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!!! COSSUTTA, Frederick - Elementos Para a Leitura Dos Textos Filosoficos

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  • Elementos para a leitura dos textos filosficos

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  • Elementos para a leitura dos textos filosficos

    Frdric Cossutta

    TVadu^o Angela de Noronha Regnami

    Milton Arruda Clemence Jouet-Pastr

    Neide Sette

    Reviso da tradu^o e texto final Paulo Neves

    Martins Fontes Sao Paulo 994

  • Ttulo original: LMENTS POUR LE LECTURE DES TEXTES PHILOSOPHIQUES

    Copyright Bordas, Paris, 1989 Copyright Livraria Martins Fontes Editora Ltda., Sao Paulo, 1994,

    para a presente edigo

    1? edigao bras ilei ra: junho de 1994

    Tradugo: Angela de Noronha Begnami

    Milton Arruda Clemence Jouet-Pastr

    Neide Sette Reviso da tradugo e texto final: Paulo Neves

    Reviso grfica: Jos Zambrano Caliendo Jr.

    Mrcio Della Rosa

    Produgo grfica: Geraldo Alves Composigo: Antonio Neu ton Alves Quintino

    Capa Pro jet a: Alexandre Martins Fontes

    Dados nternaconas de Catalogao na Publicao (CI?) (Cmara Brasilera do Livro, SP, Brasi!)

    Cossutta, Frdric, Elementos para a leitura dos textos filosficos / Frdric

    Cossutta ; [traduo Angela de Noronha Begnami... et al.]. So Paulo : Martins Fontes, 1994. (Ensino Superior)

    ISBN 85-336-0278-2

    1. Filosofa Introduo 2. Literatura filosfica I. Ttulo. II. Srie.

    94-1326 CDD-101

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Filosofa : Textos : Interpretago 101 2. Textos filosficos : Interpretapo 101

    Todos os direitos para o Brasil reservados LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Ra Conselheiro Ramalho, 330/340 Tel.: 239-3677

    01325-000 Sao Paulo SP Brasil

  • Indice

    Introdugo 1 1. Problemas de mtodo 1 2. Como transpor essas dificuldades? 4 3. Por onde come^ar? 6

    L A cena filosfica 11 1. Aparelho formai da enuncia^o filosofica 11 2. O sujeito em primeira pessoa, centro de perspec-

    tiva 14 3. Variages sobre o destinatrio 23 4. Terceira pessoa, funges intertextual e polmica 30 Conclusao 34

    II. Os conceitos filosficos 39 1. Processo filosofico da constituigao do sentido 41 2. Da lingua ao conceito: estrutura^o do campo

    conceitual 58

    III. A referencia: do conceito ao exempio 73 1. Referencia e denotagao 73 2. Formas do recurso ao caso particular 78 3. Funges filosficas do caso particular 90

    IV. Fun^o das metforas nos textos filosficos 99 1. Definigo 102 2. Funcionamento metafrico 105 3. Funges da metfora no texto filosfico 118

  • V. Estrategias discursivas e argumenta^o em filosofa 141 1. Problemas de mtodo: objetos e instrumentos de

    valida^o 141 2. Quadros enunciativos da argumentago 158 3. Concluso 194 Apndice 201

    VI. Unidade e coerncia do texto flosfico 211 1. Tematizages e hierarquias enunciativas 213 2. Constru?o das referencias internas 221 3. Unidade do texto e ordem de exposigo 230

    s

    Leituras aconselhadas 243 Notas : 247 Indice remissivo 255

  • Introdu^ao

    Propor um mtodo de leitura dos textos filosficos pode parecer uma ousadia ou manifestar presun^o excessiva, pois numerosos obstculos tanto prticos quanto tericos se opoem a um tal projeto: que estatuto conferir a tal mtodo, como de-finir o objeto dessa investiga^o? Costaramos de mostrar pri-meiramente que, se esses obstculos tem um alcance filosfi-co verdadeiro, possvel ir mais alm por razoes pedaggicas: o mtodo aqui nao pode nem dispensar traballio de anlise nem substitu-lo, mas deve guiar e fortalecer um leitor que a extre-ma dificuldade dos textos entusiasma como tambm, s vezes, desencoraja e desorienta.

    1. PROBLEMAS DE METODO

    O termo mtodo ambiguo; pode abranger tres tipos de dificuldades.

    O impasse do bom senso

    de simples ' 'bom senso" entender inicialmente o mto-do como sendo os conselhos destinados explicago do texto. O mtodo, nesse caso, constituido por um conjunto de recei-tas, de como fazer, que cada professor elabora ao generalizar seus prprios hbitos de leitura. O conseiho mestre formula-do assim: ' ' preciso aprender a 1er", sem que nunca, no en-tanto, do colegial ao doutoramento, as regras de leitura sejam realmente explicitadas. Isso nao impede, alis, que alguns pro-

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  • 2 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    fessores fagam para seus alunos comentrios de urna grande clareza. Mas o comentador se esconde atrs do que ele comenta e o talento difcilmente se traduz em mtodo. Assim, ao con-trrio do que se almeja, refor?a-se o sentimento de que somente lem aqueles que sabem 1er, ou que flosofar nao se aprende, ou, pelo menos, nao como se aprendem outras disciplinas. Uma tal abordagem pretensamente embasada no bom senso s da-ria acesso filosofa queles que, por natureza ou por oficio, j fossem filsofos.

    Limites da lingstica

    Seramos ento tentados a escorar o mtodo numa cien-cia constituida do discurso filosfico, como se bastasse apli-car tal ciencia a este ou quele texto. Poderamos, com efeito, pensar que, assim como no campo literrio, onde as contri-buiges da lingstica permitiram uma certa renova^o das pr-ticas de anlise no plano estilstico ou narrativo^ os filsofos se interessariam por essas proposi^es de anlise do discurso. Ora, sem entrar na anlise das razoes de fato que impediram esse movimento, notar-se- que um certo nmero de razoes ge-rais o explicam muito bem. Qu lingstica escolher, qual es-cola, que tipo de abordagem? Semiolgica, pragmtica, lexi-colgica? Os elos entre lingstica e anlise do discurso sao s-lidos? Confrontamo-nos com uma disciplina em perpetuo mo-vimento, na qual as diferengas entre tipos de mtodo e tipos de objeto de anlise escolhido se recortam e se desfazem per-petuamente. Alm disso, as escolhas, aqui, implicam op^es fundamentis sobre a natureza da linguagem, da lingua e do discurso. Desse modo, os prprios problemas epistemolgicos remetem a decisoes que, em ltima instancia, sao filosficas; vemo-nos fechados na filosofa quando pensvamos apreende-la objetivamente, do exterior.

    A voca^o cientfica das teoras do discurso constitu mais um ideal do que um fato. Assim, em vez de transpor com es-for^o categoras elaboradas num quadro terico avanzado, mas (alvez ultrapassado num futuro prximo, para um ganho de iiicligibilidade textual mnimo, melhor seria utilizar algumas

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  • NTRODUQO 3

    categoras confiveis da anlise textual (enunciado/enuncia-gao; embreantes*...). Sua generalidade nos permitir evitar observagoes de simples bom senso e escapar ao empirismo. Mas sua definigo e uso nao dependem unicamente da lings-tica.

    Dificuldades filosficas

    Deveramos ento nos decidir a abordar de um ponto de vista estritamente filosfico a leitura dos textos filosficos, ela-borando ns mesmos nossas categoras de anlise.

    Mas confrontamo-nos com um terceiro obstculo, talvez ainda mais intransponvel que os anteriores.

    Com efeito, por definigo, parece que toda obra filosfi-ca esta uma caracterstica do gnero elabora ou pre-tende elaborar as condiges de sua prpria validade, e portan-to enuncia as prprias regras da leitura que se pode fazer dla.

    Essa elaborago harmoniza-se com as "teses" desenvol-vidas de um ponto de vista filosfico geral, de forma que esta-ramos enclausurados dentro de cada obra. Vejamos a manei-ra como Wittgenstein aconselha a utilizago de seu livro: "Mi-nhas proposigoes sao elucidativas para aquele que, com-preendendo-me, as toma finalmente como contra-sensqs, quan-do, passando por elas sobre elas , dlas se afasta. preciso que ele transponha essas proposigoes; ento adquire uma jus-ta visao do mundo.

    Assim, compreender esse livro de Wittgenstein com-preender sua impossibilidade. O autor nos convida leitura no momento mesmo em que a torna impossvel. Entretanto, se cada filosofa explcita as condiges de possibilidade ou de impossibilidade de sua leitura, descobrimos ai um fenmeno suficientemente geral para escapar das contradigoes que fazem da filosofa um perptuo confronto.

    Poderamos escapar dessas dificuldades observando que todas as obras constroem uma teora geral do conhecmento, do sentido e da lnguagem, o que permite deduzr dai uma her-

    * Embrayer, no originai. Classe de palavras cujo sentido varia confor-me a situao de comunicao. Por exemplo, "cu", "hoje", "este", etc. (Nota do Editor).

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  • 4 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS 4

    menutica ou uma teoria da produgo do sentido. Por exem-plo, Marx, na Contribuigao critica da economia politica^ ex-plica por que as categoras da anlise materialista s podiam emergir num momento preciso e particular do desenvolvimen-to do modo de produgo capitalista. No entanto, ve-se clara-mente que a objego precedente do crculo vale igualmente nes-se caso: a conformidade do mtodo proposto depende da legi-timidade do alicerce filosfico do qual se deduz, e os critrios de avaliago so finalmente internos a essa mesma filosofia. Cada um quer escapar do crculo das interpretages e, no en-tanto, todos ai se precipitam precisamente no momento em que pretendem evit-lo. Isso atesta, pelo menos, que encontramos vanito^ fenmenos gerais que manifestam as propriedades es-pecficas da refiexo filosfica. Mas como apreende-los? Pela filosofa? Seria contraditrio com as afirmages precedentes. Por uma disciplina nao filosfica? Correramos o risco de cair nos impasses j descritos.

    Face a esses tres obstculos metodolgicos, estamos ex-postos a um dilema: por um lado, dispomos de teoras "for-tes", cuidadosamente elaboradas e que desenvolvem uma con-cep^ao geral do sentido. Filosficas ou lingsticas, elas nao oferecem mais que um interesse prtico bastante fraco. Por outro lado, alguns comentrios extremamente esclarecedores s vezes nos sao propostos, mas que nao sao transponveis em mtodo, seja porque dependem de uma posgo no tabuleiro do jogo filosfico, seja porque esclarecem apenas um aspecto parcial do texto.

    2. COMO TRANSPOR ESSAS DIFICULDADES?

    Compreendemos que a aprendizagem da leitura s pode ser filosfica; nada pode dispensar a reflexo. Entretanto, is-so nao signifca que se deva concluir pela inutilidade de uma tentativa metodolgica.

    Com efeito, e esta a segunda li^o dessa reflexao preli-minar, a anlise dos obstculos nos leva a tomar conscincia da partcularidade da filosofa: trata-se de um texto que visa a universalidade e que, para atingir seu objetivo, deve apagar as marcas de sua partcularidade, a qual, no entanto, todo olhar dirigido historia atesta com evidencia. Anda quando uma

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  • INTRODVQO 5

    obra constri um ponto de vista singular (existencial, por exem-plo), ou nega a possibilidade de uma totalizagao, nem por isso eia deixa de generalizar seu ponto de vista (assim, Kierkegaard afirma que " o subjetivo o universal"). Isso nos encoraja a procurar os niecanismos gerais pelos quais a filosofa se pro-duz como tal atravs dos textos: parece que, apesar da diversi-dade dos gneros, das teses, dos modos de exposigo, pdese apreender funges bastante gerais que determinam aquilo que torna um texto propriamente filosfico.

    De fato, um leitor atento percebe intuitivamente que, pa-ra alm de opgoes ideolgicas, de tipos de texto (dilogo, tra-tado, resumo, carta) ou de contextos sociais e histricos, pde-se detectar fenmenos gerais. J encontramos dois deles: todo texto flosfco tenta mediatizar a relago do particular ao uni-versal, e o que torna as filosofas contraditrias o que as apro-xima. Mas muitos outros fenmenos gerais se oferecero a ns. Por exemplo, toda filosofa deve, implcita ou explcitamente, validar sua prpria possibilidade enunciativa (ver citago de Wittgenstein acima; pensar igualmente no problema do ceti-cismo). Toda filosofa deve efetuar escolhas em face da tripla exigencia que comanda sua ordenagao: ordem da descoberta, ordem lgica (ordem das ' 'razoes") e ordem da exposigo. Ca-da filosofa resolve de modo diverso esse problema de organi-zagao. Entretanto, na medida em que cada uma deve resolv-lo, podemos construir uma tipologia das formas de resolugo. Em cada fragmento reencontraremos uma dosagem entre con-ceitos, metforas, argumentos. As operagoes que os articulam sao tambm revelveis.

    Sem pretender oferecer uma teoria geral do discurso filo-sfico, pensamos que possvel propor uma solugo interme-diria, nem engajada demais numa problemtica determinada nem muito diretamente dependente de uma teoria do discurso com fundamentos frgeis. Que dirego devemos tomar para encontrar esse mtodo? Deve-se evitar reduzir o texto a uma nica dimenso, como, por exemplo, a argumentago ou a an-lise conceitual. A flosofa argumenta, mas nao se reduz ar-gumentago. Alis, essa dimenso nem sempre visyel: eia pode ser trabalhada por outros modos de expresso tais como a ironia, o sarcasmo em Nietzsche, ou a exortago e a edifica-gao em Epicteto.

    Um texto um conjunto complexo nao somente ''estrati-\

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  • 6 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    ficado", ' ' folheado", mas tambm encadeado numa lineari-dade que a do tempo e da escrita. Essas duas dimenses se cruzam gragas a uma serie de referencias internas que colo-cam em co-presenga ideal todos os momentos do desenvolvi-mento. A obra em filosofia, quer seja apresentada sob forma de tratado dedutivo ou de aforismos brilhantes, um todo que se engendra e se desfaz, aberta ao mundo e ao sentido, mas igualmente redobrada sobre o universo que eia gera. um con-junto mvel, animado por um movimento interno, que desen-rola um feixe de virtualidades discursivas segundo regras e mo-dalidades que podemos explicitar e analisar.

    3. POR ONDE COMEC^AR?

    A correlago que acabamos de evocar entre as dimenses constitutivas do texto filosfico perceptvel desde que toma-mos o livro as mos: ttulo, ndice, prefcio nos oferecem um ponto de vista global que antecipa e prefigura o conjunto, mas tambm vai se esclarecendo retroativamente durante a leitura detalhada. S cometamos a nos enraizar num universo de pen-samento quando a leitura de uma passagem se enriquece com a totalizago das apreensoes fragmentrias precedentes. O texto se torna inteligvel grabas a reatvagoes constantes, cada mo-mento se apoiando nos precedentes, ou antecipando as anli-ses que viro. A estranheza inicial de um estilo, de uma ma-neira particular de se apropriar da conceitualdade filosfica, cede progressivamente o lugar a uma famliaridade tal que nao somente torna o leitor capaz de percorrer novamente com fa-cilidade o itinerrio proposto pelo texto, como o torna capaz de tambm engendrar texto, por assim dizer, pondo a funcio-nar os mecanismos de pensamento que ele efetua ou que o efe-tuam (prolongamentos da doutrina, destaque do implcito, apli-cagao a dominios ou a temas novos, etc.).

    Para se chegar a essa famliaridade, preciso 1er e reler sem cessar, mas ai que comega a dificuldade: como nao se perder na obscuridade terminolgica ou no labirinto das ar-gumentagoes, como distinguir o essencial? Que fazer das ima-gens, dos exemplos, dos desvos que parecem romper o desen-volvimento da reflexao? necessrio aplcar-se, s vezes obs-tinar-se. Mas, mesmo que isso seja feito com inteligencia, isto

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  • NTRODUQO 1

    , com aquele dominio do esforo que chamamos mtodo, nao existe mtodo que sirva para tudo. H, no entanto, regras para 1er e tornar a leitura apropriada a cada texto. Certamente, cada filosofa acaba prescrevendo as condies de sua prpria leitu-ra. Mas a leitura reencontrar, nao obstante, procedimentos co-muns e obedecer a experincias comuns. Este manual desti-nado a facilitar essa pesquisa, oferecendo elementos que nao pre-tendem substituir o trabalho de interpretao, mas que permiti-ro prepar-lo.

    Ler um texto colocarse de mediato diante das operaes que efetuam seu sentido e Ihe conferem sua unidade, o que nos leva a privilegiar o estudo das duas funes a seguir.

    Unidade dada pelas referncias internas

    A primeira funo constituida por tudo aquilo que con-fere ao texto sua coeso interna, referncias que permitem o en-cadeamento linear da leitura, remisses entre passagens desli-gadas. Ler proceder a um constante movimento de vaivm que liga e sobrepe simultaneamente os constituintes da frase e as frases entre si, para construir uma unidade de sentido global. Assim, a leitura avana na dimenso linear do tempo por impo-sio do dispositivo material da escrita, mas se desenvolve tam-bm numa simultaneidade virtual cujos limites sao os da nossa capacidade de memorizar. Conjugando essas duas dimensoes, abrimos o horizonte sem fim das releituras, as quais, voltando a percorrer suas prprias pegadas ou se movendo por "desloca-mentos" ou saltos, constituem o suporte de onde se elaboram o comentrio, a glosa e a interpretao.

    Ler proceder a um paciente trabalho de decifrao, para dar conta ao mesmo tempo da estruturao global e da dinmi-ca textual. Mas igualmente recompor percursos possveis, di-ferentes daqueles que sao efetivamente reaHzados, autorizados pelo esforo de anlise ou a preocupaao interpretativa. O lei-tor ' 'desloca" sem parar o agenciamento linear fixo, redistri-buindo os constituintes por meio de uma constante experimen-taao. Trata-se de explicitar as regras de funcionamento que li-gamos conceitos, asproposies, as argumentaes, sejaapar-tir das indicaes, pistas, proposies explicitadas no prprio texto por seu autor, seja do exterior, quando ns mesmos faze-mos com que esses diferentes parmetros variem.

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  • 8 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    Tais observages indicam que difcil determinar a priori uma unidade de leitura, pois os ' i imites" do texto so neces-sariamente vagos, mesmo que a diviso em frases, pargrafos ou captulos constituam um indicio deles. Com efeito, esses brancos tipogrficos combinados com ttulos ou numerages so enquadramentos para a leitura e devem eles prprios ser interpretados, pois o prprio "recorte" da massa discursiva em subconjuntos tem tambm um significado filosfico e nao preexiste efetuago do sentido. Assim, um "trecho" de tex-to s tem validade na medida em que o consideramos como um instantneo, como a.fixago provisria de limites que se deslocam e se reagenciam, unidade mvel e lacunar que a an-lise reinscreve em conjuntos tambm flutuantes. Se no pos-sivel definir de antemo os limites do fragmento nem o "filo-sofema" que representa a unidade minima de sentido, pode-mos, no entanto, situando-nos no mago da discursividade con-creta, determinar quais sao os constituintes mnimos de um tex-to filosofico.

    Da mesma forma que a unidade minima de sentido, a uni-dade textual englobante no pode ser determinada a priori^ an-da que esta tambm seja proposta por marcas tipogrficas ou materials (a unidade fsica do livro). Essas marcas constituem indicios que devem ser interpretados e que se mostram s ve-zes extrnsecos aos recortes estabelecidos pela leitura que cons-tri progressivamente seus prprios conjuntos"^. Na medida em que a leitura linear se acompanha de antecipages, de re-tornos, de extrapolages e de referencias mltiplas, toda a complexidade textual que se desenrola progressivamente. Pou-co a pouco vo se desenhando horizontes sucessivos que am-pHam e delimtam simultaneamente nossa leitura. Portanto, somos sempre conduzidos da anlise local anlise de unida-des textuais mais vastas. O leitor dever explicitar esse hori-zonte seguindo as ndcagoes dadas pelo prprio filsofo ou faze-lo de acordo com seus prprios imperativos (os graus e os modos de explcitago so variveis em fungao das finali-, dades do comentrio). Um trabalho desse tipo permitir ao mesmo tempo uma compreensao mais profunda do trecho es-

    colhido e um estudo da maneira pela qual as doutrnas se cons-troem em conjuntos coerentes, sob forma sistemtica ou por outros modos de organizagao.

    Essa anlise das grandes formas de organizagao textual

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  • NTRODUO 9

    se torna ainda mais difcil visto que e preciso considerar ao mes-mo tempo OS aspectos dinmicos (gnese, elaboraes, recons-trues, rupturas, diversidade dos tipos de reformulao) e os as-pectos estruturais (hierarquias conceituais, temticas, relaes en-tre o contedo doutrinrio e os modos de exposio que ele per-mite). A dificuldade de leitura portanto considervel: de um la-do, o fragmento uma unidade flutuante que nos convida, sob a cadeia linear, a analisar a complexidade textual constituida por operaes filosficas elementares; de outro, ele se integra em con-juntos mais vastos, com dimensoes tambm variveis, quer se-jam colaterais, superpostos, ou construidos transversalmente atra-vs da composio geral da obra. Abordaremos o estudo desses fenmenos de unffcao textual quando estiver esclarecida a an-lise das operaes constitutivas do discurso filosfico (ver cap-tulo 6).

    Unidade dada pela funo enunciativa sujeito

    A segunda funo concerne a tudo o que se relaciona com a unidade conferida pelo nome prprio, pela funo-autor, pela voz que subtende o texto pu se esconde atrs da mpessoaldade do conceito. Essas referncias enunciativas permitem compreen-der como se organizam os modos de exposio, a forma do pro-cesso de pensamento, a repartio dafala e a disposio dos pontos de vista. Abordando a leitura, somos integrados num sistema de marcas que nos consgnam um lugar, definindo nosso papel. Tais referncias dizem respeito tanto ao que se deve compreender quan-to ao que nos permite compreender: um tom, uma voz, s vezes branca e como que neutra, s vezes, ao contrrio, marcada e car-regada de inflexes que a tornam nica e reconhecvel. Assim, o texto depende inteiramente de uma ''presena" que se retirou, mas que deixa no seu vazio um trao decfrvel. Nao queremos nos referir a uma presena metafsica da fala filosfica cujo vi-gor deveramos buscar incansavelmente para alm do texto, mas sim necessidade de pesquisar como os textos se constroem co-locando as marcas, a imagem de uma presena mais ou menos forte. Essa presena constitu o ponto de origem das construes de sentido e, ao mesmo tempo, estrutura a forma de presena ativa do leitor, assim como as formas sob as quais a multiplicidade dos discursos evocados ou convocados sao submetidos e dispostos num ponto de vista filosfico unificado.

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  • 10 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    Propomos, portanto, que se comece a ler um texto filo-sfico buscando esses tragos explcitos ou disfargados de um referente tanto exterior quanto interior que se d como 'au-tor" do texto. Agrupando-os, podemos tragar o retrato em ne-gativo do filsofo, e analisar a sombra projetada que o traba-lho da escrita vai deixando medida que progride.

    Nao propomos um estudo geral das condiges de produ-go do discurso filosfico, que deveria levar em consideragao as imposigoes institucionais e histricas que determinam sua enunciagao^. Tambm no se trata de tentar reinscrever a bio-grafa na obra, como se o fantasma pudesse anda habitar a cidadela do sistema^. A partir de um estudo interno, quere-mos apenas destacar as operages pelas quais o texto constri uma referencia s dimenses biogrficas e institucionais, ou se constri atravs dessas referencias. No mbito modesto de um aprendizado da leitura, vejamos primeiramente como pos-ta a fungao-sujeito, como eia articula e polariza um certo n-mero de elementos do processo de pensamento tal como se efe-tua na escrita. Esse ser o objeto do primeiro captulo.

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  • I

    A cena filosfica

    1. APARELHO FORMAL DA ENUNCIA^O FILOSOFICA

    a) Num primeiro momento, o leitor buscar as marcas ex-plcitas da enunca^o filosfica, referndo os enunciados ou grupos de enunciados aos tres plos pessoais que os inscrevem na ordem discursiva:

    O texto se apresenta como i^ma polifonia enunciativa organizada em torno de uma referncia constituida pelo nome prprio, pelo pronome pessoal em primeira pessoa ou pelas denominaes de escola. Eie coloca o movimento da reflexo sob a dependencia de um locutor que tido como aquele que o produz ou que assume sua responsabilidade. Mas o pseud-nimo, o anonimato, as incertezas de autoria atestam que nao h correlao simples entre o locutor exterior ao texto e a voz que se faz ouvir. Por outro lado, nao pretendemos definir aqui a natureza efetiva da instancia de produo: papel das insti-tuies, efeitos sociais que resultam do texto. Queremos, pri-meiramente, compreender como o texto filosfico emite uma VOZ-, coloca em cena sua relao com instituies e prticas so-ciais, agencia do interior a funo de autor.

    Essa posio inicial de uma referncia enunciativa que relaciona o texto a uma instncia que o produz e que por ele responde determina as marcas pelas quais o processo da leitu-ra e o papel do leitor sao simultaneamente definidos. O fato de dirigir-se ao leitor, de tentar persuadi-lo, de exort-lo a fi-losofar, no indiferente; negligenciamos com muita freqn-cia o estudo dessa funo de endereamento. Essas marcas.

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  • 12 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    ainda que necessrias leitura, passam multas vezes desperce-bidas. Esses pontos de ancoragem nos associam nao somente ao desenvolvimento da reflexo, mas permitem dar uma for-ma presenta em negativo de um leitor em potencial. Eles Ihe atribuem um estatuto que o leitor real aceita ou recusa, con-forme o trabalho de convicgao faga dele um discpulo, um ob-servador distante ou um adversrio.

    Essa relago orientada entre o enunciador e o co-enun-ciador em segunda pessoa nao somente constitu o quadro do desenrolar das anlises e das demonstrages, mas oferece a pos-sibilidade de separar a interoridade textual (a do espago/tem-po partlhado na leitura) de um mundo exterior ao qual o fil-sofo se refere. Essa relago privilegiada exclu todos aqueles que o texto designa, com a ajuda do pronome pessoal na ter-ceira pessoa ou de seus diversos substitutos, como sendo-lhe exteriores. Autores, correntes de idias, escolas nem sempre sao designados por seus nomes; podem ser evocados por alu-soes, ou explcitamente atravs das respostas antecipadas s objeges que poderiam formular. Essa figura do outro, ins-crita em filigrana no interior do texto, permite ao mesmo tem-po integrar a pluraldade dos pontos de vista e recuper-la ou relativiz-la em favor da hegemona das teses que o texto de-fende.

    b) Os textos filosficos no se contentam em exppr teses resultantes de conceitualizages, ou argumentagoes niveladas e encadeadas linearmente. Eles se estratificam em planos dife-renciados, gragas a perspectivas operadas pelas referencias que acabamos de reconhecer.

    Chamemos de aparelho formal da enunciagao filosfica a matriz que produz o conjunto de marcas textuais que ates-tam a presenga de sujeitos /alantes.

    O filsofo deve reconhecer as coergoes que o uso das ln-guas naturais impe a todo sujeito num ato de comunicagao. O fato de que ele as afaste, se lvre dlas ou as analise de um ponto de vista filosfico, no o dispensa de apoiar-se nelas quando quer demonstrar, convencer ou explicar. Os tres eixos de anlise que acabamos de explicitar se nscrevem, portanto, no dispositivo das coergoes que se impoem a todo locutor. Ben-veniste, em A subjetividade na lingua, define a enunciago co-mo o funconamento da lingua atravs de um ato individual

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  • A CENA FILOSFICA 13

    de utilizao^^ Ora, a linguagem s possvel porque cada lo-cutor se coloca como sujeito, remetendo a si prprio como eu nesse discurso. Este captulo ser dedicado ao estudo das ma-neiras pelas quais os sujeitos poem o discurso filosfico e se poem atravs dele.

    A estrutura lingstica que subtende a enunciao filos-fica tem propriedades que Benveniste explicita da seguinte maneira:

    a relao entre pronomes pessoais caracterizada por uma dissimetria interna entre primeira e segunda pessoa cha-mada "correlao de subjetvidade". ' 'as duas primeiras pes-soas h, ao mesmo tempo, uma pessoa implicada e um discur-so sobre essa pessoa... em segunda pessoa; " t u " necessaria-mente designado por " e u " e no pode ser pensado fora da re-lao colocacia a partir do "eu"^.

    mas as duas primeiras pessoas esto unidas por uma "correlao de personalidade", visto que elas se opem ter-ceira: " a forma dita de terceira pessoa comporta uma indica-o de enunciado sobre algum ou alguma coisa, mas no di-rigido a uma pessoa especfica"^.

    O estudo dessas dissimetrias nos permitir compreender como o texto se organiza ao mesmo tempo de um ponto de vista unificado, delimitando o espao interior da interlocuo, e integrando a diversidade externa. Com efeito, um conjunto de operaes permite, em torno da referncia enunciativa, con-ferir um referente seqncia textual: so os "diticos", isto , os "demoustrativos, adverbios, adjetivos que organizam as relaes espaciais e temporais em torno do sujeito tomado co-mo referncia""^. Ler um texto supe a compreenso intuiti-va das relaes assim colocadas pelas pessoas; analisar \xm texto obriga a explicitar as regras graas s quais um conjunto com-plexo de efeitos textuais est assim determinado.

    c) Mas, se necessrio remeter o texto a esse aparelho for-mal da enunciao, nao quer dizer que ele possa ser reduzdo mecnicamente a isso: sobre a estrutura inicial, numerosas ope-raes vo se construir, deixando assim sua parte especifici-dade discursiva da enunciao filosfica, s particularidades enunciativas de cada doutrina, s formas variadas da exposi-o, enfm imaginao criadora do filsofo que se apropra da "lingua da tribo" em funo de seu genio prprio.

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    MATUMquina de EscribirDemostrativo: morfema que marca una relacin de deixis especial, tradicionalmente han sido considerados como pronombres o determinantes (ejemplos: el, mi, vuestras, tus, varios, los, esta, la, los, unas, aquel, etc.)

    Adverbio: parte de la oracin que modifica el significado del verbo o de otras palabras.... complemento circunstancial del verbo, la de cuantificador, grado o complemento del adjetivo (muy bueno, recin hecho) y las de cuantificador de otro adverbio (bastante lejos).

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  • 14 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    Primeiramente, os modos de designao do locutor ou dos destinatrios so mltiplos e polimorfos; eles se transformara medida que a anlise progride. Por exemplo, o leitor inicial-mente caracterizado como um representante da opinio man-tido a distncia pode tornar-se em seguida aquele a quem o discurso dirigido como a um discpulo. Ser preciso analisar as regras a que obedecem essas transformaes, que podem depender das reelaboraes sucessivas e das formas de exposi-o (assim. Espinosa no se dirige a seu leitor nem se coloca em cena da mesma maneira no Tratado da reforma do enten-dimento e na tica).

    Em seguida, pode parecer paradoxal comear o estudo do texto filosfico pela anlise das formas enunciativas, uma vez que elas se caracterizam habitualmente pela impessoalidade do tom e pela universalidade da visada. Mostraremos que, na ver-dade, os textos que colocam em cena o sujeito enunciador em primeira pessoa sao bastante numerosos e que, se essa funo parece freqentemente ausente, mltiplos rastros das opera-es enunciativas permanecem e desempenham um papel im-portante na estruturao das argumentaes, anlises concei-tuais e modos de exposio.

    o conjunto dos aspectos do texto direta ou indiretamente ligados estrutura formal da enunciao filosfica que, por meio desse mtodo, gostaramos de tornar acessvel ao leitor.

    Chamamos de cena filosfica o resultado desse trabalho de escrita pelo qual o filsofo representa o processo de pensa-mento no prprio mago do texto,

    A cena filosfica composta pelo conjunto das operaes derivadas da estrutura enunciativa que, por variao e combi-nao, se enriquecen consideravelmente. Abordemos essa com-plexidade examinando em detalhe como cada lugar da estru-tura abre registros mltiplos enunciao filosfica.

    2. O SUJEITO EM PRIMEIRA PESSOA, CENTRO DE PERSPECTIVA

    Fala de verdade, discurso sem sujeito: o enunciador universal

    Toda a nossa hiptese de leitura, e portanto nossa pro-posta metodolgica, se baseia na idia de que a unidade do

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  • A CENA FILOSFICA 15

    texto filosofico, sua coerncia interna e sua possibilidade de se constituir por diferenciao com um ' 'mundo" ao qual, por outro lado, ele pode se referir, supe a presena de uma fun-o textual centrada na referncia enunciativa sujeito; essa re-ferncia seria ao mesmo tempo fonte de constituio do pon-to de vista no sentido da produo do texto, e ponto de fuga onde se encontram as linhas diretivas que o leitor deve seguir no seu trabalho de interpretao.

    Ora, muitas vezes no encontramos qualquer trao enun-ciativo, como, por exemplo, em certas compilaes de aforis-mos, de mximas ou de condensados doutrinais. Isso parece valer igualmente para formas ligadas em sistema, quer seja na

    ^ ^

    Etica de Espinosa ou no Tractatus de Wittgenstein. E verdade que os desenvolvimentos filosficos assumidos em primeira pes-soa constituem uma pequea minoria daquilo que nos chega. Mas, alm do fato de no ser a primeira pessoa o nico indice enunciativo, sustentamos que todo texto de filosofia deter-minado a partir de uma referncia enunciativa que atribu os papis, distribui a fala e coordena os elementos de anlise em um ponto de vista unificado,

    O filsofo pode apagar os rastros da construo da refle-xo, ao apresentar as coisas como se o seu desenvolvimento se engendrasse de maneira puramente autnoma por progres-so interna dos "contedos".

    Portanto, a tentativa de abohr a prpria noo de pon-to de vista que se traduz por um dispositivo graas ao qual o filsofo se anula como que para deixar que a verdade fale por si; eie no fala em nome del, no a busca, eie o ponto de pura transparncia em que a verdade se manifesta. Isso pode ser constatado tanto nesta mxima de Epicuro: " O tempo in-finito contm a mesma fonte de prazer que o tempo finito con-tanto que seus hmites sejam medidos pela razo"^, quanto nesta frase extrada da Enciclopdia das cincias filosficas de Hegel: " O objeto um ser imediato, dada sua indiferena pa-ra com a diferenciao que nele se completou; em si eie tota-lidade

    Entretanto, esse apagamento sempre deixa rastros, e o lei-tor deve reconstituir o mecanismo que norteia isso. Primeira-mente, levaremos em conta o fato de que clusulas de desta-que sempre permitem separar um enunciado de seu contexto quando ele tem a forma de uma assero que veicula uma tese

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  • 16 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    (elemento doutrinrio mnimo que se sustenta por si mesmo),, com a condio de relacionar-se com um questionamento im-plcito (o que um objeto? o infinito temporal aumentara o prazer que nos proporciona o tempo finito?). Ora, constata-mos que esses enunciados so reportados por doxgrafos ou sao extrados pelo comentador, que por sua vez constituem enunciadores-transmissores; em seguida constatamos que eles sao "etiquetados" por um nome prprio que atesta sua per-tena a um corpo de doutrina; constatamos enfim que sua for-ma de assero, que visa comunicar uma certeza, atesta de fa-to a presena do locutor na enunciao.

    Mas, mesmo que maginssemos os enunciados flutuan-do livremente fora de qualquer contexto e de qualquer refe-rencia, anda seria possvel reconstituir indiretamente o rastro de um processo enunciativo, graas a certos elementos do con-tedo proposicional: o estilo impessoal da frase de Epicuro sig-nifica o homem em geral, e eu, enquanto leitor, perteno ex-tenso dessa classe, assim como o locutor que est na origem do enunciado; do mesmo modo, o "em si" de Hegel supe o movimento correlativo do "para ns". Portanto, a refe-rnca universal veiculada pelos conceitos ou colocada por um quantificador que introduz obliquamente aquele que devera-mos chamar de enunciador universal, uma vez que ele no de-signa somente aquele a quem remete o nome prprio, mas to-do leitor singular, e portanto todo leitor em geral.

    Compreendemos ento que a explicitao da incumbn-cia enunciativa se torna facultativa quando se considera a va-lidade da proposio como tendo uma evdncia tal que deve-ria se impor a todo sujeito humano. O apagamento das mar-cas nao significa a ausencia de investimento por parte de um sujeito, nem que no haja um procedimento visando transfor-mar a convico de um interlocutor, ou excluir posies con-trrias, mas apresenta essas operaes como reaUzadas; o pr-prio fato de coloc-las assim que tende a transformar o cam-po por um ato mimtico e antecipador.

    O regime enunciativo designa num fragmento, num tre-cho ou num livro a forma predominante da incumbncia enun-ciativa; isso no signifca que haja apenas uma, mas que os diferentes registros se subordinam a um deles, como no caso aqui estudado, aquele do sujeito enunciador universal apagado.

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  • A CENA FILOSFICA

    Funo-autor

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    Na maior parte dos textos, esse apagamento no total, mesmo quando a forma de exposio tende maior objetiva-o das anlises. Encontramos mais freqentemente regimes mistos que conjugam sujeito enunciador universal e sujeito re-ferencia assegurando a funo-autor. Este assegura as opera-es enunciativas pelas quais um texto fornece o vestigio e a imagem de uma presena que garante a paternidade e o con-trole do discurso. A funo unlversalizante aparece na antece-na, mas est de fato articulada segunda, que opera por trs do pano para garantir a coeso e o desenrolar do texto.

    Quando lemos as primeiras linhas da Metafsica de Arist-teles ou o inicio da tica de Espinosa, somos conduzidos na lei-tura pela colocao da problemtica, no primeiro, e pelo enca-deamento dos axiomas e das definies, no segundo, sem que nada indique a forma de presena do enunciador, a no ser uma forma de presena que se manifesta, na tica, graas substi-tuio da forma ''eu entendo" (em "por causa de si, entendo aquilo cuja essncia..." definio 1) pela forma " dita" (em " dita finita em seu gnero..." definio . No texto de Aristteles, o "ns" de "elas nos dao prazer por si mesmas" que modifica o registro enunciativo.

    Mas, continuando a leitura desses dois textos, percebemos, ao lado dessa funo impessoal do sujeito, os rastros de uma atividade enunciativa mais densa: no livro alfa, alguns pargra-fos adiante, encontramos a seguinte frase: "Indicamos na ti-ca (...) mas o objetivo de nossa discusso presente mostrar que (...); assim como dissemos acima, julga-se ordinariamente

    Isso indica claramente que a interveno da funo-autor necessria para construir as referncias intra e extratextuais, para tematizar o sujeito da reflexo, para avaliar os juzos e, portanto, para construir o pano de fundo sobre o qual a de-monstrao se desenrola. No livro de Espinosa, as funes no esto imbricadas na trama como aqui, encontram-se Jerarqui-zadas atravs de planos bem distintos: sob o desenvolvimento linear das proposies "lastreadas" com seu peso demonstrati-

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  • 18 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    vo, aparece um nivel especfico, composto de exemplos, expli-citaes, reflexes sobre as dificuldades do leitor para compreen-der a exposio more geometrico [ maneira geomtrica]: "No duvido que todos aqueles cujo juzo confuso e que no tm o hbito de conhecer as coisas pelas suas causas primeiras en-contrem dificuldades em conceber a demonstrao da proposi-o

    Enquanto textos como o Tratado da reforma do entendi-mentOy que segue uma progresso didtica, e a tica se opoem precisamente pelo modo de exposio, parece que a segunda for-ma, embora se apresente como sistema acabado, no pode dei-xar de levar em considerao o processo da primeira, apesar de diferente.

    A oposio, construida na tica entre o autor e " o leitor de juzo confuso", provisria, j que Espinosa acrescenta mais adiante: "se os homens fixassem sua ateno...", e finda o de-senvolvimento explicativo do escolio, dizendo: " por isso que podemos ter idias verdadeiras de...", mostrando assim que uti-liza as transformaes descritas acima para reuniversalizar a tese.

    Extrados de tradies diferentes, esses dois exemplos, aos quais se pedera facilmente acrescentar a grande maioria dos textos da filosofa ocidental, ilustram muito bem a possibili-dade de variar a forma de presena dos sujeitos no interior de um mesmo texto. E isso que denominamos regime enunciati-vo. As formas relativamente neutras que acabamos de 1er po-dem se acrescentar indicaes adventicias, como mostra o tom de famHaridade introduzido pelo emprego da primeira pes-soa no inicio do Ensaio sobre o livre-arbtrio de Schopenhauer: "permto-me, pois, remeter seu exame para o final deste tra-balho, quando o leitor estar familiarizado com..."^.

    Se levantarmos sistematicamente esse tipo de indicios num trecho da obra, obteremos uma espcie de projeo semi-cons-ciente da personalidade (real ou ficticia) do autor, que no estritamente biogrfica, mas que permite traar um retrato que constitu o "ideal do ego" filosfico.

    No esquema-tipo que acabamos de descrever, o processo do pensamento se desenrola de maneira quase autnoma, in-tegrando a multipHcidade dos pontos de vista, graas fun-o de sujeito enunciador universal. A primeira pessoa, que

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  • A CENA FILOSFICA 19

    assegura a funo de autor, interfere apenas pontualmente nos prefcios, nos trechos introdutrios e, localmente, para resu-mir, reorientar a reflexo. O jogo entre as duas instncias me-rece ser cuidadosamente estudado, pois esses efeitos na cons-truo textual so muito mais importantes do que o faria pen-sar a modstia de sua presena. Pode acontecer que todo um captulo esteja preso a uma determinao enunciativa oculta-da pela presena do enunciador universal, o que torna sempre delicado o estudo de um trecho da obra isolado do seu contex-to. Os diversos registros enunciativos unificam-se num regime enunciativo caracterstico.

    Sujeito de identificao particpadora

    Quando Descartes, no prefcio das Meditaes metafsi-cas, escreve: "Na primeira, adianto as razoes pelas quais po-demos geralmente duvidar de tudo"^', e utiliza simukanea-mente a funo autor ("eu") e o enunciador universal ("ns"). Mas o desenrolar das meditaes usa um sujeito em primeira pessoa de tipo especial, pois, embora se refira ao locutor Ren Descartes, nascido em Haia a 31 de maro de 1596, e descreva certos elementos situacionas em aluso a essas circunstncias biogrficas, trata-se todava apenas de uma construo na or-dem da verossimilhana, de uma "fico" que restitu o vivi-do interior de uma conscincia. Embora nossa prpria situa-o de enunciao seja diferente, podemos no entanto nos rea-propriar do percurso das meditaes e reviver seu encaminha-mento do interior, como se fosse o nosso. AHs, esse sujeito rapidamente depurado de qualquer contedo particular, o que torna ainda mais fcil a identificao participante do lei-tor: "Esta proposio: sou, existo, necessariamente verda-deira todas as vezes que a pronuncio ou que a concebo em meu espirito.

    Poderamos pensar que se trata ai do enunciador univer-sal, mas h algo mais: no se trata apenas de coordenar o mo-vimento de leitura ao desenrolar do texto pela colocao de um sujeito que identificara o autor e todo leitor potencial, mas de transpor para o campo da anlise, portanto para o nivel dos "contedos", um conjunto de elementos que pertencem ao dominio referencial associado primeira pessoa. Esse do-minio est constituido aqui de traos biogrficos ou situacio-

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  • 20 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    nais cartesianos apenas porque essas particularidades dao uma consistncia conscincia meditante, que pretende ser toda conscincia. De seu lado, o leitor dar um peso de vivido experiencia meditativa, associando-lhe seu prprio dominio de vida, e assim o "eu" , ao mesmo tempo ator e contedo da anlise, torna-se universal em sua prpria particularidade.

    O genio de Descartes consiste em utilizar, para construir uma obra filosfica inteira, as caractersticas e as transforma-es autorizadas pela passagem da dimenso funcional do su-jeito enunciador a uma dimenso ontolgica que Ihe asso-ciada. Mas esse " e u " com funo dentfcadora igualmente usado por Espinosa, Kant, Hegel, Bergson ou Sartre, nos quais, sem constituir o suporte constante da reflexo, ele permite abrir um universo de referncia interior e universal (cf. cap. 3). As-sim, no famoso captulo de Oser e o nada sobre a m-f, Sar-tre, tomando o exemplo do garom, comea descrevendo do exterior seu comportamento:

    Observemos esse garom. Ele se movimenta com vivacida-de, com gestos quase precisos demais, rpidos demais, aproxima-se do fregus com um passo desenvolto demais... Todo o seu comportamento nos parece uma representao'^

    Em seguida, o autor se coloca do ponto de vista do gar-om, dentfica-se com ele a fim de compreender os vividos de conscincia correspondentes sua attude e, empregando a pri-meira pessoa, inclu-nos de uma s vez na participao daque-le vivido e na sua interpretao.

    Assim, esse " e u " no o mesmo atravs do qual se indi-vidualizariam Descartes, Hegel ou Bergson; ele funciona, ao contrrio, como um ndice de subjetividade dotado de um pa-pel unlversalizante. Sera correto dizer, entretanto, que esse " e u " cartesiano, hegeliano, sartriano, na medida em que a maneira pela qual essa interoridade produzida e explictada pertence propriamente s doutrnas. Existe, pois, uma relago entre o emprego dos ndices de subjetividade na lingua dos fi-lsofos e o estatuto filosfico que eles outorgam subjetivi-dade (certamente no por acaso que os exemplos aqu privi-legiados pertencem a filosofas da conscincia).

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  • A CENA FILOSFICA 21

    ndices de subjetvidade e biografia

    Nos usos precedentes, a dimenso subjetiva ou biogrfi-ca fica neutralizada ou dessubstancializada; entretanto, preci-samos estar igualmente atentos existncia de textos que inte-gram dados biogrficos ao fazerem referncia s circunstn-cias de edio, de acolhida, como neste trecho do prefcio de 1860 ao texto de Schopenhauer j evocado:

    O nico talento dessas pessoas [os professores de filoso-fa], e sua nica arma contra a verdade e o talento, consiste em calar-se, em no descerrar os dentes. Em nenhuma de suas inu-merveis e inteis produes publicadas desde 1841, h uma ni-ca palavra consagrada minha tica, embora seja sem contes-tao o que se fez de mais importante em moral nos ltimos sessenta anos^" .^

    Entre essas linhas, que traduzem o ressentimento do au-tor incompreendido mas seguro de seu gnio, e o texto seguin-te, de Nietzsche, h um desvio considervel, que nos deixa pen-sar que a subjetvidade enunciativa, tambm eia, suscetvel de numerosas variaes:

    Prevendo que me caber em breve lanar humanidade o mais grave desafio que eia j recebeu, parece-me indispensvel dizer quem sou. A bem dizer, j deveriam sab~lo, pois no sou daqueles "que no deixaram testemunho". Mas a despropor-o entre a grandeza de minha tarefa e a pequenez de meus con-temporneos manifestou-se(...) 15

    No se trata aqu de aprofundar o estudo desses empre-gos, mas de mostrar que ele possvel. Assim, ao lado da cons-truo de "espaos interiores" prprios meditao, con-fisso, encontramos "itinerrios ntelectuais", lugares de di-logo consigo mesmo, a exemplo daquele que conduz Marco Aurlo no que ele designa explcitamente como "Pensamen-tos para mm mesmo". Por outro lado, em Strner, Kierke-gaard e Nietzsche, a hipertrofia subjetiva toma a forma da in-vectiva, do jogo pseudonimico ou do delirio megalmano. Ora, todas essas formas Hgam de uma maneira originai o modo de

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    MATUMquina de EscribirOTROSTIPOS DETEXTOS

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  • 22 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    desenvolvimento da reflexo e o estatuto concedido aos con-ceitos ou critica do uso dos conceitos.

    %

    Resumo

    Os meios explcitos que referem o enunciado operao ou ao sujeito do qual ele procede podem aparecer sob quatro grandes tipos, sendo obvio que combinaes, superposies, nuanas ou enriquecimentos podem complicar a tarefa do leitor:

    1. Apesar da ausncia aparente de enunciao (forma de discurso objetivada), uma reconstruo indireta sempre pos-svel; eia permite por em evidencia um sujeito enunciador uni-versal, que rene sob uma forma vazia todas as referencias pos-sves, e que engloba a segunda e a terceira pessoas.

    2. Um sujeito enunciador de referncia assegura a funo de autor; seu contedo neutralizado, mas pode suportar re-misses situacionas e biogrficas. essa funo fundamental que garante a preparao da cena filosfica e a construo do espao textual.

    3. Um sujeito de identificao torna possvel a exibio, a ttulo de caso particular, do contedo de uma conscincia, mas, por sua generalidade, tem um alcance universal. Aqui, a primeira pessoa torna possvel o processo de anlise, pois ao mesmo tempo forma de exposio e contedo exposto.

    4. Um sujeito enunciador singularizado, com enraizamen-to autobiogrfico, inaugura a explicitao de elementos obje-tivos (cronolgicos, fatuais, biogrficos...), ou ento coloca os enunciados como correlatos de uma particularidade que se d como exemplar.

    Essas formas podem ser encontradas em graus variveis numa dada obra, onde certos agenciamentos estereotipados acabam por constituir a marca especfica de uma doutrina ou de um gnero flosfico. A anlise cuidadosa do regime enun-ciativo ou de suas transformaes oferece uma mina de infor-maes sobre a imagem ntrafilosfica da atividade filosfica ou do filsofo que transparece ou se mascara no texto.

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  • A CENA FILOSFICA

    3. VARIAES SOBRE O DESTINATRIO

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    O papel do outro na cena filosfica: mediao e destinao

    Reconhecemos, retomando as teses de Benveniste, que o sujeito enunciador na primeira pessoa quem coloca correla-tivamente as duas outras pessoas, particularmente a segunda,, alternador de todo o processo de comunicao que abre o tex-to para o mundo exterior. O destinatrio, de fato, no so-mente um alvo visado por si mesmo, mas constitu uma me-diao entre o autor e ele mesmo, por um lado, e, por outro, entre a fonte enunciadora e a comunidade mais ampia que visada. O destinatrio no puramente passivo, ele ope a re-sistencia potencial de sua incompreenso, de seus preconcei-tos e mesmo de suas objees. Todo esse jogo pelo qual o tex-to figura uma resistncia pode se efetuar tanto no dilogo in-terior de uma conscincia que se cinde e se ope a si mesma, quanto na filosofia dialogada (quer o dilogo seja construido de maneira homognea por um nico locutor, quer ele supo-nha realmente dois interlocutores).

    Tanto assim que se pode dizer que o dilogo uma for-ma originria da atividade filosofica. A segunda pessoa torna possvel o pensamento silencioso pela integrao do exterior nteroridade consciente, e assegura igualmente a exteriori-zao do que dito, graas presena do outro implicada na posio da primeira pessoa. Inversamente, a escrita, pela re-ferncia ao leitor, permite introduzir o ponto de vista adverso que ser necessrio reduzir ou compreender, e autoriza uma estrategia discursiva que, servindo-se dos meios da explicao, da convico, busca transformar o campo geral dos pontos de vista em filosofa (ver captulo 5, p. 149).

    V-se que a funo atribuida ao destinatrio representa um papel primordial tanto para a recepo do texto pela cena social e institucional em que ele se inscreve, quanto para sua estruturao interna, j que define em grande parte as condi-es de sua legibHdade.

    Como no caso da primeira pessoa, tambm aqui a ausen-cia de marcas explcitas no significa que a funo no asse-gurada, pois eia atua atravs de operadores indiretos: o "para ns" hegeliano, o tom impessoal empregado por Epicuro, in-tegram de fato o leitor no enunciador universal. Em cada tex-

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    MATUMquina de EscribirLa primerapersona coloca las otrasabriendo la comunicacional exterior

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  • 24 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    to notaremos, portanto, quais so as formas que permitem as-segurar sua destinao, que no consiste somente em fundar 0 verdadeiro na razo, mas tambm em permitir o acesso mais universal ao verdadeiro.

    Como para a funo-autor, procuraremos determinar que posies funcionis so consignadas segunda pessoa; em se-guida, reagrupando os traos esparsos no texto, os indices li-gados s formas de endereamento voltadas para o leitor, ou os pargrafos e glosas a que ele d origem, veremos desenhar-se a imagem pela qual ele adquire um estatuto filosfico. Es-ses elementos no so nem estticos nem isolados, mas encon-tram-se ligados segundo figuras reconheciveis que, atravs de suas variaes, garantem transformaes internas ao texto pu organizam modos de exposio especficos (dilogo, cartas, cf. pp. 25 ss).

    Quando a destinao no evocada, falaremos de des-tinatrio universal, observando que ele se confunde ento com a funo geral de enunciador universal estudada acima. Mas sua presena pode ser atestada indiretamente, como no exem-plo espinosista (pp. 17 s.), em que "aqueles" designa tanto o leitor quanto o caso geral da incompreenso, o alcance refe-renda! dos prprios enunciados.

    Distinguiremos em seguida o destinatrio inclusivo, que conjuga o sujeito enunciador e o leitor sob as marcas da pri-meira pessoa ("eu" que assegura o processo de anlise, "ns", " agen te" [on], perfrases designativas como " o sbio", "os amigos da filosofia"...).

    Identificaremos o destinatrio de excluso, que se ba-seia numa diferenciao marcada por um "voce" ou "vs" distanciado, um " a gente" ou "o leitor" impessoal e neutrali-zador, ou ento marcada pela assimilao aos "outros", ad-versrios ou massa da opinio.

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    A esses traos disjuntivos da incluso/excluso se su-perpe o registro graduado da proximidade ntima (tratamen-to por tu aos amigos, ao leitor-irmo que se convida a parti-Ihar a intimidade do pensamento), cujo plo oposto , ao con-trrio, o distanciamento marcado pela ironia, a invectiva e s vezes a injria reservada aos alvos do exerccio polmico (fi-guras mltiplas de rejeiga).

    Cada texto agencia de maneira original a posio do des-tinatrio, mas observamos certos esquemas, certos percursos-

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  • A CENA FILOSFICA 25

    tipos que formam uma espcie de cnone da enunciao filo-sofica: as doutrinas em que as formas de exposio objetiva predominam, privilegiam a enunciao universal com interfe-rencias locis ou pontuais da funo de endereamento; as dou-^ trinas que privilegiam a destinao e buscam validar-se instau-rando um processo de comunicao partem da multiplicidade inicial dos pontos de vista possveis (diversidade das escolas, dos pblicos, dos estatutos do leitor); a seguir, trabalham pa-ra dissociar o leitor do seu campo de pertena inicial, para aproxim-lo progressivamente e eventualmente inclu-lo no dis-curso, como se ele estivesse em condies de apropriar-se do prprio mecanismo de reexo a ponto de engendr-lo. Di-versidade ou unidade dos pontos de vista, nteroridade ou ex-terioridade do outro, so essas as oposies que o texto flo-sfco constri graas s transformaes do papel atribuido a cada um no processo de leitura. Vejamos agora como essas transformaes afetam a estruturao do texto e, correlativa-mente, do pensamento.

    Formas e gneros construidos sobre o primado da segunda pessoa

    A posio dada ao destinatrio na enunciao modifica tambm a cena filosfica, da mesma forma que contribu pa-ra form-la. Assim como o privilgio da primeira pessoa co-mandava certos dispositivos textuais, o privilgio concedido funo de endereamento, destinao, vai acarretar uma polaridade enunciativa mais forte; certos textos vo mesmo construir-se sobre essa dualidade, como as cartas ou os di-logos.

    Correspondncia e cartas filosficas

    Deve-se distinguir a correspondncia autntica, que supe uma dualidade enunciativa verdadeira e apresenta um interes-se tanto maior quanto se desenvolve organicamente como uma obra, da correspondencia "ficticia" ou daquela que foi liber-tada das respostas inteis do correspondente e que pode se de-senvolver conforme uma lgica interna unificada. As cartas de Epicuro so um modelo desse gnero: o endereamento d-reto ao discpulo est ai ligado funo "protrptica" da qual

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  • 26 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    O ins t rumento: t rata-se de exortar a f i losofar , condensando a dout r ina :

    Apegue-se, pois, aos ensinamentos que no cessei de Ihe dar e que vou repetir; ponha-os em prtica e medite-os, con-vencido de que neles residem os principios necessrios para bem viver. Comece por persuadir-se de que...^^

    As formas de implicao do leitor so variveis; nessas cartas, excetuando-se a exortao e o aviso final, estamos em presena do catecismo epicurista. No sculo XVII, as Cartas filosficas de Voltaire mal conservam o vestigio das caracte-rsticas do gnero, enquanto que em Diderot constantes indi-caes referem-se ao destinatrio: "Fico bem contrariado, se-nhora, com o fato de que, para vossa satisfao e a minha, no vos tenham transmitido outras particularidades interessan-tes (...) desse ilustre cego."^"^

    O pensamento se desenrola com liberdade, adotando o tom da conversa, apoiando-se no interlocutor com famliari-dade. Quando a personalidade deste ltimo conhecida, a di-menso polmica aumenta, como na Carta a d'Alembert de Rousseau, onde eia adquire tambm o carter de um trabalho de justificao endereado ao leitor e, mais alm, posteridade:

    Retomando meu estado natural, tornei a ingressar no na-da. Tive apenas um momento, e ele passou; envergonho-me de ter sobrevivido a ele. Leitor, se receberdes esta ltima obra, aco-Ihereis minha sombra: eu mesmo j no existo mais'^.

    A escolha da cena filosfica epistolar, apoiando-se no des-tinatrio, pode ento combinar um pensamento denso e argu-mentado e as digresses ou o tom da confidencia. Mas, nesse caso, a presena do outro anexada, perde sua autonomia, e funciona somente quando convocada, enquanto outras for-mas desenrolam no espao discursivo todas as virtualidades da bpolaridade enunciadra, mantendo ao mesmo tempo o do-minio e a unidade desse espao.

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  • A CENA FILOSFICA

    O dilogo filosfico

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    o caso do dilogo, com a importante ressalva de que a repartio dos enunciados entre sujeitos enunciadores, apa-rentemente de mesma importncia, efetua-se no scio de um es-pao de interlocuo tecido por um locutor que se apaga en-quanto tal, delegando, quando necessrio, seu ponto de vista ao personagem que o representa (como Scrates para Plato).

    Isso distingue radicalmente o dilogo das obras polmi-cas como Asprovinciais de Pascal; nessa obra o autor recons-titu em cada nova oportunidade a maneira pela qual seu in-terlocutor o compreendeu ou caricaturou, com a srie sem fim dos processos de ms intenes. Nesse caso, as referncias vi-sam uma situao e personagens histricos cuja existncia se pode atestar, enquanto o dilogo filosfico constri totalmente um cenrio significante, personagens ficticios (mesmo que se-jam, como em Plato, reconheciveis como individuos reais) cu-jos traos tm um alcance filosoficamente significativo. Os nar-radores filosficos de Kierkegaard constituem, enquanto tais, prototipos que permitem ao leitor compreender concretamen-te, "poeticamente", diria o autor, a articulaao entre o pen-samento e a existencia em que ele se enraiza.

    O gnio de Plato, que o sculo XVIII no ir recobrar, consiste em conectar completamente o exercicio da forma dia-logada ao movimento ascensional prprio do mtodo dialti-co. Os imitadores se contentaro em revestir o exame da tese adversria e o jogo das objees e respostas com o falso bri-Iho dos ouropis de um interveniente sem consistncia. Esse dispositivo d uma grande liberdade ao autor, pois ele que agencia, para sua conveniencia, a natureza, a repartio e a durao das intervenes, como se o jogo da discusso argu-mentada se elaborasse segundo suas prprias leis.

    Por outro lado, o dilogo cria o sentimento de uma pre-sena viva dos interlocutores, graas a um esforo de escrita constante, e reahza todas as figuras discursivas necessrias filosofa; d conta da multiplicidade dos pontos de vista, de sua reduo pela argumentao, e integra o leitor, que pode assim usufruir de uma espcie de ubiqidade. Mas constituir o ponto de vista doutrinal por intermdio de um personagem tambm um meio de situar esse ponto de vista, de introduzir uma reflexo que o ultrapassa.

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  • 28 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    Funes didticas e pedaggicas

    Compreende-se melhor, assim, a relao existente entre os modos de apresentao do texto e as finalidades que ele vi-sa; enquanto a presena funcional da primeira pessoa era ne-cessria para que uma verdade fosse manifestada ou estabele-cida (com todos os problemas filosficos ligados ao estatuto de uma tal palavra), a segunda pessoa o ponto de ancora-gem da funo de destinao pela qual o texto se amplia no sentido da conversao ou do conflito. Aqui, o processo de efe-tuao do verdadeiro supe um trajeto que se dirige da igno-rncia compreensao, que se amplia da individualidade a uma comunidade cada vez mais vasta mesmo tomando a marca ' 'provisria' ' da escola ou da seita que rene alguns iniciados ,

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    que da interoridade busca a cumplicidade e a partilha. O lei-tor, cuja presena est marcada no interior mesmo do texto, portanto mais que o destinatrio passivo de uma mensagem; ele constitu o ponto de ancoragem de duas funes fundamen-tis de toda escrita filosfica:

    A primeira a funo didtica: o filsofo procura pro-vocar a compreenso, explica, explicita, antecipa-se as incom-preenses do leitor. Essa funo, bem evidenciada pelo exem-plo a seguir, rene todos os tragos referentes s condies de ] compreensao e de legibilidade do texto:

    A deduo das categoras est ligada a tantas dificuldades e nos obriga a entrar tao profundamente nos primeiros princi-pios da possibilidade do nosso conhecimento em geral que, pa-ra evitar as delongas de uma teoria completa e no entanto nada negligenciar numa pesquisa to necessria, achei mais conve-niente preparar o leitor do que instru-lo pelos quatro nmeros que seguem, e s apresentar sistematicamente a explicao des-ses elementos do entendimento na terceira seo que vem ime-diatamente aps. Portanto, o leitor no se deixar enfadar-se at l pela obscuridade que inevitvel no inicio, num caminho ainda no aberto, mas que se dissipar, assim espero, e se trans-formar em plena luz na seo seguinte^^.

    A segunda funo supe sempre a primeira, mas o in-verso nem sempre verdadeiro: trata-se da funo pedaggi-

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  • A CENA FILOSFICA 29

    ca, que visa transformao do pensamento e se estende a tu-do o que torna possvel a converso do leitor, Assim, neste texto do Tratado da reforma do entendimento. Espinosa estabelece bem a ligaao intima que enlaa a finalidade da atividade filo-sofica em geral a um imperativo pedaggico:

    Esse , pois, o fim para o qual me inclino, a saber, adqui-rir uma tal natureza [superior] e trabalhar para que muitos ou-tros a adquiram comigo. Com efeito, isso tambm faz parte de minha felicidade: esforar-me para que muitos outros compreen-dam o que compreendo, a fim de que seu entendimento e seus desejos entrem em perfeito acordo com meu entendimento e meu desejo^.

    A filosofa instaura, com efeito, uma relao de adoo, e mesmo de filiao, que se traduz numa partilha da doutrina, numa pertena a uma comunidade restrita mas virtualmente universal. Essa progresso metdica que transforma o leitor em discpulo, engendra a autonoma na qual este ltimo reen-contra o mestre.

    Assim, a prtica filosfica, embora se destaque das estru-turas iniciticas de tipo religioso, conserva alguns de seus tra-os. Quando os aspectos institucionais da formao do jovem filsofo passam essencialmente pelo texto escrito e pelo domi-nio da leitura, percebe-se que a apresentao das doutrinas no deixa de reproduzir do interior esse percurso, com seus obst-culos e seus impasses.

    Para ficarmos no exemplo do dilogo, a leitura atenta do Alcibades maior de Plato permitir ver como toda progres-sa argumentada sustentada por uma estratgia discursiva ex-tremamente complexa, que regula as formas e contedos de enunciao entre Scrates e o personagem ambiguo de Alciba-des (presa dos sofistas ou futuro discpulo de Scrates?). Ora, no por acaso que o dilogo se abre numa estranha captura amorosa invertida (Scrates, de enamorado, se torna o ser de-sejado), prossegue em uma furiosa batalha de argumentos, prolonga-se naphilia [amizade] que une o discpulo ao mestre, para encerrar-se na efusao simblica das almas unidas na con-templao do divino. Demonstrao de teses, regras de enun-ciao que comandam o dilogo e jogo intersubjetivo constru-

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    MATUMquina de Escribirrelacion de adopcion o filiacion

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    MATUMquina de EscribirSPINOZA

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  • 30 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    do sobre os dois personagens constituem trs niveis em intera-o constante. Isso mostra a que ponto o acesso ao verdadeiro e seu modo de efetuao no discurso podem se encontrar es-treitamente ligados: aqui a dimenso pedaggica no extrn-seca elaborao filosfica, consubstancial a eia.

    O que Plato consegue ligar to extraordinariamente nem sempre ocorrer na historia da filosofa e no necessariamen-te sob a forma dialogada. Essas duas funes integram-se ao texto a ttulo secundrio ou se limitam a certas passagens. Na maioria das vezes, os autores dissociam formas com dominn-cia didtico-pedaggica, tratando-as em obras especiis (o Dis-curso do mtodo, o Tratado da reforma do entendimento, a Investigao de Hume por oposio ao Tratado.,.).

    4. TERCEIRA PESSOA, FUNES INTERTEXTUAL E POLMICA

    Integrao da pluraldade dos pontos de vista cena filosfica

    Enquanto a primeira e a segunda pessoa formam um par de funes solidrias (a primeira ao colocar a referncia enun-ciativa constante, a segunda transformando-se medida que o movimento da convico se desenvolve), a terceira pessoa constitui um lugar vazio no processo enunciativo, suscetvel de acolher qualquer referencia ao dominio contextual. O tex-to, por um constante trabalho de escrita, pode assim convo-car e incorporar a si todo o campo das doutrnas contempor-neas ou antigas, autores, instituies, prticas ou saberes, quer referindo-se a eles, quer ctando-os, quer anda dando a pala-vra aos sujeitos enunciadores que so seus representantes. Os modos de referencia e os contedos mobihzados sao extrema-mente diversificados: s vezes a discusso obriga a situar-se em relao ao poltico, outras em relao teologia, ou s cien-cias, freqentemente em relao a todas as instncias enun-ciativas instituidas^^

    Cada filosofa deve, portanto, resolver de maneira deter-minada o problema de sua insero no campo pr-constitudo dos saberes, das prticas e das filosofas j instalados. O le-

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    MATUMquina de Escribircaso Deleuze

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  • A CENA FILOSFICA 31

    tor ficar atento forma como as designaes so operadas, as reparties instauradas entre os emm^iadores.

    A articulaao de uma doutrina quild que decisivo em sua constituio certamente crucial para bem compreend-la. A anlise dessa emergencia merece por si s um estudo par-ticular, pois eia coloca a questo da novidade da criao em filosofia: instaurar um ponto de vista filosfico s pode ser feito a cada vez no seio de uma configuraao j estabelecida contra a qual o pensamento reconquista sua autonomia. Alm disso, cada doutrina, no seio da multiplicidade contraditria de todas as que igualmente tm pretenses ao verdadeiro, de-ve impor-se por um trabalho rigoroso de validao (ver cap-tulo 5).

    O texto, atravs de um jogo mltiplo de referencias, tece uma rede mais ou menos densa de intertextualidade sobre a qual poderse construir o que, a partir de Bakhtin, denomi-nado funo dialgica^h essa funo assegura diversas formas de interao textual. Primeiramente, a restituio do dominio filosfico e contextual no interior do qual a doutrina se elabo-ra, em seguida a srie de filiaes ou rupturas em relao s suas fontes, enfm o imenso trabalho de refutao pelo qual eia valida suas afirmaes, o que est ligado funo polmi-ca (cf. p. 169). Como nos casos precedentes, o leitor tem co-mo tarefa levantar todas as formas atravs das quais se efe-tuam essas referncias: formas explicitas (que podem chegar aluso - "pode ser que nos objetem que...") mas tambm implcitas (o subentendido). Deve-se compreender ao mesmo tempo quais enunciados do texto so assim atribuidos, a quem, e sobretudo de que maneira o so; com efeito, se o texto, atra-vs da funo dialgica, constri sua abertura no campo plu-ral das posies filosficas, ele se fecha e se encerra no mesmo movimento, pois o sujeito enunciador na primeira pessoa que est no centro da perspectiva e assegura a preparao do que assim integrado. Isso vlido tanto para a refutao deta-Ihada de uma tese adversria, ou para a referncia admirativa a um modelo aproveitado, quanto para o sistema tomado co-mo um todo; tocamos nesse ponto o problema essencial do fe-chamento do filosofico (cf. pp. 93 ss.).

    Aqui tambm h "encenao"; a plurahdade apresen-tada ora de maneira neutra e distanciada, o mais objetivamente possvel, ora fica submetida a uma dramatizao intencional.

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  • 32 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    Tudo depende de como cada filosofa elabora ao nivel dos con-tedos sua prpria relao com a filosofa em geral. Essa di-ferena ser apreciada na maneira como Plato e Aristteles se referem a seus predecessores ou a seus adversrios.

    Nao-ponto de vista ou ponto de vista absoluto

    Examinemos a maneira pela qual a varidade das formas de operao da terceira pessoa transforma a relao de fora no seio do universo filosfico a que se refere o texto. Como anteriormente, s vezes estaremos em presena de formas hi-pertrofiadas, fortemente polmicas, outras vezes de formas apagadas quando o texto able aparentemente qualquer con-siderao de ponto de vista. Constatamos que os dois extre-mos tm apenas uma existncia terica. De fato, difcilmente imaginamos um texto que fosse puramente citacional ou do-xogrfico; os levantamentos de Digenes Larcio j supem uma montagem ou uma ritualizao da apresentao das dou-trinas. Os cticos tiram a "suspensao do julgamento" dessa possibilidade limite de expor a nu as teses contraditrias.

    Uma convico dogmtica uma opinio que se er esta-belecida por um raciocinio, por uma analogia ou por alguma demonstrao... Ns os opomos mutuamente de inicio, recipro-camente em seguida (...p^

    Aqui a refutao decorre simplesmente da co~presena das afirmaes contraditrias. Restara o problema do prprio ce-ticsmo como "no-ponto de vista"!

    Inversamente, a abolio do ponto de vista pode obter-se pela posio de um ponto de vista nico, representado por um texto que se colocara sem nenhuma dimenso dialgca, caso de certos aforismos ou sistemas apresentados em bloco mono-ltico. Textos como di tica de Espinosa podem mostrar-se nu-ma solidao enunciativa sublime, pois eles recortam, como o Trat actus de Wittgenstein, os limites do dizveL Entretanto, nem o texto de Espinosa nem o de Wittgenstein encontram-se realmente desligados do contexto filosfico, teolgico, lgico de sua poca; eles se colocam excluindo-o, mas ao mesmo tem-po o supem, deixando aos exegetas o cuidado de reconstruir

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  • A CENA FILOSFICA 33

    as relaes. Alis, estas forain apagadas por fora de conside-raes filosficas, como atesta a proposio 4003:

    A maior parte das proposies e das questes que foram escritas sobre matrias filosficas no sao exatamente falsas, mas desprovidas de sentido. Por essa razo no podemos abso-lutamente responder s questes desse gnero, mas apenas es-tabelecer que elas so desprovidas de sentido. A maior parte das questes de filosofia advm de no compreendermos a l-gica de nossa linguagem^'*.

    Mas, se verdade que "aquilo que no se pode dizer se mostra", necessrio dizer pelo menos que aquilo no se po-de dizer...

    Ao contrrio dessas duas atitudes que oscilam entre o si-lencio ou uma palavra absoluta, encontramos uma grande di-versidade de referncias que procedem por integrao ou ex-cluso explcitas.

    Formas de integrao e de demarcao

    Certamente, cada filosofia pretende encontrar sua origem num comeo radical, mas todo comeo apenas um recome-o. necessrio, pois, estudar as estrategias de separao pe-las quais uma filosofa se constitu a partir de uma outra; nes-se ponto observamos uma srie de atitudes que poderiam ser expostas na seguinte ordem:

    1. O simulacro, pelo qual os epgonos imitam verbalmen-te o discurso em moda.

    2. A reproduo mimtica, em que o discpulo se esfora, pelo zelo e a glosa, em atingir a fidelidade.

    3. A reproduo idntica, pela qual a posio enunciado-ra do mestre apropriada, ao mesmo tempo em que se en-globado no seio doutrinal.

    4. A reproduo ampliada, que permite fazer funcionar o sistema de pensamento nos dominios onde anda no exer-ceu sua fecunddade.

    Ao lado dessas formas de filiao reverentes, encontra-mos outras marcas que signifcam a filiao, com o que eia supe de sofrimento e rupturas, indiferena e esquecimento. Ai tambm numerosas formas podero ser distinguidas, des-

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    MATUMquina de EscribirWittgenstein

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  • 34 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    de O deslocamento sub-reptdo, pelo qual o discpulo alojado no corao da doutrina vai desestabilz-la, desvi-la para cons-truir sua prpria base filosfica (ver, por exemplo, a relao entre Heidegger e Husserl) at as rupturas polmicas.

    Devemos tentar reconstruir todas essas figuras observan-do como a enunciao atribu um lugar e uma posio aos enunciadores, analisando rapidamente os prefcios, o apara-to crtico, as biografas, as notas de rodap, todo esse apare-lho complexo que gravita em torno do texto e completa o jogo das citaes, aluses, referncias, resumos, refutes, etc. necessrio recompor o sistema das tenses ou das alianas que estruturam o campo polmico em cujo mbito o texto ganha sentido, e, alm disso, compreender como se estratifica a massa enunciativa filosfica, num perptuo movimento de reorgani-zao, de retomadas, de retornos ou de ocultaes.

    Esquema de refutao

    Em oposio s formas integrativas examinadas anterior-mente, ou em correlao com elas, estamos freqentemente em presena de refutaoes com funo exclusiva. Assim como uma filosofa pressupe o espao aberto da discusso e do exame, eia deve situar-se invalidando as teses adversas. Mesmo que o dilogo filosfico rompa com a violencia, ele perpetua o an-tagonismo e a luta pelo reconhecmento da verdade, e, por is-so, comporta explcitamente a dimenso do combate como um de seus componentes fundamentis (ver captulo 5, pp. ss.).

    CONCLUSO

    A posio da cena filosfica determina, portanto, um plo de unificao textual, assegura por sua presena constante um suporte ao desenrolar da reflexao. O texto assim dotado de uma perspectiva, obedece a regras de construo que remetem a uma voz, a um corpo ausente, o conjunto de representaes que ele instaura.

    O regime enunciativo igualmente fonte de variaes, de diversificaes asseguradas pelas transformaes levadas a cabo nos diferentes registros das pessoas. Os enunciados que expres-sam as anlises filosficas s aparentemente flutuam no cu

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  • A CENA FILOSFICA 35

    dos sistemas; na realidade, os enunciados so atribuidos, isto , remetidos a um sujeito-fonte. O conjunto dos enunciadores est ele prprio articulado referencia que indica o autor-locutor considerado como produtor do texto.

    Esses modos de atribuio enunciativa constituem formas cannicas da expresso filosfica, quer formando seqncias-tipo, quer contribuindo para formar modos de exposio muito gerais. Assim se elabora um ponto de vista nico, exclusivo e unificado, que se determina supondo um espao externo no qual outros enunciadores tambm assumem uma posio.

    Em cada uma das trs posies enunciativas efetuam-se referencias externas (biografas, aspectos institucionais, jogos de poder, tarefas de formao, polmicas) e desenha-se a ima-gem interiorizada dos atores (imagens paralelas ou divergen-tes do filsofo, do seu pblico, dos discpulos, dos advers-rios). A posio das referencias enunciativas permite portanto a delimitao de um plano de nteroridade discursiva (seja qual for a forma que este tenha: espao interior da conscincia, es-pao objetivo da conceitualidade...) oposto a um dominio de referncia externa (dimenso ontolgica: ver captulo 3).

    Enfm, sobre'essas posies edifcam-se di% funes fun-damentis da discursividade filosfica: sobre a primeira, tu-do o que diz respeito s relaes entre a verdade e sua efetua-o na linguagem e na ordem do discurso; sobre a segunda, as funes didticas e pedaggicas que estabelecem as condi-es de inteligibilidade do texto e o caminho que conduz ao dominio doutrinal; sobre a terceira, a dimenso polmica e dialgica que constri um volume intertextual em constante reelaborao.

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  • 36 ELEMENTOS PARA A LEITURA DOS TEXTOS FILOSFICOS

    Exerccios

    1. Analise as variaes no registro enunciativo deste tex-to de Bergson. Qual seu regime enunciativo?

    Urna representao tomada de um certo ponto de vista, uma traduo feita com certos smbolos ficam sempre imperfeitas se comparadas ao objeto sobre o qual incidiu a viso ou que os smbolos procuraram exprimir. Mas o absoluto perfeito na medida em que perfeitamente o que .

    pela mesma razao, sem dvida, que se tem freqentemente identifica-do em conjunto o absoluto e o infinito. Se quero comunicar a quem no co-nhece o grego a impresso simples que deixa em mim um verso de Homero, farei a traduo do verso, depois comentarei, e, de explicao em explicao, me aproximare! cada vez mais daquilo que quero exprimir; mas nunca o con-seguirei. Quando voc levanta o brao, realiza um movimento do qual tem interiormente a percepo simples; mas, externamente, para mim que o vejo, seu brao passa por um ponto, depois por um outro ponto, e entre esses dois pontos haver ainda outros, de sorte que, se comeo a contar, a operao pros-seguir sem fim. Visto de dentro, um absoluto , portanto, uma coisa sim-ples; mas visto de fora, isto , relativamente a outra coisa, torna-se, em rela-o a esses signos que o exprimem, a pea de ouro cujo valor monetrio nun-ca exaurimos. Ora, o que se presta ao mesmo tempo a uma apreenso indivi-sivel e a uma enumerao inesgotvel , pela prpria definiao, um infinito^^

    2. Que papel desempenha a segunda pessoa na seguinte passagem de Marco Aurlio?

    Passa atravs da vida sem violencia, com a alma cheia de alegra, mesmo que todos os homens lancem contra ti os clamores que quiserem, mesmo que os animais selvagens destrocem os pedaos dessa massa que levantas ao teu redor. Pois, seja como for, quem impede teu pensamento de conservar sua serenidade, de fazer um juzo verdadeiro sobre o que se passa ao teu redor e de estar pronto a tirar partido do que vem a teu encontro? Que tua aima, portanto, pela possibilidade que tem de julgar, diga ao que sucede: "s isto por essncia, embora a opinio te faa parecer diverso". Mas que eia acres-cente, pela possibilidade que tem de tirar partido do que Ihe sucede: ia ao teu encontro, pois para mim o presente sempre matria com a qual se pode fazer obra humana ou divina". Tudo o que acontece, com efeito, torna-se familiar a Deus ou ao homem; nada novo nem difcil de manejar, mas

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    tudo comum e fcil de moldar^.

    3. Refaa o esquema de refutao e a dimenso dialgica no seguinte texto de Schopenhauer:

    A noo de liberdade, no sentido abstrato que a discusso precedente

  • A CENA FILOSFICA 37

    Ihc dava e que demonstrei ser o nico aceitvel, entendida aqui como lima simples negaao da necessidade, e nosso problema fica assim clara-mente colocado. Mas na conscincia imediata que devemos procurar os dados necessrios sua soluo, e examinaremos at o fim o testemunho dessa faculdade com toda a exatidao possvel em vez de nos limitarmos a simplificar brutalmente a questo como fez Descartes, ao fazer a seguin-te afirmao, sem tomar o cuidado de justific-la: ^'Temos uma conscin-cia tao perfeita da liberdade de indiferena que existe em ns, que no h nada que nos seja conhecido com mais lucidez ou evidncia" {Princ. Phil. 1, 41). O prprio Leibniz j salientou o que h de insuficiente numa afir-mao como essa {Thod. I, 50 e III, 292), esse mesmo Leibniz que no entanto mostrou-se, em relao a tal questo, como um frgil canio que se dobra a qualquer vento; pois, aps declaraes as mais contradit-rias, chega concluso de que a vontade, de fato, inclinada pelos moti-vos, mas que estes no a necessilam. Ele diz, com efeito: "Todas as aes so determinadas e jamais indiferentes, porque h sempre alguma razo inclinante, mas no necessitante para que sejam tais em vez de

    Temas de dissertagao

    1. Em que sentido pode-se falar de autor em filosofa? 2. Com que direito um filsofo pode dizer ' ' eu"? 3. A filosofa pode prescindir da polmica? 4. A reflexo filosfica uma forma de monlogo ou

    de dilogo?

    Temas de pesquisa 1. Em um dilogo de Plato, destaque todas as passagens

    que tematizam explcitamente as regras e convenes que se referem ao desenrolar do dilogo (por exemplo, no Alciba-des maior).

    2. Anaiise a primeira das Meditaes me