticas submissas, como uma rebelde com

causa, mas sem efeito. P: Tenta falar para mim como você era aos 6, aos 15 e aos 25 anos de idade. O que mudou? [Longo silêncio] Ah... minha vida não mudou muito não. Tudo o que eu era, eu sou hoje. Não mudei não. P: O seu jeito não mudou? Não, mesma coisa. [Silêncio] P: Você se sente realizada? Eu me sinto realizada. P: Se sente feliz? Feliz. Me sinto feliz. P: Falta alguma coisa para completar essa felicidade? Não! P: Teve alguma época em que você não foi feliz? Na época em que eu morava lá em Bagre Bonito. [Silêncio] Eu tenho trauma de Bagre Bonito! [risos] Não gosto! Tenho pavor de lá! Sabe o que é não gostar de um lugar? Sou eu! P: Então, no tempo em que você morou lá, você não era feliz? Não. Nunca fui feliz. P: Mesmo morando com uma família que te dava carinho, como você me disse? Não. Eu não gostava de lá. P: E aqui você se sente bem? Aqui eu me sinto bem. Me sinto bem demais aqui! Lá eu não sentia. P: E abriu mão de sair, de ir para uma cidade maior e ficou com eles mesmo não estando feliz? Fiquei até eles morrerem, mesmo não estando feliz. Eu falei: “Eu fico aqui até cumprir tudo aqui!” P: A sua “missão”, como você disse... Minha missão, minha missão. Fico até cumprir minha missão! P: Você não pensava em ir embora? Não. Eu tenho honra! O que as pessoas iam pensar de mim? P: E qual era a sua missão? Cuidar deles. Agora eu não tenho missão nenhuma lá mais. Agora eu estou vivendo a minha vida! [Repete com exaltação] Agora eu estou vivendo a minha vida! Tô tendo a minha vida agora. Agora eu faço o que eu quero! Se eu quiser fazer almoço, eu faço; se eu não quiser, eu não faço. Eu faço as coisas que eu quero na hora que eu quero! É claro que quando eu voltar a trabalhar não vai ser assim, né? Porque lá no frigorífico é tudo muito rápido, você não pode parar um minuto, e o chefe ali, em cima de você.

Barão de São João Batista, 23 de janeiro de 2007.

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CAPÍTULO 7 – MARIA E JOANA

The deepest feeling always shows itself in silence; not a in silence, but restraint.

(Marianne Moore, in Silence)

A Vera tem duas senhoras que moram com ela há muito tempo. Esta foi a

primeira informação que obtive das irmãs Maria e Joana, através de minha tia Janice.

Indicação um tanto vaga e aparentemente distante daquilo que eu observava. Posteriormente,

conversando com moradores de Barão de São João Batista, novas menções foram feitas: elas

foram filhas de criação da mãe da Vera; cuidam da Vera desde que ela nasceu; são tratadas

como escravas, mas não abandonam a família.

Esta foi a primeira vez que a categoria “escravo” foi associada a um filho de

criação. Retornei à minha tia em busca de mais informações e de uma apresentação. Sem

saber ir muito além do que havia me dito, reiterou a narrativa de seus conterrâneos com

informações práticas; como o endereço e o telefone de Vera. Antes de entrar em contato,

soube que minha mãe também era conhecida de Vera, o que foi fundamental para minha

recepção.1

No início de janeiro de 2007, liguei para Vera. Após dar minhas referências, isto

é, de quem sou filha e sobrinha, ela foi muito receptiva. Expliquei-lhe que fazia uma pesquisa

sobre “laços de família entre pessoas sem parentesco” e que minha tia havia comentado sobre

as duas senhoras que moravam com ela como se fossem da família. Vera confirmou com

exaltação: Nossa Senhora! Elas estão comigo desde que eu tinha um ano! São como se fossem

da família mesmo! Na verdade, o relato de minha tia (e de outros conhecidos, como

supracitado) foi bem diferente: Acho que a Vera não tem noção de como ela escravizou

aquelas duas. Conversamos um pouco sobre questões que retornarão na entrevista e sobre a

própria pesquisa. Sem colocar qualquer obstáculo, Vera me deixou à vontade para ir à sua

casa entrevistar as duas (modo como se refere à Maria e à Joana), escolhendo, ela mesma, a

data e o horário que lhe eram mais convenientes. Pedi, então, que perguntasse à Maria e à

Joana se estavam dispostas a me receber e me conceder uma entrevista, mas não foi

necessário, já estava decidido: Pode vir sim, elas respondem. Você vai ver, elas são dóceis.

1 O contato entre elas restringe-se ao profissional. Minha mãe é representante comercial da confecção que fornece uniformes para a instituição de ensino em que Vera trabalha.

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Maria e Joana são irmãs consanguíneas. Maria foi dada para a família de Vera

com 8-11 anos de idade e Joana com 7-9 anos, não sabem ao certo. Na época desta entrevista,

elas tinham 82 e 80 anos, respectivamente. Moravam com Vera, 70 anos, filha consanguínea

do casal que recebeu Maria e Joana como filhas.

7.1 – A casa de Vera X o quarto de Maria e Joana

Vera mora em uma espaçosa casa situada no único bairro exclusivamente

residencial de Barão de São João Batista, o bairro mais chique. Sua condição financeira é

classificada como muito boa. Sempre foi assim; sua família era rica, tradicional e muito

conhecida em um município vizinho, também pertencente à Zona da Mata. Seu avô era

médico e seus pais eram ambos farmacêuticos formados, possuíam uma importante farmácia

de distribuição que abastecia as demais da região. Além da farmácia, a família possuía

fazendas, entre elas, a fazenda em que a família consanguínea de Maria e Joana trabalhava e

morava de favor.

Cheguei à casa de Vera no horário estabelecido, mas ela não estava pronta para

me receber. Devido a alguns contratempos, não deu tempo de me aprontar, de passar um

batom, de colocar outro vestido... lamentou-se durante toda a entrevista. As pessoas com

quem conversei a seu respeito a descreveram como uma mulher muito elegante: cabelo

sempre arrumado (tingido de louro e escovado), sempre maquiada, muitos brincos, colares,

anéis e roupas boas, feitas sob medida. Apesar dos lamentos, Vera foi simpática e receptiva.

Repetidas vezes me fez elogios e pediu que eu voltasse mais vezes. Me acomodou na sala de

jantar, para que eu pudesse apoiar o caderno para escrever, e se retirou para chamar as duas.

Sentei-me em uma das doze pesadas cadeiras de madeira maciça e espaldar alto que

compunham a comprida mesa de jantar. Havia muito esmero na decoração: um vaso com

flores naturais enfeitava o centro da mesa; logo acima, uma tela “natureza-morta” decorava a

parede; na outra extremidade da sala, havia uma estante estreita com garrafas de bebidas e um

barzinho (móvel de madeira com taças dependuras e um balcão sobre bancos esguios) e na

parede oposta à mesa, um aparador exibindo um Menino Jesus. Não conheci o restante da

casa, observei-a apenas panoramicamente. Nota-se que é uma construção moderna e

arquitetonicamente projetada; possui térreo, primeiro e segundo andares. No térreo, há um

jardim, um canil, uma garagem para aproximadamente quatro carros e o quarto onde dormem

Maria e Joana. Na frente da casa, uma escada liga o portão de entrada ao primeiro andar. Um

hall espelhado recebe a visita, seguido de uma saleta, da sala de visitas e da sala de jantar

compondo juntos o ambiente de estar.

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Vera mora há poucos anos nesta casa, não sei precisar quantos. Embora seja uma

construção moderna, o fato de Maria e Joana habitarem o térreo é antigo. Quando a Vera

morava na praça, elas moravam no porão, informação que me instigou a conhecê-las e

claramente determinante para a percepção delas como escravas, associada a outras, como

veremos. A casa anterior de Vera é uma construção antiga, em estilo neoclássico – tal como

outras construções ao redor atualmente tombadas como patrimônio histórico –, localizada na

praça de Barão de São João Batista. Comparando-se a um porão, um quarto projetado para

elas na casa nova, é algo que, de fato, demonstra consideração. O que ninguém comentou é

que o quarto fica no quintal.

7.2 – O autoritarismo de Vera

Enquanto aguardávamos Maria e Joana, Vera quis saber mais sobre a pesquisa.

Notei certa tensão quanto aos meus interesses e também um esforço para me convencer da

relação de família; em que não há brigas, nem desentendimentos, só harmonia. Vera se

mostrou uma pessoa calma e delicada; falou baixo e pausadamente, com boa dicção em bom

português.2 É formada em pedagogia e em psicologia. Repeti que a pesquisa buscava entender

como se constrói uma relação familiar entre pessoas sem parentesco, isto é, sem

consanguinidade, e que faria perguntas sobre o dia-a-dia, sobre como Maria e Joana foram

dadas para a sua família, sobre a infância delas junto à família consanguínea etc. Com

segurança, Vera me adiantou: Eu sei a vida delas todinha! Contra-argumentei dizendo que eu

precisava ficar a sós com as irmãs, o que, de modo persuasivo, foi negado: Nossa! Elas estão morrendo de medo de você! Quando eu disse a elas que ia vir uma moça entrevistá-las, a Maria me disse: “Ai! Não me deixa sozinha com ela não, Vera!” É melhor eu ficar junto na entrevista porque elas não vão saber te falar direito; uma delas está meio doida. Soou agressivo e inapropriado a classificação de doida por uma psicóloga. Suas

justificativas não me convenceram, mas não insisti com receio de perder a entrevista. A

suavidade com que fala, relativiza, no plano narrativo, a sua autoridade. Contudo, é também

narrativamente que esta é afirmada e praticada. Vera deu um exemplo disto ao demonstrar

como reprovou o mau comportamento de seu filho naquele mesmo dia, em que os ânimos

estavam exaltados em função do delicado pós-operatório de um dos seus cachorros de

estimação.

2Embora, algumas vezes, tenha utilizado palavras um tanto grosseiras.

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O meu filho Bebeto está morando aqui comigo. Ele é professor de educação física e está separado da mulher... E ele é muito apegado à cachorrinha, sabe? Hoje de manhã ele me respondeu mal, gritou comigo. Ele está muito nervoso por causa da cachorrinha. Mas aí eu disse a ele: “Escuta aqui: você mora dentro da minha casa, come a minha comida, então, você não fala desse jeito comigo.” Aí, mais tarde, quando eu estava tomando banho, ele bateu na porta do banheiro e me pediu desculpa. Aqui em casa é sempre assim, não fica mal-entendidos, ninguém fica com raiva de ninguém. Além de seu filho Bebeto, sua filha Eliane e sua neta Ana Carolina, 16 anos,

estavam na casa ocupando-se da cachorrinha. Pude ouvir suas conversas, mas sem nenhum

incômodo; durante o tempo da entrevista, permaneceram no jardim ou longe da sala de jantar.

7.3 – Joana

Conversamos apenas Vera e eu por cerca de dez minutos, até que chegou, em seus

trapos tristes, uma senhora negra, pálida e franzina, com olhar cabisbaixo e andar pesado. Era

Joana. Usava chinelos, uma saia azul abaixo dos joelhos, uma puída camiseta branca com

propaganda de vereador cuja gola esgarçada deixava parte do seu ombro à mostra e um pano

branco cobrindo os cabelos. Assim que chegou, Vera se levantou e foi abraçá-la: Joana, essa

daqui é a médica que eu disse que viria te consultar e dar uma injeção nessa bunda! Depois

lhe deu um beijo, recebido sem reciprocidade, nem sinal de contentamento, e pediu à Joana

que se sentasse, puxando a cadeira para ela. Notadamente, a intimidade de Joana com a sala

de jantar não é de comensalidade; sentou-se com parcimônia, limitando-se à borda da cadeira,

sem se recostar. Permaneceu todo o tempo curvada, com as mãos entrelaçadas entre as pernas

e a cabeça baixa, erguendo apenas o olhar quando, laconicamente, respondia a alguma

pergunta. Acanhada como estava, naquela imponente cadeira cujo espaldar aumentava na

medida em que a subtraía, me olhou sempre debaixo.

Assim que a cumprimentei, desfiz a “brincadeira” de que eu era médica. Joana não

disse nada, apenas meneou a cabeça concordando. Vera me explicou: ela não é muito de

falar. E reiterou, desta vez na frente dela, apenas baixando um pouco a voz: está meio doida.

Continuando sua narrativa, percebi que para falar de Joana, Vera fala de Maria, sempre

comparativamente e Joana em segundo plano. Vera: A Maria é mais extrovertida... Como é que eu vou te explicar... Ela é muito engraçada, muito viva, né, Joana? Joana: É. Vera: Ela [Maria] implica com todo mundo! Falante toda hora! Joana permaneceu calada durante toda a entrevista, mas não me deixou sem

respostas; todas as vezes em que lhe dirigi alguma pergunta, repetiu o que a irmã dissera. Em

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duas ocasiões, contudo, Joana não foi tão tímida, tão sem opinião e nem confirmou o

diagnóstico de meio doida. Estes dois momentos tiveram algo em comum: a ausência de Vera.

Mal Vera se retirava, a cadeira ainda côncava dela, Joana se mostrava mais à vontade: me

olhava mais, sorria, achava graça do meu diálogo com Maria, respondia com mais

espontaneidade e, por fim, chegou a me interrogar com curiosidade e lucidez.

Enquanto aguardávamos Maria, continuamos conversando apenas Vera e eu.

Joana parecia prestar atenção.

7.4 – Plasticidade da posição filha de criação

As histórias de Maria e de Joana chamam atenção para a plasticidade da posição

que a filha de criação ocupa na família. Com o decorrer da entrevista, notar-se-á que as

posições de Maria e de Joana variam de modo relacional, como filhas, mães, irmãs, tias etc.,

sempre para preservar uma função primordial: o cuidado.

P: Elas estão com a senhora desde que a senhora tinha um ano, não é? Vera: Você sabe quantos anos eu tenho? Eu tenho 70 anos! Quando eu fiz um ano, a Maria foi lá para casa. A mãe delas era muito amiga da mamãe, moravam na fazenda do vovô. Depois o pai delas adoeceu, morreu, e aí mandaram mais duas, a Joana e a Aparecida, mas a Aparecida não quis ficar... A Joana ficou lá em casa. Foi uma bênção de Deus! P: A história de vocês vai ajudar muito a pesquisa; 70 anos de convivência é bastante tempo. Vera: É, a vida toda. P: A senhora as trata como mãe, não é? Vera: Nossa Senhora! Eu nem tenho mãe mais. Elas são minha mãe, minhas irmãs... Os meus filhos chamam elas de tia, “tia Joana” e “tia Maria”. Quer dizer; elas são da família. [...]

7.5 – Maria Maria chega. Vera se levanta para recebê-la. Não a beija e nem a abraça; apenas

coloca a mão em seu ombro e acompanha seus passos até a cadeira. Enquanto caminham,

Vera a apresenta:

Essa aqui é a mais feinha! [risos] Ela fica impossível quando os outros vêm aqui, porque fica todo mundo achando que ela tá nova, bonitona... [Maria sorri envergonhada] Aí a Joana falou que nem vem mais, né Joana? Porque a Maria fica muito saliente... Maria chegou sorrindo, demonstrando timidez com a minha presença. Caminhava

também lentamente, mas com facilidade. Diferente da irmã, está alguns quilos acima do peso,

possui uma negritude viçosa denotando saúde e contato com o sol. Com relação à

indumentária, vestia as mesmas peças que a irmã, mas não do mesmo modo; a saia abaixo dos

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joelhos combinava com a estampa da camisa de tecido fino inserida no cós, o que conferia-lhe

uma aparência arrumada ainda que usasse o mesmo pano branco cobrindo os cabelos e

chinelos. Suponho, com base no tempo em que demorou para chegar e na explicação que

Vera lhe deu a respeito da entrevista (para sair no jornal e na revista), que Maria tenha se

arrumado para se apresentar. Ela é, de fato, espontânea e comunicativa, mas dependente da

confirmação de Vera. Ao contrário de Joana, Maria se mostrou pouco à vontade na sua

ausência; seu olhar pendulava entre mim e a direção em que Vera estava e sua atenção se

dividia entre a entrevista e a conversa de Vera (ao telefone, em um momento, e com quem

chamou ao portão, em outro).

7.6 – Infância com os pais consanguíneos: na minha época não tinha infância nada, não tinha isso de ficar à toa.

Respeitando a cronologia biográfica, nossa conversa começa com perguntas sobre

a infância. De modo geral, Maria faz coro às narrativas do trabalho infantil caracterizando a

infância. Tal como Clara, ela não se prolonga em retornos ao passado e nem fala do passado

junto à família consanguínea com a mesma espontaneidade e vigor com que narra outras fases

de sua vida. Sua resposta inicial, eu não lembro mais, passou a impressão de recusa; o que foi

dirimido após algumas perguntas mais diretivas. Maria se lembra de muita coisa, menos de si.

O embaraço causado pela minha pergunta sobre a idade delas remeteu a uma atmosfera

kafkiana de presença esquecida, como a que envolve Gregor Samsa ou o artista da fome.

P: É o seguinte: eu preciso que as senhoras me contem como foi a infância... Maria: [risos] Eu não lembro mais. Vera: Eu posso ajudá-las? P: Melhor não. Vera: Porque... eu sei a vida delas todinha! P: Se elas realmente não souberem responder, aí tudo bem. Vocês nasceram onde? Maria: Em São Miguel do Anta. P: É uma cidade aqui perto, né? Vera: É [...] P: E a família da senhora era em quantos irmãos? Maria: Tivemos, mas muitos já morreram, né? Mas tem 3 vivos ainda. P: Mas quantos filhos a sua mãe teve? Maria: Teve quatro homens e quatro mulheres, né? Homem teve mais um homem, mas ele morreu quando criança. P: E como é a lembrança que a senhora tem dos seus pais? Maria: Não lembro não. P: Não lembra? Eles eram calmos, nervosos...? Maria: Eram calmos. P: A mãe da senhora era religiosa? Maria: Era, era religiosa.

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P: Ela passou os ensinamentos de Igreja para vocês? Maria: Passou. Nós ia na igreja no Anta [São Miguel do Anta]. Nós morava na fazenda da família dela [Vera], meus pais era empregado lá. P: O que o seu pai fazia lá? Maria: Trabalhava na lavoura. Plantava café, plantava milho, feijão, arroz... Trabalhava na lavoura, né? P: E sua mãe fazia o quê? Maria: Era dona de casa. Cuidava da lavoura também. P: Como foi a infância junto com seus irmãos? Todo mundo trabalhava? Maria: Todo mundo trabalhava. Desde cedo. Na minha época não tinha infância nada; não tinha isso de ficar à toa. Vera: A Joana com 8 anos cozinhava, minha filha! Maria: É. Antigamente a gente brincava, né?, e trabalhava. P: Dona Maria, a senhora está com quantos anos? Maria: É... [Dirige-se à Vera:] Quantos anos eu tenho? Vera: Eu esqueço, boba! Eu tenho 70... É... [Silêncio. Elas ficam pensativas. Não sabem responder.] Vera: Você quer que eu pegue os documentos dela? P: Não, não precisa. Vera: Não precisa não? P: Não. A senhora não se lembra? Vera: Não. Ela tem mais de... de 79 anos, né, Maria? Maria: É. Vera: Talvez 80. Não é mais do que isso não. P: E a dona Joana? A senhora sabe quantos anos a senhora tem, dona Joana? Joana: Não sei não. Vera: A Joana deve ter uns 77, né, Joana? Maria: É, ela é mais nova do que eu dois anos. [Silêncio] P [à Maria]: A senhora era a filha mais velha? Maria: Não. A mais velha está para o Rio. Nem sei se minha irmã mais velha está viva ainda. P: A senhora tem contato com seus irmãos? Maria: Com alguns eu tenho. Tem um que mora em São Miguel do Anta, tem outro que mora aqui... Com esses eu tenho. Com os outros que eu não tenho. P: E a senhora viveu quantos anos com seus pais, com a família toda? Com seus irmãos...? Maria: Ah... Não faço as contas não... Até com 11 anos de idade... P: E o que vocês faziam naquela época para se divertir? Maria: Na roça? Ah, era trabalhar, né? De noite brincava de roda... só isso. Vera: Boneca de pano... Maria: Boneca de pano. Antigamente não existia brinquedo nada, né? [...] P: E aí, com 11 anos, a senhora saiu de casa? Maria: É. P: A dona Joana também? Maria: Não, a Joana não. A Joana foi depois. P: E a senhora saiu de casa para ir aonde?

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Maria: Fui para casa da mãe da Vera. Vera: Ela foi lá para casa. P: E na época a sua mãe tinha quantos filhos, dona Vera? Vera: Eram... três, né Maria? Não, na época eram quatro. Depois que os outros nasceram. P: E a família da senhora morava nessa mesma cidade, São Miguel? Vera: Não, nós morávamos em X. Mas papai tinha uma farmácia lá. Tinha... como é que fala? Era uma farmácia grande, que fornece remédio para as outras farmácias das cidades vizinhas. Papai era farmacêutico formado. Mamãe também. Eles trabalhavam juntos lá. Maria: 82 anos e a Joana 80. P: Ah! A senhora se lembrou? Maria: Lembrei. A pergunta ficara em sua cabeça. Parece que o cuidado exclusivo dos outros

sobrepujou a lembrança de si, apagando marcos importantes, como a data de aniversário.

Ainda em dúvida, Vera questiona a lembrança de Maria, mas logo concorda com ela. O

assunto acaba aí e talvez recaia no esquecimento.

7.7 – Infância com os pais de criação: como filha, mas trabalhava!

Da plasticidade inerente à posição filha de criação nascem inúmeras

ambiguidades. Quando, por exemplo, questiono Vera se Maria foi para a sua casa como filha

ou para trabalhar, sua reação é de indignação seguida de contraditória confirmação: Não!

Como uma filha! Mas trabalhava! Se considerarmos que naquele contexto ser filho é ajudar

os pais, tal ambiguidade diminui, mas não desaparece; Vera se refere de modo análogo à

Maria e à Joana como filhas e a uma outra, nas mesmas condições, como empregada. P: E na época em que a Maria foi para a sua casa, ela foi como uma filha ou para trabalhar? Vera: Não! Como uma filha! Mas trabalhava! A mamãe era brava, né, Maria? [Maria ri] P: A relação era de mãe para filha? Vera: Era, de mãe para filha. Tinha uma outra... A outra foi lá para casa também, que era empregada da minha avó. Eu não vou te atrapalhar não, mas o que eu quero te contar é que a mamãe brigava tanto com ela, né, Maria? Aquilo me traumatizava tanto! Maria: A Iracy? Vera: É. Porque ela era teimosa, ela era mal criada... Eu ficava dividida: eu não sabia se eu gostava mais da mamãe, se eu gostava mais da Iracy... Isso foi horrível na minha infância! P: Quem era Iracy? Era outra... Vera: Era outra moça que tinha lá em casa. P: Ela foi antes da dona Maria? Vera: Não, no período da Maria. P: Naquela época era muito comum isso, né? Vera: É. P: Ter filhos de criação. Mais de um, até. Né?

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Vera: É, era comum. P: E a dona Joana foi para lá com que idade? Vera: A Joana com sete, nove anos, né Joana? Joana: É. P: E foi também direto para a sua casa? Vera: Também. P: E também já chegou ajudando a sua mãe? Vera: Também.

Parêntese 1: Antônia – resistência e conflito

Além de Iracy, Antônia, uma irmã mais velha de Maria, Joana e Aparecida,

também foi filha de criação da família de Vera. Sua história configura um exemplo

importante de resistência e conflito, sinalizando o poder ilimitado da família de criação.

Primeiramente, cabe destacar que Antônia foi para a casa da mãe de Vera já adolescente, com

13, 14 anos, o que, nas palavras de Graça, mãe adotiva de Laura, não dá certo; a criança não

pode ter a cabeça formada. De fato, Antônia não aceitava certas imposições e limitações

inerentes à sua posição como filha de criação. O conflito foi deflagrado quando Antônia

recorreu à intervenção do pai consanguíneo – situação inaudita na pesquisa – e ele, dotado da

autoridade que o sangue lhe confere, interveio e autorizou Antônia a dar seus passeios, tal

como ela queria – ferindo a praxe cultural de cessão total dos direitos parentais à família de

criação. Contudo, coube à família de criação determinar a educação e o destino de Antônia,

inclusive o direito de transferi-la para outra família, em outra cidade. Antônia, então, fugiu e

nunca mais tiveram notícia dela. O desfecho desta história confirma alguns pressupostos

importantes. Como mencionado, fugas não são comuns. Ao que tudo indica, Antônia só

conseguiu fugir porque estava em uma cidade alheia aos códigos morais que a prendiam à

família. Além disto, seu desaparecimento após a fuga reitera a ruptura com os pais

consanguíneos uma vez que o filho é dado e, com isso, os códigos morais que regem a prática

de dar e pegar filho para criar. P [à Maria]: Como é que a senhora se sentiu, quando a senhora deixou a sua família? Maria: [risos sem graça] Ah, eu não, não... nem lembro mais. [risos] A minha mãe queria que saísse de casa porque eu tinha uma irmã mais velha e ela não gostava de trabalhar. Tirou ela da casa da Vera porque ela não gostava de trabalhar, né? [risos] Então eu saí. Depois ela foi morar com a tia da Vera, depois ela saiu, foi embora para o Rio... Depois sumiu. Vera: A mamãe era muito severa. Nós morávamos em Viçosa e ela não deixava... Elas eram bonitinhas e a mamãe não deixava ela [Antônia] sair por causa daqueles estudantes da universidade. E o pai delas (desculpe toda hora eu te interromper), o pai delas foi lá

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em casa e deu autorização para ela sair. Aí a mamãe levou ela para a casa da tia Delma para ficar lá, de lá ela foi embora para o Rio e sumiu. P: Ah, então a irmã delas mais velha também já passou pela sua casa? Vera: Já, já passou. A mãe delas era amiga demais da mamãe, porque o papai, nessa época, tinha uma farmácia lá na fazenda, sabe? Meu avô também era médico. Então a mamãe trabalhava com papai lá e ficou muito amiga da sua mãe, né, Maria? [Maria não responde] [...]

7.8 – Infância com os pais de criação: eu ajudava a outra empregada Voltando a me dirigir à Maria, procuro saber um pouco sobre sua nova rotina tão

logo foi dada para a família de Vera. Mais uma vez, destacam-se as ambiguidades que cercam

a posição filha de criação. Além de não se referir aos pais de Vera como pais, a resposta de

Maria revela sua autoimagem: Eu ajudava a outra empregada. Ambiguidades que culminam

em desigualdade de tratamento entre filhos consanguíneos e filhos de criação: enquanto Vera

e seus irmãos estudaram e se formaram, Maria e Joana permaneceram analfabetas. Não tinha

tempo de ir à escola, justifica Maria. Seus aprendizados prescindiam a escola, proviam de

acompanhar a outra empregada, ajudando a fazer o serviço.3 Vera contra-argumenta que

Maria e Joana estudaram em Barão de São João Batista, insinuando ter sido em vão. Quanto

tiveram tempo, já tendo passado dos 60 anos, a escola não lhes agradou muito, sobretudo o

recreio, talvez por inaptidão a momentos de lazer.4 P: E como era lá na casa da dona Vera? Você me disse que na sua casa você ajudava na lavoura... e na casa da dona Vera não tinha lavoura. Tinha, dona Vera? Vera: Não, não tinha. P: Então, como era lá? Maria: Eu ajudava a outra empregada. Ajudava fazer o serviço. [...] P: Vocês estudaram? Maria: Não. Lá tinha escola, mas a gente não ia não. Não tinha tempo também. Vera: Ela estudou aqui. Lá ela ia à aula só uma vez, né Maria? Aqui não, aqui ela frequentou todos os dias. Mas eu acho que elas nem prestavam atenção [Maria ri], porque senão tinham aprendido. Elas levavam na brincadeira. P: Vocês gostavam da escola? Maria: [sem entusiasmo] Gostava... P: Do que vocês mais gostavam? Maria: Não, no recreio eu não ia porque não gostava do recreio. P: Não gostava do recreio?

3Algo que se revelou recorrente na pesquisa. A maioria das famílias possuía empregados, formalizados ou não, enquanto os filhos de criação eram crianças. Assim que cresciam e se mostravam capazes de desempenhar sozinhos o serviço, os empregados eram dispensados. 4Maria e Joana estudaram em um colégio estadual contíguo à antiga casa de Vera, em Barão de São João Batista, cujo período noturno é, ainda hoje, dedicado à educação de jovens e adultos.

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Maria: Não. P: E a dona Joana, também foi à escola? Maria [respondendo por Joana]: Foi. Joana: Fui. P: Gostava? Joana: Gostava [sua voz sai fraca e falhada, como que por falta de uso]. [...]

7.9 – Uma preciosidade como herança Foram elas que cuidaram dos meus filhos, que me ajudaram, cuidaram de mim...

Esta frase de Vera é central para a compreensão da vida de filha de criação. A missão, como

classificou Clara, de cuidar dos pais até a morte, culturalmente imposta aos filhos de criação

de modo geral, mas que, a rigor, só as filhas a cumprem5, pode não findar com a morte dos

pais. Maria e Joana cuidam da família que as acolheu há quatro gerações: primeiro cuidaram

dos filhos dos pais; depois dos pais até a morte; na sequência, como uma espécie de herança

para Vera, cuidaram dos filhos de Vera, dos netos de Vera e agora cuidam novamente da

própria Vera na velhice. Um ciclo de cuidado que, ao que tudo indica, só se encerrará com a

morte de Maria e de Joana. Logo, a missão que, de fato, subentende-se é: filha de criação

cuida até a morte.

Outra característica plástica da categoria filho de criação diz respeito à polissemia

da expressão. Maria e Joana, por exemplo, são filhas de criação tanto pela criação que

receberam, quanto pela ajuda na criação que ofereceram6. A inclusão do termo ajuda traz

uma sutil diferença entre criar e cuidar. Criar envolve sustento, por isso, diz-se que Maria e

Joana cuidaram dos pais e ajudaram a criar seus filhos (netos e bisnetos). Contudo, o único

modo que elas têm de ajudar a criar é cuidando; o que reafirma a missão que lhes

subentende.

[...] Vera: Foram elas que cuidaram dos meus filhos, que me ajudaram... Cuidaram de mim... P: A senhora é a caçula dos seus irmãos? Vera: Não, eu sou a quarta. Depois de mim tem mais dois. P: Ah, então quando elas chegaram na sua casa, a senhora tinha um aninho, e depois elas ainda viram nascer esses dois irmãos? Vera: Viram e ajudaram a criar. P: E como foi que elas vieram morar com a senhora? Vera: A mamãe morreu.

5Como mencionado, o trabalho do cuidado, no sentido conceitual do care (GILLIGAN, 1990; TRONTO, 2009; PAPERMAN & LAUGIER, 2005; HIRATA & GUIMARÃES, 2012), é exclusivamente feminino nos municípios pesquisados. 6O termo criação também é utilizado em referência aos animais domésticos (cachorro, gato, galinhas, porcos, gado etc.). É uma atribuição dos filhos de criação cuidar da criação.

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P: Quando ela morreu, vocês ainda moravam lá? Vera: Não, eu já tinha casado há muito tempo. P: Elas ainda ficavam com a sua mãe? Vera: Ficavam, as duas. Aí mamãe morreu e elas vieram ficar comigo. Mamãe sempre falava que no dia que ela morresse, elas ficariam comigo. P: E os seus irmãos não se importaram? Vera: Não, pelo contrário, né, Maria? O Mário, meu irmão, falou assim comigo: “Olha, Vera, a mamãe morreu,” eu estava sem carro e ele falou comigo, “se você quiser buscar as meninas, vai no meu carro.” Ele tinha um Fissore naquela época. E ainda falou assim: “Porque... se você não for, eu vou heim?!” Mas eu estava sem jeito de ir porque elas estavam na casa do Zé Aurélio, meu irmão, e você sabe o que é chegar lá e tirar uma preciosidade da casa da gente? [Silêncio] P: E aí, como foi? Vera: Aí o Zé Aurélio sabia que elas iam morar comigo... Já estava determinado. Mas ele sentiu muito! Né, Maria? Nossa senhora! P: Zé Aurélio é o seu irmão que estava com elas? Vera: É. Ele já sabia. Ele sentiu muita falta, mas... [Silêncio] P [à Maria]: A senhora ficou quanto tempo na casa desse irmão da dona Vera? Maria: Um ano, né, Vera? Vera: É, um ano. Maria: Foi depois que a mãe da Vera morreu. P: E a senhora sentiu muito a morte da mãe da dona Vera? Como ela se chamava mesmo? Maria: Jandira. Senti, senti muito. Vera: É... eu me lembro da morte da mamãe... Uma coisa que eu nunca me esqueci; as duas ficaram perdidas, sabe? Ficaram assim: como se houvesse acabado o mundo delas. Nunca me esqueci disso. Elas choravam tanto! Elas falavam assim: “O que vai ser da gente?” Elas deviam estar apavoradas... Elas só tinham a mamãe. [...] P: Tem quantos anos que a sua mãe morreu? Vera: Ih! [pausa] Tem 30, né, Maria? Maria: Você tem marcado ali. Vera: É, eu tenho marcado direitinho. Tem uns 30 anos. P: Então elas já tinham uns 50, 55 na época, né? Vera: Tinham. Aí elas vieram e foi aquela festa, né? [pausa] Aí elas mudaram de vida, porque elas começaram a frequentar a aula... Vir morar aqui foi mais fácil porque elas moravam em Juiz de Fora... P: Ah, elas moravam em Juiz de Fora? Então a sua mãe mudou de Viçosa para Juiz de Fora? Vera: Não, a mamãe mudou de Viçosa para aqui. P: E quem morava em Juiz de Fora? Vera: Depois meus irmãos. Eu estava casada e os meus dois irmãos menores foram estudar e ela mudou para Juiz de Fora com eles e as duas foram junto. P: Então, esse um ano que elas passaram com o seu irmão foi em Juiz de Fora? Vera: Foi, em Juiz de Fora.

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7.10 – Novos contextos, velhas socializações A mudança de municípios não permitiu a constituição de novas “disposições”

(Lahire) devido à padronização das socializações dos dois principais contextos de ação de

Maria e Joana. Seja em Viçosa, Juiz de Fora ou Barão de São João Batista, o que marca as

vidas de Maria e de Joana é o confinamento à casa e as missas da Igreja Católica como único

lazer.

Não se pode negar as mudanças ocorridas após a coabitação com Vera, mas é

preciso relativizá-las. As narrativas tendem a retratar um passado sempre melhor na casa

anterior de Vera, isto é, lá embaixo, na praça. O que de fato havia, e talvez por si só

satisfazia, era possibilidade. Maria e Joana poderiam sair com mais facilidade, ir mais vezes à

missa, assistir aos desfiles de carnaval e a outras festividades públicas... Poderiam. Maria

objetiva a imobilidade quando diz: mas nem lá embaixo não saía. Contudo, a vida social de

Maria e de Joana piorou com a mudança para o atual bairro, longínquo e exclusivamente

residencial. Minha percepção de confinamento veio do modo como Maria listou as ocasiões

em que sai de casa; com a precisão de um recluso que aguarda ansiosamente saídas

predeterminadas. P [à Maria]: E o que vocês acharam de Juiz de Fora? Maria: Eu gosto de lá, boba! P: Gosta? Maria: Gosto. P: Vocês saíam lá na rua? Maria: Não, lá a gente quase não saía. Era muito difícil, né, Joana? A gente morava perto da igreja. [pausa] Eu gosto de lá, boba! [...] P: E aqui, as senhoras também vão à missa? Maria: Vamos. Às vezes tem. Vera: Elas vão todo domingo. Maria [contradizendo Vera]: Aqui é mais longe. Quando era lá embaixo, era mais perto, a gente ia mais vezes. Lá embaixo, né? P: E a senhora sai de casa para fazer outra coisa ou só vai à missa? Maria: Não; eu vou à missa, vou para fazer compra, para a eleição e para receber. Mas eu não gosto muito de sair não. Sair aqui é mais difícil do que lá embaixo. [pausa] Mas nem lá embaixo não saía. P: Receber o que, a aposentadoria? Vera: É. P [à Vera]: Elas são aposentadas? Vera: [responde de chofre] Todas as duas! P [à Joana]: A senhora gosta de passear? [Joana faz apenas um meneio negativo]. P: Não?

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Maria: Não, ela também só gosta de ir na casa do meu irmão. Na casa que ele está fazendo aqui, que ele mora. Aí ela gosta. Vera: A casa do irmão delas é uma beleza! Foram elas que fizeram! Maria: Nós ajudamos ele. Mas tá faltando muita coisa nela, né? Vera: Heim? Maria: Tá faltando muita coisa nela. Vera: Não, é só porque deu umas infiltrações... Maria: Está faltando muita coisa nela. Vera sempre supervaloriza a casa do irmão de Maria e de Joana e atribui a elas a

posse do imóvel por terem ajudado na construção. Em todas as passagens, Maria relativiza a

narrativa de Vera, quando não a contradiz.

Parêntese 2: Aposentadoria

Na conversa que tivemos por telefone, Vera já havia tocado no assunto da

aposentadoria. Na ocasião, ela me contava que as duas gostam muito de presentear e para

entender com que meios elas poderiam comprar coisas, perguntei se elas trabalhavam fora.

Vera então informou que elas são aposentadas e logo em seguida complementou: mas são

analfabetas, não têm noção de valor. É Vera quem administra o dinheiro de Maria e de Joana

e lhes repassa uma parte, destinando o restante à poupança. Como veremos mais à frente,

trata-se de uma poupança grande, da qual ninguém sabe, porque Vera as orienta a não contar.

Parece que há um acordo prévio com a Caixa Econômica Federal acerca do valor que Maria e

Joana podem retirar, pessoalmente, todo mês. Não tenho informação da quantia, mas, com

base na ênfase de Vera nos 100 reais que lhes deu no último Natal, antes desta entrevista,

suponho que seja inferior a este valor.

7.11 – Cuidado intensivo da casa, cansaço no momento de lazer

Dando sequência à entrevista, procuro conhecer o dia-a-dia de Maria e Joana,

sobretudo os momentos que têm para si. Sempre que pergunto à Maria o que ela gosta de

fazer, ela reponde o que faz. Sua narrativa revela a dedicação intensa ao cuidado da casa, cujo

cansaço oriundo a impede de desfrutar do único momento que apontou como lazer.

P: E o que a senhora mais gosta de fazer nos momentos livres? Depois que a senhora já terminou de cozinhar...? Maria: Eu mexo com roupa. Lavo roupa, passo roupa... Eu mexo com roupa. P: Mas e depois que a senhora já acabou de lavar, de passar, de cozinhar? O que a senhora faz? Maria: Eu assisto novela, né, Vera? [risos]

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Vera: Elas assistem novela. A gente assiste novela juntas. Eu tenho televisão no meu quarto, mas eu ligo a daqui da sala e a gente assiste juntas. Maria: Cochilo muito, né? [risos] Eu não aguento! [...] P: A que horas as senhoras dormem? Maria: Ah, eu deito depois da novela... umas dez, dez e meia [22:30]. Às vezes tem que pegar mais alguma coisa que eu tenho que fazer, né? Mas no outro dia tem que acordar cedo. Vera: Ela [Maria] é uma excelente cozinheira! A Joana é ajudante. Elas cozinham... que você precisa vir almoçar com elas um dia! Nossa senhora! Você precisava de ver, ela faz qualquer prato. [Silêncio] [...]

7.12 – Como uma mãe: plasticidade Na narrativa de Vera, elas são como minha mãe; mas foi Vera quem assumiu a

posição dos pais de criação, o que faz com que apareça boa como uma mãe na narrativa de

Maria. Se atentando para as idades, entretanto, Maria se coloca na posição de mãe de Vera e

faz tantos agrados quanto possível à filha, aos filhos da filha, aos netos da filha... Vera: [...] Todas as vezes que elas vão receber, elas chegam com um presente pra mim! Se eu disser para você que eu não sei o que eu tenho na cozinha, você não acredita! Porque tudo o que elas vão achando feio, elas vão arrumando, comprando outro. Sabe? Elas mesmas compram as coisas! As coisas vão quebrando, estragando... elas mesmas repõem. Eu nem fico sabendo! P: É mesmo? É um carinho de mãe, né? Vera: Nossa! É a maior bênção que eu tenho na minha vida! E atualmente eu vivo para elas, porque... eu também não gosto de sair. Ficamos nós três aqui em casa. P: A senhora tem marido? Vera: Morreu! [...] P: E na dona Vera, o que a senhora mais gosta nela? Maria: Ela é boa para mim. [risos] É como uma mãe... P: Gosta de tudo? Maria: É... [risos] P: Que bom, heim?! Vera: Nós combinamos demais, demais, demais! Graças a Deus! Aqui em casa... até as faxineiras, a gente combina com todas que vem, né? [Maria confirma] É uma harmonia! Uma felicidade! A gente ri o tempo todo, a gente brinca... [...] P: Ela é brincalhona? Vera: Demais! P: Está tímida comigo aqui, dona Maria? Maria: Heim? P: A senhora está tímida comigo aqui? [Maria ri, bastante envergonhada] P: Um pouquinho, né? Maria: Não... [risos]

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P: O que a senhora gosta de fazer quando a senhora vai à rua? Maria: Fazer compra, né? P: Mas que compra a senhora faz? Maria: [risos] Pra mim? P: Sim. Maria: Para mim eu quase não compro nada, eu compro para os meninos [filhos e netos de Vera]. Para os meninos eu compro Danoninho, bombom, Nescau... Vera: Ela enche o carrinho de coisas para os meus netos e para o irmão dela. Maria [precisando a diferença entre as compras]: Pra ele eu compro assim: banana, pão, leite, maçã... Quando é domingo, eu levo. [...] P: A senhora não gosta de comprar sapatos, roupas... para a senhora? Maria: Eu ganho muita coisa, boba! Não precisa. Vera: Mas, assim, elas podem ter. Eu falo sempre com elas, por exemplo: no Natal eu dei dinheiro para cada uma, eu dei 100 reais para cada uma! E falei assim: “este dinheiro é para vocês comprarem alguma coisa para vocês!” Elas não compraram até hoje. Elas gostam de gastar dinheiro com outra pessoa. De vez em quando a Maria sai e compra sandália, né Maria? [...] P: O que a senhora gosta de comprar para você? Quando a senhora vai à rua, o que a senhora gosta de comprar para você? Maria: Eu não compro nada, boba. [...] P: A senhora gosta de comer alguma coisa diferente? Não, eu gosto de comer nada de diferente não. Às vezes, quando eu vou na rua receber, eu compro alguma coisa de diferente, mas não é para mim não, é para a Vera. Mas agora ela está de regime... Eu não compro nada para mim não. [...] P: A senhora acha que a dona Vera é uma mãe ou é uma filha para a senhora? Maria: Uma filha, né? Eu sou mais velha do que ela [risos]. Vera: É ela quem me dá conselho... Ela é muito criteriosa, tudo eu pergunto para ela e para a Joana. E elas são danadas! Quando eu não faço o que elas falam, dá tudo errado! É impressionante.

7.13 – Como se fossem deuses! A posição de Maria e de Joana na família pode ser ainda mais plástica, como

mostra a narrativa hiperbólica de Vera:

P: [...] A senhora sabe se elas já sofreram algum tipo de preconceito? Vera: Não, não sofreram não. Porque... Elas vivem com a minha família, né? E aqui todo mundo tem adoração por elas. Olha, eu tenho um irmão que mora no Rio, ele é desembargador, ele todo mês manda 130 reais para elas. Fora presentes, né, Maria? O Zé Paulo é uma beleza pr’a gente. E... A Joana adoeceu, então os remédios são caros, ele falou comigo: “Vera, eu não quero que ela gaste o dinheiro dela pagando remédio”. Então ele compra os remédios da Joana, o Mário entrega, depois ele vem e acerta tudo. Então, elas são... Na nossa família, elas são como se fossem assim: deuses!

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Parêntese 3: Uma entrevista pra sair no jornal, na revista

Considerando a informação passada por Vera de que Maria e Joana estavam

morrendo de medo de mim, me interessei em saber da própria Maria como fora sua recepção

da proposta de uma entrevista. Me surpreendi ao descobrir que Vera contou uma história

diferente para cada uma de nós, tornando indispensável a sua presença em todas as versões. P: Dona Maria, quando a dona Vera disse que eu viria fazer uma entrevista com a senhora, o que senhora pensou? [Maria ri]. Vera: Não, ela só perguntou: “Ah, mas por que, Vera?” Aí eu disse: “Pra sair no jornal, na revista...” [Maria continua rindo]. Aí ela falou assim: “Então você não me deixa sozinha não!” Eu falei: “Tá bom”. P: A senhora queria sair na revista, na televisão? Maria: Não, eu não. P: A dona Vera falou que a senhora estava com medo de mim. [Maria ri e nega] P: Estava não? Maria: Não estava não. P: Ela disse que a senhora gosta muito de conversar... Vera: A conversa delas é mais com a minha família, né?

7.14 – O inferno é aqui

Em seguida, conversamos sobre religião. Trata-se de uma passagem muito

importante dado o seu poder de objetivação. A resposta de Maria não condiz com quem é

tratado como deuses, mas explica por que ela aceita ser deusa no inferno com tanta

resignação. P [à Maria]: O que a senhora acha que acontece com a gente depois que a gente morre? Maria: [Silêncio] P: A gente vai para o céu? Maria: Eu não sei... Quem merece vai, né? P: Ah, quem merece é que vai? Maria: Eles falam que quem não merece vai para o inferno, mas eu acho que não é assim... Eu acho que o inferno é aqui embaixo mesmo. P: É? E por que a senhora acha isso? Maria: Eu acho que o inferno é aqui embaixo mesmo... [Silêncio] Porque é aqui que a gente sofre, né? [Silêncio] Porque lá em cima não sofre não, né? Eu acho que não. P: A senhora acha que uma pessoa que foi boa aqui na Terra vai para o céu? Maria: Eu acho que vai, né? P: E uma pessoa que sofreu muito aqui na Terra... vai para o céu? Maria: Ah vai! P: E uma pessoa que não foi boa, que matou, que roubou...? Maria: Eles falam: “Ah, vai para o inferno”. Vai nada! O inferno é aqui embaixo mesmo.

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P: O que, então, acontece com essas pessoas que não são boas? Maria: Ah, não sei... [...]

7.15 – Aqui é a casa delas Retomando o assunto da casa do irmão que Maria e Joana ajudam, é importante

observar que Vera opera com noções distintas de posse. Materialmente, atribui à Maria e à

Joana a posse da casa do irmão devido à ajuda financeira que concederam. Simbolicamente,

partilha a posse de sua própria casa com Maria e Joana, malgrado as condições já descritas em

que elas habitam. Importante notar ainda que Vera atribui à Maria e à Joana o papel de donas

da casa somente na sua ausência, isto é, quando está viajando. Para Vera, ser dona da casa é

dar as ordens, papel que Maria rejeita com veemência. A propósito das viagens, cabe destacar

a recorrência da situação com outra entrevista: assim como Anita, Maria e Joana não gostam

de viajar, mas viajam porque precisa. P: E como é essa casa [do irmão]? Maria: Como é a casa? Ah... tem três quartos, Vera: Quatro! [...] Vera: E a casa delas é enorme! Uma casa boa, sabe? Banheiro... Maria: Agora tem que fazer a parte de fora. P: E a senhora vai muito lá? Maria: Vamos todo domingo. [...] P: A senhora então gosta de ir para lá? [Pausa] Ou vai por que precisa? Por causa do seu irmão? Vera [respondendo por Maria]: Elas gostam, porque distrai... Mas tem um detalhe: dormir é comigo, né? Na casa delas; aqui! P: Aqui que é a casa delas? Vera: Aqui que é a casa delas. [Silêncio] P: Nunca dormiram lá? Vera: Não. [Pausa] Eu ainda falo: “Se vocês quiserem ficar, podem ficar. Vem no outro dia”. Elas falam: “Não, eu prefiro dormir em casa”. E é; esta é a casa delas! Eu viajei agora e falei para a Maria: “Maria, você dá as ordens para faxineira, porque vocês hoje são as donas da casa!”. A Maria falou assim: “Eu não!” [...] P [à Maria]: A senhora não gostou de ser a dona da casa? Vera [respondendo por Maria]: Ela gosta, boba! [...] P: E a senhora gosta de viajar, dona Maria? Maria: Eu não. P: Nunca viajou? Maria: Já, mas não gosto. Viajo, mas não gosto não! P: E por que a senhora viaja? Vera: É quando precisa, né?

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Maria: Quando precisa eu vou, né? 7.16 – Apadrinhamento

Por que Maria e Joana precisam viajar é objetivado a seguir. Para cuidar, a

imobilidade é rompida e elas circulam entre as casas da família; inicialmente entre as casas da

mãe de Vera e as de seus filhos, posteriormente, entre as casas de Vera e as de seus filhos.

Como vimos, Maria e Joana são filhas de criação que ajudam a criar. Assim, elas se

metamorfoseiam em mães, tias, avós de criação e também em madrinha.

O apadrinhamento constitui outro elo de “familiarização” no caso de Maria. Ela é

madrinha de batismo da neta de Vera, Ana Carolina. Este vínculo parece tornar Maria mais

pertencente à família do que Joana, o que tem importantes implicações: Maria demonstra ser

mais dependente da opinião de Vera; assume para si mais responsabilidade com relação ao

cuidado da casa e das pessoas; não se permite momentos de folga (algo que chega a propor à

irmã); demonstra mais afeto aos membros da família e se esforça para agradá-los com

presentes aos quais ela mesma não tem acesso. É importante reconhecer, contudo, que Joana

participa das despesas oriundas dos presentes, como fica claro no excerto abaixo, porém não

demonstra o mesmo envolvimento emocional de Maria. P [à Vera]: Com quantos anos a senhora se casou? Com 18 anos. Mas era assim: se, por exemplo, algum filho meu adoecia, o Betinho, meu marido, mandava um motorista ir apanhar elas lá em Juiz de Fora, na casa da mamãe. Então, a convivência da gente continuou de todo jeito, né, Maria? [...] P: E como é a relação delas com os seus netos? É uma relação de avó? Vera: De mãe! Ontem veio um cabeleireiro aqui em casa fazer escova no cabelo da Eliane [sua filha], aí a minha netinha [Ana Carolina, 16 anos] falou assim: “Vovó, eu quero fazer escova progressiva”. Aí eu falei: “Esse dinheiro que eu te dei não vai dar não!” Aí ela falou: “Ah, não, é a madrinha Maria quem vai pagar!” Quer dizer; elas dão tudo o que ela quer. Ela tem celular do mais caro; foi mil e tantos reais, né, Maria? Foram elas que deram. P: Elas que deram? Vera: É. Eu dei um computador para a Ana Carolina e a Joana deu a mesinha.... Tudo o que a Ana Carolina quer, elas dão.

7.17 – Uma poupança grande P: Então, o negócio funciona assim: elas moram aqui e não têm com o que gastar, aí elas dão presentes para a sua família. É isso? Vera: É, mas elas têm uma poupança grande também. Ninguém na família sabe, só meu irmão. Os meus filhos, os sobrinhos delas... Eu falei: “Vocês não deveriam contar para ninguém, porque é um negócio particular de vocês”. Igual eu estava falando com a Maria, que a gente tem que ir ao banco para abrir uma conta conjunta para a gente; tanto da

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minha parte para elas como da parte delas para mim, porque eu não vou deixar as minhas confidências com os meus filhos, eu vou deixar com ela e com a Joana. Então nós temos que ter uma conta conjunta porque se caso eu morrer, elas sabem e entregam o dinheiro para os meus filhos. Mas, enquanto nós estivermos vivas, ninguém vai saber que nós temos isso ou aquilo. Como mencionado, Vera precisa administrar o dinheiro das aposentadorias de

Maria e de Joana porque elas são analfabetas e não têm noção de valor. Porém, quando se

trata do seu próprio dinheiro, não partilha suas confidências com seus filhos e sim com Maria

e Joana; esta que, além de analfabeta e não ter noção de valor, está meio doida. A sugestão

de Vera de uma conta conjunta soa absurda nesta direção (da minha parte para elas), mas

ganha sentido na direção inversa (da parte delas para mim). Intencionalmente ou não, sua

sugestão, associada à orientação de não contar para ninguém a existência da poupança,

permite resguardar o dinheiro de Maria e de Joana de seus irmãos consanguíneos, legalmente

seus herdeiros.

7.18 – O sentimento calado de Maria

Nas ocasiões em que ficou evidente a incompatibilidade entre as narrativas e

minha observação ou a contradição das narrativas de Vera e de Maria, Vera se apressou em

justificá-las. Um destes momentos, talvez o mais expressivo, aconteceu quando Vera falou

dos sentimentos de Maria por Maria. Algo tão particular, procurei saber da própria Maria e

sua resposta contradisse sem nada dizer. Talvez como o choro calado na calada da noite; em

que não há choro apenas porque ninguém o vê.

P: Está bom. Acho que já deu para pegar bem a relação de vocês. A gente tem que fazer essas perguntas mais sobre família para tentar entender o cotidiano, o dia-a-dia, como foi a mudança para a casa da família de criação, se sentiu falta dos pais... Vera: Engraçado, eu acho que pelo fato da mamãe ser muito amiga da mãe delas, elas não sentiram nenhuma falta da mãe. Se a Maria sentiu alguma falta, ela não deixou transparecer, né, Maria? Maria: O quê? Vera: De saudade lá da roça. [Maria silencia] Vera: Porque eu nunca notei ela chorando. [Silêncio] P: A senhora chora, dona Maria? [Maria abaixa a cabeça e faz um meneio positivo] [Silêncio] Vera: Quando os meus filhos, os meus netos vão embora, elas choram muito. [...]

7.19 – Quanto cuidado!

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Tento concluir a entrevista, mas Vera dá continuidade evidenciando, mais uma

vez, o outro elemento do binômio do cuidado que constitui uma filha de criação: o cuidado

da casa. P: Muito obrigada pela entrevista, por terem me recebido... Vera: Você vai ficar nos devendo uma coisa: voltar sempre! Porque você é uma gracinha. Quando você quiser almoçar, você fala; a Maria vai fazer um almoço especial para você. Tudo o que ela faz é muito gostoso. A Joana põe uma mesa muito bonita, muito sofisticada, sabe? Ela coloca os pratos, os talheres, tudo direitinho. Eu posso sair e pedir a ela [...]: “Você cuida da mesa”. Quando eu chego, aquela mesa linda, comprida... Tudo direitinho, sabe? P: Elas são bem cuidadosas com a casa? Vera: São! Elas são muito caprichosas. A minha roupa de cama é a Maria que lava. Aí outro dia eu falei com ela assim: “Ô, Maria, você não passa na máquina não porque...”, mas ela não gosta de máquina não, nem de tanquinho, porque ela acha que estraga as roupas. P: Ela lava tudo na mão? Vera: Lava, tudo na mão. Eu não gosto de lavar muita roupa na máquina não, porque é roupa velha... As roupas dela também, são... de mais tempo, né? Aí elas estragam. E os lençóis também. Toda vez que minha filha vem aqui, ela me pergunta se eu estou com lençol novo, porque a Maria lava e engoma os lençóis e eles ficam parecendo novos! P: Quanto cuidado, heim?! Vera: É.

7.20 – A invisibilidade de Joana Estávamos terminando a entrevista quando a filha de Vera veio chamá-la para

ajudar com a cachorrinha. Novamente tento concluir, mas, para minha surpresa, Vera insiste

que eu continue a sós com Maria e Joana. Proponho, então, que me contem o que quiserem,

mas Maria demonstra enfado. Joana, não. Inusitadamente, ela reascende o vigor da entrevista

com comentários espontâneos e perguntas sobre mim. Maria se anima e participa, repetindo o

hábito de responder pela irmã. No decorrer da entrevista, notei que tanto Vera, quanto Maria,

respondem por Joana mesmo quando ela responde por si. Tive a impressão de que Joana não é

ouvida. Nem vista; falam dela como se não estivesse presente. Está meio doida, como disse

Vera na sua frente.

Os excertos reproduzidos a seguir, talvez dispensáveis pelo conteúdo, trazem

Joana em plena lucidez, contrariando o diagnóstico de Vera. Outro ponto relevante deste fim

de conversa é a descoberta de Maria e de Joana do real motivo da entrevista. Apenas agora,

com a participação de Joana, pude perceber que ela levou a sério a história de que eu era

médica e que Maria desconhecia esta versão. P: Acho que já conversamos tudo, né? Maria: Já.

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P: Tem alguma história que a senhora gostaria de contar? Maria: Não. [...] Vera [ainda nos arredores, fala com voz alta de onde está]: Você já contou para ela que vocês lavavam roupa no rio, nas pedras, quando moravam na roça? Maria: [risos] Quando eu morava na roça, ia eu e minha irmã lavar roupa no rio. A roupa tinha que ficar limpinha! [...] P: A dona Vera falou que a senhora não gosta de lavar roupa na máquina, né? Maria: É, não gosto não. Joana [entra espontaneamente na conversa]: Ela gosta de lavar na mão. P: É?! Maria: A Vera ganhou um tanquinho da cunhada dela, mas eu não uso não. Eu gosto de lavar mais na mão. [...] Joana: Eu gosto mais de tanquinho. Maria: É, ela gosta mais de tanquinho. P: É, dona Joana? É mais fácil, né? Joana: É. [...] P: Onde vocês gostam de ir quando estão passeando na rua? Maria: A gente vai na casa de empadinha, compro empadinha... Vou lá na Cornélia. P: Cornélia é uma loja? Maria: É, é uma loja de um e noventa e nove [R$1,99]. Todo mês eu vou lá. P: Todo mês a senhora vai lá? Joana [ordenando a narrativa de Maria]: A gente vai na Caixa [Caixa Econômica Federal] e depois a gente vai lá. P: A senhora gosta de andar na rua, dona Joana? Joana: Eu não! Maria: Ela não gosta nada! Ela fica sentada no banco do jardim enquanto eu vou comprar as coisas. Ela tinha de andar, porque a dona Marisa [médica] consultou ela com esses negócios de veia e falou que ela tinha que andar. Joana: Eu ando muito dentro de casa. Maria: Mas ela falou que não ia andar não, porque ela já anda muito dentro de casa; para todo lugar que ela vai, ela tem que andar. Antes eu fazia a caminhada, mas agora eu não faço mais. P: A senhora fazia caminhada? Maria: Fazia, mas agora não faço mais não porque eu estou com um cravo no pé. Meu pé dói muito. P: A senhora também fazia caminhada, dona Joana? Joana: Eu não! A senhora sabe o que é bom para cravo? P: Não sei... [Me lembro que Vera disse à Joana que eu era médica] Eu não sou médica não, dona Joana! A dona Vera estava brincando. [Joana sorri. Percebo que Maria fica sem entender e explico] A dona Vera disse que eu era médica e ia dar injeção no bumbum dela. [Maria ri] Joana: Você estuda? P: Estudo. Esta conversa nossa é para o meu estudo; é para escrever um livro sobre filhos de criação.

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Maria: Ah é?! P: É. Joana: A sua mãe mora aqui ou mora em Juiz de Fora? P: Não, mora aqui. Joana: E você mora em Juiz de Fora? P: É, moro lá sozinha, já faz oito anos. Eu estudo lá. Maria: É? Joana: Você tem casa lá? P: Tenho. Alugada. Joana: Hum. [...] P: De onde a senhora gosta mais: de Juiz de Fora ou daqui? Joana: Ah, eu gosto mais de Juiz de Fora, né? P: Gosta mais de Juiz de Fora? Joana: É. P: Por que a senhora gosta mais de lá? Joana: Ah, porque sim. P: E a senhora, dona Maria? Maria: Eu gosto mais daqui. Quando eu estava lá, eu me acostumei lá. Agora estou morando aqui e me acostumei aqui. [...] P: A senhora tem vontade de voltar para Juiz de Fora, dona Joana? Joana: Eu não, vou ficar quieta aqui. Maria: Agora; São João [Barão de São João Batista] é muito bom, mas esse bairro [onde moram]... eu não gosto não. P: Não gosta daqui? Maria: Desse bairro eu não gosto não. Tudo o que você precisa comprar, você tem que ir na rua [ao centro]. [...] A gente morava lá na praça [...] aí a Vera vendeu lá e comprou aqui. Mas lá é muito melhor, né? Era só descer ali e já estava na praça. P: E aí a senhora ia muito à praça naquela época? Maria: Ia... Comprar as coisas que tinha que comprar. Época de Semana Santa a gente assistia... E aqui não, aqui é difícil! [...] P: E quando a senhora estava nova, a senhora não foi à escola, né? Maria: É, eu morava na roça, né? P: A senhora sente falta do estudo? Maria: Sinto, mas agora não tem jeito mais não, né? Mas a gente sente falta. Não saber ler alguma coisa é ruim, né? [...] P: A senhora também, dona Joana, tinha vontade de saber ler? Joana: Eu tenho! P: E a senhora não quer aprender? Maria [não espera Joana responder]: Agora é difícil, depois de grande... Agora é difícil aprender, né? Joana: É, depois de grande... [Silêncio] [...] P: O que a senhora gosta de fazer em casa, dona Joana? A senhora vê televisão? Maria: Não, ela não gosta de televisão. Joana: Eu vejo televisão à noite.

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P: Então, o que a senhora gosta de fazer em casa? Joana: Ajudar na cozinha, né? Lavar vasilha... P: A senhora gosta de anel? [Vejo que ela usa alguns] Joana: Gosto. P: A senhora comprou ou ganhou? Joana: Esses aqui? P: É. Joana: Não, esse daqui foi a minha sobrinha que me deu. P: E os outros? Joana: Também. É tudo ganhado. [...] P: E de brincos, a senhora não gosta? Joana: De brinco eu não gosto não. Maria [rindo com deboche]: Não furou orelha! [risos] Tem medo de furar a orelha! P: Tem medo, dona Joana? Joana: Tenho. Não há mais o que dizer. Na entrevista, agradeço e me despeço; aqui, ainda

destaco a preocupação e a gentileza de Joana em me acompanhar até a rua.

P: Então tá bom! Vocês me acompanham até a porta? Maria: É muito cedo! P: Já está na hora! As senhoras têm tanta coisa para fazer e eu estou aqui atrapalhando. Maria: Você aparece? P: Apareço. [Nos levantamos. Maria se prepara para abrir a porta, mas Joana intervém] Joana: Espera! Vê se o cachorro está preso. [Maria vai até a janela e confirma. Volta e abre a porta]. P: Muito obrigada, viu? Por terem me contado a história da vida de vocês. Maria: Nada não. Joana: Você volta mais vezes? P: Volto, dona Joana. Joana: Você é muito bonita! P: Obrigada! A senhora também! [Joana sorri] P: Então tchau, fiquem com Deus. Joana: Eu vou até o portão com você.

Barão de São João Batista, 24 de janeiro de 2007.

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CAPÍTULO 8 – ALESSANDRO

Soube de Alessandro através de Julia, uma conhecida da minha mãe em Bagre

Bonito. Julia foi vizinha de Alessandro durante o período em que ele viveu com o irmão de

criação, após a morte dos pais. A narrativa de Julia é contundente na denúncia dos maus

tratos perpetrados pelo irmão. Ele era muito bravo, sabe? Batia demais no Alessandro. Nossa senhora! O [meu] pai ficava com dó e deixava ele ir lá pra casa. [...] Não sei por que, mas parece que ele [o irmão] não gostava do Alessandro, sabe? Não sei por que, menina, toda a vida o Alessandro foi um menino muito bom. Ele [irmão] não gostava de dar comida a ele [Alessandro] não. O pai ficava com dó e deixava ele ir comer lá em casa. O irmão sabia disso, mas fazia de bobo, sabe? Ele dava um tempo pro Alessandro ir lá em casa comer e depois voltar pro serviço. Tinha dia que ele estava mais nervoso, aí ele não deixava ele [Alessandro] ir; deixava ele sem comer!

Depois de Julia, conversei com outros conhecidos de Alessandro ao seu respeito,

ninguém soube falar do período de convivência com o irmão, apenas da relação de carinho e

respeito com o pai de criação. Seu Redentor1 era doido com ele, carregava ele pra todo lado

quando vendia pão. Ele ia na frente e Seu Redentor atrás.2

Nosso primeiro contato foi na fábrica em que Alessandro trabalha, onde me

sugeriram procurá-lo. Embora me pareceu comum interromper o expediente para se

comunicar com os funcionários, me senti incomodada em fazê-lo e tentei ser o mais breve

possível. Dispensei intermediários, me apresentei como amiga de Júlia e disse que fazia uma

pesquisa sobre filhos de criação, pedindo sua participação. Alessandro foi extremamente

solícito e gentil, me atendeu como se não precisasse voltar ao trabalho. Com uma fala mansa e

complacente, se dispôs de imediato a participar da pesquisa quando fosse melhor para mim.

Em comum acordo, marcamos para dois dias depois, um sábado à tarde, em sua casa.

1 “Redentor”, embora não seja nome próprio, faz jus ao epíteto cristão que configura o nome original – incomum na região de Bagre Bonito. No caso do pai de Alessandro, o nome guarda um sentido literal por estar associado à prática religiosa que o tornou conhecido: a benzição, embora esta seja uma informação obtida apenas na segunda fase da pesquisa. 2 O comércio ambulante é outra característica das zonas urbanas nos dois municípios observados. Seu Redentor, por exemplo, carregava pelas ruas uma cesta de pão de sal (“pão francês”) anunciando aos gritos seu produto. Além de pão, leite, verduras, picolés, doces e produtos de limpeza produzidos artesanalmente são comumente vendidos pelas ruas. Os ambulantes são personagens muito conhecidas, se deslocam a pé, de bicicleta ou de charrete e as peculiaridades de seus gritos são zombeteiramente imitadas ou parodiadas pelas crianças: Ambulante: _ O-lha o PI-co-LÉ! Crianças: _ Á-gua SU-ja NIN-guém QUER!

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Alessandro mora em uma região de Bagre Bonito cujo nome oficial foi

popularmente substituído por outro mais bucólico e caricatural: Volta da Ferradura, fazendo

jus à curva que abraça as casas, todas iguais, pertencentes à fabrica em que Alessandro

trabalha. São casas antigas, algumas deterioradas pelo tempo e pela falta de manutenção. O

tamanho e o telhado em “v” invertido lhes conferem uma aparência de chalé. Possuem sala,

quarto da sala, quarto, cozinha, banheiro e um terreiro. No trajeto, parei algumas vezes para

pedir informações e a reação das pessoas ao se referir a Alessandro era sempre de simpatia e

amabilidade.

8.1 – Alessandro e Patrícia

Cheguei fácil à casa, o que antecipou em alguns minutos o horário combinado e

criou uma situação levemente embaraçosa; Alessandro e sua esposa, Patrícia, não me

aguardavam naquele momento. Patrícia estava lavando a cozinha e Alessandro, com uma

vassoura nas mãos, limpava outra parte da casa e tomava conta do filho de 1 ano e 8 meses,

Alex. Mesmo assim, o casal me recebeu muito bem; me acomodou na sala e pediu com

insistência que eu não reparasse a bagunça. Não havia bagunça alguma, tudo estava

extremamente limpo e organizado. Disse à Alessandro que ficasse à vontade para terminar o

que estava fazendo porque eu estava por conta da pesquisa, mas ele se dispôs a me receber

naquele momento, pedindo apenas um tempo para tomar um banho rápido, pois estava

visivelmente suado em função da faxina. Contudo, Patrícia gritou da cozinha: Não! Por que

você vai tomar banho agora e deixar ela esperando se você pode tomar depois? Sem contra-

argumentar, Alessandro aquiesceu. Durante a entrevista, Patrícia se dedicou à limpeza da

cozinha e ao cuidado do filho, juntando-se a nós somente quando percebeu que havíamos

terminado. Pude, então, observar um pouco a interação do casal e confirmar sua posição

imperativa. Ao contrário de Alessandro, Patrícia é extrovertida, fala alto (com um timbre

levemente rouco), ri alto e suas opiniões são bastante diretivas. Seu porte físico também

impõe; embora pouco mais alta do que Alessandro, a pequena diferença é intensificada pelo

sobrepeso de seu corpo. É ela quem administra a casa, o que envolve reter todo o dinheiro de

Alessandro. Antes do nascimento do filho, ela trabalhava todos os dias como faxineira, mas

agora só pega faxina às sextas-feiras.

Alessandro é um homem jovem, negro, estatura mediana, corpo magro com

músculos definidos e cabeça raspada. Me surpreendi quando ele disse ter 39 anos; sua

aparência jovial lhe poupava pelo menos dez anos. Expressei minha surpresa e Alessandro

confirmou: 39. Outra menção à idade ocorre ao longo da entrevista, ao explicar a

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inviabilidade de retomar os estudos na altura dos seus 39 anos. A insistência nesta observação

alerta para a segunda fase da pesquisa, realizada cinco anos e meio mais tarde, cuja idade

informada não coincide.

8.2 – Acolhimento e vivência com os pais de criação

Alessandro foi adotado aos dois anos, mais ou menos, por um casal de idosos,

cujo único filho vivo, vinte anos mais velho, vivia em outro estado. É importante perceber a

recorrência do acolhimento atrelado ao desempenho de uma função, o serviço era pesado,

eles não tinham mais idade para fazer essas coisas, mas não apenas; o que também é comum.

A compaixão pela situação de miséria da família consanguínea é uma informação frequente.

A correlação que Alessandro faz de miséria e humilhação – com base na narrativa dos pais –

constitui a gênese de sua gratidão de coração. Se não fosse eles, eu acho que nem vivo eu

estaria mais. É com nostalgia que narra os tempos idos, as lembranças de uma vida dura e

quase sem diversão, mas plena de carinho, respeito e direito à escola. O pai constitui seu

modelo de honestidade e de educação. A descrição da personalidade do pai, no fim da

entrevista, se assemelha muito ao que observei da sua: ele era calmo, às vezes um pouco

triste. Alessandro fala pouco da mãe, tive a impressão de mais apreço pelo pai, o que foi

confirmado, não sem ponderações. De modo geral e retrospectivo, ele coloca o pai e a mãe no

mesmo patamar das boas lembranças, sem distinções entre as formas de tratamento. Afirma,

ao contrário, que sempre se sentiu como filho mesmo e que o tratamento recebido era até

melhor do que o tratamento conferido ao filho consanguíneo. Entretanto, ao narrar os arranjos

familiares com o agravamento da doença dos pais, Alessandro revela a hierarquia do sangue

determinando as posições: Aí ele [filho consanguíneo] veio, para cuidar mesmo deles, né?

Porque estavam muito doentes e eles só tinham ele porque o outro filho já tinha morrido. [E

você?] É, e eu. Aí na época ele veio, né? Aí ficava nós dois e o pai e a mãe dele. Hierarquia

que se destaca também na ajuda com as tarefas domésticas.

P: Alessandro, você está com quantos anos? Hoje eu estou com 39. P: É?! Não parece não. É, 39 anos, Priscila. P: Você nasceu aqui em Bagre Bonito, Alessandro? Não, eu nasci em Barão de São João Batista. P: E como foi? Por que você foi adotado, por que pegaram você para criar? Olha, no meu modo de ver e de pensar, eu creio que a minha família não tinha condições de me criar, então, esse senhor me pegou para criar. P: Você conheceu seus pais biológicos? Não, nunca conheci, só ouvi dizer, né? Ouvi dizer que já faleceram.

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P: Eles moravam em São João? Moravam. P: E você teve contato com seus irmãos biológicos? Não. Um faleceu, isso foi o que ouvi dizer, eu tenho uma irmã que está fora e tenho um irmão em Pombinha. [...] P: Você estava com quantos anos quando pegaram você para criar? Com dois anos, mais ou menos, de idade. P: E até essa idade, você convivia com a sua família biológica ? Isso, até os dois anos eu convivi com a minha mãe. P: Você não lembra nada? Não, não lembro nada. [...] P: E a pessoa que te pegou para criar tinha uma condição boa? É, eles também eram pobres, né? Mas, perto da situação em que eu me encontrava, naquela situação de... humilhação, era melhor eles me pegarem para criar do que eu viver daquele jeito, né? P: E pegaram só você ou os seus outros irmãos também? Não, só eu. Os meus outros irmãos já tinha uma idade maior. P: Você era o mais novo? Eu era o mais novo. P: Essa família que te adotou é daqui de Bagre Bonito ou de São João também? Daqui de Bagre Bonito. P: E aí você veio morar aqui em Bagre Bonito? Isso, aqui em Bagre Bonito. P: Essa família tinha outros filhos? Tinha mais dois filhos. P: Legítimos deles? É, era filhos deles mesmo. P: E eles tinham que idade? A minha mãe tinha 65 anos, minha mãe de criação, e o meu pai tinha 70. P: Eles tinham essa idade quando te pegaram? É, essa idade. P: Então, os filhos deles já eram grandes? Já, já eram grandes. O Mauro tinha na faixa de 35 anos. O Geraldo, esse faleceu, eu não cheguei a conhecer. P: E como era a união dos dois? Boa, boa... P: Eles brigavam? Não, não, tinha briga não. Viviam muito bem. P: Como era educação que eles te deram? Era uma educação severa? Era uma educação, no meu ponto de vista, uma educação muito boa. Muito boa... Eu acho que a educação que eles me deram é a que eu estou tentando passar para o meu filho. [...] P: E você, Alessandro, ajudava os seus pais? No serviço de casa...? Ajudava, ajudava. Ajudava muito. Porque naquela época, o serviço era buscar uma lenha, buscar uma água na mina, porque não tinha Copasa [agência que fornece água para a região]... Então, eu mesmo, ficava por conta daquele serviço ali.

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P: O seu pai tinha 70 anos, né? É, ele não tinha mais idade para fazer essas coisas. P: Aí sempre sobrava para você, né? É, sempre sobrava para mim. P: E você se importava? Não, de jeito nenhum! Fazia com maior prazer! P: Você estudou? Só até a 3ª série. P: Na idade certa ou estudou depois de grande? Não, na idade certa. Depois eu parei. P: E por que você parou de estudar na 3ª série? Porque os meus pais faleceram, né? Eu fiquei com meu irmão, de criação, no caso. E... Eu não me sentia bem, né? Vamos dizer assim, eu não me sentia bem de ficar estudando... Eu tinha que ajudar ele, eu já estava pegando idade, assim, maior, né? Então... Então ele pensava, no modo dele de pensar, que eu tinha que ajudar ele. Aí eu parei de estudar. P: E foi ajudá-lo? É. P: Quando seus pais morreram, você estava com o que; 9,10 anos? Não, estava com uns 15 anos. P: Ah, então você estava na 3ª série com um pouquinho mais de idade, né? É, estava um pouco mais velho. P: Então, com essa idade, você estudava e ajudava seu pai? Ajudava, ajudava muito. P: E a sua mãe, você também ajudava? Ajudava, ajudava... Mas era mais o meu pai. O trabalho de homem é mais pesado. [...] P: O seu irmão mais velho morava com vocês nessa época? Não, nessa época ele morava no Rio [Rio de Janeiro]. Aí ele veio, para cuidar mesmo deles, né? Porque estavam muito doentes e eles só tinham ele porque o outro filho já tinha morrido. P: E você? É, e eu. Aí na época ele veio, né? Aí ficava nós dois e o pai e a mãe dele. P: E você se sentia como filho, Alessandro? Ou você se sentia às vezes... diferente? Não, como filho mesmo. P: O tratamento que eles davam para você era o mesmo que eles davam para o irmão mais velho? Era, era igual. Talvez até melhor. Porque... eles sabiam, assim, a situação em que eu me encontrava na época, né?, acho que eles passavam para mim até melhor. P: E você não se importava de trabalhar? Não, nunca me importei. P: De quem você gostava mais, da sua mãe ou do seu pai? Quem você admirava mais? [Alessandro fica pensativo] Sempre admirei mais o meu pai. Mas a minha mãe também era muito boa. Ela sempre foi muito carinhosa comigo. Sempre me dava apoio quando precisava... Mas é aquela coisa, né? A gente sempre se espelha mais no pai. Eu não sei por que, mas os filhos tem mais aquele dom, né? Mesmo filho de criação, mesmo não sendo filho biológico, a gente se espelha mais no pai. Dá mais carinho; meu pai sempre andava muito junto comigo... Mas eu nunca deixei de gostar da minha mãe.

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[...] P: E como era o dia a dia? Você comentou que trabalhava muito lá, mas nas horas de lazer, nos domingos... o que vocês faziam? Olha, Priscila, a gente não tinha muito assim... diversão não, sabe? Vivia mais dentro de casa mesmo. A diversão que a gente tinha era jogar uma bola... Eu sempre gostei. Hoje eu não gosto mais, não é... não é porque... não é por causa... ah, hoje eu não gosto mais. A idade também... as coisas na vida vão passando. Então a vida da gente era assim, a gente corria atrás de uma bola porque a gente gostava. Mas, no mais, era aquilo ali; do campinho para casa. Era mais a obrigação mesmo, o trabalho. P: E o seu pai te repreendia? Se você fizesse alguma coisa errada, ele te batia, te colocava de castigo...? Como era? Não, o meu pai era muito camarada comigo. Muito camarada! Não era um pai... agressivo não. Ele sempre me ensinou as coisas boas, né? Ele me ensinava: não podia fazer isso, o que estava errado... Então, aprendi muito assim. P: E a sua mãe? A minha mãe também. Ela nunca deixou de me corrigir não. P: Ela era mais brava? Ela era um pouco mais brava. [...] P: E aí, quando seus pais morreram, você tinha 15 anos não é? Como foi isso? É, quase uns 15 anos... Foi doloroso. Porque a gente era muito apegado a eles. Então, para mim foi muito difícil sim. Perder principalmente... Porque eu perdi a minha mãe primeiro, né? P: Aí você continuou morando com o seu pai? Com meu pai, é. P: E como foi morar sem a sua mãe? Foi difícil! Porque... Inclusive, eu estava comentando com a minha esposa outro dia, que eu não gosto de passar lá onde a gente morava, porque eu me emociono... Então eu não gosto. Porque... eu vejo aquela casinha simples lá... mas é onde eu fui criado, onde me deram educação, me deram... carinho. Uma casinha simples mesmo, mas é onde eu tinha uma família. Porque se não fosse eles, eu acho que eu nem estaria vivo mais. P: Você é grato pelo o que eles fizeram com você? Sou, muito grato. Grato mesmo, de coração. P: E você morou quanto tempo, só você e seu pai, depois que a sua mãe faleceu? Morei, mais ou menos, seis anos. Depois o meu pai faleceu também. P: E nessa época o seu irmão já tinha vindo morar com vocês? Já, já tinha vindo. P: E seu irmão ajudava o seu pai assim como você ajudava? É... O meu irmão era mais durão, né? E ele não gostava muito não... Mas ele nunca deixou de ajudar não. Mas ele era mais durão... [...] P: Qual era a diferença de idade entre vocês? Ah, era bastante... Ele tinha 35 e eu estava com 15 anos.

8.3 – Ruptura biográfica, novas socializações: morte do pai, coabitação com o irmão Com a morte do pai, Alessandro sofre a mudança de um pai camarada para um

irmão durão. De uma hora para outra, passou a ser (des)tratado com agressões físicas e

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verbais e teve subtraído, além do carinho e do respeito, o direito à escola. Eis um notável

exemplo do que Bernard Lahire defende como “socializações familiares”, no plural, e

“ruptura biográfica”. No plano narrativo, entretanto, nenhuma ruptura. Alessandro é

melindroso ao confirmar a narrativa de Julia. Pareceu-me que só o fez porque não tinha outra

opção além da ignóbil mentira (Olha... Batia sim, Priscila. Isso daí eu não posso negar não).

Além disto, tenta assumir como abnegações as injunções do irmão (vamos dizer assim, eu não

me sentia bem de ficar estudando... Eu tinha que ajudar ele), relativizar sua agressividade

(um pouco durão; meio rude; às vezes eu errava, na verdade, às vezes eu errava sim) e

encontrar um lado bom (ele nunca deixou eu ir para o mau caminho). Alessandro manteve os

mesmos ritmo e viés narrativos por toda a conversa. Ao contrário das outras entrevistas, em

que o riso, o choro, o grito, o sussurro e o silêncio apareceram como expressões narrativas de

alegria, deboche, tristeza, dor, violência, denúncia, censura etc., Alessandro guarda um

distanciamento emocional enquanto narra suas memórias. Sua fala é comedida e reticente,

como se se preocupasse com o impacto das palavras, sobretudo quando narra passagens mais

difíceis (nunca ruins), ou como se pensasse a questão proposta pela primeira vez. Nos dois

casos, sua narrativa pareceu estruturada pelo princípio da gratidão, o que justifica sua

preocupação em não reclamar, não criticar e não julgar.

P: E você aprendeu alguma coisa com seu irmão? Porque ele era mais velho, né? É... [Alessandro fica pensativo] Ele sempre me passava... Ele era durão comigo assim, mas nunca deixou de me educar também. Da mesma forma, quando meus pais morreram, da mesma forma que os pais dele ensinaram para ele, ele me ensinou também. Ele nunca deixou eu ir para o mau caminho. Às vezes quando eu errava, ele me ensinava. P: E nessa época você já morava com ele? Já. Apesar de que, ele tinha quatro filhas também na época, mas nunca deixou de me educar também. P: E as filhas dele eram mais velhas ou mais novas do que você? Eram mais novas. Ele teve quatro filhas, quatro mulheres e um rapaz. [...] P: Quando você morou com ele, ele já era casado? Era, era casado. P: A mulher dele te tratava bem? Tratava... Sempre meio durona também, mas... também sempre me tratou bem. P: Eles eram assim, durões, com as filhas deles também? Eram, eram também. Com todos. [...] P: Quando você parou de estudar para poder ajudar o seu irmão, você fez isso obrigado, contra sua vontade? É... eu fiz isso um pouco contra a minha vontade. [pausa] Porque eu gostava muito de estudar, sabe? P: Você se dava bem na escola? Dava, dava bem. P: A sua relação com os colegas, com a professora, era boa?

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Era boa. P: Você tinha amigos na escola? Tinha muitos amigos. Eu toda vida fui assim... Eu nunca fui de confusão. Sempre mais na minha mesmo, sabe? Nunca fui de confusão não. P: Então foi bem difícil para você? Foi bem difícil. Bem difícil... P: Você morou com em seu irmão durante quanto tempo? Eu fiquei com ele mais uns cinco anos. P: Então, até os seus 20 anos? É, eu fiquei na companhia dele durante cinco anos. P: E você gostava? Ou tinha vontade de arrumar outro lugar, de sair, de se casar...? É como eu estava falando, como ele era um pouco durão comigo... então... eu não gostava muito... porque os meus pais me tratavam diferente, ele era muito durão. Então eu senti isso, do meu pai para ele. P: O tratamento era diferente, né? É. Eu senti isso. P: E ele te batia, Alessandro? [Com hesitação] Olha... Batia sim, Priscila. Isso daí eu não posso negar não. P: E você nunca retrucou? É, eu nunca... Eu chorava, tudo... Mas nunca pude... revidar. Às vezes eu errava, na verdade às vezes eu errava sim, mas eu achava que aquilo não era motivo para ele me bater do jeito que ele me batia. P: E isso não fez com que você tivesse raiva dele? Não, não. Nunca guardei mágoa. Passou, passou mesmo. Nunca aguardei mágoa dele não. P: E ele com a mulher dele? Eles brigavam muito? De vez em quando. De vez em quando. P: Ele chegava a bater nela também? Não, era só discussão de boca mesmo. Sempre discutia bastante, nunca chegou a agredir ela não. P: E as filhas dele? Não, também não. Nunca bateu. P: Talvez por serem mulheres? É, por ser mulher. A maioria era a mulher, né? P: Ah, tinha o filho dele também, né? Nele também nunca bateu? Não, também não. P: O negócio dele então era com você? Era mais eu... a mira dele. P: E você nunca pensou em sair de casa? É, deu um dia em que eu falei com a esposa dele que eu ia sair de casa e não ia voltar mais. Aí ela falava que se eu saísse ele ia buscar e tal... Mas aí, teve um dia em que eu saí mesmo; não teve mais jeito. Era muito difícil para mim ficar lá. Aí eu saí. P: É mesmo? E você foi para onde? Eu fui para um lugar, chama Cabana de Bagre Bonito [distrito rural]. Tinha uma mulher, Dona Lúcia, que já tinha dito que queria uma pessoa na casa dela para ajudar ela... e tudo.

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Pareceu-me que o insuportável para Alessandro não eram as surras do irmão, mas

a falta de ser considerado como se fosse da família. O irmão nunca deu mostras de

consideração a Alessandro, nem mesmo quando os pais eram vivos. Com a coabitação e sem

o pai para lhe defender, a rejeição se agravou e Alessandro transformou-se em mira do irmão.

Por cinco anos, Alessandro morou na mesma casa, mas exógeno à família nuclear do irmão.

Esta distância foi decisiva para que ele aceitasse a proposta – não menos dura em termos de

trabalho e privações – de Dona Lúcia para ajudar em sua fazenda.

8.4 – Ajuda à/de Dona Lúcia

Ao invés de uma relação profissional, inicia-se um novo processo de

“familiarização” (Comerford). O sentimento de acolhimento, de amparo, constitutivo de tal

proposta, preencheu – de ambas as partes, mas não em igual medida – a necessidade de

“respeito à pessoa de direito” (TAYLOR, 1997; HONNETH, 2003). Alessandro passou a

trabalhar em um sistema de confinamento, sete dias por semana, e sem remuneração

monetária, apenas em troca de casa e comida (dois fortes constitutivos de familiarização).

Deste modo, ele ajudava/trabalhava ao mesmo tempo em que era ajudado/amparado. Era só

pra mim não ficar desamparado, perambulando por aí... Nunca se sentiu “desrespeitado”

(Honneth), o que configura um problema de conjunção entre respeito “ativo” (respeito aos

direitos, no sentido da não-violação) e respeito “atitudinal” (reconhecimento, admiração das

pessoas que nos cercam) (Taylor).

A substituição de trabalho por ajuda constitui relações de troca, na maioria das

vezes assimétricas, e também familiarizações. Embora a relação de Alessandro com a família

de Dona Lúcia não tenha sido de criação, a justificativa da ajuda/amparo também é muito

utilizada para a prática de pegar para criar com a mesma conotação moral transcendendo a

ajuda material (casa e comida) e gerando um tipo de dívida, de obrigação de retribuição,

difícil de saldar. Alessandro trabalhou na fazenda de Dona Lúcia sem nenhum vínculo

empregatício e com vontade de uma outra vida melhor um pouco. Nada objetivamente o

prendia. Contudo, só conseguiu sair quatro anos depois do amparo recebido, quando achei

que já tinha cumprido o meu dever. Achou errado; dona Lúcia e sua família ficaram

chateados.

P: Então, quando você saiu [da casa do irmão], você já tinha um lugar mais ou menos certo para ir? Isso, já tinha. Ela [Dona Lúcia] queria uma pessoa para ajudar e eu já tinha uma idade, assim... que podia aguentar um serviço mais pesado. [...] P: E a Dona Lúcia morava sozinha?

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Não, morava com os pais dela. P: Ela era casada? Não. Não era não P: Ela te pagava ou era em troca da casa e da comida? Não, não me pagavam não. Era mais em troca mesmo... da casa e da comida. Era só para mim não ficar desamparado, né, Priscila? Ficar perambulando por aí... P: E você morou lá durante quanto tempo? Eu morei lá durante quatro anos, mais ou menos. P: E como foi essa época da sua vida? O que você lembra? Para mim, não foi ruim não. Eu tive uma vida, assim, muito boa... Apesar do serviço ser um pouco pesado... na época era cortar capim, cortar cana, tratar de gado... O serviço era um pouco puxado, né? Mas eu não tenho nada a reclamar deles não. P: Eles te tratavam bem? Muito bem, muito bem. P: Essa família é conhecida em Bagre Bonito? São, são. P: Eles tinham dinheiro? É... Eles são bem financeiramente. P: E quando você precisava de alguma coisa, de roupas...? Eles me davam, me davam. De menos, assim, dinheiro; porque... né? Eles me davam roupa, nunca deixaram me faltar nada... de comida, nada. P: E você, nessa época, não pensava em voltar a estudar? Não tinha nem como, né? Não tinha nem como eu pensar em voltar a estudar. Eu ficava mais ali, por conta do serviço... Era longe também. Eu não pensava muito. P: O que você pensava nessa época, Alessandro? Por exemplo, você pensava que ia continuar lá para o resto da sua vida ou você sabia que um dia você ia sair de lá? Não... eu sempre pensava que um dia eu ia sair de lá sim. [pausa] Mas... qual era o meu destino certo, eu não podia prever. Eu não poderia prever que ia acontecer muita coisa... Mas eu pensava sim, que ali eu não ia continuar. P: Quando você saiu de lá? Por que você saiu de lá? Foi mais para tentar uma nova vida, né? Porque... Uma outra vida melhor um pouco, né? P: Como você se decidiu a sair de lá? É... Eu achei que ali... eu já tinha cumprido meu dever. Aí eu pensei assim: “Agora vou sair mesmo, porque...”. Eles ficaram chateados... porque eles gostavam muito de mim na época lá, sabe? Eles diziam: "Ah, não vai... porque não vai dar certo lá na frente". Eu falei: "Não, eu vou. Vou sim". Aí, eu peguei e fui para uma outra região aqui de Bagre Bonito. Uma outra região do Machado [zona rural], na casa da tia do Souza [funcionário da fazenda de Dona Lúcia].

8.5 – Novos contextos, novas socializações Começa aqui um período progressivo de mais independência e autonomia.

Inicialmente, Alessandro permanece na região rural trabalhando no mesmo sistema de ajuda,

mas com a diferença e a vantagem de, nas horas de folga, cultivar uma horta em benefício

próprio. Dois anos depois, faz amizade com alguns rapazes da região, o que configura

socializações diferentes das que estava habituado (sempre sozinho e dependente da pessoa

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que o acolheu). Concomitantemente, outra mudança importante e fonte de novas

socializações: Alessandro conhece Patrícia e começam a namorar. Apesar da independência

adquirida, da rede de amigos, de certa autonomia financeira etc., esta é uma das duas

passagens de sua trajetória classificadas como mais difícil. Os maus tratos físicos do irmão ou

o trabalho acerbo em regime de confinamento na fazenda de Dona Lúcia parecem menos

difíceis para Alessandro do que sonhar em se casar com Patrícia, a primeira pessoa depois do

pai de criação por quem foi amado3, e não ter meios de realização. P: Foi no mesmo esquema? Você trabalhou em troca de casa e comida? É, ali... o pessoal ali é mais uma região de plantação de horta, né? Então, nesse período que eu fui morar lá, eu ajudava ela [Dona Tita, tia do amigo Souza] e nas horas de folga eu ia plantar minha hortinha. Aí depois de um certo tempo, eu comecei a plantar horta mesmo. Aí eu deixei mais a ajuda dela de lado e fui plantar horta. P: E você plantava no terreno dela? Não, era num terreno de outra pessoa. P: Mas você morava no terreno dela ainda? Morava ainda. Ela deixou que eu plantasse essas hortas lá para os meus colegas, morando lá ainda. [...] P: E você morou quanto tempo lá? Ali eu fiquei... Com a Dona Tita eu fiquei... uns dois anos só. P: Você fazia amigos nessas regiões em que você morava? Porque nessa época você já tinha 24, 25 anos, não é? O que você fazia nas horas vagas? É... Aí eu já estava namorando a Patrícia, né? Então, nas horas de folga, que era mais à noite, a gente ia namorar. Eu morava lá, com essa senhora, mas a gente tinha que ter um lugar mais reservado, né? Então, para continuar com a plantação de horta, esse homem lá, do terreno do lado de lá, arrumou uma casinha para a gente ficar. Ficava lá seis rapazes. P: Moravam seis na mesma casa? É. Tudo mais ou menos da minha idade. Aí a gente ficava lá para de manhã cedinho pegar no serviço, porque era muito serviço, né? A gente trabalhava o dia todo e voltava para casa à noite. P: Quem fazia a comida? A gente mesmo fazia a comida. A gente tinha que fazer tudo. Era bem difícil, tá? Bem difícil. P: De toda a trajetória da sua vida, você acha que essa foi a época mais difícil? [Pausa - Alessandro fica pensativo] É... Eu tenho uma outra trajetória também que foi muito difícil, foi quando eu morei em Ubá. Mas essa trajetória da minha vida foi difícil também. Essas duas trajetórias da minha vida foi as duas mais difícil.

8.6 – Avanços: mudanças e agências Impulsionado pela dificuldade, Alessandro decide se mudar para o município de

Ubá em busca de um trabalho que lhe permitisse juntar dinheiro para se casar. Tem-se aqui

3 Na segunda fase da pesquisa ficará claro por que me restringi ao pai de criação.

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uma mudança significativa de contexto; da zona rural de Bagre Bonito para a zona urbana do

maior município dessa microrregião da Zona da Mata. Além disto, pela primeira vez,

Alessandro foi aceito sem ser no sistema de ajuda. Ironicamente, é um período marcado pela

ajuda da família que o recebeu, o que faria deste o único acolhimento genuinamente generoso.

Esta família, de pessoas excelentes, não o conhecia pessoalmente e, mesmo assim, aceitou-o

em sua casa, sem que, inicialmente, ele tivesse meios de contribuir com as despesas e,

posteriormente, quando conseguiu um emprego, contribuindo pouco, com um arroz, um

feijão..., pois precisava juntar dinheiro. Entretanto, as entrelinhas de sua narrativa não

considera esta aceitação como acolhimento; a coabitação, neste caso, soa hospedagem.

Alessandro coabitou com essa família por três anos, sendo ajudado, tratado com respeito e

amistosamente, mas não constituiu vínculos de familiarização, assim como não criou vínculos

em Ubá, cidade que lhe ofereceu seu primeiro emprego, com bom salário e todos os

benefícios trabalhistas reconhecidos, além de uma oferta inédita de possibilidades (sobretudo

estudos profissionalizantes e lazer). Nada disto, entretanto, lhe era atrativo. Sua cabeça e seu

coração estavam em Bagre Bonito, para onde regressava todo fim de semana. A ideia fixa de

juntar dinheiro para se casar com Patrícia, mais do que empalidecer o que de bom lhe

acontecia, fez desta a segunda trajetória mais difícil de sua vida.

P: E como é que surgiu essa ideia de Ubá? Olha... Tinha um colega meu que tinha um irmão que morava em Ubá. E ele sempre falava comigo assim, que eu devia ir para Ubá... porque ele tinha um irmão que morava lá. Talvez dava certo... Aí eu peguei e resolvi ir em Ubá um dia, na casa desse rapaz, e fiquei; ele me aceitou lá. P: Aí você foi para trabalhar lá? É, eu fui para trabalhar em Ubá. P: Você já tinha emprego certo? Nesse determinado tempo eu fui conseguindo esse emprego, né?, na fábrica de móveis. Foi o primeiro... a primeira firma que eu trabalhei registrado no mesmo, né? P: Foi numa fábrica de móveis? Isso, numa fábrica de móveis. P: Qual era sua função, você era operário? Isso, era mão de obra. P: E era pesado o serviço? Não, não era pesado. P: E eles te pagavam direitinho, com carteira assinada? Pagavam. Era muito bom até. P: E você morava com seu amigo? É. P: Moravam só vocês dois? Não, ele era casado. Ele tinha casa, tinha família, tinha dois filhos. P: Eles te acolheram? Me acolheram.

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P: E você ajudava na despesa da casa? Ajudava. Nesse determinado tempo que eu fiquei com ele, eu ajudava sim... a comprar um arroz, um feijão... P: E a mulher dele te tratava bem? Tratava, era uma excelente pessoa. P: E por que essa fase foi tão difícil para você? Olha... foi tão difícil porque... foi difícil para mim porque eu pensava muito em casar. Então, para mim ficar naquela vida ali: Ubá-Bagre Bonito, Ubá-Bagre Bonito... aquela vida toda; era difícil. Então, foi um longo tempo, foram três anos indo de Ubá para Bagre Bonito todo final de semana. Então, para mim ficar naquele gasto de passagem vindo todo final de semana, então, para mim isso foi muito difícil. Para mim, eu me ponho assim, aquilo ali foi uma das fases mais difícil que eu passei, porque... eu já tinha uma pessoa e queria casar e... esse gasto com passagem atrapalhava eu juntar dinheiro para poder casar. P: Então, você resolveu sair de Ubá e voltar para cá por causa disso? [...] Aí essa firma quebrou lá em Ubá e eu tive que vim embora, entendeu? Aí eu vim embora e foi aí que eu casei. P: E aí logo que você chegou aqui em Bagre Bonito você se casou ou não? Não, não. Eu arrumei um emprego primeiro. Inclusive, foi o pai dela que me ajudou, que conversou lá para mim. Quando cheguei, eu não conhecia quase nada, não conhecia ninguém... Então o pai dela falou: “Não, pode deixar que eu vou dar um jeitinho para você”. [...] P: E foi fácil conseguir um emprego? Eu fiquei seis meses, mais ou menos, sem o trabalho. Pegava algum serviço de ajudante de pedreiro. P: E você morava com quem? Eu ficava na casa dela. Fiquei um tempão na casa dela, desde que eu voltei de Ubá. Durante esses seis meses, eu fiquei na casa dela. Até arrumar o emprego. P: E aí você conseguiu o emprego e saiu de lá, da casa dela? É, eu saí; aí nós casamos, né? P: Aí vocês mudaram para essa casa aqui? Não, nós mudamos para uma casinha lá no alto da colina. [...] Eu estava pagando aluguel e aluguel é uma coisa que você paga, paga e nunca é da gente, né? [...] Aí, meu patrão lá da fábrica falou assim: que eles têm algumas casas para funcionários e assim que desocupasse alguma, ele ia passar para mim. E é essa casa aqui. P: Então aqui vocês não pagam aluguel? Não, aqui não. Aqui é por conta da firma. Outra forma cultural de ajuda refere-se a esta que Alessandro recebeu do pai de

Patrícia para conseguir um emprego. Como visto, ser conhecido constitui um importante

artifício de sociabilidade em Bagre Bonito e, embora Alessandro tenha vivido a infância e a

adolescência neste município, desde a morte do pai, ele ficou afastado do convívio social,

sobretudo do que transcorria na zona urbana. Ao retornar de Ubá, fez-se necessário o

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intermédio de alguém (bem) conhecido para ser incorporado à comunidade e obter um

trabalho de verdade.

Embora Alessandro considerasse (e considere) os pais e os irmãos de Patrícia

como uma família, ele não metamorfoseou sogros em pais; de modo que esta constituiu mais

uma família de consideração que não preenchia a necessidade de ter sua própria família. Para

Alessandro, apenas através de um filho consanguíneo seria possível, pela primeira vez, “ser”

de uma família (e não como se fosse). O casamento sintetiza um percurso de bastante agência:

Alessandro se mudou de cidade; procurou um emprego formal com melhor remuneração;

planejou; administrou seu orçamento; fez questão de se casar na igreja, com tudo; fez questão

de sair da casa dos sogros mesmo que o aluguel lhe subtraísse a maior parte do salário e, por

fim, determinou o momento de ter o filho que tanto queria. Diante da dificuldade que impedia

sua paternidade, não se acomodou: se informou, planejou, pediu ajuda e conseguiu o

tratamento médico que Patrícia precisava para gerar seu filho.

8.7 – Retornos: dependência familiar

A constituição da própria família com o nascimento do filho significou sua

realização pessoal, eu lutei por isso, e também o fim da luta, da “agência”. Com o filho nos

braços, seu casamento entra em nova fase, despertando velhas “disposições”. Alessandro se

diz satisfeito, realizado, sem mais objetivos ou direções a perseguir, tal como nos períodos

em que a vida decidia por ele, ou, mais especificamente, sua vida era decidida pelos outros.

Temos em Patrícia uma importante chave interpretativa: ela representou a mudança, a fonte

de objetivos e direção, e também o retorno, a fonte de decisão.

Na conversa que tivemos a três findada a entrevista, a manutenção da família se

destacou como uma preocupação comum ao casal, mas de perspectivas distintas. Se minha

percepção está correta, existe uma sutil diferença de valoração: para Alessandro, a família,

para Patrícia, o casamento. Meu maior sonho também sempre foi casar, disse com o intuito de

fazer coro ao marido. Entretanto, na narrativa de Alessandro, o casamento não aparece como

um fim em si, mas claramente como meio. A importância que Patrícia confere ao casamento é

desvelada por alguns indícios, além da frase acima, como sua indiferença inicial com relação

a ter filhos. Alessandro já havia adiantado que ter filhos era uma vontade mais sua do que da

esposa, aliás, mais do que uma vontade; uma fixação. Assim, o medo que se apodera do casal

quando acontece os abortos involuntários também tem significados distintos; colocava em

risco o sonho de uma família, para Alessandro, e, para Patrícia, o casamento. A maternidade

de Patrícia constituiu, fundamentalmente, a realização do sonho do marido. O filho aparece

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como um presente, uma “dádiva”, ao marido, como sugere a ideia de homenageá-lo batizando

a criança com uma variação diminutiva de Alessandro.4

A partir daí, Patrícia assume o cuidado da família, o que, neste caso, envolve a

economia doméstica (com a retenção do salário de Alessandro) e a orientação da vida de

todos. Frases como eu falo para o Alessandro fazer isso ou não fazer aquilo permeiam sua

narrativa. Alessandro não apenas concorda, como se mostra dependente desta orientação.

Suas necessidades são definidas e supridas pela esposa, o que, evidentemente, restringe suas

ações, colocando-o sob permanente controle. Ainda nesta conversa final, Patrícia retoma

espontaneamente o assunto do futebol que Alessandro não soube explicar por que deixou de

participar5: Não me importo que ele vai jogar bola; o problema, é que vai uns homens que

não querem nada com a vida, sabe? Que ficam lá com uma conversa fiada, com uma

bebeção... O dilema de Alessandro não é fácil: se ele usa do dinheiro familiar para ir ao jogo,

declara sua participação na conversa fiada e na bebeção, já que o jogo em si é gratuito; se vai

sem dinheiro, precisa inventar boas desculpas aos amigos para não participar da conversa

fiada e da bebeção. Assim, a vida de Alessandro voltou a ser mais dentro de casa, mais a

obrigação mesmo, o trabalho. Ele se diz caseiro e não gostar de distrações extrafamiliares,

mas vai; quando a esposa quer ir, para não desagradá-la. Sua distração maior é seu filho. De

fato, o único momento em que Alessandro se exalta e sorri na entrevista é quando fala do

filho. Tem amigos queridos, mas não é de frequentar encontros ou a casa deles, nem de

vizinhos; o que é muito peculiar, já que em Bagre Bonito o trânsito entre vizinhos é intenso.

Continua de poucas palavras, sempre fui mais na minha, desde criança, mas é amigo de

todos, me dou bem com todo mundo.

P: [com relação aos pais de Patrícia]Você os vê como pais ? [Silêncio] P: Ou não, como sogros mesmo? É... Como sogros mesmo. Mas nunca a gente deixa de ter... assim... um carinho especial, né? Porque... é a família da gente hoje, né? Que a gente considera. P: Família para você é importante? Muito! Eu lutei por isso, né? Eu lutei por isso. P: Lutou por isso?

4 Alessandro – Alex. Nomes fictícios. Analogia mais próxima que encontrei dos originais. 5 [O que vocês – Alessandro e os pais de criação – faziam para se divertir?] Olha, Priscila, a gente não tinha muito assim... diversão não, sabe? Vivia mais dentro de casa mesmo. A diversão que a gente tinha era jogar uma bola... Eu sempre gostei. Hoje eu não gosto mais, não é... não é porque... não é por causa... ah, hoje eu não gosto mais. A idade também... as coisas na vida vão passando. Então a vida da gente era assim, a gente corria atrás de uma bola porque a gente gostava. Mas, no mais, era aquilo ali; do campinho para casa. Era mais a obrigação mesmo, o trabalho.

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Lutei por isso. P: Você sempre quis ter filhos? Sempre quis. Apesar da dificuldade, né? Que a gente teve para ter... P: É? É, a gente passou uma certa dificuldade para ter filho, mas... veio em boa hora, né? [...] P: E você hoje se sente realizado com a sua família? Sinto, sinto muito realizado. [...] P: Vocês pretendem ter mais filhos? Não, pretendo não. Olha, Priscila, eu não vou dizer para você que a gente tem uma situação financeira assim... muito... assim, uma situação financeira boa. Então, pra que eu colocar mais... né? E não poder dar uma situação de vida boa. Então, eu acho que um já é o suficiente. P: A Patrícia concorda com você? Concorda. [...] P: O que falta na sua vida para você se realizar? Apesar de tudo, eu já sou bem realizado, porque... eu já tenho meu rapazinho. Eu acho que não me falta nada, porque tudo que eu queria era ter um filho e isso eu consegui. Então para mim... Claro que a gente pensa em melhorar a situação financeira, essas coisas todas, eu acho que também ia ser bom, mas, se não conseguir mesmo, o que eu tenho para mim já está bem realizado já. P: O que vocês fazem, você, a Patrícia e o seu filho, para se divertir? A gente vai lá para casa da mãe dela, são pessoas alegres... Aí a gente reúne, todo dia de domingo a gente se reúne, então aquilo ali é uma área de lazer que eu acho que é uma diversão muito grande, são pessoas muito divertidas, muito alegres. Então, a nossa diversão é essa. [...] P: E com o Alex, o que vocês inventam para se divertir com ele? É... Outro dia estava falando com a Patrícia [risos]: ele mesmo é a própria diversão dele! [risos com orgulho] Ele é explosivo, é uma criança alegre... Para ele, estando com a gente, já é a diversão dele, porque ele não larga a gente para nada, né? Quando tem alguma diversão na praça, a gente leva ele para brincar um pouco... Alguma coisa da idade dele. P: Você me disse que você e a Patrícia enfrentaram muita dificuldade para ter o Alex... ? Olha... Ela já teve vários abortos, né? Duas vezes de aborto. Com dois meses de gravidez ela abortava. Nós fizemos o tratamento certo... aí deu certo. P: Onde vocês fizeram o tratamento? Em São João. P: E foi tranquila a gravidez? Foi, por incrível que pareça, foi tranquilo. Apesar do medo que a gente tinha. P: E o que vocês faziam nessas horas de medo? Rezava muito. A gente pedia a Deus que desse o filho que tanto eu queria, né? P: Era mais você que queria? É, era. Os dois, né? Mais eu; era mais eu, né? Eu era mais fixado em ter uma criança, né? Um filho. [...]

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P: O que você acha que acontece com a gente depois que a gente morre? Olha... O corpo da gente é uma matéria, né? Mas... o espírito, eu creio que... vai para onde a gente merece, né? P: Tipo um céu? É, para o céu. P: Então existe céu e inferno? Bom, Priscila... Eu creio que sim; céu existe, né? [...] P: Alessandro, você acha que uma vida de sofrimento é garantia de recompensa após a morte? [pausa] Garantia de salvação? [pausa] Ou você acha que não tem nada a ver? Olha... [pausa] A gente faz por onde merecer, né? Porque... como uma pessoa que não faz por merecer, ela vai ganhar o reino do céu? Não tem nem como, né? Eu acho que o certo é fazer por merecer mesmo. P: Sendo bom? É, sendo bom com as outras pessoas, né? Fazendo tudo de bom, ajudando, né? [...] P: O que te deixa mais triste? Como eu te disse, é lembrar dos meus pais. É um momento que me entristece demais. É lembrar do jeito que os meus pais me criaram. P: Você tem saudade daquele tempo? Muita! Tenho muita saudade... Tem que ter, né? Porque se não fosse eles, acho que nem vivo eu estaria hoje. [...] P: E o que te deixa mais alegre? A alegria maior é meu filho. É a maior alegria mesmo, meu filho! É na hora que eu estou no trabalho... Que eu chego e ele grita: "Papai! Papai!" [risos] Então, isso para mim é a maior alegria que eu tenho, meu filho. Com certeza. [...] P: Você gosta de festa? Gosto, mas uma festa bem organizada. P: Você e a Patrícia costumam ir a festas? De aniversário...? Vamos, vamos. P: Gostam? Gostamos. [pausa] Eu não sou muito chegado não, mas eu vou, entendeu? Eu vou sim. [pausa] Para não desagradar a esposa; porque às vezes eu não quero ir e aí ela fala: "Ah, sem você, então não vou". Então, para não desagradar ela, eu vou. P: E vocês fizeram festa para o aniversário de um ano do seu filho? É, básica, né? Só o básico. P: Você acha isso é importante? Eu acho. Apesar de que, pela idade, ele não entendia nada, mas... para ele ter uma recordação daquela idade, né? Então, nós fizemos uma festinha sim. Festinha básica mesmo. P: Vocês tiraram fotos? Tiramos fotos. Com a família, né? Presente ali. É para ele ter uma recordação dele quando ele tinha um ano, né? Eu acho isso importante. Coisa que não tive, né? P: Você tenta fazer para seu filho aquilo que você não teve? Tento! Tento sim. [...]

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P: Você já passou alguma necessidade? Já, já passei sim. Mas... nunca pedi para ninguém, assim... nada. Eu nunca fui de pedir, sabe? Já passei sim, mas... deixa; eu guardava para mim. Eu nunca... [silêncio] Para concluir, proponho uma retrospectiva pontual. Alessandro objetiva com

precisão o fio narrativo de sua trajetória: P: Alessandro, agora no final, eu gostaria que você lembrasse como era sua vida quando você tinha 10 anos de idade. [Alessandro fica pensativo] Aos meus 10 anos de idade, eu ainda estava morando na companhia dos meus pais, né? Olha, era muito bom! É a fase que eu mais tenho saudade, é a época em que eu morava com eles. P: E quando você tinha 16 anos, como era a sua vida? Com 16 também eu tive uma fase boa... Apesar de... eu não estar mais na companhia dos meus pais, também não foi ruim não, mas eu queria estar ali na companhia dos meus pais... mas não foi possível, né? P: E aos 25 anos? Aos 25... [pensa um pouco] Eu estava aqui em Bagre Bonito... namorando, né? Também foi bom! Não tenho nada a reclamar não. P: Você acha que você sofreu alguma mudança, alguma transformação pessoal dessas fases para hoje? Já. P: E você acha que essa mudança foi devido a quê? Olha... Foi devido... a uma família, né? Devido a uma família que... eu perdi, mas reconstruí outra, né? Então para mim, isso é o que marca a minha vida.

Bagre Bonito, 27 de janeiro de 2007

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CAPÍTULO 9 – SEBASTIÃO Mundinho

O modo como cheguei até Sebastião é curioso. Três pessoas da zona urbana de

Bagre Bonito me sugeriram ir até determinada localidade rural entrevistar um filho de criação

que mora com os pais porque cuida deles junto com sua esposa. Os pais de criação, de

acordo com os informantes, eram bastante idosos e a mãe estava acamada, muito doente. Fui

acompanhada de minha mãe até a localidade indicada, ela conhecia o acesso e também os

referidos pais de criação. Não sei dizer o que aconteceu; as informações eram, em sua

maioria, procedentes, mas do tal filho de criação, ninguém nunca ouvira falar. O sítio, de fato,

era habitado por dois casais: os proprietários, um senhor de 96 anos, muito lúcido e ativo, e

sua esposa, uma senhora de 79 anos em estado vegetativo, cujos cuidados ficavam por conta

de Madalena, esposa do caseiro. O nome indicado não era o mesmo do marido de Madalena.

Ele também nunca foi filho de criação, assegurou Madalena. Ainda assim, procurei saber se,

porventura, era considerado como se fosse filho devido aos anos de dedicação e coabitação.

Não. Madalena e seu marido são caseiros neste sítio há muitos anos. O marido é regularizado

de acordo com a legislação trabalhista, Madalena não; mas recebe um salário para cuidar da

casa e da senhora (e do senhor). Ambos, Madalena e o marido, são considerados empregados

e moram em casa de caseiro, isto é, separada.

Fomos recebidas na varanda da casa e servidas de suco com biscoitos devido ao

conhecimento recíproco entre minha mãe e o senhor. Conversamos, o senhor, Madalena,

minha mãe e eu, por aproximadamente meia hora. O assunto do suposto filho de criação foi

rapidamente substituído por comentários sobre o calor, a possível chuva, a enchente nas

cidades vizinhas, a precoce doença degenerativa da senhora e a lucidez do senhor. Já

tínhamos nos transformado em visita e a entrevista ficado na intenção quando,

despretensiosamente, Madalena comentou: meu marido nunca foi filho de criação, mas eu

tenho um irmão que é.

A história deste irmão de criação, Sebastião, em nada se assemelhava à indicação

que me fora dada. Sebastião foi adotado quando era muito pequeno e morou com a família de

Madalena até a morte dos pais, há muito tempo. Como estava com dificuldade de encontrar

homens filhos de criação, peguei o endereço com Madalena, isto é, as referências, pois ela

não sabia o nome da rua e nem o número da casa (que, de fato, não tem), e fui atrás de

Sebastião em outra localidade rural, mas em uma região limítrofe com a zona urbana. Cheguei

fácil à casa; para minha surpresa, Sebastião Mundinho é bastante conhecido.

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Como mencionado nas demais entrevistas, durante a fase exploratória da pesquisa,

os filhos de criação que entrevistei foram lembrados com recorrência e reconhecimento

social. Por que Mundinho não foi lembrado pelos conhecidos de Bagre Bonito é uma questão

cujas respostas ferem a unificação da experiência social filho de criação.

9.1 – Sebastião, sua casa e sua família

Entardecia no momento em que me debrucei na cerca de bambu que resguarda a

propriedade e chamei por Sebastião. Os raios âmbares do poente iluminavam a casa envolta

pela fumaça do fogão a lenha localizado no terreiro. Contraluz, a silhueta de um homem

magro, estatura mediana, caminha sem pressa em minha direção. Era Sebastião. Trajava

apenas uma calça parda de poeira. O tronco nu revelava as costelas desenhando-lhe a pele e

os pés descalços confundiam-se com a terra que pisavam com intimidade. Me chamaram

atenção os cabelos claros, os olhos azuis e a pele que deveria ser clara de nascença, mas

curtida pela vivência sob o sol cujo ardor resplandecia naquele dorso marrom avermelhado.

Estas características colocam como variável o que até então parecia determinante da

experiência filho de criação: a raça negra. Expliquei-lhe que fazia uma pesquisa sobre filhos

de criação e que Madalena me sugeriu procurá-lo. Sebastião foi solícito, embora de pouca

conversa, com uma dicção característica da boca quase vazia de dentes. Tratamos logo de

definir uma data para a entrevista; três dias depois, domingo, às duas horas da tarde, em sua

casa.

Cheguei no horário combinado. Ao chamar seu nome, algumas meninas correram

até o portão. Sebastião é casado e pai de oito filhas. Seu único filho homem, Deus levou antes

de completar um ano de idade. A primogênita, 23 anos, mora desde pequena com uma família

em outra cidade. Até onde pude apurar, é filha de criação, mas Sebastião não desenvolve o

assunto. As sete filhas restantes moram com ele e a esposa. Uma de suas filhas, 16 anos, é

mãe solteira de uma menina de três anos, que também mora na casa. Ao todo, dez pessoas

habitam a casa de dois quartos, sala e um terreiro lateral, onde ficam o banheiro e a cozinha.

As condições são um tanto inóspitas: a cozinha (um fogão à lenha coberto com telhas de

amianto) é contígua ao chiqueiro, cujo odor é bastante forte; galinhas soltas percorrem

livremente todo o espaço, externo e interno, chegando a se aninhar nas camas e no sofá;

devido à falta de pavimentação da rua, ao quintal de terra e ao entra e sai de pessoas e

animais, tudo é muito empoeirado e manchado de barro. Contudo, “condições inóspitas” é

uma percepção minha (não apenas exógena, mas oriunda da comparação com as demais casas

visitadas durante a pesquisa), para Sebastião, tá bom; nós tem luz, nós tem conforto aqui. De

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fato, as condições em que viveu a maior parte de sua vida não eram diferentes, com o

agravante da falta de eletricidade.1

Perguntei por Sebastião e suas filhas informaram que estava dormindo. Ao me

identificar, uma delas correu para acordá-lo e outra abriu o portão me convidando a entrar.

Pareceram-me orientadas. Entramos na sala, havia uma estante com uma televisão antiga

ligada, duas cadeiras e um pequeno sofá, onde duas galinhas se aninhavam confortavelmente.

Uma das meninas espantou as galinhas e se sentou. A irmã mais velha interveio, mandando-a

se levantar para me ceder o lugar. Recusei e espontaneamente me sentei em uma das cadeiras.

As meninas, então, se acomodaram como puderam; uma no colo da outra e nos braços do

sofá. Enquanto aguardava Sebastião, conversei com a filha mais velha sob os olhares curiosos

das mais novas. Chamou-me atenção a semelhança delas; os mesmos olhos verdes baços.

Baços também eram a pele morena, as roupas e os cabelos ondulados, cobertos da poeira

amarela do lugar, o que, entretanto, não lhes embaçava a beleza. Fiz um comentário

apreciativo e, pelas reações afirmativas, percebi que elogios são costumeiros. Com receio,

talvez, de comprometer minha apreciação, as maiores sorriam com contenção, escondendo os

dentes cariados.

Logo Sebastião chegou. Imagino que tenha se preocupado com a apresentação

devido à camisa xadrez de manga longa que acrescentou à calça parda, apesar do calor. Seu

andar e fala denotavam fraqueza, supus que em decorrência do sono interrompido. Contudo,

ao nos aproximarmos, senti um hálito forte de álcool. Propus remarcarmos a entrevista, mas

ele recusou dizendo que estava me esperando. Sugeriu que fôssemos conversar no quarto das

meninas, contíguo à sala, por causa do barulho da televisão. Fomos todos; ele, eu e as

meninas curiosas. No quarto havia uma cama de casal, uma cama de solteiro e um guarda-

roupas de duas portas. Sete meninas dormem neste quarto (incluindo a netinha), uma dorme

no sofá da sala. O outro quarto é exclusivo dos pais. Não o conheci, assim como não conheci

sua esposa, que dormiu durante o tempo em que permaneci na casa, aproximadamente duas

horas. As meninas ficaram conosco apenas no início, logo a entrevista as enfadou e apenas a

filha mais velha permaneceu, retomando um bordado iniciado. Não interferiu nenhuma vez.

9.2 – Infância com a família consanguínea: poucas e más lembranças

Ao começar a entrevista, minha impressão de que Sebastião estava disposto a

participar se desfez. Foi a contragosto que ele respondeu às primeiras questões, sobre a 1Sem contar a primeira infância vivida na rua, sobre a qual não é possível discernir entre fantasia e realidade, haja vista o esquecimento de Sebastião de tudo referente a ela.

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infância com os pais consanguíneos. É verdade que sua lembrança poderia estar, de fato,

comprometida (pela falta ou por distorções), mas seu modo de falar, um tanto ríspido e às

vezes revoltoso, transpareceu desgosto de tocar no assunto e um forte sentimento de

vitimização. Sua imaturidade na época e a falta de lembranças deixam seu passado obscuro,

mal resolvido. Nem mesmo o lugar do seu nascimento é certo. Sebastião hesita em dizer onde

nasceu, depois responde de chofre e laconicamente, colocando um ponto final. Porém

continuo; ele reitera que nasceu em Barão de São João Batista, mas que seu registro é de

outra cidade, distante 500 quilômetros.2 A recusa em falar desta parte do passado (algo

recorrente na pesquisa) pode estar associada à falta de resolução, visto que outras passagens,

tão dolorosas quanto, mas bem resolvidas (no sentido compreensivo da expressão), são

narradas com fluidez. Ao adentrar o tema de sua adoção, a mudança é nítida; Sebastião narra

com entusiasmo, alegria e nostalgia a sua experiência. P: Seu Sebastião, o senhor tem quantos anos? 44. P: Onde senhor nasceu? [Silêncio] Ah, minha filha... [suspira com enfado] Bom, no São João. [Silêncio] P: Isso é o que o senhor lembra ou que contaram para senhor? Não, eu lembro. São João. P: Cidade de São João? É, Barão de São João Batista, mas o meu registro é do estado de Areado. P: O senhor é filho de criação, não é? Para onde eu fui, sou. P: E por que o senhor foi para essa casa? Porque eu perdi pai e mãe, eu estava com quatro anos, nem cheguei a conhecer direito. Quatro aninho. P: O seu pai e a sua mãe moravam juntos? Moravam juntos sim. P: E eles morreram do quê? Não sei. P: Mas quem morreu primeiro, o seu pai ou a sua mãe? Bom, isso aí eu não lembro. P: O senhor era muito pequeno, né? Era pequeno. [...] P: O senhor lembra se a sua mãe era calma, se ela era nervosa... Do jeito dela, o senhor se lembra de alguma coisa? Não. P: E do seu pai?

2 Foi a partir desta informação que analisei o seu apelido. “Mundinho” foi o correlato mais próximo que encontrei, assegurando o anonimato, para o significado do seu apelido original. Embora Sebastião afirme que o apelido fora lhe dado por acaso pelos colegas da escola, sua origem indefinida certamente o diferenciava como alguém de fora, de vários lugares, cuja alcunha caricatura estas diferenças. Do significante, mantive o diminutivo.

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Também não. P: Os seus pais trabalhavam? O senhor lembra? Não, não lembro não. P: E ninguém nunca te contou nada sobre seus pais, o que eles faziam...? Não. P: O senhor teve irmãos? Tenho. Bom... P: Por parte dos pais verdadeiros? É. P: Quantos irmãos o senhor teve? Tenho seis irmãos; dos homens, os dois mais velhos já morreram, só tem eu e três mulheres. P: Essas três mulheres são vivas? Não sei! P: O senhor não conhece, não sabe...? Conhecer, eu conheço; mas nem sei onde moram mais. Não me procura! [Em tom raivoso] Não me procura! Veio me procurar uma vez só, mas depois foram embora. P: É mesmo? Quando o senhor já estava grande? É, depois de grande. P: Por que elas te procuraram? Queriam te conhecer? Não, elas queriam me levar para morar lá de irmão mesmo. Com 15 anos elas vieram me buscar, vieram com o cunhado. Com 15 anos vieram me buscar, eu peguei e fui. Fui pra São Paulo. Para morar pra lá de São Paulo, era lá em Itu. Aí tudo bem... Eu fiquei lá uns dois anos, não gostei de lá e voltei para cá. P: Para a casa das pessoas que te criaram? Não, aí eu já fui para outro lugar. P: Então, com quatro anos de idade o senhor perdeu seus pais e foi morar na casa de uma família? Isto. Quando me pegaram eu estava na rua! Na rua! Estava andando na rua. Sem nada... Sem ninguém para me olhar. Entendeu? Os irmãos mais velhos tudo ó: [dá de ombros - “nem aí”]. Eu passava ali em algumas casas e falava: "Ô, fulano, me dá um pão para mim comer". Pedia dinheiro para comprar as coisas para mim comer. Não tinha ninguém para me ajudar... Eu não era gente não. P: Não era gente? Não, não era não. P: Quando essa família adotou o senhor foi melhor? Foi melhor, ué! Foi melhor. Eu andava tudo sujo, com o calçãozinho todo sujo... pelo meio da rua lá, entendeu? [Silêncio] Foi melhor. P: E essa família tinha outros filhos? Tinha. P: Quantos? Lá para onde eu fui? Ah... tinha... acho que era oito moça que tinha. P: Só mulher? Não, tinham homem também, mas os homem estava tudo casado e só ficou eu para fazer companhia para elas.

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9.3 – O acolhimento pelo gênero e a dominação masculina A narrativa de Sebastião corrobora a percepção de que o acolhimento está sempre

atrelado ao desempenho de algumas funções e à divisão sexual das funções. No seu caso, a

família de criação precisava de uma presença masculina para tomar conta das filhas, já que os

filhos homens estavam todos casados e alhures. Sebastião virou uma espécie de homem de

confiança do pai. As filhas do casal, embora mais velhas do que ele, só saíam de casa em sua

companhia e deviam obedecê-lo. Quando Sebastião não estava tomando conta das irmãs,

exercia funções de menino no engenho da família. P: Então eles queriam um filho para fazer companhia para as filhas? Isto! E eu fiquei lá. Vinha para [a zona urbana de] Bagre Bonito no sábado para trazer elas para dar uma namoradinha... [risos] Eu é que dava as ordens! Só tinha eu de homem no meio das moças, né? P: E o senhor era tratado como filho? Como filho! Como filho! P: Do mesmo jeito que eles tratavam as filhas eles tratavam o senhor? Do mesmo jeito, do mesmo jeito. P: E o senhor tinha de tudo lá? Tinha de tudo! Dormia no mesmo quarto que as meninas, igual irmão mesmo. P: E o senhor trabalhava lá? Trabalhava! Trabalhava, né? Depois que eu panhei idade, comecei a trabalhar. Eu estudei... P: Até que série o senhor estudou? Ah, eu estudei até a terceira só. P: E o senhor se importava de trabalhar? Não! De jeito nenhum! Que isso?! [pergunta com indignação] De jeito nenhum, ué! P: O senhor gostava? Gostava. P: O senhor era grato porque eles te pegaram para criar? É, ué! Eles gostavam de mim. P: E aí o senhor não se importava? Não. Trabalhava, mas vinha à rua todo sábado com as meninas. A gente vinha a pé! Vinha a pé a turma! [Conta com prazer] P: Vocês moravam na zona rural? É, na roça, justamente. A gente vinha a pé! Ih! Era bom demais! [risos] P: O senhor era feliz naquela época? Feliz! Feliz, ué?! [...] P: Como eles [os pais] eram com o senhor? Uai! Mesma coisa como se fosse filho deles. Me dava remédio, se precisasse... Me colocou na escola... Entendeu? [...] Eram velhos já. Tinham moça já de idade; com 15, 16, 17, 18 anos. P: Eles tinham o que, 50, 60 anos? É, mais ou menos isso aí mesmo. P: Eles eram religiosos?

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Eram, eram religiosos. P: E eles passaram isso para senhor? Tinha reza todo domingo na rua e eu ia com as moças. Eles me colocavam na charrete domingo de manhã e a gente ia. Todo domingo. Não faltava um! Só se estivesse chovendo muito. P: O senhor gostava de ir ou ia porque era obrigado? Não, eu gostava, uai! Eu gostava! Eu ia lá no pasto, pegava o animal, arrumava a charrete e ia. P: Era um divertimento? Um divertimento! Ô! [risos] Era bom demais! [risos] [...] P: Quando te pegaram para criar o senhor virou o mais novo dos filhos? É, o mais novo. P: E o senhor também gostava de vir para a cidade dar uma namoradinha? [risos] Não tinha, né? Era novo. [risos] Ainda não tinha, só elas. P: O senhor ficava tomando conta delas? Isto, tomando conta. P: E depois o senhor contava tudo para o seu pai? Não, só se elas fizesse alguma coisa que eu contava. [risos] P: Elas brigavam com o senhor, se o senhor contasse alguma coisa? Não, não brigavam não. P: Elas tinham medo do senhor contar? Tinham, tinham medo. Ah, elas respeitavam! Estavam comigo, ué! Chamava para ir embora, tinha que ir embora! “Senão eu vou embora, vocês ficam por aí!” Eu falava desse jeito com elas: “Oh! Eu vou embora, vocês ficam por aí!” [...] P: E os irmãos que moravam fora, eles vinham visitar vocês? Vinham algum domingo, né? Já eram casados. Eles já tinham o terreninho deles, cuidava das criações deles... Então, não vinham direto. P: E o senhor se dava bem com eles? Ih! Vou na rua, às vezes encontro com eles na rua aí... “Vamos embora para minha casa!” Eu falo: “Não posso!” P: Então eles gostam do senhor? Gostam! Eles falam: “Vamos passear lá em casa? Fica lá, depois eu trago você.” P: Então, o senhor se dava bem com a família toda? É claro, uai! P: Claro, né? Claro.

9.4 – Incompatibilidade dos estudos com o serviço

Como visto, algumas vezes minhas perguntas soaram bobas ou absurdas, o que,

entretanto, não é insignificante. Sebastião se surpreende com o questionamento do óbvio, do

naturalizado. A educação que recebeu está plenamente de acordo com o que é culturalmente

cabível a um filho de criação. As diferenças, que culminam em desigualdades, entre filho de

criação e consanguíneo e entre homem e mulher são mais do que naturalizadas, são

esperadas, e assim são reproduzidas. O acesso à escola, por exemplo, constitui uma diferença

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estruturante e condicionante do filho de criação aos quadros da socialização familiar, por toda

a vida. A difícil relação de Sebastião com o trabalho regular e sistemático fora do contexto

doméstico, tornando-o sempre dependente do sustento garantido por alguém, no caso, sua

esposa; a dominação masculina na educação das filhas, que não podem sair de casa sem a sua

presença, e a indiferença com relação à evasão escolar das meninas, são alguns exemplos de

reprodução. P: E aí, depois de grande, o senhor estava na escola... Por que o senhor parou de estudar? Por causa do serviço. P: Por causa do serviço? Do serviço. Do serviço e outra: minha ideia não é puxada para o estudo, a minha ideia é puxada para o instrumento. Portanto, eu tenho um violão! Às vezes chego em algum lugar, aí eles falam pra tocar... [...] P: O senhor aprendeu sozinho? Não, eu estudei. Eu estudei três meses. P: E onde senhor estudou? Aqui mesmo em Bagre Bonito. P: Depois de grande? Depois de casado, uai! Eu já tinha casado, já tinha trabalhado na fábrica de queijo... P: Enquanto o senhor era criança, era só a escola? É, era só escola. P: Aí o senhor não gostava da escola e parou de estudar? É, e também por causa do serviço. [...] P: O serviço na roça naquela época era muito? Era muito! Porque a gente tinha que moer cana para fazer rapadura... P: Para vender ou para casa? Para vender. Tirava para a despesa e para vender. Então era assim: às 3 horas da manhã já estava trabalhando, tocava boi, né? Porque no plantio não usava motor, não tinha luz, né? Era roda de boi para moer cana, colocava os bois para rodar aquilo ali e ficava tocando os bois. Aí depois, dava 6 horas, eu trocava de roupa de galope e ia correndo pra escola. Eu já ia cansado... De vez em quando eu dormia na aula. E de noite para fazer o dever? Morrendo de cansado! Como que eu aprendia? Que jeito? [...] P: O senhor acha que o estudo faz falta? Ah, boba, pela idade que eu já estou... não. Não faz falta mais. Faz falta para essas moças aí, ó: [aponta para as filhas]. Estavam estudando o ginásio e parou. P: O que o senhor acha disso? Delas terem parado de estudar? Uai! Vai ser ruim para elas! Para mim não, né? Aonde que vai arrumar um emprego bom? Entendeu? Para ganhar bem. Com pouco estudo que elas têm, vai ganhar pouco! E se tivesse estudado mais, ia arrumar um emprego para ganhar mais. [...] P: E os seus irmãos de criação estudaram? Estudaram. [...] P: Se o senhor tivesse mais estudo, o senhor teria um trabalho melhor?

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Teria um trabalho melhor e outra: não estava aqui! Né? Não estava aqui na roça não, ué! P: O senhor não gosta de morar aqui na roça? Gosto, uai! Tô dizendo assim: se eu tivesse um estudo melhor, eu não estava morando aqui na roça, estava morando na rua. Estava na rua, tinha uma casa na rua... Tá bom; nós tem luz, nós tem conforto aqui, mas... P: Essa casa aqui é do senhor mesmo? Aqui é. P: Então o senhor não paga aluguel. Não, só paga luz.

9.5 – Exclusão da herança A sua exclusão da divisão dos bens deixados pelos pais de criação constitui a

única situação em que Sebastião insinua desigualdade em relação aos filhos consanguíneos,

mas não a desenvolve. A justificativa dos irmãos de criação para a sua exclusão pautou-se na

sua saída de casa para ir morar em São Paulo com as irmãs consanguíneas: perdeu o direito.

Entretanto, quando as irmãs consanguíneas vieram buscá-lo para ir morar de irmão, os pais

de criação já haviam morrido. O interesse de Sebastião em me contar a justificativa dos

irmãos denotou, inicialmente, uma intenção de compartilhar algo mal entendido: Ah! [como

se se lembrasse de algo importante] É o que eu vou falar pra você: [...] Porém, a continuação

de sua narrativa apenas reproduz a narrativa dos irmãos. No lugar da intenção surge a

aceitação, sem máculas na relação com os irmãos. P: Essa família que pegou o senhor para criar, tinha boa condição financeira? Tinham, ué! Tinham boa condição. P: Era uma família conhecida aqui em Bagre Bonito? É, é conhecida. Eles tinham fazenda! Era fazenda mesmo! Eles eram fazendeiros! Tinham dinheiro. P: Eles são vivos ainda? Não, já morreram. P: E eles deixaram alguma coisa para senhor? Não deixou... Ah! É o que eu vou falar pra você: igual, eles [os irmãos] falou comigo: “Pois é, se você não tivesse saído de casa...” porque com 15 anos eu saí, elas [irmãs consanguíneas] foram me buscar e eu fui morar em São Paulo, “... se você não tivesse saído de casa, eles tinham passado um pedaço de terra para o seu nome.” Quer dizer; eles iam passar um pedaço de terra para o meu nome, mas eu saí... Fui dar um passeio, aí eu perdi esse direito. P: Mas o senhor ficou só dois anos em São Paulo, né? É, só dois anos.

9.6 – Familiarização por trabalho em coabitação e necessidade de pagamento Ao retornar a Bagre Bonito, aos 17 anos, Sebastião não voltou para o convívio

com os irmãos de criação. Apesar de casa, comida e trabalho garantidos no engenho da

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família, preferiu ir para uma fazenda vizinha, onde, além de comida, cama, roupa e morar

dentro de casa, era pago em dinheiro pelo trabalho prestado. Isso, entretanto, não é

reconhecido sem dificuldade; Sebastião é reticente, ri no meio da frase, demostra vergonha do

motivo considerado ignóbil. Outro ponto importante diz respeito à “familiarização” que se

constituiu na nova fazenda em função da coabitação na casa dos patrões. Porém, fui infeliz

com a pergunta “o senhor era da família, então?” em vez de “o senhor era como se fosse da

família, então?” Certamente a resposta teria sido afirmativa, como leva a crer a passagem em

que Sebastião associa sua saída de dentro de casa (ao se casar e ir morar em outra casa na

mesma fazenda) a passar a ser empregado. Contudo, a pergunta mal formulada trouxe à tona,

mais uma vez, a tensão entre como se fosse e ser. P: E não gostou [de São Paulo]? Ah, não! Não gostei! P: Por quê? Ah... Não tinha amigos! Lá não tem amigo. Lá a gente quer passear, mas na casa de quem? Entendeu? A gente vai numa pessoa que a gente não conhece? P: E o que o senhor fazia lá (em SP)? O senhor trabalhava? Trabalhava! P: Mas o que o senhor fazia, porque o serviço lá era diferente do serviço de moer cana da roça, não era? Era [risos]. Não é igual não. P: E o senhor trabalhava com o quê? Ah... mexia lá na fábrica de móveis. Trabalhava na fábrica de móveis. P: E aí não deu certo e o senhor voltou? Voltei, não tinha documentos... Era de menor... P: E aí o que aconteceu? Aí eu vim embora, vim fazer meus documento aqui no Bagre Bonito. Entendeu? Vim arrumar minha carteira de serviço. [pausa] Era de menor. De menor, como é que arranjava serviço? P: E aí, quando o senhor voltou, o senhor morou onde? Morei... Aí eu fui pra outra fazenda, da dona Maria Toledo. Aí eu trabalhava no curral e cortava cana para a usina. P: Eles te davam casa, comida...? Davam. Eu morava dentro de casa também! Morava dentro da fazenda e trabalhava no curral e cortava cana pra usina. P: O senhor recebia? Toda semana! Pagavam direitinho! Era comida, cama, roupa, morava dentro de casa... P: O senhor era da família, então? Não, é porque eu fui criado no córrego [modo como chamam algumas localidades], né? A fazenda era perto ali, era conhecido. P: E o senhor não voltou para a família que tinha te criado? Não, não voltei pra lá não. P: Por quê? Ah... Porque aí eu já estava [risos] mais de idade, né? Já trabalhava por minha conta... Recebia todo sábado...

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P: O senhor gostava dessa família que pegou o senhor para criar? Gostava, uai! P: Como se fossem seus pais de verdade? É claro! P: Quando eles morreram, o senhor estava fazendo o quê? Estava onde, morando, trabalhando onde? Não, quando eles morreram, eu morava lá com eles. P: Ah, então o senhor foi para São Paulo depois que eles morreram? Isso, depois que eles morreram. P: O senhor ficou trabalhando nessa fazenda por quanto tempo, depois que o senhor voltou de São Paulo? Ah... Uns cinco anos, mais ou menos. P: Aí não deu certo, passou cinco anos e o senhor resolveu sair? Não, eu casei, uai! P: Aí senhor saiu de lá? Não, eu continuei morando lá. Só que eu saí de dentro de casa e fui morar em casa de empregado. Passei a ser empregado. P: Passou a ser empregado? Aham, passei a ser empregado. P: E o senhor morou lá com a sua mulher por mais quanto tempo? Ah... Por mais uns três anos. P: Depois que vocês saíram de lá, vocês foram para onde? Fui pra rua [zona urbana]. Trabalhava na fábrica de queijo.

9.7 – Trabalho fora do contexto doméstico No intervalo entre o primeiro contato e esta entrevista, comentei com algumas

poucas pessoas de Bagre Bonito que iria entrevistar Sebastião Mundinho. Muitas informações

me foram passadas, a maioria delas de cunho negativo, depreciativo, sobretudo a relação de

Mundinho com o trabalho.3 Começou a fazer sentido seu nome não ter sido mencionado

durante a pesquisa exploratória; mais do que esquecimento, percebi que ele não era

reconhecido como filho de criação e, assim, contraindicado à pesquisa. De fato, uma relação

negativa com o trabalho compromete a principal fonte de reconhecimento de um filho de

criação. Ciente disto, procurei investigar junto ao próprio Sebastião a sua relação com

trabalho. É verdade que existe um déficit nesta relação fora do âmbito doméstico, mas é

inadequado dizer que ele não gosta de trabalhar ou que seja preguiçoso. De modo algum

Sebastião retira a importância do trabalho ou se vê como alguém que não trabalha. Diversas

vezes, ele recorreu à lembrança de trabalhar desde criança, acordando às três da manhã para

um dia inteiro de serviço. Contudo, sua narrativa sobre trabalho é sempre dúbia; como vimos

3 Como vimos, por trabalho as pessoas entendem atividades regulares e sistematizadas, fora do âmbito doméstico, com retorno financeiro certo, principalmente com carteira de trabalho assinada. Atividades esporádicas, os “bicos”, são mal vistos e desprezados como trabalho, mas valorizados como serviço, ocupação.

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acima, afirma que trabalhava! em São Paulo, mas justifica que era de menor, sem

documentos e, por isso, não arranjava serviço.

Seu primeiro e único trabalho formal foi na zona urbana, na fábrica de queijo,

onde permaneceu por oito anos e saiu porque enjoou do trabalho. Novamente a análise é

delicada; Sebastião demonstra ojeriza ao se lembrar da função que desempenhava, mas

também orgulho por ter trabalhado exatamente na referida função. O mesmo acontece em

outras situações: fala com orgulho que sabe fazer de tudo, desde o trabalho de pedreiro às

várias atividades que o contexto rural demanda, mas lamenta trabalhar na roça; preferia um

trabalho na rua ao serviço na roça, mas coloca inúmeros obstáculos e não chega sequer a

procurá-lo; diz que gosta de trabalhar, mas justifica (na terceira pessoa) quem enjoa do

serviço e faz um servicinho errado para o patrão mandar embora e receber mais; por fim,

afirma que trabalharia mesmo se tivesse muito dinheiro, pois já vem desde pequeno, já está

acostumado. Algo sobejamente sabido por todos ilumina tanta ambiguidade e reforça sua

contraindicação à pesquisa, mas vou deixar que Sebastião introduza o assunto; ele o faz em

um momento significativo e com consciência e sensibilidade da percepção alheia. P: Era bom o serviço lá [na fábrica de queijo]? Era um sufoco, menina! Ahhhhh! [interjeição prolongada terminando com uma sacudida negativa da cabeça, passando a impressão de “arrepiar-se só de lembrar”] Eu vou falar para você: tinha hora que a gente estava suadinho e tinha que sair de cá para ir lá pegar umas cinco formas de queijo, lá dentro da câmara fria. Suado! Não era brincadeira não! Era a mesma coisa de entrar dentro de uma geladeira! P: Era difícil, então, o trabalho? Difícil, difícil. P: Eles pagavam o senhor? Pagavam salário. P: O senhor tinha carteira assinada... tudo? Carteira assinada. P: O senhor ficou nessa fábrica quanto tempo? Oito anos. P: Gostava de trabalhar lá? Gostava. Só que... vai indo, enjoa, né? P: Aí o senhor enjoou? O senhor saiu porque quis ou eles te mandaram embora? Eu saí porque quis [...]. P: E como era o seu trabalho lá? As pessoas valorizavam o seu trabalho? Valorizava. Eu trabalhava na fabricação. Direto, lá dentro mesmo! Eu trabalhava na fabricação de queijo! P: As pessoas de lá tratavam o senhor bem? Bem. P: O senhor se dava bem com todo mundo, era amigo dos funcionários? Era, uai! Amigos mesmo, era tudo conhecido do Bagre Bonito. P: Quando o senhor saiu de lá, o senhor foi fazer o quê?

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Fui para a roça. P: Voltou para a roça? Voltei. P: O senhor e a sua mulher? Eu e a minha mulher. P: O senhor tinha quantos filhos naquela época? Ah... Duas. P: O senhor voltou para a roça e ficou trabalhando na roça? Na roça, é. Particular. P: Na casa dos outros? Trabalhava para um, trabalha para outro... Igual eu estou aqui. P: Trabalhava como? Batendo pasto, plantando milho, esgotando brejo... O que tinha de fazer. P: O senhor gosta de trabalhar? Gosto, ué! P: O senhor acha que o trabalho é importante para as pessoas? É importante, ué! Olha aí; isso é serviço meu! [diz com orgulho e aponta para o chão mostrando os cacos de cerâmica que colocou] É serviço meu! P: O senhor trabalha de pedreiro também? Trabalho, ué! [risos com satisfação] P: Sabe fazer de tudo? Faço de tudo! P: Então é importante o trabalho para as pessoas? Né? Ô! É importante. P: Se senhor tivesse muito dinheiro, o senhor ainda trabalharia? Trabalhava, claro! Trabalhava! A gente já vem desde pequeno; pode ter muito dinheiro, pode não ter. Já está acostumado. Desde pequeno! Era 3 horas da manhã eu já estava lá; atrás de boi. [...] P: O senhor acha que tem pessoa que não gosta de trabalhar? Tem muita gente preguiçosa? Não, gosta... O problema é que o cara enjoa do serviço, aí para mandar embora, faz um servicinho errado lá para o patrão mandar embora. Já tá com vontade de sair, para não pedir, porque vai receber menos, aí faz errado; o patrão manda embora e recebe mais. Só isso. P: O senhor conhece alguma pessoa preguiçosa? Ah, isso aí tem demais! Os rapaz e as moça de hoje em dia, uma preguiça desgramada! P: O senhor diz os jovens? É, os jovens. Têm mais preguiça do que os véi! Uma vagabundagem, uma preguiçada danada! Tanto faz os rapaz, quanto as moças; isso eu já falo de uma vez! Uma preguiça desgramada! P: Se continuar desse jeito, o que acontece? Uai! Acontece que depois a moça vai arrumar um casamento, vai ficar com preguiça, o que vai acontecer? O marido vai passar a bater nelas. Vai dar um couro nelas. Vai apanhar depois de casada. Aí vai ser homem que vai bater, aí o marido delas vai meter a mão nelas. Por causa de quê? Da preguiça! É isso, né? [...] P: A sua esposa trabalha?

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Trabalha. P: O que ela faz? Trabalha em casa de família. P: Ela trabalha todo dia ou só de vez em quando? Todo dia. De segunda a sexta. P: Ela tem carteira assinada? Tem. P: Quantos filhos o senhor tem? Nove. P: Só meninas? Não, tive um homem, mas Deus levou, né? P: Já faleceu? Já, era pequenininho.

9.8 – A morte do filho: resignação religiosa do sofrimento Tomei a resignação religiosa de Sebastião diante da morte trágica do filho como

um “indício” para uma etnografia da religiosidade praticada em Bagre Bonito. Além disto, me

chamou atenção o seu orgulho da nobreza (moral, mas também masculina) de sofrer sem

chorar do filho pequeno. P: E ele morreu de quê? Queimado. P: Queimado? É... Estava faltando um mês para ele fazer um aninho, aí a mulher estava fazendo comida no fogão... O fogão tinha banca, era baixinho, ele pegou e pôs a mão no cabo da panela de pressão com a panela destampada. Ele bateu a mão no cabo da panela e ela virou em cima dele. Virou em cima dele, na cabeça. Eu fui tirando a roupinha e foi saindo a pele com tudo. [Silêncio] Ele ficou quatro dias no hospital e quatro noites no balão de oxigênio e tudo... E não chorou não, tá?! [...] P: E aí o seu filho não resistiu? Não teve jeito, né? Você ia tirando a roupinha e ia saindo pele com tudo... P: Que tristeza. E não chorou não! P: Ele era o seu filho mais novo? Não, ele era o terceiro. P: E como foi para superar a perda deste filho? Foi difícil? Bom... Foi difícil, mas conforme a vida da gente, a gente é obrigado a conformar, né? Porque tinha mais para olhar. A gente perder a cabeça, não pode, né? Deus tirou... Tem que conformar com o que Deus faz, né? P: E a sua esposa? Também pensava assim? Eu falei com ela: "Não pode esquentar a cabeça não, porque Deus tirou. Vai fazer o quê?" P: Foi Deus quem quis? Deus que quis! Vamos supor, vou dar um conselho para você; se acontecesse isso com ele depois de grande? P: Ia ser pior? Ia ser pior, não ia?

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P: E aí a sua esposa conformou? Uai! Tinha que conformar, vai fazer o quê? Tinha mais outros para olhar. [...] P: O que o senhor acha que acontece quando a gente morre? Aí eu não sei! [risos] Aí eu já não sei! P: O senhor acredita que existe céu e inferno? Bom... Muitos falam, né? Céu existe, agora, inferno... eu não sei não. P: Céu existe? Existe, mas inferno... [...] P: O senhor acha que uma pessoa que fez o bem a vida inteira vai para o céu? Bom... Né? Talvez... [hesita] Pode até ir para o céu, né? Se não faz mal a ninguém, reza direitinho, não está roubando de ninguém, não está fazendo covardia com ninguém, entendeu? É católico... P: O senhor acha que uma vida de sofrimento é sinal de que a pessoa vai ser salva? Ah, isso aí é, né? É mais certo, né? P: Na sua vida, no dia a dia, o senhor tenta fazer o bem para poder ser salvo? É, ué! Faço de tudo, ué! O bem para poder ser salvo. O que adianta a gente fazer covardia? É claro que alguns faz, mas para o mesmo lugar que eu vou, eles não vai! Quem faz covardia para os outros não vai para o mesmo lugar que o outro que está fazendo o bem não! [Silêncio] Tem muita gente que fica abusando do pobre, não está fazendo covardia, mas fica abusando.

9.9 – Alcoolismo Eis que entre o céu e a terra Sebastião introduz o motivo de tanta ambiguidade

com relação ao trabalho, culminando na sua contraindicação à pesquisa. Sebastião começou a

beber aos dez anos de idade, com o aval dos pais de criação. Assume, na terceira pessoa, o

seu vício e, na primeira, a sua percepção do julgamento social. É significativo que a questão

tenha surgido quando falávamos de salvação. Sebastião opera uma relativização do vício ao

substituir certas regras de conduta moral comumente apontadas como preceitos de salvação,

tais como a sobriedade, o trabalho incessante e o sofrimento, pela moralidade que ele, de fato,

pratica. P: O senhor já sofreu algum preconceito? Já sentiu que alguém estava abusando do senhor? Já, ué! Já. P: Conta para mim, como foi isso? Ah, muitos abusos, uai! P: Abusos no trabalho? É, no trabalho... E outra: eu gosto de tomar um golinho, né? Aí a gente passa e alguns falam assim: "Lá vai o pinguço!" Ou às vezes pensam; quer dizer, tá abusando! Às vezes a gente panha um dinheirinho para tomar uma cervejinha, mas mesmo assim eles dizem: "Lá vai...". E isso chateia. Quer dizer que eles não bebem, mas bebem mais do que a gente. Entendeu? [...]

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P: E a sua mulher, ela não liga do senhor beber? Ela não acha bom não. Isso mulher de ninguém! Já falo de uma vez! Mulher nenhuma gosta que o marido bebe não. Não é que ele gosta, né? É o vício. É vício. P: E quando senhor começou a ficar viciado em bebida? Ah, desde a idade de 10 anos! Eu bebo desde os 10 anos. P: 10 anos? 10 anos de idade, já punha na boca! P: É mesmo? Então desde quando senhor morava com seus pais de criação o senhor já bebia? Já! Tomava um golinho... Ah, já! P: Eles não se importavam? Não. Sempre tinha um da família que também gostava de um gole, então: [dá de ombros] fácil! P: Deixavam pra lá? Deixava pra lá! E também não tô mexendo com ninguém, nem nada; deixa divertir e pronto! As narrativas que obtive de seus conhecidos a seu respeito têm o mesmo teor das

reproduzidas por Sebastião, porém mais duras. Infelizmente, não conversei com nenhum

amigo que me fornecesse uma visão diferente. _ É um pinguço; _ Vive bêbado; _ Não gosta de trabalhar e quando consegue algum dinheiro, em vez de colocar dentro de casa, gasta tudo com cachaça; _ Deus que me perdoe, mas ele é um preguiçoso, bebe o dia inteiro; _ Enquanto a mulher trabalha, ele fica cantando rua afora, bêbado que nem um gambá; _ Quase que não vê ele mais na missa, boba! Acho que ele prefere ficar cantando do que ir rezar e pedir perdão a Deus. As cantorias de Sebastião soam como afronta. Ao que tudo indica, ele deveria

estar sofrendo e se mostrando arrependido de ferir os códigos morais de Bagre Bonito,

sobretudo um ex-filho de criação, mas, não; ele vive feliz.

9.10 – A importância social da amizade: ser (bem) conhecido

Se, por um lado, o alcoolismo explica as ambiguidades de sua relação com o

trabalho formal e sistemático, por outro, a sua percepção do vício como algo condenado

socialmente, gera uma ambiguidade de difícil compreensão: consciente das diatribes que lhe

são dirigidas, Sebastião ainda se considera (bem) conhecido, amigo de todo mundo e ressalta

com grande objetividade a importância disto, no seu caso, mais do que para a navegação

social; para a sobrevivência. P: O senhor acha que dinheiro traz felicidade?

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[Ele fica pensativo] Bom... A gente sem dinheiro não faz nada; mas é o tal negócio: o que manda mais não é o dinheiro, mais é a amizade. Se você não tem amizade com ninguém, o que adianta ter dinheiro? P: Então não adianta ser rico e não ter amigo? Não é?! O que adianta eu ser rico, mas não ter amigo? E na hora que eu precisar? Vou chamar quem? O dinheiro só vai me valer? Aí que tá! Eu sou rico, eu lá vou daqui para São Paulo no meu carro, aí fura o pneu antes de eu chegar no São João, eu vou fazer o quê? Eu não tenho amizade com ninguém. O que eu vou fazer? Eu preciso de uma pessoa para me socorrer aqui agora, eu pago, mas e daí? Onde é que eu vou achar? E aí? [...] Amizade manda mais do que o dinheiro. Dinheiro faz falta, mas amizade faz mais ainda. A gente não tem o dinheiro, mas tem um amigo ali da frente que, se precisou: "Ô fulano, eu tô apertado..." E pronto! Ganhou! Né? E se não tiver amizade: "Ô fulano...", “Eu não te conheço não!" Né? E aí? P: Então o senhor procura ser amigo de todo mundo? Uai! É claro, ué! A gente tá apertado, não tem dinheiro, mas precisou... Se eu precisar de ir lá em Ubá, mas não tenho carro, eu chego: "Ô fulano, dá para fazer isso para mim?", "Ah, dá! Que horas? Agora? Quer que leva agora? Então entra no carro que eu te levo lá!" Aí! Né? [...] P: O senhor tem muito amigo? Tenho. Tenho bastante. P: O senhor é feliz por ter muito amigo? Sou, ué! Se eu não tivesse amigo, dava dia de domingo, eu ia passear aonde? Vou ficar andando no caminho: vou ali, volto aqui... Tá doido?! P: Seu Sebastião, o que o senhor acha que poderia melhorar na sua vida? Como assim? P: O que o senhor acha que poderia mudar, melhorar, alguma coisa que o senhor reza e pede a Deus... Ah... A gente pede a Deus a vida, saúde, né? Força para trabalhar... P: O senhor queria ter um emprego, com carteira assinada, trabalhar todos os dias...? Queria, mas eu já trabalhei muito! É o tal negócio: com a idade agora, já não adianta. Você vai em qualquer firma aí, com a idade agora, eles nem ficham mais não. É difícil. Só ficham até trinta anos. [...] P: Então o senhor prefere continuar trabalhando aqui? É... Não... No caso, se eu achasse um emprego, eu vou para o emprego. Mas eu vou ficar na roça trabalhando mesmo, eu já planto aí, para o pessoal aí. P: E o pessoal te dá muito trabalho? Dá, dá. Tem serviço aí. Planto, buscar um frango, limpeza... É mais assim. P: O senhor acha que falta alguma coisa na sua vida? Não. P: Está tudo bom? Tá, tudo bom! [risos] [...] P: O que deixa o senhor feliz? [Silêncio] Como assim? P: O que acontece que deixa o senhor feliz, uma coisa que deixa o senhor feliz? [Silêncio] Ah, minha filha, eu sou feliz com tudo! [risos] P: E o que te deixa triste?

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Triste, me deixa triste se tiver algum da minha família doente. Aí eu fico triste. Se tiver algum filho doente, se acontecer alguma coisa... aí não fico alegre. [...] P: O senhor reclama da vida? Eu não! Não adianta. Pra quê? Eu reclamando ou não reclamando, a vida hoje em dia está difícil pra todo mundo. Já falo de uma vez, porque tá mesmo! Então, o que adianta ficar reclamando, porque você também já vai falar: "É, tá difícil mesmo..." E aí? Né? Não adianta! [...] P: O senhor é muito alegre, né? Né? Eu tô vendo que cê tá gostando de conversar comigo! P: O senhor procura ficar alegre todos os dias? Todo dia! Eu canto no trabalho, brinco... Dou uns gritos! [risos] O dia passa, nem vê!

Bagre Bonito, 28 de janeiro de 2007.

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CAPÍTULO 10 – JOÃO PAULO

Nina, mãe de uma amiga em Barão de São João Batista, ao saber da pesquisa,

contou-me que na localidade rural onde nasceu, cresceu vendo João Paulo trabalhar e morar

na fazenda da família de Henrique, seu atual vizinho na zona urbana. Ele nasceu lá e está lá

até hoje. Já deve ter quase uns cem anos! Eu acho que ele nunca saiu de lá. No mesmo dia,

minha amiga me conduziu à casa de Henrique, um senhor de 65 anos, que nos recebeu com

entusiasmo e achando curioso meu interesse por filhos de criação. Embora tenha incluído

João Paulo nesta categoria, não a utilizou nenhuma vez. O pertencimento familiar foi

assegurado pela expressão como se fosse da família. De fato, João Paulo não era órfão e nem

fora dado pela família consanguínea, embora, como destaca Henrique, fora criado pelo seu

avô. Os pais de João Paulo trabalhavam na fazenda do avô de Henrique em sistema de

morada (PALMEIRA, 1976), isto é, em troca de casa, parcela nas colheitas (arroz e café

principalmente) e horta em benefício próprio. “Agregado” seria a categoria mais apropriada,

mas não é reconhecida e não faz jus à criação que recebeu.

Sem delongas, nem pressa, Henrique começou a discorrer sobre a sua relação com

João Paulo por cerca de uma hora e meia, confirmando a narrativa de Nina: Ele me viu

nascer! Eu e minhas irmãs! O Jão nasceu e cresceu na fazenda do meu avô. Hoje não tem

mais ninguém lá, só ele, com 93 anos de idade, mas muito lúcido e ativo. Henrique é

nostálgico ao voltar no tempo. Seus trejeitos animados demonstravam contentamento com

meu interesse pelas suas histórias. Descreveu com detalhes a estrutura física da fazenda de

seu avô, as pessoas que nela moravam, o grupo familiar, as relações e a cotidianidade, como o

trabalho diário de cada um e o lazer. A história de vida de João Paulo retrata a história da

família de Henrique ou talvez o inverso seja mais objetivo, uma vez que as mudanças e os

deslocamentos com o suceder de gerações daquela família direcionavam a vida de João Paulo,

retirando-lhe da inércia e configurando importantes “rupturas biográficas”.

10.1 – Mudanças e deslocamentos na fazenda

Após a morte da mãe, alguns anos depois do pai, João Paulo, então com 10

anos de idade, ficou sob plena responsabilidade dos avós de Henrique, ainda que sem

coabitação. Ele continuou na casa dele, mas quase não ficava lá; passava o dia todo com o

meu avô. De acordo com Henrique, João Paulo tinha idade próxima à dos filhos de seu avô, o

que propiciou um sentimento de fraternidade reconhecido até hoje, sobretudo em relação ao

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seu pai. O casamento de seu pai e sua mudança para a nova casa na mesma fazenda constitui

o segundo marco biográfico de João Paulo, apesar da insignificância atribuída por Henrique,

que faz troça ao narrar o acontecimento: Depois que meu pai se casou e saiu de casa, o João

Paulo falou com o meu avô que ia sair também, que precisava “correr o mundo”. O mundo

que ele correu não passou de 150 metros! [risos] Saiu da casa do meu avô e foi para a casa

do meu pai! É importante destacar que a decisão de João Paulo não configurou uma ruptura

com os avós de Henrique, trata-se de mais um exemplo da autonomia relativa dos filhos de

criação. De acordo com Henrique, seu avô já estava decidido a ceder (como o que me pareceu

um presente de casamento) um de seus trabalhadores para acompanhar, com fidelidade e

experiência, o filho recém casado nas vicissitudes da nova vida.

Assim como João Paulo nunca coabitou a casa dos avós de Henrique, não

coabitou a casa de seus pais; um quartinho foi construído para ele em um barranco próximo à

casa. Por mais de 70 anos João Paulo habitou este quartinho de aproximadamente 10m2 sem

nenhuma estrutura além, como cozinha ou banheiro. As refeições eram feitas na varanda da

casa principal (embora não à mesa, nem junto à família) e como banheiro, João Paulo

utilizava o mato e o riacho que corta a propriedade. Apenas com 91 anos de idade esta rotina

chegou ao limite; a precária escada de acesso ao quartinho, escavada no próprio barranco,

tornou-se um problema intransponível diante da artimanha engendrada por Henrique,

obrigando-o a se mudar para a casa vazia do irmão/compadre/patrão. Foi uma luta! Ele nunca quis morar dentro de casa. Ele é muito sistemático... Não gosta de tomar banho, ou melhor, toma banho só uma vez por semana, gosta de uma cachacinha... Mas eu pelejei com ele! Depois que ele foi ficando mais velho, aquela escada começou a ficar perigosa. Eu pelejava com ele pra passar pra dentro de casa. Ele ia lá, cuidava, arrumava as coisas dos meus pais igual eles tinham deixado, mas não aceitava de jeito nenhum de morar. P: Seus pais já tinham morrido? Já! Já tinham morrido há muito tempo! Aí eu falei com ele que eu vi passar na televisão, porque lá não tinha luz [rede elétrica], a luz só chegou lá no ano passado [2006], e aí eu falei com ele que vi passar na televisão que ia chover um mês inteirinho sem parar! Um mês inteirinho! [risos] Falei: “Ô, Jão! Como é que ocê vai fazer, heim? Aquela escada com chuva não dá não. Já pensou se você cai e quebra uma perna? Sozinho, no escuro?”

10.2 – Modos de familiarização: consideração e apadrinhamento religioso A não coabitação associada às relações trabalhistas impediram uma definição

mais clara da posição de João Paulo naquele conjunto familiar. O avô de Henrique, por

exemplo, aparece na narrativa de João Paulo como patrão, já sua esposa, como madrinha. Tal

indeterminação, entretanto, não feriu a “familiarização” (Comerford) que o unia à família e ao

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lugar. Dois importantes sistemas interligados de “familiarização” asseguraram o seu

pertencimento como se fosse da família.

O primeiro deles é o sistema de consideração, que no caso de João Paulo deve-se

à sua convivência desde o nascimento, mas pode ocorrer de diversas formas: entre amigos de

longa data, vizinhos prestativos, filhos de criação e também entre membros de uma fundação,

associação, sindicato etc.1 Uma forma bastante utilizada para consolidar a consideração como

algo mais formal, pelos menos diante dos códigos divinos e sociais, configura o segundo

sistema de familiarização apontado, qual seja, o apadrinhamento religioso (católico, no caso

de todos os entrevistados: batismo, primeira comunhão, crisma e casamento). O

apadrinhamento constitui familiarização através de ligações verticais (padrinhos-afilhados) e

horizontais (compadrio). No caso de João Paulo, acontece dos dois modos repetidas vezes:

como afilhado de batismo dos avós de Henrique, padrinho de batismo de um dos irmãos de

Henrique, padrinho de casamento de Henrique e de batismo de um dos seus filhos e, por fim,

como padrinho de uma neta de Henrique, ainda que todos desta geração lhe tomem a bênção

por consideração.2

A cada geração, sua posição de como se fosse da família foi renovada por novos

apadrinhamentos e compadrios. Por essa razão, compreende-se o esforço de Henrique em não

macular a familiarização pela não coabitação: mas o Jão só dormia no quartinho, o resto tudo

ele fazia com a gente; comia com a gente... era como se fosse da família mesmo.

Configurando mais um exemplo de autonomia relativa, a não coabitação é atribuída ao

próprio João Paulo, ele é muito sistemático, nunca quis morar dentro de casa, embora as

razões apontadas sejam convenientes à família: mas não tinha jeito, ele não gosta de tomar

banho, ou melhor, está acostumado a tomar banho só uma vez por semana e gosta de uma

cachacinha.

Veremos que, apesar da consideração e do apadrinhamento, João Paulo não

iguala o seu pertencimento familiar ao de Henrique, por exemplo. Amiúde em sua narrativa,

ele se exclui da família, do território familiar e até mesmo das relações: os pais dele (de

Henrique); a família dele; a fazenda da família dele; a casa deles aí; não comia com eles etc.

Em contraposição ao meu quartinho; meu canto. Sempre eles e eu, nunca nós.

1 Cf. COMERFORD, 2003 e MARCELIN, 1996. 2 Nota-se com frequência a substituição do nome próprio pelo vínculo estabelecido com o apadrinhamento/compadrio (padrinho/madrinha, compadre/comadre) destacando a consideração deste modo de familiarização, tal como se observa na narrativa de João Paulo sempre que se refere à comadre. No sentido inverso, entretanto, isto é, no tratamento de João Paulo, a simultaneidade das posições que ocupa (afilhado-padrinho-compadre) impede, na maioria das vezes, uma determinação do vínculo, ficando apenas o tratamento por “Jão”.

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10.3 – O isolamento de João Paulo

Henrique se dispôs gentilmente a me conduzir até a fazenda e me apresentar a

João Paulo. Organizou tudo sozinho: definiu o dia e o horário em que iríamos, mobilizou duas

netas adolescentes para nos acompanhar e prestar ajuda caso o carro atolasse na estrada de

chão e me orientou sobre como eu deveria me apresentar: É só você falar que quer ouvir as

histórias dele. (Bem à sua semelhança)

A fazenda situa-se a, aproximadamente, 20 quilômetros da zona urbana de Barão

de São João Batista, em uma região limítrofe com Bagre Bonito. A precaução de levar suas

netas conosco revelou-se bastante prudente; a região é de difícil acesso e consideravelmente

deserta. Como estávamos na época das chuvas, cada atoleiro significava um grande risco de

parada. A estrada não é pavimentada e possui trechos bastante sinuosos, com muitos aclives,

declives e estreitamentos, limitando a passagem a um carro por vez. Entretanto, no horário em

que saímos, às 13h, não havia qualquer sinal de chuva; ao contrário, o sol escaldante tornava a

paisagem ainda mais desértica. A terra amarela e solta que se desprendia na passagem de

algum carro nublava por alguns instantes todo o caminho. A vegetação à margem, coberta da

fina poeira que lhe dourava o verde, confundia-se à estrada de chão. Passarinhos com os

bicos abertos pareciam extenuados e sedentos. Em uma das curvas, o esqueleto de um

cachorro reluzia sob o sol, dando a impressão de que o pobre sucumbira ali, às agruras do

calor. Mas nem tudo era agreste, o que justifica a precaução de Henrique. Em alguns trechos,

árvores frondosas formavam um túnel sombrio alterando a paisagem. A estrada se tornava

úmida e escura, com muitas poças lamacentas, mas que não ofereciam riscos de atolar. Agora

não, explicou-me Henrique, o problema é a volta, referindo-se ao fim da tarde, horário em

que costuma chover. O tempo nesses trechos parecia outro; mais adiantado nas horas, por

causa da ausência de sol, porém mais lento em transcorrer, em função dos atoleiros.

A chegada à fazenda fica em uma dessas zonas sombrias. A vegetação densa torna

o acesso ainda mais difícil. Só é possível visualizar a casa em que João Paulo mora estando

bem perto. Henrique costuma visitá-lo uma vez por semana, levando mantimentos e o que

mais for necessário, mas nesta época das chuvas a frequência diminui e ele leva o suficiente

para João Paulo se manter sozinho por até um mês. A solidão, embora não seja percebida

negativamente, é algo flagrante. Na região da fazenda não existem muitas casas, a mais

próxima situa-se a 400 metros de distância e o acesso se dá por uma trilha sinuosa em meio à

mata e as demais ficam a quilômetros de distância. Ao saber que João Paulo tem problemas

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de locomoção, não tem acesso a telefonia ou a outra tecnologia de comunicação, o seu

isolamento se agrava.

10.4 – O impacto da primeira vista

Estacionamos o carro e o avistamos no paiol. Um senhor negro, curvado, vestindo

chapéu de palha, calça com a barra dobrada quase alcançando os joelhos, camisa de manga

longa também dobrada até os cotovelos e chinelos. Carregava de modo hirto um feixe de

gravetos para lenha, enquanto um cigarro de palha pendia preso aos lábios. João Paulo

percebeu a nossa presença mais pela audição do que pela visão. As netas de Henrique

chegaram fazendo barulho, brincando com ele, dizendo que estava bonito porque pretendia

arrumar uma namorada. Com um largo sorriso banguela, João Paulo retorquiu com o que

pareceu uma evasiva costumeira: Eu não! Hoje é segunda feira, uai! Dia de trocar de casca.

Ao notar minha presença, sua fisionomia mudou; tornou-se séria e perscrutadora. Henrique

me apresentou: Ô, Jão, essa moça aqui tá querendo conversar com você. João Paulo não disse

nada e continuou me olhando com desconfiança. Ela está fazendo um estudo pra escola, ela

quer saber sobre a vida na roça. Me apresentei: _ Oi, Seu João! _ Oi. _ Eu sou estudante, estou fazendo um trabalho sobre a vida na roça e o Seu Henrique me disse que o senhor tem muitas histórias pra contar. É verdade? _ Tenho mesmo! História da roça é ieu mesmo! [risos] Tenho histórias demais para contar! [Disse com bonomia] De modo menos acentuado do que fiz na primeira versão deste texto na ocasião do

mestrado, talvez pelo hábito à sua imagem que me ocupa a memória há dez anos, devo

registrar que a aparência de João Paulo me causou forte impressão à primeira vista. De longe,

me chamou atenção aquele senhor curvado, de andar engessado, carregando um feixe de

lenha tal qual um autômato. De perto, me detive em sua fisionomia, inusitadamente

harmoniosa. Assim como os cabelos alvos, os olhos brancos de cataratas resplandecem em

contraste com a pele negra. Quando sorri, com os olhos semicerrados, o largo e desprendido

sorriso banguela é acompanhado de inúmeras rugas que saltam em seu rosto como que

sorrindo em conjunto, conferindo-lhe um semblante exacerbadamente feliz. Devido à

curvatura do seu corpo – de perto, mais acentuada – seu tamanho é bastante reduzido, talvez

1,20m. A pele fina e apegada aos ossos faz seus punhos, mãos e dedos parecerem uma

extensão dos irregulares e rígidos gravetos que carregava. Em contraposição às articulações

enrijecidas que comprometem a amplitude e a agilidade dos movimentos, ao olhar baço e

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perdido de visão, o seu raciocínio e a sua fala são argutos e velozes, como se por dentro a vida

pulsasse célere, em descompasso com ritmo de fora. Na visão médica também é assim, como

admira-se Henrique: Eu fico bobo de ver; ele tem 93 anos, mas tem uma saúde de ferro! Os

exames dele são ótimos! Não tem problema de colesterol, triglicérides, diabetes... Nada!

10.5 – A fazenda

Antes da entrevista, Henrique me convidou a dar uma volta pela fazenda com o

intuito de me mostrar o que antes descrevera. Entretanto, na fazenda de Henrique só havia

outroras; o lugar está muito depredado pela ação do tempo e pelo abandono humano. Mesmo

assim, ele me mostrou tudo com a atualidade de suas lembranças: a casa (em ruínas) do avô; o

(antigo) pomar; o (lugar onde ficava o) curral; o paiol (que hoje guarda de tudo); (onde era) o

cafezal etc. Em meio à vegetação silvestre, apenas a casa dos pais de Henrique, em que João

Paulo mora atualmente, e o seu antigo quartinho estão preservados. A planta da casa consiste

em três quartos, uma sala pequena em comparação com os demais cômodos, um banheiro e

uma cozinha contígua à varanda, lugar de maior sociabilidade da casa desde à sua construção.

Na mesa comprida da varanda, ladeada por bancos igualmente compridos sem encosto, as

visitas eram recebidas e as refeições servidas. Atualmente, a mesa está tomada de objetos

empoeirados, sugerindo a ausência de uso e de comensais. Um dos bancos, deslocado e

recostado à parede, ainda confere vida à varanda; nele João Paulo descansa, faz suas refeições

com o prato na mão (tal como antes) e recebe suas visitas, como eu, por exemplo. Além da

varanda, ele ocupa um dos quartos dos filhos. O restante da casa, sobretudo o quarto dos

compadres/patrões, é mantido intacto. No seu atual quarto há uma cama de solteiro com o

colchão côncavo do corpo, uma cômoda sustentando imagens sacras e no chão, agrupadas em

um canto, garrafas pet, algumas vazias, outras cheias de cachaça. Conheci o quarto a convite

de Henrique, mas sob o olhar reprovador de João Paulo, mostrando-se cioso de sua

privacidade, o que me conteve à soleira da porta.

10.6 – Linearidade X mudanças e mobilidade

Segundo as narrativas substanciadas de Henrique e de Nina, a vida de João Paulo

parecia seguir um curso linear. A educação que recebeu dos pais, baseada em princípios

católicos e orientada para o trabalho servil, encontrou campo fértil para atualização ao longo

de sua vida, pouco se alterando: o trabalho de seus pais tornou-se o seu; ele nunca saiu

daquele entorno de alguns hectares, a não ser para as missas na zona urbana em ocasiões

especiais, como a Semana Santa; conviveu sempre com as mesmas pessoas; estudou por

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pouco tempo; não se casou; seu acesso à mídia e à informação se resume às ocorrências

policiais da própria cidade que ele escuta em um rádio a pilhas etc. Entretanto, os

deslocamentos dentro da própria fazenda, em função dos movimentos geracionais daquele

grupo familiar, assim como as andanças pelos arredores, são ressignificados por João Paulo,

revelando mudanças, rupturas, aprendizados, avanços, retornos e muita mobilidade. De fato,

em cada nova morada configuraram-se novas posições (afilhado, padrinho, compadre; ainda

que marcadas e muitas vezes sobrepujadas pela posição inalterável de trabalhador da

fazenda) e novos modos de relacionamento, cujo exemplo da bênção objetiva a flexível

relação hierárquica de apadrinhamento: para alguns, João Paulo pedia a bênção, outros, era

ele quem abençoava. Progressivamente, suas ações foram menos controladas, favorecendo

suas andanças pelas vendas da região e, com isso, novos contextos de socialização e novas

disposições, como o hábito de beber cachaça e de ficar à toa.

A mudança para a casa principal constitui, como mostra a segunda fase da

pesquisa, o seu último marco biográfico. A importância desta mudança, literal e figurada, é

amiúde sinalizada na entrevista: agora que eu estou dentro de casa...; agora que eu passei

pr’aqui... Sempre acompanhadas do esclarecimento: foram eles que mandaram eu passar pra

dentro de casa, como se fosse um desrespeito ter sido uma vontade sua. Depois que se

mudou, João Paulo aprendeu a cozinhar e passou a cuidar da limpeza da casa. Antes, uma

vizinha limpava a casa ocasionalmente, entregava diariamente refeição suficiente para o

almoço e o jantar e lavava a sua roupa, mediante um pagamento mensal. Apenas a lavagem

das roupas foi mantida. João Paulo se adaptou a essas novidades, a outras, não; está de tal

modo acostumado que, mesmo não precisando mais, preserva os hábitos que a ausência de

energia elétrica obriga, tais como: tomar banho no rio (quando toma, assevera Henrique),

cozinhar no fogão a lenha e se recolher ainda à luz do dia.

10.7 – A infância com a família consanguínea: agressividade do pai, proteção da mãe

Nossa conversa transcorreu na varanda. Assim que acomodados, Henrique

espontaneamente se retirou e pediu às netas que fizessem o mesmo, deixando-nos a sós. A

entrevista durou uma hora e quarenta minutos. Durante todo o tempo, João Paulo se portou de

modo pueril; as peripécias de antigamente lhe rendem uma sensação prazenteira de rebeldia e

são contadas com contentamento e atualidade. Chama atenção a rígida educação que recebeu

do pai consanguíneo, regrada a agressões físicas. Apesar de tê-lo como exemplo de

honestidade e religiosidade, a relação paterna se contrapõe à afetuosa proximidade materna.

Fica bem entendido seu maior apreço pela mãe, embora não ousa afirmá-lo; as respostas

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desconversam, retiram o foco de si. A narrativa sobre o pai opera com relativizações

religiosas ao seu caráter batedor, obscurecendo os sentimentos; não se sabe se é amor,

respeito ou medo. A estatueta de Santo Antônio que herdou do pai e preserva com grande

devoção sobre sua cômoda, parece personificar o próprio pai. É diante do santo do pai que

João Paulo se ajoelha e pede a bênção todas as noites e manhãs. Religiosidade herdada que

também o obriga a persignar-se amiúde e a soerguer o chapéu toda vez que se refere a Deus. P: Seu João Paulo, o senhor tem quantos anos? Eu estou na casa dos 90... Eu entrei no ano de 2007, então eu estou com 93. P: E como é ter 93 anos de idade? É bom? Bom! Eu tenho saúde, ando daqui pr’ali, dali pr’aqui... Está muito bom! Trabalho um mucadinho... Agora eu estou ficando mais velho, não fico andando muito mais não, mas ainda posso dar uns pulinhos ainda. [risos] P: Onde o senhor nasceu? Aqui, atrás desse morro. [...], na divisa do distrito de Bagre Bonito com São João. P: E na família do senhor tinha quantos irmãos? Que eu conheci, comigo quatro. P: O senhor era mais novo? Eu sou o caçula! [risos] [...] P: E como foi sua infância, Seu João Paulo? Como era a sua mãe, como era o seu pai, como era a relação entre os dois...? Eles combinavam bem! Combinavam muito bem, o véio e a véia. O meu pai chamava ela de “véia”, o nome dela era Guilhermina Barbosa. Ela veio de fora, era a única Guilhermina Barbosa daqui. E foi é aqui em São João que eles casaram. Eu sei de tudo! Porque eu nasci aqui e aqui mesmo eu estou, vou morrer naquele mesmo lugar. [...] P: E o senhor já trabalhava naquela época? Não, naquele tempo eu era mais pequetitinho, né? Eu comecei a trabalhar depois que eu mudei pra cá. Eu tinha 10 anos. P: E o senhor estudava? Não, naquele tempo não estudava não. Depois que eu entrei em uma escola ali embaixo, tinha uma professora e aí eu aprendi um mucadinho. P: Os seus pais eram religiosos? Eram! O meu pai gostava muito de rezar e a minha mãe também. Ele fazia promessa de santo Antônio... Meu pai fazia a festinha dele. [...] P: O senhor tem saudade daquele tempo? Ah, de vez em quando, a gente sente saudade. A gente pula dali, pula daqui... Agora, depois que eu cresci também, eu fiquei meio andeiro; passeava pra todo lado, de dia e de noite! Nunca nada me amolou! Andava daqui, andava de lá... Nada me amolava! Bebia umas cachacinhas! [risos] Fazia tudo, fazia de tudo! P: E o senhor ia com os seus irmãos ou sozinho? Não, foi depois que eu mudei pr’aqui [para o quartinho]. Eu ia sozinho, depois que pai e mãe morreu. Agora, junto deles, aí não. Aí eu era quietinho e se malcriasse, entrava no couro! Meu pai gostava de bater! [risos]

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P: E o senhor corria para ele não te bater? Então! Às vezes eu escapava, mas às vezes ele me panhava. Aqui dentro desta casa mesmo; ele mandava fazer alguma coisa e falava: “não demora não!” Aí se eu demorasse, eu entrava quietinho, mas se ele pegasse, aí entrava no couro! Aí eu corria e escondia lá dentro do quarto. Aí depois que ele cessava um mucado, a mãe falava assim com ele: “Deixa ele! Não vai bater nele hoje não.” P: A sua mãe não gostava que ele batia? Não, minha mãe não. Mas eu tinha que ficar atento, porque se ele pegasse, o couro entrava! Ele gostava de bater! [risos] P: Nos seus irmãos também? Se fizesse uma artezinha, ele cortava no couro. O meu irmão já era rapaz, ele deu uma coça nele, aqui dentro dessa casa aqui. Ele gostava de bater! P: E o que vocês faziam que deixava o seu pai tão bravo? Não... se eu saísse de casa e demorasse, ele já falava: “Não vai demorar não, heim!” Se não demorasse, não tinha nada não, mas se demorasse um mucado... ele batia mesmo! Ele gostava de bater! P: Ele batia na sua mãe também? Não, isso não. Discutia, mas bater não. Isso não. Às vezes esquentava um mucadinho, batia um papo assim, meio bravo, mas era de passagem. [risos] Ele gostava de bater. Ele já era velho, bonzinho, respeitava, tinha um Santo Antônio (até tá ali!), ia na igreja, rezava... [...] P: E a sua mãe era carinhosa? A minha mãe era! A dona Guilhermina... eu gostava dela! P: E do seu pai, o senhor também gostava ? Gostava. O pessoal gostava muito da minha mãe... P: O senhor gostava mais da sua mãe do que do seu pai? Não, eu estou falando assim: o pessoal gostava muito da minha mãe, mas ele também gostava muito dela. Eu não vou falar que não gostava não, porque gostava sim. Ela era muito boa, ela nunca bateu em mim não, só meu pai. O pai era mais batedor. P: E o que o seu pai fazia, ele trabalhava com o quê? Ele trabalhava na roça, ele plantava. Já plantou ali embaixo, já plantou aqui... [...] P: O seu pai morreu primeiro que a sua mãe? É, morreu antes. P: Quando o seu pai faleceu, o senhor ficou vivendo com a sua mãe? Fiquei. P: Os seus irmãos também? Não, o irmão que eu tinha já tinha casado. P: Só ficou o senhor e a sua mãe? É, ficou só eu e minha mãe. P: O senhor deve ter ficado muito triste quando a sua mãe morreu, não é? Ah, eu fiquei sozinho, né? Eu morava lá, aí depois que eu vim morar nessa casa aqui. Vim dormir nesse quartinho aqui. 3

3 João Paulo se mudou para o quartinho muito depois da morte de sua mãe. Ele suprime de sua narrativa o período de aproximadamente dez anos em que viveu sozinho na morada de seus pais, mas sob tutela dos avós de Henrique.

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P: Então foi quando a sua mãe morreu que o senhor veio morar com a família do seu Henrique? Foi. Eu estava sozinho, aí eu mudei para cá, ia dormir nesse quartinho aqui e ficava no meio deles. Tudo na camaradagem! E estou até hoje! Graças a Deus! [soergue o chapéu]

10.8 – Convivência familiar: dominação masculina Ao longo da entrevista, destaca-se em sua narrativa a gratidão pela

camaradagem familiar. Sua relação com os membros da família variava segundo o sexo e o

vínculo de familiarização (apadrinhamento, compadrio, consideração). Novamente chama

atenção a dominação masculina. Assim como Sebastião, João Paulo chegou a frequentar a

escola apenas porque tinha que levar as irmãs de Henrique. Ambos tinham a função de

condutor das mulheres, destacam com orgulho a posição de mando e estudaram pouco porque

precisavam trabalhar.4 P: E quando senhor veio para cá, o senhor fazia o quê? O senhor ajudava no trabalho? Ah, já! Eu já era molecão! Eu capinava na roça, pegava a lenha para a avó dele... Eu acostumei! Se você perguntar onde é a minha terra, eu vou te falar que a minha terra é aqui. Eu ando para todo lado aqui. É aqui que eu tomo umas e outras... [risos] Conheço todo mundo aqui. P: Quando o senhor se mudou para cá, o senhor começou a ir à escola? É, eu fui. Eu fui porque tinha que levar elas. Eu que mandava! [risos] Nós brigava porque eu mandava nelas, mas depois a gente fazia as pazes. [risos] [...] P: E o senhor gostava da escola? Eu gostava! Aprendi pouco também, né? Porque eu já era bem grande. P: E depois de grande, não se aprende mais? Não, é porque eu fiquei pouco também. P: E por que o senhor ficou pouco? Porque eu saí; fui trabalhar, fui capinar. Trabalhava na roça. [...] Aqui eu fazia uma porção de coisa! Tinha cafezal, eu plantava café, cuidava do café... Tudo eu fazia! Era varredor do café, assoprava o café... Eu fazia de tudo! Eu não tinha pai nem mãe, aí eu vim pra cá. Uma variável constitui uma fissura no padrão de relacionamento com as mulheres

da família. Jurema, mãe de Henrique, veio de fora, alheia aos modos de socialização daquele

contexto. Para ela, João Paulo era unicamente trabalhador da fazenda, de modo que não via

com a mesma naturalidade o seu hábito de beber cachaça e ficar à toa em decorrência do mal

estar. Sua reprovação fazia com que João Paulo agisse com uma lógica de compensação,

4 Além destas, há outras similaridades com a história de vida de Sebastião, tais como: beber cachaça desde à infância com o aval da família de criação, associar alegria ao trabalho escaldante (capinar cantando o dia todo), atribuir grande importância à amizade como forma de ajuda nas horas difíceis e desconfiar de pessoas que não compartilham o que possui, é só vem a nós, ao vosso reino, nada!

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como destaca Henrique: Ele tinha vergonha de comer porque ficava o dia inteiro à toa e dava

a desculpa de que a bebida atrapalhava o estômago. A mãe dele chamava Jurema, ela brigava muito comigo! [risos] Mas antes dela morrer, nós fizemos as pazes, não ficou nada não. Ela gostava muito de fazer farra com a gente. [risos] P: Que tipo de farra? Ela ficava mexendo. P: Mexendo como? Ela ficava fazendo raiva em mim, contando minhas coisas pra todo mundo. Uma vez, na cidade, eu teimei com ela lá, aí depois eu pedi a ela uma cachaça e ela não quis me dar! Ela falou assim: “Ah, não vai beber mais não!” Ela desceu ali naquela rua, brava, e não me deu nenhum golinho de cachaça! Nós era meio teimado... Ela tinha raiva de mim. Mas nós brincava muito, ninguém ficava com raiva do outro não.

A tensão na relação com a mãe de Henrique fica mais evidente em contraposição

à relação com a esposa de Henrique, também sua comadre. [...] Ela deixa um docinho para mim e aí eu vou comendo devagarzinho. [...] Ela faz lá na cidade um docinho e traz pra mim. Ela trata bem de mim! Ela é boazinha prá daná, a comadre. Nós combina desde... ela era mocinha, desde antes dela casar. Boazinha mesmo! Ela nunca me deu uma má resposta, eu também nunca dei uma má resposta nela. Nós nunca briguemo de malcriação um com o outro não.

Com os homens da família, João Paulo nunca teve problemas, embora a relação

de familiarização também variasse. Com o avô de Henrique, havia uma relação paternal e

patronal; com o pai de Henrique, uma relação fraternal e patronal em menor grau; com

Henrique, a relação é puramente de consideração e compadrio, assim como com os filhos de

Henrique. P: E o pai do senhor Henrique, como ele chamava? Luciano. P: O senhor gostava do seu Luciano? Gostava, ué?! Nós brincava junto, nós trabalhava junto... Mas também nunca briguei! Trabalhei muito tempo com ele ali. Até quando ele morreu a gente trabalhava e nunca briguei. P: Então o senhor o ajudava com o trabalho? Ajudava o pai dele e o avô dele [de Henrique]. Eram os dois patrão meu. P: E o senhor ganhava dinheiro nessa época? Ganhava.

10.9 – Família X dinheiro – familiarização X pagamento O trabalho de João Paulo só começou a ser reconhecido financeiramente, ainda

que de modo informal e desproporcional, quando passou a trabalhar diretamente para o pai de

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Henrique. A análise do pagamento em dinheiro implica uma análise do processo de

familiarização. Como aponta sua narrativa, a relação vertical de apadrinhamento com o avô

de Henrique (padrinho-afilhado) era sobreposta por outra também verticalizada; a de patrão-

empregado. Contudo, quando se trata de pagamento em dinheiro, o padrinho sobrepõe o

patrão e a familiarização (com suas formas prévias de compensação, isto é, casa, comida,

proteção etc.) subtrai a necessidade de pagamento. Na verticalidade destas relações, João

Paulo ocupa sempre o polo inferior, seja como afilhado, seja como empregado.

Com relação ao pai de Henrique, a horizontalidade do compadrio e também da

familiarização (como se fossem irmãos) trouxe a necessidade de algum pagamento pelo

trabalho prestado. “Algum”, pois aqui também a familiarização impede o justo, em termos

contábeis, sob o risco de macular a consideração. Como aponta João Paulo, o que recebia era

pouco, um pinguinho à toa, o suficiente apenas para a equidade da relação entre

irmãos/compadres e para a cachaça. Apesar de pouco, João Paulo recebia e podia gastar seu

dinheiro como lhe aprouvesse, o que configura uma informação relevante para a pesquisa. P: O seu Luciano [pai de Henrique] pagava o senhor? Pagava. P: E o que o senhor fazia com o dinheiro? [risos] Era pouco... [risos] O dinheiro era pouco! Eu gastava um mucadiquinho... [risos] P: E com o que o senhor gastava? [risos] Eu bebia umas cachacinhas... [risos] Gastava o dinheiro tudo! E eu costumava beber na venda, depois eu ia lá e pagava certinho o que eu devia e o restinho do dinheiro também acabava. Eu não ligava pra dinheiro não! Eu recebia pouco, mas eu... Agora que eu sou... [risos] P: Agora o senhor é o quê? Agora eu seguro um mucado. Tem que guardar um mucado! P: Mas naquela época o senhor gastava tudo... Eu recebia era sábado. Domingo eu ia para a venda, bebia, pagava para os outros... Chegava aqui bebim [bêbado] e pronto! P: E era feliz? Era feliz! [risos] Eu ia pra lá, vinha bebim e cantando. De noite! P: Sozinho? É, sozinho! Vinha cantando, chegava aqui e ia dormir naquele quartinho ali. [...] P: Então o senhor gosta de cantar! Eu gosto! Eu vou ali pr’aquela rocinha ali e vou capinando e cantando. O dia todo! Eu gosto de cantar, de dançar... Por aqui não tem mais não, se eu morasse na cidade, eu ia no forró! [...] Todo sábado tinha baile para todo lado. [...] P: E o senhor tem namorada mesmo ou é mentira das meninas [netas de Henrique, devido à brincadeira inicial]? Não, não tenho não. Eu tinha namorada quando era mais novo. Depois que fiquei velho, não. Mas nunca quis casar também não. P: Por quê?

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Não tinha ideia de casamento. Eu achava bastante, mas nunca... queria moça pra casar e nunca tratei casamento também não. P: E por que o senhor nunca tratou casamento? Eu até hoje acho bom não ter casado! [risos] A gente fica mais folgado, fica mais sozinho, pode ir onde quiser. Não tem nada, não tem conversa não. É importante, também, destacar a associação entre dinheiro, trabalho e

aposentadoria. Apesar de trabalhar desde a infância, João Paulo considera que começou a

trabalhar apenas quando começou a receber formalmente por isso, o que não diz respeito ao

que seu patrão/irmão/compadre lhe pagava e sim à aposentadoria. Apenas quando se

aposenta e passa a receber regularmente uma quantia elevada (um salário mínimo mensal) em

comparação ao pinguinho à toa a que estava habituado, seu serviço é percebido como

trabalho. O recebimento direto do dinheiro do seu trabalho, entretanto, nunca se deu; João

Paulo nunca usufruiu a totalidade de sua aposentadoria, continuou apenas com o suficiente

para o lazer da cachaça, guardando o restante no banco. Indiretamente, saber que tem

dinheiro guardado para as necessidades e que, por isso, não precisará ocupar os outros é algo

muito novo que lhe proporciona a agradável sensação de segurança e independência.

Henrique é quem sabe onde a segurança de João Paulo está.

Retrospectivamente, tal associação entre segurança e independência distorce a

antiga relação de familiarização. Era exatamente a dependência da família o que lhe garantia

proteção e segurança, retirando a necessidade de pagamento proporcional ao trabalho prestado

sem a conotação de exploração. [...] Depois que eu comecei a trabalhar, sobrar um dinheirinho, eu coloco um mucadinho lá [no banco]. Ficar sem dinheiro de tudo é muito ruim, né? Porque, às vezes, a gente passa mal, precisa de dinheiro de repente e não tem. Pedir aos outros também não dá certo não. A gente tem que ter juízo e andar direitinho. [...] P: Então, dinheiro demais o senhor não precisa. Não. Se eu tô juntando dinheiro, eu ponho tudo na mão dele ali [de Henrique]. Ele é que guarda para mim. P: Ah, o Seu Henrique é quem guarda o seu dinheiro ? É, ele põe lá [no banco] para mim. Segura, porque se eu sofrer por aí e precisar, ele sabe onde é que a minha segurança está, né? A gente tem que ser mais ou menos... não pode ser muito cabeça no ar não. [...] P: Quando o senhor era mais novo, era mais difícil, né? Era mais difícil! Trabalhava na roça e ganhava um pinguinho à toa! [risos] Era diferente mesmo! Eu alembro de muitas passagens de muito tempo. A gente pedia emprestado; às vezes a gente não tinha e vai na casa do outro pedir emprestado. [...] P: O senhor conhece alguém que já foi explorado, que as pessoas não pagavam direito?

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Isso algum aí já foi, né? Mas aqui não, aqui no nosso córrego não tem exploração não. Aqui cada um faz um mucadinho, todo mundo trata bem o outro.

10.10 – Sistema de compensação: não trabalha, não come. P: O senhor bebe cachaça até hoje? Eu bebo um golinho! P: Todos os dias? Tem dia que eu bebo, tem dia que eu não bebo... Agora, que nem hoje, eu não bebi nenhum golinho de cachaça. Agora parei um mucado, mas eu bebia muito! P: Mas o senhor bebia até cair? Não, cair, eu não caía não, mas eu bebia. Ia lá para os lados da Serra do Macaco... Pra lá pra roça, lá pra aquelas terras... [...] Eu ia à pé, sozinho, a noite inteira! [risos] P: Bêbado? É! Saía daqui, assistia uma missa ali, num culto que tem aqui embaixo, e ia. P: E a mãe do Seu Henrique, a Dona Jurema, não ficava brava com o senhor? É, tinha dia que ela falava... Mas eu... Mas nós não brigava não. Já perdi também muita segunda-feira aí. Ficava à toa aí, não ia trabalhar não. Ia trabalhar só dentro de casa. P: E eles não achavam ruim não? Ele não achava ruim comigo não. Ele era meu patrão, mas não achava ruim não. Ele ia trabalhar, ele mais o Henrique, filho dele. Eles iam trabalhar e eu ficava aí à toa. Também não almoçava e nem jantava; ficava sem comer o dia inteiro! P: Por quê? Perdia a vontade de comer. Não comia não! Já fiquei muitos dias sem comer. [...] Eu ia para a venda beber de domingo. Domingo ia lá para venda, depois vinha andando bêbado e segunda-feira não aguentava trabalhar, ficava à toa. P: Aí também não comia nada? Não. Podia ser a comida boa que fosse, eu não comia de jeito nenhum!

10.11 – Religiosidade: ajuda, merecimento, salvação Ao adentrar o tema da religião, procuro explorar sua opinião sobre céu e inferno,

questão peculiar na narrativa de todos os filhos de criação. Embora João Paulo não tenha a

percepção de que o inferno é aqui, o modo como articula a oposição céu/inferno não deixa de

ser peculiar e em consonância com as demais narrativas. À certeza inquestionável da

existência de um céu, destino dos que serão salvos pelo sofrimento, pela bondade, pela ajuda

incondicional ao próximo, contrapõe-se a incerteza do inferno. Eis o princípio normativo de

seus relacionamentos e de sua autopunição.5

5 A narrativa de sua religiosidade é extensa e muito rica de informações sobre experiências religiosas polêmicas naquele contexto.

[...] Mas, aqui, tem gente que parece que tem um medo de assombração! Agora, falam que assombração é vivo. Diz que já viu lobisomem, mula-sem-cabeça... Eu nunca vi. Nunca vi! Na quaresma, [...] eles falaram que existe. Me contaram, não sei se é mentira que pegaram em mim, mas me contaram: ali onde tem aquele

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P: O senhor acredita em Deus? Uai! Graças a Deus [retira o chapéu e o coloca contra o peito]! Vou deitar e rezo o Padre Nosso. P: Todo dia o senhor reza? Uai! Tem que rezar, né? P: O senhor reza para agradecer ou para pedir? Rezo o Padre Nosso e peço a Deus que me protege, que eu vou deitar sossegado! Peço a Deus e peço à Virgem Maria. [...] P: O senhor acha que as pessoas que não acreditam em Deus, que não são boas, vão para o céu? [Silêncio. Fica pensativo] Agora eu não sei... Se Deus ajudar ele, às vezes ele vai, mas se Deus não ajudar, aí ele não vai, né? P: E para onde ele vai? Uai! E ele vai para... [risos] o inferno. Ele vai pro inferno! [risos] Só se for, uai! Agora, o inferno ninguém não sabe... Ninguém não sabe onde é o fim dele. P: E uma pessoa que trabalhou a vida inteira, que teve uma vida muito difícil, que sofreu muito... merece ir para o céu? Eu acho que merece. Porque tem gente que é muito bonzinho mesmo. Tem gente que não é ruim mesmo não. Tem gente que é bonzinho mesmo. Eu não falo que eu tenho inimigo não. Eu lido bem com todo mundo, todo mundo me trata bem, eu também trato eles bem, não tem conversa, não tem nada. Mas tem gente aí que não dá pra ser seguro não, que não trata bem os outros não. É só vem a nós, ao vosso reino, nada! [...] P: E o senhor acha que a alma da gente vai para onde? A gente sendo bom, diz que a alma da gente vai para o céu. P: E o senhor acha que o senhor vai para o céu? Uai! Eu não sou muito ruim não, uai! Às vezes... [risos] Às vezes é capaz de eu ir, uai! Agora, esse negócio de ser muito ruim para os outros, ser muito ruim demais, aí não vai não. Por causa disso que eu lido com todo mundo bem e todo mundo lida comigo. Eu não posso ser ruim para ninguém. [...] P: O senhor tem algum comportamento diferente durante a quaresma? Por exemplo, o senhor faz jejum? A gente faz um respeito sim. P: O senhor faz?

negócio ali, logo na saída do Barrote [bairro de Barão de São João Batista], tem uma casa grande, eles falaram que pegaram uma mula sem cabeça ali. Falou mesmo! Há muito tempo, eu já ouvi falar. Eu era menino! P: E o senhor não viu? Eu não vi não. Diz que pegaram uma mula sem cabeça ali. Era uma mulher. [risos] Eles falam que é mulher que vira mula sem cabeça. P: E o que fizeram com ela? Eles pegaram ela lá, mas diz que depois ela... sumiu! Lobisomem também, diz que é homem que vira lobisomem. [...] Agora a quaresma passa, eu nem alembro de lobisomem e nem de mula sem cabeça mais. Acabou! Antigamente, quaresma era tempo de lobisomem, mas agora eu não tô vendo ninguém falar mais. A quaresma passa, a gente nem vê que ela acabou. [...]

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Faço. Eu gosto de jejuar, a gente tem as horas pra comer. Depois que come, acabou; oferece o jejum. [...] Agora tem muito tempo que eu não faço jejum mais não. [...] Eu jejuava quando eu era encapetado; mas depois eu parei.

10.12 – Fim da entrevista: cotidianidade atual, sobrevivência sozinho P: E o que o senhor come? Pão, bolo... Eles trazem para mim. A comadre [esposa de Henrique] traz para mim. P: E o almoço? Quem faz o almoço? A comida eu faço também. P: O senhor sabe fazer? Eu acostumei a fazer. Um mucadinho eu faço.[...] Mas custei aprender, heim?! Eu aprendi foi depois que eu passei pr’aqui, porque aqui tinha uma dona que cozinhava, que morava ali embaixo. Mas depois que fiquei sozinho, eu passei fazer comida pra mim. Eu mudei pr’aqui dentro de casa, tem fogão, tem as coisas tudo direitinho. Agora eu acostumei. Tem dia que eu faço comida, eles trazem comida para mim... Eu como e até sobra! P: O senhor almoça e janta? É, eu como um mucadinho do que eu faço, depois como de tarde, depois à noite eu como mais um mucadinho, aí arrumo e vou deitar. Rezo o meu Padre Nosso e vou dormir! Nada me amola! [...] Eu vou deitar, tiro o chapéu da cabeça e falo: “Com Deus e Nossa Senhora!” E pronto! É a primeira coisa que eu faço! E graças a Deus não tem acontecido nada comigo. Tô aqui há muitos anos e nunca passei mal sozinho. Nunca passei mal nenhum, nenhum dia, até hoje! Tô aqui há muito tempo. Já tem muito tempo que o pai dele mais a mãe dele morreu e eu fico é aqui. Agora passei pr’aqui [para a casa principal], isso aqui é dele [de Henrique] e eu fico aqui no mesmo canto. [...] P: O senhor gosta daqui? Eu gosto, uai! Eles até me chamam: “Vamos para a cidade hoje?” Eu falo: “Eu não, hoje eu não vou não. Outro dia eu vou.” Aí outro dia, eu panho uma carona aí, eles me leva e eu vou. P: E o senhor não tem vontade de morar lá na cidade, lá na rua? Posso ir, mas é capaz de eu custar acostumar. P: Mas lá tem forró... Pois é, lá tem! Mas, agora eu não vou mais não... no forró não. Eu já estou velho prá daná! Não danço mais, eu já dancei muito! [...] [...] P: O senhor tem televisão? Não, aqui não. Só na casa dele lá [de Henrique, na zona urbana]. [...] Eu vou para a casa dele lá, aí eu assisto até de noite. Eu só sei mexer um mucadinho naquele rádio ali. P: E o senhor ouve o que no rádio? As músicas de forró... As coisas de novidade... Tudo ali é eu que ponho. Agora, esse negócio de ligar televisão, aí isso eu não sei não. P: E o senhor gosta da luz elétrica? Ah, não é ruim não. É bom! P: No tempo do senhor não tinha, né?

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Não. Agora ficou bom porque bateu aqui [aponta para o interruptor próximo], clareia lá! E daqui a gente está vendo lá! A gente acostuma com tudo e acha tudo bom, né? P: O senhor toma banho quente? Ali tem. Tem chuveiro ali. P: E o senhor sabe mexer no chuveiro? Eu ainda estou acostumando com ele um mucadinho. Agora eu mexo lá um mucadinho, eu tô aprendendo. P: E o senhor gosta de tomar banho? Eu gosto! Antigamente, nós tomava banho no rio, né? P: Qual é o melhor, o banho no rio ou o banho no chuveiro? No rio é mais bom, né? Uai, é muita água! No chuveiro, mexe lá e cai um mucado. No rio não; no rio nós pula lá dentro d'água lá e pronto! [...] P: Falta alguma coisa na vida do senhor? Para mim não falta nada! P: O senhor é feliz? Uai! Graças a Deus [soergue o chapéu], não falta nada. Eu não tenho amolação! Ninguém me amola! Eu fico aqui sozinho, ando sozinho, vou pr’aqui, vou pr’ali... Nada me faz chateação! E acho isso bom! [...] P: O senhor sente dor em algum lugar? Não. Esse negócio de dor não. Eu só sinto uma dormência nessa perna aqui e só! E ando pra todo lado. Não caio também. E trabalho bem. P: O senhor quer chegar aos 100 anos? Eu lá vou, né? Já estou bem perto. P: Vai fazer festa quando chegar aos 100 anos? [risos] Vamos ver se dá, né? Às vezes dá para fazer uma festa. Às vezes dá para fazer uma festinha... com forró dos 100 anos! [...]

Barão de São João Batista, 29 de janeiro de 2007

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ENTREATOS

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CAPÍTULO 11 – ETNOGRAFIA DOS INDÍCIOS

Neste entreato, a etnografia coloca em correspondência as duas fases da pesquisa,

analisando o que foi narrado e sinalizando o que será analisado narrativamente a seguir.

Como mencionado, investigar o senso comum de que não existe diferença entre

filho de criação e filho de sangue a partir do “indício” de valorização moral de que é melhor

ter filho de criação do que filho de sangue porque ele não abandona os pais e das

desigualdades objetivas de socialização dos filhos de criação foi o ponto de partida do

trabalho. As narrativas biográficas revelaram, além de inúmeras diferenças, sempre

respaldadas pela naturalização de desigualdades, importantes variações intra e interindividuais

que flexibilizam e pluralizam o “habitus de filho de criação” unificado pela categorização.

Contudo, as mesmas singularidades que relativizam a unificação, servem como medida de

reconhecimento, isto é, de unificação. Anita, por exemplo, é reconhecida como se fosse filha

de criação, mesmo sem o ser, devido à sobreposição da relação trabalhista pela

“familiarização” oriunda de seu cuidado exclusivo e gratuito; por outro lado, Sebastião,

apesar de ter sido acolhido aos quatro anos e cumprido a sua missão, isto é, desempenhado as

funções que lhe cabiam até a morte dos pais, não é socialmente reconhecido como filho de

criação devido ao comportamento que fere os códigos morais que configuram e distinguem a

categoria. Como vimos, no intervalo desta polaridade, outras variáveis singularizam as

histórias de vida “pluralizando”, assim, os filhos de criação.

A etnografia priorizou os “indícios” que consegui captar das narrativas que

permitissem uma sociogênese da unificação da experiência e da naturalização de

desigualdades buscando compreender a homologia que se pretende de indivíduos plurais com

base na ancestralidade de uma categoria comum. A divisão da análise etnográfica a seguir

pretendeu objetivar o encadeamento sucessivo que identifiquei como constituinte de filhos de

criação.

11.1 – Adoção/criação como favor A narrativa em que Laura contrapôs o filho adotado ao filho consanguíneo com

base nas desigualdades e na luta por reconhecimento do primeiro1, somada à narrativa de

1Laura: [...] A sociedade te vê de uma forma diferente. Você é especial para a sociedade porque você é adotada. É comum todo casal ter filho, né? Não é comum todo casal ter filho adotado. É difícil! Uns crescem e revoltam, tem conflitos com os pais... E isso é o que atrapalha o processo de adoção. [...] A família do meu pai meio que ficaram revoltados. Eles pensavam assim: “Deixa de ser bobo! Você vai deixar de ter filho para adotar filho dos outros? Isso vai crescer e você não sabe o que vai ser.” Entendeu? [...] Então você tem que crescer meio que

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Graça, sua mãe adotiva, em que salienta a adoção como decisão e não obrigação2, soaram

como “indícios” da adoção/criação como favor e, com isso, da dívida que une o filho

adotivo/de criação à família, bem como da expectativa familiar e coletiva de retribuição.

Os conflitos que, segundo Laura, alguns filhos adotados têm com os pais como o

que atrapalha o processo de adoção, me pareceu uma explicação bastante plausível para o

atual baixo número de adoções em comparação à prática de pegar para criar do passado. A

pesquisa etnográfica apontou que a adoção legal em Bagre Bonito é muitas vezes concebida

como um contra senso, confirmando a narrativa de um morador idoso e referencial, colhida e

reproduzida anteriormente.3 O filho adotado foi descrito como alguém que tem de tudo (casa,

comida, roupas, proteção, estudos etc.), sem dever nada (nenhuma obrigação a mais que o

filho consanguíneo) e ainda por cima recebe herança.4 De fato, existe uma expectativa

negativa com relação ao filho adotado, conforme observou Laura, isso vai crescer e ninguém

sabe o que vai ser, o que explica suas manobras e abnegações para evitar conflitos e não ser

aquilo que maquiaram. Ao contrário do filho de criação, de quem, historicamente, todos

sabem o que esperar.

É comum casos de adoção legal em que os pais tentam preservar a filiação da

adoção5 e para isso chegam a escolher crianças com características físicas semelhantes (como

a cor da pele, dos olhos, dos cabelos etc.) e até a esconder do filho o processo de adoção. A

narrativa de Laura revelou um processo inverso na prática de pegar para criar ou adotar: a

diferença de cor da pele surge como marcador primário de desigualdade do filho de criação e

a lembrança do processo de pegar para criar/adotar como lembrança da dívida.

provando para os outros que você não vai ser aquilo que maquiaram. [...] A família da minha mãe nunca se conformou, sempre atacou a minha mãe mesmo: “Ah! Você é muito boba de adotar filho!” Ou às vezes as pessoas chegavam perto dela [...] para poder ver se eu era branquinha, cê tá entendendo? Às vezes as pessoas pegavam na minha mãozinha, quando eu era pequenininha, para ver se as minhas unhas eram roxinhas para saber se quando eu crescesse, eu seria negra ou não. [...] 2 “Ela [Laura] tinha que agradecer muito a nós porque adoção é uma decisão! Nós não era obrigado a ficar com ela.” 3 Antigamente, as crianças não ficavam pelas ruas aí, passando fome. Quem podia, pegava. Dava comida, dava roupa... Agora não pode mais, a assistente social vem e toma. Agora é só falar que tem direito a isso, àquilo... Por isso que ninguém adota mais. 4 Embora Laura tenha sido adotada com direito à herança, seus pais o fizeram não para resguardar este e outros direitos do filho adotivo, como analisei em sua história de vida, mas para resguardar os deveres do filho de criação. Narrativamente, Laura também não diferencia filho adotivo, adotivo e de criação; para ela, é apenas a maneira de falar, é igual mandioca e aipim, é tudo uma coisa só. Como ela pertence à geração da adoção legal, em que da prática de pegar para criar ficou apenas a maneira de falar, e teve acesso a contextos de reflexão crítica, como a escola, onde o tratamento desigual de filhos é, teoricamente, condenável, para Laura, é inconcebível tratar de maneira desigual seja um filho consanguíneo, adotivo ou filho de criação. Esta, aliás, é a fonte dos conflitos de sua relação com os pais. Meus pais têm a cabeça antiga, de mil novecentos e bolinha, eles querem me criar como na época deles, em que judiar do filho adotivo, adotivo ou de criação era normal. 5 “Você não é adotada, você foi adotada; agora você é nossa filha.” Dany Roland para sua filha, em “Histórias de Adoção”: http://gnt.globo.com/programas/historias-de-adocao/episodios/50262.htm

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Eu sempre soube que eu fui adotada, os meus pais nunca esconderam isso de mim; [...] [eles acham] que eu deveria ser muito agradecida a eles porque se eu estivesse com a minha mãe lá em São João, talvez nem viva eu estaria. Eles me criaram com a mente o seguinte: eu tenho que viver agradecendo somente a eles porque foram eles que me deram a vida. Entendeu?

O trabalho acerbo, que configura a socialização desigual dos filhos de criação, é

naturalizado como retribuição ao favor da adoção. A percepção de Graça, narrada por Laura,

é rica em elementos que sinalizam um “tipo ideal” (Weber) de filho que, normativamente, só

cabe aos filhos de criação/adoção.

Laura: [...] A minha mãe é muito trabalhadora. Ela sempre trabalhou demais. Ela teve uma infância sofrida demais, sabe? De trabalhar pesado mesmo. De carregar peso igual a um burro! Sabe? [...] o pai dela obrigava ela a trabalhar muito e ela não tinha o direito de reclamar. Se um dente estivesse dolorido, não se tinha o direito de ir lá e consertar o dente. Aquilo tinha que apodrecer e cair pra lá. [...] o pai dela não deixava ela procurar um médico. [...] quando ela cresceu, estava numa faixa maior de idade, ela chegou para ele e falou assim: “Ô, pai, eu sou filha adotiva?” E o pai respondeu: “Não, por quê?” E ela disse: “Não, porque quando o filho é adotivo é que a gente judia. Por que o senhor judia tanto de mim?” Ou seja, se judiassem de mim, eu tinha que aguentar porque eu sou adotiva. Judiação é outra categoria que aparece com frequência nas narrativas da

socialização familiar de filhos de criação. Trata-se de uma dinâmica ambígua;

simultaneamente à naturalização do trabalho acerbo e das privações (poucas peças de roupa,

falta de brinquedos, menos tempo livre para brincadeiras etc.) como retribuição ao favor,

ocorre uma comiseração que classifica estas desigualdades como judiação. O relato de uma

amiga pessoal, 45 anos, residente em Juiz de Fora, egressa de um município vizinho à

localidade da pesquisa, é profícuo em ilustrar a socialização, a naturalização da desigualdade

desta socialização e o inexplicável quando objetivada: A minha avó sempre teve filhos de criação, mas nenhum ficava com ela muito tempo porque ela judiava muito deles e as pessoas tomavam dela. Eu me lembro de uma menina, Rosana, ela era um pouco mais velha do que eu e eu tinha uns cinco, seis anos. Eu ficava incomodada porque ela não podia brincar comigo, tinha sempre que fazer alguma coisa: lavar vasilha, varrer a casa... E eu perguntava para minha avó: “Vó, por que a Rosana não pode brincar comigo?” e a minha avó só respondia: “Porque não”. Tem uma cena que eu não me esqueço: na casa da minha avó sempre teve televisão. Mesmo quando era novidade e quase nenhuma casa tinha, a minha avó já tinha. Aí eu me lembro que a gente ficava sentada no sofá, eu, minha mãe e a minha avó, de frente para a televisão. Atrás da televisão tinha uma porta para o restante da casa. Eu me lembro que a Rosana ficava encostada naquela beirada da porta, com a televisão de costas pra ela, vendo a nossa reação ao assistir televisão. Você acredita?! E eu me lembro que eu perguntava: “Mãe,

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por que a Rosana não pode vir assistir televisão com a gente?” E minha mãe também só dizia: “porque não”.

11.2 – Desigualdade racial dos filhos de criação

Primeiro, elas [reuniões em esquinas, terrenos baldios, bares e botequins] foram reiteradamente proibidas no passado escravista e reprimidas pela polícia nos primeiros anos subseqüentes à Abolição. Realizar essas reuniões adquiria, pois, o caráter de desafio e de uma auto-afirmação grupal. [...] As reuniões permitiam explorar uma nova esfera da experiência humana, de participação da vida em grupo e dos prazeres da conversação. [...] No fundamental, ali os homens (e, eventualmente, também as mulheres) ‘conversavam’, mostravam-se ‘gente’ e competiam entre si por ‘consideração’ – isto é, pelo respeito, pela admiração e pelo amor dos outros. [...] Tratava-se, essencialmente, de corresponder aos desejos básicos da ‘pessoa humana’, que impulsionam os indivíduos no sentido de verem reconhecido o seu ‘valor’ e de sentirem-se ‘parte de um grupo’. [...]

(FERNANDES, Florestan, 1978: 165-166) Correlacionando a narrativa de Laura, sobretudo na segunda entrevista, a

relativização do negro pelo embranquecimento ou por atributos morais e o fato de todos os

filhos de criação que entrevistei e dos quais tive notícia, com exceção de Sebastião, serem

negros em famílias brancas, me fez perceber que a relação familiar que envolve filhos de

criação envolve também relações raciais.

A desigualdade racial é marcante em diversos contextos sociais dos dois

municípios pesquisados, como pode ser observado nos dados colhidos do Censo Demográfico

realizado pelo IBGE em 2010, apresentados nos anexos I e II. Corroborando a estatística, a

etnografia revela ainda a naturalização desta desigualdade. Começando pelo sistema

categorial, “negro” é considerado um termo ofensivo, devendo ser substituído por preto,

como demonstrou Anita ao responder à minha pergunta se ela se considerava negra, branca ou

parda: Negra não, preta! Concomitante ao grau de consideração, preto também deve ser

relativizado: moreno, moreninho, moreno fechado, escurinho, pessoa de cor etc. _ Ela é moreninha e tudo... mas é bonitinha (Graça); _Eu falo com o meu marido que eu não sou negra, eu sou achocolatada! (Clara) _ Todo mundo conhece ele, morava lá na vila, é preto, muito pobre, mas toda a vida foi muito trabalhador, honestíssimo. (moradora de Bagre Bonito referindo-se ao pai de Patrícia, esposa de Alessandro); _ Eu tenho uma amiga preta casada com um branco. Ela é pretiiiiiiinha, mas é linda! É uma grande pessoa. Ele, o marido, muitas vezes deixa de ir em clube por causa dela... Não por ele, porque ele gosta dela, mas porque o clube barra. Então, ele deixa de ir. Mas

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está acabando; hoje em dia você não pode mais chamar os outros de negro, de macaco... (Anita) _ Tem preto que é melhor do que branco (morador de Barão de São João Batista); _ Preto tem que casar com preto e branco com branco. Eu não sou racista, não tenho nada contra os negros, só acho que cada um tem que ficar no seu lugar (moradora de Barão de São João Batista); _ Diz que o negro tem uma glândula que fica no sovaco, não sei, e é por isso que tem aquele cheiro forte (moradora de Bagre Bonito). Comecei, então, a questionar como essa desvalorização da identidade negra é

vivida pelos agentes, não apenas filhos de criação. Como poderiam resistir a ela e

constituírem sua dignidade? As narrativas apontam um rigoroso e comparativamente desigual

cumprimento de códigos morais. Para ser reconhecida, uma pessoa negra precisa ser mais

honesta, mais trabalhadora, mais religiosa, mais amiga, mais sofredora, entre outras

moralidades apreciadas, do que uma pessoa branca. Ainda assim, trata-se de um

reconhecimento mediado por relativizações e embranquecimento: preto, mas honesto; preto

de alma branca; preto, mas melhor do que branco. Aqui também parece haver um “tipo

ideal” de gente que pesa com mais carga sobre as pessoas de cor. O contraponto de Sebastião

pode servir de exemplo. À exceção da cor de sua pele, soma-se outra: ele foi o único filho de

criação não reconhecido socialmente como filho de criação. Apesar dos motivos analisados

em sua história de vida prescindirem a cor da pele, me parece, agora, que o fato de ser branco

de olhos azuis pode estar relacionado à sua não aceitação do sofrimento como prerrogativa

moral de reconhecimento. Como vimos, Sebastião gostaria de ser reconhecido pela sua

alegria, por oferecer violão e cantoria aos amigos em vez importuná-los com lamúrias de

uma vida difícil – o que tem efeito contrário pela sua posição de ex-filho de criação: ele é

duramente criticado por ser alegre e viver cantando quando deveria estar na igreja rezando e

pedindo perdão a Deus por não fazer jus ao comportamento moral de um escolhido, apesar de

branco.

Todos os filhos de criação responderam afirmativamente à pergunta se havia

preconceito racial em seus municípios, mas nenhum deles se reconheceu como vítima. Assim

como Clara, eu falo que eu não sou negra, eu sou achocolatada, o preconceito é enfrentado

não com objetividade e resistência, mas com eufemismos, corroborando a sua naturalização.

Na segunda fase das narrativas biográficas, apresentada a seguir, Alessandro e sua esposa,

Patrícia, discorrem sobre uma situação de intenso preconceito racial sem, contudo,

problematizá-la. Laura, por outro lado, aborda a cor da pele como objetivação não de uma

diferença entre pais e filhos de criação, mas das desigualdades que tal diferença implica. Por

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enquanto, o relato de uma situação pessoal, vivida no contexto da pesquisa, me ajuda retratar

esta naturalização da desigualdade racial: eu estava com a minha família em uma pizzaria

quando comentei à mesa o fato de não haver nenhum negro como cliente, em contraposição à

cozinha; onde só havia negros trabalhando. Minha cunhada, moradora de Barão de São João

Batista, concordou justificando: É, pessoa de cor tem mão boa para a cozinha.

11.3 – Desigualdade de gênero dos e entre filhos de criação

Mirou a mãe, a pele do rosto crestada, rugas de uma velhice antecipada, os braços e as mãos pintalgados de manchas-de-sol, toda a vida debruçada a um fogão, labutando manhã à noite, escrava dos seus, ausentes fins-de-semana, feriados, nada de festas, nada de alegrias comezinhas, nunca um desejo, visitar os parentes dispersos por Ubá, Rodeiro, Astolfo Dutra, Juiz de Fora, conhecer o mar em Marataízes, passear à toa na Praça Rui Barbosa ou na Rua do Comércio, apenas a primeira missa domingueira na Matriz de Santa Rita de Cássia, ano após ano assistindo aos filhos crescerem, os dias virarem noite virarem dia [...]

(Luiz Ruffato, Domingo sem deus)

A cozinha das casas é um espaço considerado feminino, raramente frequentado

por homens, nem mesmo para as refeições; a comensalidade acontece, preferencialmente, na

copa.6 Com isso, pode-se entrever que ter mão boa para a cozinha pressupõe, além da raça, o

gênero.

Como mencionado, durante a pesquisa exploratória, tive dificuldade de encontrar

homens filhos de criação. Os que encontrei, foram, não eram mais. Ao contrário das

mulheres, além de mais numerosas, muitas ainda estavam ligadas à família de criação. Esta

situação inicial, somada à narrativa coletiva a respeito deste desequilíbrio, apontam o gênero

como uma variável importante para a prática de pegar para criar. De acordo com os

moradores, antigamente, o número de filhos e filhas de criação era mais equilibrado, porque

quase todo mundo morava na roça, onde o trabalho doméstico considerado masculino é mais

comum. De fato, os filhos de criação que entrevistei são oriundos da zona rural e suas

narrativas corroboram a explicação coletiva:

6 Espécie de sala de jantar mais simples, contígua à cozinha. Assim como o quarto da sala, a copa faz parte da arquitetura tradicional daquela região, deixando de estar presentes apenas quando a condição financeira não permite.

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[...] naquela época, o serviço era buscar uma lenha, buscar uma água na mina, [...] a gente carregava lenha na cabeça. [...] Buscava lata d’água na cabeça, lenha, bambú... [...] O trabalho de homem é mais pesado. (Alessandro) [...] a gente tinha que moer cana para fazer rapadura. [...] Então era assim: às 3 horas da manhã já estava trabalhando, tocava boi, né? Porque no plantio não usava motor, não tinha luz, né? Era roda de boi para moer cana, colocava os bois para rodar aquilo ali e ficava tocando os bois. (Sebastião) [...] fui capinar. Trabalhava na roça. [...]Tinha cafezal, eu plantava café, cuidava do café... Tudo eu fazia! Era varredor do café, assoprava o café... (João Paulo) As narrativas, individuais e coletiva, associam claramente o acolhimento de

filhos de criação, homens e mulheres, ao desempenho de atividades familiares. No contexto

urbano, associado ao êxodo rural, prevaleceram as atividades consideradas femininas, serviço

de casa é uma coisa que nunca acaba! (Laura), explicando, assim, o maior número de filhas

de criação.

Como analisado no terceiro capítulo, existe nos contextos rurais uma separação do

trabalho doméstico realizado dentro e fora de casa que distingue valorativamente serviço de

mulher e trabalho de homem, respectivamente. No contexto urbano, o trabalho doméstico

seja dentro ou fora das casas é considerado serviço de mulher e conta com a ajuda de

crianças. Ajuda e cuidado são termos utilizados para relativizar o trabalho doméstico, ainda

que formal e sistemático, enquanto trabalho. A categoria cuidado, como já mencionado,

compõem-se do binômio cuidado da casa, tarefas domésticas, e cuidado dos donos da casa, no

sentido conceitual do care. Neste contexto, o trabalho do care não é considerado trabalho.

Como pude apurar, sua relativização como serviço, ajuda ou cuidado, passa pelo viés da

familiarização. O care institucional não é comum, talvez por se tratar de municípios

organizados mais por relações de parentesco (consanguíneo) e familiarização, é considerado

desonroso deixar de assumir o cuidado de parentes, sobretudo dos pais. Em Bagre Bonito, por

exemplo, não existe asilo e o trabalho de cuidadoras (não registrei nenhum cuidador),

profissionais ou não, é classificado como ajuda. A preocupação com o cuidado na velhice é

constante nos dois municípios pesquisados, como mostram a reciprocidade que une pais e

filhos (os pais cuidam dos filhos para depois os filhos cuidarem dos pais) e a narrativa de

Anita:

Eu peço a Deus, todo dia, saúde... para ele não me por numa cadeira de roda não porque eu não tenho ninguém que me olha. Né? Não tenho ninguém que me olha mesmo. Nem jogar eu por cima de uma cama antes de tirar eu. É pra tirar eu depressa.

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Seja como cuidado da casa ou como cuidado dos pais, o cuidado se constitui de

atividades femininas, o que fratura a generalização filho de criação cuida dos pais até a

morte. A rigor, como demonstrado anteriormente, especialmente nas histórias de Maria e de

Joana, são as filhas de criação que cuidam dos pais até a morte. A unificação pelo masculino

encontra respaldo nos valores de masculinidade e feminilidade operantes nos dois municípios

que naturalizam, mais uma vez, desigualdades de gênero. Apesar da equivalente participação

das mulheres no orçamento familiar, do elevado número de unidades familiares “chefiadas”

por mulheres, da maior (em número e grau) escolaridade das mulheres, elas ainda são

subjugadas pela dominação masculina. Alguns dados do Sistema Nacional de Informação de

Gênero baseado no Censo Demográfico realizado pelo IBGE em 2010, apresentados nos

anexos I e II, permitem uma comparação mais objetiva. Etnograficamente, registrei algumas

práticas cotidianas de reprodução desta desigualdade que começam pela socialização

diferenciada de meninos e meninas, atribuindo às meninas a obrigação de ser vaidosa e de

aprender a cozinhar para não passar aperto quando casar. Socialização que culmina em

mulheres que trabalham fora e dentro, assumindo sozinhas o cuidado da casa e do marido na

mesma proporção dos filhos pequenos (servindo o prato de comida do marido, separando a

roupa que o marido vai usar para trabalhar, para dormir etc.). Chama atenção o efeito de

atualização de novas práticas de subjugação das mulheres que acompanham o crescente

processo de urbanização nos dois municípios: além da sobrecarga do trabalho dentro e fora,

registrei com recorrência esposas que matriculam os maridos em cursos superiores à

distância, mas são elas quem escrevem os trabalhos do curso e donas de casa que têm a

carteira de trabalho assinada pelos parceiros como “empregada doméstica” para receber a

licença maternidade. Não há constrangimento em narrar estas e outras práticas, pelo

contrário; em uma roda de mulheres de que participei em Barão de São João Batista, todas

foram prolixas em compartilhar o cansaço oriundo do acúmulo de funções, se esforçando,

uma mais do que a outra, para enumerar as desigualdades dentro de casa, sem nenhuma

problematização além do cansaço. Além disto, o controle sobre a sexualidade das mulheres

configurava o principal tema das conversas. Em outra ocasião, um churrasco também em

Barão de São João Batista para o qual fui convidada, em que havia quatro casais e a mãe da

anfitriã, além do acúmulo de funções, do cansaço e da sexualidade das outras mulheres, a

violência doméstica foi abordada com naturalidade e em tom de chacota; tanto pelos homens,

quanto pelas mulheres. No terraço da casa, as pessoas estavam agrupadas segundo o sexo. No

grupo dos homens, um deles falou bem alto a respeito de um casal conhecido por todos:

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Ontem o bicho pegou lá; escutei ele esquentando a “fulana”. Todos riram. No grupo das

mulheres, o assunto continuou: Mulher 1: Depois ela diz que não apanha! (risos) Igual aquela franja; nem tá usando [não está na moda] franja mais, né? Aí ela diz que gosta... Mulher 2: Mentira! É pra esconder o olho roxo! (risos) Mulher 1: Pois é! Mas ela diz que gosta. Mulher 3: Deve ser por isso que ela não veio hoje. Priscila: É comum os homens baterem nas mulheres? Mulher 2: Não é que é comum, mas a gente ouve muito caso de homem que bate na mulher, sabe? Homem que chega em casa bêbado... [Um dos homens, marido da “mulher 2”, entra na conversa]: Não é, Priscila, mas tem mulher que faz o homem perder a paciência. Nossa senhora! A fulana mesmo; não sei como ele aguenta ela! Ela implica com tudo! Mulher 1: É, ela tem o gênio muito difícil. Mulher 3: Lá em casa não tem disso, graças a Deus! Meu marido nunca foi de bater. Mulher 1: Lá em casa também não! Toda vez que ele vem com palhaçada pra cima de mim, ele leva também; eu posso até apanhar mais, mas que ele leva, ele leva! Né, amor? [se dirigindo ao marido, no outro grupo] A criação de filhos e filhas de criação também se apoia em desigualdades de

gênero (menina tem como você mandar, menino não tem – como explicou Tãozim, pai de

Laura), intensificadas pelas desigualdades entre filhos consanguíneos e de criação e pelas

desigualdades raciais. Grosso modo e hierarquicamente sucessivo, os filhos têm privilégios

(expressão de Alessandro) que as filhas não têm, que, por sua vez, têm privilégios que os

filhos de criação não têm, que, sucessivamente, têm privilégios que as filhas não têm. Por

último, neste posicionamento hierárquico, as filhas de criação lutam para ser reconhecidas

como se fossem filhas, como gente e também como referencia o “tipo ideal” de mulher:

honesta; trabalhadeira; reservada; modesta; limpa; cuidadosa; direita; virgem ou mulher de

um homem só; responsável pelo bem estar da família.

Nota-se, contudo, uma importante relativização da divisão sexual do trabalho

quando se trata de filhos de criação. Em alguns casos, sobretudo no contexto urbano, os filhos

de criação, homens, têm a masculinidade sobreposta pela subalternidade de sua posição

familiar, que se caracteriza pelo desempenho de serviços domésticos, isto é, serviços de

mulher. Encontramos no estudo de Suely Kofes (2001b) sobre identidade, diferença e

desigualdade na relação entre patroas e empregadas, uma análise interessante, além de uma

descrição pormenorizada, do serviço doméstico desempenhado por um filho de criação e por

um cria de família no contexto urbano.

Residem na casa Alceu e Lúcia. Ele tem 45 anos, advogado; ela tem 40 anos, vende peças de enxoval. O casal tem quatro filhos: Eduardo tem 23 anos, é

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engenheiro mecânico; Ricardo tem 21 anos, é estudante; Leila e Lilian têm 20 anos, são estudantes. [...] Residem ainda na casa, habitualmente, Francisco, o “filho de criação” de 17 anos, e João, de 8 anos, a “cria da casa”, ambos estudando; e Maria, 40 anos, que há dez é empregada doméstica na casa. Há outra empregada doméstica não residente, Nice, de 17 anos. Francisco, o “filho de criação” foi assim descrito por uma pessoa amiga da família: “Ele é filho do Alceu e da Lúcia. E é tratado como irmão pelos outros filhos deles. Tem serviço que ele tem que fazer, e que precisam ser obedecidos. Ele não tem ordenado mas o trabalho que ele faz lá é em agradecimento pelo que ele ganha”. Desde o 7 anos, João limpava quintais e jardins das famílias ricas da cidade; isso é o que ele foi fazer na casa em que está atualmente, mas aos poucos foi sendo incorporado ao ser chamado para outros serviços, como molhar a grama, servir o almoço. Começou a receber presentes, dormiu na casa algumas vezes e, finalmente, passou a morar. Esse processo é assim descrito pela dona da casa: “Parecia um bicho do mato, no começo. Morria de medo de gente. Ele vivia em um sítio, não via ninguém. Qualquer pessoa que chegava perto ele chorava. Hoje não, é muito sociável e esperto. [...] [Descrição de um dia de feriado prolongado:] 10h/12h: Francisco e João lavam o quintal. Os donos da casa estão ausentes. Os filhos estão na piscina. Francisco é chamado por Eduardo para ajudar na limpeza da piscina. João é chamado por Lilian para buscar, dentro da casa, o bronzeador. Às 11 horas chegam os donos da casa. Cobram de Francisco a limpeza da varanda. Este se justifica, alegando que ficou limpando a piscina, e Eduardo o defende. A dona da casa cuida das plantas, tira as folhas velhas. João ajuda, varrendo as folhas jogadas no chão. 12h/13h: A família está reunida em volta da piscina. Dona Maria fez e serve os aperitivos, enquanto cuida também do almoço. Nice passa a ferro a toalha de mesa para o almoço. Francisco e João põem a mesa do almoço. O dono da casa manda Francisco comprar bebidas, e João, pôr os refrigerantes na geladeira. 14h: Francisco e João servem o almoço. [...] 15h: Francisco e João tiram a mesa. Os dois, mais Nice e dona Maria almoçam na cozinha de fora. [...] (KOFES, Op. cit.: 183-188)

A autora identifica as posições e as interações se definindo e se segmentando de

acordo com os espaços ocupados na casa: [...] Quarto [externo à casa] em que dormem Francisco e João. É também onde a dona da casa guarda as peças de enxoval que vende. As camas são espumas que, durante o dia, ficam guardadas no armário; [...] Banheiro [de serviço] usado por Francisco, Nice, João e dona Maria, eles não usam o banheiro social; [...] cozinha “de ferro” [externa à casa] [...] É onde comem Francisco, João, dona Maria e Nice. Local onde se lava e passa a roupa. [...] (Idem: 185)

Por fim, Kofes analisa a tensão ocasionada pelas ambiguidades da posição filho de

criação.

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Francisco, o “filho de criação”, é adolescente e mulato. Está entre ser filho e ser criado, entre ser homem e ser mulher, entre ser branco e ser negro. Se, continuamente, ele parece querer definir-se nos três primeiros termos, como filho, como homem e como branco, ele é empurrado, principalmente por Lúcia, por dona Maria e pelas filhas, para mais próximo dos três últimos termos, isto é, criado, mulher e negro. Lúcia e dona Maria o controlam mais, e as filhas tentam fazer com Francisco o que fazem com João: solicitam-lhe servi-las. [...] (Idem: 198)

Entre filhos e filhas de criação, entretanto, as diferenças e desigualdades de

gênero são bem demarcadas. Desde a infância, os meninos filhos de criação têm mais

liberdade e momentos de lazer do que as filhas de criação. São narradas brincadeiras na rua

ao entardecer; partidas de futebol; saídas noturnas para caçar tatu com os funcionários da

família; pequenas viagens a municípios vizinhos acompanhando o pai em compras etc.

Quando adultos, os filhos de criação recebem alguma quantia em dinheiro pelo trabalho;

participam das confraternizações com outros homens nas vendas, onde adquirem o hábito de

beber cachaça com o aval da família de criação; se deslocam para outros córregos

(localidades rurais) e até para a zona urbana para participar das festividades; namoram;

participam do jogo (futebol) de domingo, entre outras atividades de lazer alheias à família de

criação. Em contraponto, as narrativas das filhas de criação restringem o lazer a festas de

família, conversas com vizinhas e missas dominicais. O casamento, por exemplo, algo normal

para os filhos de criação, não condiz com a missão das filhas de criação, como mostrou

Clara: você precisa ver o pavor que ela [mãe] ficava. Ela falava: “É, agora eu vou te perder

mesmo, porque você vai casar e vai embora”. Além disso, o casamento é idealizado por elas,

de acordo com Laura e Clara, como a única possibilidade de ter a própria vida, enquanto

chega a ser rejeitado por alguns filhos de criação, como João Paulo, justamente pela

possibilidade de tolher a liberdade: Eu tinha namorada quando era mais novo. Depois que fiquei velho, não. Mas nunca quis casar também não. [...] Eu até hoje acho bom não ter casado! [risos] A gente fica mais folgado, fica mais sozinho, pode ir onde quiser. Não tem nada, não tem conversa não. Comparando as narrativas de filhos e filhas de criação a respeito da experiência

filho de criação, o conceito “familiarização” (Comerford) se destaca como síntese da

experiência para os filhos de criação, homens: _ Eu vejo aquela casinha simples lá, mas é onde eu fui criado, onde me deram educação, me deram carinho. Uma casinha simples mesmo, mas é onde eu tinha uma família. Porque se não fosse eles, eu acho que eu nem estaria vivo mais. (Alessandro);

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_ Mesma coisa como se fosse filho deles. Me dava remédio, se precisasse, me colocou na escola... Entendeu? (Sebastião); _ Eu estava sozinho, aí eu mudei para cá e ficava no meio deles. Tudo na camaradagem! E estou até hoje! Graças a Deus! (João Paulo). No caso das filhas de criação, “familiarização” também é central para a

compreensão da experiência, mas não é a categoria que sintetiza as narrativas. O que se

destacou em todas as narrativas ao cabo de algumas horas de conversa foi o sofrimento. Laura

de modo mais crítico e objetivo a partir de comparações; Clara pelo pavor de se lembrar da

experiência e pelo alívio que sente por ter cumprido a missão; Anita como requisito para se

tornar uma pessoa boa e todo mundo gostar dela (e para ser reconhecida como se fosse filha

de criação); Joana pelo voto de silêncio e Maria concebendo que o inferno é aqui, porque é

aqui que a gente sofre.

11.4 – Da naturalização à valorização do sofrimento Ao longo da pesquisa de campo, a valorização do sofrimento se destacou como

normatividade dos modos de socialização e de sociabilidade. Laura admira sua mãe porque

ela teve uma infância muito sofrida; Anita não permite que a entrevista termine sem

esclarecer que não tem medo de sofrer; Clara associa sofrimento a honra; para todos os

entrevistados, o céu é mais garantido para aquele que sofre; os moradores dos dois

municípios indicaram filhos de criação para a pesquisa com base na vida sofrida que têm ou

tiveram etc. De modo inter-relacionado, o sofrimento é valorizado, pedagogicamente, como

formação de pessoas de bem; religiosamente, como caminho para a salvação divina; e,

socialmente, como fonte de reconhecimento e distinção. Nesta sessão, me dedico a uma

sociogênese desta valorização e, posteriormente, na terceira parte do trabalho, a uma análise

do reconhecimento pelo sofrimento.

Às narrativas de sofrimento subjaz uma moralidade religiosa que perpassa e

conecta as esferas de valorização: a pessoa de bem é reconhecida socialmente como exemplo

de vida cristã e será salva por isso. Considerando a abrangência da religião católica nos dois

municípios pesquisados (81,2% de católicos em Barão de São João Batista e 88,9% em Bagre

Bonito – IBGE, 2010), o seu impacto nos modos de sociabilidade e o fato de todos os meus

interlocutores, com exceção de Anita, serem católicos, me dediquei a uma etnografia do

sofrimento com base no catolicismo praticado nos dois municípios.

Em Barão de São João Batista, a observação participante em algumas missas

dominicais corroborou as narrativas destacando o sofrimento pedagogicamente como parte da

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vida cristã a caminho de Deus7 e também como sacrifício, análise que desenvolverei mais à

frente. Em Bagre Bonito, a valorização do sofrimento apareceu com mais ênfase nas

mensagens deixadas por Nossa Senhora da Conceição Aparecida nas aparições em uma

localidade rural considerada sagrada por isto. As aparições começaram em 1966 e se

estenderam por mais de trinta anos. Apenas uma mulher, falecida em 2002, visualizava a

santa e transmitia oralmente as suas mensagens, registradas à mão por terceiros. São mais de

700 páginas de transcrição de mensagens, descrições das aparições e um pouco da história do

processo de sacralização do lugar (bastante conflituoso com a Diocese responsável por aquela

região) compondo o conjunto de três livros (cadernos de capa dura) que ficam sob

responsabilidade das freiras que habitam o local. Na Colina Sagrada8 foi construído um

santuário, onde há o templo principal, um cruzeiro, uma capela das aparições, uma capela do

Menino Jesus, uma fonte de água benta, uma sala de milagres, um seminário (desativado) e

um convento carmelita. Há regras para adentrar a Colina Sagrada, ditadas por Nossa Senhora

e exigidas pelas freiras. Logo na entrada, encontramos uma placa com as primeiras

advertências (que reproduzo ipsis litteris, apenas preservando o anonimato): EIS A COLINA SAGRADA TERRA DA VIRGEM DO CÉU SÊDE RESPEITOSOS NÃO ENTRANDO HOMENS DE BERMUDA E NEM SRAS E MOÇAS DE ROUPAS MASCULINAS MAS DE VESTIDOS ATÉ COBRIREM OS JOELHOS NÃO ABUSEM! AI DE QUEM RETIRAR A PLACA.

Para as celebrações, também há regras:

as missas devem ser rezadas em latim, com o padre de costas para os fiéis e de frente para o santíssimo, como manda a tradição. Homens de um lado da igreja, mulheres de outro. Mulheres vestidas modestamente com véu cobrindo os cabelos; véu preto para as casadas e branco para as solteiras. (Pedidos de Nossa Senhora, reproduzidos pela Madre Superiora)

Ao longo do santuário, diversas placas informam e relembram as regras.

7 “Moisés falou ao povo, dizendo: ‘Lembra-te de todo o caminho por onde o Senhor teu Deus te conduziu, esses quarenta anos, no deserto, para te humilhar e te pôr à prova, para saber o que tinhas no teu coração, e para ver se observarias ou não os seus mandamentos. [...] Não te esqueças do Senhor teu Deus que te fez sair do Egito, da casa da escravidão, e que foi teu guia no vasto e terrível deserto, onde havia serpentes abrasadoras, escorpiões e uma terra árida e sem água nenhuma. Foi ele que fez jorrar água para ti da pedra duríssima, e te alimentou no deserto com maná, que teus pais não conheciam’. (Dt 8,2-3.14b-16a)”. “Muitas são as aflições do justo (Sl 34.19)”; “Através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus (At 14:22)”; “Antes de ser afligido, andava errado, mas agora guardo a tua palavra. Foi-me bom ter passado por aflição, para que aprendesse os teus decretos” (Sl 119.67,71). Citações retiradas dos folhetos das missas entre junho e agosto de 2012. 8 Nome fictício.

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Figura 17 – Placa na capela das aparições de Nossa Senhora9 Fonte: Acervo da Prefeitura Municipal de Bagre Bonito. Consultado em 2012.

De acordo com a madre superiora, Nossa Senhora não veio para dar as coisas do mundo, ela veio preparar as almas para irem para o céu. Nossa Senhora pedia para viver de acordo com os mandamentos da igreja, que lesse a vida dos santos, que lesse o evangelho, que procurasse imitar a vida dos santos; aquela vida de dedicação, de ajudar os pobres, de conviver bem com os outros.

As mensagens são de formação religiosa como orientação moral, pregando a

oração contínua, a penitência, a abnegação e a aceitação do sofrimento. “Ninguém vive sem

sofrimento. Continuem com suas penitências. Sofram com paciência e esperança para

alcançarem a luz do divino espírito santo.” (mensagem de Nossa Senhora). Além de

orientações práticas de conduta moral: como as pessoas, segundo o sexo, deveriam se

comportar, se vestir etc. Nossa Senhora insistia muito nisso, viver modestamente, imitar a

vida dos santos. Como a de Santa Zita, cuja oração diz o seguinte:

Ó Santa Zita, que no humilde trabalho doméstico soubestes ser solícita como foi Marta, quando servia Jesus, em Betânia, e piedosa como Maria Madalena, aos pés do mesmo Jesus, ajudai-me a suportar com ânimo e paciência todos os sacrifícios que me impõem os meus trabalhos domésticos: ajudai-me a tratar as pessoas da família que sirvo como se fossem meus irmãos. Ó Deus, recebei o meu trabalho, o meu cansaço e minhas tribulações, e pela intercessão de Santa Zita, dai-me forças para cumprir

9 “Salve Maria! Nossa Senhora da Conceição Aparecida pede: respeitem a capela e vistam-se decentemente. Às mulheres, não é permitido o uso de: calça comprida, bermuda ou short. Devem usar vestido e saia abaixo dos joelhos não transparentes, com mangas e sem decote. Os homens devem usar calça comprida e camisa com mangas. Durante as cerimônias religiosas é obrigatório uso de véu e mangas compridas”.

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sempre meus deveres, para merecer o reconhecimento dos que sirvo e a recompensa eterna no céu. Santa Zita, ajudai-me. Amém.10

Figura 18 – Santuário da Colina Sagrada Fonte: Santuário da Colina Sagrada, s/d.

Figura 19 – Interior do templo Fonte: Santuário da Colina Sagrada, s/d.

As aparições não foram reconhecidas pelo vaticano, mas encontramos a

reprodução das mensagens de Nossa Senhora na missas da Igreja Matriz e nos seus vitrais,

que ilustram com esplendor as aparições e também pontos importantes da descrição

etnográfica pela polissemia de suas mensagens escrita e imagética.

10 Fonte: http://www.catolicosdobrasil.com.br/oracoes-catolicas/oracao-a-santa-zita/ Consultado em março de 2010.

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Figura 20 – Vitral da Igreja Matriz de Bagre Bonito Foto: Azevedo, P.G., 2012.

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RETORNO AOS FILHOS DE CRIAÇÃO

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Considerações preliminares

Como mencionado, na primeira fase da pesquisa de campo, entre 2006 e 2007, me

tornei tema das conversas de diversas maneiras. Primeiro, apenas a minha presença, de fora,

prolongada nos municípios gerou curiosidades sobre mim e a pesquisa. Depois, minha

circulação entre as casas e os espaços e, sobretudo, meu acesso às histórias de vida e de

família me colocaram na posição de “informante”. Por último, a publicização de algumas

questões abordadas nas entrevistas biográficas gerou curiosidade sobre a vida particular dos

meus interlocutores assim como desconfiança dos meus verdadeiros interesses. O retorno ao

campo, entre julho e setembro de 2012, se deu em uma época delicada para pesquisa;

estávamos em plena campanha eleitoral. Se na primeira fase a pesquisa fora associada a

pesquisa política devido a algumas perguntas que fiz, desta vez, concebi sua desassociação

como um trabalho inicial. Uma vez aceitas minhas explicações, comecei pela investigação

etnográfica dos “indícios”. Evitei conversar com os moradores a respeito dos filhos de criação

que entrevistei e não comentei que novamente os entrevistaria.

Concluída a pesquisa etnográfica, meu esforço consistiu em restabelecer o contato

com os filhos de criação e marcar as entrevistas com o menor intervalo de tempo possível

entre elas. Infelizmente, não consegui prosseguir a pesquisa com todos. João Paulo falecera

em março de 2010. Me reencontrei com Henrique, filho consanguíneo da família de criação,

e pude me inteirar um pouco dos anos finais de João Paulo bem como dos conflitos que sua

morte desencadeou na família. Não consegui conversar com Sebastião Mundinho, que na

primeira fase da pesquisa já tinha problemas com o alcoolismo, nas vezes em que o vi pelas

ruas de Bagre Bonito. Sempre ébrio, quando conseguia andar, era com muita dificuldade. O vi

algumas vezes carregando seu violão, ora cantando ora vociferando com muita salivação. Fui

três vezes à sua casa, de manhã bem cedo, conforme me recomendaram, em todas elas a casa

estava fechada e ninguém atendeu aos meus chamados. Maria e Joana, enquanto concluo a

redação desta tese (2017), estão vivas, lúcidas e na companhia de Vera. Estão lá, minha filha,

as três velhas dentro de casa, informou-me minha tia Janice. Em 2012, contudo, não consegui

autorização de Vera para conversar com as irmãs. Vera havia quebrado a perna em um

acidente doméstico e não estava recebendo visitas. Como na primeira vez, sua presença se

mostrou imprescindível. Quem, primeiramente, me passou essas informações foi a própria

Maria, por telefone, quando liguei para a sua casa. Maria não se lembrou de mim e nem da

pesquisa. Demonstrava pressa para desligar o telefone; ouviu minhas tentativas de

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rememoração sem interesse, concluindo sempre com a frase “lembro não”. Ao perceber que a

enfadava, parei de insistir. Posteriormente, recorri à mediação de minha tia, Janice.

Novamente, ela tentou através do filho de Vera, seu colega de trabalho, mas o mesmo foi

informado.

Em contraposição, outros nomes de filhos de criação foram recomendados para a

pesquisa. Quatro deles me interessaram pelas suas peculiaridades. Rafael, 30 anos, por ser

irmão consanguíneo de Laura; Nega, 28 anos, por ser filha de criação da macumbeira; Seu

José Mário, 70 anos, por ser especial, tem o dom da benzição e a filha de criação de Dona

Fiinha por ter apenas 18 anos. Exceto Rafael, taxista como o pai de criação em Bagre Bonito,

consegui me encontrar com os demais. Encontrar, mas não entrevistar.

Carminha Mendonça, mãe de criação de Nega, não me permitiu conversar com a

filha; nem a sós, nem em sua companhia, embora eu tenha passado a tarde inteira em sua casa,

em Bagre Bonito, com a vã intenção de saber um pouco mais sobre Nega e da sua experiência

como mãe de criação de vários filhos (uma descrição resumida deste encontro é apresentada

no anexo III).

Dona Fiinha também não concordou que eu entrevistasse sua filha, mas pudemos

conversar sobre outras coisas. Sua justificativa para negar a entrevista foi tão insólita quanto

aceitável. No portão de sua casa, ao me apresentar e explicar que fazia uma pesquisa sobre

filhos de criação e que gostaria de entrevistar sua filha, Dona Fiinha se calou e com os olhos

marejados, baixou a cabeça meneando-a negativamente. Sem dizer nada, começou a chorar.

Seu marido, que estava ao lado, sussurrou: a menina não sabe que é filha de criação.

Surpresa com a situação, me desculpei e lhes perguntei como isso era possível, se várias

pessoas de Bagre Bonito haviam me indicado a menina como filha de criação. Solícita e

chorosa, Dona Fiinha explicou: as pessoas chegam a falar com ela, mas eu digo que não. Eu

não quero que ela passe pelo o que passei. Assim descobri que Dona Fiinha também fora

filha de criação e então lhe propus falássemos sobre sua própria experiência, o que foi aceito

com muita gentileza. Sua história de mãe e filha de criação é muito interessante. Dona Fiinha

é enfática em dizer que não reproduziu as desigualdades de tratamento que constituem um

filho de criação porque ama até mais a filha de criação do que os filhos de sangue, mas – de

outra perspectiva, não de retribuição, mas de acordo com seus valores de feminilidade –

socializou a filha de criação para o cuidado da casa e dos pais. Eu quis fazer dela uma

excelente dona de casa, sabe?

Com Seu José Mário, consegui realizar uma entrevista em sua casa, localizada em

uma região rural de Barão de São João Batista. Além da singularidade de benzedor, sua

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história de vida de filho de criação traz outras importantes. Uma delas diz respeito ao seu

nome de família. José Mário, acolhido recém nascido, com apenas dois dias de vida, conta

que possui dois registros: um com o nome da mãe consanguínea e outro com o nome do pai

de criação. Este último fora realizado quando ele estava com aproximadamente 10 anos, em

função de uma ajuda que o governo resolveu dar para quem tivesse sete filhos. Como a

família de criação tinha só seis, seu pai de criação resolveu registrá-lo como filho para obter

o benefício. José Mário, entretanto, nunca teve os mesmos direitos que os filhos

consanguíneos e nem acesso à herança. Outra singularidade interessante diz respeito à

relativização da desigualdade de gênero que registrei entre filhos e filhas de criação. José

Mário foi o único filho de criação que ajudou a cuidar pessoalmente da mãe viúva até sua

morte. Eu era o único que dormia com ela. Depois que o pai morreu, eu fui dormir no quarto dela. Só eu dormia com ela; ela não confiava em mais ninguém. Eu ficava quietinho lá, se ela precisasse de alguma coisa, um copo d’agua, um remédio... [...] Depois que ela morreu, aí eu fui ganhar o mundo. Minha intenção de incluir as entrevistas de Dona Fiinha e de Seu José Mário no

formato das demais foi abandonada em decorrência da limitação de tempo e de espaço.

Apresento a seguir a análise das narrativas dos demais filhos de criação, referentes à segunda

fase da pesquisa, bem como das narrativas dos pais de Laura e de Patrícia, esposa de

Alessandro. Todos os dados informados referem-se a 2012.

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CAPÍTULO 12 – ANITA

O reencontro com Anita foi surpreendente. Fui à sua casa na tarde de 30 de agosto

de 2012, sem antes conversar com ninguém a respeito dela. Chamei ao portão algumas vezes.

Tardou um pouco, uma senhora abriu a porta. Não a reconheci. Embora guardasse traços

semelhantes, o jeito e a aparência não eram os mesmos. A asseada pituca que outrora

envolvia seus cabelos grisalhos, cedeu lugar a um frouxo rabo de cavalo com muitos fios

desprendidos conferindo-lhe um ar desgrenhado. Lenta, lacônica e desinteressada, esta

senhora em nada remetia àquela alegre e expansiva que guardei na memória. Ela também não

me reconheceu. Recorri ao meu nome de família e a algumas palavras reminiscentes para me

reapresentar, ela ouviu com indiferença. Talvez o tempo transcorrido desde o nosso último

encontro, cinco anos e oito meses, tenha borrado a nossa memória ou por não ter me

reconhecido e eu não estar acompanhada de alguém conhecido este seria o comportamento

usual ou então estaria dormindo e eu, inadvertidamente, a despertei do melhor sono

vespertino... Não sei. Me senti inconveniente, incomodada por incomodá-la, propondo-lhe

uma conversa sobre a sua vida em sua casa. Mas o fiz e Anita aceitou sem resistência e

também sem interesse. Me deixou livre para escolher qualquer dia depois do almoço.

Marcamos para o dia seguinte.

Cheguei às 14 horas, nem muito tarde, nem muito cedo, tendo em vista que o

almoço, no mais tardar, acontece às 11 horas. O horário foi pensado com cuidado para não

atrapalhar sua sesta, pois fiquei com a impressão de que era um hábito apreciado. Logo na

chegada, encontrei-a descendo o beco que conduz à sua casa. Desci atrás. Anita segurava uma

sacola em cada mão com as compras que fizera no mercadinho da praça. Novamente fiquei

em dúvida se era ela. Embora o modo de se vestir fosse o mesmo, isto é, camiseta e saia

abaixo dos joelhos, ela andava mais lentamente; os chinelos pareciam pesar e passar a

insegurança de um escorregão. Me chamou atenção as pernas arqueadas e a pele fina

transparecendo mais anos do que realmente tinham. Lembrei-me das duas irmãs de Anita,

talvez uma delas estivesse morando com ela ou então poderia ser uma vizinha da casa ao

lado... Mais conjecturas enquanto observava aquele corpo. Retive o passo a fim de ver onde

aquela senhora entraria. No momento em que se direcionou ao portão de Anita, já ajeitando as

chaves, resolvi me aproximar. Ainda distante, fiz barulho com os pés para que ela percebesse

minha presença e não se assustasse. Ela olhou para trás apenas para se certificar do barulho

que ouvira e continuou andando. Mais próximo, chamei-a pelo nome, com um tom suave de

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cumprimento duvidoso:

P: Dona Anita? [Anita se virou, disse “ei” e voltou a procurar determinada chave no molho que tinha em mãos. Sem me dirigir o olhar, continuou:] Acabei de pensar: Ih! Ela não vai vim nada... Só se veio e eu não estava aqui. Eu saí era uma e quarenta [13:40]. P: Não, vim sim! Eu não quis chegar muito cedo para dar tempo da senhora descansar um pouquinho depois do almoço. [Pausa] A senhora se lembrou de mim? Não lembrei não. Entramos. Nossa distância foi demarcada logo na entrada, quando me convidou a

passar pela porta da sala, diferente da primeira vez, em que acompanhada de minha mãe, sua

conhecida, fomos direto à cozinha. Sua casa também estava diferente, menos e outros móveis.

A porta entreaberta do quarto da sala mostrava apenas uma cama de solteiro pelada de

colchão. Mais tarde, Anita me explicou que perdeu quase tudo em uma enchente que atingira

a parte baixa do município poucos meses antes. Sua casa, por ser abaixo do nível da rua, foi

bastante prejudicada. Novamente, contou com a ajuda de conhecidos na reconstituição de sua

casa, através de doação de móveis usados e limpeza do que restou. Ajuda cuja retribuição ela

entende como dever obrigação.

Cumprido o protocolo para visitas de fora, fomos para a cozinha. Havia, contudo,

algo que ainda nos distanciava e dificultava qualquer intimidade. Assim como o seu andar, a

sua fala estava lenta, arrastada. Expliquei-lhe outra vez a pesquisa, Anita escutava e anuía,

silenciosamente. As passagens selecionadas de nossa entrevista anterior favoreceram, pouco a

pouco, um clima mais amistoso. A comprovação de que nos conhecíamos e que, de fato, ela

havia me contado detalhes de sua trajetória a deixou visivelmente mais confiante e

confortável, mas ainda indiferente, longe, alheia... desanimada. Segui a cronologia biográfica

também na leitura desses excertos. A maioria deles foi validada, laconicamente. A minoria

não validada, também sem explicações ou pelo total silêncio, tomou grandes proporções ao

subverter o que fora dito. O silêncio como narrativa se destacou aqui de três modos distintos:

o primeiro, e predominante, ligado ao sofrimento, expressa algo doloroso e impronunciável; o

segundo, como narrativa reflexiva, conjecturas entrecortadas de longas pausas, traz à tona a

angústia sobre algo incompreendido; e o terceiro, como negação, contradiz pontos

importantes da primeira fase da pesquisa ou desaprova determinadas posturas adotadas à

época (como as estratégias para a obtenção da aposentadoria sem o conhecimento de

Conceição). De todo modo, o silêncio agora faz parte da vida de Anita. Tentei explorá-lo aqui

como em nenhuma outra entrevista. Me dei conta de que para compreendê-lo era preciso mais

do que respeitá-lo, eu deveria compartilhá-lo. E assim o fiz, me calei ante cada resposta

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silenciosa pelo tempo que Anita demonstrasse suficiente. Nos aproximamos no silêncio

compartilhado. Algumas vezes, Anita prolongou seus pensamentos em frases sem início,

como se eu compartilhasse também suas reflexões.

Em nosso contato no dia anterior, me chamou atenção a não remissão a Deus de

cada ato, palavra ou pensamento tal como fazia, habitualmente, anos atrás. O mesmo

aconteceu nesta entrevista; certo tempo já havia transcorrido e nada de Deus, de passagens

bíblicas complementando suas falas. Surpresa maior foi quando retomei o assunto de sua

alfabetização depois de grande; nem sombra da resposta anterior (Deus me ensinou). Insisti: e

a bíblia? A Igreja? Anita está em falta com elas, anda desanimada. As cores do seu retrato

anterior esmaeceram precocemente, impedindo reconhecê-la pelo o que ficou. Outro se

esboçava à maneira de um Picasso; os elementos estavam todos lá, mas deslocados. Anita

parecia distante até de sua íntima relação com o sagrado, outrora tão essencial. A única coisa

que lhe tocava era a posição de ex-como se fosse da família de Conceição, cujas passagens

são de uma sensibilidade extrema. O ritmo não se altera, mas a indiferença é substituída pela

comoção; Anita não consegue falar, nem se calar sem chorar. Demostra um sofrimento agudo

com o rompimento, com a separação da família. Parece que nem o tempo, a Igreja ou o

reconhecimento social foram suficientes para preencher o vazio deixado. Ela está doente e

sabe por que adoeceu. Logo sua apatia se explicava.

Aproximadamente um ano após a primeira entrevista, a dor na coluna, da qual

havia se queixado, se agravou. Somado a isso, um quadro de hipertensão arterial obrigaram-

lhe a mudar sua rotina de trabalho. Anita não poderia mais trabalhar como faxineira, nem

como lavadeira e nem ficar abaixada esfregando o chão e os bancos da igreja. Evidentemente,

foi substituída. Os problemas começaram. Não havia mais as conversas com Seu Chico,

senhor viúvo e também sozinho, para quem ela trabalhava todas as manhãs como empregada

doméstica e com quem compartilhava o almoço; acabou também a socialização do café com

prosa na casa da família onde lavava roupas no período da tarde; a relação com a Igreja

também mudou, Anita não participava mais das conversas animadas com as demais

voluntárias da limpeza da igreja e nem do vai e vem dos missionários levando a palavra de

Deus. Até Ele parece tê-la substituído e não lhe incumbiu mais de recados.

Como vimos anteriormente, a conversão religiosa e a relação com a Igreja

mudaram os rumos da vida de Anita; além de fortalecer sua identidade de pessoa boa e de

elevar sua autoestima, criaram o sentimento de igualdade, de fazer parte de uma família de

modo horizontal, em que todos são irmãos, a ponto de colocar em segundo plano a relação

verticalizada com aqueles a quem ela servia e considerava como se fosse sua família. Uma

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vez que o sentimento de “familiarização” (Comerford) com a Igreja se abalou, outro mais

forte e devastador emergiu: o de “desfamiliarização” (Comerford); não da Igreja, mas de seus

antigos patrões/família, o que desfaz a tautologia. Na medida em que a efervescência religiosa

arrefecia, processos reflexivos reelaboravam o seu passado, sobretudo a relação com a família

de Conceição. Não é por acaso que as contradições suscitadas pela comparação das duas

etapas da pesquisa dizem respeito, exclusivamente, a esses dois contextos. Não existe mais o

filtro religioso distorcendo o passado e o presente na incessante busca de adequação. Nesta

entrevista, fica claro a ruminação do passado outrora tão bem resolvido religiosamente. A

distância da Igreja pôs a nu o desprezo dos ex-patrões/família e a desvalorização de uma vida

inteira de dedicação exclusiva. Sozinha, Anita começou a sentir tudo isso em profundidade.

Passou a lamentar a vida perdida, mas reconhece que não saberia fazer diferente; se pudesse

voltar no tempo, iria para a mesma casa. Os meninos dessa casa são como se fossem seus

filhos1, eu vi gerar, vi nascer e criei, é mesmo difícil não dar a vida por eles. Mais difícil

ainda é não poder participar de suas vidas (aniversários, formaturas, casamentos...) Anita foi

ficando cada vez mais solitária e triste. Diagnóstico médico: depressão. Concomitantemente,

começou a ter crises de alucinação, gente invadindo sua solidão. Subitamente, seu dom se

transformava em doença de nome difícil, ninguém sabe falar. Sabem que ela não está batendo

bem da cabeça, que está meio doida ou que está com problema na mente, eufemismo dos que

lhe querem bem.

Há quatro anos Anita é controlada por amiúdes consultas ao psiquiatra, pesados

medicamentos para a mente, para depressão e calmantes para dormir. Vizinhos, algumas

conhecidas e Larissa, esposa de um dos filhos de Conceição, zelam por ela nos momentos

difíceis. Contudo, é a prefeitura quem cuida de sua saúde e de seu bem estar de modo mais

comprometido. Os agentes municipais de saúde administram suas consultas médicas na

cidade vizinha e a acompanham. O projeto municipal Terceira Idade lhe trouxe colegas,

momentos de lazer e socialização. Quando está animada, ela participa; gosta de sair à rua, de

conversar com os vizinhos. Mas, ultimamente, até o prazer e a satisfação de cuidar da sua

casa lhe faltam. Preparar sua comida virou um tormento. Com os remédios, foram-se a

tristeza e as alucinações, veio o desânimo.

O dito, o não dito, o dito de outro modo, o contradito e o que os outros disseram

compõem a base deste “retrato sociológico”. A contextualização de sua narrativa é

fundamental para iluminar algumas sombras. Apresentarei continuamente a seguir apenas as 1Nota-se que o dilema que permeia este trabalho não é “ser ou não ser”, mas “ser como se fosse ou não ser como se fosse”.

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passagens que atualizam sua narrativa ou que tratam do seu momento atual. Diante do

exposto, desnecessário interrupções explicativas. A sequência narrativa, como sempre, está

preservada.

12.1 – Aprendi a ler no MOBRAL [...] P: Aí uma outra frase que a senhora me disse foi assim: “Eu só fui registrada em 1970. Até 1970 eu não existia, né? Porque só existe quem é registrado”. Lembra? É, foi. Eu mesma registrei eu em 1970. P: E quando a senhora registrou, como é que ficou seu nome? A senhora registrou com o nome do seu pai e da sua mãe? Só o da mamãe, né? Porque eles eram casados só na igreja. Não tenho nome de pai não. [...] P: Entendi. Então nem ela assinava o nome do seu pai. É. P: Até porque ela não sabia escrever, né? A senhora me disse que ela não sabia ler nem escrever. É verdade. P: E que a senhora foi aprender depois de grande. É. Fui no MOBRAL [Movimento Brasileiro de Alfabetização] [Pausa] Aí o pouquinho que eu sei, aprendi no MOBRAL. [Silêncio] P: É? É, o pouquinho que eu sei. Não sei muito não, mas tem hora que dá pra mim quebrar o galho. Tem conta que eu sei fazer. Conta de somar eu sei. Só não sei de multiplicar e de dividir, mas de somar eu sei. P: E ler? Ler, alguma coisa eu leio. [Silêncio] P: Hum... [Silêncio] O que a senhora mais gosta de ler? [Pausa] Ah... [sem empolgação] eu leio mais é a bíblia, né? P: A bíblia? É. P: A senhora lê a bíblia todos os dias? Não. Eu tô em falta com a bíblia... tem muitos dias que eu não pego na bíblia pra ler. [risos] Eu tenho andado desanimada... não sei por que não. P: É? É, não sei por que não. P: Cansaço, será? Deve ser cansaço da idade, né? Sessenta e nove... Oh! Sessenta e quatro anos. [...]

12.2 – Continuo tendo como se fosse minha família P: A senhora me disse outra coisa que vou ler: “Na Conceição eu fiquei minha vida toda. Saí agora, tem menos de um ano. Eles eram a minha família mesmo. Eu tinha eles como minha família de verdade”. É verdade. [Pausa] Eu tenho. Continuo tendo. P: Eu ia perguntar se continua tendo. Continuo tendo esse sentimento deles como se fosse minha família. [Silêncio] P: [Silêncio] Anita: Sabe? P: E a senhora voltou a ter contato com eles? Não. A Conceição não conversa comigo.

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P: Está a mesma coisa? Tá, a mesma coisa. Nem ela, nem o Altair. Os meninos conversam. Na casa dos meninos eu vou. Eu vou na casa dos meninos, mas na casa dela eu não posso ir não. [Anita começa a chorar. Silêncio] P: [Silêncio] [Choro] P: É triste, dona Anita, tantos anos juntos, mas não fica assim não. [Silêncio] P: [Silêncio] Anita: [ainda chorando] O menino, o meu neto [filho de Rodrigo], me falou assim: “Por que você não vai lá na vó [Conceição]? A vó não deixa você entrar lá na casa dela não?” Eu falei: “Não deixa não.” [continua chorando] P: [Silêncio] Anita: [chorando] Eles perguntaram. [Silêncio] P: [Silêncio] Anita: Eles perguntaram. P: Os meninos devem considerar a senhora igual a uma mãe, né? [Limpando o choro:] Consideram. [Silêncio] P: Os netinhos também, né? [Ainda chorando:] Onde eu vou, eu lembro dos meninos e trago uma lembrancinha. Eu fui em Raposo, a Terceira Idade [programa municipal] foi em Raposo... [limpa o choro] aí eu lembrei. Eu falei: eu vou levar uma lembrancinha pra cada um dos menininhos. De primeiro eu trazia para os meninos grandes, agora que tem pequeno, eu trago para os pequenos e os grande, não. Eu falei: eu vou levar uma lembrancinha. Eu trouxe uma lembrancinha pra cada um. Até para o que vai nascer, eu trouxe. Uma lembrancinha... [pausa. Anita não chora mais]. [...]

12.3 – Novos contextos de socialização P: Foi passeio turístico, uma coisa assim? É, foi. P: Que gostoso! A senhora está participando agora dessas coisas? Eu participo da Terceira Idade. P: Naquela época que eu vim a senhora já participava? Participava não. [Silêncio] Eu participo da Terceira Idade. Essa semana... Essa semana passada agora eu esqueci o dia de ir. Nem fui! Esqueci! [Pausa] Acho que estava sentindo muito cansada de ter chegado... de ter ido lá no sábado à noite e esqueci da terça-feira. P: A senhora chegou de Raposo agora? Foi agora, vai fazer oito dias amanhã. [...] Eu levei cem reais. Eu falei: “Ah... vou levar cem reais porque às vezes eu quero comprar alguma coisa... Não vou sem dinheiro não.” Levei cento e dez reais. [Pausa] Foi bom eu ter levado porque... eu via os ‘trem’ [as coisas], eu fiquei doida... eu fiquei alucinada! P: É?! Eu falei assim: eu vou levar para os meninos. Aí comprei. [...] P: E para a senhora? Pra mim não comprei nada não. P: A senhora gosta de dar presentes então? Gosto de dar aos meninos, né? [...] 12.4 – Aposentadoria: outra versão P: A senhora falou assim: “Eles nunca me pagaram salário e eu nunca pedi nada para eles.” Verdade. [Silêncio]. Quando eles pagou o salário eu, eu já estava quase aposentando. Foi

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em 1904 [2004]. [Silêncio] P: [Silêncio] Anita: ... que eles foram pagar um salário eu. P: A senhora disse que sete meses depois que a senhora recebeu a aposentadoria, teve a briga lá... É... que ela mandou eu embora. Eu não briguei com ela, nem nunca. P: Tem uma parte que a senhora disse assim: “Saí de lá porque ela brigou comigo. Ela entrou gritando, brigando comigo no quarto [Anita me interrompe] Foi. [Silêncio] P: [continuo a leitura] Ela estava gritando, os vizinhos até ouviram.” É. [Pausa] Verdade. P: E depois desse dia a senhora não conversou mais com ela? Conversei... aí conversei com ela ainda naquele período. Depois ela parou de conversar comigo. [Silêncio] P: E a senhora sabe por que ela brigou, gritou desse jeito com a senhora? Não, eu não sei por quê. [Pausa] Ela não falou por quê! P: Ela nunca falou? Não, nunca falou. [Pausa] Ela entrou gritando... [Silêncio] P: [Silêncio] Será que é porque ela não queria que a senhora se aposentasse? Não, ela estava doida que eu aposentasse! P: É? Estava. [Silêncio] P: [Silêncio] Anita: Tem hora que eu fico pensando assim: às vezes ela estava doida pra mim aposentar pra ela poder mandar eu embora, né? [Silêncio] P: Será? Uai... [Silêncio] P: Ou será que era para a senhora ter seu dinheirinho? Sei lá, menina... [Silêncio] P: [Silêncio] Anita: É... Esse pedaço é uma coisa... [Silêncio] É uma coisa que vai e volta na cabeça. De vez em quando eu falo assim: quer saber de uma coisa? Vou tirar isso da cabeça! Deixa pra lá. Já passou. Né? [Silêncio] P: [Silêncio] Anita: Ela encontra comigo é a mesma coisa de estar passando perto de uma pessoa estranha. P: Não cumprimenta? Não! P: Nem, pelo menos, “oi”, “bom dia”? Não, não. É a mesma coisa de... de... eu passar perto de você e não te gritar [chamar pelo nome]. [Silêncio] P: Muito estranho, né? [Silêncio] Eu entreguei pra Deus. Deus toma conta. [Silêncio] P: A senhora me disse da outra vez que foi uma conhecida que trabalha lá no INPS que te ajudou... É! A Margarida. P: Isso. Porque a senhora não podia receber a carta do INPS. [Silêncio] P: Né? É. [Silêncio] P: [Silêncio] Anita: [Silêncio]

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12.5 – Já tem bem tempo que eu não levo recado P: Aí uma outra coisa que a senhora me disse: “Deus já me usou para ajudar a curar. Um dia, ele me chamou para levar um recado para uma moça daqui que estava com câncer.” A senhora lembra que me contou isso? Lembro não. P: Uma moça acho que da rua Nova... não sei... Ah... Tô... tô lembrada! P: Eu não me lembro do nome dela... Eva. P: Eva, acho que era isso mesmo. É. [Silêncio] P: A senhora falou que Deus chamou a senhora... [Silêncio] P: Que mandou ler para ela um versículo... [Silêncio] P: Acho que um versículo, um capítulo de João... uma coisa assim. Não mandou ler pra ela não, mas não sei se eu li João... [Silêncio] P: E a senhora continua recebendo recado? Graças a Deus. [Silêncio] P: É? [Silêncio] P: Quantas pessoas a senhora já foi levar recado? É muita. [Silêncio] P: É? É. P: E como é que acontece isso? Como que Deus chega até a senhora? Chega a mim... deitada, né? [Silêncio] P: Sempre a senhora está deitada? Sempre eu tô deitada. [Silêncio] P: E como é que é? [Silêncio] É... Mostra a pessoa pra mim e fala: “Vai lá.” [Silêncio] P: [Silêncio] Assim, sabe? Mostra a pessoa pra mim... no sonho, ali direitinho... e fala: “Vai lá, faz isso e isso e isso.” É a mesma coisa de eu estar conversando com você. [Silêncio] P: Entendi. [Silêncio] E quando a senhora chega, a senhora é bem recebida? Sou! [Silêncio] P: E a senhora fala o quê? “Vim trazer... um recado”? É, falo. Falo: “Vim trazer um recado de Deus pro cê. Cê pode até não acreditar, mas... cê ouve o que eu vou falar com cê porque... é Deus que mandou.” [Pausa] A Eva acreditava. [...] P: Teve outra pessoa que a senhora recebeu recado assim pra levar? Ah... num alembro não. Já tem bem tempo que eu não levo recado agora. P: É? É. Tenho sonhado... Tem mostrado eu [a mim] no sonho, mas não tem mandado eu dar recado não. P: A senhora sonha muito? Não. [Pausa] Eu tomo calmante é pra apagar mesmo, né?

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12.6 – Eu adoeci por causa daquele problema da família... P: A senhora toma calmante? Tomo calmante. P: Por quê? Senão a senhora não consegue dormir? Senão não consigo dormir. Eu faço tratamento pra mente. P: Hum... entendi. [Silêncio] Aí eu tomo calmante. P: Quem passou, o médico? É, o médico. É o doutor... Como é que chama, gente?! Ah! Fugiu da minha cabeça agora. P: Quando a senhora começou esse tratamento? Ah, já tem uns três anos ou mais. P: Naquela época que eu vim, então, a senhora não... Não estava não. Depois daquela época pra cá que eu comecei a fazer tratamento. P: E por que a senhora começou? Eu acho que eu adoeci foi por causa daquele problema. [Silêncio] P: Eu não estava sabendo que a senhora tinha adoecido. É, adoeci. Foi por causa daquele problema da família lá [a briga com Conceição]. [Silêncio] Eu acho. P: Eu vim aqui em janeiro de 2007, a senhora lembra quando a senhora adoeceu? Ah... deve ter sido 2008. P: O que a senhora teve? Ih... Me dava... Mostrava gente assim na minha casa... [Pausa] Mostrava gente descendo por cima da minha casa... fazia zoeira [barulho] pra mim... sabe? Tinha um vizinho aqui, que a parede é de meia, ele fazia zoeira pra mim não dormir. Ele fazia. Isso aí ele fazia de propósito! Ele fazia de propósito pra mim não dormir. [Pausa] E eu fui perdendo o sono e fui ficando agitada... [Pausa] Aí também, agora ele saiu daí também porque eu falei: “Você não vai morar aí mais não, porque você é inquilino e eu sou dona. Agora você vai sair daí.” Peguei e falei com o Altair [esposo da Conceição, dono da casa]. P: Ah, a senhora chegou a falar com o Altair? Cheguei! Falei com Altair: “Olha, escuta aqui: aquele homem não pode ficar lá não, ele não deixa eu dormir não, tá?! E eu tenho mais direito de que ele porque a casa dele é aluguel, a minha, é minha. Se eu for na justiça, eu ganho.” [Silêncio] P: E o Altair conversa normal com a senhora? Não, conversa não. Não. [...] P: E por que ele [vizinho] fazia isso? Hum! [Silêncio] É ruindade, menina! É ruindade! [Pausa] [...] P: E o que ele fazia que não deixava a senhora dormir? Ele batia... punha muitos litro de plástico [garrafas pet] dentro do saco, chutava ele na parede de cá. [Pausa] E não importava com o menino dele lá não. Falei com ele! Um dia vigiei ele: ele saiu com o saco debaixo do braço pra jogar fora. Eu acompanhei ele. Era cinco horas. P: Da manhã? É. Eu acompanhei ele. P: A senhora estava acordada? Estava acordada, estava do lado de fora ali... eu acompanhei ele. Aí eu falei com ele: “É um absurdo isso, rapaz! Cê não dorme, seu filho não dorme também não?” [Silêncio] P: E depois disso ele parou? Parou nada. Fazia a mesma coisa, foi até ele ir embora. P: E os outros barulhos que a senhora escutava? Como é que eram? Depois que começou a tratar com o tratamento acabou. P: Entendi. Mas antes era que barulho? Antes do tratamento. Barulho de gente descendo... descendo... [Pausa] P: Tipo um ladrão?

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É, tipo ladrão. Ali em cima do banheiro... Eu sou assustada com esse banheiro até hoje! Eu tenho que fechar a porta dele pra mim dormir, senão não durmo. [Pausa] Aí o médico doutor falou comigo: “A senhora tá vendo as coisa?” Eu falei: “Ah, doutor, eu tô vendo as coisa... Mas esse rapaz não deixa eu dormir.” [Pausa] [...] P: Aí a senhora foi procurar um médico por causa disso? Aí minhas colega viu que eu estava muito agitada... Porque ele mudou e voltou pra casa sozinho. [Pausa] Pra ficar fazendo medo em mim. Batia na parede... [Anita bate várias vezes na mesa simulando o barulho] a noite inteira... batendo na parede. [Pausa] Pra mim não dormir. [Silêncio] Eu falei assim: é... ele tá aqui dentro! Aí, no outro dia, era domingo, as meninas pegou e levou eu no posto. [...] Aí elas levaram eu lá no posto, aplicaram a injeção e eu apaguei. P: Lá no posto mesmo? Não, eu apaguei aqui. Apaguei aqui, devia ser umas cinco horas [17h]. Eu só fui acordar no outro dia. Do mesmo jeito que eu deitei, eu estava. [...] As meninas fecharam a casa e entregaram a chave para a vizinha que tinha aqui. P: Essas meninas são da Igreja? Não, filhas do Manuel Toledo. P: E depois que passou o efeito? Eu acordei só no outro dia. Acordei assustada, a roupa que eu estava... Aí elas levaram eu no médico. [Pausa] Eu devo muita obrigação elas, essas meninas. Elas me levaram eu no médico. [...] P: Aí, a partir daquela data, a senhora começou a tomar o calmante? Comecei a tomar remédio. Tomo dois calmantes. P: Toda noite? Toda noite. P: Se a senhora parar de tomar, o que acontece? Pode voltar, né? [Silêncio] Uma vez voltou. Ele cortou o remédio... assim, ele diminuiu o remédio; mandou eu tomar um só... do comprimido que toma dois, de duas miligramas, mandou tomar um só. Eu obedeci ele, né? Mas eu fiquei ruim, menina! Eu acordei de noite... acordei de madrugada sozinha... Acordei agitadinhazinha... com um homem... Sabe? Naquele sonho, aquele homem descendo aqui na porta da cozinha... Eu falei: Uai! Aqui não tem jeito de descer, na porta da cozinha não tem jeito de descer. [...] E eu agitada... gritava... [Pausa] Aí tinha um vizinho meu ali, de parede de meia comigo ali, liguei pra ele e falei com ele assim: “Olha se tem alguém aqui na porta da sala pra mim, porque tá um barulho...” Ele falou comigo: “Pode ficar tranquila que eu vou olhar, Anita, se tiver alguém eu mando embora.” Eu acho que ele não olhou nada, sabe? P: Isso era de madrugada? Era de madrugada. [...] Aí no outro dia a Larissa [esposa do Leonardo, filho da Conceição] levou eu no médico. Eu estava com aquela tristeza... sabe? Aquela tristeza... Aí a Larissa pegou... Eu não sei como é que ela arrumou, não! Nem sei como é que ela arrumou, que ela descobriu que eu estava passando mal. [...] Aí ela pegou e levou eu no médico. Levou eu no médico, arrumaram o remédio no mesmo dia. Conseguiram o remédio no mesmo dia e eu comecei a tomar. [...] P: E ele [médico] deu um nome pra isso? Ele é médico disso, né? P: É psiquiatra? É. Dr. Michel Dias.2 P: Ele falou o que que é isso, se é alguma doença...? É uma doença! Ele falou o nome, mas eu esqueci. P: Ah... [Silêncio] [Silêncio] P: É só tomar o remédio que controla?

2 Nome real.

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É, tem que tomar para controlar. [Silêncio] P: Esquizofrenia? Será? Não sei... [Silêncio] P: É só esse remédio que a senhora toma? Eu tomo três qualidades de remédio de manhã, três à noite. P: De manhã você toma o quê? De pressão e dois pra controle da mente. [Pausa] Pra mim não ficar triste. [Silêncio] De cinquenta miligramas. P: Tipo depressão? É, depressão. P: A senhora teve depressão? É. P: Essa fase de depressão foi quando? [Silêncio] Ah... cê sabe que eu não sei! [...] P: Então de manhã a senhora toma o remédio da pressão e para a mente? É. P: E à noite? À noite eu tomo o calmante... Resperidona [Risperidona] e Prementazina [Prometazina] e... qual o outro? Ah! Laurazepam [Lorazepam]. P: Esse para a mente chama como? Ah... o pra mente eu não sei como é que ele chama não. [Pausa] Satalopam, Sata... Satalopam [Citalopram]. P: Esse é o pra mente? É, pra mente. Tomo de manhã. [...] Eu estava muito triste porque eu estava... muito calada, muito quieta... que rangia até isso aqui assim [mandíbula] doía. [...] P: E o outro, da pressão, é qual? Da pressão é... Está ali ó: [aponta para um conjunto de remédios em cima da geladeira. Leio e escrevo os nomes]. P: Ca... Captopril! P: E a senhora vai ao médico com que frequência? Aí ele que marca, né? Setembro agora eu tenho que ir. P: Mais ou menos o que, de três em três meses? É, de três em três meses... no máximo. No máximo de três em três meses. P: É sempre com o mesmo médico? É o mesmo médico. P: Ele atende aqui no posto? Não! Ele é pagado [particular], lá em Ubá! P: Ah, é consultório? É consultório. Lá em Ubá. Eu tenho que ir lá. P: É a senhora que paga? Eu que pago! Cento e cinquenta [reais]. P: E quem leva a senhora lá em Ubá? É... a prefeitura manda... o posto manda levar. Agora chegou a ter um ônibus pra levar. Eles leva na porta do consultório. [...]

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12.7 – Trabalho: agora eu pago os outros pra fazer pra mim P: E a senhora continua trabalhando ainda para os outros? Não! Não! Agora eu pago os outros pra fazer pra mim. P: Porque eu lembro que naquela época a senhora trabalhava lavando roupa na casa de duas pessoas, né? É. P: Então a senhora não vai mais? Não, faço mais isso não. Agora eu pago gente pra limpar, pra arrumar minha casa pra mim. P: E a pessoa vem aqui com que frequência? Uma vez por semana? Uma vez no mês. Uma vez por semana não dá não porque é quarenta reais que ela cobra. [...] P: Lavar a roupa é a senhora que lava? Lavo. P: E a comida, a senhora que faz? Eu que faço. [Pausa] Eu peço a Deus [para] me dar força pra mim fazer. [Silêncio]

12.8 – Igreja: ando desanimada [...] P: E nos fins de semana, o que a senhora gosta de fazer? Eu fico quieta em casa, boba! Não sou de sair não. [Silêncio] P: A senhora ainda vai à igreja? Vou. Hoje é dia de ir. P: É? Toda sexta-feira a senhora vai? Toda sexta. [Pausa] Já tem duas sextas que eu não vou. Hoje eu vou, se Deus quiser. P: Por que a senhora não foi nas últimas sextas-feiras? Tava desanimada... [Silêncio] [...] P: E a senhora trabalha lá na igreja ainda? [Silêncio] P: A senhora naquela época falou que ajudava muito, ajudava arrumar o templo... É. [Pausa]. Não, não trabalho assim mais não. P: Agora a senhora só participa então? É. P: O pastor lá é o mesmo? É. P: Aquele que te ajudou muito, que a mulher dele é advogada e falou que a senhora tinha direitos...? [Silêncio] Precisou eu ir no advogado. P: É, a senhora contou. Mas a esposa do pastor que te ajudou também era advogada, né? Não, não era advogada não. P: Ah... Então entendi errado... Entendi que ela era advogada e falou que a senhora tinha direitos. Ela falou que eu tinha direito, mas não era advogada não. P: Entendi. São eles ainda, os pastores lá da igreja? É. P: E eles são seus amigos? [Silêncio] P: [Silêncio] P: A senhora se dá bem com o pessoal lá da Igreja? Se dou. [Silêncio] P: A senhora tem muitos amigos lá da Igreja? Tenho, tenho.

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P: Ainda recebe aquele pessoal que vem de fora? Para as festas da Igreja? Recebo! De vez em quando vem... P: Eles ficam aqui na sua casa? Não. Minha casa entrou enchente. P: Entrou? Entrou, minha fia! Entrou enchente e molhou... jogou essa geladeira no chão... a água ficou dessa altura aqui na parede [aproximadamente 80 cm]. [...] P: Então é por isso que a senhora não recebe mais o pessoal da igreja? Não, recebo! Só que pra dormir, não, porque molhou meus colchão. [Pausa] [...] [...] P: A senhora ainda leva os recados igual a senhora fazia antes? [Silêncio] A senhora disse que ajudou muita gente... [Silêncio] A senhora ainda faz isso? Não. P: A senhora afastou um pouquinho da Igreja? Não afastei não, boba! Eu vou na Igreja, só que é... tem outras pessoas no meu lugar, né? P: Ah, eles colocaram outras pessoas? Outras pessoas no meu lugar. [Pausa] P: Entendi. Eu não achei ruim não porque eu tô cansada mesmo, aí a hora... o dia que eu não quero ir, não precisa de eu ir. [...]

12.9 – Eu devia ter aproveitado mais P: O que a senhora mais gosta de fazer hoje? [Pausa] Andar. [risos] Andar... P: E o que a senhora menos gosta de fazer? Ter que fazer comida, né? Eu falo: “Nosso Deus! Não queria fazer...” Mas tem que fazer, né? [...] P: A senhora se arrepende de alguma coisa que a senhora não fez? Se pudesse voltar no tempo... Arrependo... [Silêncio] que eu não fiz e devia ter feito. [Silêncio] P: Do que a senhora se arrepende? [Silêncio] Eu devia ter aproveitado mais... a vida, né? Fiquei com os meninos como se fosse filho... aí não saía. [Silêncio] Podia ter saído mais, né? Aí não saía. E acabou, no final das contas, eles não deu valor. Os pais não deu valor, né? [Silêncio] Igual o Lucas: o Lucas formou, eu não fui; o Lucas casou, eu não fui porque eles não me chamou de jeito nenhum. O pai não deixou. Eu não fui. [Silêncio] P: Então se a senhora pudesse voltar no tempo, a senhora faria diferente? Ah, faria diferente. [Silêncio] P: A senhora ia sair mais? Ia sair mais... Aproveitar mais, né? P: A senhora teria se casado? Não, casada eu não penso não. P: Mas aí, por exemplo, se naquela época a senhora falasse: “Agora eu vou sair, vou passear”. A Conceição deixava? Não deixava não porque estava tudo nas minhas costas, né? P: Então como a senhora ia fazer diferente? É, não tinha jeito. [Silêncio] Eu fui em São Paulo quando eu morava lá... Fui em São Paulo, fiquei quatro dias. Ela estava de férias, ela falou: “Pode ir, Anita.” Quando eu cheguei, ela estava com o tanque cheio de roupa, almoço pra fazer... Aí eu falei com ela... (eu cansada, doze horas de viagem, não é mole não! Sem dormir... é difícil eu dormir na viagem), aí tomei banho e falei com ela assim: “Você faz o almoço e eu vou descer, vou mexer na roupa, eu tô muito casada.” Ela falou: “Deixa, boba! Você está cansada, vai

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deitar.” Eu falei: “Não, você faz almoço, eu vou descer, vou mexer na roupa. Depois do almoço, depois que arrumar a cozinha, eu deito e vou descansar porque eu não dormi.” Aí assim eu fiz; aí desci e fui lavar roupa. Aproveitei e lavei a minha de uma vez também. Pus no varal, subi para almoçar. Almocei e arrumei cozinha, ela ajudou... Aí eu falei com ela: “Conceição, agora eu vou deitar um mucadim [bocadinho] porque eu não aguento, tô tonta!” Ela estava com mingau de milho verde pra fazer. Ela começou fazer, ela me chamou. Eu estava pegando no sono, ela me chamou: “Ah, Anita! Vem cá porque não quer dar certo!” Falei assim: “Vou levantar”. Aí levantei... Fui dormir era horário da noite, sete horas [19h]. Eu já estava deitada e os meninos ia no meu quarto... Eu falava assim: “Eu não tô aguentando eu, gente! Eu não dormi.” [Pausa] A gente quando é mais novo, a gente tem muito sono, né? Eu estava com as pernas inchadas da viagem... Cansada mesmo! [Silêncio] P: Se a senhora tivesse oportunidade, quando a senhora tinha 22 anos (foi quando a senhora foi pra lá, né?), se a senhora tivesse oportunidade de ir para outro lugar, a senhora iria ou repetiria, iria para a mesma casa? Ia para a mesma casa. P: Mesmo se a senhora pudesse voltar no tempo? Ia para a mesma casa.

12.10 – Eu peço a Deus saúde, porque eu não tenho ninguém que me olha P: Como a senhora espera estar daqui a cinco anos? Ah, não sei... Isso aí Deus proverá. P: E como a senhora gostaria de estar? Com saúde. Com saúde, fazendo minha comida e lavando minha roupinha. [Pausa] Né? Isso aí Deus proverá. Eu quero ter muitos anos de vida, mas andando, com saúde. Com saúde... andando. Eu peço a Deus todo dia saúde... [Pausa] para ele não me por numa cadeira de roda não, porque eu não tenho ninguém que me olha [cuida]. Né? Não tenho ninguém que me olha mesmo. [Pausa] Nem jogar eu por cima de uma cama antes de tirar eu. É pra tirar eu depressa. [...] P: Tem alguém aqui em Bagre Bonito que a senhora confia, que a senhora acha que poderia te ajudar se um dia a senhora ficar velhinha e precisar de ajuda? Ah, não sei não... Não sei não. [Silêncio] P: Tem alguém que a senhora admira, que a senhora gosta? [Pausa] É os meninos, né? Os meninos da Conceição. P: E tem alguém que a senhora não gosta? [Pausa] Eles que não gostam de mim, né? [Silêncio] P: Mas a senhora... Eu não, eu gosto. [...]

Bagre Bonito, 31 de agosto de 2012.

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CAPÍTULO 13 – CLARA

Nos reencontramos na noite de 07 de setembro de 2012. A mesma tia que nos

apresentou, Janice, restabeleceu o contato e mais uma vez me acompanhou. Clara e o marido,

Edson, se mudaram para um novo bairro de Barão de São João Batista, ainda pouco habitado

e considerado muito afastado. Embora o bairro não disponha da infraestrutura do anterior

(notadamente comércio e transporte), o casal elogia bastante o novo endereço pela tendência

a valorização. Chegamos por volta das 20 horas. Clara estava sozinha e nos recebeu com

muita simpatia, pedindo para não reparar a bagunça decorrente da reforma em curso. A casa

em que moram é própria, foi comprada com o dinheiro resultante da venda da casa anterior.

Originalmente, ambas tem o mesmo padrão, isto é; sala, dois quartos, banheiro, cozinha e

terreiro, mas esta oferece mais possibilidades de melhorias devido à amplitude da área

externa. Com a reforma, a cozinha foi ampliada, uma varanda lateral e uma área de churrasco

estavam em construção. A casa vai ficar muito boa, bem melhor do que a outra, explicou

Clara, feliz por isso.

Resguardada por um muro e um portão eletrônico em que falta colocar o motor,

da rua não se vê a casa, cuja fachada compõe-se de duas janelas de vidro e uma varanda

lateral, coberta recentemente com telhas ecológicas para servir também como garagem. A

entrada principal se faz pela sala, um cômodo de aproximadamente 7 m2. Possui um sofá “em

L” e um rack com fotografias de sobrinhos. Uma das paredes tem uma textura decorativa feita

por Clara e outra está em obra: tive que quebrar o rodapé, passar um produto por causa da

umidade e embolsar de novo; agora só falta lixar e pintar, arremata Clara, orgulhosa por ter

feito, ela mesma, todo o serviço. Da sala sai o quarto da sala e um pequeno corredor, onde há

mais um quarto, o banheiro e a cozinha recém ampliada.

Fomos recebidas na sala e ficamos aproximadamente uma hora conversando. Sem

qualquer objeção à entrevista, Clara se dispôs a me receber no dia seguinte pela manhã. Não

me estendi na atualização da pesquisa devido à preferência demonstrada pela atualização de

outros assuntos comuns à minha tia, como o trabalho em escolas e algumas novidades, suas e

dos outros. Aproveitei a interação das duas para observar. Clara está muito satisfeita com seu

momento atual. O cerne narrativo é constituído pelo trabalho com gosto; seja no âmbito

doméstico, profissional ou, como descobri no dia seguinte, para os outros. O diálogo,

aparentemente banal, sobre um amigo em comum, em nenhum momento me chamou atenção:

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Clara: Ah, menina! A casa do Leléu é uma fazenda dentro da cidade! É uma casa de fazenda! Janice: É muito grande, Clara? Eu ainda não fui lá não. Clara: Nossa senhora! Lá é enorme, Janice! É bonito demais! Tudo igual de fazenda mesmo, sabe?

13.1 – Uma recepção melhor Na manhã seguinte, um sábado ensolarado de feriado prolongado, cheguei à sua

casa por volta das nove e meia. Clara estava animada com o passeio que faria à tarde, eu,

apreensiva com a recepção da entrevista. Tentando evitar a situação anterior, em que ela me

recebeu com certa frieza, talvez arrependida de ter aceitado “me contar sua vida”, levei, por

delicadeza, uma caixa de sabonetes e associei palavras gentis e genuínas de agradecimento à

sua contribuição para a pesquisa. Além disto, selecionei cuidadosamente as passagens mais

descontraídas e bem humoradas da entrevista anterior para iniciar a nossa conversa, ainda que

tendenciosas. Contudo, a recepção desta vez foi diferente e pressenti que a entrevista seria,

por si, mais acessível. Assim que passei pelo portão de entrada, um de seus dois cachorros,

irrepreensivelmente, pulou em mim e se ocupou de fazer as honras da casa. Clara, nervosa

com a situação, tentava em vão controlá-lo, mas relaxou quando viu que eu não me

importava. Ficamos ali certo tempo, compartilhando experiências sobre cuidados veterinários

e histórias engraçadas de comportamento animal. Rimos juntas, nos aproximamos. Edson, seu

marido, estava de saída e apenas me cumprimentou, pois voltaria logo em seguida. Quando

retornou, a entrevista já havia começado e ele, tal como na primeira entrevista, não nos

incomodou; retirou-se para a cozinha e, como supus pelo barulho, ocupou-se com a

organização do material da reforma e a lavagem das louças. Embora pudesse nos escutar, não

interferiu; a não ser em duas ocasiões, quando falávamos do relacionamento do casal e Clara

aumentou o tom de voz como que invocando a sua confirmação. Nesses momentos, ele veio

até a sala, arrastando os chinelos despojadamente, e fez brevíssimos comentários,

pretensamente humorados. Findada a entrevista, sim, Edson se aproximou disposto a estender

a conversa. Retomando o assunto da reforma, o casal me apresentou o restante da casa para

explicar minuciosamente as transformações e compartilhar seus projetos. Foi uma boa

oportunidade de observação participante – aparentemente como voto de minerva, do qual me

abstive – de uma situação mal resolvida do casal, omitida por Clara, mas cara à pesquisa.

Permaneci aproximadamente duas horas e meia na casa. Logo que Clara me

acomodou na sala, comecei a lhe explicar a razão daquele retorno. Pela sua reação, me dei

conta de que meu argumento central, qual seja, acompanhar as mudanças transcorridas no

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intervalo de cinco anos que separa as etapas da pesquisa, influenciou a sua recepção da

entrevista. Muda tudo! Tudo, tudo! A vida da gente muda todo dia. Ainda assim, de uma

perspectiva geral, senti Clara mais transparente nesta entrevista; falou de si tranquila e

despretensiosamente, sem tentar me convencer de nada.

Para concluir esta introdução, é preciso registrar que também com Clara foi

bastante proveitoso compartilhar sua narrativa passada. Suas palavras em minha boca lhe

soaram estranhamente familiar. [risos] É isso mesmo! Gente! [risos] Eu era assim mesmo! ou

Não, agora eu já mudei. Em momento algum tive a intenção de checar as informações

passadas na primeira entrevista. As contradições de sua narrativa anterior – ou

“contraposições”, como sugere Pina Cabral (2000: 880)1,– a tornaram ainda mais relevante

para a pesquisa. Na verdade, Clara me abriu os olhos para o que os filhos de criação querem

passar de si e por que, ainda que o segundo revele inverídico o primeiro. Esta entrevista pode

ser lida, então, como um prolongamento conclusivo daquela. As contas continuam não

fechando, mesmo quanto à sua idade, ainda uma incógnita. Os 58 anos espontaneamente

declarados aqui continuam contraditos e matematicamente descabidos. Desse modo, as

narrativas desta segunda etapa vêm confirmar as análises feitas e não as próprias narrativas.

13.2 – Novos contextos, velhas disposições: a escola e o cuidado com os alunos

Clara começou a falar de si através dos outros, uma propícia introdução. Mais

uma vez, o que se destaca é o cuidado. Escutei com interesse, fiz perguntas e assim o

ambiente de entrevista se constituía. A vida da gente muda todo dia. P: E às vezes a gente tem uma sensação de que está tudo meio parado... né? É! Eu sinto assim. Igual eu estava falando com o Edson, tem dia que eu esqueço a idade que eu tenho, menina! P: É? Juro pro cê! Eu esqueço! Quando eu lembro assim: Nossa! Quando eu era solteira, que eu fazia isso, fazia aquilo... né? Hoje eu com 58 anos! P: É, passa rápido, né? Demais da conta! P: Eu vou ler umas partes da nossa conversa de cinco anos atrás. Eu perguntei para você assim: “Como é que você era quando criança, Clara?” Você disse: “Ih, eu era encapetadinha!” [Clara me interrompe com uma gargalhada:] Era! P: “Eu era encapetada! Você sabe o que era encapetada? Eu era! Toda a vida! Eu melhorei tem pouco tempo”. [Clara continua rindo com muito entusiasmo]

1Devido ao embate dinâmico de princípios que geram conflitos e não à incoerência, no sentido de falta de harmonia ou de convergência de princípios.

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P: “Eu toda a vida fui festeira, sempre fui alegre, sabe? Todo lugar que eu vou eu sou bem recebida. Se eu não te conheço eu puxo conversa com você, começo a fazer amizade, sabe? Descubro tudo da sua vida! Eu não sou de esquentar a cabeça com nada não!” [Pausa] Você continua assim? [Pausa – o entusiasmo se esvai. Sua fala torna-se bastante comedida.] Não, agora eu já mudei um mucado [bocado]. Agora eu esquento até muito, sabe? Nossa senhora! Agora o negócio é tudo diferente. [Pausa] A vida da gente muda muito. [Pausa] Então com aqueles meninos [alunos] lá da escola... Se você soubesse a preocupação que eu fico com aqueles meninos... Porque eu tenho certeza que nesse final de semana eles não comeram. [Pausa] Então você fica doida, sabe? [...] Nossa senhora! Ali tem gente de todo tipo que você pode imaginar. Então eu fico doida! Essa semana eu tô doidinhazinha porque aí eles ficaram sem comida: sexta, sábado e domingo [em função do feriado]. [...] Só Deus sabe! [...] Eles pedem pra vir morar comigo... Eu falo: “Ih, meu filho... Adotar a tia não pode não, mas você pode ir lá pra casa no final de semana.” [Silêncio] De vez em quando eu pego um, sabe? Trago, dou comida... depois o Edson leva em casa. Passa o dia inteiro comigo! Depois vai embora. P: E a escola funciona até que série? Até a 4a... a 8a... Ah, eu não sei mais! P: E tem quanto tempo que você está lá? Que eu estou nessa escola, dois anos.

Clara fala com orgulho de sua dedicação à escola e do reconhecimento de seus

superiores que a distingue de seus pares justamente pelo seu cuidado dos alunos. Mais uma

vez, trata-se do sentido nativo de cuidado, isto é, como o binômio cuidado/care (GILLIGAN,

1990; TRONTO, 2009; HIRATA & GUIMARÃES, 2012) e cuidado/limpeza e organização.

Tal como nos velhos tempos de filha de criação em Bagre Bonito, a distinção pelo cuidado

tem lhe rendido o predicado de boba e, agora, algumas desavenças com colegas de trabalho.2

Apesar da dor que sente no braço, dor que quase mata, Clara não consegue se afastar da

escola; acredita que falta pouco para se aposentar e ter tempo para se tratar. Depois de se

aposentar, entretanto, não pretende se afastar das crianças, vou ser Amiga da Escola. A dor

também não a impede de assumir todas as tarefas domésticas e outras extra-domésticas, como

os serviços de pedreiro e alguns bicos, conforme Edson revelou mais tarde. P: Então quando acabou o seu período de licença você voltou para o frigorífico? Eu voltei, trabalhei uma semana... trabalhei, não; enrolei, né? Porque eu não quis ficar lá. Aí eu não queria ficar lá e o meu cunhado teve que entrar no meio... pra mandar eu embora. P: E a sua mão melhorou? Melhorou. Agora já é a de cá [a outra mão]! [risos] Mas esse braço eu já tinha que ter operado ele e eu não quis operar. [...] Mas eu também não estou dando confiança não! P: Mas não dói? Dói demais! Esse osso aqui [articulação do ombro] está quase me matando! P: Você não pode fazer uma fisioterapia... ou um tratamento alternativo?

2A narrativa de uma jovem professora que trabalha na mesma escola, a respeito de Clara é bastante dura: “Pra mim, ela [Clara] não vale nada! Metida, mentirosa, puxa-saco da diretora... [...] Ela fala que foi criada, mas uma amiga minha que é de Bagre Bonito disse que é tudo mentira, que ela era empregada dessa família rica.”

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Você sabe por que eu não faço isso? Porque eu não quero parar! Eu não quero parar de trabalhar. P: Mas para fazer uma fisioterapia você teria que parar? A fisioterapia pra valer mesmo, você tem que ficar uns 10 dias à toa, né? P: E no seu trabalho você usa muito a mão? Uso! Porque eu trabalho na cozinha! Com aqueles panelão! P: Nossa... Muita coisa para descascar, picar... É! E tem também a limpeza. A limpeza da cozinha e do refeitório é por minha conta. P: Entendi. Você cozinha e deixa tudo organizado para o dia seguinte. É. Aí se eu tirar licença... Eu estava até lavando uma roupa do Edson ali, eu penduro tudo sem torcer! Vou enxaguando e pondo lá. Seca por lá... Aí eu estava pensando: “Gente! Eu não estou aguentando torcer uma peça de roupa!” Aí eu tô assim: “Eu vou tirar 15 dias...” [Pausa] Porque eu tenho medo de ir no ortopedista e ele vai querer me imobilizar. Ele vai imobilizar minha mão; isso aí eu tenho certeza! Olha, essa dor começou aqui [articulação do ombro], depois passou pra aqui [braço] e agora já está aqui [punho]! P: Mas você vai continuar sentindo dor? Mas só falta dois anos pra mim aposentar, minha filha! [Silêncio] P: Quando você se aposentar, e os meninos? [Pausa] Aí eu vou ser “Amiga da Escola”. Se Deus quiser! Se Deus quiser! Eu já falei com a diretora, falei com a inspetora... [Silêncio] [Aumenta muito a voz:] Cê... cê tá o que, pensando... [o entusiasmo a faz gaguejar] Oh! Todo santo dia, esse horário assim [por volta das 10 horas da manhã], eu já estou dentro da escola! P: Você pega à tarde? Eu trabalho à tarde! Ah, eu vou! [Pausa] Eu brigo com eles, eu xingo [risos]... eles me abraçam... porque teve uma época aí que eu fui para de manhã, sabe? Para... [em tom seco] quebrar o galho de uma lá. Aí eu estava indo de manhã e vinha embora meio dia. Ah, os meninos ficaram nervoso, uê! [Pausa] “Porque eu já estava vindo embora e não tinha bolo gostoso mais, não tinha suco gostoso... A comida não estava mais gostosa...” Eu falei: “Não, a tia Rosana faz a comida boa também.” “Faz não! Faz não! Não é igual a sua não! Pode voltar! Volta para a tarde!” Eu falei [rindo envaidecida]: “Tá, pode deixar que eu volto.” [...] Os lugares que eu passo para trabalhar, todo mundo gosta de mim. Igual essa diretora que está lá agora, ninguém gosta dela... Mas, como eu já trabalhei com ela duas vezes em outra escola, comigo não tem problema nenhum. Não tem problema. Olha, nunca me chamou atenção, tá? Nesses dois anos que eu estou, nunca me chamou atenção não. [Pausa] E ela, às vezes ela, assim, com as outras meninas, ela quebra o pau mesmo. Comigo não tem problema. Mas também, assim: eu tenho hora para entrar, eu não tenho hora para sair não. [Pausa] Igual... foi quinta feira, já estava na hora de eu vir embora, ela pediu para eu fazer um bolo pra ela. P: Como assim? É porque o pessoal de Belo Horizonte ia vir. De educação, né? Aí precisava para servir para eles. Eu falei: “Não tem problema não.” Ela falou: “Não, Clara, amanhã você tira essa meia hora aí sua.” Ih! Não tem problema! Faço na maior boa vontade! A outra fala assim: “Você é muito boba de fazer...” Não! [Pausa] Não é eu que vou bater o bolo, não é eu que vou assar... Vou colocar ele lá, enquanto ele assar, eu vou fazendo outra coisa. [Pausa] Eu sei que semana das criança é os dias que eu saio mais tarde da escola. Costumo sair nove horas [21h] da escola. [...] Igual esse ano, tem muita coisa! Os bolo todo ano é eu que faço; os docinho... sabe? [Com muito prazer:] Isso eu adoro fazer! Adoro fazer! Cozinha é comigo! Eu gosto de cozinha! P: Eu me lembro que você falou que gostava. Então, quer dizer; eu tô num lugar tranquilo, que eu gosto. Tá bom demais! [Pausa] Igual; a inspetora me elogia muito, sabe? Demais da conta! Nó [nossa]! Ela fica boba! Os meninos não obedece ninguém, não obedece professor, não obedece ninguém! Sabe? Eu chego perto deles, vou conversando, abraço... [Pausa] Vou levando: “Vão, filho, vão pra escola! Vão, vão! Vão pra sala. Fica lá, depois cê vem! Vão, vão, vão!” Aí eles vão,

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sabe? [...] Priscila, se você ficar um dia nessa escola, você pira! Nossa senhora! Lá tem de tudo! P: Chama escola “reformatória” 3, né? Não, essa é outra. Na reformatória eu trabalhei também. P: Ah... porque minha tia disse que você estava na reformatória. É, eu trabalhei lá também.

13.3 – Velhos contextos, novas disposições: o cuidado temporário da sogra Embora pontual, isto é, circunscrito ao trabalho no frigorífico, o comentário do

seu retorno ao emprego, trabalhei não; enrolei, né?, carrega elementos importantes de

mudança, contraditórios ao ascetismo no trabalho constituído na infância. Chama atenção

também o modo resoluto com que Clara se posicionou para ser dispensada sem perder seus

direitos trabalhistas.

Outro contexto importante de mudanças é a relação com a família de Edson. Em

nenhum momento Clara tomou para si ou invocou o “capital familiar” do marido, tal como na

entrevista anterior. Pelo contrário; suas respostas foram lacônicas e deixaram claro o

distanciamento. De acordo com alguns conhecidos, logo após a sua saída do frigorífico, ela e

o Edson foram morar com a dona Guiomar, sua sogra, que estava doente e precisando de

cuidado. Embora seja uma informação omitida por Clara, condiz com o período de

desemprego e venda de sua casa, informado por ela, cuja narrativa, aliás, é um tanto vaga.

Contudo, a própria omissão é relevante; contrariando as projeções pelo “habitus de filho de

criação”, Clara não quis se definir como “cuidadora” da sogra e nem assumir que voltou a

morar na casa dos outros. Mais do que isto; ela não quis permanecer nesta situação. O

período de desemprego foi também de tentativas de um novo emprego, de modo que a data da

obtenção, de tão significativa, tornou-se memorável. P: Então, depois que você saiu do frigorífico, você foi trabalhar em escola? Fui! Fui pra escola. Fui primeiro para a reformatória. P: Para entrar é por concurso? Não, não tem concurso. Tem um listão. Eu nem estava no listão. Eu entrei de sorte! Eu entrei em 2009. P: Nossa conversa foi em 2007. De 2007 a 2009 o que você fez, você ficou no frigorífico? Não, eu não fiquei. Eu fiquei no seguro [desemprego]. Aí depois eu fui tentando... tentando escola. P: Entendi... Aí eu peguei. Não esqueço a data: 14 de março de 2009, que eu peguei na reformatória. Quando eu peguei lá, eu tive medo, mas depois você vai acostumando. Porque era a primeira vez que eu trabalhei em escola, já fui entrando... os meninos lá já é mais complicado, né? [...] [...] P: Então você voltou da licença e ficou só mais uma semana [no frigorífico]?

3 Nome fictício análogo ao original.

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Só mais uma semana e pedi para sair. P: Por que você quis sair? Ah... porque aquilo lá não dava, sabe? P: Aí você conversou para ser mandada embora? Ser mandada embora. P: Se você pedisse para sair, você perderia todos os seus direitos, né? Perdia tudo! Só que eu tinha que ficar mais um ano, depois que eu adoeci, lá dentro da firma, né? Então eu tinha que trabalhar mais um ano para depois eles me mandarem embora. [Silêncio] P: E aí, como é que você resolveu isso? Eu resolvi que eu não ficava. E o meu cunhado, ele conversou com um dos chefe lá. Ele [o chefe] falou: “Eu vou te mandar embora porque o Moreira [cunhado] pediu; porque, senão, você tinha que trabalhar mais um ano.” Porque eles acharam que eu ia fazer alguma coisa com eles. Eu falei: “Eu posso até assinar um termo de compromisso que eu não vou fazer nada com vocês, eu só não quero ficar aqui! [Silêncio] Não vou fazer nada!” P: O medo deles era de você processar? É. P: Esse um ano a mais de trabalho era para garantir que você estava curada? Era. Eles falaram comigo: “Você tem três opções: voltar para o INSS, pedir conta ou trabalhar.” Eu falei: “Eu não volto, não peço conta e vocês têm que me mandar embora!” [risos] Aí papel sobe, papel desce... e eu consegui. Recebi certinho os meus direitos. P: Você trabalhava doze horas no frigorífico, né? Doze horas. Hoje eu trabalho seis! E só de dia: do meio dia às seis [18h]. Bem melhor! A gente faz muita coisa em casa! P: Você que cuida da sua casa ou você tem alguém que cuida para você? Não, eu! P: Tudo é você que faz? Tudo! Capino quintal... [risos] P: E você trabalha na casa da sua sogra também? Não. Não. P: E nem da sua cunhada? Não.

13.4 – A missão é sempre cuidar A seguir, retomo a narrativa da primeira entrevista sobre o cuidado dos pais como

missão. A atualização é surpreendente. Clara fala dos sonhos recorrentes que tem com a mãe

e os interpreta como uma relação perpétua de cuidado-proteção. Muito emocionada, expressa

a saudade que sente da mãe, recorda momentos antigos e chega à conclusão de que sua

promessa (citada na primeira entrevista) ainda se cumpre: a senhora nunca vai ficar sozinha;

casando, a senhora vai comigo. É instigante a ambiguidade que caracteriza esta relação de

mãe e filha de criação. Clara nos apresenta um cotidiano de brigas e servidão, um amor que

convive com a esperança da morte para o cumprimento da missão e uma saudade genuína que

não compromete o sentimento de alívio. A narrativa sobre a mãe trouxe ainda novas

informações sobre o seu relacionamento com Edson, sobre o qual chama atenção a

naturalização de um comportamento que choca os códigos morais de sociabilidade tanto de

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Bagre Bonito quanto de Barão de São João Batista. Ainda com relação ao seu relacionamento

com o marido, trata-se, objetivamente, de uma reprodução do cuidado como missão. O

mesmo se observa com o trabalho na escola. P: Eu perguntei para você assim: “Você morava na casa dos seus pais de criação e seus irmãos também?” Você disse: “Isso, depois ficou só nós três. Meu pai morreu primeiro. Faz 20 anos agora em março que ele morreu”. Isso naquela época, né? É, agora fez 25. P: “A minha mãe tem 15, a adotiva, tem 15 anos que ela morreu”. Aí eu perguntei assim: “E você ficou com eles até eles morrerem?” Aí você falou: “Até morrer! Aí eu cumpri a minha missão. Fiquei com eles até morrerem. Depois que ela morreu, eu fiquei no Bagre Bonito só mais um ano e saí do Bagre Bonito. Cumpri minha missão”. Aí eu perguntei: “Qual era a sua missão?” Você: “Cuidar deles. Agora eu não tenho missão nenhuma lá mais.” [Pausa] Hoje, com a sua experiência de vida (já trabalhou fora em vários lugares, conheceu pessoas diferentes...), você ainda sente isso como uma missão que você teve na sua vida? Eu sinto. [Silêncio] P: Você acredita que tinha que ser... acredita em destino? Acredito. Pior que eu acredito mesmo, viu?! [Silêncio] P: É? [Silêncio] P: [Silêncio] Você acha que hoje você tem uma missão? [Pausa] A minha missão hoje é só cuidar do Edson agora! [risos] E dos meus meninos lá da escola! [risos] P: Sua missão é sempre “cuidar”? [risos] É, cuidar! [Silêncio] P: Aí eu coloquei assim: “Você foi uma companhia para eles, principalmente para sua mãe, né?” Aí você falou: “Fui uma companhia, porque não tinha mais os filhos dela [...]4”. Você se lembra dessa história? Foi rapidinho. [Silêncio] P: [Silêncio] Engraçado, eu sonho com ela todo dia, você acredita?! P: É mesmo? Todo dia! A gente conversa... no sonho. P: E no sonho ela está como? Está bem, normal. P: Nova ou na idade em que ela morreu? Na idade que ela morreu. Mas normal... eu vejo ela normal. P: E o que ela te fala?

4 “O que tinha [na cidade] era o Pedro, mas ele tinha a esposa, tinha o filho e já não morava com a gente mais. Aí eu e ela ficamos assim no final. Inclusive quando ela morreu estava só nós duas dentro de casa, assistindo televisão. Não esqueço disso, gente! Quando ela passou mal, ela levantou, fez a caminhada dela – ela caminhava todo santo dia, bem ou mal – e falou assim: “Hoje eu não estou bem”. Aí eu falei: “O que que foi?” P: Você chamava ela de mãe? De mãe-vó. P: Mãe-vó? Mãe-vó! [risos] Aí mediu a pressão... Aí ela falou: “hoje eu não quero almoçar, não quero deitar...” Mas pediu para mim fazer jiló para ela – era eu que fazia o almoço, né? Aí fiz o jiló, ela almoçou bem. Depois deitou e falou: “De tarde eu não vou jantar! Vamos assistir televisão, boba! Nós duas.” Aí fomos assistir televisão. Quando chegou no quarto ela pediu para tomar uma gelatina. Dali ela já começou a passar mal. Mas também não deu tempo de nada, viu? Foi rápido mesmo, foi coração.

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A gente conversa, a gente briga! A mesma coisa que era. A mesma coisa! A gente briga... Então, assim, de vez em quando a gente está em festa ou eu estou lá em Bagre Bonito... morando lá. No sonho eu ainda moro em Bagre Bonito, sabe? Mas a gente tinha dia que brigava até! Mas a gente brigava, brigava... Mas, assim, não ficava de mal nem cinco minutos! P: O que levava vocês duas a brigarem? Não, qualquer coisa! Qualquer coisa! [Silêncio] Porque... dois bicudo não se beija! Nós duas era muito bicuda! [risos] P: E com o seu pai, você sonha também? É... Ele já é mais difícil eu sonhar com ele, mas de vez em quando eu sonho também. Eu lembro uma coisa que eu não esqueço de jeito nenhum, gente! Ela tinha horror do Edson. Eu não sei se... Eu não sei se era ciúme... Sabe por quê? Ela morria de medo de eu casar. Morria! Sentia medo! P: É, você falou mesmo, que ela tinha “pavor”. Tinha pavor! Quando eu começava namorar, ela já começava... [Silêncio] P: E você falou que conhece o Edson desde muitos anos... Ih! Isso tem anos! Anos e mais anos e mais anos! Mas ele passava, mexia [provocava]... O jeito do Edson é esse; toda a vida foi isso, gente! [...] Ele passava e gritava: “Ê, muié! [Pausa] Cê vai ver se um dia eu não te agarro! Ainda te como ainda, cê vai ver!” Ele falava! P: Mas também ele pegava pesado! Ele era terrível! Gente, até hoje! Eu passava... Olha, quantas vezes eu passei ali perto do B. [bar que fica na praça central de Barão de São João Batista] e ele gritava isso, gente! Eu não sabia onde enfiava a cara! “Cê vai ver, ainda vou te comer!” [Silêncio] P: [Silêncio] Com razão sua mãe não gostava... Ela tinha razão! Ele chegava perto de mim, vinha correndo, me abraçava, me beijava... Esse aí toda a vida foi assim. [Pausa] Ela falava: “É... agora eu vou morar sozinha, né?” [Pausa] Eu falava: “Não. A senhora nunca vai ficar sozinha; casando, a senhora vai comigo. [Pausa] Lugar que eu for, a senhora vai comigo.” Então, quer dizer; casei... tô aí com o Edson, esses sonhos meu... ela tá comigo, ué! P: O que você acha disso? Será que ela está me protegendo até hoje? P: Você sente isso? Eu sinto! Eu sinto que ela tá me protegendo. [Silêncio] Eu acho que nem os filhos mesmo sonham tanto com ela igual eu sonho. [Silêncio] Porque às vezes eu converso com o Pedro: “Nossa senhora! Eu sonho tanto com a mãe-vó, você sonha?” Ele: “Não...” [Silêncio] P: [Silêncio] Tem dia que eu sinto tanta saudade dela... Às vezes eu paro assim... Nossa senhora! É saudade demais que dá, menina! [Clara se emociona, seus olhos ficam marejados.] Dá um aperto... É igual eu falo com o Edson, eu não gosto de ir em Bagre Bonito. [Pausa] Eu não gosto! P: Eu ia perguntar se você sente saudade daquele tempo, mas parece que sim, né? Você até se emociona... Sinto. [Silêncio]

13.5 – Um casamento sem brigas Pelo o que pude observar neste encontro, a interação de Clara e Edson não

mudou muito em comparação à primeira entrevista. Edson continua com tiradas sarcásticas e

de cunho machista com as quais Clara fica visivelmente constrangida, mas relativiza o seu

impacto recorrendo ao riso como eufemismo. Como toda relação iníqua por naturalização, em

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que um manda e outro obedece, não há briga. Ou melhor, há; a ambiguidade reside no

pressuposto tácito de que quem manda, briga e que nem toda briga é necessariamente ruim. A

narrativa de Clara é repleta de brigas que não são brigas. Além do seu relacionamento com

Edson, isto é particularmente objetivado na sua concepção de mãe. O que definiu

negativamente sua mãe consanguínea na primeira entrevista – Ela brigava comigo, me

xingava... – é utilizado aqui para definir positivamente sua mãe de criação, sua sogra (que ela

considera como mãe) e a si mesma, quando se coloca no papel de mãe dos alunos da escola

em que trabalha: Eu brigo com eles, eu xingo... eles me abraçam... P: [Leio a narrativa do modo como começou o relacionamento com Edson5. Clara interrompe algumas vezes com gargalhadas] Foi assim mesmo! Tá ouvindo, amor? [Edson continua na cozinha] P: E o que você acha da história de vocês? Ah... eu acho que era destino, boba!, nós dois ficar junto. Pela nossa amizade... mas engraçado que eu não punha maldade em nada, gente! Em nada! Era aquela amizade bonita, sabe? Eu nunca podia imaginar, na minha vida. [Silêncio] Edson: [chega à sala, arrastando os chinelos e diz, contendo o riso:] Até hoje! [Clara ri] Ela é muito enjoada! [Volta para a cozinha, Clara continua rindo.] P: O que vocês mais fazem para se divertir? [Silêncio] P: Um lugar preferido para ir...? Ah... Mais é roça. A gente adora roça. [Com muito prazer:] Ai! É bom demais, gente! Uma roça! Pescar... Nossa! Isso aí... Nó [nossa]! É bom demais! P: Todo casal tem uma briguinha de vez em quando, né? O que leva vocês dois a brigar? [Silêncio] P: Tem alguma coisa que você faz que ele não gosta ou que ele faz e você não gosta? [Edson retorna à sala] Clara: É... às vezes eu pego, né, amor? Edson: O quê? Clara: No seu pé, né? Edson [já se afastando, em direção à cozinha]: Pega nada! Clara: [risos] Edson: Eu mando parar! Clara: [risos] P: Então vocês não brigam? Clara: Não... Muito difícil. P: Como é a sua relação com a família dele? É boa. P: E ele com a sua, com seus irmãos...?

5 Ah, minha filha! Essa história nossa foi do nada! Eu vinha da fisioterapia, [...] eu nunca tinha passado por ali; aí eu resolvi passar por ali e ele estava num barzinho. Foi numa quarta-feira, 10 de março... Eu não esqueço disso! Aí ele perguntou: “Ô, Clara, o que você vai fazer hoje?” Eu falei: “Nada! Eu vou arranjar um lanche e vou dormir.” Ele disse: “Ah, vamos sair!” Eu falei: “Não, porque eu estou sem dinheiro. Ainda não recebi...” Ele falou comigo: “Ah, vamos sair, boba! Eu também não tenho muito, mas eu tenho dez reais no bolso.” Aí nós saímos, fomos num barzinho. Aí ele me trouxe em casa e falou comigo: “Você não vai me convidar para entrar não?” Eu falei: “Não!” Ele: “Mas eu vou entrar assim mesmo e tomar um cafezinho.” Aí entrou, ficamos conversando da vida... Aí ele veio aqui para o quarto, ligou a televisão e disse: “Ah, tá passando jogo [futebol], né? Vou dormir aqui na sua casa hoje!” E está dormindo até hoje! Eu conto essa história para os outros, que nós não namoramos [casaram-se direto], e ninguém acredita! Nós não namoramos!

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Tudo normal. P: E com a sua sogra? Na outra entrevista você falava muito dela. Igual. Mesma coisa. P: Você tem sua sogra como mãe ou como sogra mesmo? Como mãe, como mãe! Briga comigo... [risos] Igual! Me xinga! [risos]

13.6 – O que faz a pessoa é a criação Concluindo a nossa conversa, proponho uma inserção ainda mais reflexiva.

Leio a delicada passagem de sua entrevista anterior, em que ela diz nunca ter sido feliz

enquanto morou com os pais adotivos, e pergunto o que ela sente ao relembrar esse passado.

Clara silencia, se perde em pensamentos, pede para repetir a pergunta e continua em silêncio.

Faço algumas sugestões e então ela escolhe criteriosamente entre uma e outra. Pergunto,

então, o que ela mudaria em seu passado se tivesse oportunidade e novamente ela hesita e se

cala. Depois de pensar, traz a resposta para o presente e confere outro sentido para “mudar”.

Diferente do “silêncio como narrativa”, seu silêncio era por não saber o que dizer. Percebi que

ela se esforçava para não me deixar sem resposta. Na sequência, compartilho alguns

pressupostos analíticos através da objetivação do senso comum em Bagre Bonito e da

narrativa de outros filhos de criação. Após a leitura da narrativa de Laura, uma passagem

forte e extremamente reflexiva, Clara não demonstra qualquer reflexividade. Sem reação, diz

laconicamente que não concorda. Pouco depois, entretanto, fala dos alunos da escola que são

filhos adotivos pela mesma perspectiva de Laura. Mais do que reafirmar o senso comum

levantado pela etnografia, Clara confirma minhas conclusões analíticas: o filho de criação

retribui o favor da adoção dependendo de como ele for criado. Nada mais coerente com uma

sociologia das socializações.

P: [Leio a passagem final da primeira entrevista6. Clara escuta em silêncio, sem esboçar qualquer reação]. O que você sente quando se lembra dessa época em que morou lá?

6 P: Você se sente realizada? Eu me sinto realizada. P: Se sente feliz? Feliz. Me sinto feliz... P: Falta alguma coisa para completar essa felicidade? Não! P: Teve alguma época em que você não foi feliz? Na época em que eu morava lá em Bagre Bonito. [Silêncio] Eu tenho trauma de Bagre Bonito! [risos] Não gosto! Tenho pavor de lá! Sabe o que é não gostar de um lugar? Sou eu! P: Então, o tempo em que você morou lá, você não era feliz? Não. Nunca fui feliz. P: Mesmo morando com uma família que te dava carinho, como você me disse? Não. Eu não gostava de lá. P: E aqui você se sente bem? Aqui eu me sinto bem... Me sinto bem demais aqui! Lá eu não sentia. P: E abriu mão de sair, de ir para uma cidade maior e ficou com eles mesmo não estando feliz? Fiquei até eles morrerem, mesmo não estando feliz. Eu falei: “Eu fico aqui até cumprir tudo aqui!”.

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[Silêncio] P: [Silêncio] Clara: Como é que era a pergunta mesmo? P: O que você sente quando se lembra daquela época, em que você morava em Bagre Bonito, quando você era nova, gostava de cidade grande... É, eu gostava de cidade grande. Nunca gostei de cidade pequena. [Silêncio] P: Então, o que você sente quando se lembra? [Silêncio] P: [Silêncio] [Silêncio] P: Você sente saudade, agora que já passou muito tempo... [Pausa] Sente alívio de não estar lá mais...? [Clara retoma com firmeza] Eu sinto alívio de hoje não estar lá mais! [risos] P: Não sente saudade? Não, sinto saudade não. Não. P: Você se arrepende de alguma coisa? [Silêncio] P: Que você fez... ou deixou de fazer? Não. [Pausa – conclui resoluta:] Eu não arrependo de nada que eu faço. P: Faria tudo de novo se precisasse? Faria tudo de novo. P: Se você pudesse voltar no tempo e mudar alguma coisa... Você mudaria alguma coisa? Pra melhor, né? P: O que você poderia fazer que você acha que seria melhor sua vida hoje? [Silêncio] P: [Silêncio] [Pensativa] Ah... muita coisa, né? [Silêncio] P: [Silêncio]. [Silêncio] Cê sabe que eu sou igual cigano, né? Daqui uns tempos, se resolver, mudo de novo. Eu mais o Edson já estamos pensando nisso, sabe? Eu me aposentando, a gente mudar! [risos] [...] P: Você concorda com o ditado: “Os pais cuidam dos filhos para depois os filhos cuidarem dos pais”? [Ela concorda com um meneio positivo] P: Então você acha que os filhos tem essa obrigação de cuidar dos pais? Alguns, né? P: Você acha que os filhos adotivos ou de criação, eles têm mais obrigação de cuidar dos pais do que os filhos biológicos? Não. P: É igual? Igual. P: Hoje você se sente realizada? Me sinto realizada. P: Hoje você se sente feliz? Feliz.

P: A sua “missão”, como você disse... Minha missão, minha missão. Fico até cumprir minha missão! P: Você não pensava em ir embora? Não. Eu tenho honra! O que as pessoas iam pensar de mim? P: E qual era a sua missão? Cuidar deles. Agora eu não tenho missão nenhuma lá mais. Agora eu estou vivendo a minha vida! Agora eu estou vivendo a minha vida! Tô tendo a minha vida agora. Agora eu faço o que eu quero! Se eu quiser fazer almoço, eu faço; se eu não quiser, eu não faço! Eu faço as coisas que eu quero, na hora que eu quero!

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P: Falta alguma coisa para completar a sua felicidade? [Ela meneia a cabeça negativamente] P: O que te deixa triste, hoje? [Pausa] Quando não tem dinheiro! [risos] Eu fico triste! [risos] P: E o que te deixa alegre? Muito dinheiro! [risos] P: Você deu as mesmas respostas cinco anos atrás! [risos] [...] P: Você sente a família do seu marido como sua família? [Pausa] Como minha família; mas eles lá e eu cá. [Pausa] A mesma coisa: a minha lá e eu aqui. P: Você acha que mudou muito seu jeito de ser ao longo da vida? [Silêncio – responde pensativa e vagamente] Ah... mudou bastante... [Silêncio] P: O que você fazia antes, que não faz mais hoje? [Silêncio] Muitas loucuras que a gente faz porque é nova, né? E hoje você tem medo de tudo! Eu, pelo menos, eu tenho medo de tudo! Coisas que eu não tinha medo... Eu não tinha medo de ficar sozinha, hoje eu tenho. Sabe? Muita coisa... P: Quando você era menina, que morava lá em Bagre Bonito com os seus pais, qual era o seu sonho? [Silêncio] P: Tenta buscar na memória... [Silêncio] Ah... não lembro mesmo... P: O que você imaginava que seria quando adulta, na idade que você tem...? [Silêncio] Não lembro não... não lembro mesmo. P: Em alguma época da sua vida, você imaginou chegar onde você chegou? [Faz um meneio negativo – pausa] Não, não imaginava não. [Pausa] Cada dia que passa a gente vai conquistando mais coisas, né? Mas [risos] eu nunca podia imaginar que eu ia chegar nesse ponto que eu cheguei. P: É uma vitória para você? É uma vitória! P: Hoje você tem algum sonho? [Pausa] Não. P: Nenhum? Não. P: Na entrevista passada você falou: “Tenho, conhecer Salvador”. [Edson faz um expressivo ruído de deboche. Vem para a sala] Clara: [um pouco constrangida] Não... não tenho mais vontade. Hoje eu não tenho. P: Como você se imagina daqui a 20 anos? Edson [interrompe e responde por ela]: Mais véia! Clara: Velhinha, né, amor? [risos] Edson: Já pus no asilo! Já pus no asilo! Clara: [risos] [Edson sai] P: Eu perguntei para uma filha adotiva lá em Bagre Bonito que eu entrevistei, se ela achava que tinha alguma diferença entre filho adotivo e filho biológico. Eu vou ler o que ela me disse e depois você me fala se você concorda ou não. [...]7 . [Clara escutou em silêncio, sem esboçar qualquer reação]. Você concorda com ela?

7Laura: Eu acho que sim. É como eu falo para o meu marido: o sentimento de uma pessoa adotada é diferente do sentimento de uma pessoa que não é. P: É mesmo? Laura: É. Eu classifico assim. P: Mesmo tendo vindo pra cá ainda bebê e sendo criada como filha, como você disse?

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Concordo não. [Silêncio] P: Não? [Clara faz um meneio negativo – silêncio] P: Essa moça hoje tem 28 anos. [Silêncio] Porque... a minha vida foi normal, igual os outros mesmo [os filhos consanguíneos do casal], igual os outros meninos. Tanto que eu recebi herança igualzinho eles. Igualzinho. Então, quer dizer; pra mim não teve diferença nenhuma não. P: Nem das pessoas em volta? Igual ela diz, da “sociedade”? Não, eu nunca senti. [Silêncio] Igual, eu acho até bonitinho, na escola tem filho adotivo... Eles falam com a gente [cochichando]: _Ô, tia, eu sou filho adotivo. _ A tia também é! _ Cê também é, tia? _ Eu sou! Não, porque às vezes eles ficam muito triste por ser filho adotivo. Fica triste... Igual a essa semana mesmo, chegou um lá... Brigando, eles estavam brigando, aí falou: “Ah, você não tem pai!” Eu falei: “Opa! Vamos parar com isso aí porque a tia também é filha adotiva.” [Silêncio] Sabe? De vez em quando tem que... falar. [Silêncio] P: Você nunca sentiu isso? Eu não! [Silêncio] P: Quando era criança, adolescente... nunca? [Meneando a cabeça negativamente] Nunca senti. P: Você acha que as pessoas encaram a adoção como um favor? É, está fazendo um favor. P: É? Você acha que as pessoas pensam assim? Pensam assim, mas não é assim, né? [Silêncio] [...] P: E você acha que pelas pessoas encararem a adoção como um favor, ela espera que o filho adotivo retribua esse favor? [Clara fica pensativa] É... espera, né? [Silêncio] P: E como um filho adotivo pode retribuir esse favor? Isso aí eu acho que depende de como ele for criado, né? [Silêncio] Como é que vai ser a criação dele ali... Aí... ainda pode até retribuir. [Silêncio] P: O que faz a pessoa é a criação? É! É a criação! P: Você, com a criação que você teve, você sente que retribuiu? Eu sinto. Eu retribuí. [Silêncio] P: Você acha que seus pais tinham orgulho de você? Tinham. [Pausa] Tinham porque às vezes as pessoas na rua falavam com a gente: “Puxa vida! Sua mãe falou que você é uma menina assim, assado...” Sabe? P: E você se sentia bem com isso? Sentia bem, uai! P: Realizada? É, realizada!

Laura: Mesmo assim. Sabe por quê? A sociedade te vê de uma forma diferente. Você é especial para a sociedade porque você é adotada. É comum todo casal ter filho, né? Não é comum todo casal ter filho adotado. É difícil! [...] É igual eu falo com o meu marido, é difícil! Você pensa de uma forma diferente. Parece que você se sente mais sofrida do que as outras crianças, entende? Eu sempre me senti assim, sabe? [...] As pessoas pensam assim: “Deixa de ser bobo! Você vai deixar de ter filho para adotar filho dos outros? Isso vai crescer e você não sabe o que vai ser”. [Pausa] Entendeu? Então você cresce tentando mostrar para eles que você pode ser normal, como qualquer outro filho, mesmo se fosse um filho biológico, se fosse deles; um filho normal. Então você tem que crescer meio que provando para os outros que você não vai ser aquilo que maquiaram.

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13.7 – Eu não posso cobrar X Sempre gostei de ter meu dinheirinho Sem mais o que perguntar, encerro a entrevista deixando-a à vontade para

completar algo. Ao perceber que findamos, Edson se aproxima e inicia uma conversa.

Pergunta sobre a minha família com o propósito de falar da sua, em um monólogo ostentativo

já conhecido: Eu sou Scipioni, família Scipioni. Todo mundo conhece. Minha mãe é muito

conhecida. Ela ajuda muito a gente. Ela tem um sítio... Contando as ajudas da mãe, Edson

retoma o assunto da reforma. O casal se dispõe a me apresentar o restante da casa, explicando

com satisfação o que foi feito e o que faltava fazer. Edson domina a conversa. Nos momentos

em que Clara participa, confirma a narrativa do marido: essa geladeira e essa mesa aqui vai

lá pra fora, a minha sogra vai me dar a geladeira dela quando ela trocar. Vou colocar a dela

aqui dentro e essa vai lá pra fora. Edson continua: Isso tudo aqui [varanda de fundos] vai ser

área de churrasco. Ainda falta colocar o piso, minha mãe vai me dar. Vou pedir o piso disso

tudo aqui pra minha mãe e ela vai me dar. Essa conversa me pareceu uma preparação para o

que, em seguida, Edson colocou em discussão, devido ao modo descabido com que inseriu o

assunto, isto é, como se estivesse de acordo com o que estava sendo dito, quando, de fato, era

exatamente o oposto. A reação de Clara demonstrou se tratar de uma discordância do casal,

mas a postura extremamente ambígua de Edson coloca dúvidas.8 Encontrei duas explicações

plausíveis para o seu interesse em trazer tal assunto: 1) como ele escutou a maior parte da

nossa conversa, percebeu que Clara omitiu tal informação e 2) queria saber quem tinha razão.

Independente disto, a informação é bastante relevante para a análise da vida de Clara. Soma-

se ainda o modo inusitado com que ela justifica seu posicionamento e conclui a conversa.

Como visto na primeira entrevista, Clara nunca precisou – e nem teve coragem de – trabalhar

fora porque meus pais sempre me deram dinheiro; agora, ela traz algo extremamente

contradito, mais uma vez, como se estivesse de acordo com o que estava sendo e com o que

foi dito. Talvez esteja aqui a explicação para sua aversão a Bagre Bonito, cujos conterrâneos

são testemunhas do passado que ela tenta esquecer. [...] Edson: Mexer com reforma, o dinheiro vai e você nem vê! Clara: É, tem que ir fazendo devagar. Edson: Eu sou aposentado, né? Só como e durmo; por isso que eu tô ficando gordo desse jeito, com esse barrigão! [risos] Mas... eu dou meus pulos, faço uns bicos aí, dou aula de violão pra tirar mais um dinheirinho. P: É? Você dá aula de violão?

8A narrativa de Edson contradiz minha análise na entrevista anterior a respeito de sua percepção do trabalho de Clara como ajuda. Aqui o casal parece inverter os papéis: Edson percebe a ajuda de Clara como trabalho não remunerado e Clara, por sua vez, percebe seu trabalho remunerado pela lógica da reciprocidade circunscrita à ajuda.

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Edson: Dou. Ah, tem que fazer uns bicos! Só o dinheiro da aposentadoria não dá não. A Clara também faz uns bicos aí. P: Ah é, Clara? Você também tira um dinheirinho por fora? Edson [aparentemente contrariado]: Mas ela não cobra. Clara [se defendendo]: Uai, gente! Como é que eu posso cobrar? O Leléu é um amigão nosso; o que a gente precisa, tá ali. Qualquer hora! O Edson precisa visitar os filhos dele lá em São João Del Rei e o Leléu fala: “Tá aqui o carro.” Edson [confirmando]: É! É a hora que eu quiser, Priscila. A hora que eu quiser, ele me empresta o carro. Eu chego pra ele: “Ô, Leléu... Tô pensando em visitar os meninos...” É na hora! “Pega o carro que você quiser aí, Edson!” E ele fala: “Não pega esse não... vai de Golf! Vai de Golf!” P: Nossa! Ele tem tantos carros assim? Edson: Não, boba, ele mexe com garagem [concessionária de carros usados]! E ele faz tudo no carro pra mim, eu só abasteço. Às vezes ele troca até o óleo! Eu só coloco a gasolina. Também já era demais, né?, querer que ele coloque gasolina pra mim! Clara: É, mas não é só a gasolina... Tem os pneus... tem tudo do carro e ele não cobra nada da gente! P: O Leléu é parente de vocês? Edson: Não, ele é um amigão meu. Mas é mais meu amigo do que meus irmãos, né amor? Clara: Nossa senhora! É um amigão mesmo. Edson: Você não conhece ele não? P: Não conheço. Edson: A casa dele é uma casa de fazenda! Nossa senhora! Bonita demais! Tem um salão de festa com churrasqueira, fogão a lenha... tudo o que você imaginar! Toda vez que ele faz festa lá, ele chama a gente. E tem que ir! Senão ele fica chateado. P: E você que cuida da casa dele, Clara? Clara: É, eu faço faxina lá segunda e sexta pra ele. Edson: É, mas ele pergunta quanto que é! Clara: Pergunta, mas como é que eu posso cobrar, gente?! Nossa senhora! Ou então se a gente quer viajar, pra qualquer lugar... é só falar com ele; na hora ele arruma um carro pra gente, sabe? Ele é um amigão mesmo, nossa senhora! Edson: Não, ele é mais que um amigo, ele é um irmão. [Edson se afasta para prender os cachorros. Clara continua a conversa, tortuosamente...] Clara: Eu toda a vida fui assim; sempre gostei de ter meu dinheirinho. Depender dos outros é muito ruim, gente! P: É verdade. Tem muita mulher que sofre violência doméstica, que apanha do marido, mas não consegue sair de casa porque depende do marido. Ah, não! Eu sempre gostei de ter meu dinheirinho. Nunca gostei de depender dos outros. Ih! Eu torrava amendoim pra vender, eu fazia queijo... Até engraxar sapato dos outros na rua eu já engraxei pra conseguir um dinheirinho! P: Quando isso? Lá em Bagre Bonito.

Barão de São João Batista, 08 de setembro de 2012.

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CAPÍTULO 14 – LAURA

A influência anestesiante do hábito passara, e eu me punha a pensar e a sentir – coisas tão tristes.

(Marcel Proust, No caminho de Swann) Reencontrei Laura em agosto de 2012. Mudanças importantes aconteceram desde

a nossa última conversa, há mais de cinco anos. Laura agora é mãe de quatro filhos; além dos

gêmeos, Pâmela e Patrick (7 anos), nasceram Fabíola (4) e Gabriel (2). Ela também não mora

mais na roça com os pais desde 2011. As famílias, de Laura e de seus pais, se mudaram para

a rua, em casas separadas, embora perto. Seu marido, André, trabalha em Juiz de Fora

(aproximadamente 140km de distância) e só retorna à casa nos fins de semana. Segundo

Laura, trata-se de um período provisório (um ano, já no fim) em que André fora escalado para

treinar os funcionários da nova filial da fábrica de laticínios em que trabalha em Bagre

Bonito. Sozinha com os filhos, configura uma situação muito propícia ao retorno à casa dos

pais, mas não foi o que aconteceu; além de cuidar sozinha da casa e dos filhos, Laura passou a

trabalhar com afinco e de modo sistemático como faccionista1 para duas confecções de

roupas. No seu caso, não se trata de um emprego formal; não há contrato de prestação de

serviço e nem direitos trabalhistas segurados. Laura recebe por peça produzida, mas tem que

dar conta do número total de peças encomendadas.2

Nesta segunda etapa da pesquisa, nos encontramos em três momentos, detalhados

no decorrer do texto. O primeiro tratou-se de uma visita informal e desavisada que lhe fiz

acompanhada da mesma tia que nos apresentou, Neuza. Apesar de ser domingo, Laura estava

trabalhando no terraço de sua casa. Quando nos ouviu chamá-la, chegou ao parapeito e, muito

sorridente, cumprimentou minha tia. Me olhando com o cenho franzido num ricto de

rememoração, disse: Espera aí... eu acho que me lembro de você! Já vou descer. Laura abriu

o portão sorrindo e demonstrando ter se recordado: Aquela conversaiada daquela vez te

serviu de alguma coisa? [risos] Insistiu que entrássemos. Conversamos por aproximadamente

uma hora e meia sobre as novidades: a mudança para a rua, a nova casa, a maternidade, o dia

a dia com as crianças e o perfil comportamental de cada uma delas etc. Sempre muito solícita,

se dispôs a reservar um tempo para conversarmos com calma no dia e horário que eu quisesse,

1 Costureira que trabalha em casa ou na sede da empresa de facção, cujo trabalho é fechar (costurar, concluir) os cortes de roupa que recebe. Cf. descrição mais detalhada no capítulo 3, “modos de sociabilidade e suas expressões”. 2 O valor pago depende da peça. Na ocasião, por exemplo, Laura costurava uma encomenda de 300 camisetas e recebia R$1,00 (um real) por unidade.

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apesar de estar sobrecarregada com uma encomenda muito grande de camisetas para o desfile

civil de 7 de Setembro. Marcamos, então, para depois do desfile, um sábado à tarde, ocasião

em que ela estaria mais disponível e seu marido de férias, para que pudesse cuidar das

crianças durante a entrevista.

Neste primeiro contato, seus filhos mais novos, Fabíola e Gabriel, estiveram

presentes. Percebi muito carinho entre mãe e filhos. O pequeno Gabriel ficou boa parte do

tempo no colo de Laura e Fabíola ao redor.3 Com frequência as crianças abraçavam e

beijavam a mãe, que, por sua vez, retribuía-lhes com carinhosos elogios: Esse aqui é o

anjinho da mamãe! Né, Gabriel? É levado, mas é muito bonzinho, tadinho! Cheguei a

comentar: “Como eles são carinhosos!” e, com ênfase, Laura confirmou: O tempo todo!

Enquanto conversávamos, seu celular tocou e, pela proximidade e volume do som, pudemos

ouvir a voz de criança dizendo com ternura ao se despedir: Te amo, mamãe! Rimos, minha tia

e eu, admiradas. Laura desligou e reiterou, orgulhosa por aquilo ser comum: Era o Patrick.

Eu não tô te falando? É o tempo todo! A importância da observação e da transcrição destas e

de outras cenas de afeto se revelará em contraposição à entrevista realizada com seus pais.

A casa em que Laura mora com o marido e os filhos é a penúltima de um morro,

cuja rua sem saída conduz a um monumento turístico pouco visitado. Na parte plana da rua,

no pé do morro, moram seus pais. O calçamento antigo de pedras, deteriorado pelo tempo e

pela falta de manutenção, que cobre a parte alta e dificulta o acesso, contrasta com o

calçamento novo de bloquetes da parte baixa da rua. Depois da última casa, vizinha à de

Laura, não há mais pavimentação, é estrada de chão e mais estreita, devido à invasão do mato

proveniente das margens. Há poucas casas no morro, a maioria inacabada, ao contrário da

parte plana. A casa de Laura é uma delas; vista de fora, parece estar em obras. As paredes não

são pintadas e há materiais de construção espalhados pela calçada. A casa de seus pais, ao

contrário, tem a fachada revestida de piso cerâmica claro e reluzente. Por dentro, a decoração

da casa de Laura também destoa da de seus pais: as paredes, pintadas em tom de pêssego, não

expõem imagens sacras, nem retratos de família, nem quadros, nem bibelôs como na casa dos

pais, seja na casa da roça, seja na atual. Um conjunto de sofá desgastado e um móvel

sustentando uma televisão antiga compõem a sala. Trata-se dos mesmos móveis da casa da

3 Houve um momento em que, choramingando, Gabriel disse que queria o irmão Patrick e Laura nos explicou: “Eles são muito agarrados! Eu acho que eles têm uma ligação muito forte porque o Patrick sonhou que eu estava grávida dele antes mesmo de eu saber. Um dia, ele [Patrick] acordou de manhã e falou: ‘ô, mamãe, tem um bebezinho na sua barriguinha. Eu sei. Eu sonhei que um menininho com asas entrou aí dentro. Ele se chama Gabriel’. Uma semana depois eu descobri que estava grávida! E de um menino! Aí não teve jeito; ficou ‘Gabriel’”.

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roça, ganhados dos pais quando eles se mudaram e compraram móveis novos para a casa da

rua. A casa de Laura possui dois quartos, sala, cozinha, banheiro e uma varanda cercada de

grades até o teto, utilizada também como garagem. Há ainda o terraço onde ela costura,

cercado por um parapeito e coberto com telhas de zinco, cujo calor no verão é insuportável.

A entrevista aconteceu na sala. Ficamos sozinhas boa parte do tempo. André, seu

marido, havia levado o filho Patrick para jogar bola (futebol); as duas meninas brincavam na

casa da vizinha e Gabriel estava dormindo. Conversamos inicialmente sobre assuntos do

momento (o clima, as eleições municipais prestes a acontecer, o desfile do dia anterior, as

peripécias das crianças...) aparentemente sem relação com a pesquisa que Laura aguardava ser

feita. Em seguida, expus a metodologia a ser utilizada e expliquei que a leitura de sua

narrativa anterior tinha o propósito de atualização. Como sabido, Laura é prolixa ao narrar e

analisar sua vida. Desta vez, mais à vontade e, com isso, mais desenvolta, repetidas vezes suas

respostas rendiam o tema das próximas perguntas, dispensando-as. O fato de estar morando

em casa separada, não mais sob o comando do pai, favoreceu uma narrativa mais direta, mais

destemida, talvez, com mais detalhes e verdade.4

14.1 – Dupla jornada de trabalho: adoecimento

A participação de Laura no orçamento familiar é muito importante. O salário de

seu marido é insuficiente para as despesas da família. Ela evita pedir ajuda aos pais para não

dever ainda mais favor e, por isso, se dedica com afinco à facção de roupas. Apesar da

informalidade, esta atividade lhe interessou pela flexibilidade de horário e possibilidade de

trabalhar em casa, podendo conciliá-la com o cuidado das crianças e doméstico. Sua dupla

jornada de trabalho, entretanto, não é fácil. Para dar conta, ela chega a virar noite na máquina

costurando. O tempo que tem para si, muito raro, é usado em consultas médicas para cuidar

de sua saúde, progressivamente fragilizada pelas gestações e aumento de trabalho.

Como descrito anteriormente, Laura é uma mulher alta e magra. Desta vez, seu

corpo apresentava uma magreza excessiva, o médico disse que estou 20 quilos abaixo do meu

peso ideal. O que sobrou dos longos e fartos cabelos encaracolados, outrora tão viçosos, está

alisado em um minguado rabo de cavalo. Por um lapso, Laura informa o diagnóstico médico

obtido em 2011: depressão. Mas não desenvolve o tema; contorna a conversa para os

4 Como, por exemplo, a passagem a respeito do seu meio irmão. O fato de Laura nunca mais tê-lo visto desde que foi embora da casa dos pais (ele era muito cabeça fraca, era muito sem juízo, e deu a doida de ir embora, como narrado na primeira entrevista), tem uma versão mais coerente agora: Porque, na verdade, o meu pai adotivo não aceitou a situação dele querer ir embora. Entendeu? Não aceitou. É igual eu tô te falando, ele acha o seguinte: “se morou comigo, tem [grifo de Laura] que me dever obrigação. Se me deu as costas, me traiu”.

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problemas de insônia, enxaqueca, anemia e inadaptação a contraceptivos. Apesar de doente,

Laura conserva os olhos brilhantes, a expressão atenta e curiosa, o bom humor, o pensamento

rápido e a agilidade narrativa destacados na primeira entrevista. P: Você me disse que dá conta da arrumação da casa e das crianças sozinha e ainda costura para duas confecções. Me conta um pouco como é isso. [risos] Menina! É complicado, tá?! [Pausa] Porque chega a época de alta estação, principalmente verão, as confecções vendem demais agora. Já teve época de eu trabalhar, de pegar às quatro da manhã e largar às onze meia, meia noite. [Pausa] No outro dia, cinco horas da manhã, tá eu na máquina [de costura] de novo. [Pausa] Já virei noite [Pausa] para dar conta. [Silêncio] [...] Eu sou péssima de sono, eu tenho uma insônia horrorosa. [...] Até pouco tempo eu estava com muita crise de enxaqueca. Aí eu comecei a tomar um remédio que é uma mistura de antide... Às vezes o médico acha que pode ser depressão. Eu tava tendo muita crise de enxaqueca, aquela dor de cabeça onde você ouve uma torneira pingando água, dá vontade de levantar e quebrar ela, de tanto que sua cabeça dói. Aí ele passou esse remédio pra mim. [...] As crises de enxaqueca eu melhorei, só que... e o sono? Ele [o médico] falou: “Olha, esse remédio vai te dar muito sono.” Hum... não deu nada! [...] P: E você tem um tempo que você fala: “esse tempo é só meu”? [Silêncio] Hum... não. Muito raro. Muito raro. Só se, tipo assim, se meu marido estiver em casa, está de férias... Aí eu deixo um pouquinho pra ele: “Toma que o filho também é seu!” [risos] Aí eu vou ficar mais assim... Aí eu vou ao cabeleireiro, fazer alguma coisa, se cuidar mais. Igual agora: ultimamente, eu tô fazendo um tratamento bem severo com um ginecologista. [...] eu fiz um exame de anemia outro dia e ele [o médico] falou assim: “Laura, eu não sei como você anda! Porque o nível de anemia seu está batendo tão alto, que se você não melhorar, vai ter que tomar sangue. Remédio não tá dando conta não, vai ter que tomar sangue.” [...] É igual ele falou: “Plaquetas suas: zeradas. Hemoglobina: zerada. Ferritina: não tem nem como estar mais baixa do que isso. [Pausa] Tá muito ruim, sua anemia tá muito alta.” [Silêncio]

14.2 – Planejamento familiar: facilidade de Laura X dificuldade da mãe Apenas suas duas primeiras gestações (incluindo a que houve um aborto

involuntário) foram planejadas. Ao ser questionada se acreditava no preceito religioso popular

em Bagre Bonito de que se deve ter quantos filhos Deus mandar, ela nega com veemência,

mas teve quantos filhos Deus quis. A contradição é apenas aparente; Laura é a favor do

planejamento familiar e contra o aborto.

Ainda nesta passagem, destaca-se sua percepção do despeito da mãe adotiva de

sua facilidade de ter filhos e do companheirismo de seu marido, André, ao aceitar facilmente

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fazer uma vasectomia.5 Talvez seja por isso que nos momentos difíceis de pré-parto e

puerpério Laura não tenha contado com a ajuda da mãe. Contudo, não é sem dificuldades que

Laura fala a respeito. P: Você toma anticoncepcional? Não, nunca pude tomar. Se eu tomasse um anticoncepcional, o que não me fazia mal no sentido de eu fazer vômito, eu secava! Em questão de uma semana eu perdia cinco, seis quilos. P: Mas qualquer tipo? Todo anticoncepcional que você possa imaginar, eu já usei.6 P: Você evita filhos ou acha que deve ter quantos Deus mandar? Não! Eu acho que esse é o maior erro que o ser humano comete! Esse é o maior erro que o ser humano pode cometer; é querer achar que a gente tem que ter filho de acordo com o que Deus manda. Eu acho errado. Porque, assim: filho é o bem maior que você tem. Então se você tem um, dois..., independentemente da quantidade, você tem que cuidar dele bem, você quer tratar ele bem, você quer dar o máximo de atenção que você consegue ou que você pode. Então, se você tem um monte, você pode ter certeza: não vai ter como. É igual eu te falo, eu tenho quatro; é muito complicado! Planejar mesmo eu só planejei dois, mas, é lógico, aí entra a questão: se Deus quis... porque eu fiz de tudo para evitar, mas eu não conseguia! Até que, graças a Deus, meu marido pegou e fez uma vasectomia. Acabou o problema. [...] P: Como a sua mãe adotiva reagiu às suas gestações? Porque eu lembro que você me contou que ela tinha muita dificuldade de engravidar, que sofreu vários abortos... É, porque ela, na verdade, ela fez vários e vários tratamentos durante trinta e cinco anos e nunca conseguiu. Mas porque ela [grifo de Laura] fez o tratamento e o problema era com o pai. E ele nunca quis fazer um tratamento. P: Mas como ela reagiu às suas gestações? Ela se sente realizada através de você? Ah, ela gosta. Ela se sente realizada, sente. [Pausa] Eu acho assim: ela tanto se sente realizada... Às vezes, eu penso... assim... Às vezes eu penso que ela se sente... assim... é... “Por que que eu também não pude... ter?” Sabe? Eu já notei. Eu acho que ela se sente assim: “por que que... o meu marido... não... não tomou a iniciativa, nunca deixou de ser tão machista a ponto de se arriscar a fazer um tratamento, se propor a fazer um tratamento?” Entendeu? Porque ela viu quando eu falei: “André, o recurso é você fazer a vasectomia porque eu não vou ligar [fazer laqueadura], eu não posso ligar.” Na mesma hora! Na mesma semana, sabe? Ele fez a cirurgia [...] P: Alguém te ajudava a cuidar da casa e das crianças quando você estava naquela fase de barrigão? Não. P: Nas vésperas de ter neném? Por exemplo: quando você foi ganhar o Gabriel, quem te ajudou?

5 Algo visto com desconfiança em Bagre Bonito, como comprometedor de virilidade e muitas vezes associado à chacota capado (porco castrado para engordar). 6 Laura narra com detalhes os problemas de saúde agravados pelas gestações. Essa parte da entrevista dura aproximadamente quarenta minutos. Desde o nascimento do casal de gêmeos, ela não conseguiu se curar de uma anemia. Perdeu muito peso e sua saúde debilitou-se ainda mais com as gestações subsequentes.

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Não... Assim, foi o meu marido e a minha sogra. [Silêncio] Que seguravam a peteca. A bisavó dos meus meninos sempre ficou comigo (a avó do meu marido), sempre ficou comigo. [Pausa] Sempre ficou comigo, ela que segurou as pontas. Quando tive a Pâmela mais o Patrick, ela ficou vinte e oito dias na minha casa. [Silêncio] Ficou vinte e oito dias. Quando eu tive a Fabíola, minha sogra também ficou vários e vários dias e ela também. Ficaram mais ou menos uns quinze a vinte dias na minha casa. [...] Mas assim, segurar a peteca mesmo, de arrumar a casa e tudo, sempre fui eu.

14.3 – Frustração com os pais consanguíneos A narrativa de Laura mudou bastante em relação aos pais consanguíneos. A

facilidade de aproximação dos pais propiciada pela mudança para a rua teve efeito contrário;

uma vez que o contato não se estreitou, a relação ficou ainda mais afastada. Da mãe, Laura

fala com frieza; do pai, com tristeza. A mãe lhe fez apenas uma visita desde que se mudou, há

um ano e meio, e o pai não procurou mais. Ao contrário da empatia que lhe permitia colocar-

se no lugar da mãe e defendê-la das críticas mordazes de seus pais, Laura se mostra

indiferente (apesar de sentir dó da mãe) e parece ter introjetado, em alguma medida, a visão

depreciativa de seus pais, como sugere a reprodução de vícios de linguagem que lhes são

peculiares (como a expressão: lá vai no mesmo caminho).

Com relação ao pai consanguíneo, Laura tenta justificar sua ausência pela má

relação com o pai adotivo, mas reconhece com tristeza que, apesar da separação das casas,

não tem muito contato mais não. É possível perceber resquícios do seu entusiasmo anterior ao

narrar o reencontro que tiveram, dois meses antes desta entrevista, no velório de sua avó

consanguínea paterna. Laura fala com uma excitação infantil, tomando emprestada a narrativa

de seu filho, Patrick. É importante notar que mesmo ressentida com o desprezo dos avós

consanguíneos paternos, como visto na primeira entrevista 7 , ela nunca perdeu uma

oportunidade de aproximação. Ao saber do falecimento da avó, fez questão de acompanhar

todo o funeral, que durou uma madrugada e um dia inteiro. P: E sua mãe biológica? Como ela está? Está bem. P: Hoje você tem mais contato com ela? É, ela veio aqui. Aqui agora tornou mais fácil para ela vir. Mas toda vez que ela vem aqui, ela passa na minha mãe... ou ela vai lá na mãe primeiro e depois ela passa aqui. Mas, assim: tem mais contato porque ficou mais fácil para ela vir. [Silêncio] P: E como ela está? Eu me lembro que naquela época você achava a sua mãe uma mulher triste, pela história de vida dela...

7 “Eles sempre conviveram comigo aqui em Bagre Bonito, sempre me viam na igreja, desde quando eu era criancinha de colo, sempre souberam que eu era neta deles, mas nunca chegaram e disseram: ‘Ah! Essa daqui que é a minha neta?”

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A mesma coisa! A mesma coisa! [Silêncio] A minha mãe, eu acho que ela se prostrou... [Silêncio] Sabe? P: E ela é uma avó carinhosa com os seus filhos? [Pausa] Eu acho que ela não sabe nem o que é ser avó! Pra te falar bem a verdade. [...] É igual eu te falei: ela não soube o que é ser mãe, assim... aquela mãezona ali... e também lá vai no mesmo caminho como avó. Ela é uma pessoa vazia. [Silêncio] Eu considero ela uma pessoa bem vazia... [Silêncio] Eu tenho dó dela. [...] [Leio sua narrativa sobre o pai consanguíneo8] É verdade. A mulher dele despertou ciúmes. Ela chegou num ponto de ciúmes tão grande que eles separaram. Hoje eles são separados. P: E como é a sua relação com ele hoje? [Silêncio] P: Ficou igual ao que era antes? Hum... não. Ficou até mais afastada. Até mais afastada. Ele se separou... e danou a beber. [...] P: Ele não procurou? [Com tom de voz mais baixo:] Não procurou mais. [...] E o meu pai adotivo tem pavor do meu pai biológico. Ele não gosta dele. Ele tem ciúmes. Da minha mãe, não; mas do meu pai, ele tem raiva. Por isso meu pai [consanguíneo] nunca me procurou, porque ele sabia que se ele me procurasse ia gerar constrangimento. Nunca me procurou. [Pausa] Aí no velório da minha avó ele me perguntou se a gente está morando junto ou separado. Aí eu falei: “Não, a gente não mora junto mais.” Aí ele: “Então agora ficou mais fácil para mim estar te procurando, porque antes morava junto; eu sei que ia dar zoeira e eu não quero isso.” Né? Então eu falei assim: “Não, a gente mora separado agora.” Mas... assim... [Pausa] a gente não tem muito contato mais não. [Silêncio] [Retoma o assunto do reencontro com entusiasmo:] Aí ele brincou com o Patrick, brincou com a Pâmela! Muito! Aí o Patrick falou assim: “Ô, vovô, vai lá em casa, dormir na minha casa!” Aí meu pai falou assim: “Tá doido?! Vovô nunca foi na sua casa, aí vai pra dormir?” [Patrick:] “Tem problema não, vovô! Eu te dou o meu colchão se você não quiser dormir na minha cama, cê dorme no meu colchão. Eu durmo pertinho do senhor, vovô! Aí o senhor papa comigo!” [risos] O senhor “papa” comigo... [risos] [...]

8 P: Eu perguntei naquela época sobre o seu pai biológico. A gente conversou sobre o reconhecimento tardio da paternidade e você me falou assim: [...] Quando eu engravidei de gêmeos, nossa, aí que ele foi num mundo e voltou noutro! Porque ele também é gêmeo! Ele é gêmeo com a irmã dele, eles são um casal de gêmeos, e ele é pai de gêmeos. Aí ele falou: ‘Não! Não tem como ela não ser minha filha mesmo’. Por que a questão da gravidez gemelar, ela é hereditária, né? Aí ele veio aqui em casa, chorou muito e tudo mais... Mas, assim, eu gosto muito dele. Talvez eu gosto mais dele do que da minha mãe... Não sei te explicar por que. Mas, assim, às vezes eu me sinto chateada com ele... Por que ele demorou tanto a se tocar, entendeu? Que eu era realmente filha dele. Mas isso é um caso mal resolvido entre ele e a minha mãe. Eu não tenho nada a ver com isso. Eu acho que vai fazer mal pra mim, ficar aprofundando nisso, porque se eles nunca se preocuparam em sentar e falar: ‘não, ela é sua filha sim e tal e tal...’ Pra quê que eu vou ficar fazendo isso agora, né? Eu senti também que se eu me aproximasse muito dele, eu estava prejudicando a relação dele com a família dele, sabe? Porque a família dele despertou ciúmes, a mulher dele ficou enciumada... [...]

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14.4 – Reaproximação dos meio irmãos Se a mudança para a rua não a aproximou de seus pais consanguíneos, o mesmo

não aconteceu com seus meio irmãos. Contudo, mais do que a facilidade de acesso, o que

determinou o restabelecimento do contato foi a separação das casas. Nesta entrevista, como já

mencionado em nota, a narrativa sobre os meio irmãos mudou bastante, mas continua única

para os dois; o que lança luz sobre princípios unificadores da relação pais-filhos de criação.

Destaca-se a expressão atribuída ao seu pai: tem que me dever obrigação, objetivando (com a

redundância imperativa característica – “ter que”, “dever”, “obrigação”) a dívida contraída

com a dádiva do acolhimento. P: Você tem notícia daquele seu irmão de criação? Ah! O padrinho William! Ele vem muito aqui! P: É? Muito, vem muito. P: Você tinha me falado que quando ele entrou na adolescência ele “deu na louca de ir embora”... Isso. Foi embora, minha filha, e casou mesmo! [...] P: Então vocês restabeleceram o contato? Porque naquela época você me disse que tinha muito tempo que não o via. Muito tempo! Porque, na verdade, o meu pai adotivo não aceitou a situação dele querer ir embora. [Silêncio] Entendeu? Não aceitou. [Silêncio] É igual eu tô te falando, ele acha o seguinte: “Se morou comigo, tem [grifo de Laura] que me dever obrigação. Se me deu as costas, me traiu”. E as coisas não funcionam assim. P: A mesma coisa foi com a menina? A mesma coisa com a menina. P: E você tem contato com ela? Tenho! Tenho! A gente vai muito lá, eu sou madrinha de batismo da filha mais nova dela. Então, assim, a gente tem bastante contato. Mas, assim, sempre depois também que eu mudei pra cá. [...]

14.5 – A separação das casas: causas e condições A separação da casa dos pais constitui uma importante “ruptura biográfica”

(Lahire) na trajetória de Laura, fonte de novas configurações, relações e novos modos de agir,

pensar e sentir. Hoje, Laura relativiza o peso da obrigação de cuidar dos pais, não sente mais

que estaria prejudicando-os se saísse de casa. É importante notar que a separação das casas

deve-se à sua decisão de se mudar para a rua com o marido e os filhos. Não se tratou,

entretanto, de uma decisão arbitrária ou conflituosa; a mudança foi decorrente da

inviabilidade das condições: a doença na mão de seu marido que o impede de trabalhar na

roça e a dificuldade logística para o seu trabalho com as confecções. O tempo de resistência

entre uma situação desfavorável e uma situação inviável, quase impossível, retirou a

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arbitrariedade da decisão de Laura e favoreceu a aceitação do pai. A percepção de Tãozim de

que não poderia ficar sozinho com a esposa na roça, o obrigou a mudar seus conceitos e

acompanhar Laura e sua família, aceitando tacitamente sua dependência. Entretanto, como

praxe da relação, o pai assumiu o controle de tudo; ou melhor, de tudo o que poderia

controlar. Uma casa na rua, grande o suficiente para acomodar as duas famílias com certa

privacidade, espaço para as quatro crianças brincar e para Laura costurar, por exemplo,

escapou de seu controle. Assim, as famílias se separaram. Para a reconfiguração familiar,

Tãozim elegeu como determinante a categoria perto: as casas tinham que ser perto uma da

outra, para garantir o cuidado que Laura lhes deve; perto da praça, por se tratar do principal

centro comercial, de lazer e sede da Igreja Matriz; e perto de parentes, para o caso de

necessidade. Com estes critérios, ele escolheu o bairro, comprou as casas, registrou-as em seu

próprio nome e permitiu que Laura e sua família morassem em uma delas de favor, como faz

questão de frisar, redirecionando a dependência à Laura.

P: Como foi a sua mudança para a rua? Porque você tinha me dito que seus pais não eram conformados de mudar para a rua. Nunca quis mudar! [Pausa] Porque... o meu marido, ele tem uma doença na mão. Ela não tem cura, ela tem tratamento. Aí ele nunca poderia ficar na roça para trabalhar assim... em serviço... Você sabe que serviço de roça é severo, ele é pesado. Aí ele nunca pôde trabalhar na roça com isso, ele sempre trabalhou na rua, onde tenha serviço que ele consiga fazer. P: Ele tem o que na mão? Ele tem uma doença que chama Doença de Kienböck. [...] eu falei assim: “Pai, pra mim ficou inviável. Meu marido trabalha na rua. Eu trabalho para confecção, eu dependo de estar levando roupa, buscando roupa e eles [os contratantes] a mesma coisa. Se chover, como eles vão vir? Não tem jeito [em função dos atoleiros da estrada de chão].” Se eles têm um pedido de roupa para sair hoje, é hoje! Amanhã não serve. Se hoje não tiver como eles vir buscar ou eu ir levar, como que fica a situação? Eu acabo perdendo meu emprego por não poder atender... Né? Aos pedidos deles e às exigências que eles têm também. Aí pra mim ficou inviável. Meu marido trabalhando na rua, eu prestando serviço para confecção... Pra mim era quase impossível! [Pausa] Aí o pai falou assim: “Não, já que eles vão se mudar... chegou num ponto em que eles não vão ficar mesmo, eu também não posso ficar sozinho mais.” Aí resolveu mudar todo mundo. Ele vendeu um pedaço do sítio dele, comprou a casa que ele mora e essa casa. P: E seu pai não reclama de você trabalhar? Porque naquela época, eu me lembro, que ele estava reclamando... Reclamava! Reclamava demais! Ele reclama até hoje! [Risos] Reclama até hoje! Sabe, ele acha que se eu sou mãe, eu tenho que viver só em função do filho, mais nada. Não precisa de trabalhar. Não... não existe esse negócio. Se eu sou casada, a obrigação de me tratar é do meu marido. É aquela cabeça de mil novecentos e bolinha! Sabe? Não tem cura. É assim até hoje. [Silêncio] E a tendência dele é só piorar. [Silêncio] Aí quando ele viu que chegou no limite, ele pensou assim: “Epa! Realmente ela vai mesmo e eu vou ficar sozinho.” Aí que ele mudou os conceitos dele.

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[...] P: Vocês mudaram todos juntos? Escolheram a casa...? Como é que foi? Não... O pai, no caso, acabou comprando a casa. Já que ele ia comprar a casa pra mim morar, eu resolvi não interferir porque... tipo assim, eu tô ganhando [Pausa], eu não vou escolher o que eu vou... né? [Silêncio] P: Ele comprou onde ele quis? Ele comprou onde ele quis. [Pausa] Ele quis comprar aqui, aí a gente se mudou para aqui e ele quis se mudar para lá. [Silêncio]

14.6 – Missão X carma de cuidar dos pais até a morte Laura chama atenção para a inversão na relação de dependência que, atualmente,

a une aos pais. Para falar disso, ela nos dá uma ideia da diversidade de tarefas concernentes à

filha de criação/adotiva que envolve desde o cuidado da casa e dos pais até fazer as unhas da

mãe. O cuidado dos pais na velhice é a tônica deste excerto. Trata-se de uma passagem muito

significativa, em que Laura analisa reflexivamente a narrativa de outros filhos de criação e o

senso comum que rege a prática de pegar para criar em Bagre Bonito.

Antes de destacar alguns pontos importantes, gostaria de comentar a aparente

confusão pronominal na narrativa de Laura, comum desde a primeira entrevista, mas bastante

evidente a seguir. As situações em que Laura fala de si na terceira pessoa são, geralmente,

narrativas de enfrentamento ou diatribes à naturalização das desigualdades que envolve a

relação pais-filhos de criação/adotivos, o que indica se tratar de uma estratégia retórica para

falar de algo condenável pelos códigos morais sem se comprometer. Desse modo, Laura me

coloca em seu lugar e discorre em tom de ensinamento sobre um contexto cujos bastidores, ao

seu ver, desconheço porque não o experiencio.

Segundo Laura, a diferença estrutural entre filho e filho adotivo/de criação

encontra-se na obrigação de cuidar dos pais. Em sua análise, filho é uma dádiva; o cuidado

que os pais têm para com o filho é a retribuição (a Deus) da dádiva recebida. Um pai faz para

um filho sabendo que nunca vai receber em troca aquilo que ele já fez. Você só começa a

pagar aquilo quando você se torna mãe.9 O filho adotivo, ao contrário, foi adotado para

servir de companhia, para ajudar. Então, não é como um filho. Cuidar dos pais, nesse caso, é

a retribuição do filho adotivo/de criação à dádiva do acolhimento. A narrativa reflexiva de

9 Nota-se que Laura reconhece como dádiva genuína uma relação de reciprocidade entre posições e não entre indivíduos. O filho que recebe hoje, será o pai que doa e paga amanhã; doa ao seu próprio filho pagando/retribuindo a Deus. Dádivas paralelas. No caso dos filhos de criação, a análise se torna mais complexa a partir de duas razões imutáveis: o condicionamento da posição filho de criação ao indivíduo que a ocupa e a permanência, moral, do indivíduo nesta posição (ex-filho de criação). Como veremos mais detidamente na terceira parte, capítulo 17, instaura-se aqui também uma dinâmica de dádivas paralelas, inaugurada não por Deus, nem pelo pai, mas pelo filho de criação; ao doar a Deus o sofrimento oriundo da retribuição aos pais.

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Laura acerca de sua observação de outra filha adotiva em uma festa de aniversário é

fortemente ilustrativa. De acordo com a perspectiva evolucionista que baseia seu raciocínio,

cujo ponto de chegada é a condição de filho, de fato, Laura atingiu a etapa mais evoluída que

uma filha de criação/adotiva pode chegar; qual seja, cuidar dos pais a distância, o que, de

fato, a aproxima de um filho normal, cuja obrigação de cuidar dos pais na velhice não

implica coabitação. Desse modo, Laura ainda cumpre a sua missão, mas considera que se

libertou do carma de morar junto, aliviando-se do cuidado outrora integral e exclusivo.

Laura introduz uma interessante diferenciação entre missão e carma, levando em

consideração a consanguinidade. Em linhas gerais, o cuidado dos pais que os demais filhos de

criação e o senso comum classificam como missão, Laura prefere chamar de carma. Missão,

para ela, é algo que você escolhe; carma, ao contrário, você já nasce com ele. Desse modo, o

cuidado dos pais pode ou não pode ser uma missão para os filhos consanguíneos, mas, com

certeza, é um carma para o filho de criação/adotivo. Sua narrativa revela ainda a

transformação do carma em missão relativizando a obrigatoriedade do primeiro e acentuando

a voluntarismo do segundo. Contudo, mantém-se consciente da arbitrariedade desta missão:

eu não tracei essa missão, esse caminho não. [leio sobre a dependência e doença dos pais10] É verdade. [Silêncio] P: E como eles reagiram à separação das casas? Pois é... Só que é aquele caso: ela [mãe] não admitia e não admite até hoje que ela dependa de alguém. Ela acha, mais ele, que eles... Tipo assim: eu sou dependente deles [grifos de Laura]. Não é o contrário. [Pausa] É aquele caso... Eu acho que é mais de criação, eles foram criados assim. Sabe? [...] Hoje em dia ela sente falta. Ela tem que pagar pra tudo: ela paga para arrumar unha, ela paga para lavar roupa, ela paga para arrumar... tudo! P: E você, como se sentiu? Porque você disse que sentia que estaria “prejudicando eles”. Você sente que os prejudicou saindo? Hum... não. [Pausa] Eu acho que, assim, eu me libertei desse carma! Eu achava que eu estava prejudicando. Não, muito pelo contrário; eu acho que eu passei a viver melhor,

10 P: Quando conversamos, você me contou sobre as doenças que seus pais têm que os tornam dependentes de ajuda e cuidado de alguém. Você me disse assim: Ela [mãe] sempre foi doente. Ela é dependente. [...] Então, assim, ela não dependente, vamos supor, do pai. Se ela fosse dependente só de um marido, de um homem, era uma coisa. Mas, como é que uma pessoa que não enxerga bem faz uma comida? Se os olhos não estão bem. Dos olhos dela saem secreção. Há pouco tempo agora, há uns dois ou três anos, a operação que ela fez a dezessete anos atrás, os fios dos pontos da cirurgia estavam soltando, estavam saindo para fora dos olhos. Aí tinha que ir ao médico, em Juiz de Fora, quase todos os meses para tirar pontos de cirurgia de anos atrás. [...] O meu pai fez cirurgia do coração também. Tem onze anos. Ele ficou em Juiz de Fora um mês internado. Ele já fez uma ponte de safena, duas mamárias, duas angioplastias, dois cateterismos... Então os dois são dependentes de uma pessoa. Então é aquele caso; se eu sair, é como se eles tivessem perdendo o esteio da casa. Porque se ele não pode sair, sou eu quem vai pegar o carro, dirigir e levar onde precisa. Com ela a mesma coisa: se não tem ninguém para arrumar a casa, sou eu quem arrumo; ninguém para lavar a roupa, sou eu quem lavo; ninguém para fazer comida, sou eu quem faço... Então, assim, se eu saísse, eu estaria prejudicando eles, no caso, nesse sentido, em muito.

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porque eu tirei essa responsabilidade que... não era só minha, que eu não tinha que ter tanta. [...] Eu me senti aliviada. No começo eu fiquei com pena, [...] Aí eu falei [pensou] assim: “Está ali, está perto, mas está separado, cada um cuidando da sua vida. Está ótimo!” P: Você hoje sente que ainda tem alguma obrigação com eles? Eu sinto assim... Obrigação assim: eu sei que hoje, amanhã, onde eu estiver, a obrigação de estar cuidando agora na velhice é minha. [Pausa] Né? Querendo ou não, sou eu que tenho que cuidar. Mas, assim, obrigação de estar ali, de ter que morar junto, não. P: Você concorda com a frase: “os pais cuidam dos filhos para depois os filhos cuidarem dos pais”? Também. Muito. É bem correto. [Pausa] Eu não concordo assim: a gente não tem que fazer nada achando que vai receber aquilo em troca. Né? Porque um pai faz para um filho sabendo que nunca vai receber em troca aquilo que ele já fez. Nunca. Você só começa a pagar aquilo quando você se torna mãe. P: Uma filha de criação que eu entrevistei só conseguiu viver a vida dela mesmo, casar, ter sua casa... depois que os pais morreram. [Laura interrompe] Nossa mãe! P: É. Ela ficou e cuidou dos pais até a morte deles. Aí, quando ela me contou isso, ela me disse: “Cumpri minha missão. Fiquei com eles até cumprir minha missão”. Você também sente isso, esse cuidado do filho como uma missão? Não, não. Aí eu vou te responder em questão de ser adotivo [grifo de Laura]. De ser filho, não. Acho que filho é uma dádiva, independentemente de missão. Não. Eu acho que... assim... Eu não sei se são todos os pais que pensam assim, eu vou responder pelos meus. Meu pai nunca me deixou estudar porque ele achava que: “Se eu adotei é para mim ter uma companhia [grifo de Laura]”. Então, ele adotou pensando: “Eu adotei uma pessoa para me servir de companhia, para me ajudar”. Então, assim, não é como um filho. Então eu acho, assim: [...] se no dia de amanhã, que meu pai e minha mãe morrerem, eu acho que sua cabeça se estabiliza mais. Você acaba se aliviando. Você pensa assim: se eu nasci, se eu fui adotada no intuito de ser companhia de alguém e essa pessoa morreu, então eu acabei de cumprir a minha missão. Então, assim, para o filho adotivo sim, é uma missão. P: Para o filho biológico não? Não, de maneira alguma. Porque... olha, pensa assim, eu falo por mim, eu sou adotada: eu levei meus filhos, teve uma coleguinha que fez aniversário nessa semana e a gente foi nesse aniversário. Aí tinha um casal também de pessoas que já eram... que são mais velhas, que não podem ter filhos (e que são parentes da minha mãe, inclusive). Adotaram uma menina. E eles são branquinhos e adotaram uma menina morena. Ela não é negra, ela é morena, do cabelo bem pretinho. E os dois são branquinhos do cabelo claro. Você olha pra... Eu, como adotiva, olho pra ela e penso assim [Laura baixa a voz e pronuncia, com pesar, destacadamente cada palavra]: ela sempre vai ter uma missão. [Silêncio] Porque... Se ela falar assim [aumenta a voz e encena uma discussão]: “Eu quero ir embora! Eu quero estudar! Eu não quero cuidar de ninguém! Eu quero ser independente como qualquer filho normal seria!” Eles vão sempre responsabilizar ela: “Mas eu te adotei! [Pausa] Eu te tirei da rua!” [Pausa] Você está entendendo? [Pausa. A próxima frase é pronunciada em um sussurro quase inaudível:] Ela vai carregar esse peso para o resto da vida dela. [Silêncio] Então, eu olhava para ela assim, eu imaginava assim: “Meu Deus! Estou numa etapa muito mais evoluída do que aquela menina; eu já passei por isso aí...” Então ela tem um caminho bem grande aí para percorrer. [Silêncio] Eu acho que ser

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filho adotivo... infelizmente, querendo ou não, a gente carrega essa obrigação. Não tem jeito. [Silêncio] [...] Eu acho que missão... eu não sei assim, no fato certo de pensar da palavra não, mas eu acho que missão é algo que você determina e cumpre até o fim da sua vida. Eu não tracei essa missão [cuidar dos pais], esse caminho, não. [...] P: Você acha que tem diferença entre “missão” e “carma”? É, eu acho assim... É igual eu tô te falando, eu acho que missão é algo que você escolhe e segue até o fim da sua vida. O carma... O carma você já nasce com ele. [Pausa] É um peso que você é obrigado a carregar até o fim da sua vida ou então até que você consiga se libertar dele. [Silêncio]

14.7 – Filhos e filhos: diferenças e desigualdades Laura não aponta diferenças entre filho adotivo e filho de criação, além da

maneira de falar. Ambos sofreriam as mesmas iniquidades, muitas delas provenientes de uma

diferença destacada aqui como primária: pais claros, brancos, e filhos morenos, negros. A

diferença racial, para Laura, objetiva a adoção/adoção, retirando de antemão a igualdade de

filho do filho adotivo/adotivo/de criação. Transformando a diferença objetivada em

desigualdade, ela chama atenção para o discurso público dos pais ao apresentar o filho

adotivo: Não é minha filha, é uma pessoa que eu peguei pra criar.

Laura também fala de amor, mais especificamente da diferença de amor que

contrapõe pai verdadeiro e pai adotivo, trazendo à tona uma questão inédita na pesquisa, mas

latente como dúvida ou possibilidade: abuso sexual. É como possibilidade que ela a aborda

para explicar a distância física que, para preservar incólume o nome do pai na sociedade, a

privou do carinho de um abraço, de um beijo paterno. Com a maturidade e o acesso a

contextos diferentes do familiar em que foi socializada, diferenças como esta, até então

despercebidas, foram objetivadas com estupefação.

A narrativa de Laura mostra ainda como a adoção (ou acolhimento) inaugura uma

relação vitalícia de contraprestação. Se foi adotado, sempre vai dever um favor. Todos,

sociedade e família, mais do que esperam, cobram, a retribuição grata deste favor através da

submissão. A cultura de pegar para criar há gerações molda a criação adequada aos filhos de

criação/adotivos, na visão de Laura, tal qual um autômato programado para servir: um

robozinho, constituindo um habitus no sentido bourdieusiano mais inflexível. A submissão

passa a ser cotidianamente atualizada por uma “rede de observação” (Comerford) que

fomenta o cumprimento da missão através do reconhecimento público de um

condicionamento preestabelecido: É melhor ter filho de criação do que de sangue porque

filho de criação não abandona os pais. Laura objetiva o mecanismo tácito, previamente

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compartilhado: Eles falam isso porque sabem que você não pode abandonar os pais! (grifo

de Laura)

Além da dádiva da vida, se não fosse a gente, você nem viva estaria, Laura fala

das dádivas para a vida do dia a dia (casa, comida, vestuário, proteção, criação etc.), também

cobradas diariamente: você mora numa casa muito boa, você tem que agradecer eu, senão

você não tinha nada! Cobranças que ela percebe como humilhações e das quais tenta se

desvencilhar, mas tem seus projetos de emancipação inviabilizados pelo somatório perpétuo

de dívidas. As humilhações nunca vão acabar. Seu caso lida ainda com a singularidade do

registro no nome dos pais, cujo direito à herança inaugura uma espécie de dádiva invertida.

Tudo o que eu tenho é seu. (Tãozim) Mas eu não tenho nada! Nada, nada. (Laura) [leio a narrativa sobre provar que não vai ser o que maquiaram11] É verdade. [Pausa] É porque, assim... Até você se conscientizar sobre quem você é, até que você já [se] estabilizou: “Não, realmente, a coisa é desse jeito e infelizmente nunca vai mudar.” Realmente é assim. Infelizmente as coisas funcionam desse jeito. [Pausa] É verdade. [Silêncio] [...] P: O que você acha que a sociedade espera do filho adotivo? É igual eu te falei, pelo o que as pessoas têm de maldade ou de pensar que... se foi adotado, sempre vai dever um favor porque ela foi tirada de um mundo que talvez seria ruim. Eu acho que as pessoas vão sempre achar que aquela pessoa que foi adotada, tem que ser a melhor possível porque... ela deve um favor. Ela sempre vai andar devendo um favor. P: Era a próxima pergunta, você acha que a sociedade encara a adoção como um favor? É. [Pausa] É um favor. P: E você acha que a sociedade espera retribuição desse favor? Espera sempre! Sempre! [Silêncio] Ela sempre te cobra isso. É igual eu tô te falando, a pessoa te cobra! Ou se você tiver uma briga entre mãe e filho ali... entre pai e filho, eles vão te cutucar nesse ponto aí: “Engraçado, eu te adotei achando que você seria isso... [algo ‘bom’]”. Você vai entrevistar mil pessoas adotadas, elas vão sempre te responder isto aí. [Silêncio] Infelizmente, sim. P: Como seria essa retribuição?

11 P: Você me disse o seguinte: [...] o sentimento de uma pessoa adotada é diferente do sentimento de uma pessoa que não é. P: Aí eu perguntei: ‘É mesmo?’ E você disse: É. Eu classifico assim. P: Aí eu perguntei: ‘Mesmo tendo vindo pra cá ainda bebê e sendo criada como filha?’ E você: Mesmo assim, sabe por quê? A sociedade te vê de uma forma diferente. Você é especial para a sociedade; porque você é adotada. É comum todo casal ter filho, né? Não é comum todo casal ter filho adotado. É difícil! [...] Você pensa de uma forma diferente. Parece que você se sente mais sofrida do que as outras crianças, entende? Eu sempre me senti assim, sabe? [...] A família do meu pai meio que ficaram revoltados. Eles pensavam assim: “deixa de ser bobo! Você vai deixar de ter filho para adotar filho dos outros? Isso vai crescer e você não sabe o que vai ser”. Entendeu? Então você cresce tentando mostrar para eles que você pode ser normal, como qualquer outro filho, mesmo se fosse um filho biológico, se fosse deles, um filho normal, bom ou ruim. Então você tem que crescer meio que provando para os outros que você não vai ser aquilo que maquiaram. É um pouquinho diferente.

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É igual eu tô te falando, você tem que seguir uma linha: onde eu piso, você tem que pisar. Você tem que ser sempre... submissa. É. P: E você acha que existe alguma diferença entre filho de criação e filho adotivo? A maneira de falar. Eu acho que é maneira de falar. É de região. É igual mandioca e aipim; é uma coisa só, né? Eu acho que é tudo uma coisa só, não muda nada não, criação com adotivo. E é sempre assim, ó [olha]: você tem uma filha adotiva. Aí, geralmente, um filho adotivo sempre é moreno. Repara pra você ver. Infelizmente, querendo ou não, é. Ou é moreno ou é negro. Isso é uma grande... injustiça que as pessoas criam. Aí, a pessoa vira para o outro e fala assim (já pergunta assim, você sente uma maldadezinha na pergunta): “Essa aí é a sua filha?” A pessoa fala assim: “É, essa daqui é a menina que eu adotei.” Ela não vai te responder: “É, é minha filha.” Ponto e acabou o assunto. Nunca vai te responder. [Silêncio] Nunca. [Silêncio] Senta do lado, convive com uma pessoa... Você vai ver, se surgir essa pergunta, se a resposta não vai ser essa. Sempre vai ser. É sempre assim: “peguei pra criar” Né? “Ela não é minha filha, é uma pessoa que eu peguei pra criar.” [Silêncio] P: Eu ouvi de algumas pessoas aqui da cidade que “é melhor ter filho de criação do que de sangue porque filho de criação não abandona os pais”. É! É o que eu tô te falando! Eles falam isso porque sabem que você não pode! [grifo de Laura] Você não pode abandonar eles. É isso que eu tô te falando; eles te moldaram para ser criado assim: a mesma coisa que um robozinho. Você criou um robozinho na função de ser faxineiro, ele vai viver naquilo ali. Infelizmente é assim. Querendo ou não, é assim. [Silêncio] Vida de filho adotivo. [Silêncio] P: Exatamente sobre essa “vida de filho adotivo”, você me contou uma história muito interessante da outra vez [leio a narrativa12]. Igual outro dia, eu estava vendo... O André [marido] é uma criança! Ele brinca muito com os meninos. Ele deita, rola com os meninos, os meninos jogam a perna em cima dele... Você está entendendo? [...] Eu falo assim: ele deita com os meninos no chão, ele dorme, ele abraça, ele beija... Sabe? Carinhoso demais da conta. Eu... assim: se o meu pai estivesse sentado onde você está e eu sentasse onde estivesse essa bolsa [ao meu lado], ou eu ou ele tinha que levantar. [Silêncio] Um dos dois tinha que levantar. Ali eu não poderia ficar. P: Como assim, perto? É. Não podia. É... à noite... toda criança tem medo de dormir sozinha, às vezes você quer dormir e ficar perto, né?, da pessoa que está junto com você. É... se fosse para mim deitar na cama, eu tinha que deitar na beirada do lado da mãe; do lado dele, não. [Silêncio] Era assim. [Pausa] Meu pai gostava muito de esteira [tapete feito de palha], aí ele mandava as

12 “Eu lembro que, às vezes, quando eu era pequena, a minha mãe me contava histórias que ela não se tocava que me machucava e eu também não falava nada. Até que um dia o meu pai falou pra ela: ‘Minha filha, você está contando um caso seu, mas que machuca ela’. O caso era assim: o pai dela obrigava ela a trabalhar muito e ela não tinha o direito de reclamar. Quando ela cresceu, estava, assim, numa faixa maior de idade, ela chegou para ele e falou assim: ‘Ô, pai, eu sou filha adotiva?’ E o pai respondeu: ‘Não, por quê?’ E ela disse: ‘Não, porque quando o filho é adotivo é que a gente judia. Por que o senhor judia tanto de mim?’ Entendeu? Ela falava assim com ele, só que contava para mim. Ou seja, se judiassem de mim, eu tinha que aguentar porque eu sou adotiva. P: E você não falava nada? Não. Quando eu era pequena, havia mais conflito em relação a isso, sabe? Às vezes eles falavam coisas que me ofendiam e se eu tentasse responder ou tentasse conversar a respeito do problema, eles falavam assim comigo: ‘que não, que eu deveria ser muito agradecida a eles, porque se eu estivesse com a minha mãe lá em São João, talvez nem viva eu estaria.’ Eles me criaram com a mente o seguinte: eu tenho que viver agradecendo somente a eles, porque foram eles que me deram a vida. Entendeu?”

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pessoas fazer esteira para ele deitar no chão. Aí ele deitava na esteira, se ele estivesse dormindo, até o momento em que ele estivesse dormindo, eu ficava ali. Se eu deitasse e ele acordasse ou ele estivesse acordado, eu tinha que levantar; porque, diz ele, que se os outros chegassem e pegassem aquilo ali, o que que os outros iam pensar dele? [Pausa] Olha então para você ver como funcionava! Então, até então, quando eu era criança, que eu não me tocava muito, não tinha maldade, tudo bem. Mas depois que eu cresci que aí eu fui entender o que ele falava, o que ele pensava a respeito daquilo ali. Então hoje eu vejo: Meu Deus! A diferença que é um amor de pai verdadeiro com um amor de pai adotivo. Porque eu vejo pelo meu marido que é pai. Eu sou mãe, né? Eu não sou pai. [...] Então hoje eu paro e vejo e penso: gente! É muito diferente! P: Então seus pais ainda pensam assim, eles acham que você não estaria viva se não fosse por eles? Pensam! A mesma coisa! A mesma coisa. Eles não mudaram... nenhuma unha! P: Eles esperam essa gratidão de você? Esperam! P: Cobram? Cobram! [Silêncio] Sabe, independentemente do que acontecer... É igual, ele [pai] usa muito esse termo: “Tudo o que eu tenho é seu.” Sabe? Ele usa esse termo constantemente. É corriqueiro dele: “Ah, mas ela não precisa reclamar porque tudo o que eu tenho é dela.” Tipo assim: você hoje é mãe, se seu filho precisar de você hoje, seja de presença, financeiramente... Hoje! Adianta ele esperar chegar no ponto de herdar? Você vai falar assim: “Meu filho, você precisa de mim para dinheiro? Então você para tudo. Ah, precisa de mim para comer? Fecha a boca, não come durante tantos anos porque você só vai herdar...” Entendeu? É igual ele fala, depois que a gente se mudou: “Você mora numa casa muito boa, você tem que agradecer eu, senão você não tinha nada!” Ele usa isso até hoje, você está entendendo? [...] P: Esta casa ele colocou no seu nome? Não! [Pausa] Não tenho nada! Entendeu? [...] Tudo, tudo, tudo o que ele tem está no nome dele. Sabe? Ele não partilhou, não compartilhou nada. Mas eu não... Para mim, tanto faz. Para mim a coisa é bem diferente, bem diferente. [Silêncio] Igual outro dia, eu estava lá na casa deles e ele recomeçou com as humilhações... “Você tinha que agradecer mais porque tudo que você tem é graças a mim. Se não fosse a gente, você nem viva estaria lá, com a sua mãe lá.” Aí eu peguei e falei [em tom cansado]: “Ai, ai... pai. O senhor já falou demais por hoje, deixa eu ir para a minha casa.” Ele virou e falou [com ironia]: “Sua casa? Qual casa que é a sua? Que casa você tem? Você não tem casa nenhuma, minha filha. Minha casa! [grifo de Laura] Você mora lá de favor.” Aí eu engoli aquilo pra não dar mais confusão e falei: “Tá, pai, eu sei que a casa é sua, mas eu que tô morando lá, né? Então, deixa eu ir pro meu canto.” [Silêncio] Às vezes eu tinha vontade de juntar um dinheiro, sabe? De fazer um financiamento para construir uma casa e sair daqui. Mas, aí eu penso por outro lado: se não for essas humilhações, serão outras. As humilhações nunca vão acabar. [Pausa] É igual o meu marido fala: “Pra que que nós vamos gastar o dinheiro numa casa, se as humilhações não vão acabar? Então, pelo menos, a gente mora aqui de graça e guarda esse dinheiro pra outra coisa.” Engolir humilhações mostra-se imprescindível para a manutenção da relação com

os pais e, como vimos, Laura aprendeu isso muito cedo; desde criança engole coisas que

machucam muito para evitar confusão. Sabedoria, como ela entende, própria de quem já se

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conscientizou sobre quem realmente é, da imutabilidade da relação de dominação e se

estabilizou impotente na posição de dominado. Além do habitus decorrente de uma

socialização específica, Laura aponta a submissão pela consciência da dívida e da cobrança

coletiva. Ao revelar algo indizível publicamente, mostra como consegue torná-la exequível:

Às vezes você tem que ser até meio falso, porque senão não tem jeito; vai brigar o resto da

vida. De um modo ou de outro, isto é, consciente ou disposicionalmente, o que se tem é uma

relação de dominação e submissão/servidão. Cabe ressaltar ainda que a profícua autoanálise

de Laura não se aplica, como ela supõe, à maioria dos filhos de criação de seu contexto. Sua

consciência da dívida e da expectativa coletiva de retribuição explica o seu caso: por que ela,

uma jovem mulher, crítica, com acesso a contextos diferenciados em valores e ações,

consciente dos mecanismos subjacentes da dominação que define a relação pais-filho

adotivo/de criação, se submete.

14.8 – Dominação: parental, patriarcal-masculina

Como visto, não se pode chegar a uma compreensão razoável da relação de Laura

com os pais sem uma análise cuidadosa do contexto sociocultural em que está inserida.

Assiste-se em Bagre Bonito a uma naturalização da dominação parental em que, grosso modo,

os pais têm sempre razão. A correção dos filhos com agressões físicas é socialmente

estimulada: falta de educação é falta de couro [surra]. Mesmo em casos de violência extrema,

dificilmente os pais são formalmente denunciados. A punição fica circunscrita à difamação

moral na e pela “rede de observação”, o que, como se sabe, não é pouca coisa naquele

contexto.13 Contudo, os exemplos trazidos por Laura relativizam a dominação parental em

detrimento do binômio dominação patriarcal-masculina. Como mãe – independente da

consanguinidade, posto que pais de criação têm as mesmas prerrogativas –, Laura teria o

direito de castigar corretivamente seus filhos, mas não é o que acontece; seu pai assume para

si a exclusividade de bater nos seus filhos e desautoriza Laura e seu marido de fazê-lo. Se a

dominação masculina é suficiente para inferiorizar e desautorizar Laura, para desautorizar

André, marido de Laura, Tãozim precisa recorrer ao seu poder patriarcal.

13 Na entrevista realizada posteriormente com Tãozim e Graça, eles citam um caso: Tãozim: [...] a criança parou de conversar. Por estupidez, por espancamento. Graça: De briga dos pais. Tãozim: A menina ficou aleijada, ficou defeituosa por causa de briga dos pais, por causa de espancamento. Graça: Ela nasceu, chegou a andar, conversar... P: Quem? Tãozim: Uma menina aí, parente dela [Graça] até. [...]

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Exemplos de dominação masculina, de machismo, percorrem a narrativa de Laura:

Já que era para adotar, tinha que ser menina, porque é igual ele [Tãozim] falava e ele fala:

“menina tem como você mandar. Menino não tem”; “o problema é com ela [Graça] porque

eu sou o tal, eu sou o homem, não posso ter esse tipo de problema” etc. A desigualdade de

acesso a tratamento médico entre Tãozim e Graça constitui outro exemplo, mas constitui

também a única situação em que Laura pôde se contrapor à dominação do pai. Defender a

mãe das negligências absurdas do pai é socialmente legítimo, uma vez que, ao fazê-lo, Laura

está cumprindo a sua missão. Em nenhuma outra condição este enfrentamento é permitido,

nem mesmo para defender seus filhos. Como aponta sua narrativa, cabe à sociedade julgar o

abuso de poder dos pais sobre os filhos de criação e os seus. A transparência das

arbitrariedades de Tãozim revela sua certeza da dominação patriarcal-masculina que o

reveste, mas, ao pecar pelo excesso, moralmente condenável, serve como arma de ajuda para

Laura. Sua condenação social, entretanto, tem eficácia prática reduzida pela loucura

potencial, decorrente de uma esclerose geneticamente à espreita, que relativiza suas

arbitrariedades e confina Laura à relação de cuidado cuja tendência é piorar. Laura, então,

age como pode para tornar suportável o inevitável e não gerar mais conflitos: engolindo

humilhações, sendo meio falsa, assumindo-se como um para-raios, assistindo calada, com um

corte no coração, seu pai agredir seu filho... [leio a narrativa sobre “os pais moldarem a situação”14] É, sempre, sempre. P: Eles continuam assim? Continuam. É igual eu estou te falando: e cada vez pior. [Silêncio] Cada vez pior. É... muito complicado. [...] A tendência tá piorando. Porque, na verdade, a família do meu pai, quando chegam numa certa idade, eles dão problema de esclerose. Sabe? Já é de genética. [...] A genética deles é assim, infelizmente. Então, assim, os que não morrem de uma forma rápida [ataque cardíaco], ficam loucos. Tem que internar, sabe? A cabeça fica ruim mesmo, piram de verdade. [...] P: Hoje, morando em casa separada, quando você vai lá seus pais ainda tentam interferir [ela me interrompe] Sim! Sim! P: ... na educação dos seus meninos? Interfere! Interfere muito! E o Patrick é o que mais sofre. É o que mais sofre porque o meu pai gosta mais de menina! Meu pai não gosta de menino! Não é à toa que ele me adotou. [Pausa] Você tá entendendo? Ele me adotou porque ele queria uma menina. Já que era para adotar, tinha que ser menina; porque é igual ele falava e ele fala: “menina

14 P: Você me disse, com relação à educação dos seus filhos: Eu não tento moldar eles como os meus pais tentaram me moldar. P: Depois, com relação ao seu casamento: Eu conheci meu marido primeiro e depois apresentei ele. Mas eles não gostaram dele de cara não, porque ele foi criado no regime de hoje em dia. Os pais dele pensam de forma diferente, são mais modernos, mais descontraídos, mais novos... Então é assim: já gerou conflito nessa área. Mas: “tá bom; já assumiu compromisso, quer casar, já é meio caminho andado”. Então é assim, eles tentam sempre moldar a situação.

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tem como você mandar. [Pausa] Menino não tem.” Cê tá entendendo? Então ele é autoritário. [Pausa] Então menina tem como mandar. [...] Se chegar lá na casa do pai, ele [Patrick] quer sentar no sofá, assistir televisão... Ele sabe ligar, desligar, colocar cd, tirar cd... Ele já sabe isso. Mas lá, ele não pode tomar uma água no copo, se ele não pedir. Ele não pode chegar e pegar uma água, não pode. Sabe? E se ele fizer isso, sem a permissão do meu pai, o pai bate nele. Bate mesmo! Bate! P: Ele acha que pode bater nos seus filhos? Ele acha que pode! Mas se eu corrigir o Patrick, corrigir assim: “Ô, Patrick! Vai para o seu quarto porque você está de castigo!” Não, ele [pai] vai lá, abre a porta e tira o menino do castigo. [Pausa] Porque eu não posso fazer isso. [Pausa] Ele desautoriza. Ele acha que o que ele faz é certo, o que eu faço é errado. Igual outro dia, esse mesmo Luís [parente e vizinho do seu pai] falou assim comigo: “Laura, eu se fosse você, não deixava o Patrick frequentar a casa do seu pai.” Eu falei assim: “Mas por que, Luís?” Ele: “Não, porque outro dia, [...] seu pai pegou (eu não sei se era um chicotinho... o que que era não, que é feito com fio de luz) e deu uma chicotada nas costas do Patrick.” Aquilo, quando o Luís me contou... Menina! Eu fui num mundo e voltei noutro! Foi a mesma coisa de ter dado um corte no meu coração. [Silêncio] P: Seu marido ficou sabendo? Ficou! Meu marido queria ir lá na hora! Eu falei: “Pelo amor de Deus! Não faz mais confusão não! É só cortar o Patrick de ir lá. Não vai lá mais.” Porque é igual o Luís falou: “Ó [olha], Laura, não é a primeira vez que eu vi. Tô te avisando porque eu acho isso um absurdo! [...]” P: E sua mãe não interfere? Não! Ela é passiva. E se você falar alguma coisa, eu estou errada. Eles é que estão certos. Entendeu? [...] Não adianta falar. E não é só eu que falei não; vizinhos já falaram, outras pessoas já falaram... e não adianta. A única coisa que me serve de arma de ajuda é que o que eles fazem, eles não escondem de ninguém. Então as pessoas percebem e falam assim: “Realmente, a Laura ou eles não estão falando algo que não bate, está acontecendo realmente.” As pessoas já viram como que está acontecendo a situação. Cê tá entendendo? Se eu estiver certa ou errada, aquilo ali não vai passar em branco porque as pessoas estão vendo a situação que chegou. É igual a minha mãe: a minha mãe estava com diarreia, mas aquela diarreia e vômito... uma coisa assim... não... não... não tinha cabimento mais! E o meu pai não se conformava de levar ela num médico especialista. Ela tem diabetes muito alta, ela tem problema de colesterol, ela tem problema de veia... Então, eu falei com ele: “O senhor não pode deixar ela sem fazer um tratamento. Ela tem que fazer um acompanhamento.” E ele... assim: se ele passou mal, ele vai no melhor médico possível que tiver. Ele é assim com ele! Agora, se ela estiver passando mal, é: “Vai no posto e resolve!” Sabe? Enquanto eu não falei com ele: “Se o senhor não tomar uma atitude, eu vou ter que conversar com uma autoridade para ver se põe na sua cabeça que ela tem que fazer o tratamento.” [...] Aí enquanto eu não ameacei ele mesmo, não chamei ele no duro, ele não concordou de levar ela no médico. [...] P: E os pais do seu marido, eles também tentam interferir na educação dos seus filhos? Não, não. [Leio a narrativa sobre se sentir como um para-raios15]

15 “P: Eu te perguntei: E o seu marido sempre aceitou bem o fato de seus pais tentarem moldar a situação? Você disse: Não! Ele nunca aceitou bem! [Pausa] Nunca. [risos] Porque eu, eu já estou acostumada; tem vinte e dois anos que eu convivo com isso. Eu falo pra ele: ‘você em três, não vai acostumar’. Às vezes isso gera conflito no meu casamento. E... assim... Às vezes eu penso em sair daqui e largar os dois sozinhos. E se acontecer qualquer coisa no dia de amanhã e eu me punir, entendeu? [Pausa] Porque não era para eu fazer isso. Mas aí eu penso: ‘meu Deus! Mas se eu não sair, eu vou acabar com o meu casamento!’ Porque, às vezes, eles entram no meu casamento. Gente! A partir do momento em que você se casa, ou mesmo namora, os pais tem direito de dar opinião à filha, mas ao casal, não!” P: Aí eu perguntei: E o seu marido? E você disse:

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É! É bem assim. Com o meu marido é pau ou é pedra. Se ele está com uma mágoa com você, ele não quer saber se vai ficar pior a situação não, mas que ele vai te chamar para conversar, ele vai! Ele é assim. [...] Ele não sabe conviver com o meio termo. E... com o pai mais a mãe, você tem que sempre conviver com o meio termo. Não tem jeito. Às vezes você tem que ser até meio falso, porque senão não tem jeito; vai brigar o resto da vida. E o meu marido não sabe viver assim. P: Hoje você ainda se sente o para-raios das coisas? É a mesma coisa! Eu tenho que ficar ali equilibrando ali no meio... Se eu não equilibrar o negócio, dá briga.

14.9 – Casamento: novo contexto, velhas disposições

Sem dúvida, a separação das casas foi muito benéfica ao seu casamento, mas sua

relação conjugal ainda é bastante afetada pela relação, passada e presente, com seus pais.

Laura não pôde, por exemplo, acompanhar o marido na mudança para Juiz de Fora em função

de sua obrigação de cuidar dos pais. Além disso, aspectos de sua criação encontraram, neste

novo contexto, condições para se manifestar. Ao contrário do que supus, Laura não

reproduziu a postura submissa e servil na relação conjugal. Até onde pude apurar16, os

conflitos com o marido são oriundos de sua postura rigorosa. No contexto mais descontraído

do seu casamento, ela tenta reproduzir a ordem, o rigor, a que estava acostumada seguir.

Porém, tal postura encontra limite na dominação masculina: Ele [marido] é explosivo, se ele

perder a paciência... aí eu já tenho outro comportamento. Sobre esse equilíbrio entre querer e

ceder, a narrativa da escolha dos nomes dos filhos é exemplar. Tal passagem destaca-se

também por recobrar a crise de identidade que Laura associou, na primeira entrevista, à

posição de filha adotiva17. O problema de não saber a quem puxou, por não ter o sangue dos

pais adotivos e convivência com os pais consanguíneos, tenta ser resolvido nos filhos. O

simbolismo dos nomes18 remete à percepção dual que Laura tem de si; isto é, antes e depois

de adotada.

P: Você não pensou em se mudar para Juiz de Fora junto com ele? Ah, não dá! [Silêncio] É muito complicado. [Silêncio] P: Por quê? É muito complicado. O pai mais a mãe não iam poder ficar sozinhos e... também, aqui é melhor para os meninos. [...]

“Nossa! O meu marido fica p. da vida! Mas ele reclama só comigo. Então é assim: eu sou o para-raios da casa, você tá entendendo? Eu recebo tudo! Eu recebo o que vem dos meus pais, eu recebo o que vem dele... entende? Eu meio que sou o para-raios, meio que fico no meio, equilibrando: ‘calma fulano, não é bem assim...’” 16 Laura se tornou mais contida ao falar do seu casamento. Suspeitei de cansaço, pois estávamos conversando havia horas. Porém, nas perguntas seguintes, ela retomou o entusiasmo e prolongou a entrevista. Além disto, assim que desliguei o gravador, sem qualquer sinal de fastio, Laura voltou a falar, espontaneamente, das dificuldades com os pais. Concluí, então, que ela não queria expor sua vida conjugal. 17Às vezes eu sou meio que sem identidade, porque eu sei quem é meu pai, eu sei quem é minha mãe, mas eu não sei quem sou.18 Tentei preservar a analogia empregada por Laura.

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P: O que leva você e seu marido a discutirem, brigarem...? Olha, eu acho que a culpa de briga aqui em casa mais sou eu. É igual eu tô te falando: eu fui criada num regime muito certinho, extremamente corretinho. E o meu marido, ele... assim... ele é descontraído, sabe? Eu sou... eu quero ser muito rigorosa. Eu acabo sendo rigorosa comigo mesmo. Eu sou rigorosa comigo mesmo. Então, assim, eu acho que o que faz discutir mais acaba sendo eu mesmo. [...] Ele é explosivo, é igual eu tô te falando, se ele perder a paciência... aí eu já tenho outro comportamento. [risos] Então tem que ser assim, tem que estar equilibrando porque a gente é bem o oposto um do outro. P: E os nomes das crianças, como vocês escolheram? Eu escolhi o do Patrick, porque Patrick-Patrícia. Eu me chamo Laura Patrícia. Eu queria escolher o da menina. Eu queria colocar o nome da Pâmela de Patrícia, mas o André já tinha esse nome de “Pâmela” há muito tempo. Aí eu escolhi o do Patrick, já que não podia ser Patrícia, que ia parecer comigo. O da Fabíola, eu escolhi o nome dela de Fabíola porque eu me chamava Fabíola. Quando eu fui adotada, a minha mãe trocou o meu nome e eu gostava do nome de Fabíola, achava bonito. E o Gabriel foi o Patrick que escolheu [devido ao sonho que teve, transcrito em nota no início do capítulo].

14.10 – Experiência religiosa: reciprocidade com o sagrado, visão crítica do inferno A história da previsão da gestação de Gabriel e a escolha do seu nome soma-se a

tantas outras experiências mágico-religiosas narradas por Laura desde à primeira entrevista.19

A tônica de sua relação com o sagrado está contida na frase: eu tenho que judiar é de mim

(mencionada na nota abaixo). O sacrifício mostra-se constitutivo desta relação, seja no

transcorrer de uma vida, como doação de si para obtenção da salvação, seja pontualmente,

como pagamento de uma graça atendida. De um modo ou de outro, trata-se de relações de

“dádiva” (Mauss). No exemplo trazido por Laura, a dádiva se inicia com um pedido, uma

demanda. Demander-doner-recevoir-rendre, como acrescenta Caillé, configuram o que se

entende por promessa, cujo ponto forte encontra-se na retribuição. A narrativa de Laura

destaca a satisfação prazenteira do dever cumprido com perfeição, garantindo, assim, abertura

para novos pedidos. Nota-se que não basta pagar a promessa, o crédito está em se sacrificar

bastante pagando o preço mais alto que poderia pagar. O sacrifício pletórico (ou a

“generosidade” do sacrifício) purifica esta relação de dádiva do utilitarismo. Como Laura

19 Muitas passagens não foram incluídas no texto, tais como: Laura: Eu gosto de ler a bíblia, principalmente quando estou deprimida, eu gosto de ler salmo, adoro. Gosto de santos, adoro. Mas o santo que eu gosto mais é Nossa Senhora Aparecida. Mas, assim, não vou te dizer que sempre fui devota dela. Eu sou devota dela depois do nascimento da Pâmela. [...] porque a Pâmela chegou no limite, ela teve tudo: ela deu problema de ouvido, ela deu esofagite, ela deu todos os problemas que uma criança poderia dar e ela tinha só um mês e meio. Ela chegou no limite de força dela. Então eu fiz uma promessa: “Nossa Senhora Aparecida, se você conseguir curar a minha filha, eu vou assistir uma missa em pé, com ela no colo, lá em Aparecida do Norte. Mas eu quero ir quando ela estiver bem pesada possível, é o preço que eu quero pagar!” E acabou o problema dela! Uma semana depois ela não tinha mais nada. [...] P: E você já pagou a promessa? Não, ainda não. Eu tenho que ir lá ainda. É porque a Pâmela era criança de colo ainda e a viagem daqui até lá é desgastante. Então eu pensei assim: eu tenho que pagar essa promessa sem judiar deles, eu tenho que judiar é de mim e não deles. Mas eu quero ver se ainda esse ano eu vou lá.

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reitera, não se morre do próprio excesso apenas por uma razão prática, não por falta de

devoção.

Sofrimento e sacrifício, como mostra a “etnografia dos indícios”, são preceitos

religiosos de salvação divina. A concepção de que o inferno é aqui porque é aqui que a gente

sofre, nas palavras de Maria, legitima o sacrifício e traz consolo ao pressupor a existência

apenas de um céu para onde vão os que merecem, os sofredores (percepção comum a todos os

filhos de criação). Para onde vão os que não merecem, não se sabe. Laura, entretanto, resolve

esse imbróglio, pelo menos em essência, por meio de um prolongamento crítico, altamente

reflexivo, que unifica a dualidade céu e inferno no indivíduo consciente: o inferno é a

consciência, seja aqui ou lá em cima. No inferno de Laura, passível de ser vivido no céu, o

martírio vai além do sofrimento da servidão; consiste em pensar criticamente e em vão o

tempo todo sobre ela. Logo, servir sob “a influência anestesiante do hábito”, como diz Proust,

habitus, diria Bourdieu, é, de fato, menos infernal.

P: Em nossa conversa anterior, você me disse que fez uma promessa a Nossa Senhora Aparecida para curar sua filha [Pâmela]. Você disse que a levaria em seu santuário em São Paulo e assistiria a uma missa em pé com ela no colo. Aí você disse assim: “mas eu quero ir quando ela estiver o mais pesada possível, é o preço que eu quero pagar!” Você conseguiu pagar a promessa? Consegui! Fui lá no mês passado! Hoje eu vou te contar o caso: eu comecei a passar muito mal com o problema da anemia. Eu não aguentava vir da minha mãe até aqui em casa mais, de tanto cansaço que eu sentia. Eu parava umas duzentas vezes no caminho. Eu pensava assim: “Gente! Eu não cumpri a promessa da Pâmela até hoje. E aí? Se eu fiz a promessa [de ir] no meu limite, chegou a hora.” Aí fui; com essa bitelona aí [aponta para Pâmela, que brincava no chão]!20 Fui com meu vizinho, o Luís (que eu estava te falando, que é tio do meu pai), ele foi junto comigo mais a esposa dele. [...] Aí eu cheguei lá, começou a missa e eu peguei ela. Cada hora um falava: “Senta aqui! Você está com criança...”. “Não, eu não posso sentar!” A missa acabou, todo mundo foi embora e eu tô lá; igual uma paspalha com ela no colo. Aí o Luís foi lá fora, voltou e falou assim: “Laura, você não vai sair não?” Eu falei: “Tô esperando a missa acabar.” Aí ele falou: “A missa já acabou há muito tempo!” E eu não percebi que tinha acabado! Menina! Aquilo ali passou tão rápido pra mim! A missa durou uma hora e meia! Aquilo ali passou muito rápido! P: Você acha que para obter uma graça a pessoa tem que fazer sacrifício? Se você tem fé. Pela facilidade ninguém consegue nada. [...] Então, se eu recebi uma graça, o preço mais alto que eu poderia pagar... não vou pagar com a minha vida porque para eles [os filhos] viverem, eles dependem de mim. Lógico que não vou chegar a esse ponto, mas que eu pudesse me sacrificar bastante. [...] P: Você acredita que exista céu e inferno? Eu acredito que exista céu, eu não acredito que exista inferno. [Pausa] Você sabe por quê? Você imagina bem: você morre e vai para o céu. Tem inferno pior do que esse: você lá no céu e conviver sabendo tudo de errado que você fez lá na Terra? Você se martiriza. Pra que ir para o inferno? Precisa? O inferno pior é a consciência. [...] P: Você já ouviu a frase: “o inferno é aqui”?

20 Pâmela tem metade do peso de Laura.

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Já ouvi muito! P: Você concorda? Concordo quando a pessoa tem consciência disso. [Pausa] Porque a maioria das pessoas que se inferniza ou que inferniza as pessoas, elas não se conscientizam disso. P: Então o inferno é a consciência. É, é a consciência. Seja aqui ou lá em cima [no céu]. [...] P: Nos seus momentos difíceis, você acha que está vivendo o “seu inferno”? Isso. Sempre pensei assim. Quando eu ouvia coisas que me machucava, eu pensava: “Meu Deus do céu, não existe inferno pior do que isso não. Não precisa existir.” É igual eu tô te falando: eu acho que eu tenho que ajudar todo mundo, senão eu vou ser castigada. Eu penso assim. Eu penso nisso o tempo todo. “Meu Deus, e se eu negar ajuda e realmente a pessoa estiver precisando?” Eu sou assim. Eu acho que isso aí é um martírio! [risos] É um martírio! Pra que pensar em tudo na vida?

14.11 – A salvação

O inferno de Laura é imediatamente atribuído à consciência da obrigatoriedade

moral que constitui sua relação com os pais. Desde à primeira entrevista, ela enfatiza as

manobras empreendidas ou apenas conjecturadas de auto-salvação. Estudar e ser mãe,

aparecem, em ordem de prioridade, como dois sonhos de liberdade. Mais do que sonho, a

maternidade se objetiva agora como última alternativa à condenação – outra forma de

classificação da relação com os pais –, depois que o sonho de estudar foi amputado com a

pior facada. De fato, a obrigação de cuidar dos filhos é a única situação que relativiza a

obrigação de cuidar dos pais. Nem mesmo a obrigação de acompanhar o marido, analisada

na primeira entrevista, é tão legítima, haja vista a negação da oportunidade de se mudar do

município para acompanhar o marido em seu novo emprego. O fim da vida que Laura

vislumbrou com o fim dos estudos foi anulado pela maternidade; a vida continuou, projetada

nos filhos. Seu maior sonho agora é ver os filhos formados, mesmo que nem olhem para a

formatura. O estudo dos filhos é o resgate da luta interrompida, como ela acredita, por

pusilanimidade. P: Você tem algum sonho? O maior sonho que eu tenho: eu quero ver meus filhos estudados. Independentemente de qual profissão decidam seguir ou se formarem e não quiserem nem olhar para aquela formatura. Mas que tenha formado. “Eu cheguei até lá, eu não fui além porque eu não quis ou não gostei daquilo que eu fiz. Mas eu lutei, eu consegui”. É isso que eu quero. P: Você se arrepende de alguma coisa que você fez ou não fez? Eu me arrependo de uma coisa que eu não fiz. Igual: eu estudei, eu passei para o Coluni [Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa], eu passei no vestibular... E eu não tive a coragem de ser autoritária o suficiente para correr atrás e estudar. “Eu vou! [Pausa] Quer queira, quer não queira. Eu tenho esse direito!” [Silêncio] P: Quando você era mais jovem, você tinha algum sonho? O meu sonho sempre foi esse, estudar. Eu sempre quis estudar. Sempre, sempre, sempre. Para mim, foi a pior facada meu pai falar para mim: “Você não vai estudar.” Para mim foi. Ali eu acho que foi o fim da vida. Eu queria estudar, era uma coisa que eu queria demais e ele não deixou. [...] Eu só tinha um medo: de não poder ser mãe. Esse medo eu

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tinha. “Será que eu não vou ser mãe um dia? Será que eu nunca vou poder ser mãe?” [...] E, assim, quando eu engravidei do primeiro filho, eu abortei [involuntariamente]. Aí que meu medo aumentou! Eu acho que esse era o meu maior medo. Eu já tinha aberto mão de estudar, meu primeiro sonho era estudar, o segundo era ser mãe, aí eu já tinha aberto mão do estudo e de repente não posso ser mãe? Aí acho que seria terrível. [...] Eu estaria condenada àquilo ali. [Silêncio] Eu pensava: “Meu Deus, pelo tanto que eu sofro, pelo menos isso eu mereço.”

Bagre Bonito, 8 de setembro de 2012.

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CAPÍTULO 15 – Entrevista com os pais de Laura

No dia seguinte, voltei à casa de Laura para confirmar o endereço de seus pais e

então visitá-los. Conforme Lura havia me dito, sua mãe aguardava minha visita desde que

soube da minha estadia na cidade. Pode ir sim, ela está te esperando. É a segunda casa no pé

do morro; tem erro não. Antes de partir, me detive um pouco conversando com Laura,

sensibilizada pela sua reflexividade: Sabe, eu acho que quando os meninos crescerem, vai dar

para eu voltar a estudar, fazer uma faculdade... Sua fala estava mais comedida, parecendo

angustiada. Mais uma vez, me dei conta do impacto que uma pesquisa biográfica pode causar

e dos estímulos reflexivos que não se encerram com a entrevista.1

Cheguei à casa de seus pais por volta das três da tarde. Chamei por Dona Graça,

mas foi Tãozim quem me atendeu. Ele não se lembrou de mim, nem da pesquisa. Fiquei

alguns minutos à sua porta recordando minha visita à casa da roça. Tãozim escutou sem

interesse e laconicamente informou que a esposa estava dormindo. Não insisti; agradeci e

comecei a me retirar. Então, ele quis saber o motivo da pesquisa. Resumi o que acabara de lhe

dizer e novamente ele não demonstrou interesse. Outra coisa era mais importante: Você é filha

de quem? Minha resposta soou como o acerto de um código, tão imediata foi sua abertura me

convidando (imperativamente) a entrar. [...] P: Tudo bem. Eu volto outro dia então. Obrigada. Tãozim: Cê tá fazendo pesquisa de quê? P: Sobre filho de criação. Eu fui aquela vez na roça conversar com a Laura. Tãozim: Sei. E de quê que é? P: É de estudo. Tãozim: Heim? P: De estudo, faculdade. Tãozim: Sei. E... Você é filha de quem?

1 Efeito recorrente em pesquisas de aprofundamento biográfico sobre o qual pretendo me dedicar posteriormente. Em “Retratos Sociológicos” (Lahire, 2004) – exemplo que tomo como capital pelo seu caráter experimental –, uma das pesquisadoras colaboradoras comenta, sem levar a questão adiante, a necessidade de seu interlocutor recorrer a apoio psicológico para lidar com o que fora levantado pela série de seis longas entrevistas a que foi submetido. Até onde sei, o próprio autor da metodologia e da pesquisa, Lahire, não se ocupa desta questão ou de sua posterior “biografia sociológica” (2010) enquanto experiência reflexiva, uma vez não lidou com entrevistas/narrativas na biografia sociológica que empreendeu do escritor tcheco Franz Kafka. “Rupturas biográficas” (Lahire, 2004) de várias ordens e de considerável impacto após sucessivas narrativas biográficas – tais como: divórcio; pedido de demissão; retomada de projetos da juventude; afastamento ou reaproximação familiar, amical etc. –, tem sido apresentadas com sistematicidade, sem pretensões sociológicas ou mesmo psicológicas, pelo levantamento biográfico baseado na antroposofia de Rudolf Steiner (BURKHARD, 2010; 2011). A objetivação do potencial reflexivo e das mudanças decorrentes do aprofundamento (auto)biográfico trazida pela antroposofia me parece um caso profícuo de estudo epistemológico da biografia sociológica.

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P: Da Terezinha, filha do Osvaldo Coelho. Tãozim: Do Osvaldo. Entra pra dentro. P: Obrigada, seu Tãozim, mas eu posso voltar outro dia. A dona Graça não está dormindo? Tãozim: Tá deitada, eu vou chamar ela. P: Não precisa, eu volto outro dia. Tãozim: Entra pra dentro, eu vou chamar ela.

15.1 – Interesse em saber das coisas

Ficamos na sala. A decoração não era mais a mesma da casa na roça. Não havia as

imagens sacras e nem os retratos antigos do outro filho de criação e de Laura entre Tãozim e

Graça como dama de honra do casal. Os móveis também eram novos, reluzentes de verniz.

Enquanto aguardávamos Graça, Tãozim retomou o motivo da pesquisa e logo se animou, com

interesse em saber das coisas, tal como anos atrás. Felizmente, fomos interrompidos pela

chegada de Graça, que, de fato, pareceu aguardar minha visita. Por iniciativa deles, a conversa

retornou à apresentação de praxe, com o esboço da minha árvore genealógica, demonstrando

a eficácia da “rede de observação” (Comerford) e a importância do nome de família para a

navegação social. Tãozim [voltando à sala, após chamar a esposa]: Filha da Terezinha? P: Isso. É bonito aqui! Tãozim: É. Senta aí, fica à vontade. A casa é sua. P: Obrigada. Eu não vou demorar, passei para ver como vocês estão e conversar um pouquinho sobre a pesquisa. Tãozim: Sei. [Silêncio] Você trabalha é... é...? P: Eu trabalho sobre filho de criação. É um estudo. Eu fui aquela vez lá na roça conversar com a Laura para ela me contar como foi a adoção. Faz algum tempo, a Pâmela e o Patrick tinham um ano e dois meses, eram pequenininhos. Tãozim: Agora cê tem que vê! Cê não foi na casa dela ainda não, né? P: Fui, fui ontem. Tãozim: Foi ontem? P: Fui, fiquei a tarde inteira lá conversando. Tãozim: É?! E ela? [risos] Você ouviu alguma história boa dela? [risos] P: Ah, mudou muita coisa! Né? Tãozim: Hum? [Silêncio] P: Vocês se mudaram aqui para a rua... [Silêncio] Tãozim: [Silêncio] P: Teve mais dois filhos depois daquela época... Tãozim: É, tem quatro. [Silêncio] [A esposa chega] P: Oi, dona Graça! [Me levanto] Tãozim: Ela é neta do Osvaldo Coelho. P: A senhora se lembra de mim? Tãozim: Ela é neta do Osvaldo Coelho, da Terezinha. P: Eu fui fazer uma pesquisa com a Laura lá na roça uma vez. A senhora lembra? Graça: Lembro, uai! Senta aqui. Você já foi lá [à casa de Laura]? P: Fui ontem. Eu pensei que vocês ainda morassem todos juntos... Graça: Não, tem mais de ano que a gente tá morando aqui.

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Tãozim: A casa aqui é muito grande, tem um terraço lá em cima. Eu fiz uma rampa, porque esse negócio de escada... ela enxerga muito mal. Graça: Eu enxergo muito pouco. P: E como a senhora está fazendo com as coisas, enxergando pouco? Tãozim: Ah! Ela que aguenta o batente. Hoje mesmo ela fez armoço sozinha, ainda chamou a Laura pra vim armoçar aqui com as crianças. Graça: Eu enxergo muito pouco. Tãozim: Mistério, né? [Pausa] Mas muitas coisas eu faço pra ela. [...] Se tem assim, uma coisa... catar o arroz... [...] Graça: Quem que é sua avó? Tãozim: Sua avó é Vaz de Melo, né? P: É, é a Lourdinha Vaz de Melo. Graça: Ah, a dona Lourdinha. Tãozim: Ela é irmã do seu Geraldo Vaz de Melo. [Pausa] Do Osório Vaz de Melo. Seu avô é Coelho. Os Coelho vieram de fora. Graça: E você mora onde? P: Em Juiz de Fora. Tãozim: A sua tia é oficial de justiça, né? P: É. Tãozim: Eu conheço ela. Tem uma outra [tia] que mora com seu avô, não tem? P: É, a tia Neusa. Foi ela que foi comigo na sua casa lá na roça. Tãozim: É, ela não casou, ela cuida deles. Eu vejo ela aí de vez em quando. P: Então não tem ninguém ajudando vocês, estão só vocês dois? Graça: Não, tem assim... tem uma faxineira. É, mas... não... [Silêncio] P: Vocês sentem falta da roça? Graça: Eu sinto! É... porque lá tinha mais largueza. Tãozim: Eu, sinceramente, gostar igual eu de roça não tinha outra pessoa. Mas eu sou uma pessoa conformado! Se as minhas condição de saúde não aguentam mais, pra que eu vou enfrentar? [...] Mas aí, graças a Deus, nós tem tudo aí; os parente... Tudo aí pertinho é parente.

15.2 – Estrutura narrativa A meada narrativa se entretece de três fios: a ajuda ao núcleo familiar de Laura, a

sua ingratidão depois de tudo o que fizeram e fazem por ela e o descontentamento com o seu

marido, André. Estas três dimensões temáticas estão de tal modo entrelaçadas que torna difícil

uma análise isolada sem repetição. Talvez esta estrutura tenha se dado ou se tornado mais

objetiva devido à minha decisão de não intervir em demasia. Como meu objetivo era entender

o que a mudança para a rua e a separação das casas significou para Tãozim e Graça, bem

como o novo formato da relação a partir da versão deles, fiz poucas intervenções diretivas,

deixando a conversa fluir às suas maneiras.

Assim como anos atrás, o casal demonstrou necessidade de falar a verdade da

situação. Desta vez, de modo mais acentuado, em vários momentos a explicação assumiu tom

de denúncia, como, por exemplo, os relatos dos maus tratos cometidos por Laura e seu marido

contra eles, os pais, e contra os filhos. A conotação de maus tratos, entretanto, se esvai

quando Tãozim narra detalhadamente e sem constrangimento o próprio jeito de ensinar,

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naturalizando suas ações agressivas e degradantes (não deixando, como efeito secundário, de

falar a verdade).

15.3 – Ajuda

A trança narrativa resultante apresenta a categoria ajuda como síntese. Ajuda

estabelece o entrelaçamento dos temas e, sobretudo, de Laura e os pais: ajuda como doação,

ajuda como retribuição. A seguir, alguns exemplos da ajuda como doação. A participação e a

interferência de Tãozim na rotina doméstica de Laura é intensa; sua presença na casa é diária

e prolongada, impedindo que a separação das casas, de fato, separe as famílias.

[...] Eu plantei lá ao redor da casa da Laura, não sei se ela te mostrou, uma mandioca lá. Tá brotando agora. É... e com esse sol quente, tenho que tá lá aguando lá. Graça: Ele que tá lá plantando, aguando... Eu falei: “Ah! Deixa isso pra lá, Tãozim”. Mandioca eu não tô podendo comer porque eu sou diabete, né? [...] Tãozim: [...] O moço [marido de Laura] é bem forgado. [...] [...] P: E vocês ficaram felizes com esse monte de netinhos? Graça [suspira e responde com desânimo]: Ah... tem que ficar... né? Tãozim: É a coisa mais importante, então eu ajudo eles demais por causa daquelas crianças, porque... se for olhar, o moço é meio grosso, sabe? Me trata muito mal. Você precisa de ver como é que é. Graça: Ela [Laura] mesmo! Tãozim: Ela misturou com aquela gente lá [família do marido], parece que nem lembra mais tudo o que a gente fez. [...] O marido [André] vive de embrulho [“rolo”]; uma hora tá lá em Juiz de fora, outra hora tá aqui... Não é uma pessoa firme. Do lado de cima da casa, eu tenho um metro e meio de terra [faixa de 1,5m do terreno vizinho à casa de Laura, pertencente a um parente], mas eu tô zelando a posse do meu parente que faz divisa lá. Eu estava capinando o terreno dele porque o escorpião estava vindo! [...] Com aquelas crianças! Eu precisava ir lá capinar. Eu botei companheiro para ir lá capinar e, você vê, ele [André] fica forgado! Eu falei: “Ó: cata esses cacos que tem aí, limpa essa posse. Você capina isso aí, deixa bem limpinho, planta um quiabo, uma mandioca, uma coisa assim. Cerca isso aí.” Mas não faz nada. [...] Tãozim: Eu fiz uma instalação lá pra colher água da chuva, ela [Laura] me desobedeceu e fez uma parede por cima. Eu falei: “Você me prendeu o cano! Agora como é que eu vou movimentar lá?” [...] Lá é muito grande, tem 144 metros de construção. [...]

15.4 – A falta de ajuda de Laura O que aparentemente insinua uma mudança de tema, redireciona-se à trama

central. Graça interrompe a narrativa de Tãozim para sondar o que Laura havia dito sobre sua

adoção. Contudo, a urgência de expor sua versão como a verdade, não lhe permite esperar a

resposta; o casal inicia uma série de críticas ao comportamento inadequado de Laura que

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culmina em ingratidão e falta de retribuição. Importante destacar que Taozim e Graça revelam

ter consciência do impacto da proibição dos estudos sobre Laura. Com indignação, posto que

a missão do filho adotivo é cuidar pais e não estudar, o casal justifica tal proibição

ressaltando a necessidade de ajuda de Laura; afinal, como ela mesma objetivou em sua

narrativa: eles me adotaram para servir de companhia. Porém, a interrupção dos estudos não

resguardou a dedicação exclusiva; André entra na relação. Taozim, então, redireciona suas

críticas a ele, insinuando sua frustração de não obter nele o servilismo de um filho de criação.

Desconfia da veracidade da doença que André tem no braço e classifica sua inaptidão ao

trabalho rural como preguiça, falta de cara de homem.

Graça: E ela te falou assim... alguma coisa... dela ser adotada? P: Falou... que a senhora pegou ela num hospital lá em São João, mas essas coisas ela já tinha me contado [Tãozim interrompe] Tãozim: Não, nós pegamos ela em casa. Ela estava com quatro meses. Graça: Pois é, mas ela fala que eu devia ter largado ela pra lá! Que não devia ter buscado ela não. Tãozim: Ela trata nós muito mal! Com gente de fora, às vezes, ela é muito delicada até. É muito inteligente! Eu não sei o que ela... porque parece que ela ficou com uma revolta [Graça interrompe] Graça: Eu acho que é porque ela não estudou, porque ela queria formar. Aí o Tãozim na época estava muito doente... Tãozim: Uai! Eu já fui operado de ponte de safena... [Graça interrompe] Graça: Não tem como eu ficar aqui sozinha. Tãozim: Ela [esposa] descolou a retina. Tudo no... Graça: Nessa roça, naqueles canto. Tãozim: Então eu não tinha sossego, sabe? Precisava de uma coisa ou outra e é difícil mexer com gente de fora. [Pausa] Então ela arranjou aquele namorado... [Silêncio] Eu pelejei pra desviar, mas não teve jeito. Mas esse moço não tem cara de homem não, é um homem... forgado. Graça: Uai! Nós que dão leite eles, nós compra. Tãozim que busca aqui. Hoje mesmo ela já levou. [...] Tãozim: Eu falo: Meu Deus do céu, o homem é... é... terrível na preguiça! [risos] E sai correndo jogando atrás de bola! Se tá com problema dentro do nervo do braço, não sei o quê... Mas não sei se a pessoa que vai jogar bola, desfrutar, tá com problema? [...]

15.5 – Jeito de ensinar na roça

Tãozim e Graça não se mostram muito contentes com a mudança para a rua e

remetem o descontentamento à educação dos netos. Graça utiliza um argumento claramente

sexista; Tãozim discorre sobre as atividades que fazia com os netos naquele contexto, dando

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início à sua narrativa de maus tratos, não dos netos, por enquanto, mas análoga pela

relativização como jeito de ensinar. Logo o casal retoma o eixo narrativo da ajuda. Graça: Eu acho que a gente tinha que ter ficado lá [na roça] e nós não tinha vendido a sede. [Pausa] Porque eu não queria vender. Tãozim: Coitadinhos, faz falta a liberdade para eles [Graça interrompe] Graça: Porque na roça, pra menina, é mais fácil pra criar. Tãozim: É, pra eles lá tinha uma largueza! Eles gostavam de andar de charrete, eu andava de charrete com eles [...] Eu amarrava um pano neles, ficava igual um cinto de segurança que se o cavalo recuasse, eles não caía. Eu tinha um cavalo lá que você precisava de ver! Ele tinha uma anca isso, ó: [abre os braços para mostrar o tamanho do quadril do cavalo], de largura, de bonito que ele era. Ele era forte. Se mexesse com ele, ficava em pezinho... coisa. Mas ele estava mal habituado. Eu estava entertido [entretido] e quando penso que não, o cavalo estava aprumando. Aí eu passei nele uma coisa assim, dei nele um golpe, joguei ele pra lá e... Arrumei uma focinheira. Torci um arame grosso e lacei pegando o focinho dele. Eu falei: “Eu vou ensinar ele, ele tá achando que ele vai fazer isso?” [risos] Era parar na porteira que o cavalo subia! Eu falei: “Ih... Tá desse jeito? Eu tiro a graça dele!” Aí fiz, deu certo. Ah... toda vez que eu chegava, eu dava nele um golpe, eu trazia o focinho dele... Ele ficava afocinhado, retorcia e... não subia! Ele não podia me ver, ficava com medo. [risos] Eu falei: “É assim que... coisa.” Eu ensinei o cavalo a afastar se nós tava dentro de uma varanda, a pegar carroça de cana... Os outros ficava admirado de ver ele fazer força. Eu ensinei ele. Eu falei: “É... tudo é jeito, né?” Graça: Mas aquela casa [em que Laura mora], aquele carro... Tãozim panhou pra ela. Aquele carro, aquela casa... é nosso. Tãozim: É um carro que já é usado, né? 2 Mas tá aguentando. [...]

15.6 – Adoção A seguir, retomo o tema da adoção, instigada pela correção de Tãozim (nós

pegamos ela em casa). Como mencionado no texto referente à Laura, as narrativas de seu

processo de adoção se contradizem. Nesta conversa, as contradições se tornaram mais

explícitas e a versão de Tãozim e Graça mais coerente com os fatos narrados. Sobressaem em

suas narrativas, sobretudo na de Graça, a importância do nome de família como facilitador da

adoção ilegal (Pode deixar levar, eu conheço eles demais!, orientação do advogado), o

preconceito racial (ela é quase preta!; é moreninha e tudo... mas é bonitinha.) e as injúrias

contra a mãe consanguínea de Laura (cada filho dela é de um homem). Graça demonstra se

sentir indignada por receber em casa a mãe consanguínea de Laura, tanto pelas

desqualificações morais que lhe atribui, quanto por ser incomum qualquer relação entre pais

consanguíneos e pais de criação/adoção. P: Vocês pegaram ela para criar com quatro meses, né? Graça: É quatro meses.

2Fiat Uno, 1985.

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Tãozim: Pegamos ela dos braços da mãe. Quando ela [mãe consanguínea] vem aí, nós recebe ela com o maior carinho. Há poucos dias ela teve aqui. Ela deve estar pesando uns 90kg, porque ela é arta [alta]! Chegou aqui, uma bitela d’uma morena, coisa... forte. Ela trabalha [Graça interrompe] Graça: Ela é quase preta! Tãozim: Ela trabalha no asilo lá em São João. Graça: [com indignação] Pois é; eu recebo a mãe dela! Ela [Laura] é irmã daquele menino, o Rafael [irmão consanguíneo mais velho, filho de criação de outra família em Bagre Bonito], e eles... a Rosana [mãe de criação do Rafael] não recebe ela [mãe consanguínea] não! [...] Cada filho dela é filho de um homem. P: Como vocês descobriram ela lá em São João? Graça: É porque nós tinha uma empregada que morava lá naquela casinha lá [na roça] e... ela estava pra ganhar neném. [...] Aí ela chegou lá [em Barão de São João Batista] e falou com a Aparecida [parente que a hospedou] assim: “Pois é, eu passando tanto mal pra ganhar essa menina [...] E a minha patroa que está lá, que não tem nenhum filho, está querendo adotar”. Aí ela [Aparecida] falou assim: “Eu sei de uma menina que... é moreninha e tudo... mas, ela é bonitinha! E... a mãe dela não deu porque não achou quem toma conta. Eu sei de uma que dá a menina pra ela.” Aí a Deolina [empregada/vizinha] mandou recado pra mim. Eu falei assim: “Ah! Eu acho que não vou querer não [...]” Aí... eles insistindo muito... Eu fui lá ver a Deolina [...] E aí ela falou: “Eu vou lá com você, mesmo que você não agrada, aí você fala assim: ‘eu vou em casa... vou pensar... e tudo.’” Aí chegou lá, foi uma porção de gente com nós, aí chegou lá, eles falaram assim: “Ah! Leva a menina, é tão bonitinha! Leva ela!” Ela chamava Fabíola. Aí eu achando aquele nome ruim de falar... Eu não estava acostumada, sabe? Eu falei: “Mas eu vou mudar o nome dela.” Aí ela [a mãe consanguínea] falou: “Pode mudar! Pode botar o nome que você quiser.” P: A mãe dela não ficou triste de dar a filha assim não? Graça: Não. A avó que ficou. A avó que tinha que assinar tudo porque ela [mãe] era de menor ainda. Aí fomos lá onde a avó trabalhava. [...] P: Você já voltou com ela pra casa naquele dia? Graça: Já trouxemo. O devogado [advogado] falou: “Ah! Eu conheço eles [a família de Tãozim] demais! Pode deixar ele levar!” Tãozim: Deixou nós trazer pra ver... como é que ia proceder, né? Aí nós trouxemo. Graça: Eu acho que foi numa sexta feira. Tãozim: Mas a véia [velha - a avó] estava muito enjoada. Aí... coisa, ficou. Eu falei assim: “Ô, mãezinha [mãe consanguínea], não é bom...” (porque ela estava dando de mamar, né?) “... ela [Laura] ficar porque se voltar a dar mamá e depois nós levar, ela pode aguar [adoecer pelo sentimento], né?” Aí... [Graça interrompe] Graça: E o leite dela já estava com febre. Eu trouxe numa sexta, na segunda voltemo [para “oficializar”]. Aí eu falei assim: “Ô, Marlene [mãe de Laura], se você gostar da sua filha, você não pode dar mamá não, porque já deve estar com febre.” Ela falou assim: “Já tomei injeção pra secar. Tá tudo doendo... tudo doendo. Não vou dar não.” E a vó de cima: “Dá mamá, Marlene! Dá mamá! Dá mamá!” P: E vocês davam leite de vaca para ela? Graça: É, aí comecei a dar o leite de vaca. Comecei a dar. Aí ela não sustentava. Comecei a dar mingau de maisena, aí ela sustentou. Dormiu muito... E ali acostumou com mingau de maisena. Engordou! [...]

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A narrativa chama atenção pela naturalidade com que é tratada a prática de pegar

para criar mesmo após sua proibição legal: Tãozim e Graça saem para visitar uma

funcionária hospitalizada no município vizinho e voltam para casa com um bebê. A

ilegalidade da adoção ou mesmo o sofrimento do bebê, retirado do seio da mãe aos quatro

meses por pessoas cujas fisionomias, vozes, cheiros, jeitos e toques lhe eram completamente

estranhos, não têm importância. Ao contrário, como Laura narrou na primeira entrevista, o

que ficou do seu sofrimento foi apenas o trabalho que deu: Mas dei um trabalhão! Porque eu

mamava no peito, aí chega aqui não tem peito para mamar... eu não pegava mamadeira! Era

muito difícil!

15.7 – Ajuda-favor: a falta de reciprocidade de André

A seguir, Graça e Tãozim retomam a meada narrativa. Objetivam a ajuda como

favor expondo a necessidade de retribuição ou pagamento. Suas atuais interferências e

tomadas de decisão se autorizam pela posse da casa em que Laura e a família moram de favor,

sobretudo André; que deveria ajudar ou pagar o aluguel pra saber quanto custa. De todo

modo, isto é, na roça ou na rua, André não cumpriu a expectativa que justificou a autorização

de seu casamento com a filha adotada para cuidar dos pais. Tãozim: [...] Você viu lá? Tudo arrumadinho. Eu que mandei botar cerâmica naquela garagem. Tudo arrumadinho. Graça: É, não acabou de limpar ela [garagem] porque eu falei: “Ah! Agora deixa... Agora tá bom. Tá gastando demais.” Já tinha gastado aqui. Tãozim: [...] Ele [André] tratou de limpar, mas eu não cobrei ele porque... eu não gosto de lembrar os outros... assim, na casa da gente. [risos] Amanhã cedo, se Deus quiser, eu vou lá e se ele não tiver mexido, eu vou falar [risos]: “Que vergonha, heim?! Vai ser preciso eu trazer a mulher pra catar isso aqui, né?” [risos] Pra envergonhar ele. P: Ele não ajuda? Tãozim: Nossa senhora! O terreiro dele [Graça interrompe] Graça: Não! Não faz nada pra gente. Lá na roça o Tãozim pagava pra alguém limpar o terreiro pra mim. Ele não fazia nada pra mim. Tãozim: O terreiro ficava uma sujeira, com cuia de coco espalhada juntando água. [...] Graça: Uai! Nós podia chegar... Vamos supor, assim: nós às vezes chegava meio tarde, às vezes ia em São João, chegava meio tarde. Chegava, o Tãozim ainda tinha que... estava os bezerros separados, mas tinha que prender. Ele não prendia. Chegava mais cedo e não prendia. Aí ainda falava... Teve um dia que chegou visita lá em casa e ele ainda falou assim, eu escutei ele falar: “Pois é... se Seu Tãozim estivesse... Se o ‘Ferreira’ (ele [André] chamava ele [Tãozim] de Ferreira), se o Ferreira estivesse na rua [morando na zona urbana], ele não precisava prender bezerro debaixo de chuva.” Tãozim: [com raiva] Tem hora que dá vontade de falar com ele assim: “Você precisa pagar o aluguel dessa casa, pra você saber quanto custa! Pra você ter mais um bocadinho

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de amor e compromisso. Como é que você ia arranjar? [risos] Você não ia aguentar fazer, ia deixar as crianças passar fome.” [...]

15.8 – Maus tratos?

Segundo Tãozim, Laura é muito nervosa quando vai bater nas crianças e por isso

ele está sempre ameaçando chamar uma autoridade, como o Conselho Tutelar. As narrativas

destas intervenções são longas e repetitivas, denunciando, na maioria das vezes, agressões que

não chegaram a acontecer porque ele interferiu a tempo. Ela foi chegando aqui nervosa e

tirando o chinelo pra bater na menina. Eu falei: Na minha casa, não! Optei por suprimir tais

passagens e reter apenas aquelas em que a agressão aconteceu.

As denúncias de Tãozim não condizem com minha observação. Como aludido no

texto referente a Laura, chamou-me atenção o carinho recíproco entre mãe e filhos. De modo

algum as cenas de afeto que presenciei pareceram representação; os beijos e os abraços

partiam das crianças, Laura apenas os retribuía. Durante a tarde em que passamos juntos, no

dia anterior, pouco a pouco as crianças foram chegando e então pude observar o

comportamento de cada uma, bem como a interação com a mãe. O que Laura destacou no

perfil dos filhos coincidiu com o que observei. Gabriel, o caçula, é realmente uma criança

tranquila, observadora. Fabíola, de fato, se mostrou muito levada, confirmando que em casa,

quem manda é ela! Algumas vezes, Laura me pediu licença para lhe chamar a atenção.3

Pâmela, em comparação à irmã, é passiva e tranquila, mas em relação ao irmão gêmeo, é

quem manda. Patrick, por sua vez, é tímido e muito amoroso, como eu já havia notado ao

escutar sua conversa no celular com Laura, mas chamou-me atenção a confirmação exata das

previsões de Laura com relação à divisão dos bombons.4 Estas observações tornam-se

importantes mediante a narrativa de Tãozim, por isso as descrevo aqui.

3 Por exemplo: Assim que chegou, Fabíola tomou para si a caixa de bombons que eu levara para as crianças. Laura interveio retirando-lhe a caixa e dizendo que não era só dela. Fabíola então começou a chorar e a gritar, fazendo pirraça. Com poucas e firmes palavras, Laura resolveu a situação: São dois [bombons] ou nenhum! Você escolhe. No mesmo instante, a menina interrompeu o choro e foi para o lado da mãe pegar seus dois bombons. O mesmo fez com Pâmela, que assistia calada à pirraça da irmã. Quando terminou de comer, Fabíola, educadamente, pediu mais: Pronto, acabei. Você me dá mais? Laura lhe deu mais dois bombons e me explicou: Aqui em casa é assim: se eu não tomar conta, ela manda em todo mundo. É pequenininha, mas tem um gênio! E o Patrick, por ser muito bonzinho, é o que mais sofre. Elas podem comer essa caixa de bombom inteirinha e deixar só um para ele. Se ele chegar e elas falarem assim: “Ah... Tô com uma vontade de comer mais um bombom...”, ele deixa de comer e dá o bombom para elas! Ele é assim! Durante a entrevista, as crianças brincavam na garagem. A cada grito, choro ou barulho estridente, Laura retorquia da sala, elevando a voz: Eu aposto que isso é coisa da Fabíola! A menina, destemida e graciosamente desafiadora, respondia de onde estava: É! 4 Antes que a caixa acabasse, Laura retirou dois bombons e comunicou aos filhos: Esses aqui nós vamos guardar para o Patrick, que ainda não havia chegado. Quando Patrick chegou e a mãe lhe entregou seus dois

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Com relação às brigas de Laura e André, narradas por Tãozim, não posso ir além

da narrativa de Laura (bastante comedida a respeito de sua vida conjugal), pois não tive

oportunidade de observar a interação do casal. Com poucas palavras, Laura retratou André

como pacificador5 e pai carinhoso demais (permitindo-lhe perceber a diferença que é o amor

de pai verdadeiro com um amor de pai adotivo). Chama atenção o regozijo de Tãozim com as

desavenças do casal, o que remete à sua narrativa de anos atrás, sobre sua expectativa de uma

separação para as coisas voltar a ser como antes. Tãozim: Mas, coitada... nervosa quando vai bater nas crianças. Se bobear, junta os dois! [...] Uai! Nós fomos num aniversário e quando eu deixei eles lá [os netos em casa], tinha uns conhecido nosso de carona, o menino [Patrick] pegou a fazer pirraça que queria ir com nós. O marido dela deu uma tapa na bunda do menino que o menino bebeu fôlego! [...] Se eu tivesse com um troço naquela hora, o perigo era eu maiá [malhar] ele. Eu ia direto na nuca dele. [...] Eu falei: “Vamo embora, gente, vamo embora, porque, se morrer, é a polícia que vai dar jeito!” Ih, minha filha, nós passa cada coisa aqui... Eu vim tão nervoso, aborrecido [...] E eu já fui operado de ponte de safena, eu fiz em 94 [1994]. De lá pra cá, quantos daqueles negócios eu já coloquei na veia, aqueles estetos, eu tenho uma porção de mola nas veias. E eu passei essa raiva; mas uma raiva... mas uma raiva mesmo! E a minha mulher simplesmente querendo entrar pra dar socorro. Eu falei: “Nossa mãe!” E se ele desse um tapa na cara dela? P: Ele faria isso? Tãozim: Ih! Ele? Ah! [Silêncio] P: Faria? Tãozim: [Não responde] E ela [Laura]... Ela também levantou essa mesinha [uma mesa de canto] aqui pra me bater com ela. Queria bater em mim. Bambeou ela toda, a mesinha novinha. P: Quem fez isso? Graça: Ele. Tãozim: Ela! Ela também é agressiva com nós, você precisa de ver. [Silêncio] P: Ela falou que é muito agradecida a vocês. Graça: É... ela fala, né? Tãozim: É... eu mando muita gente investigar ela. Eu já tive na doutora Luiza [advogada] lá, pra fazer... Ela falou assim: “Quer que eu tiro eles de dentro de casa?” [Pausa] [...] Graça: Ela estava esperando aquele menino [grávida do Gabriel]. Tãozim: Eu falei: “Olha, doutora, eu acho difícil... depois fica aquele remorso... ela está esperando... deixa.” E lá vai de embrulho. Aí ganhou a Fabíola. [Corrigindo a esposa:] Ela estava esperando a Fabíola, depois ela ganhou o outro. [...] Às vezes eles [Laura e o marido] arranjam uma briga... [tenta em vão controlar o riso - pausa] que ela dá umas

bombons, ele olhou para as duas irmãs, que o encaravam com olhos gulosos, e os ofereceu: Quer? Imediatamente Laura interveio: Não! Esses são seus! Elas já comeram a caixa toda! 5“[...] E o meu marido, ele... assim... ele é descontraído, sabe? Eu sou... eu quero ser muito rigorosa. Então, assim, eu acho que o que faz discutir mais acaba sendo eu mesmo. Às vezes eu estou tão brava com ele e quando eu olho pra ele, ele está dormindo! Na hora que eu vejo, eu tô batendo boca sozinha! Menina, aquilo ali... eu morro de raiva! Aí no outro dia ele fala assim: “Ó, é muito melhor eu dormir, porque eu tenho certeza que você vai falar coisas que não precisam ser faladas e eu vou te responder o que você não precisa ouvir. Então, eu indo dormir, você vai perder a paciência, vai cansar de falar sozinha... aí amanhã você conversa comigo melhor.” Ele é mais assim. [Pausa]

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dentada nele! [risos] Um dia ele chegou aqui com os meninos e tudo. Ele chamou eu: “Ô, Tãozim, eu vim entregar a Laura, com os meninos.” Eu falei: “Uai! Quê isso? Você está brincando? Você não está ruim da cabeça não?” P: O marido veio deixar? Tãozim: É! Eu falei: “Você tem coragem de falar essa palavra comigo? É muita coragem! Eu duvido! Você está brincando comigo!” Eu fiquei gozando ele... Eu falei: “Ah! Não acredito que você vai fazer um papel desse não, um moço novo...” [Graça interrompe] Graça: Aí ele: “Olha aqui a dentada que ela me deu!” Tãozim: [gargalhadas] Eu achei que era até uma facada! Fez um talho! [gargalhadas] Eu falei [pausa para recobrar o fôlego]: “Meu Deus do céu! Você não faz isso não, os meninos gostam muito de você.” E apanham, coitadinhos, e gostam dele! [...] Mas ele, quando ele pega... Arrancou um chinelão, daqueles pesados, sabe? Calça 42 pra lá... Arrancou aquilo e bateu no rosto do menino assim, pegou em cheio! Eu falei: “Meu Deus do céu!” Saiu sangue do nariz, coisa mais triste! É a coisa mais desagradável de ver. Eu... eu sou uma pessoa tão... revoltosa, que eu saio de perto. P: Eu achei os meninos muito carinhosos. Tãozim: É, mas o repente deles [dos pais] é terrível! Eu corrijo muito. Eu falo: “Ó! Vocês muda disso!” Já mostrei gente do espancamento o que que deu. A criança parou de conversar. Por estupidez, por espancamento... [Graça interrompe] Graça: De briga dos pais. Tãozim: A menina ficou aleijada, ficou defeituosa por causa de briga dos pais, por causa de espancamento. Graça: Ela nasceu, chegou a andar, conversar... P: Quem? Tãozim: Uma menina aí, parente dela [Graça] até. Então eu falei com eles: “Eu vou levar vocês para vocês ver o que que acontece.” [...] Eu falei: “Nós tivemos um trabalho com você [Laura], nós saia com você para o médico, daqui pra ali...” Ela tinha uma constipação intestinal que prendia dez dias se deixasse. Era remédio, mais remédio e tudo, daqui pra ali. Ah, eu brigo com ela demais da conta! Então comigo ela anda... meia... coisa. [...]

15.9 – Jeito de ensinar – maus tratos Se não percebi maus tratos na relação de Laura e o marido com os filhos, o

mesmo não aconteceu na relação de Tãozim com os netos. A narrativa do seu jeito de ensinar,

sobretudo a encenação da narrativa, encaixa-se no que ele próprio define como agressividade.

Tal como Laura havia sinalizado (o que eles fazem, eles não escondem de ninguém), Tãozim

descreveu sem censura ou constrangimento as surras que dá nos netos. Sua fala calma não

denota impaciência, raiva ou mesmo agressividade. Pelo contrário; seu atos agressivos são

narrados com tranquilidade, ressaltando sua misericórdia (o vovô se quiser acabar com ela,

acaba) com palavras piedosas (coitadinhos) e intenção de evangelizar (aposto que nem rezar,

não sabe). Paralelo a isso, um humor sádico percorre sua narrativa; Tãozim não consegue

controlar o riso mediante a dor e a humilhação alheias. Seu objetivo é atingido quando os

netos retornam, submissos e sem ressentimentos, após as surras. É importante destacar a

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pouca idade das crianças e os motivos frívolos pelos quais apanham. Até o pequenininho

(Gabriel, 2 anos) eu costumo esquentar ele. Fabíola, 4 anos, apanha pelas interpretações

maldosas que o avô faz de suas brincadeiras inocentes. Não fica claro o que Tãozim entende

por maldade para classificá-las assim. Com uma vara na mão e balinhas na outra, um limite

imaginário no chão separando-o das crianças, ele ensina os netos a controlar a ansiedade, a

respeitar limites e a reconhecê-lo como senhor, exigindo-lhes que lhe tomem a bênção para

início de qualquer conversa.

O método da conversa, isto é, de obedece-ganha, surge como alternativa à

agressão física, revelando a consciência de que seu jeito de ensinar é pedagogicamente

criticável. Quando, por exemplo, Tãozim instrui Laura sobre como educar seus filhos, é ao

método da conversa que ele recorre. A consciência crítica do seu jeito de ensinar se revela

também quanto interrompe sua descrição de práticas reprováveis concluindo com a palavra

coisa.

Tãozim: Coitadinhos, eles estavam dando de bater um no outro, aí eu, pra fazer medo, eu falei com as duas meninas que estavam brigando: “Eu vou amarrar vocês duas no meio... Vou amarrar de cara a cara uma com a outra! Eu quero fazer vocês dançar um sambinha, mas dançar presa aqui. Amarrada! E tem que fazer as pazes.” Eu tenho uma varinha ali ó [aponta para o alto da estante], fininha! Só bato no pé. “Eu quero amarrar vocês é de cara a cara. Vocês tem que beijar a outra [risos], enquanto não fazer as pazes...” [risos] Estavam dando cada coice uma na outra! Eu falo: “Ó, a minha varinha está aqui, pode trazer qualquer autoridade aqui que eu mostro ela.” Eu falo [com a autoridade]: “Ó, eu uso ela só pra mim...” Porque eles é levado demais! [Levanta-se e pega a varinha] E dói, ó! [risos] A pontinha é fininha! [Bate a vara no chão repetidas vezes] É fininha! [risos] Ela dói! [Continua batendo cada vez mais próximo dos meus pés, como se quisesse me acertar para mostrar como realmente dói. Recuei os pés para debaixo do sofá e Tãozim parou de bater.] E eles é tão safado que se bater na roupa, eles falam que não dói! Eles é tão safado que falam assim. [risos] Eu falei: “É... vocês estão enganados com o vovô.” Eles reclamou com ela aí [Graça] que não gostam de ficar aqui [risos] porque o vovô é... ralha muito com eles. [risos] Eu falei: “Se desobedecer, eu mando no pé deles!” [risos] Graça: Aí eles falam comigo: “Eu te adoro, vovó, mas o vovô...” Tãozim: [risos. Volta a bater a varinha no chão] Graça: “... o vovô bate muito em nós.” Tãozim: Eles chegam aqui, vê o aparelho [de televisão] vai e liga tudo. A Fabíola, até o pequenininho está querendo mexer. Eu falei: “Não gosto! Meus trem [objetos] aqui eu não gosto que mexe à riviria [revelia] não.” Tem que pegar e pedir. Mas é só virar as costas, eles vai ali e liga. E sabe ligar! Liga a televisão... Acostumados num regime que vou te falar... Só Deus! Você precisa de ver! [...] Um dia, ela [Fabíola] chegou aqui, tá brincando, tá brincando... Pegou a tirar minha aliança. Tirou, deu para a Graça. E criou um problema entre nós. Eu fui e falei assim: “Uai, menina! Agora não; agora você tá caçando couro [procurando apanhar]...” Graça [interrompe para explicar a brincadeira de Fabíola]: A aliança dele que era minha; a minha era dele.

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Tãozim: “... agora você tá caçando couro, está desobedecendo o vovô.” Nós pegamos ela, eu falei: “Segura ela! Essa menina, nós vamos dar um banho nela agora... passar ela no couro.” Pus ela no chão, ela ficou lá no chão. Esticada. Eu falei [levanta-se para demonstrar]: “Vou amassar ela um bocado no chão [com um dos pés, pisa a menina] para ela saber que o vovô se quiser acabar com ela, acaba.” Né? Uai! Aí ela ficou lá chorando no chão. Eu falei: “Deixa ela deitada aí!” Graça: É porque quando ela pega birra, tem que deixar ela deitada. Tãozim: Aí deixei ela deitada e falei [com Graça]: “Não liga! Faz de conta que não tem ninguém aí.” Uai, de repente ela estava ao redor de mim! [Silêncio] Eu tenho uma rede lá em cima, eu estava brincando e ela fazendo maldade comigo. Eu falo: “Menina, não faz isso não.” Foi até que eu peguei ela [risos], dei umas talada nela lá com a chinela, aí ela ficou brava... ficou nervosa. Aí eu falei: “Carça o seu carçado!” Não carçava. Aí eu peguei uma... uma... uma goma elástica já no jeito, que eu deixei no jeito, porque... não dói de... coisa, né? De fazer hematoma, nem nada. Aí dei nela uma sapeca lá em cima que... o vizinho falou assim: “Ah, seu Tãozim estava nervoso lá em cima [risos]... deu um couro na menina!” Mas deixei ela lá! “Não apoia ela não, Graça! Faz de conta que você não está ouvindo [o choro]. Olha lá: ‘tem gato miando ali para cima’... e... não dá atenção em nada!” Ela [menina] resmungou ali... foi até que, de repente, eu estava mexendo ali numa balança, aí de repente apareceu lá pra mim “pesar ela”. [...] Mas estava numa manha perigosa! Então, quando ela vem aqui, que ela começa querer a fazer manha, eu falo assim: “Ó! Vai esperar o vovô? Você sabe que o vovô, ele tem a varinha de tirar... [risos] de tirar teima [teimosia]!” [Bate mais algumas vezes a varinha no chão] Chama [risos], chama: “carmante [calmante]”! [risos] P: O quê? Tãozim: A varinha. [Levanta-se e guarda a varinha] Menino começou com zoeira aqui, eu vou no pé deles. Até o pequenininho [Gabriel], eu costumo esquentar ele. [risos] Você precisa de ver; eu trago balinha... Ele vai chegando: “Tem balinha pra mim?” Eu falo: “Tem, mas primeiro tem que tomar a benção.” Aí ele toma a benção, tudo direitinho. Aí eu vou entrar no quarto e falo: “Se saltar essa listra [divisão do piso na soleira da porta], não ganha.” Eles fica do lado de cá da listra! Eu falo: “Como é que é! Quando quer... tá vendo?!” Eu falei: “Tá vendo como é que eu faço? Eu ensino eles sem... coisa.” Eu falo: “Ó: todo mundo tem que ficar, senão não ganha. Se saltar a listra, não ganha.” Então você tem que ensinar a criança assim. [...] Deu onze horas da noite, menino querendo assistir filme... Graça: Ela [Laura] não leva numa igreja... Tãozim: Eu falei: “Meu Deus do céu! Quem faz isso [assistir filme até tarde]?” Eles: “Ah, é o pai; chega do serviço e já vai assistir.” [...] Aí falei: “Vocês querem saber de uma coisa? Vai caçar uma cama é agora!” E passei a mão na... na coisa lá [varinha] e falei: “Vocês vai caçar um jeito de dormir é agora!” [...] “Garanto que rezar não sabe! Aí! Cadê?” Não sabiam rezar nem um Pai Nosso! Nenhuma palavra. Nem... Aí eu... [Graça interrompe] Graça: A Lalá quando foi para a escola, ela já sabia fazer o sinal [da cruz], sabia rezar o Pai Nosso, a Ave Maria... Tãozim: Aí rezamos. Aí falei: “Agora vocês deita. Deita com Deus, que vocês vai sonhar com os anjo. Porque vocês é tudo criança, vocês não podia assistir esses filme de terror não. Isso é um crime! É um proces... [não conclui] É um... Eu não sei o que que é a ideia que o seu pai está tendo não!” Aí, no outro dia, eu chamei a atenção dele: “Que vergonha,

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heim, André! Seus menino contou. Se eu trazer uma coisa aqui, um...” Como é que chama? Tutelar de criança? P: Conselho Tutelar. Tãozim: É! [continuando a advertência:] “... Conselho Tutelar e entrevistar essas crianças, como está sendo o procedimento aqui... Como é que vocês vai ficar, heim? Porque tem horário. Até na televisão fala que tem horário para de menor de tanta idade. [...]” Eu não vou fazer isso [chamar o Conselho Tutelar], mas eu faço medo neles pra ver se muda o jeito. Nós passa coisa terrível aqui, mas Deus está ajudando, nós lá vamo aguentando.

15.10 – Desconfiança da pesquisa Mediante a conclusão dos eixos narrativos que engendram a repetição das

histórias, encerro a entrevista. Graça insiste para que eu fique mais um pouco. Tãozim propõe

que eu pernoite. Agradeço e gentilmente recuso. Da conclusão da conversa, nasce uma

desconfiança da pesquisa e uma preocupação com o que foi dito. [agradeço a hospitalidade e começo a me despedir] Tãozim: Mas você não leva isso... coisa não, porque a gente está falando o que é verdade. Graça: E essa entrevista, assim... de filho adotivo... o que que é? P: É para entender como é a relação entre os pais e o filho adotivo. Graça: Aí ela falava lá na roça que queria separar casa, então eu falei: “Então, Tãozim, já que você vai vender o terreno, vamos comprar mais casa, né?” Tãozim: Falava assim com coisa que... Falava que “se tivesse uma casinha de dois cômodos...” Agora um casaréu daquele lá, não dá; precisa de invadir o lugar que eu fiz, um trabalho que eu fiz lá em cima. Aumentei uma folha do telhado e fiz um negócio lá pra colher água que serve para ela fazer uma faxina, aguar uma horta lá, aguar as mandiocas... Porque eu mesmo não posso fazer uso. Ela foi lá e construiu um negócio, nem veio falar comigo, passou por cima da minha ordem. Eu falei: “Diacho! Eu tenho que ter paciência...” [risos] E... graças a Deus, lá vamos de embrulho. Mas... precisa eu estar lá. A Graça falou: “Larga isso pra lá!” Eu falei: “Não pode, Graça, porque das crianças.” Então eu vou lá, vou insistindo. P: Tá certo. Obrigada pela conversa. Agora eu tenho que ir mesmo, ainda tenho outra entrevista para fazer. Tãozim: Você não repara nessa conversa não, porque eu estou falando a verdade. Nós estamos atravessando uma fase aí que é uma coisa... terrível! É um assunto que a gente fica até meio... Isso aí é uma coisa que a gente sente até envergonhado de falar, mas nós estamos falando o que é a verdade. A verdade... eu não escondo. Pode levar eu em qualquer autoridade aí que eu falo. O moço [marido de Laura] dentro de casa e não tem coragem de catar a cerâmica!

Bagre Bonito, 09 de setembro de 2012. 6

6 No dia 19 de dezembro de 2014, reencontrei Tãozim no velório do meu avô. Vi quando ele foi até minha tia Neuza (quem me apresentou à família) e ambos olharam ao redor procurando alguém. Eu não estava certa de ser ele; sua aparência estava diferente sob o novo óculos de grau cuja armação era desproporcionalmente maior do que o seu rosto. Confirmei com minha tia e, surpresa, descobri que era a mim que estavam procurando: É, é o Tãozim. Vai lá que ele está querendo falar com você.

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P: Oi, seu Tãozim! Sou a Priscila, a moça da pesquisa. Tudo bem com o senhor? Tãozim [sorrindo, do modo que lhe é peculiar, com certa timidez]: Ei! A Graça falou hoje comigo: “O avô daquela oficial de justiça que veio fazer a pesquisa com a Laura morreu.” P: Não, eu não sou oficial de justiça. A minha tia que é. Tãozim: Cadê ela? P: Ela não está aqui agora, mas ela vai voltar. Tãozim: Você que foi fazer a pesquisa com a Laura? P: Sim, fui eu. O senhor não se lembra? Tãozim: Não. Eu pelejei pra lembrar. Você foi nessa casa nova? P: Fui duas vezes; a primeira, vocês ainda moravam na roça e a segunda, já foi na casa nova. Tãozim [sorrindo]: Você tá precisando ir lá fazer umas entrevistas com a Laura. P: Ah, é? Por quê? Tãozim [sorrindo]: Ah... o negócio tá... Agora apareceu um irmão dela lá que... Nossa senhora! Vai quase todo dia pra lá. Ela fica arriscando a vida pra levar ele de volta em São João tarde da noite. Eu falei: “Pelo amor de Deus! Por que ele não vem no horário do ônibus?” Fica arriscando a vida, dez, onze horas da noite, pra levar ele embora. Já pensou se acontece alguma coisa? Os meninos, coitadinho... P: É irmão de sangue dela? Tãozim: É. Agora deu pra visitar ela. Fica o dia inteiro lá. Eu falo: “Óia! Os outros estão falando...” Ele... [risos] Eu chamo ele de melro! [risos] Porque ele é preto. Sabe aquele passarinho melro? Que é todo preto? Pois é... [risos] Eu falo: “Uai, Laura! Ocê agora arrumou um melro pro cê?” [risos] Mas, cê precisa de ver; fica largando os menino tudo aí pra ficar arriscando a vida na estrada tarde da noite. P: E o marido dela? Tãozim: Tá lá. P: Ele não fala nada? Tãozim: Ih! Aquele lá... Eu falei com ela: “Pelo amor de Deus, Laura, eu sou um homem conhecido! Desse jeito, ocê prejudica eu. Já teve gente me perguntando se ocê arrumou outro marido.” Eu ainda não conversei com ele não, mas eu vou falar: “Escuta aqui, rapaz...” Ele até ajudou a colocar a Graça na ambulância... Ela passou mal outro dia, a diabetes dela não tá boa não. Eu não estava lá, aí foi ele que ajudou a colocar ela na ambulância. Mas eu nunca conversei com ele não. Mas eu vou falar. As pessoas já estão falando. O negócio lá tá cada vez pior! Aquelas crianças... cada vez mais levados. P: O senhor ainda tem o “carmante”? Tãozim [surpreendido – risos]: Ocê conheceu o carmante? [risos] Tá lá! É de bambuí. Cê conhece bambuí? É um bambu fininho que eles usam pra pescar. Ela é de bambuí. E dói! [risos] [O padre chega para as exéquias] P: Desculpa, seu Tãozim, vou ficar lá com a minha mãe. Outra hora nós continuamos a conversa. Manda um abraço para a dona Graça e outro para a Laura.

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CAPÍTULO 16 – ALESSANDRO – Conversa com a esposa Patrícia

No início de setembro de 2012, retornei à Volta da Ferradura em busca de

Alessandro. Era fim de tarde, segunda-feira, mas a rua estava deserta. Uma ou outra charrete

passava quebrando o silêncio. As casinhas iguais continuavam, uma após a outra, esperando a

pintura que Patrícia reclamou anos atrás. Chamei naquela em que a memória, amparada pela

intuição, apontava ser a de Alessandro. Ninguém atendeu. Insisti mais um pouco. No outro

lado da rua, uma senhora chegou à janela:

_Eles não moram aí mais não. Eles construíram! _A senhora sabe onde eles estão morando? _Sei não. _O Alessandro ainda trabalha na fábrica? _ Não trabalha mais não.

Voltei à casa da minha avó para pensar os próximos passos. Talvez minha tia

Neuza soubesse o seu novo endereço ou de algum conhecido comum. Enquanto

conversávamos a respeito, Hermínia, a senhora que ajuda a cuidar da minha avó (modo como

ela classifica seu trabalho de cuidadora), interpelou: Uai! Ele mora no morro do cruzeiro.

Mora não? E assim descobri mais do que o endereço de Alessandro. P: Você conhece ele, Hermínia? Conheço! Casado com a filha do seu Geraldo, tem um menininho, né? Conheço ele desde pequenininho, desde à idade desse menino dele, era a mesma coisa dele [do filho pequeno]! Seu Redentor carregava ele pra todo lado. Ele ia na frente e Seu Redentor atrás. Pra todo lado! Nas benzição... pra todo lugar! P: Que benzição? Que o Seu Redentor fazia. Ele levava ele. [Peço licença para ligar o gravador] P: O Seu Redentor benzia? Benzia! Ele benzia, assim: direitinho, né? Ele falava assim... qualquer coisa que você estava sentido; uma dor de cabeça, o estômago meio coisa... Ele começava: “Em nome do pai, do filho e do espírito santo. Deus cura! Deus cura!” Toda benzição dele ele falava: “Deus cura!” P: Você conhecia ele [Alessandro] quando morava com o Seu Redentor? Conhecia. Ele andava atrás do Seu Redentor. Eu acho que ele não tinha família... eu não sei como que ele veio. Minha ideia é que ele veio de uma família, eu não sei... de onde é que ele veio, que Seu Redentor pegou ele. Depois Seu Redentor veio a morrer, ele ficou pedindo, ficou de casa em casa pedindo socorro. Uma vez... Passava fome! Uma vez, ele chegou na nossa casa e falou para o meu marido pra arrumar... queria morar lá em casa. Mas nós também não podia; nós já tava numa situação também boa nada! Ó [Olha - conta nos dedos]: Eu tinha a Marlei, a Landa, o Francisco, o Marlino e o Célio. Tudo sem pai! Comigo, morando comigo. P: É?!

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É, morando com nós, quando eu estava casada. Depois é que veio meus filhos. Nós não podia por mais gente na nossa casa, porque não tinha condição! Não tinha cama... Tinhas as meninas também, as cunhadas minha eram pequenas. O Marlino estava com sete anos. Ele é o caçula, né? E os outros mais, uns de 14, outros 15... P: Mas esse casal que adotou o Alessandro tinha mais filhos? Não, o Seu Redentor nunca teve filho não, só o Alessandro. Eu acho que o Seu Redentor sabia de onde ele era. Alguma mulher que teve esse filho, que não foi casada... Ele criou ele assim, de criação mesmo, porque não sabia esse negócio de passar... É igual, em comparação, agora não faz mais isso, mas quando chega uma pessoa aqui, agora não faz mais isso, chega uma pessoa aqui com um menino que não tem pai nem mãe, você vai ter dó, vai querer até ajudar, deixar ele ficar aqui. Assim ele chegou na casa do Seu Redentor. Seu Redentor sem poder! Ficou cuidando dele, você entende? Depois que ele veio a falecer, ele [Alessandro] ficou de casa em casa. Ó: ele chegava nas casa, igual chegou na minha casa, e pedia “um abrigo”, ele falava assim. Mas eu não podia, igual eu falei com ele. Nós ficou tudo morrendo de dó, uai! Mas como é que nós fazia? Um menino bom, coitadinho! Nossa senhora! Nós não deixemo ele ficar na minha casa, não é porque ele era um menino ruim, é porque eu não tinha recurso! Eu não tinha recurso! Nem cama pra nós eu não tinha! Com essa quantidade de gente que tava morando comigo, óia bem! Da mesma, da mesma base dele também; que perdeu o pai e a mãe e foi morar com nós. P: Eu não sabia dessa história, que você tinha ajudado tanta gente também... É, foi assim: [...]1

A versão de Hermínia destoa da versão do próprio Alessandro e de outras colhidas

posteriormente. Estamos diante de um fenômeno de sociabilidade classificado em Bagre

Bonito como conversa.2 Parte da conversa de Hermínia é explicitamente fantasiada e incerta,

eu acho que..., minha ideia é que... o que, como vimos, não retira sua eficácia. Hermínia

afirma sua versão mesmo diante de fatos verificáveis: O Seu Redentor nunca teve filho não,

só o Alessandro.3 Por outro lado, para que uma conversa tenha força reprodutiva, ela deve

conter fatos verdadeiros e verificáveis, como é o caso de algumas informações trazidas por

Hermínia, presentes em todas as versões e confirmadas pelo próprio Alessandro: Seu

Redentor ficou cuidando dele sem poder, carregava ele pra todo lado e tinha o dom da

benzição.

1 As crianças órfãs acolhidas por Hermínia são parentes (irmãos e primos) de seu marido, cujo acolhimento temporário inscreve-se na prática de “circulação de crianças”. 2Cf. capítulo 3, “Modos de sociabilidade e suas expressões”. 3 Uma informação poderia justificar tanta certeza: Hermínia se mudou com a família para o Rio de Janeiro tão logo Seu Redentor morreu e Alessandro passou a viver sob tutela do irmão de criação, filho consanguíneo de Seu Redentor, que regressou a Bagre Bonito pouco antes da morte do pai. Isso explicaria o desconhecimento de sua existência. Entretanto, o período em que Alessandro ficou de casa em casa pedindo um abrigo, como narra Hermínia, é justamente quando morou com o irmão de criação. Imbróglio narrativo característico da conversa. Além disto, Seu Redentor tivera não um, mas dois filhos consanguíneos, como informa Alessandro na primeira entrevista.

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16.1 – O novo endereço, mudanças positivas Foi Hermínia quem me conduziu até o novo endereço de Alessandro, um lugar

recentemente povoado por invasões, cuja história Patrícia e Alessandro contarão na entrevista.

Trata-se de um morro perto da praça, como referenciam valorizando o lugar. Os

agrupamentos familiares que se formaram caracterizam a paisagem e a sociabilidade. A casa

de Patrícia e Alessandro, por exemplo, fica ao lado da casa dos pais de Patrícia e muito

próxima das de seus irmãos e de outros parentes (sobretudo tios e primos). Quando chamei

por Alessandro, foi a mãe de Patrícia quem me atendeu, além de várias crianças e

adolescentes, todos parentes. Alessandro e Patrícia não estavam em casa. Eufóricos, todos

sabiam e queriam me informar onde eles estavam e a que horas chegariam. A mãe de Patrícia

deu um basta na algazarra e tomou para si a palavra, me recomendando voltar mais tarde. Me

apresentei e disse que voltaria no dia seguinte, no horário sugerido.

No fim da tarde seguinte, encontrei apenas Patrícia em casa, já informada pela

mãe sobre a minha visita. Com muita simpatia, me convidou a entrar e sentar um pouco.

Alessandro deveria chegar a qualquer momento, mas, como ela previu, não chegou.

Conversamos, nós duas, até anoitecer, por aproximadamente uma hora e meia. Patrícia

parecia interessada em me colocar a par das mudanças ocorridas desde a última entrevista e,

assim, compartilhar a situação tão difícil pela qual estavam passando. Mas começou pelas

boas mudanças, me mostrando a casa nova, agora própria, bem diferente da anterior.

Com a parte de fora ainda em construção, escada que sobe o barranco e dá acesso

à casa é improvisada, o que, entretanto, não limita o fluxo de pessoas que a utiliza para

acessar também a casa da mãe de Patrícia, embora haja outra entrada. Com isso, a

“observação” é intensa; durante a nossa conversa, que se deu com a porta e a janela abertas,

várias pessoas de passagem pararam, se inteiraram do que se tratava a minha presença e

seguiram caminho. Ao contrário do improviso da entrada, o interior está muito bem acabado;

falta só o forro de pvc branco no teto para resguardar o interior da poeira do barranco que

continua atrás da casa e se infiltra pelos vãos das telhas coloniais que compõem o telhado.

Aliás, a limpeza e a organização da casa, tal como da outra vez, chamavam atenção. A

decoração ganhou mobiliários e utensílios novos. Na sala, havia um sofá extenso e duas

poltronas revestidos de couro sintético branco, uma parede pintada em tom goiaba, diferente

das demais brancas, destacava o rack com painel que expunha uma televisão com tela plana e

muitas polegadas, um dvd e um micro system. No quarto da sala, paredes azuis demarcavam

o espaço do filho, além de brinquedos, fotografias ampliadas, cama, guarda-roupas, televisão

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e videogame Playstation. Não conheci o quarto do casal. A cozinha também é equipada com

utensílios novos e modernos: geladeira, fogão, panela elétrica de fazer arroz, armário de aço,

mesa comprida com seis lugares. Na varanda, nos fundos da casa, fica a lavanderia, também

equipada. Patrícia mostrou tudo com muito orgulho, dizendo ser fruto do trabalho de

Alessandro e desconsiderando o seu; retomado tão logo o filho pôde ir para a escola. Em

seguida, sua narrativa muda drasticamente; assume o tom de lamento e passa a discorrer sobre

a mudança no comportamento de Alessandro.

16.2 – Uma situação tão difícil: alcoolismo, rupturas familiares

Desde que saiu do antigo emprego e começou a trabalhar em um laticínio, onde

encontra-se atualmente, Alessandro mudou muito, como descreve Patrícia destacando a

influência dos novos colegas: lá só tem gente que bebe. Alessandro passou a frequentar bares

no fim do expediente e desenvolveu um problema com a bebida. Chega em casa muitas vezes

embriagado, diz coisas desagradáveis e ofensivas aos familiares que moram ao lado,

incomoda o filho com beijos e abraços excessivos, pede desculpas à esposa. Patrícia parece

monitorar seus passos, ligando incessantemente para o seu celular. Quando ele não quer que

eu acho ele, minha filha, ele desliga o telefone! Entretanto, o tom imperativo tão acentuado na

entrevista anterior, não existe mais. Com receio de piorar a situação, ela age com muita

delicadeza e afeto, tal como disse e como pude observar.

Patrícia continua exercendo o papel de administradora da casa, mas não do

mesmo modo, o que constitui outra mudança importante. Alessandro não lhe repassa mais o

seu salário e sua justificativa é reveladora do seu novo jeito de pensar e de agir. As

responsabilidades financeiras agora são compartilhadas, embora a responsabilidade moral de

garantir a estabilidade familiar (sobretudo emocional do filho) e o patrimônio adquirido caiba

somente à Patrícia, através de sua rede familiar de ajuda e de seu trabalho fixo como

faxineira. Ela se precavê a uma possível emergência; apesar da estabilidade de Alessandro no

emprego, isto é, contrato formal de trabalho e reconhecimento como bom funcionário, a

bebida já começou a atrapalhar, tem dia que ele vai trabalhar passando mal.

Segundo Patrícia, Alessandro não percebe os riscos que corre por mais que ela o

alerte e tente convencê-lo a parar de beber, o que se dá sem enfrentamentos. Alessandro, por

sua vez, escuta pacientemente e concorda plenamente, mas faz o que quer. Foi Patrícia quem

me explicou essa dinâmica e logo em seguida tive oportunidade de observá-la em uma

conversa pelo celular. Quando finalmente conseguiu que Alessandro atendesse à sua ligação,

ela iniciou uma conversa com duplo propósito: convencê-lo a vir para casa e marcar uma data

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para a entrevista. Desde o início, percebi que Alessandro sugeria o domingo para a realização

da entrevista, o que era plausível, visto que ele trabalha todos os dias da semana, inclusive aos

sábados. Mas Patrícia não concordava, preferia que fosse no dia seguinte, depois do

expediente (talvez para retirar-lhe a possibilidade de parar em um bar). Tentou ao seu modo

convencê-lo; inventou que seria minha última entrevista e chegou a combinar um horário para

o dia seguinte. Alessandro aceitou, porém pediu para falar comigo e, muito solícito, logo me

perguntou: você pode no domingo? Assim foi feita a sua vontade.

Ficou claro na narrativa de Patrícia que ela não atribui a importância de outrora ao

casamento. A gente vai lutando, vai lutando, vai lutando; por resto, desgosta! Chega a

preferir a separação ao desgaste emocional pelo qual vem passando, mas ainda tem

esperanças; continua fazendo o que pode para resgatar o marido de antes.

[...] Menina, eu já tentei de tudo. E eu não sou aquelas pessoas que xinga... que chega na frente dos outros xingando... Eu não! Eu falo normalmente [faz um tom mais doce]: “Vem jantar, Alessandro, toma um banho... Descansa”. Aí, no outro dia, eu prefiro falar assim [com muita delicadeza]: “Alessandro, vê o que que é para você isso aí... Isso não é uma coisa boa...” Ele concorda plenamente, sabe? [...] E o meu menino fala: “Ô, pai, para de beber! Eu não tô aguentando mais você beber”. Nossa! O Alessandro [quando bebe] é ou-tra pes-so-a! [enfatiza cada sílaba]. Eu não conheço o Alessandro! Ele fala sem parar! P: Nossa, e ele é calado, “na dele”, né? É! Ele dana a beijar o Alex! Ele começa a beijar o Alex e não quer parar! Ele quer jogar o Alex pra cima, quer brincar de morder o Alex... O Alex fica irritado, eu tenho que ficar ali controlando. Menina! Eu tô numa situação tão difícil... [lamenta-se em tom de desânimo] [...] Ele não pode ter dinheiro na mão. Recebeu, já vê a porta do bar. P: Mas ele não te dá o dinheiro para você tomar conta das coisas da casa? Pois é! Eu falei com ele isso. Eu falei: “Alessandro, você quer...”. Ele fala: “Ué?! Se for pra você receber pra mim, então você vai trabalhar pra mim”. Entendeu? É desse tipo. [Silêncio] Eu tava até ali agora, pedindo a Deus pra ver se EU [destaca com ênfase] me liberto! Entendeu? Eu falei: “Deus, eu não quero que o Alessandro se liberta disso mais não, eu quero que EU me liberto dele”. Pelo amor de Deus! Vou fazer assim agora, eu não aguento mais. Nosso Deus! [Silêncio] P: Nossa, Patrícia... eu não sei nem o que te falar. Você já tentou conversar com ele, falar que você está sofrendo...? Eu falo! Por exemplo, assim: hoje eu não falo nada. Amanhã também, cedo, ele vai trabalhar normalmente. Quando é de tarde, quando ele chega, ele sempre está passando mal no outro dia... porque ele sabe que a bebida faz mal para ele, aí ele tá passando mal. Vai trabalhar passando mal e tal. Aí eu falo [com muita delicadeza]: “Alessandro, isso é vida que você quer para você, Alessandro? Olha o seu filho crescendo, olha o exemplo que você está dando pro seu filho...” [pausa] [...] O Alex ficou doente, minha filha, uma alergia que a gente não descobria de quê! Aí a médica disse que podia ser emocional. Ele ficou ruim, mas ruim mesmo! Você precisava

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de ver! Uma febre atrás da outra. Era febre atrás da outra! [...] Mas, você sabe? A gente vai lutando, vai lutando, vai lutando... menina, por resto, desgosta! Desgosta! O Alessandro chegou num ponto que a família inteira não estava suportando ele mais! P: E ele me falou que todo mundo gostava muito dele... Gostava! Menina, todo mundo afastou dele e todo mundo tomou antipatia pelo Alessandro. Menina, ele começou a falar cada coisa... [faz sinal de espanto tapando a boca] Assim, quando ele bebia. Eu falava: “Alessandro, fala baixo! A mãe tá dormindo...” [Patrícia eleva a voz imitando-o:] “Ah! Sua mãe vai pra puta que...” Sabe? A mãe era como uma mãe pra ele! P: Não dá para acreditar que é a mesma pessoa. [...] Ele fala assim [gritando]: “Ah! Seus irmãos não vale nada!” O cunhado meu, que ele é doido com ele, são igual irmão... menina [tapando a boca], ele fala cada coisa com o homem! E ele [o cunhado] foi cair na bobeira de dar uns conselhos a ele bêbado... Menina! Mas ele falou cada coisa... Nossa mãe! Eu quase morri de vergonha! [pausa] Nós perdemos um cunhado, você ficou sabendo?

16.3 – A morte do concunhado considerado como se fosse irmão A narrativa do relacionamento com este cunhado traz informações importantes

que complementam a pesquisa, biográfica e etnográfica. Em Bagre Bonito, como Patrícia

reitera, é considerado fora do comum, extremamente simples uma pessoa branca que trata com

igualdade uma pessoa negra. A cor branca da pele sobrepuja variáveis socialmente

consideradas importantes, tais como nome de família, condição econômica, profissão ou

escolaridade, como mostra o caso do cunhado de Patrícia: ele veio de fora, ou seja, não tinha

família conhecida, era tão pobre quanto a família da esposa e possuía escolaridade abaixo da

maioria dos membros desta família, características cuja simplicidade não deveria ser

surpreendente. Entretanto, por ser branco de olhos azuis, foi incorporado com “distinção” à

família, passando a ocupar uma posição privilegiada de admiração. Era o menino da família

mesmo! A narrativa de Patrícia expõe a naturalização da desigualdade racial. A indignação de

Patrícia e Alessandro não se dá com o preconceito racial do qual são vítimas, mas com a

suspensão de uma moralidade ideologicamente imaculada: o amor materno. Como veremos, o

casal se revolta com a recusa da mãe do cunhado em visitá-lo em seu leito de morte e não

com o fato desta mãe ter rejeitado o filho porque ele se casou com uma mulher negra, irmã de

Patrícia.

No que tange ao relacionamento de Alessandro com o concunhado, é significativa

a transformação do parentesco em como se fossem irmãos, oriunda do cuidado/care que

Alessandro assumiu no período de convalescença do concunhado, embora houvesse outras

pessoas na família hábeis a fazê-lo. O modo como Patrícia narra o cuidado realizado por

Alessandro é exclusivista e distintivo. A posterior morte deste cunhado foi muito sentida por

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Alessandro; um ano depois, ele continua emocionalmente abalado e precisando de medicação

para dormir, como dirá na sua entrevista. Aqui, Patrícia atribui a insônia a um tipo de

depressão oriunda da mágoa de não ter conhecido os pais consanguíneos, o que, não por

acaso, acentuou-se com sentimento de perda familiar após a morte do cunhado. A minha irmã era casada há quase dois anos. Um rapaz, menina, excelente! Ele era alto, brancão, do olho azulzinho! Mas, uma criança! Uma simplicidade fora do comum! Aí, quando a minha irmã casou com ele, a mãe dele não aceitou... porque... por causa da cor dela e tal. P: A mãe dele não aceitou? Não! Não foi no casamento... Aí ele já casou triste, sabe? Aí, num certo dia, [...] ele [cunhado] falou assim: “Eu tô sentindo uma dor nas costas... [...]” Aí foi no médico [...] Já era um tumor enorme. Minha filha, aí foi aquele desespero! Ele era... o menino da família mesmo! Foi aquele desespero e tal. Aí eles mudaram aqui pra casa da mãe [...] O Alessandro cuidou dele; o Alessandro dava banho nele, o Alessandro fazia a barba dele, o Alessandro cortava as unhas dele... Tudo! P: E nessa época o Alessandro estava bebendo? Não. Quando ele ficou doente, o Alessandro deu uma parada. O Alessandro ficou muito emotivo, sabe? Muito emotivo. O Alessandro ficava só por conta daquilo, sabe? Todo mundo só ficava por conta dele. Aí ele ficou bom. A médica falou: “Você está curado! Você está curado! [...] Agora você vai vir aqui só de dois em dois meses para fazer a rádio e tal. Você está ótimo!” Menina, aí ele agarrou com o Alessandro! O Alessandro estava fazendo uma varanda na minha porta da cozinha, ele falou assim: “Eu vou te ajudar, Alessandro, colocar a cerâmica”. Foi ajudar... quando, Priscila, ele cai na minha varanda! [...] Começa a dar uma crise horrorosa! [...] Foi ver, estava com um tumor no cérebro. [Silêncio] Aí, minha filha, em um mês ele morreu. [...] O Alessandro que cuidava dele. [...] Morreu e o Alessandro ficou superabalado. Ficou arrasado e tal. E rezando, falando que nunca mais ia beber mesmo, porque o Carlos [cunhado] era uma pessoa jovem, tinha 35 anos, a mesma idade do Alessandro, uma pessoa jovem que morreu. Passou, tá lá o Alessandro de novo! Mas só trabalha com gente que bebe! [Silêncio] Eu não sei... eu... nada me influencia! Cê entendeu? Nada me influencia! Se eu quero fazer, eu faço; se eu não quero, eu não faço! Eu não sei... [baixando a voz:] O Alessandro vem de uma família de alcóolatra.

16.4 – A atualidade dos pais consanguíneos pela genética e pela mágoa Eis aqui outra questão cara à pesquisa; a força do sangue ou da genética na

constituição de modos de ser, pensar e agir. Patrícia atribui o alcoolismo de Alessandro a uma

herança genética. Outra informação importante interligada ao sangue, porém no sentido de

constituição e definição de práticas sociais, refere-se às prerrogativas que constituem um filho

de criação. Como Patrícia aponta, em Bagre Bonito, um filho abandonado pela mãe com um

parente consanguíneo, no caso citado uma avó, não se torna filho de criação. P: O pai de criação dele era alcóolatra? Não, o verdadeiro. P: Mas ele viveu pouco tempo com ele [pai consanguíneo], não foi? Viveu, mas... não é genético não? Será? Porque o pai bebia, os irmãos todos bebiam, bebem! Encontramos um irmão dele que tá igual ao Mundinho [Sebastião, outro filho de

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criação entrevistado]! Nunca conseguiu chegar na casa do homem e ele não estar bêbado! Nem de manhã! [risos] Deus que me perdoe! [...] Aqui, menina, e outra coisa: ele acorda de madrugada... O Alessandro tem um tipo de... de... de... de depressão, de coisa... que eu não tô conseguindo ajudar ele. O Alessandro tem uma mágoa dentro dele de não ter visto – depois você pode até perguntar isso pra ele, não sei se precisa colocar isso na entrevista, mas você pergunta de curiosidade pra você ver se ele vai te falar –, ele tem uma mágoa de não ter conhecido os pais dele verdadeiros. Isso tem uma mágoa que marcou ele de uma forma, que... ele é meio que revoltado, sabe? Então, ele fica: “eu bebo por causa disso”. [...] P: Pela história que ele me contou, parece que ele sofreu muito... É, que não superou o sofrimento. Ele ficou com aquela mágoa. Tem gente que... Eu trabalho na casa de uma mulher que tem mágoa também, tem mágoa da mãe ter abandonado ela também, ainda menina. Tem uma revolta tão grande! P: Ela também foi filha de criação? Não, a mãe deixou para a avó criar. Nossa! Ela tem uma mágoa muito grande. P: Então tá bom, Patrícia. Já te ocupei demais. Muito obrigada pela sua atenção, viu? Patrícia: [dando continuidade à conversa terminar] Nada, boba! Aqui, você foi lá na outra casa procurar a gente? P: Fui. Aí uma senhora que mora em frente me disse que vocês tinham construído e que o Alessandro não trabalhava mais na fábrica. Patrícia: Quando ele saiu da fábrica, foi assim: estavam pagando muito pouco na época. O dono que era o bom que tinha lá morreu de acidente. Aí ele [Alessandro] falou com o outro que tinha recebido uma proposta de emprego melhor, que ia sair porque ele queria acabar de construir e tal. O homem, menina, mandou nós embora daquela casa lá! Ele falou assim com o Alessandro: “Na outra semana você muda!” Menina, aí botou nós pra fora! Nós mudamos pra cá: sem piso, sem.... era um poeirão! Já tinha só tampado [colocado o telhado], mas estava uma tristeza a casa, você precisava de ver! O banheiro sem acabar... Até chegou uma comadre minha e falou: “Nossa, você tá morando nesse lugar?!!!” Eu falei: “Ué...” Aí, aos poucos, em menos de um ano, o Alessandro já tinha feito tanta coisa nessa casa, você precisa de ver! Como que o Alessandro desenvolveu aqui, mas... [Silêncio]

Bagre Bonito, 4 de setembro de 2012.

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CAPÍTULO 17 – ALESSANDRO

No intervalo entre a conversa com Patrícia e a entrevista com Alessandro,

procurei conhecer a narrativa de dois conhecidos a respeito das mudanças citadas por Patrícia.

Novamente, ouvi muitos elogios a Alessandro (homem bom; gente boa demais; honesto;

trabalhador; sofrido; doido com o filho), lembranças de sua vivência com o pai de criação e

atualizações de sua vida (não trabalha mais na fábrica; trabalha no laticínio; construiu;

melhorou muito de vida) e nenhuma menção ao alcoolismo apontado por Patrícia, nem

quando diretamente questionado (“você sabe se ele frequenta bares?”; “ele gosta de beber?”

etc.). Na entrevista, o próprio Alessandro não tocou neste assunto. Patrícia, por sua vez,

permaneceu calada diante da omissão do marido, postura que não se repetiu com outros temas

abordados. As mudanças no comportamento de Alessandro narradas por Patrícia também não

foram confirmadas pela minha observação. Tal como na primeira entrevista, Alessandro foi

muito gentil, calmo, comedido com as palavras demonstrando preocupação com o impacto do

que dizia. Contudo, é preciso ponderar que Alessandro estava sóbrio e a narrativa de Patrícia

discorreu sobre a outra pessoa em que ele se transforma quando bebe.

A objetividade e o destemor de Patrícia em narrar situações delicadas e por isso

comumente omitidas, me fizeram acreditar que seria interessante sua participação na

entrevista. Desde à primeira fase da pesquisa, em uma conversa que tivemos após a entrevista

em que fiquei a sós com Alessandro, Patrícia me fez perceber que ele havia suprimido ou

relativizado em demasia passagens difíceis para evitar reclamações, julgamentos ou

demonstrações de ingratidão. Nesta entrevista, a narrativa de Patrícia lança luz sobre essas

passagens, além de ser sagaz em atualizá-las. Cabe informar que sua participação foi

orientada e ela soube respeitar seu papel coadjuvante, intervindo apenas quando estimulada

por mim ou por Alessandro. Além disto, sua narrativa crítica notadamente estimula

Alessandro, constituindo uma espécie de campo seguro, de permissão, para avaliações

negativas, antes veementemente evitadas. Ver-se-á que apenas sua presença ou intervenções

sutis, como um riso ou uma interjeição, foram suficientes para dar voz a Alessandro. O que,

obviamente, tem seu lado desfavorável; a presença de Patrícia retirou a liberdade de

Alessandro de discorrer sobre a sua relação conjugal e com a família da esposa. Como pode

ser visto a seguir, Alessandro é induzido a dizer que considera a sogra como uma mãe, algo

negado anteriormente. Contudo, pesando prós e contras, o convite à participação de Patrícia

ainda me parece uma escolha acertada. Os diálogos suscitados proporcionaram oportunidades

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de observação da interação e afinação do casal, sendo ela o diapasão. Alessandro continua se

mostrando dependente das capacidades de objetivação e argumentação, do destemor

narrativo, da memória e também da confirmação da esposa. Além disto, a narrativa de Patrícia

é contextualmente muito rica e complementar à análise etnográfica.

Além de nós três, Alex, o filho, atualmente com sete anos, participou

passivamente da entrevista. Me chamou atenção seu silêncio e imobilidade: durante as duas

horas e meia em que conversamos, Alex não emitiu sequer uma palavra, não demostrou

enfado e só se levantou quando todos se levantaram. No fim do encontro, comentei minha

admiração e pude perceber que se trata de uma criança bastante tímida e educada com certa

rigidez. Patrícia: Você sabe, Priscila, eu nunca suportei... Todos nós lá em casa, sempre fomos pobres, sabe? Mas sempre fomos muito bem educados. Eu tinha um pavor de chegar na igreja e as mães com aqueles meninos... com biscoito, com pirulito para menino ficar quieto, sabe? Eu acho que tem que educar o filho assim: se ele vai para participar da missa, ele tem que aprender desde pequeno que ali é lugar de ficar quieto; não é ficar fazendo piquenique dentro da igreja não. Eu limpo o escritório de um advogado, eu levo ele [Alex] às vezes; eu sento ele, aonde que eu sento ele, ele fica!

17.1 – Mudança de casa – a importância da coletividade Nossa conversa começou abordando as mudanças mais evidentes, isto é, o novo

emprego no laticínio e a casa própria, ambas, de certo modo, interligadas. Patrícia retoma sua

narrativa a respeito do despejo da casa anterior e, sem meios termos, desfaz as justificativas

apaziguadoras de Alessandro. O casal se prolonga na história da conquista da casa própria,

chamando atenção para a importância da coletividade (uma rede de compartilhamento e ajuda

entre vizinhos, parentes, amigos e famílias) nas tomadas de decisão e de ação. P: Por que você saiu da fábrica? Alessandro: É... o salário era melhor, né?, no laticínio. Então eu preferi sair, pra ter um ganho melhor. P: E tem quanto tempo que você preferiu sair? Foi em que ano que você saiu? [Alessandro fica pensativo] Patrícia: [...] O dia em que ele [Alex, o filho] completou dois anos, nós mudamos pra cá. Igual eu te falei; o homem não esperou. Você lembra que eu te falei que ele não esperou? P: Ah, é verdade. Alessandro: É... ele não esperou porque ele estava precisando da casa rápido [Patrícia interrompe] Patrícia: Precisando, não! Ele ficou com raiva do Alessandro. Alessandro: É... tinha muito tempo que eu trabalhava lá, quase dez anos, né, Patrícia? Que eu trabalhava lá, então ele... ficou com raiva e mandou nós sair. [...] P: Que tipo de trabalho você gosta mais: o que você fazia na fábrica ou esse no laticínio?

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Alessandro: Olha... Eu não tenho o que julgar também a fábrica. Nessa parte aí, é... a fábrica é só mesmo por... por pagar menos. Mas, eu gostei muito de trabalhar ali, portanto fiquei esse tempo todo. Foi bastante tempo. P: E quando foi que vocês resolveram construir? A ideia de construir uma casa? [...] Alessandro: Esse lugar aqui é até por invasão de muitos. Patrícia: Essas casas, foram todas invasão de... era tudo pasto! Alessandro: Tudo pasto. Patrícia: Era tudo mato. Alessandro: Só que aí, começaram a invadir. Patrícia: É, começaram a invadir. Aí uns colegas do Alessandro, uns amigos da gente, parente... falaram assim: “Ó, a gente vai pra lá porque dizem que a prefeitura vai doar aquilo lá. Aí nós vamos lá para cercar.” Entendeu? Eu morria de medo! Eu tinha pavor... Alessandro: É, nós tinha muito medo, na verdade. [...] P: Esse terreno era da prefeitura? Ou era de alguém? Patrícia: Ele era do Estado. [...] Patrícia: E meu pai começou aqui do lado... e meu cunhado lá em cima... aí começou. Alessandro: Foi engrandecendo. Patrícia: Aí, o padre foi prefeito aqui, o padre João, aí o que ele fez? Ele comprou do Estado e doou pr’a gente. [...] Patrícia: Se não tivesse feito isso, não teria casa até hoje não, né, Alessandro? Alessandro: Eu acho que... Porque comprar um terreno... Eu imaginava assim: meu Deus, eu não vou conseguir nunca comprar nem um lote porque... a gente ganhava muito pouquinho, eu ganhava muito pouquinho, ela não estava trabalhando, eu ganhava muito pouquinho... então eu não ia conseguir nunca. [...] P: Tem gente que não gosta de morar perto de família, porque acha que família intromete demais. O que você acha? Alessandro: Não... eu... não tenho nada contra não. P: E você, Patrícia? Patrícia: Nossa! Minha mãe, é igual eu te falei... Alessandro: Nosso Deus! Patrícia: A mãe é mãe para o Alessandro, né? Alessandro: Ela é minha mãe, porque eu não tive mãe, né? Assim.., tive mãe de criação e tudo, mas... é... Patrícia: Muito pouco. Alessandro: Muito pouco tempo, né? P: Ela faleceu primeiro que o seu pai, né? Alessandro: É, faleceu. Aí... então, eu considero como sogra e mãe é ela aqui. Eu sempre considerei. Patrícia: Aqui é tudo pertinho um do outro. P: Então vocês gostam? Alessandro: Nosso Deus! A gente é muito unido, graças a Deus, nesse ponto aí.

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17.2 – Infância com os pais de criação – carinho do pai, maus tratos da mãe Continuando o tema, voltamos à sua adoção; conversamos sobre as famílias

consanguínea e de criação. Muitos pontos relevantes foram trazidos, a maioria deles por

Patrícia ou por sua influência. As narrativas resgatam a romantização das histórias de pegar

para criar que observei socialmente. Nota-se que minhas perguntas suscitaram certa

racionalização, trazendo à tona pontos incongruentes. Patrícia se surpreende com a

desnaturalização das práticas de dar e pegar filho para criar dando-se conta de nunca ter

pensado a respeito.

Alessandro reitera a narrativa anterior do acolhimento como salvação - se não

fosse eles, eu acho que eu nem estaria vivo mais – bem como a narrativa coletiva que

distingue e reconhece a bondade de Seu Redentor em pegar para criar apesar da pobreza em

que vivia. Patrícia faz coro e chega atribuir a boa relação de Alessandro com o filho aos

ensinamentos que recebeu do pai. Apesar da exaltação apreciativa da socialização familiar,

existe um imbróglio quanto ao seu caráter propriamente familiar. No decorrer da entrevista,

com frequência a palavra “filho” fica engasgada (Não é todos que querem criar um... dar uma

criação) e as entrelinhas colocam em dúvida a legitimidade deste tipo de filiação. Dúvida que,

entretanto, é resolvida pela consideração. Há uma nostalgia da vida em família com os pais

de criação, como mostra o convite à esposa para conhecer in loco resquícios de sua

sacrificada, mas boa, vida pregressa. Parece, contudo, que esta vida é lembrada melhor do

que realmente fora, visto o desprezo e os maus tratos da mãe de criação, indiretamente

denunciados por Patrícia e comprovados não apenas narrativamente, mas corporalmente pela

cicatriz que Alessandro carrega no braço. Em contraposição, ainda que parte da vida em

família, Alessandro classifica como vida de cão a coabitação com o irmão de criação. Desta

vez, ao contrário da primeira entrevista, certamente influenciado pela presença da esposa,

Alessandro não tem dificuldade de reconhecer que apanhava demais. Associa os maus-tratos

do irmão ao período em que começou a picar a vida, corroborando a narrativa de Hermínia

sobre bater de casa em casa pedindo um abrigo. Uma comprovação da mudança de

Alessandro, reclamada por Patrícia, encontra-se na diferente conclusão a que ele chega ao

comparar seu passado e seu presente: se na primeira entrevista as dificuldades do passado,

seja a vida de cão ou o período em que começou a picar a vida, contrastavam-se às benesses

do presente graças à constituição de uma família, hoje eu tenho a minha família, nesta, é

graças ao seu modo de vida atual, hoje eu tenho uma vida. P: Na nossa conversa anterior, em janeiro de 2007, cinco anos atrás, você me disse que foi adotado aos dois anos. Foi isso mesmo?

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Alessandro: Isso, aos dois anos. P: E quando você foi adotado, você já tinha o seu registro? Você já tinha o nome completo...? Alessandro: Já, já. P: Então você não é registrado com o nome do seu pai de criação. Alessandro: Não, não. P: É com o nome do seu pai biológico? Alessandro: É, biológico. Foi até por mãe, né? Patrícia: É só mãe, não tem pai não. Alessandro: É só mãe, não tenho nome de pai não, na certidão. Só da minha mãe. [...] Patrícia: Mas você sabe o que aconteceu? Um senhor lá [irmão de criação de Alessandro], que é filho do homem que criou o Alessandro lá, me contou que foi assim: a mãe do Alessandro morreu, o Alessandro era o mais novo, ele era bem... um aninho e pouco, me parece. Então a mãe morreu e parece que uma irmã ou uma prima dela ficou criando os filhos dela. Ficou ali com os filhos dela. Aí um dia ela saiu dando... Alessandro: Os filhos da irmã dela. Patrícia: Saiu dando um para cada... Cê entendeu? [...] Alessandro: Eu não lembro nada não. Patrícia: O Alessandro não lembra porque era pequenininho. P: E o seu pai de criação não te contava como foi a história, como ele te acolheu? Alessandro: Não, ele nunca... Ah, não! Sim, a forma como ele me acolheu, ele contava. Ele estava em Barão de São João Batista, ele gostava de fazer uns joguinho de bicho, umas coisas assim. Então, ele... disse que queria adotar, que tinha vontade de ter mais um filho. P: Ele já era de idade [mais velho], né? Alessandro: É, já era de idade, já tinha uma certa idade já, já era bem velhinho. Aí, ele me contou que ele me enrolou num paletó... me trouxe... Patrícia: Mas ele não te contou quem te deu não? Alessandro: Foi um irmão meu. Foi um irmão que estava me puxando pela mão, no meio do asfalto lá, no meio da rua lá e perguntou pra ele se ele queria ficar comigo. Ele falou: “Quero”. Patrícia: [com surpresa] Antigamente, olha! Hoje, se fizer uma coisa dessa, dá polícia! Alessandro: Aí ele me trouxe, enrolado no paletó. Eu muito pequenininho... aquela coisinha pequena. Patrícia: Mas você sabe o que eu acho interessante, Priscila? Que todas, até essa moça evangélica que eu te contei [...], ela me fala que esse Redentor era benzedor e eu falei: “benzedor como assim? Era pessoa boa?” Ela falou assim: “Não existia boa igual ele não!” Alessandro: É, ele era. Patrícia: E você sabe que todas as pessoas que lembram do Alessandro quando ele era criança e andava... todas elas falaram a mesma coisa: o amor que esse velho teve pelo Alessandro. Menina, mas dizem que aonde o Seu Redentor ia, o Alessandro ia andando atrás! Alessandro: Eu ia, eu andava atrás. Patrícia: Era a paixão dele mesmo, eu falo com o Alessandro isso. Eu falei: “hoje você tem um bom relacionamento com o Alex porque o seu pai, né?, te passou isso.”

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Alessandro: [com relação ao filho] Ah, nós somos amigos, muito amigos. De vez em quando tem que dar uma broncazinha porque não tem jeito, né? Hoje em dia, se deixar muito solto... Então, tem que dar uma bronca. Mas... é tudo para mim. Meu filho é tudo para mim. [...] P: Naquela entrevista, quando eu perguntei sobre seus pais de criação, você me disse o seguinte: [leio o trecho em nota1]. Alessandro: É verdade, é verdade. Eu tenho a recordação certinha aonde era as casinhas... hoje não é mais aquelas casas. [...] Sonhava muito com o lugar! Sonhava certinho, com a minha mãe... [Silêncio] P: Você sonha ainda? Alessandro: Não, hoje... não. Hoje não. Patrícia: Você nunca me falou que sonhava com ele. Alessandro: No começo, logo que ele morreu, logo depois... eu sonhava muito. [...] Patrícia: Deve ter uns três meses, nós fomos lá, fomos na escola que ele estudou... Ele me chamou: “Vamos lá pra você ver.” Eu falei: “Vamos.” P: Você quis ir lá? Alessandro: Eu falei: “Vamos lá na escolinha onde eu estudei.” Aí eu mostrei pra ela. Patrícia: Aí ele parou, mostrou a estrada... onde ele pegava lenha, ele fazia as coisas, né? Alessandro: É, porque a gente carregava lenha na cabeça. Ficava carregando aquelas lenha na cabeça... bambu... pra fogo à lenha, né? Patrícia: Campinho de futebol... Alessandro: Era uma vidinha, assim... sacrificada. Patrícia: Simples. Alessandro: Simples, mas muito... eu gostava! Eu gostava muito de... ter a vida que eu tinha. [...] Buscava lata d’água na cabeça, lenha, bambú... Não tinha luz, era lamparina... Era a vida que a gente tinha. Muito simples na verdade, mas... era boa. Muita gente... muitas pessoas ajudava a gente. A gente ia na casa de um vizinho, ele ajudava. A gente comia muito aquelas abóbora, aquelas abóbora amarelinha que eles falam que é pra porco... e deve ser mesmo; porque hoje ninguém come, né? [Patrícia ri] [...] Lá a gente plantava na roça, aquelas coisas... aí, ia e colhia lá. Era a vida que a gente tinha. Era uma vida difícil, mas ao mesmo tempo, boa. [...] P: Você me falou mesmo, que seu pai era carinhoso com você... Alessandro: Demais. P: Que apesar do trabalho pesado, tinha carinho. Alessandro: Demais. A mãe era mais nervosa, mas... [Patrícia ri] Alessandro: Ela me queimou com angu quente um dia... tenho a marca até hoje no braço. [Patrícia continua rindo] P: É mesmo? Alessandro: É, aqui, olha a marca no braço [mostra a cicatriz].

1 Inclusive, eu estava comentando com a minha esposa, outro dia, que eu não gosto de passar lá onde a gente morava, porque eu me emociono... Então eu não gosto. Porque... eu vejo aquela casinha simples lá... mas é onde eu fui criado, onde me deram educação, me deram... carinho. Uma casinha simples mesmo, mas é onde eu tinha uma família. Porque se não fosse eles, eu acho que eu nem estaria vivo mais.

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P: Você aprontou? Alessandro: Ah, eu ficava na beira do fogão a lenha, um fogãozinho a lenha, eu era pequeno e ficava esquentando a cabeça dela: “mãe, eu quero comida! Eu quero comida!” Ela, muito nervosa: “Aqui; vou dar comida ocê!” E colocou uma pá de angu quente no meu braço. Eu saí correndo, gritando... O pai ficou bravo com ela! Eu lembro direitinho, o pai ficou bravo. [...] Patrícia: Ela te batia? Alessandro: Não batia porque não aguentava, eu corria mais do que ela. Mas só que... jogava as coisas, gritava... Ela falava muito, né? Era muito de ficar falando... gritando, chamando a gente. Mas só que... a vida com eles foi muito boa. Agora, vida difícil eu passei foi com meu irmão de criação. P: Pois é, você falou. Alessandro: Aí eu passei... vida de cão mesmo. [Silêncio] Apanhava demais! Apanhava mesmo! Essa vida aí, eu não... quero nem recordação não. P: Você falou que ficou cinco anos com ele, não foi? Alessandro: Foi. Depois que eu resolvi a... a sair. Foi aonde que eu comecei a... picar minha vida, né? Ia pra uma casa, não dava certo; ia pra outra... Porque... a gente, quando a gente é sozinho e tá morando assim, ali e aqui, a gente... não tem uma vida boa. A gente não tem uma vida boa, a gente tem uma vida... O pessoal trata a gente de qualquer maneira. Não tem, assim, aquela vida... como hoje eu tenho, graças a Deus. Hoje eu tenho uma vida, eu já falei com a Patrícia, graças a Deus! Hoje eu tenho uma vida. [...] Patrícia: Mas aí, eu falo com o Alessandro para não ter revolta dessa vida. Guardar como um exemplo. [...] P: Você sente alguma mágoa, alguma tristeza pelo fato de não ter convivido com seus pais biológicos? Alessandro: É... Eu já tive muita mágoa. Inclusive, até pouco tempo eu ficava... Patrícia: Tem mágoa, não tem não? Alessandro: Nosso Deus! Eu ficava bem emocionado de lembrar daquilo. Vontade... né? De ter eles perto. Mas, hoje não. Hoje... eu botei a minha vida em dia, ergui a cabeça e falei: “Não, não adianta.” [...] Patrícia: É interessante... Agora que eu tô curiosa! Como é que ele [pai de criação] arrumou a certidão de nascimento sua? Com o seu irmão? Já pensou? P: É, se o seu irmão estava com você na estrada... Alessandro: [Silêncio] Patrícia: Só se a tia deu... ou ele foi em casa e pegou. Alessandro: Essa certidão minha estava com... quando eu era criancinha, com o meu irmão, não sei... Patrícia: Então a mulher deve ter falado assim: “Sai pra rua e vai dar ele pros outros!” Né? Alessandro: É, ué... é o mais certo, o mais certo. Patrícia: Só se for isso, né?

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17.3 – O cuidado como obrigação Compartilho com Alessandro e Patrícia a máxima sócio-cultural do cuidado dos

filhos, sobretudo de criação, como reciprocidade ou como missão, tal como apontou Clara.

Alessandro concorda e chega a dizer que não há mais filhos como antigamente. Patrícia, por

outro lado, faz uma análise muito semelhante à de Laura, destacando a obrigação que pesa

sobre o filho adotivo/de criação em comparação ao filho consanguíneo.

P: Você concorda com esse ditado: “Os pais cuidam dos filhos para depois os filhos cuidarem dos pais”? Alessandro: É... bom... Patrícia: Os pais esperam isso aí, né? [risos] Alessandro: É... tem gente que fala assim, né? “Um pai trata de dez filhos, mas dez filhos não tratam de um pai.” Né? Hoje em dia, eu posso quase ter certeza que é dessa forma, certo? Então, para os dias de hoje... Patrícia: Não está valendo muito não. [risos] Alessandro: É. P: Então você muda o ditado? Alessandro: É. P: E você acha que o filho de criação, adotivo, você acha que ele sente que tem um pouco mais de obrigação de cuidar dos pais do que o filho biológico? Ou não, é tudo igual? O que você sente? Alessandro: [Silêncio] É, eu acho que por ele... não só por ele ser adotado, mas eu acho que sim. Ele tem que estar ali presente, né? Pra poder ajudar, né? [...] Porque... veja bem: eu acho que um filho biológico de qualquer forma ele tem... é... como é que fala? Um... privilégio maior, né? Por ser filho biológico, né? P: Eu entrevistei uma filha de criação lá em São João, ela já tem mais idade, e ela só conseguiu se casar, ter uma casa igual vocês têm aqui, ter a vida dela, o trabalho dela, depois que os pais de criação morreram. Ela morou por quarenta anos com os pais, cuidando deles. Aí, quando ela me disse isso, ela disse assim: “Cumpri minha missão. Fiquei com eles até cumprir minha missão.” Você tem esse sentimento de que o filho adotivo tem uma missão? Alessandro: [Silêncio] Olha... Eu também responderia o mesmo, porque... é... enquanto eu pude fazer por eles, eu fiz. Apesar de que o tempo que eu vivi com eles foi muito pouco, mas eu digo o mesmo; o que eu pude fazer, não sei se eu fiz, pela idade que eu tinha, muito novo, né?, mas eu acho que tentei fazer tudo o que estava dentro do alcance. Patrícia: Mas você sabe o que que é? Igual, o Alessandro, às vezes, ele vê alguém maltratando [os pais], ele fala: “Eu daria tudo pra estar com meu pai, com a minha mãe de novo...” Então, aquele valor de ter um pai e uma mãe é tão forte que ele se sente mais na obrigação do que os outros. [...] Parece que fica mais a obrigação, né? O outro não, o biológico, nunca sentiu isso, sempre teve pai e mãe. Então parece que fica mais a obrigação. Eu não concordo que é uma obrigação não! A gente vendo assim por fora, né?, a gente não sente isso, mas eu tô entendendo porque eu vejo como é que ele reage quando uma pessoa maltrata o pai e a mãe. [...] Então, é por isso, né?, que um filho adotivo tem tanto... né?

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17.4 – Novo olhar sobre a ajuda à/de Dona Lúcia Em nítida contraposição ao sentimento de familiarização tratado até aqui,

retomamos o período em que Alessandro começou a picar sua vida. Como visto na primeira

entrevista, ele saiu da casa do irmão de criação pela proposta de ajuda de Dona Lúcia. A

retomada desta experiência perante Patrícia trouxe novas informações. Patrícia é direta e não

hesita em classificá-la como trabalho escravo. Alessandro faz coro com uma narrativa mais

solta.

Os dois pressupostos de familiarização, casa e comida, que constituíam a ajuda

de Dona Lúcia foram, essencialmente, infringidos. Além da desproporcionalidade da troca,

destacada na primeira entrevista, isto é, ajuda/trabalho intenso e exclusivo, de domingo a

domingo, sem descanso, por casa e comida, Alessandro não se alimentava em quantidade e

qualidade compatíveis com o trabalho dispendido. A comida recebida era diferenciada da

comida consumida pela família, além de não haver comensalidade. A coabitação alheia à casa

e à cotidianidade da família levou Alessandro a desconsiderá-la completamente como

“familiarização”: era só mesmo o trabalho em troca de comida.

Apesar do trabalho escravo, algo fundamental para a reprodução desta relação

assimétrica é reinterpretado valorativamente; qual seja, a doutrinação religiosa a que

Alessandro era submetido. Uma vez por ano, durante o carnaval, ele era enviado para retiros

religiosos onde comia bem e só rezava. Esta informação tem importantes implicações quando

analisada etnograficamente; algo que pretendo fazer na terceira parte do texto. Malgrado o

descanso e a comida boa, pode-se entrever que através da imersão religiosa Alessandro

fortalecia a aceitação resignada de sua exploração e de seu sofrimento, renovando,

anualmente, o iníquo pacto de ajuda.

P: Naquela época em que você morava com a Dona Lúcia, que você disse que o trabalho era bem pesado porque você tinha que cuidar de boi... Alessandro: Isso. P: Quando você terminava o trabalho, você ficava aonde? Alessandro: É, eu morava... eu tinha um comodozinho separado de casa. P: Você não morava junto na casa? Alessandro: Não, não morava dentro de casa não. P: Você sentia como sua família? Alessandro: Não, não. De jeito nenhum. Era só mesmo o trabalho em troca de comida. [...] Patrícia: Mas essa casa que você morou lá também, todo mundo que conhece esse pessoal, que conheceu o Alessandro trabalhando lá, fala que foi um trabalho escravo mesmo. Alessandro: Escravo, é. Patrícia: Até o sobrinho mesmo dessa moça fala.

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P: De quem, dessa Dona Lúcia? Patrícia: É. Foi um trabalho escravo mesmo. Esse sobrinho da moça falou: “Patrícia, o Alessandro trabalhava num trabalho escravo mesmo. Era debaixo de chuva...” [Alessandro interrompe] Alessandro: Cortava cana, uma cana é... deitada, no canavial assim, tinha que sair cortando aquela cana brotada do chão, por aquilo nas costas, encher carroça de cana... Era uma vida mesmo difícil. P: E a alimentação era boa, Alessandro, que eles te davam? Alessandro: Olha... [Patrícia ri] Alessandro: Péssima, né? Patrícia: O homem falou que era só angu. O sobrinho dela: “Patrícia, ela só dava angu ao Alessandro”. Alessandro: Só dava angu. Era angu mesmo. [pausa] Era angu mesmo. Colocava lá um pouquinho de arroz, um feijãozinho no fundo... aí você mexia um pouquinho na marmita assim, só era angu. Todos que... eles tinham corte de cana lá, né? Todos que trabalhava lá, reclamava do angu. P: Não era só você que morava lá? Alessandro: É, só eu que morava. Só que trabalhava lá, a dia, era os cortador de cana. P: E eles davam comida para os cortadores também? Alessandro: Davam. Davam. [pausa] “Trabalhava molhado” [risos], que eles falavam na época, né? “Trabalhava molhado” assim... dava comida, né? [...] Patrícia: E podre de rico, heim?! Tem dinheiro até! [...] Alessandro: O pessoal que trabalhava lá, a dia, falava: “Nosso Deus! Só angu, gente! Só dá angu a gente! Meu Deus! O que que é isso?” Aí um dia, eu falei, né? Um dia eu falei com a mulher que colocava o angu: “Meu Deus, o que tá acontecendo, dona Paulina? A gente mexe na marmita aqui e aparece esse anguzeiro?” Patrícia: Aí o que ela falou? Alessandro: “Não, mas todo mundo come assim. Todo mundo come assim mesmo aqui.” [...] P: E roupa? Alessandro: Roupa quase não tinha. Eu tinha... eu lembro assim... que eu tinha... Ela fez uma peça de roupa porque a gente participava, em Barão de São João Batista, de retiro. Então ela fez uma peça de roupa pra mim, uma calça e uma camisa. Vermelha! [Patrícia ri] Alessandro: Uma calça vermelha e uma camisa branca. Eu lembro que eu fiquei com aquilo, ó: anos e anos! Patrícia: [risos] Mas você sabe o que que foi bom para o Alessandro lá? Eles são religiosos demais. [pausa] P: Esses retiros eram retiros religiosos, Alessandro? Alessandro: É, só para homem. Patrícia: No carnaval, o Alessandro não via carnaval, ele ia pro retiro. P: Foi bom para você isso, Alessandro? Alessandro: Foi ótimo. Patrícia: A religião que eles ensinaram pra ele, entendeu? Alessandro: Nesse ponto aí foi muito bom.

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P: E esse período que você ia para o retiro, você ficava dias fora ou não? Alessandro: Três dias. Os dias todo do carnaval. P: E lá nesse retiro você trabalhava ou era o seu descanso? Alessandro: Não, era só rezar [Patrícia dá gargalhadas], só rezar. Patrícia: Rezar e comer bem! Pelo menos tinha comida boa. [risos] Alessandro: É, e comer bem. A comida era muito boa. P: Então o retiro era suas férias? Alessandro: É! Era minhas férias. Comia muito bem.

17.5 – Disposições para limpeza e organização – educação do filho Aproveitando a referência ao trabalho, procuro conhecer um pouco sua rotina

atual. O tema logo desemboca no seu apreço por limpeza e organização e, consequentemente,

no modo de educação do filho. Alessandro reproduz um modo de educação que consiste em

incutir no filho uma admiração compassiva pelos pais, que consiste em contrapor as mazelas

vividas à boa vida do filho; algo que pode ser um “excelente recurso educativo” em algumas

situações, mas produzir efeitos perversos em outras.2

[...] Patrícia: Ele não gosta de casa suja não. Alessandro: Não, não gosto não. [...] Às vezes eu sou até meio enjoado com esse negócio de limpeza. “Meu Deus! Isso daqui está desorganizado, aquilo ali está fora do lugar...” [risos] E pondo o Alex pra dar uma arrumada: “Vamos organizar suas coisas.” Agora eu comprei pra ele um... como é que chama aquele negócio? Playstation, né? Às vezes ele deixa lá o cd jogado, eu falo: “Meu filho, não pode ser assim não.” Aí eu fico falando, mostrando pra ele: “Ô, meu filho, seu pai não tinha nem chinelo pra calçar na época, porque ele era...” Né? Tentando mostrar pra ele que... como é que a vida era, que, de fato, era mesmo! Eu tinha uma botininha [Patrícia ri], eu tinha uma botininha daquelas de bico fino, só andava com ela. Eu não tinha outra coisa. O pé crescia, eu pelejava com a mulher [Dona Lúcia] pra ver se ela me dava outra... [...]

17.6 – Omissão do alcoolismo Tento conhecer um pouco mais de Alessandro individualmente propondo questões

sobre contextos em que ele poderia participar sozinho. Retomo a questão do futebol,

levantada na primeira entrevista como um gosto apreciado, mas não cultivado por razões que

deixaram subentendida uma proibição de Patrícia. Assim ofereço uma oportunidade para que

ele discorra sobre o hábito de frequentar bares e o alcoolismo. Com relação ao futebol, a

2 Como ressalta Franz Kafka, em seu belo e contundente testemunho. Cf. Franz Kafka, Carta ao pai. [1919] 1997: 30-31. O depoimento de Laura a esse respeito também é contundente. Cf. primeira entrevista. Percebemos nestes testemunhos que a sobrevalorização da coisa dada, proveniente da privação de quem deu, subtrai muito do prazer do seu recebimento.

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suspeita permanece; quanto aos bares, Alessandro é comedido e, por fim, nada diz sobre o

alcoolismo. Patrícia respeita a omissão do esposo. P: Você tem algum lazer que é só seu, em que a Patrícia não participa? Tipo um futebol...? Não. Eu... não... Eu gostava muito de futebol, só que... agora, de uns tempos pra cá, eu não tô mais... Patrícia: A coluna... Alessandro: Ah, é! [Patrícia ri] Eu não tô mais com a coluna boa pra jogar bola não. Então eu não saio assim pra... Quando eu saio, só saio com ela mesmo. P: Você tem amigos de barzinhos, de jogar sinuca...? [Silêncio] Patrícia: Tem. [risos] P: Você frequenta barzinhos? Olha... às vezes, sim. Às vezes sim, mas é muito, muito pouco. Já frequentei mais. Só que hoje não. Até porque é um gasto muito grande, né? [Silêncio]

17.7 – A naturalização do preconceito ao negro Além dos pontos comentados na conversa que tive com Patrícia, a narrativa

sobre a morte do cunhado expõe com precisão a naturalização do preconceito ao negro que

tentei analisar no que chamei de “etnografia dos indícios”. A indignação de Patrícia e

Alessandro diante da infração do amor materno, algo idealmente incondicional e imaculado,

sobrepuja a discriminação racial que a antecede e vitimiza toda sua família. A compaixão que

expresso pelo desrespeito que vivenciaram é redirecionada, exclusivamente, ao cunhado,

como se apenas a negligência do amor materno merecesse compaixão. Mesmo quando

objetivo o preconceito, ele é relativizado pela grandeza do problema que gerou. Patrícia: [...] quando esse cunhado meu morreu, igual eu te falei: o Alessandro cuidava muito dele e tal, porque ele não tomava banho sozinho, o Alessandro passou a dar banho, fazer barba, fazer tudo. Então, quando ele morreu, o Alessandro ficou... até doente. Né, Alessandro? Fez tratamento, passou a tomar calmante porque não conseguia dormir... Alessandro: Não dormia mais. P: Te abalou muito? Patrícia: Abalou demais! Então, assim... às vezes, dava a hora em que ele morreu, ele morreu à uma e meia da madrugada, então o Alessandro acordava e não dormia mais. Era aquele problema. Alessandro: Não dormia mais de jeito nenhum! [...] Patrícia: [...] Ele [cunhado] tinha um problema com a mãe, sabe, Priscila? Eu falo com o Alessandro; o Alessandro às vezes fica triste por causa “ah, eu não conheci meus pais”, mas ele [cunhado] teve um problema pior; porque ele tinha mãe, mas a mãe fazia de conta que ele não existia! Doeu demais! Porque no hospital, Priscila, ele implorava pra mãe ir ver ele. Ela não foi. Alessandro: Não foi! P: Não foi?

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Alessandro e Patrícia: Não foi! Patrícia: Aí quando a médica quis conversar com a família, para explicar a situação, porque a minha irmã [estava] sozinha lá com ele, ela [a médica] falou: “Traz a família dele aqui porque eu preciso falar o que que ele tem. Eu preciso explicar.” Aí, quem que foi? Eu e o Alessandro. O Alessandro largou o serviço, eu larguei meu serviço e fomos lá. Quando a médica viu, ela falou: “Ué?! Cadê o pai e a mãe dele?” Aí a Sônia [irmã de Patrícia] falou: “Eles não aceitam ele porque ele casou comigo, então eu trouxe a minha família.” [...] [...] Depois que ele morreu, nunca mais o Alessandro dormiu direito. E antes ele tinha o sono pesado, pesadíssimo. P: Ele foi enterrando aonde? Patrícia e Alessandro: Aqui. Patrícia: No cemitério aqui em Bagre Bonito mesmo. P: A família dele veio ao enterro? Patrícia: A mãe dele não. Alessandro: A mãe dele não veio! P: Nossa, que coisa! Patrícia: Não veio, juro pro cê! Alessandro: [com muita indignação] Essa mulher... Gente! [Silêncio] Patrícia: Não veio! Ele implorou! Ele falava assim: “Ô, gente, a minha mãe não quer vir me ver, né?” Nós falava assim: “Ô, bobo! Ela não gosta de hospital...” Alessandro: Ele falava: “Mentira!” Patrícia: A gente implorava à mulher pra ir, menina! Ela não ia, Priscila! Não ia! P: É de cortar o coração... Alessandro: É, é de doer. É de doer! Patrícia: Foi doloroso, foi doloroso! P: E como vocês se sentiam com esse preconceito da mãe dele? Patrícia: Ah, a gente nem ligava! Deixava pra lá. A gente ficava mais triste de ver ele doido pra ver a mãe, implorando pra ela ir e ela não ia. Alessandro: É de doer! Eu nunca vi uma coisa daquela na minha vida não. Patrícia: Então, só pra concluir, eu falo para o Alessandro assim: “Você, tem uma história de vida triste, mas tem uma história feliz porque um homem te criou com todo amor e carinho.” Que amou ele como um... né? Então, quer dizer; um pai e uma mãe desse, que rejeitou, que não queria.... Alessandro: É difícil.

17.8 – Família de criação: novas informações, mudanças e reproduções A passagem a seguir aprofunda a relação, passada e atual, de Alessandro com a

família de criação. Apesar das mudanças, do tempo transcorrido, do afastamento e das

amargas reminiscências, algo “inexplicável” faz com que Alessandro ainda sinta uma

obrigação de visitar o irmão de criação toda vez que vai a Barão de São João Batista. Patrícia

percebe tal “disposição” como amor; Alessandro nega, sem, contudo, saber explicar o que

poderia ser. Com relação ao passado, chama atenção a narrativa de desafeto de sua mãe de

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criação em contraposição ao que foi dito na primeira entrevista, o que lança luz sobre um

efeito narrativo comum a todos os filhos de criação entrevistados: à primeira vista, a narrativa

é padronizada, isenta de críticas ou reclamações, reproduz o senso comum a respeito da

filiação de criação, constituindo, assim, um “discurso público” (SCOTT, 1990); em segundo

momento, seja no curso de uma entrevista mais prolongada ou na ocasião de novas visitas,

nota-se uma narrativa mais reflexiva, mais crítica, que analisa o comportamento passado,

demonstrando a existência também de um “discurso oculto” (Id., ibid.). Eu era boba! Eu era

boba! De aceitar todo tipo de humilhação. Os outros vem te humilhar, você chora e não fala

nada, como avaliou Clara. De modo semelhante, Alessandro se auto-avalia

retrospectivamente como simples, bobadinho. Ambos, Clara e Alessandro, explicitam as

mudanças e atualizam os jeitos de ser e agir com base na experiência vivida, mas cada um ao

seu modo. Clara tem uma narrativa agressiva que, objetivamente (como pude observar), não

condiz com seu modo de agir e de reagir às situações: Agora, se você me ofender aqui, você

pode ter certeza que vai ser ofendia ali na frente. Eu retruco na hora! Alessandro, condizente

com seu modo contido de expressão, se posiciona mais tranquila e assertivamente: Hoje a

gente já vê o mundo mais diferente; a gente não é de ficar carregando desaforo dos outros...

né? Não briga não, mas hoje já tem a resposta certa para dar sem... sem deixar a pessoa

ofendida.

Patrícia é perspicaz em perceber sua influência nas mudanças de Alessandro e

chega a destacar o namoro e o casamento como importantes “rupturas biográficas”. O casal

discorre sobre os abusos que Alessandro sofreu antes de conhecê-la, que associavam sua

condição e cor da pele a incapacidades. Por outro lado, Patrícia também é arguta em

reconhecer a conquista de uma família como fonte de retornos, assinalando o fim da luta,

conforme analisei na primeira entrevista. O sonho dele? O sonho dele era ter uma família.

Você tá vendo que só gira em torno disso?! Contudo, diferente da primeira entrevista, em que

o próprio Alessandro ressalta a conquista de uma família como a realização do seu sonho,

aqui, esta correlação é feita, apenas, por Patrícia. P: E você convive com ele [irmão de criação], Alessandro, hoje em dia? Alessandro: Olha... muito pouco. Muito pouco. Patrícia: [risos] Outro dia nós fomos lá ver ele. Alessandro: Até... outro dia nós estivemos lá na casa dele lá, mas... a convivência nossa não é... assim... [Silêncio] P: Não tem carinho, né? Alessandro: É, não. P: Ele lembra tudo o que ele já fez com você?

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Alessandro: Lembra, ué! [...] Inclusive, nem quando eu vou lá, nem conversar comigo ele não conversa. Ele conversa mais com a Patrícia. Ele não olha dentro do meu olho. Ele não olha. Eu já percebi. Outro dia eu estava falando com a Patrícia, no último dia que nós foi lá, ele não olha no meu olho. Ele não olha. Ele olha pra ela. [...] P: Por que você quis ir lá, Alessandro? Patrícia: O Alessandro no fundo, no fundo, ainda gosta dele! Alessandro: Não, Patrícia, não é bem assim... Patrícia: Eu até brigo com o Alessandro por causa disso; porque a gente vai em São João: “A gente tem que ir lá ver o Jão”. P: O que que é, Alessandro? Alessandro: Eu fico... sei lá... mesmo pelo o que ele me fazia comigo, me batia... eu tenho lembrança dele... não é? A gente nunca que deixa... Eu não deixo aquela mágoa me corroer não. Né? A gente convivia com ele. Eu vou lá sim, mas não é aquela coisa que se diz assim “é meu irmão mesmo”. P: Entendi, você não sente isso. Alessandro: Não sinto isso. Não tem nem como! Não tem jeito. Patrícia: Mas ele gosta dele! Alessandro: Não gosto, Patrícia. P: Então você sente que é uma obrigação passar lá? Alessandro: É, sinto uma obrigação de passar, porque não... pra falar assim mesmo, ter carinho de irmão, eu não... não tem jeito. [Silêncio] Deixou mágoa, né? Deixou muita marca, né? Então... [...] Patrícia: Até porque esse... irmão lá do Alessandro, ele vendeu tudo o que era do pai e nem pra falar assim: “Ô, Alessandro, quer dez reais?” Né? Não deu nada! Alessandro: Vendeu tudo e nem... P: E você... Alessandro: Não, eu nem... [Silêncio] P: Na época você falou alguma coisa? Tipo: “Olha, eu tenho direito nisso também”? Alessandro: Não, eu... Patrícia: Cê nem pensou, né, Alessandro? Alessandro: Nem pensei nisso, nem pensei! Na minha época eu era tão assim... transtornado nessas coisas que... eu nem pensava. Eu não tinha, né? Não sabia, não conhecia lei nenhuma. Então... [...] P: O que você mais admirava no seu pai? Alessandro: A honestidade dele. P: E na sua mãe? Tinha alguma coisa que você admirava? Alessandro: [Silêncio] P: Ou ela era tão brava que você nem conseguia pensar nisso? [Patrícia ri] Alessandro: Ela, por ser explosiva demais, eu não tinha nem tempo de pensar no que ela... Às vezes, ela me xingava muito... e... ela era totalmente diferente do meu pai. Então não tinha muito o que pensar assim. [...] É, o que gostava mesmo, de verdade, era o pai. O pai sim, agora, a mãe não... não... não dava assim, muito a mínima pra mim não. Não me dava muita importância não. P: E você achava que isso te judiava?

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Alessandro: Ah, eu sentia falta, né? Ela, como sendo minha mãe mesmo, minha mãe de criação, eu sentia falta de carinho dela, né? P: E você alguma vez falou isso pra ela ou não? Alessandro: Não, não. Eu nunca... [silêncio] P: Nem para o seu pai? Alessandro: Não. Eu nunca cheguei a tocar no assunto não. P: Você guardava pra você. Alessandro: É eu ficava... Até porque, eu não sei se hoje eu ainda sou uma pessoa simples, mas eu era muito simples, não tinha assim, como... nem como comentar nada com eles, né? Era bobadinho mesmo. [risos sem graça] [...] P: Você acha que passou por alguma mudança, alguma transformação no seu jeito de ver as coisas, de pensar... de lá pra cá? Alessandro: Mudou, mudou um pouquinho. Porque antes, às vezes... não é que a gente é de brigar com os outros não, né? Mas antes, a gente aceitava tudo. Hoje a gente já vê o mundo mais diferente; a gente não é de ficar carregando desaforo dos outros... né? Não briga não, mas hoje já tem a resposta certa para dar sem... sem deixar a pessoa ofendida. [...] P: Quando você era criança, morando lá naquela “casinha simples” com seus pais de criação, qual era o seu sonho naquela época? Alessandro: Na verdade... Eu nem passava na minha cabeça... sonho meu. P: Você não tinha sonho naquela época? Alessandro: Não. Na verdade, não. Porque... com certeza eu pensava que um dia eu ia perder meus pais, pela idade que eles já estavam, mas... mas eu não tinha... eu não tinha nenhum sonho não. [...] Patrícia: Diz ele que os outros falava com ele assim: “Você nunca vai arrumar... você nunca vai casar, Alessandro.” Alessandro: É. Ih! Eu era criança, o pessoal abusava de mim. P: Como assim? Alessandro: É um rapazinho que a gente morava perto dele lá: “Ih, rapaz! Você é um cara feio, um neguinho feio!” Falava assim. P: E ele falava isso pra você? Alessandro: Falava! “Você é um nego feio, rapaz! Um nego feio!” P: Isso te deixava triste? Alessandro: Olha... Eu nem ligava! Patrícia: O Alessandro mudou muito! Porque... até o tempo em que eu namorava com ele, o Alessandro era uma pessoa muito simples, ele não via maldade, não tinha maldade. Sabe? Parece que não tinha assim uma... uma... perspectiva de vida, sabe? Agora que ele... O sonho dele? O sonho era ter uma família. Você tá vendo que só gira em torno disso?! Você entendeu? Não tem aquela... muita perspectiva.

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17.9 – Adoção/criação: fazer por merecer Concluindo a entrevista, exponho a narrativa crítica de uma filha de criação3

sobre as diferenças entre filho consanguíneo e filho adotivo/adotivo/de criação. Patrícia tem

uma percepção muito próxima e traz informações complementares, como o preconceito social

sobre o filho adotado no papel mesmo; a diferença racial, naturalizada como desigualdade

primária; o peso da consanguinidade nos comportamentos considerados inadequados e a

obrigação do filho adotivo/de criação de fazer por merecer. Alessandro concorda, mas não

reflexivamente; sua resposta distorce o sentido da conversa e culmina na adoção como

salvação. Coloco também em discussão a percepção social da adoção como favor.

Novamente, a narrativa de Patrícia acrescenta categorias chaves, como caridade e ajuda,

chamando atenção para a obrigação de reciprocidade ao destacar a posterior cobrança da

ajuda. Alessandro concorda, mas não percebe sua experiência de filho de criação pela

dinâmica do “favor de muitos retornos” (MOURA, 1988). Embora sua narrativa seja

permeada de contrapartidas aos pais já idosos, sem idade para fazer as coisas, ele entende o

seu processo de adoção nos moldes de antigamente, onde se pegava para criar por amor e

não por favor.

Por fim, cabe registrar uma situação inusitada: ao ler a narrativa de uma mãe de

criação acerca da obrigação de retribuição que tal favor encerra, sem citar seu nome ou

qualquer referência, Patrícia, imediatamente e indiretamente, reconhece a autoria, deixando

entrever a popularidade do brado da mãe de Laura. Também indiretamente, com a habilidade

típica da conversa, Patrícia tenta sondar a veracidade da paixão que os pais de Laura,

sobretudo o pai, têm por ela.

P: Eu entrevistei uma filha de criação lá em São João que me disse o seguinte:4 Patrícia: É verdade! Alessandro: Verdade. P: É, Alessandro? Você já sentiu isso?

3 Omiti o nome de Laura e troquei seu município de residência para evitar qualquer interesse em sua identidade. 4 “(...) o sentimento de uma pessoa adotada é diferente do sentimento de uma pessoa que não é. P: É mesmo? É. Eu classifico assim. P: Mesmo tendo vindo pra cá ainda bebê e sendo criada como filha, como você disse? Mesmo assim. Sabe por quê? A sociedade te vê de uma forma diferente. [pausa] Você é especial para a sociedade porque você é adotada. [...] Você pensa de uma forma diferente. Parece que você se sente mais sofrida do que as outras crianças, entende? Eu sempre me senti assim, sabe? P: Tipo ‘menos’ alguma coisa? Não... Assim... A família do meu pai meio que ficaram revoltados. Eles pensavam assim: ‘Deixa de ser bobo! Você vai deixar de ter filho para adotar filho dos outros? Isso vai crescer e você não sabe o que vai ser.’ [pausa] Entendeu? Então você cresce tentando mostrar para eles que você pode ser normal, como qualquer outro filho, mesmo se fosse um filho biológico, se fosse deles; um filho normal. Então você tem que crescer meio que provando para os outros que você não vai ser aquilo que maquiaram.”

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Alessandro: É verdade. Patrícia: O que a gente ouve é isso mesmo! Não é? Tem uma menina que mora aqui pra cima que ela é adotada. [...] Adotada no papel mesmo. E eu escuto sobre essa menina não é de hoje! [...] Hoje ela já tem 15 anos já. Desde que ela era bebê eu escuto eles [as pessoas em geral] falar dessa menina. [...] Ela é moreninha, mas, assim, bem mais clara do que nós, né, Alessandro? Mas uma morena bonita! Mas hoje ela é... é... uma menina... assim: gosta de andar de sainha curta... você sabe essa idade, né? Gosta de andar toda arrumadinha. Aí: “Olha lá! Devia ser filha de uma, heim?! Nossa mãe! Faço ideia que raça que é isso.” Mas toda a vida eu escutei falar dessa menina. Eles falam assim: “Faço ideia, heim?! Nosso Deus! Coitada, foi adotar aquela menina! Vai dar um trabalho...” Eles falam isso mesmo! P: E você sentia isso, Alessandro? Alessandro: Eu acho que se eu tivesse vivido na companhia dos meus pais biológicos, eu acho que eu não estaria... com o ensinamento que meus pais de criação me deram. Porque... [Patrícia interrompe] Patrícia: É! Porque tem gente que vê o Alessandro, gente que viu ele criança e vê ele hoje, diz: “Menino, eu não dava nada pro cê! Quem diria!” Né, Alessandro, não falam? Alessandro: Eu morava no Machado, muita gente ficava: “Ih, mas esse cara não vai ser nada não. Esse cara... um nada!” Patrícia: “Vai ficar a vida inteira nisso aí.” Alessandro: É. “Vai ficar trabalhando em horta de tomate a vida inteira.” [...] P: Você já se sentiu um pouco diferente das outras pessoas por ter sido filho de criação? Alessandro: [Silêncio] P: Talvez na sua infância, quando você brincava com seus colegas...? Alessandro: Às vezes, sim. Na escola, às vezes... eu sentia sim, mas eu não dava importância para isso. Eu não sou muito de dar importância para essas coisas não. P: Você também acha que a sociedade tenta moldar as pessoas? Alessandro: Eu acho. Eu acho sim. Tenta sim. P: O que você acha que uma sociedade espera do filho adotivo? Alessandro: Olha... Não são todos, né? Mas muitos hostilizam a pessoa por ser filho de... adotivo, né? Mas... eu, graças a Deus, do meu ponto de vista, eu não... tenho nada a falar. P: Você acha que as pessoas encaram a adoção como um favor? Alessandro: Muitas pessoas, às vezes, dizem, né? “Ah, eu tô adotando pra fazer um favor pra ele, porque ele não tem pra onde ir... Vai ser um mendigo na vida”, né? Então... eu acho sim. Patrícia: Muitos adotam assim. Eu acho que muita gente pensa que é... uma caridade que estão fazendo. Tanto que eu trabalho na casa de uma moça (eu te falei que eu faço faxina, né? Cada dia tô numa casa) e a filha dela vai adotar por isso; por caridade. Por caridade. Ela fala assim: “Ah, em vez dessas pessoas ficar doando as coisas, ajudando os outros aí, adota um menino, gente! Caridade que faz!” [risos] É tipo uma ajuda. P: É uma ajuda? Patrícia: É, né? Aí acho que depois ela vai ficar falando [com o dedo em riste e ricto rabugento]: “Eu te ajudeeeeeei!!!” Né? Eu acho! Pelo jeito que ela fala. P: Antigamente, filho de criação não era adotado no papel, né? Patrícia: É, não era. Igual nós falamos; pegava pra lá e pronto.e Alessandro: Pegava... e era por amor mesmo. Né? Hoje tem muitos que já pegam pensando: “Ah, eu fiz um favor pra ele” e tal... E fica jogando na cara da pessoa.

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[...] Patrícia: Essa evangélica que eu estava te falando, ela tem um irmão que tem uma filha adotada em Volta Redonda, onde esse irmão dela mora. Ele é bem de vida [...], tem duas filhas [consanguíneas]: biomédica, a outra é... não sei o que lá também, bem formada. Aí ela [a conhecida evangélica] fala: “A bendita da adotada, em vez de fazer por merecer, foi ter dois filhos pra minha cunhada criar.” P: “Fazer por merecer”. Patrícia: É! Aí ela fala: “Já pensou, minha filha, pegou ela aqui e levou ela pra criar. Moreninha... Quer dizer; podia ter estudado” [Alessandro interrompe] Alessandro: É uma discriminação! Patrícia: [continuando] “podia ter estudado. O que que ela fez? Foi arrumar dois menino pra minha cunhada criar.” Quer dizer, né? Por que que ela não seguiu o exemplo das outras? Eu acho que a sociedade apedreja mesmo. Tem um tanto de gente aí, não são todos, que apedrejam mesmo. P: Eu ouvi de uma mãe de criação o seguinte: “Os pais cuidam dos filhos para depois os filhos cuidarem dos pais, o filho de criação mais ainda, porque acolher uma criança é uma escolha”. Patrícia: A mãe de criação falou isso? Alessandro: Meu Deus! Patrícia: A Lalá, a Lalá e a mãe dela tem uma... Eu chamo ela de Lalá, a Laura, eu chamo ela de Lalá. Ela é adotada. Você conheceu ela? P: Conheci. Patrícia: Aquele casal tem verdadeira paixão por ela. [Silêncio] P: É? Patrícia: A mãe dela é um pouco depressiva... Alessandro: Qual Lalá? Patrícia: A Lalá [esposa] do André. Alessandro: Ah tá, conheço. Patrícia: Então, a mãe dela tem um pouco de depressão, mas o senhor é... parece que adora aqueles meninos [filhos de Laura], adora ela... [Silêncio] P: [Silêncio] O silêncio se prolonga e então percebo que caberia a mim a continuação daquela

conversa. Mudo o assunto e comento a educação do pequeno Alex, que permaneceu quieto e

calado durante toda a entrevista. Parabenizo o casal pelo filho e encerro a entrevista,

agradecendo as participações. Outra situação, não exatamente inusitada, mas constrangedora,

tem lugar quando o casal, sobretudo Alessandro, inverte o agradecimento pela pesquisa e me

reconhece como uma pessoa humilde, coitada, apenas por eu ter entrado em sua casa e os

tratado com igualdade. P: Gente, muito obrigada, viu?! Patrícia: Obrigada você. P: Alessandro, obrigada, de novo, por ter me contado a historia da sua vida. Alessandro: Priscila, assim que... a casa está aberta pra você. Para você, o seu esposo... P: Obrigada, eu agradeço mesmo.

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Alessandro: Eu ainda estava falando com a Patrícia: “Ainda existe muitas pessoas humildes.” Patrícia: É! Alessandro: Humilde assim... que... de coração aberto... falando de você mesmo; a Priscila, uma pessoa humilde, coitada, né? Entra dentro da casa da gente de coração aberto mesmo. Nosso Deus! P: Imagina, gente; vocês é que sempre me receberam muito bem. Contar a história da vida da gente, tem tanta coisa que é dolorosa, que a gente não gosta de ficar falando, né?, e a gente entra na vida da pessoa... Então, eu é que tenho que agradecer. Patrícia: Nós estamos falando isso para você de coração: sempre que vir a Bagre Bonito e quiser dar uma passadinha aqui, vai ser um prazer mesmo. Alessandro: Tomar um cafezinho com a gente. Pode vir mesmo! Patrícia: É muito bom ter uma pessoa como você... que considera a gente como amigo. P: O que é isso, gente?! Alessandro: É igual eu estava falando: hoje é raro você ver uma pessoa que vem na sua casa, assim... pessoa humilde, né? Pessoa igual a gente mesmo, que vem. Te acho você uma pessoa simples também. Muitas pessoas às vezes vem pra reparar o que você tem, pra falar: “como foi que você conseguiu isso aqui?” Patrícia: É igual o Alessandro estava falando aquele negócio de amigo; a gente não tem um amigo que vem aqui em casa, senta e fica batendo um papo gostoso assim não. Apesar do avanço das horas, aceito com prazer a continuação do papo gostoso na

cozinha, com café e degustação dos queijos orgulhosamente produzidos por Alessandro no

laticínio em que trabalha.

Bagre Bonito, 9 de setembro de 2012.

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CAPÍTULO 18 – JOÃO PAULO - Conversa com Henrique

João Paulo morreu aos 96 anos, no dia 17 de março de 2010. Continuava sozinho,

fazia a mesma coisa até a véspera da morte dele: pegava a lenhazinha dele, tratava das

galinhas... Contou-me Henrique em nosso reencontro, cuja conversa se estendeu por quase

quatro horas. Um agente municipal de saúde, seu afilhado, que o visitava periodicamente para

consultá-lo, encontrou-o morto no banco da varanda, tal como descansava: Ele não morreu;

ele desligou! Porque ele morreu com o chapéu na cabeça! Fez isso: [inclina um pouco a

cabeça]. Nem o chapéu da cabeça dele caiu! Não mereceu sofrer. A narrativa de Henrique se

detém em evidenciar a “distinção” de João Paulo, evidenciando também, indiretamente, as

desigualdades que o apartavam da família. P: O senhor doou as coisas dele? As roupas dele eu dei. Todo mundo lá vestiu as roupas do Jão. Lavaram direitinho. Sujo porque não tomava banho, mas de limpeza de alma, eu tenho certeza que é mais limpa do que a nossa!

Meu reencontro com Henrique foi fértil em atualizações, mas vou destacar apenas

duas, cujo mal estar familiar oriundo e plural em desencadeamentos trazem à tona o dilema

entre como se fosse e ser. Trata-se do sepultamento de João Paulo no túmulo da família e do

uso indevido de sua caderneta de poupança.

De acordo com Henrique, apenas ele, sua esposa e seus filhos consideravam João

Paulo como se fosse da família. Suas irmãs não tinham mais essa consideração há muito

tempo. Com a morte dos pais, Henrique herdou a casa e o espaço a ela circunscrito,

permitindo que João Paulo permanecesse na fazenda e posteriormente habitasse a casa. A

morte de João Paulo deflagrou o conflito: as irmãs de Henrique foram contra ao seu velório na

casa que fora de seus pais e, sobretudo, ao seu sepultamento no túmulo familiar. Ele não é da

família. Henrique, pleno de consideração e de autoridade, como único homem da família,

organiza a cerimônia fúnebre na casa da fazenda e decide sepultar João Paulo no túmulo dos

pais, mas na gaveta debaixo e sem lápide, transformando-a na outra morada dele. [...] Teve umas pessoas querendo trazer ele pra vir velar aqui [na capela mortuária do cemitério na zona urbana], eu falei: “Não! [Silêncio] Ele só vai sair de lá para vir para a outra morada dele!” Aí mandei avisar [aos conhecidos] que ele tinha morrido. Mas foi um tanto de gente! Todo mundo queria ver ele. A turma dali, era 4 horas da manhã, tinha mais de 50 pessoas lá. [Silêncio] Dentro de casa, na varanda, pra todo lado. Tinha mais de 50 pessoas! É coisa difícil isso! P: Vocês velaram ele a noite toda?

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É, velamos a noite toda. Aí no outro dia de manhã trouxemos ele pra cá. Coloquei ele na mesma campa do meu pai mais da minha mãe. [Silêncio] P: Eu gostaria de visitar o túmulo dele. Mas o túmulo dele... [Pausa] eu ainda não coloquei a placa com o nome dele. [Pausa] Porque... [discorre sobre um problema burocrático ocorrido na compra dos túmulos, anos atrás (antes mesmo da morte de seus pais), sem qualquer relação com João Paulo] Então, a campa dele [...] tá escrito: “Luciano Carvalho e Jurema Carvalho”. E ele tá na gaveta debaixo. [Silêncio] Eu coloquei ele lá. [Silêncio] [...] Muita gente, às vezes, faz crítica: que eu não devia ter posto lá, que ele não é da família... Eu falei: “Pra mim, é. [Silêncio] Não é pra você, mas, para mim, é.” P: Quem faz esse tipo de critica? É gente de casa, né? Você sabe disso, né? [risos] É gente de casa. É gente de casa mesmo. [Silêncio] [...] Minhas irmãs acharam ruim comigo, minhas irmãs não; duas irmãs acharam ruim comigo. As desavenças de Henrique com essas duas irmãs revelam mais das privações de

João Paulo ao longo de sua vida. Até 2003, ano em que Henrique assume a administração da

aposentadoria, João Paulo nunca teve seu dinheiro revertido em seu benefício. Mais do que

isto: nunca houve segurança em caso de necessidades, tal como ele compensatoriamente

esperava; seu dinheiro era gasto oculta e indevidamente. O João Paulo, quando ele morreu, Priscila, é... [Silêncio] sobrou dele 22 mil reais. [Silêncio]. Comigo, de 2003 pra cá, eu passei a tomar conta do dinheiro dele... Fiz festa [de aniversário] todo ano; comprava tudo o que ele gostava de comer; pagava pra dar comida pra ele... Eu recebia, dava o dinheiro tudo na mão dele. Ele tirava só um trocadinho pra ele, mesmo porque, depois ele juntava aquele trocadinho e me devolvia aquilo tudo porque ele não tinha despesa pra nada! Né? Me entregava. Chegou a juntar pra mim 15 mil e pouco. [Silêncio] Na minha mão. Ele aposentou com 65 anos. Quando ele aposentou, o papai deu pra ele a caderneta de poupança dele. [Silêncio] Ele nunca usou. Ficou com a minha irmã, depois a minha irmã passou para o nome dela. No nome dela tinha 7 mil e poucos reais [apurados depois que João Paulo morreu]. [Silêncio] E papai já falava que ele tinha um bom dinheiro. Eu nunca me interessei. P: A sua irmã que administrava? É. [Silêncio] Depois que ele morreu, eu chamei ela pra nós acertar as contas pra mim poder dividir o dinheiro. [Silêncio] Esperei... Esperei... Ainda esperei mais quatro mês! Então, esse dinheiro [total], deu 23 mil e tanto. [...] P: Então esse dinheiro vocês dividiram entre vocês? Dividi com as minhas irmãs todas! Eu estava só esperando o dela pra mim dividir igual, né? P: E essa caderneta que ela administrou era separado? Era! O dela era com ela. O meu era 15 mil. E quando eu pedi, demorou um tempão e tudo... Eu também não sei por quê. [Silêncio] Não entrei em detalhe. O dela tinha sete mil e oitocentos; o meu, conforme eu fazia festa, gastava com tudo o que ele queria, tinha 15 mil. De 2003 pra cá! Então... [Silêncio] Essa irmã não gosta muito de mim, não fica muito perto de mim... com medo d’eu falar a verdade. Porque é... Eu não peço segredo

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porque eu tenho prova. Tenho prova escrita! [Silêncio] Então eu acho que ela tem medo da verdade, porque eu andei mostrando pra umas pessoas que é da família, o que tinha acontecido. Eu contei, ué?! É aberto! Muita gente aqui sabe disso. Ele [João Paulo] queria tirar da mão dela e passar para a minha mão. Eu falei: “Não, não! No meu nome não! Nunca! Isso eu não aceito. Jão, nós dois briga, pode fazer o que for, mas isso não. O dela fica com ela, o meu é... o que eu tô tomando conta, é daqui pra cá. É diferente. Não faz isso não, que eu não quero. Não aceito.”

Barão de São João Batista, 10 de setembro de 2012.

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PARTE III

Reconstrução:

Vida de filho de criação

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CAPÍTULO 19 – RECONHECIMENTO E SOFRIMENTO

19.1 – Dó: o reconhecimento social do sofrimento

Se eu for pensar muito na vida Morro cedo, amor. Meu peito é forte, Nele tenho acumulado tanta dor. As rugas fizeram residência no meu rosto Não choro pra ninguém Me ver sofrer de desgosto. Eu que sempre soube Esconder a minha mágoa. Nunca ninguém me viu Com os olhos rasos d'água. Finjo-me alegre Pro meu pranto ninguém ver. Feliz aquele que sabe sofrer. (Nelson Cavaquinho, Ary Monteiro e Augusto Garcez – Rugas)

O reconhecimento social dos filhos de criação apresenta-se atrelado à

comiseração pela sua submissão/servidão como constituinte da relação familiar. São igual

escravo, mas não abandonam a família! (moradora de Barão de São João Batista, a respeito

de Maria e Joana); nem os filhos de sangue tiveram tanto carinho e cuidado com os pais como

ela teve (moradora de Bagre Bonito, a respeito de Clara); é melhor ter filho de criação do que

de sangue porque ele não abandona os pais (senso comum em Bagre Bonito). Mediante a

valorização do sofrimento como horizonte normativo, a resignação com que os filhos de

criação aceitam a servidão inerente à sua posição no espaço familiar constitui uma importante

fonte de reconhecimento social. Dó é a categoria nativa que se destaca como expressão de

reconhecimento do sofrimento: Eu noto que a dó que eu tenho de você não é a mesma que

eles [pais] têm (André, marido de Laura); dava dó de ver o tanto que ele trabalhava

(moradora de Bagre Bonito, a respeito de Alessandro). Coitado, coitadinho, tadinho também

são expressões de dó: ele toda a vida foi um menino muito bom, coitadinho (Hermínia, a

respeito de Alessandro); coitada, aquela ali não teve vida, viu? Dia e noite por conta

daqueles meninos, cozinhando para um tanto de gente... (morador de Bagre Bonito a respeito

de Anita).

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Utilizada com frequência nas narrativas, dó expressa mais do que compaixão,

expressa reconhecimento e “distinção” (Bourdieu) do sofredor. Ser reconhecido como

sofrido, sofredor, significa ser admirado e transcender simbolicamente as desigualdades de

posição no espaço social, de cor da pele, de gênero etc. Contudo, não basta sofrer para ser

reconhecido como sofredor, é preciso “saber sofrer”; isto é, sofrer com resignação, sem

lamentações e até com contentamento, tal como ensinou Nossa Senhora em suas aparições na

Colina Sagrada: Continuem com suas penitências. Sofram com paciência e esperança para

alcançarem a luz do divino espírito santo. Para a maioria dos moradores com quem conversei,

a vida de abnegação, de submissão e servidão que constitui a vida de filho de criação é

considerada um grande sofrimento. Contudo, o que transforma este sofrimento em

reconhecimento é a “servidão voluntária” (LA BOÉTIE [1548] 2002) que atribuem ao filho

de criação. Sofrimento, há muito nos municípios pesquisados, mas o sofrimento resignado é

insólito; daí a “distinção” e o reconhecimento de quem “sabe sofrer”.

O reconhecimento social de Seu Redentor, pai de criação de Alessandro,

configura um bom exemplo desta correlação. Uma das informações mais recorrentes nas

conversas sobre Alessandro refere-se à “distinção” de Seu Redentor. Analisando as

narrativas, nota-se que o reconhecimento social do dom da benzição e da bondade de Seu

Redentor é potencializado pelo sofrimento oriundo de dois fatores interligados: a pobreza

econômica e a criação de Alessandro apesar dela. _ Seu Redentor sem poder! Ficou cuidando dele (Alessandro), você entende? [...] Podia ser onde for, que ele ia benzer, tadinho. Ia a pé! Podia ser longe do jeito que for, que ele ia. Nunca pediu nada, nunca cobrou nada de ninguém! (Hermínia) _ Coitado, ele não tinha condições nem pra ele mesmo. Lembro do Seu Redentor já velho, tendo que andar pela rua afora, com aquele menino, vendendo pão. Ele era muito pobre, sabe? Tinha que trabalhar, não tinha jeito. Agora você vê; tem tanta gente aí com dinheiro que não adota, que não faz nada para ajudar ninguém, né? Se o Seu Redentor fosse olhar isso... Ele era um homem muito bom, nosso Deus! (morador de Bagre Bonito) Como mencionado, o ato de pegar para criar é concebido socialmente como

caridade/ajuda/favor, capitalizando o reconhecimento social de quem o faz. No caso de Seu

Redentor, pegar e criar Alessandro sem poder, foi mais do que caridade, ajuda ou favor –

coisas que faz quem pode –, foi um ato de sacrifício. Hermínia, por exemplo, justifica não ter

abrigado Alessandro pela falta de recurso financeiro à época. Justificativa genuína que,

inclusive, absolve do julgamento social uma mãe consanguínea que precisou dar o filho.

Entretanto, Seu Redentor também não tinha recurso, também não podia e mesmo assim

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pegou e criou. Poucos pais de criação, bem como poucos benzedores, são lembrados e

reconhecidos com a “distinção” de Seu Redentor.

A correlação estabelecida por Charles Taylor em As fontes do self: a

construção da identidade moderna (1997) entre reconhecimento e dignidade iluminou a

compreensão do papel do reconhecimento social na vida dos filhos de criação, apesar da

prática transgredir a teoria. Em linhas muito gerais, a “dignidade” configura o terceiro eixo do

que Taylor determina como “pensamento moral”, a saber: primeiro eixo, nosso sentido de

respeito pelos outros e de obrigação perante eles; segundo, nossos modos de compreender o

que constitui uma vida plena, expressos na noção de “afirmação da vida cotidiana”; por fim,

terceiro eixo, os pressupostos que nos conferem dignidade. O princípio da dignidade refere-se

às características mediante as quais pensamos em nós mesmos como merecedores ou não do

respeito das pessoas que nos cercam. Não apenas do respeito “ativo” (respeito aos direitos, no

sentido da não-violação), como no primeiro eixo, mas, sobretudo, do respeito “atitudinal”,

que implica reconhecimento, admiração. Como explicar, então, o sentimento de dignidade

oriundo de uma relação de submissão e servidão que fere os princípios de “respeito ativo”

(primeiro eixo) e de “vida plena” (segundo eixo), se há, na configuração do pensamento

moral, como observa Taylor, uma sobreposição substancial ou uma relação complexa entre os

eixos, de modo que o tema da dignidade que configura o terceiro eixo encontra-se interligado

aos dois primeiros?

Ampliando o quadro analítico, com base em Axel Honneth, a questão ainda

permanece. Em Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (2003), o

reconhecimento tem mais ligação com o respeito “ativo”; a noção de “desrespeito” analisada

pelo autor refere-se à violação da “pessoa de direito”. A partir das três esferas de

reconhecimento definidas por Honneth, a saber, o “amor”, a “estima social” e o “direito”, os

indivíduos formariam seus juízos de “amor-próprio”, “autoestima” e “auto-respeito”. O cerne

da análise de Honneth consiste em perceber como é possível em indivíduos historicamente

desprovidos de autoestima, auto-respeito e amor próprio uma consciência capaz de refletir

não apenas sobre suas vãs condições, mas, sobretudo, de pensar formas de reverter esse

quadro. Depreende-se que a experiência compartilhada de situações de não-reconhecimento

possibilita aos sujeitos desrespeitados identificarem uns com os outros suas condições,

instituírem uma ligação solidária e lutarem por reconhecimento. Nesse sentido, ao enfatizar

uma unidade psíquica centrada no sentimento de injustiça, de tratamento desigual, social ou

juridicamente, Honneth concebe o desrespeito como propulsor da luta por reconhecimento.

Ainda que Honneth tenha percebido a “gramática moral do desrespeito”, vale notar que se

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trata de um desrespeito “ativo” (aplicando a lógica de Taylor). Como compreender formas de

“desrespeito ativo” que não resultam em “desrespeito atitudinal”, no sentido de falta de

reconhecimento? Nos casos dos filhos de criação, a violação da “pessoa de direito” não gerou

o sentimento de desrespeito, suposto por Honneth, porque não violou o “respeito atitudinal”,

no sentido empregado por Taylor.

As análises empreendidas por Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2008) a partir da

provocação “pode-se falar em violência quando não há agressão moral?”, compreendem essa

desarticulação de “respeito ativo” e “respeito atitudinal” ou, dito de outro modo, a articulação

de “desrespeito ativo” e “respeito atitudinal” que observei em campo. Cardoso de Oliveira

chama atenção para a precedência da dimensão simbólico-moral na constituição de violência,

citando exemplos etnográficos de atos ou eventos de desrespeito à cidadania que não são

captados adequadamente pelo Judiciário ou pela linguagem dos direitos, bem como de

situações em que a violência física é relativizada por não constituir agressão moral, como, por

exemplo, o “bater pedagógico”. Tendo como referência o sentido de “dignidade”

desenvolvido por Taylor, Cardoso de Oliveira classifica como agressão moral “atos de

desconsideração à pessoa”, ou seja, de “desrespeito atitudinal”, “vividos como negação do eu

ou da persona da vítima” (Op. cit.: 139). A partir da “ideia-valor” que subjaz a dicotomia

consideração/desconsideração, o autor formula a noção de “insulto moral” para tentar dar

conta de agressões objetivas a direitos que não podem ser traduzidas adequadamente em

evidências materiais e que implicam uma desvalorização ou negação da identidade do outro.

O “insulto” consiste, então, em agressão à identidade ou negação de consideração, esta

concebida aqui como uma “obrigação moral”.1

A cisão que a noção de “insulto moral” permite operar entre “pessoa de direito” e

identidade/eu/persona iluminou as tensões trazidas pela narrativa de Laura em contraposição

às narrativas dos demais filhos de criação. O discurso familiar e social que Laura objetiva

como cobrança, os demais internalizam como obrigação moral de reconhecimento da “dádiva

da vida”. Te cobram isso. A pessoa te cobra! [...] Eles [pais] falavam comigo que eu deveria ser muito agradecida a eles, porque se eu estivesse com a minha mãe lá em São João, talvez nem viva eu estaria. (Laura) Porque se não fosse eles [pais], eu acho que eu nem estaria vivo mais. (Alessandro)

1 A perspectiva adotada por Cardoso de Oliveira inscreve-se no debate francês que remonta a Rousseau, em que o tratamento relativo à considération é definido como um direito humano. Cf. HAROCHE &VATIN, 1998.

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As singularidades da trajetória de Laura – acesso prolongado à escola sobretudo,

mas não apenas; casamento, maternidade e trabalho fora de casa concomitante à coabitação

com os pais e acesso a contextos familiares (mais modernos) diferentes do seu – lhe

permitiram objetivar a cobrança no discurso dos pais e também da sociedade. A sociedade te vê de uma forma diferente. [Pausa] Você é especial para a sociedade porque você é adotada. [...] “[...] Isso vai crescer e você não sabe o que vai ser.” [...] Então você tem que crescer meio que provando para os outros que você não vai ser aquilo que maquiaram. (Laura) Mais do que percepção da cobrança, Laura “sente” o discurso dos pais como

humilhação: Igual outro dia, eu estava lá na casa deles e ele [pai] recomeçou com as humilhações... “Você tinha que agradecer mais porque tudo que você tem é graças a mim. Se não fosse a gente, você nem viva estaria lá, com a sua mãe lá.” Aí eu peguei e falei [em tom cansado]: “Ai, ai... pai, o senhor já falou demais por hoje, deixa eu ir para a minha casa.” Ele virou e falou [com ironia]: “Sua casa? Qual casa que é a sua? Que casa você tem? Você não tem casa nenhuma, minha filha. Minha casa! [grifo de Laura] Você mora lá de favor.” Aí eu engoli aquilo pra não dar mais confusão e falei: “Tá, pai, eu sei que a casa é sua, mas eu que tô morando lá, né? Então, deixa eu ir pro meu canto.” [Silêncio] Às vezes eu tinha vontade de juntar um dinheiro, sabe? De fazer um financiamento para construir uma casa e sair daqui. Mas, aí eu penso por outro lado: se não for essas humilhações, serão outras. As humilhações nunca vão acabar.

Engolir humilhações para não dar mais confusão, se calar sempre para evitar

conflitos, como já analisado, é fundamental para a convivência pacífica e o reconhecimento

como boa filha adotiva/de criação e não como aquilo que maquiaram, mas não retira a

angústia de se sentir meio sem identidade. Como vimos, Laura se sente confinada ao dualismo

redutor “filha adotiva que não tem o sangue dos pais X filha consanguínea que não foi criada

pelos pais” como identificação. Ao meu ver, Laura sente a cobrança como humilhação na

medida em que se desidentifica da categoria que pretende unificá-la. Como jovem mulher,

pertencente à geração da adoção legal, mãe, esposa, profissional independente, aspirante a

psicóloga e filha adotiva, o reconhecimento apenas como filha adotiva é demasiado redutor e,

pelo modo como é obtido, castrador. Isso fica claro quando Laura analisa, reflexivamente, a

posição de filha adotiva/adotiva/de criação no contexto sociocultural de seu município: Se ela [menina adotada que conheceu em uma festa de aniversário] falar assim: “Eu quero ir embora! Eu quero estudar! Eu não quero cuidar de ninguém! Eu quero ser independente como qualquer filho normal seria!” Eles vão sempre responsabilizar ela: “Mas eu te adotei! Eu te tirei da rua! Você tá entendendo? Ela vai carregar esse peso para o resto da vida dela. [Silêncio] Então, eu olhava para ela assim, eu imaginava assim: “Meu Deus! Estou numa etapa muito mais evoluída do que aquela menina; eu já passei por isso aí”.

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Então ela tem um caminho bem grande aí para percorrer. [Silêncio]

Apesar da redução à posição filha adotiva/de criação no espaço social e familiar

violar a sua pluralidade individual anulando suas potencialidades e da cobrança como uma

humilhação que a reduz a nada serem suficientemente objetivas para constituírem um “insulto

moral”, trata-se de uma “indignação moral” isolada. No contexto sociocultural de Bagre

Bonito, a obrigação de retribuição do cuidado dos pais constitui uma obrigação moral e sua

objetivação não é entendida como “insulto”. Cardoso de Oliveira observa que o insulto moral

está frequentemente associado à dimensão dos sentimentos e que quando se fala de

sentimentos no plano moral, dirigimo-nos àqueles sentimentos social ou intersubjetivamente

compartilhados (Op. cit.: 136-137). Laura é cônscia do isolamento social do seu sentimento,

só não sabe que não basta ser filho de criação/adotado para pensar e sentir como ela.

O sentimento de uma pessoa adotada é diferente do sentimento de uma pessoa que não é. [...] Parece que você se sente mais sofrida do que as outras crianças, entende? Eu sempre me senti assim, sabe? [...] É igual eu te falei, sofro pelo sentimento.2 Porque, assim: não adianta você retrucar porque a pessoa que não é adotada, não importa o que eu vou dizer, ela nunca vai entender. Você está entendendo? Não adianta. Você pode explicar: é por isso, isso... Mas ela nunca vai entender porque não está nela. Ela é filha normal. [...] (Laura) Em um contexto em que a dominação parental não constitui insulto, nem

violência, nem mesmo “dominação”, mas, ao contrário, articula-se a uma “pedagogia do

sofrimento” (COMERFORD, 2003) e ao reconhecimento, é preciso engolir as humilhações

para evitar confusão; é preciso ser até meio falso, porque senão não tem jeito, vai brigar o

resto da vida. A capacidade crítica de Laura, embora não alivie seu fardo, objetiva a

socialização “adequada” a um filho de criação, como também a submissão por

reconhecimento (você tem que seguir uma linha: onde eu piso, você tem que pisar. Você tem

que ser sempre submissa) e o “discurso oculto” (SCOTT, 1990) do reconhecimento público

“é melhor ter filho de criação do que de sangue porque filho de criação não abandona os

pais”.

Eles falam isso porque sabem que você não pode! [grifo de Laura] Você não pode

abandonar eles. É isso que eu tô te falando; eles te moldaram para ser criado assim: a

mesma coisa que um robozinho. Você criou um robozinho na função de ser faxineiro, ele

vai viver naquilo ali. Infelizmente é assim. [Pausa] Querendo ou não, é assim. [Silêncio]

Vida de filho adotivo. [Silêncio]

2“Se você quer me ofender, é pelo sentimento, é pelo o que você fala. Se você me bater ou qualquer coisa, não tô nem aí! Agora, se você me falar alguma coisa que ofenda... Aí sim! Você vai me pegar pelo sentimento”.

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19.2 – A dádiva da vida

Pois é dando que se recebe, (...) (Oração de São Francisco de Assis)

Se, em primeira instância, os filhos de criação são reconhecidos socialmente pela

“distinção” de pessoas boas, escolhidas por Deus, que cuidam dos pais até a morte, o que

culmina em uma “servidão voluntária” (LA BOETIE [1548] 2002), em segundo momento, ao

questionar a vida de filho de criação, o reconhecimento passa a se expressar pela lógica da

“dádiva retribuída” (MAUSS, [1924] 2003): Filho tem obrigação de ajudar os pais. Os pais

cuidam dos filhos para depois os filhos cuidarem dos pais. Os filhos de criação mais ainda,

porque adotar uma criança é uma escolha.

Como vimos, as narrativas dos filhos de criação são unânimes em associar a

prática de pegar para criar ao cumprimento de determinadas funções, futuras ou imediatas,

definidas segundo o sexo.

O casal que me acolheu ia precisar de um rapazinho para ajudar nos serviços e porque ficou com pena da miséria que eu vivia com a minha família biológica. [...] A minha mãe [de criação] tinha 65 anos e o meu pai [de criação] tinha 70, ele não tinha mais idade para fazer essas coisas. [...] Porque naquela época, o serviço era buscar uma lenha, buscar uma água na mina... Então eu mesmo ficava por conta daquele serviço ali. (Alessandro) Você sabe quantos anos eu tenho? Eu tenho 70 anos! Quando eu fiz um ano, a Maria [8 anos] foi lá para casa cuidar de mim. (Vera) Os filhos homens [da família de criação] estavam todos casados. Eles [pais de criação] precisavam de alguém pra fazer companhia pra elas [filhas consanguíneas]. P: O senhor ficava tomando conta delas? Isso, tomando conta. (Sebastião) Eu comecei a trabalhar com sete anos de idade! Sete anos! Com sete anos eu comecei a lavar vasilha, se não desse altura, eu colocava um banquinho; mas que eu trabalhava, eu trabalhava! Aprendi a fazer comida... (Clara) P: E você acha que a sua mãe, quando te adotou, ela já pensava nisso (fazia questão que fosse uma menina porque queria uma companheira)? Isso, isso. Sempre pensou assim, porque na cabeça dela, ela pensava o seguinte: como ela já tinha problema [de saúde], se ela arrumasse um menino a tendência seria ele ajudar no serviço do homem, do pai. Então ela pensou assim: “Eu vou dançar nessa! [risos] Então eu quero arrumar uma menina, porque uma menina vai me ajudar”. Entendeu? Ela pensou nela, você tá entendendo? E nessa o meu pai também entrou. [...] Meu pai nunca me deixou estudar porque ele achava que: “Se eu adotei é para mim ter uma companhia”. Então, ele adotou pensando: “Eu adotei uma pessoa para me servir de companhia, para me ajudar”. (Laura – grifos seus)

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Contudo, o que se destaca nas narrativas individuais e coletiva sobre a prática de

pegar para criar não é a ajuda dos filhos de criação, mas a ajuda dos pais de criação,

retirando o viés utilitarista e inscrevendo a prática no registro moral da caridade; o que,

entretanto, não retira a pressuposição do retorno que a ajuda engendra – dinâmica bem

explicitada pela narrativa de Patrícia, esposa de Alessandro, e também, como veremos, pela

interposição do divino nas relações sociais (quem dá aos pobres, empresta a Deus). Patrícia: Muitos adotam assim. Eu acho que muita gente pensa que é... uma caridade que estão fazendo. Tanto que eu trabalho na casa de uma moça e a filha dela vai adotar por isso; por caridade. Por caridade. Ela fala assim: “Ah, em vez dessas pessoas ficar doando as coisas, ajudando os outros aí, adota um menino, gente! Caridade que faz!” É tipo uma ajuda. P: É uma ajuda? Patrícia: É, né? Aí acho que depois ela vai ficar falando [com o dedo em riste e ricto rabugento]: “Eu te ajudeeeeeei!!!” A narrativa de Patrícia traz à tona a regra fundamental que rege a prática de pegar

para criar; não repousa sobre contratos, mas sobre um pacto de ajuda ajustado por três

obrigações complementares: dar-receber-retribuir. Inspirei-me no “Ensaio sobre a dádiva” de

Marcel Mauss ([1924] 2003) para tentar compreender a dinâmica interesse/desinteresse-

obrigação/liberdade que também se observa como base da relação entre família e filho de

criação.

A respeito deste “interesse desinteressado”, Alain Caillé (1998:13) destaca que “o

interesse está no final do processo (e não no início, como quer o utilitarismo), pois a

generosidade, se tudo correr bem (mas não há como ter certeza de que tudo correrá bem),

acaba compensando”. De fato, embora exista a doxa “filhos de criação são pessoas especiais,

escolhidas por Deus, que cuidam dos pais até a morte”, pesa sobre eles o estigma do sangue:

Isso vai crescer e você não sabe o que vai ser, como apontou Laura. Nesta ideologia do

sangue, é muito mais difícil criar filho dos outros do que filho de sangue, embora todos

reconheçam que o que faz a pessoa é a criação, como concluiu Clara, ou que não dá certo

adotar criança grande porque já vem com a cabeça formada, como advertiu Graça, mãe de

Laura. De um modo ou de outro, nota-se que o “dom” se complementa com o processo de

criação; isto é, com a socialização específica para o seu reconhecimento e retribuição. De

fato, concordando com Caillé, concomitante à expectativa de retribuição, paira a incerteza.

A linearidade do ideal moral “os pais cuidam dos filhos para depois os filhos

cuidarem dos pais” é complexificada pela “complementaridade paradoxal” (MAUSS, 2003)

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de seu acréscimo: os filhos de criação mais ainda, porque adotar uma criança é uma escolha.

Temos, como aponta Mauss, de um lado, o interesse desinteressado; de outro, seu caráter

voluntário, aparentemente livre e gratuito, porém coercitivo e interessado” Nesta relação, pais

e filhos se colocam em igualdade simbólica: os pais pegam para criar não porque precisam

de ajuda, mas para ajudar, porque são generosos; por sua vez, os filhos de criação ajudam os

pais, não porque não têm escolha, mas porque são agradecidos, pessoas boas, especiais,

sempre dispostas a ajudar. Explica-se, então, por que minha pergunta “você se importava de

trabalhar?” soou tão ofensiva. _Não! De jeito nenhum! Que isso?! De jeito nenhum, ué! (Sebastião) _Não, de jeito nenhum! Fazia com maior prazer! (Alessandro) A retribuição como dever moral de gratidão deve-se não exatamente ao ato de

pegar para criar, mas à dimensão do favor que o antecede e o constitui em “dádiva da vida”.

Ressaltar a precariedade econômica, social, moral etc. dos pais consanguíneos e até da própria

criança faz parte do rito de pegar para criar, bem como do processo de criação. Deste modo,

o ato é engrandecido assim como a generosidade de quem o faz. Como vimos, todos os filhos

de criação são oriundos de famílias economicamente muito pobres, algumas estigmatizadas

pelo uso de álcool, drogas, mães solteiras, mulheres separadas etc. Assim, a família faz o

favor (de pegar para criar) que a situação (de miséria, risco de morte ou degradação moral)

da criança pede. Trata-se de mais um exemplo do “paradoxo do favor imposto”, como

observado por Margarida Moura (1988) na relação entre fazendeiros e agregados no Vale do

Jequitinhonha, e das “três obrigações complementares” analisadas por Mauss. Eles me criaram com a mente o seguinte: eu tenho que viver agradecendo somente a eles porque foram eles que me deram a vida. Entendeu? Eles nunca entenderam que... independentemente deles terem me adotado, mesmo se eu morasse lá, eu não seria uma pessoa... como a minha mãe [consanguínea] é; que sempre teve filho sozinha, que eu ia levar esse tipo de vida. (Laura) Eu andava tudo sujo, com o calçãozinho todo sujo... pelo meio da rua lá, entendeu? [...] Quando me pegaram [aos quatro anos de idade] eu estava na rua! Na rua! Estava andando na rua. Sem nada... Sem ninguém para me olhar. Entendeu? Os irmãos mais velhos tudo ó: [dá de ombros - “nem aí”]. Eu passava ali em algumas casas e falava: “Ô, fulano, me dá um pão para mim comer”. Pedia dinheiro para comprar as coisas para mim comer. Não tinha ninguém para me ajudar... Eu não era gente não. (Sebastião) O casal que me acolheu ia precisar de um rapazinho para ajudar nos serviços e porque ficou com pena da miséria que eu vivia com a minha família biológica. (Alessandro)

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19.3 – O sacrifício como dádiva

(...) é perdoando que se é perdoado, e é morrendo que se vive para a vida eterna. (continuação da Oração de São Francisco de Assis)

Em meio a uma narrativa permeada de silêncios e reticências, limitando-se a

confirmar a narrativa incisiva de Vera a respeito da harmonia que é viver em família, a

resposta inusitada de Maria foi forte e sintética o suficiente para ser considerada um

importante “indício” da conversão do sofrimento em sacrifício. P: O que a senhora acha que acontece com a gente depois que a gente morre? Maria: [Silêncio] P: A gente vai para o céu? Maria: Eu não sei... Quem merece vai, né? P: Ah, quem merece é que vai? Maria: Eles falam que quem não merece vai para o inferno, mas eu acho que não é assim... Eu acho que o inferno é aqui embaixo mesmo. P: É? E por que a senhora acha isso? Maria: Eu acho que o inferno é aqui embaixo mesmo. [Silêncio] Porque é aqui que a gente sofre, né? [Silêncio] Me dediquei, então, a analisar este indício etnograficamente e nas narrativas dos

outros filhos de criação. Uma reorientação da dualidade céu/inferno é unânime nas narrativas

individuais, com exceção de Anita, cuja religião também configura uma exceção. À certeza

metafísica do céu, contrapõe-se, para os homens, a incerteza do inferno e, para as mulheres, a

sua experiência sensível. [P: Você acredita que exista céu e inferno?] _ Bom... Muitos falam, né? Céu existe, agora, inferno... eu não sei não. (Sebastião) _ Bom, Priscila... Eu creio que sim; céu existe, né? (Alessandro) _ O inferno ninguém não sabe... Ninguém não sabe onde é o fim dele. (João Paulo) _ Não, eu acredito que existe céu. O inferno é aqui, aqui na terra. Aqui se faz, aqui se paga. A gente paga é aqui na terra. (Clara) _ Eu acredito que exista céu, eu não acredito que exista inferno. Você sabe por quê? Você imagina bem: você morre e vai para o céu. Tem inferno pior do que esse: você lá no céu e conviver sabendo tudo de errado que você fez lá na Terra? Você se martiriza. Pra que ir para o inferno? Precisa? O inferno pior é a consciência. [...] [P: Nos seus momentos difíceis, você acha que está vivendo o “seu” inferno?] Isso. Sempre pensei assim. Quando eu ouvia coisas que me machucava, eu pensava: “Meu Deus do céu! Não existe inferno pior do que isso não. Não precisa existir.” (Laura)

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Apesar da diferença religiosa de Anita, sua percepção do inferno tem a mesma eficácia prática:

Tem o inferno e tem o céu. As pessoas que fazem mal aqui não vai para o céu. Nós morrendo, nós não vamos direto para o céu; nós vamos para o paraíso. Nós só vamos para o céu no dia em que Deus descer para dar o julgamento. Aí os bons, de coração bom, Ele tira e põe do lado Dele e os outros vão para o inferno. [...] É Deus que me chamou, não fui eu que escolhi, foi Deus que me escolheu. Entendeu? O que explica seus modos de ser, agir, pensar e sua certeza de estar entre os

escolhidos. [...] os outros pisa, pisa, pisa, pisa, eu estou sempre feliz. P: Você acha isso bom? Acho bom, é de pessoa boa, coração bom. É... é bom. Todo mundo gosta de mim.

Além disso, a interpretação bíblica de Anita traduz o que encontrei nas demais

narrativas: bem aventurados os que sofrem, porque deles será o reino do céu.3 Para todos os

filhos de criação, é preciso fazer por merecer o reino do céu. Ser bom é uma possibilidade de

obter tal graça, mas sofrer é mais certo. P: A senhora acha que uma pessoa que foi boa aqui na Terra vai para o céu? Maria: Eu acho que vai, né? P: E uma pessoa que sofreu muito aqui na Terra... vai para o céu? Maria: Ah vai! P: O senhor acha que uma pessoa que fez o bem a vida inteira vai para o céu? Sebastião: Bom... Né? Talvez... Pode até ir para o céu, né? [...] P: O senhor acha que uma vida de sofrimento é sinal de que a pessoa vai ser salva? Sebastião: Ah, isso aí é, né? É mais certo, né? P: Alessandro, você acha que uma vida de sofrimento é garantia de recompensa após a morte? [...] Alessandro: Olha... A gente faz por onde merecer, né? Porque... como uma pessoa que não faz por merecer, ela vai ganhar o reino do céu? Não tem nem como, né? Eu acho que o certo é fazer por merecer mesmo.

A conversão do sofrimento em sacrifício objetiva a luta pelo reconhecimento

divino. Sofrer com resignação o inferno que cabe a cada um é “saber sofrer”, “à Sua imagem

e semelhança”, tornando-se merecedor do reino do céu. Como vimos, nas mensagens de

Nossa Senhora na Colina Sagrada em Bagre Bonito e nas celebrações religiosas (sobretudo

nas missas) dos dois municípios pesquisados, o sofrimento é concebido de uma perspectiva 3“Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus”. (Mateus 5:10)

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escatológica. A correlação entre salvação, sacrifício e dádiva apareceu em um texto

explicativo, “A missa parte por parte”, fixado no quadro de avisos da casa paroquial da Igreja

Matriz de Barão de São João Batista: [2. A missa é sacrifício] Sacrifício é uma palavra que possui a mesma raiz grega da palavra sacerdócio, que do latim temos sacer-dos, o dom sagrado. O dom sagrado do homem é a vida, pois esta vem de Deus. Por natureza o homem é um sacerdote. Perdeu esta condição por causa do pecado. Sacrifício, então, significa o que é feito sagrado. O homem torna sua vida sagrada quando reconhece que esta é dom de Deus. Jesus Cristo faz justamente isso: na condição de homem reconhece-se como criatura e se entrega totalmente ao Pai, não poupando nem sua própria vida. Jesus nesse momento está representando toda a humanidade. Através de sua morte na cruz dá a chance aos homens e às mulheres de novamente orientarem suas vidas ao Pai assumindo assim sua condição de sacerdotes e sacerdotisas. Com isso queremos tirar aquela visão negativa de que sacrifício é algo que representa a morte e a dor. Estas coisas são necessárias dentro do mistério da salvação, pois só assim o homem pode reconhecer sua fraqueza e sua condição de criatura. (grifos do original)4

A articulação dos dados etnográficos e das narrativas biográficas me fez perceber

além da “dádiva da vida”: a “vida como dádiva”, não a sua retribuição, mas como “sacrifício”

(MAUSS & HUBERT, [1899] 2005).

Esta análise foi inspirada pela sugestão de Alain Caillé (1997) de ler o Ensaio

sobre o sacrifício (1899) de Marcel Mauss e Henri Hubert à luz do Ensaio sobre a dádiva

(1924). Façamos, então, um breve exercício:

Em todo sacrifício há um ato de abnegação, já que o sacrificante se priva e dá. E geralmente essa abnegação lhe é mesmo imposta como um dever, pois o sacrifício nem sempre é facultativo; os deuses o exigem. […] Mas essa abnegação e essa submissão não suprimem um retorno egoísta. Se o sacrificante dá algo de si, ele não se dá: reserva-se prudentemente. Se ele dá, é em parte para receber. O sacrifício se apresenta assim sob um duplo aspecto. É um ato útil e é uma obrigação. [...] (MAUSS e HUBERT, 2005: 106)

Nesse sentido, podemos pensar as abnegações e a submissão dos filhos de criação

como formas de sacrifício, não apenas à família, mas sobretudo a Deus. Se percebemos que

servidão é uma entre outras formas possíveis de submissão, fica mais fácil perceber que a

servidão à família é uma submissão à vontade de Deus. A doxa expressa isso muito bem: 4 O texto completo pode ser consultado em: http://www.clerus.org/clerus/dati/2007-11/23-13/MISSA.html

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filhos de criação, são pessoas especiais, escolhidas por Deus, que cuida dos pais até a morte.

Portanto, a missão constitui tanto um código moral, quanto um imperativo divino. Assim, na

medida em que os filhos de criação apreendem (“disposicionalmente” e não “utilitariamente”)

os códigos morais que condicionam a servidão ao reconhecimento familiar e social e o

imperativo divino que condiciona o sofrimento resignado à salvação, podemos pensar que, no

limite, trata-se de uma submissão para si, o que será problematizado a seguir.

Por enquanto, é preciso reiterar que a relação de reciprocidade com Deus não é

algo pontual, um sacrifício isolado pela salvação, ela permeia a vida diária. João Paulo,

pensando a respeito do que é preciso para ir para o céu, reconhece a obrigação de ajudar os

outros em uma dinâmica paralela: é só vem a nós, ao vosso reino, nada! E conclui: por isso

que eu não posso ser ruim para ninguém. Laura também nos fala desta interposição do

sagrado nas relações sociais que culmina na obrigação de ajudar: [...] eu acho que eu tenho que ajudar todo mundo, senão eu vou ser castigada. Eu penso assim. Eu penso nisso o tempo todo. “Meu Deus, e se eu negar ajuda e realmente a pessoa estiver precisando?” Eu sou assim. Eu acho que isso aí é um martírio! [risos] É um martírio! As promessas (analisadas na segunda entrevista com Laura), a construção do

merecimento e a corriqueira expressão Deus lhe pague trazem a cotidianidade desta dinâmica

paralela de reciprocidades. As conversas com Deus de Laura e Anita também são bons

exemplos. Laura, compartilhando suas auguras, seu sofrimento, reivindica sua maternidade:

Meu Deus, pelo tanto que eu sofro, pelo menos isso eu mereço. Anita, indiretamente,

reivindica sua casa, ao justificar por que não pode ajudar os outros de prontidão, cumprindo a

Sua vontade:

[...] coloquei o arroz no fogo, que eu já tinha deixado lavado, fui fazendo o almoço, arrumando a cozinha e conversando com Deus: “Ô, meu Deus, eu não fui porque essas duas que me parou precisavam ouvir a palavra e depois eu tinha que fazer o almoço. Eu ainda não tenho a minha casa...” A conversão do sofrimento oriundo das abnegações e da servidão em sacrifício a

Deus foi pensada mediante a doação da vida como doação de si que a noção de “sacrifício”,

tanto de uma perspectiva religiosa, quanto teórica, engendra. Ao retribuir a dádiva à família,

os filhos de criação “dão” o sofrimento dessa retribuição a Deus e esperam (“mas”, como

observa Caillé, “não se pode ter certeza”) que Ele o “receba” e o “retribua” com a salvação.5

5A morte natural de João Paulo, ocorrida de modo “tranquilo”, parece ser interpretada, como sugere a narrativa de Henrique, como um sinal do reconhecimento divino: Não mereceu sofrer.

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Não se trata de um simples condicionamento e, portanto, de uma redução do tema

do sacrifício ao remetê-lo especialmente a Deus, como aponta a ressalva de Caillé (1997: 36-

37) ao Ensaio sobre o sacrifício, ou de reduzir a dádiva ao sacrifício a uma “entidade

superior”.6 Parece-me que conceber o cumprimento da missão de cuidar dos pais até a morte

como sacrifício é abordá-lo “nos quadros da lógica mais vasta e mais original da dádiva”,

como sugere o próprio Caillé, pois não retiramos o sacrifício inerente à própria retribuição no

âmbito das relações humanas. Ao contrário; enfatizamos a dimensão do sacrifício existente na

dádiva, posto que, no caso em questão, “não é possível dar sem se privar do gozo daquilo que

é dado” e “essa privação constitui sem dúvida uma boa medida do valor daquilo que é dado”

(CAILLÉ, op. cit.: 43). A dádiva da vida se retribui com a vida. A anulação de si pela

servidão implica uma “perda absoluta”, como define Caillé, isto é, uma perda de bens

“supremos, indivisíveis e incomensuráveis”, configurando o único tipo de perda que, do ponto

de vista do autor, tem legítimo sentido chamar de “sacrifício”.7 Estamos diante, portanto, de

uma dinâmica de dádivas paralelas: a dádiva da vida e o sacrifício como dádiva.

6 O que, segundo Caillé (1997: 42), faz Maurice Godelier faz no seu L’enigme du don (1996), ao conceber que a tripla obrigação maussiana de dar, receber e retribuir não seria inteligível se não reportasse a uma “quarta obrigação”, a obrigação de dar aos deuses. 7 Para Caillé (Op. cit: 45-46), é justamente essa dimensão “trágica” do sacrifício que o contrapõe ao “utilitarismo doutrinário”, que se caracteriza, ao contrário, pelo postulado de que todas as escolhas se reduzem a decisões tomadas no seio de um universo de divisibilidade e comensurabilidade perfeitas. Nesse caso, espera-se capitalizar os benefícios do sacrifício (de “simples perdas”: bens desejáveis, comensuráveis e divisíveis) e enquadrar sua dimensão trágica num simples mecanismo de arbitragem de custos e benefícios.

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CONCLUSÃO: A servidão (in)voluntária dos filhos de criação

É como se alguém estivesse aprisionado e tivesse não só a intenção de fugir – o que talvez fosse realizável – mas também, e na verdade ao mesmo tempo, a de transformar, para uso próprio, a prisão num castelo de prazeres. Mas se ele foge, não pode fazer essa transformação, e se a faz, não pode fugir.

(Franz Kafka, em Carta ao pai)

Como mencionado em diversas ocasiões, o intuito desta pesquisa era compreender

o que naturaliza uma relação objetiva de dominação e servidão como relação familiar. A

naturalização de desigualdades contingentes e arbitrárias culminando em uma servidão

voluntária dos filhos de criação constitui o senso comum tanto do contexto pesquisado quanto

de outros onde a categoria se faz presente, como analisado no capítulo 2. Longe de reiterar um

caráter automático e não reflexivo, vimos que, uma vez compreendida a moralidade da missão

que sócio-culturalmente lhes é imposta e da contrapartida de seu cumprimento, isto é, o

reconhecimento familiar, social e, no limite, divino, a servidão se mostra consciente e, muitas

vezes, reflexivamente orientada. Vimos também que tal compreensão se constitui pelas

socializações familiar e social consideradas “adequadas” à retribuição da “dádiva da vida”

que o acolhimento representa, como também à subalternidade que a ideologia do sangue

impinge aos filhos de criação e à naturalização de desigualdades com base na cor da pele, no

gênero ou na situação de miserabilidade da família doadora. Deste modo, os filhos de criação

são criados/educados/socializados para servir e apenas servilmente merecer reconhecimento.

As passagens de “rupturas biográficas” (Lahire) mostram a força desta socialização: mesmo

diante de novos contextos (morte dos pais ou em contexto próximo, casamento,

maternidade/paternidade etc.), relações de servidão foram reproduzidas.

O conceito de “servidão voluntária” do filósofo renascentista Étienne De La

Boétie expressa um tipo de submissão oriunda da fascinação, do ensorcellement, dos

oprimidos aos mecanismos de poder. La Boétie apresenta o comportamento dos dominados

no Discurso sobre a servidão voluntária (1548) como uma questão de escolha, de opção

voluntária, e insiste no caráter não coercitivo do consentimento obtido pelos dominantes. Se,

entretanto, “é verdade que, a princípio, os homens servem com constrangimento e pela

força”, como o autor reconhece, então, o que, posteriormente, os levaria à servidão

voluntária? Este é o objeto da obra; “procurar saber, na medida do possível, como esse desejo

teimoso de servir foi se enraizando” (LA BOETIE, [1548] 2002 : 203).

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De acordo com La Boétie, “a primeira razão pela qual os homens servem

voluntariamente é que nascem servos e são criados na servidão”1. La Boétie concebe que “é

da natureza do homem ser livre e querer sê-lo; mas ele aprende muito facilmente se curvar

assim que a educação lhe ensina”2, tornando “natural” tudo o que se obtém pela educação,

pelo “costume”. O “hábito”, o “costume”, em sentido mais próximo do pretendido pelo autor,

tem o considerável poder de “nos ensinar a servir, a engolir sem repugnância (como se diz de

Mitrídates que acabou se habituando a beber veneno) o amargor do veneno da servidão”.3

Deste modo, a primeira razão da servidão voluntária, o que faria, portanto, a passagem da

servidão constrangida e pela força, é o “hábito”.4

Para não fazer desta conclusão um resumo, vou me ater apenas à literalidade da

expressão filho de criação e tecer algumas considerações finais em compasso com La Boétie.

A categorização nativa filho de criação permite adentrar o véu da fascinação, do

ensorcellement, tal como desvendou La Boétie; ou seja, pela educação, pela socialização,

enfim, pela criação. Todo meu esforço consistiu em um aprofundamento sociológico nas

histórias de vida de filhos de uma criação específica para (a constituição de) filho de criação.

Cheguei à conclusão de que filhos de criação são criados para servir, fazendo jus à dupla

acepção da expressão: criado no sentido de educado/socializado e criado no sentido de servo:

educado/criado para servo/criado, isto é, “criado para criado”. Contudo, esta é a face mais

evidente da servidão voluntária, como constatado por Laura, “eles te moldaram para ser

criado assim: a mesma coisa que um robozinho. Você criou um robozinho na função de ser

faxineiro, ele vai viver naquilo ali”, e não compreende a dimensão do sofrimento que também

constitui a servidão que observamos. Maria, exímia cuidadora, alegremente submissa,

voluntariamente servil, chora às escondidas “pro seu pranto ninguém ver” e acredita piamente

que o inferno é aqui porque é aqui que a gente sofre. Ambivalências como esta não

escaparam ao olhar arguto do jovem La Boétie, “que tormento, que martírio é este, meu

Deus!, [...] mostrar sempre um rosto risonho, tendo o coração transido: não poder estar

1« La première raison pour laquelle les hommes servent volontairement, c’est qu’ils naissent serfs et qu’ils sont élevés dans la servitude ». (Op. cit: 219)

2« Il est dans la nature de l’homme d’être libre et de vouloir l’être ; mais il prend très facilement un tout autre pli, lorsque l’éducation le lui donne. » (Op. cit.: 215)3« Cependant l’habitude qui, en toutes choses, exerce un si grand pouvoir de nous apprendre à servir : c’est qu’elle qui à la longue (comme on nous le raconte de Mithridate qui finit par s’habituer au poison) parvient à nous faire avaler, sans répugnance, l’amer venin de la servitude. » (Op. cit.: 210) 4« […] ainsi la première raison de la servitude volontaire, c’est l’habitude. ». (Op. cit.: 215)

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contente e não se atrever a ser triste” 5 , mas foram insuficientes para relativizar o

voluntarismo da servidão; para mostrar que o “hábito”, o “costume”, a extensiva “socialização

adequada”, nem sempre suavizam o “amargor do seu veneno”.

Embora os filhos de criação sejam criados para servir e, eles próprios,

naturalizam desigualdades contingentes e arbitrárias, não deixam também de sonhar com o

fim da servidão, concebendo-a como uma missão cujo cumprimento implica renascimento;

seja aqui, como concluiu Clara (cumpri minha missão, agora eu estou tendo a minha vida!),

mas também Laura, Alessandro e Sebastião, seja no céu, destino certo das pessoas boas que

“sabem sofrer”, como Maria, Joana, Anita e João Paulo. Por outro lado, embora os filhos de

criação saibam quão caro, quão sofrido, é o cumprimento da missão que cabe à categoria

(“filhos de criação são pessoas especiais, escolhidas por Deus, que cuidam dos pais até a

morte”), é algo do qual não podem escapar, pois vai de encontro ao que “disposicionalmente”

lhes confere “razões de existir” (BOURDIEU, 1988: 56). Trata-se portanto de um dilema,

como o do prisioneiro de Kafka, utilizado como epígrafe.

A “variação de escalas de análise” (LAHIRE, 2004, 2010) permitiu perceber que,

assim como a “dádiva” (MAUSS, [1924] 2003), a “servidão voluntária” também antinomias

fundamentais, um “paradoxo complementar”. A conversão do sofrimento em “sacrifício como

dádiva” me parece um forte indício desta complexidade. O recurso gráfico de colocar

parênteses dividindo a palavra “involuntária” no subtítulo da sessão tentou expressar as

ambivalências captadas pela pesquisa 1) empírica: a) socialmente, a servidão é voluntária e

exatamente por isso adquire importância e reconhecimento; b) individualmente, isto é, para os

filhos de criação, ela é involuntária, uma obrigação inerente à missão de filhos de criação, à

“dádiva da vida”, ao “paradoxo do favor imposto” (MOURA: 1988); e 2) analítica: a) ao

conceber que os filhos de criação são “submissos para si” quando apreendem as regras do

jogo em questão, somos levados a pensar que se trata de uma servidão puramente interessada,

voluntária, utilitarista, porém, b) ao desvelar a construção social desta servidão através da

análise das socializações e dos seus códigos morais, conseguimos relativizar o voluntarismo

de tal servidão. 5Tal passagem é mais longa e remete a outras ambivalências referentes à servidão voluntária de muitos à tirania de um só, objeto de análise do autor:« Quelle peine, quel martyre, est-ce grand Dieu ! être nuit et jour occupé de plaire à un homme et néanmoins se méfier de lui plus que de tout autre au monde : avoir toujours l’œil au guet, l’oreille aux écoutes, pour épier d’où viendra le coup, pour découvrir les embûches, pour éventer la mine de ses concurrents, pour dénoncer qui trahit le maître : rire à chacun, s’entre craindre toujours, n’avoir ni ennemi reconnu, ni ami assuré ; montrer toujours un visage riant et avoir le cœur transi : ne pouvoir être joyeux et ne pas oser être triste. » (Op. cit. : 243)

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ANEXO I - Dados do Sistema Nacional de Informação de Gênero - Uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010 - Barão de São João Batista

Total de domicílios particulares permanentes urbanos com mulher responsável pelo domicílio 4,553 domicílios Total de domicílios particulares permanentes urbanos com homem responsável pelo domicílio 7,569 domicílios

Total de domicílios particulares permanentes urbanos com mulher branca responsável pelo domicílio 2,171 domicílios

Total de domicílios particulares permanentes urbanos com homem branco responsável pelo domicílio 3,437 domicílios

Total de domicílios particulares permanentes urbanos com mulher preta ou parda responsável pelo domicílio 2,319 domicílios

Total de domicílios particulares permanentes urbanos com homem preto ou pardo responsável pelo domicílio 4,071 domicílios

Total de pessoas entre 6 e 14 anos de idade que frequentavam ensino fundamental 3,891 pessoas Total de homens entre 6 e 14 anos de idade que frequentavam ensino fundamental 1,939 pessoas Total de mulheres entre 6 e 14 anos de idade que frequentavam ensino fundamental 1,951 pessoas Total de pessoas brancas entre 6 e 14 anos de idade que frequentavam ensino fundamental 1,569 pessoas Total de pessoas pretas ou pardas entre 6 e 14 anos de idade que frequentavam ensino fundamental 2,322 pessoas

Total de pessoas entre 15 e 17 anos de idade que frequentavam ensino médio 968 pessoas Total de homens entre 15 e 17 anos de idade que frequentavam ensino médio 461 pessoas Total de mulheres entre 15 e 17 anos de idade que frequentavam ensino médio 507 pessoas Total de pessoas brancas entre 15 e 17 anos de idade que frequentavam ensino médio 522 pessoas Total de pessoas pretas ou pardas entre 15 e 17 anos de idade que frequentavam ensino médio 446 pessoas Total de pessoas entre 18 e 24 anos de idade que frequentavam ensino superior 666 pessoas Total de homens entre 18 e 24 anos de idade que frequentavam ensino superior 256 pessoas Total de mulheres entre 18 e 24 anos de idade que frequentavam ensino superior 409 pessoas Total de pessoas brancas entre 18 e 24 anos de idade que frequentavam ensino superior 468 pessoas Total de pessoas pretas ou pardas entre 18 e 24 anos de idade que frequentavam ensino superior 174 pessoas

Taxa de abandono escolar precoce das pessoas entre 18 a 24 anos 44.6 % Taxa de abandono escolar precoce dos homens entre 18 a 24 anos 53.4 % Taxa de abandono escolar precoce das mulheres entre 18 a 24 anos 35.6 % Taxa de abandono escolar precoce das pessoas brancas entre 18 a 24 anos 35.3 % Taxa de abandono escolar precoce das pessoas pretas ou pardas entre 18 a 24 anos 52.3 % Proporção de famílias em que a mulher era responsável pela família, nas famílias únicas e conviventes principais, residentes em domicílios particulares, em relação ao total de famílias 36.6 %

Proporção de famílias em que a mulher, de cor ou raça branca, era responsável pela família, nas famílias únicas e conviventes principais, residentes em domicílios particulares, em relação ao total de famílias cujo responsável pela família era de cor ou raça branca

36.2 %

Proporção de famílias em que a mulher, de cor ou raça preta ou parda, era responsável pela família, nas famílias únicas e conviventes principais, residentes em domicílios particulares, em relação ao total de famílias cujo responsável pela família era de cor ou raça preta ou parda

36.8 %

Proporção de famílias em que a mulher era responsável pela família, do tipo casal sem filho, nas famílias únicas e conviventes principais, residentes em domicílios particulares, em relação ao total de famílias do tipo casal sem filho

22.1 %

Proporção de famílias em que a mulher era responsável pela família, do tipo casal com filho, nas famílias únicas e conviventes principais, residentes em domicílios particulares, em relação ao total de famílias do tipo casal com filho

22.3 %

Proporção de famílias em que a mulher era responsável pela família, do tipo responsável sem cônjuge com filho, nas famílias únicas e conviventes principais, residentes em domicílios particulares, em relação ao total de famílias do tipo responsável sem cônjuge com filho

86.6 %

Média do percentual de contribuição do rendimento das mulheres no rendimento familiar 41.1 %

Rendimento Médio de todas as fontes das pessoas de 10 anos ou mais de idade 975.77 reais de 2010

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366

Rendimento Médio de todas as fontes dos homens de 10 anos ou mais de idade 1.101,76 reais de 2010

Rendimento Médio de todas as fontes das mulheres de 10 anos ou mais de idade 835.12 reais de 2010

Rendimento Médio de todas as fontes das pessoas brancas de 10 anos ou mais de idade 1.225,27 reais de 2010

Rendimento Médio de todas as fontes das pessoas pretas ou pardas de 10 anos ou mais de idade 763.1 reais de

2010

Rendimento Médio de todos os trabalhos das pessoas de 16 anos ou mais de idade ocupadas 916.31 reais de 2010

Rendimento Médio de todos os trabalhos dos homens de 16 anos ou mais de idade ocupados 1.025,41 reais de 2010

Rendimento Médio de todos os trabalhos das mulheres de 16 anos ou mais de idade ocupadas 769.06 reais de 2010

Rendimento Médio de todos os trabalhos das pessoas brancas de 16 anos ou mais de idade ocupadas 1.110,84 reais de

2010 Rendimento Médio de todos os trabalhos das pessoas pretas ou pardas de 16 anos ou mais de idade ocupadas 749.77 reais de

2010 Taxa de atividade das mulheres com 16 anos ou mais de idade 73.9 % Taxa de atividade dos homens com 16 anos ou mais de idade 55.6 % Taxa de atividade das mulheres pretas ou pardas com 16 anos ou mais de idade 57.5 % Taxa de atividade das mulheres brancas com 16 anos ou mais de idade 53 % Taxa de atividade dos homens brancos com 16 anos ou mais de idade 73.3 % Taxa de atividade dos homens pretos ou pardos com 16 anos ou mais de idade 74.4 % Taxa de atividade das mulheres com 16 a 29 anos 82.1 % Taxa de atividade dos homens com 16 a 29 anos 66 % Taxa de atividade das mulheres pretas ou pardas com 16 a 29 anos 69.9 % Taxa de atividade das mulheres brancas com 16 a 29 anos 60.5 % Taxa de atividade dos homens brancos com 16 a 29 anos 82.9 % Taxa de atividade dos homens pretos ou pardos com 16 a 29 anos 81 % População economicamente ativa de mulheres com 16 anos ou mais de idade 8,311 pessoas População economicamente ativa de homens com 16 anos ou mais de idade 10,519 pessoas População economicamente ativa de mulheres pretas ou pardas com 16 anos ou mais de idade 4,298 pessoas População economicamente ativa de mulheres brancas com 16 anos ou mais de idade 3,847 pessoas População economicamente ativa de homens pretos ou pardos com 16 anos ou mais de idade 5,688 pessoas População economicamente ativa de homens brancos com 16 anos ou mais de idade 4,711 pessoas Percentual de homens ocupados, com 25 anos ou mais de idade, sem instrução e Ensino Fundamental incompleto 55.5 %

Percentual de homens ocupados, com 25 anos ou mais de idade, com Ensino Fundamental completo e Ensino Médio incompleto 16.7 %

Percentual de homens ocupados, com 25 anos ou mais de idade, com Ensino Médio completo e Ensino Superior incompleto 19.1 %

Percentual de homens ocupados, com 25 anos ou mais de idade, com Ensino Superior incompleto 8.7 %

Percentual de mulheres ocupadas, com 25 anos ou mais de idade, sem instrução e Ensino Fundamental incompleto 45.8 %

Percentual de mulheres ocupadas, com 25 anos ou mais de idade, com Ensino Fundamental completo e Ensino Médio incompleto 11.4 %

Percentual de mulheres ocupadas, com 25 anos ou mais de idade, com Ensino Médio completo e Ensino Superior incompleto 25.2 %

Percentual de mulheres ocupadas, com 25 anos ou mais de idade, com Ensino Superior incompleto 17.6 %

Percentual de homens, com 16 anos ou mais de idade, ocupados em setor de atividade de agricultura 9.9 %

Percentual de homens, com 16 anos ou mais de idade, ocupados em setor de atividade de indústria 42.1 %

Percentual de homens, com 16 anos ou mais de idade, ocupados em setor de atividade de serviços 48 %

Percentual de mulheres, com 16 anos ou mais de idade, ocupadas em setor de atividade de 5.2 %

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agricultura Percentual de mulheres, com 16 anos ou mais de idade, ocupadas em setor de atividade de indústria 26.9 %

Percentual de mulheres, com 16 anos ou mais de idade, ocupadas em setor de atividade de serviços 67.8 %

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.

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ANEXO II – Dados do Sistema Nacional de Informação de Gênero - Uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010 - Bagre Bonito

Total de domicílios particulares permanentes urbanos com mulher responsável pelo domicílio 721 domicílios

Total de domicílios particulares permanentes urbanos com homem responsável pelo domicílio 2,189 domicílios Total de domicílios particulares permanentes urbanos com mulher branca responsável pelo domicílio 463 domicílios

Total de domicílios particulares permanentes urbanos com homem branco responsável pelo domicílio 1,555 domicílios

Total de domicílios particulares permanentes urbanos com mulher preta ou parda responsável pelo domicílio 240 domicílios

Total de domicílios particulares permanentes urbanos com homem preto ou pardo responsável pelo domicílio 610 domicílios

Total de pessoas entre 6 e 14 anos de idade que frequentavam ensino fundamental 982 pessoas Total de homens entre 6 e 14 anos de idade que frequentavam ensino fundamental 481 pessoas Total de mulheres entre 6 e 14 anos de idade que frequentavam ensino fundamental 501 pessoas Total de pessoas brancas entre 6 e 14 anos de idade que frequentavam ensino fundamental 674 pessoas Total de pessoas pretas ou pardas entre 6 e 14 anos de idade que frequentavam ensino fundamental 307 pessoas

Total de pessoas entre 15 e 17 anos de idade que frequentavam ensino médio 257 pessoas Total de homens entre 15 e 17 anos de idade que frequentavam ensino médio 122 pessoas Total de mulheres entre 15 e 17 anos de idade que frequentavam ensino médio 135 pessoas Total de pessoas brancas entre 15 e 17 anos de idade que frequentavam ensino médio 182 pessoas Total de pessoas pretas ou pardas entre 15 e 17 anos de idade que frequentavam ensino médio 75 pessoas Total de pessoas entre 18 e 24 anos de idade que frequentavam ensino superior 160 pessoas Total de homens entre 18 e 24 anos de idade que frequentavam ensino superior 47 pessoas Total de mulheres entre 18 e 24 anos de idade que frequentavam ensino superior 113 pessoas Total de pessoas brancas entre 18 e 24 anos de idade que frequentavam ensino superior 139 pessoas Total de pessoas pretas ou pardas entre 18 e 24 anos de idade que frequentavam ensino superior 21 pessoas

Taxa de abandono escolar precoce das pessoas entre 18 a 24 anos 44 % Taxa de abandono escolar precoce dos homens entre 18 a 24 anos 49.6 % Taxa de abandono escolar precoce das mulheres entre 18 a 24 anos 38.8 % Taxa de abandono escolar precoce das pessoas brancas entre 18 a 24 anos 37.3 % Taxa de abandono escolar precoce das pessoas pretas ou pardas entre 18 a 24 anos 56.5 % Proporção de famílias em que a mulher era responsável pela família, nas famílias únicas e conviventes principais, residentes em domicílios particulares, em relação ao total de famílias 21.8 %

Proporção de famílias em que a mulher, de cor ou raça branca, era responsável pela família, nas famílias únicas e conviventes principais, residentes em domicílios particulares, em relação ao total de famílias cujo responsável pela família era de cor ou raça branca

19.1 %

Proporção de famílias em que a mulher, de cor ou raça preta ou parda, era responsável pela família, nas famílias únicas e conviventes principais, residentes em domicílios particulares, em relação ao total de famílias cujo responsável pela família era de cor ou raça preta ou parda

27 %

Proporção de famílias em que a mulher era responsável pela família, do tipo casal sem filho, nas famílias únicas e conviventes principais, residentes em domicílios particulares, em relação ao total de famílias do tipo casal sem filho

11.6 %

Proporção de famílias em que a mulher era responsável pela família, do tipo casal com filho, nas famílias únicas e conviventes principais, residentes em domicílios particulares, em relação ao total de famílias do tipo casal com filho

10.7 %

Proporção de famílias em que a mulher era responsável pela família, do tipo responsável sem cônjuge com filho, nas famílias únicas e conviventes principais, residentes em domicílios particulares, em relação ao total de famílias do tipo responsável sem cônjuge com filho

84.6 %

Média do percentual de contribuição do rendimento das mulheres no rendimento familiar 33.6 %

Rendimento Médio de todas as fontes das pessoas de 10 anos ou mais de idade 708.39 reais de 2010

Rendimento Médio de todas as fontes dos homens de 10 anos ou mais de idade 793.72 reais de 2010

Rendimento Médio de todas as fontes das mulheres de 10 anos ou mais de idade 592.73 reais de

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369

2010

Rendimento Médio de todas as fontes das pessoas brancas de 10 anos ou mais de idade 785.01 reais de 2010

Rendimento Médio de todas as fontes das pessoas pretas ou pardas de 10 anos ou mais de idade 537.51 reais de 2010

Rendimento Médio de todos os trabalhos das pessoas de 16 anos ou mais de idade ocupadas 746.39 reais de 2010

Rendimento Médio de todos os trabalhos dos homens de 16 anos ou mais de idade ocupados 815.21 reais de 2010

Rendimento Médio de todos os trabalhos das mulheres de 16 anos ou mais de idade ocupadas 588.75 reais de 2010

Rendimento Médio de todos os trabalhos das pessoas brancas de 16 anos ou mais de idade ocupadas 831.71 reais de

2010 Rendimento Médio de todos os trabalhos das pessoas pretas ou pardas de 16 anos ou mais de idade ocupadas 541.42 reais de

2010 Taxa de atividade das mulheres com 16 anos ou mais de idade 71.9 % Taxa de atividade dos homens com 16 anos ou mais de idade 41 % Taxa de atividade das mulheres pretas ou pardas com 16 anos ou mais de idade 42.5 % Taxa de atividade das mulheres brancas com 16 anos ou mais de idade 40.7 % Taxa de atividade dos homens brancos com 16 anos ou mais de idade 71.6 % Taxa de atividade dos homens pretos ou pardos com 16 anos ou mais de idade 72.2 % Taxa de atividade das mulheres com 16 a 29 anos 83.2 % Taxa de atividade dos homens com 16 a 29 anos 52.7 % Taxa de atividade das mulheres pretas ou pardas com 16 a 29 anos 48.2 % Taxa de atividade das mulheres brancas com 16 a 29 anos 54.2 % Taxa de atividade dos homens brancos com 16 a 29 anos 86.9 % Taxa de atividade dos homens pretos ou pardos com 16 a 29 anos 81 % População economicamente ativa de mulheres com 16 anos ou mais de idade 1,392 pessoas População economicamente ativa de homens com 16 anos ou mais de idade 2,525 pessoas População economicamente ativa de mulheres pretas ou pardas com 16 anos ou mais de idade 415 pessoas População economicamente ativa de mulheres brancas com 16 anos ou mais de idade 974 pessoas População economicamente ativa de homens pretos ou pardos com 16 anos ou mais de idade 766 pessoas População economicamente ativa de homens brancos com 16 anos ou mais de idade 1,740 pessoas Percentual de homens ocupados, com 25 anos ou mais de idade, sem instrução e Ensino Fundamental incompleto 69.1 %

Percentual de homens ocupados, com 25 anos ou mais de idade, com Ensino Fundamental completo e Ensino Médio incompleto 11.5 %

Percentual de homens ocupados, com 25 anos ou mais de idade, com Ensino Médio completo e Ensino Superior incompleto 14.2 %

Percentual de homens ocupados, com 25 anos ou mais de idade, com Ensino Superior incompleto 5.3 %

Percentual de mulheres ocupadas, com 25 anos ou mais de idade, sem instrução e Ensino Fundamental incompleto 57.8 %

Percentual de mulheres ocupadas, com 25 anos ou mais de idade, com Ensino Fundamental completo e Ensino Médio incompleto 13.2 %

Percentual de mulheres ocupadas, com 25 anos ou mais de idade, com Ensino Médio completo e Ensino Superior incompleto 15.8 %

Percentual de mulheres ocupadas, com 25 anos ou mais de idade, com Ensino Superior incompleto 13.2 %

Percentual de homens, com 16 anos ou mais de idade, ocupados em setor de atividade de agricultura 49.8 %

Percentual de homens, com 16 anos ou mais de idade, ocupados em setor de atividade de indústria 26 %

Percentual de homens, com 16 anos ou mais de idade, ocupados em setor de atividade de serviços 24.2 %

Percentual de mulheres, com 16 anos ou mais de idade, ocupadas em setor de atividade de agricultura 32.2 %

Percentual de mulheres, com 16 anos ou mais de idade, ocupadas em setor de atividade de indústria 11.8 %

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Percentual de mulheres, com 16 anos ou mais de idade, ocupadas em setor de atividade de serviços 56 %

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.

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ANEXO III – Carminha Mendonça Carminha Mendonça foi lembrada por seus conterrâneos em Bagre Bonito como

macumbeira e mãe de criação de vários filhos. Na ocasião da pesquisa, tinha apenas Nega, 28

anos, como filha de criação. Meu interesse pelo seu endereço foi motivo de surpresa para

alguns moradores e de desagrado para minha tia Neuza: deixa essa mulher pra lá, Priscila!

Nossa senhora! Não vai na casa dela não! Temida e não muito considerada, as narrativas

sobre ela limitam-se à mitificação do seu quarto de macumba dentro de casa. Procurei-a em

uma tarde. Assim que chamei seu nome, Nega apareceu na janela da casa, que fica bem acima

do nível da rua. Sem dizer uma palavra após eu me apresentar, saiu e retornou com Carminha,

que me convidou a entrar. Logo no início, Carminha se apresentou com orgulho e proveito de

sua fama: todo mundo tem medo de mim. E acrescentou: sou muito caridosa, pelos vários

filhos de criação que teve e por promover generosas festas de São Cosme e São Damião.

Como mencionado, ela não me permitiu conversar com Nega; nem a sós, nem em sua

companhia. Assim que lhe expliquei que estudava “laços de família entre filho e família de

criação”, Carminha me conduziu com certa urgência ao quarto de Nega, abriu com um gesto

brusco seu guarda-roupa e começou a retirar e me mostrar suas coisas. Olha só: ela tem de

tudo, do bom e do melhor! Desodorante da Avon, shampoo, creme... Nem a filha do prefeito

tem tudo isso. Apesar da recusa da entrevista com Nega, disse-lhe que queria conhecer um

pouco da sua história como mãe de criação. De chofre, Carminha contra-argumentou: Me

diga uma coisa: o que é que eu vou ganhar com isso? Foi a primeira vez, durante toda a

pesquisa, que me deparei com este interesse. Ao saber que, infelizmente, não ganharia nada;

que se tratava “apenas de uma pesquisa da universidade para um livro sobre filhos de

criação”, Carminha, entretanto, se entusiasmou: Só a minha vida dá um livro! E de muitas

páginas! Você veio ao lugar certo. Eu sempre soube que ia aparecer alguém que ia escrever

um livro da minha vida. Mas você vai ter que vir aqui várias vezes porque a minha vida dá

um livro, e de muitas páginas. A explicação de que esse não era o objetivo da pesquisa não foi

bem recebida. Contudo, tivemos uma longa conversa naquela tarde, boa parte, sem qualquer

proveito para a pesquisa. Carminha estava interessada em falar do seu drama amoroso: a

história de amor que os orixás lhe revelaram, mas que acabara mal. Nossa conversa aconteceu

de modo inusitado; ao me acomodar na mesa da cozinha, trouxe um caderno espiralado e me

fez ler, em voz alta e com o gravador ligado, seu diário sobre sua história de amor. Tentei

várias vezes me desvencilhar da leitura, explorando temas que ocasionalmente apareciam e

remetiam aos seus filhos de criação, mas Carminha era pontual e evasiva às minhas perguntas

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372

e logo me remetia ao caderno: vai, continua aí. Findada a leitura, ao cabo de duas horas e

vinte e seis minutos, tentei dar fim à conversa e me retirar; Carminha não consentiu. De forma

autoritária, disse que eu não sairia de sua casa enquanto não assistisse aos vídeos de suas

festas de São Cosme e Damião, que ela manda gravar para provar sua caridade. Com a voz

de Clara Nunes em Conto de areia como trilha sonora, os vídeos mostram Carminha sempre

muito bem arrumada em meio a uma multidão de crianças e muitos pacotes vermelhos de

pipoca, doces e um enorme bolo, com mais de metro! As festas são itinerantes, anualmente ela

varia sua localidade, e sempre são realizadas a céu aberto.

Anoitecia quando consegui sair de sua casa com a promessa de voltar outro dia

para continuar sua história. Apesar de desgastante, não foi uma tarde perdida. Além da

contextualização oferecida pelos vídeos, pude em vários momentos observar o

comportamento de Nega e sua interação com a mãe. Durante boa parte da conversa que se

passou na cozinha, Nega espreitou da soleira da porta ou revezando com Carminha o remexer

do doce de leite que preparavam, em um grande tacho, para a festa de São Cosme e São

Damião, perto de acontecer. Sempre com olhos curiosos e feição sorridente, Nega me

espreitava, achava graça da minha leitura da história da mãe, mas não me dirigiu sequer uma

palavra, nem mesmo quando fugidiamente eu me dirigia a ela.