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Revista da Escola Nacional da Magistratura Associação dos Magistrados Brasileiros Ano 7- nº 6 - Novembro de 2012 Patrocínio:

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Revistada Escola Nacional da MagistraturaAssociação dos Magistrados Brasileiros

Ano 7- nº 6 - Novembro de 2012

Patrocínio:

Diretoria da eNM

Diretor-Presidente: Roberto Portugal Bacellar

Coordenadores: Desembargador Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto

Desembargador Doorgal Borges de AndradaDesembargador Carlos Eduardo Moreira SilvaDesembargadora Marilsen Andrade Addário

Desembargador Osório de Araújo Ramos FilhoDesembargador José Geraldo da Fonseca

Juíza Graça Marina Vieira da SilvaJuiz João Baptista Costa Saraiva

Juiz José Luiz Leal Vieira Juiz Luiz Guilherme Marques

Juiz Osni Claro de oliveira Júnior Juiz Andre Gomma AzevedoJuiz Artur Cortez BonifácioJuiz José Roberto Barroso

Juíza Marlúcia Ferraz MoulinJuíza Jurema Gomes

Secretário-Geral: Vera Lúcia Feijó

ENdereço da eNM

www.enm.org.br

SCN - Quadra 02 - Bloco DTorre B - Sala 1302

Centro Empresarial Liberty MallBrasília - DF CEP 70712-903

Tel: +55 (61)2103-9002

FICHA TÉCNICA

Editora JC Ltda.

Escola Nacional da Magistratura

Roberto Portugal Bacellar

Marcelo Piragibe

Vera Lúcia Feijó

Juiz Evandro Portugal

Juíza Patrícia Cerqueira de Oliveira

Juiz Federal Raul Mariano Jr.

Juiz do Trabalho Roberto Fragale

Juiz Luiz Márcio Victor Alves Pereira

Juiz Militar Alexandre Augusto Quintas

Diretor-Presidente

Vice Diretor-Presidente

Secretária-Geral

Tesoureiro

Diretora-Adjunta da Justiça Estadual

Diretor-Adjunto da Justiça Federal

Diretor-Adjunto da Justiça do Trabalho

Diretor-Adjunto da Justiça Eleitoral

Diretor-Adjunto da Justiça Militar

Avenida Rio Branco, 14, 18º andar – Centro, Rio de Janeiro – RJwww.editorajc.com.br

Revista da Escola Nacional da Magistratura - Ano VII, ed. nº 6 -- Brasília: Escola Nacional da Magistratura, [2012].

SemestralISSN: 1809-5739

1. Direito - Periódicos. 2. Escola Nacional da Magistratura - Artigos. I. Brasil. Associação dos Magistrados Brasileiros.

SUMÁRIO

Apresentação

A verdadeira igualdade na distribuição de processosAluizio Pereira dos Santos

Administração do Poder Judiciário: alteração da forma de escolha dos cargos diretivos dos tribunaisCarlos Eduardo Richinitti

Administração Judiciária – Seleção e formação de juízes – Propostas de alterações na Resolução no 75 do Conselho Nacional de JustiçaRicardo Pippi Schmidt

Alterar o art. 103-B da Constituição Federal, quanto à composição e às atribuições do Conselho Nacional de JustiçaDiógenes Vicente

Aposentadorias e pensões do Poder Judiciário: integralidade e paridadeMaria Isabel Pereira da Costa

Assessorias de imprensa às unidades judiciáriasJosé Luiz Leal Vieira

Barcos da justiça: cidadania efetiva na região amazônicaJosé Barroso Filho

Câmaras de conciliação – uma proposta contra a morosidade do Poder JudiciárioDeisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz

Centros integrados de cidadaniaJosé Barroso Filho

Concretização do direito humano de acesso à Justiça: imperativo ético do Estado Democrático de DireitoMarcelo Maliizia Cabral

Criação de Comissão dos Direitos Humanos nos tribunais, como auxiliar nas políticas ligadas ao combate à torturaJoão Ricardo dos Santos Costa

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6 Revista ENM

SUMÁRIO

Criação de conselhos comunitários nos juizados especiais Maria Gilmaíse de Oliveira MendesMaria das Graças Almeida de Quental

Da imprestabilidade da taxa de congestionamento para a aferição de litigiosidade, produtividade e eficiência de varas criminaisAnastácio Lima de Menezes Filho

Democratização do Judiciário – Participação dos magistrados nos órgãos de gestão – Organização judiciária – Fixação de prazo para exercer cargos nos órgãos jurisdicionais e diretivos dos tribunais com base no critério da antiguidade, a fim de permitir a alternância no desempenho daquelas funçõesJorge Luiz Lopes do Canto

Efetividade do acesso à justiça: criação obrigatória de juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher nas Comarcas de terceira/última entrânciaHigyna Josita Simões de Almeida Bezerra

Formação dos juízes da Justiça Militar para atuação democráticaFernando A. N. Galvão da Rocha

Garantia do direito de sufrágio aos presos provisórios Fernando A. N. Galvão da Rocha

Gestão de ações de massaJoão Ricardo dos Santos Costa

Gestão do Poder Judiciário – Juiz administrador – Proposta de aperfeiçoamento da “inteligência de negócios” dos tribunais, a fim de ampliar os relatórios e os dados estatísticos aos magistrados para a gestão da sua prestação jurisdicionalNey Wiedemann Neto

Medidas a serem adotadas pela AMB junto às instituições de ensino jurídico do país visando a mudança da tradicional cultura da litigiosidade (adversarial) para a consensualVanderlei Deolindo

Nas soluções autocompositivas o juiz não está limitado nem deve ficar adstrito ao pedido e à contestação (lide processual)Roberto Portugal Bacellar

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SUMÁRIO

Nos modelos consensuais autocompositivos (conciliação, mediação) não há produção de provas. A consignação de propostas é inadequa-da em modelos autocompositivosRoberto Portugal Bacellar

O princípio da separação dos poderes e o regime previdenciário dos magistrados Cláudio Luís Martinewski

Papel das escolas na formação do magistrado: curso obrigatório de gestão jurisdicional como via de transformação do juiz-juiz em juiz-gestorHigyna Josita Simões de Almeida Bezerra

Participação de todos os magistrados nas eleições para os cargos administrativos dos tribunaisThiago Melosi Sória

Planejamento estratégico do poder judiciário – descentralização ad-ministrativa e gerencial – processo eletrônico Jorge Luiz Lopes do Canto

Planejamento estratégico e orçamento participativo: a fundamental contribuição dos magistradosJosé Barroso Filho

Planejamento estratégico em comarcaVanderlei Deolindo

Procedimentos judiciários – Modernização e racionalização dos procedimentos judiciários Jorge Luiz Lopes do Canto

Prorrogação da competência da Vara do Tribunal do JúriAluízio Pereira dos Santos

Unificação de entrâncias na magistratura estadualGiordane de Souza Dourado

A pressa da justiça morosaRoberto Portugal Bacellar

Da hierarquia à democracia: a difícil aproximação entre o discurso e a realidade judiciáriaGuilherme Newton Dumont Pinto

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SUMÁRIO

Democratização dos tribunais: Eu quero votar para Presidente (e outras coisas mais)!Roberto da Silva Fragale Filho

Educação para formação de juízes-gestores: um novo paradigma para um Judiciário em criseHygina Josita Simões de Almeida Bezerra

O Poder Judiciário e a coesão socialAntígona Contemporânea

A Aprendizagem como ferramenta estratégia na administração judiciária Roberto Portugal Bacellar

A melhor reforma da Justiça do Trabalho: a formação do JuizAmauri Mascaro Nascimento

As duas demoras da justiçaJosé Ernesto Lima Gonçalves

Autonomia finaceira dos tribunais e gestão orçamentária eficiente – Exigência constitucionalLuiz Felipe Siegert Schuch

Democracia e Poder Judiciário: propostas para uma nova Justiça Brasileira.Fernando Cesar Baptista de Mattos

Gestão Estratégica no Judiciário: aspectos conceituais e lições aprendidasNewton Meyer Fleury

Judiciário do novo tempoCesar Augusto Mimoso Ruiz Abreu

O Judiciário que queremos... Reflexões sobre o planejamento estratégico do Poder JudiciárioLuciano Athayde Chaves

Planejando o Judiciário em cima e embaixoSônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro

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SUMÁRIO

Poder Judiciário: uma nova construção institucionalMaria Tereza Aina Sadek

Proposta orçamentária do poder judiciárioLuis Felipe Salomão

A função de controle como fundamento do Estado democrático de direitoLucas Rocha Furtado

A responsabilidade do Juiz na condução racional do processoJosé Renato Nalini

Democratizar o Acesso à Justiça: uma Contribuição Baseada em Políticas PúblicasRogerio FavretoMarcelo Sgarbossa

O crime de lavagem de dinheiro e o cenário político, social e econômico que envolve a especialização de Varas CriminaisJorge Luiz Lopes do Canto

O princípio da oralidade como componente racional de gestãodemocrática do processo penalLeonardo Augusto Marinho Marques

As sociedades de economia mista – Aspectos relevantesNelson Sá Gomes Ramalho

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Apresentação

A Revista da Escola Nacional da Magistratura chega ao sexto volume. Cabe-nos, honrosamente, na qualidade de Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB e Diretor-Presidente da Escola Nacional da Magistratura – ENM, gestão 2011/2013, apresentá-la aos leitores.

Primeiramente, destacamos que a publicação deste volume cumpre o compromisso assumido em nossa posse. A Revista da Escola Nacional da Magistratura há alguns anos deixou de ser publicada, embora já se constituísse em tradicional veículo de divulgação de qualificada doutrina. Portanto, a retomada de sua veiculação volta a fornecer aos Magistrados mais uma fonte de consulta e aprimoramento profissional, cultural e humanístico.

Este volume contém, além de artigos diversos, as teses e monografias apresentadas por Magistrados participantes do XX Congresso Nacional da Magistratura (São Paulo, 2011), conforme compromisso que foi assumido pela Comissão Organizadora daquele Congresso. Compromisso esse agora cumprido pela atual gestão da AMB.

Esclarece-se que referidos textos não foram atualizados e estão sendo publicados na forma como foram apresentados pelos seus autores e aprovados.

Antecipamos já termos iniciado o trabalho para seleção do material que irá compor o próximo volume que projetamos publicar no início do próximo

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ano, contendo artigos já enviados por Magistrados e, ainda, outros que ainda venham a ser apresentados à Comissão de Edição desta Escola. Contamos com a colaboração do colega para escrever seus artigos e encaminhar para a nossa Escola Nacional da Magistratura.

Desejamos que a publicação desta Revista renove e fortaleça o vínculo dos Magistrados com a Escola Nacional da Magistratura, reunindo aqui a produção cultural da Magistratura nacional, de reconhecida e incontestável qualidade.

Por fim, agradecemos o apoio fundamental da Petrobras S.A que tornou possível a retomada desta publicação.

Boa Leitura!

HENRIQUE NELSON CALANDRADesembargadorPresidente da Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB

ROBERTO PORTUGAL BACELLARJuiz de Direito Diretor-Presidente da Escola Nacional da Magistratura - ENM

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Aluizio Pereira dos SantosJuiz de Direito na 2a Vara do Júri e membro da Associação dos Magistrados do Estado de Mato Grosso do Sul (Amansul)

A VERDADEIRA IGuALDADE NA DISTRIBuIçãO DE PROCESSOS

1. Introdução

Há muitos anos trabalho em varas do Tribunal do Júri e tenho percebido uma questão peculiar que merece reflexão, que é a mudança nos critérios de distribuição de processos afetos às referidas varas.

Isto porque a aludida distribuição é feita por unidade de processo e tem como escopo a igualdade de trabalho entre os magistrados da mesma competência, todavia, da forma como está normatizada, não atinge a finalidade do instituto jurídico, merecendo, portanto, revisão e adoção de outro critério mais justo.

2. Fundamentação

Como todos sabem, é grande o número de homicídios e tentativas de homicídios nas capitais e grandes centros do País, razão pela qual esses crimes são julgados por varas especializadas.

Os processos nem sempre são de apenas um réu, pelo contrário, vários são de três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove ou mais réus.

Por outro lado, tomando como exemplo o estado do Mato Grosso do Sul, veremos que as Normas da Corregedoria-Geral da Justiça (NCGJ) prescrevem:

Art. 329, Na primeira instância, os feitos serão obrigatoriamente levados ao registro de distribuição. Havendo mais de um ofício, a distribuição será alternada e determinará a competência.Art. 330, A distribuição tem por finalidade precípua a igualdade do serviço forense e o registro cronológico, metódico e ordenado de todos os feitos. (grifamos)

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Assim, a distribuição é por unidade de processo e alternada, não sendo, portanto, pelo número de acusados.

Todavia, no curso dos mesmos, a regra é o desmembramento dos processos motivado pelas seguintes razões:

• alguns réus estão presos, outros com liberdade provisória ou foragidos;• existência de cartas precatórias para oitiva de testemunhas;• conveniência da instrução criminal, art. 80 do Código de Processo Penal

(CPP);• conflito de defesas;• ordem legal de preferência nos julgamentos, art. 469 do mesmo Código,

(primeiro os executores, depois os mandantes, participantes, etc.);• artifícios jurídicos ou fatos costumeiramente manejados pelos advogados

para que seus clientes não vão a julgamento com outros na mesma sessão, etc.Em tais casos, tomando como exemplo um processo de 6 (seis) réus, em regra,

transformar-se-á em até 6 (seis) processos, 6 (seis) instruções, 6 (seis) sentenças, etc., e, com certeza absoluta, em 6 (seis) extenuantes ou exaustivos júris.

Enfim, jamais continuará como sendo o único processo vindo da distribuição.

Registre-se que, embora a distribuição por unidade de processo (um para cada Vara) aparente ser a mais acertada nos termos dos arts. 329 e 330 supracitados, inegável que nos crimes de homicídio a regra é a ocorrência dos desmembramentos pelos motivos acima elencados, havendo assim, evidente desequilíbrio na distribuição, a qual passa a depender da boa ou má sorte de cada Juiz, só vencida com criatividade, planejamento e muito esforço pessoal, se estendendo naturalmente aos promotores, defensores públicos, servidores, etc.

E isto, boa ou má sorte, é loteria, não sendo portanto critério justo de distribuição, tampouco refletindo no verdadeiro espírito do princípio da igualdade de trabalho.

Obtempera-se, por oportuno, que foi feito um pedido dessa natureza à Corregedoria-Geral de Justiça do Mato Grosso do Sul, o qual está em análise quanto à possibilidade de efetivação no Sistema Eletrônico de Distribuição (SAJ) tendo contado com a subscrição dos três promotores e quatro defensores públicos que oficiam nas varas supracitadas, mesmo porque não prejudica ninguém.

Dessa forma, o correto seria fazer a distribuição por número de acusados.Por oportuno, o mesmo critério também pode ser adotado nas demais

varas criminais residuais.

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3. Conclusão e proposição

Assim, sugere-se que a AMB proponha junto aos tribunais a alteração nas normas da Corregedoria-Geral da Justiça no sentido de alterar o normativo que disciplina a DISTRIBUIÇÃO para que os processos de crimes, principalmente dolosos contra a vida, sejam distribuídos às respectivas varas, de igual competência, de acordo com o número de acusados constantes da denúncia.

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Carlos Eduardo RichinittiCentro de Pesquisa Judiciário, Justiça e Sociedade da Escola Superior

da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris)

ADMINISTRAçãO DO PODER JuDICIáRIO: ALTERAçãO DA

FORMA DE ESCOLHA DOS CARGOS DIRETIVOS

DOS TRIBuNAIS

Resumo

O Judiciário nacional, assim como todo o setor público nos tempos modernos, se vê a frente do grande desafio da eficiência, pois cada vez mais nos defrontamos com o crescimento desenfreado das demandas judiciais, sem que este seja acompanhado do necessário aporte orçamentário, o que exige daqueles que se apresentam para gerenciar o Poder uma série de requisitos de ordem pessoal e até mesmo a legitimação por parte dos administrados. Não há mais espaço para escolhas por exceção ou que atendam única e exclusivamente a projetos pessoais. É necessária, pois, a revisão do sistema de eleição dos cargos diretivos dos tribunais com a dilação do mandato, a permanência da vedação de reeleição, a habilitação aos cargos por chapas fechadas e a ampliação do colégio eleitoral.

1. Fundamentação

Atualmente, a escolha dos dirigentes dos tribunais está regrada no art. 102 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), que data do ano de 1979. De lá para cá muita coisa mudou, sendo que a Constituição Federal de 1988 consolidou a tão almejada autonomia financeira do Poder Judiciário,

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de forma que a partir de então, ao contrário do que ocorria anteriormente, quem está a frente da administração desse Poder não se limita a atos de mera representação. Ao contrário, quem ascende a esses cargos diretivos enfrenta diariamente grandes desafios, administrando orçamentos que passam, não raramente, da casa do bilhão de reais, liderando milhares de magistrados e servidores.

A partir dessa realidade, o regramento estabelecido pela legislação hoje vigente mostra-se absolutamente defasado, pois está adequado a uma situação que não mais existe, na medida em que prioriza a antiguidade em detrimento das condições pessoais daqueles que se habilitam ao cargo. Liderança, estudo e preparo para as questões administrativas, requisitos de suma importância para o desafio de gerenciar um Poder de Estado, sucumbem a projetos, às vezes exclusivamente pessoais, daqueles que se apresentam pelo requisito único do tempo de atividade.

Essa situação, além de absolutamente inadequada sob qualquer ótica que se examine pelo enfoque das administrações modernas, ainda gera distorções, pois, como já se viu em passado recente, alguns dirigentes sequer conseguem terminar seus mandatos, sendo expungidos antes do fim, atingidos que são pela aposentadoria compulsória.

Nesse sentido, de todo interessante que se amplie o leque de escolha dos novos dirigentes, sem, contudo, desconsiderar-se por completo uma necessária e saudável antiguidade no Tribunal, não só pelo aspecto da experiência, mas também pela própria legitimação dos novos dirigentes, o que não se alcança caso seja possível a qualquer Desembargador, mesmo que recém-promovido, concorrer aos cargos diretivos.

Assim, conveniente seria a possibilidade de habilitar-se às eleições aos cargos de direção a metade dos magistrados que compõem o Tribunal Pleno de cada Estado, descontados os impedidos.

Outra situação que impõe alteração é que seja estabelecida na lei a obrigação de que aqueles que se habilitam ao pleito o façam por chapas fechadas, com registro prévio, e não pela sistemática hoje existente, onde é possível que cada Desembargador se apresente, no dia da votação, de forma individual, concorrendo cargo a cargo, o que gera inaceitável distorção de que as pessoas escolhidas podem não ter qualquer afinidade de pensamento ou compromisso entre si, gerando, com isso, sérias desavenças com inegáveis prejuízos à instituição.

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Como referido anteriormente, habilitar-se a um cargo diretivo não pode ser um projeto único e exclusivamente pessoal, impondo-se que os candidatos tenham propostas comuns e afinidades de pensamento.

Também importante que aqueles que se habilitam tenham projetos de gestão prévios e que estes sejam apresentados aos eleitores dentro de um prazo mínimo de modo a permitir que se conheçam as propostas dos candidatos, ficando registradas de forma a balizar e direcionar a administração, inclusive no que diz respeito à cobrança daquilo que foi projetado.

Impõe-se, ainda, alteração do prazo dos mandatos, hoje estabelecidos em 2 anos – o que é muito pouco, pois a experiência tem mostrado que o primeiro ano sofre o natural prejuízo da necessária adaptação à função e do conheci-mento da máquina administrativa, sendo que o segundo e último ano mostra-se insuficiente para implementação do projetado –, até porque, sabidamente, os últimos meses têm o foco direcionado, com inegáveis prejuízos, ao novo processo eleitoral que naturalmente começa.

A sugestão é no sentido de que o mandato seja aumentado para três anos, mantida vedação à reeleição, o que permite um melhor planejamento e uma melhor execução do proposto, bem como a natural renovação dos quadros diretivos.

De outra forma, questão extremamente controversa é a que diz respeito ao colégio eleitoral, no sentido da conveniência ou não de ser mantido o quadro atual, onde a escolha é feita apenas pelos desembargadores, ou se deve ser estendido o direito a todos os magistrados que integram a instituição, incluin-do-se o direito ao voto também aos juízes de Direito.

Não se desconhecem todas as ponderáveis restrições em relação à ampliação do quadro de eleitores, principalmente no que diz respeito aos efeitos danosos de uma politização da instituição e até de uma divisão, pois não há como se desconsiderar que a desproporção numérica entre as instâncias, sendo aqueles que integram o primeiro grau em número maior, poderá gerar distorções com atenção e compromisso maior em relação a esta instância.

Não obstante tudo isso, tenho que o melhor encaminhamento, ainda, é o da amplitude do colégio eleitoral, abrindo-se a possibilidade de que todos os magistrados possam exercer o direito de escolher seus dirigentes. Tal medida, além de mais democrática, dará maior legitimidade aos escolhidos, além de estabelecer programas vinculados e atentos às realidades das duas instâncias.

Contudo, entendo que esse modo de eleição deverá preservar a figura do Corregedor-Geral da escolha pelos juízes de primeira instância, diante das

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funções por ele exercidas junto ao 1o grau, isto é, do poder, da responsabilidade e do ônus de fiscalizar e de coordenar as atividades dos juízes, sugerindo-se, assim, que este seja indicado pelo Presidente eleito, submetida a sua indicação à deliberação e aprovação do Tribunal Pleno.

No mais, a indesejável politização ou divisões advindas de campanhas por votos, a meu ver, resta em muito atenuada pela impossibilidade de reeleição, quando então aqueles que se habilitam estarão vinculados apenas a propostas prévias, sem a preocupação de uma atuação com vista a um segundo mandato, afora que a sempre oxigenadora democratização é algo a ser amadurecido, devendo a instituição estar preparada para os naturais e saudáveis embates políticos.

Por fim, a relevância das alterações ora propostas, na medida em que atentam a uma necessidade urgente de adequação do Poder Judiciário à realidade hoje posta, em especial no que diz respeito à sua modernização administrativa e busca da eficiência, não podem, respeitando entendimento diverso, ser postergadas para a edição da nova Lei Orgânica da Magistratura, que se arrasta há anos.

2. Conclusão e proposição

Do exposto, sugere-se que tais modificações sejam introduzidas com a alteração da lei hoje vigente1, propondo-se a seguinte redação para o art. 102 da atual Loman:

Art. 102. Os Tribunais, pela maioria dos Desembargadores e Juízes de Direito, por votação secreta, elegerão dentre a metade mais antiga dos Desembargadores que integram o pleno, descontados os impedidos, em número correspondente aos dos cargos de direção, os titulares destes, exceto o de Corregedor-Geral, a ser indicado pelo Presidente eleito, submetida essa indicação à deliberação e aprovação do Tribunal Pleno.Parágrafo Primeiro – A habilitação para os cargos diretivos deverá ser feita por chapas fechadas, com registro prévio e apresentação

1 Art. 102 Os Tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos, por votação secreta, elegerão dentre seus Juízes mais antigos, em número correspondente ao dos cargos de direção, os titulares destes, com mandato por dois anos, proibida a reeleição. Quem tiver exercido quaisquer cargos de direção por quatro anos, ou o de Presidente, não figurará mais entre os elegíveis, até que se esgotem todos os nomes, na ordem de antiguidade. É obrigatória a aceitação do cargo, salvo recusa manifestada e aceita antes da eleição.Parágrafo único – O disposto neste artigo não se aplica ao Juiz eleito, para completar período de mandato inferior a um ano.

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de planos de gestão, devendo cada Tribunal regulamentar, em seu regimento interno, os respectivos pleitos.Parágrafo Segundo – Na falta de interessados a concorrer aos cargos diretivos, ficarão obrigados à aceitação destes os Desembargadores mais antigos, descontados os impedidos.Parágrafo Terceiro – Quem tiver exercido quaisquer dos cargos de direção elegíveis, por mais de 6 anos, fica impedido de concorrer a estes cargos novamente, não se aplicando esta vedação ao magistrado eleito para completar mandato inferior a 18 meses.

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Ricardo Pippi SchmidtJuiz de Direito no Rio Grande do Sul e integrante do Centro de Pesquisa Judiciário, Justiça e Sociedade da Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris)

Resumo

O estágio atual da sociedade da informação está a exigir mudanças no concurso para a magistratura, com estímulo à seleção dos candidatos mais aptos e não os de maior capacidade de memorização, com incentivo à formação integral dos novos juízes e valorização da participação das escolas de magistratura nesse processo. Também há que se preservar de espaços de autonomia dos tribunais estaduais para que possam adequar as regras instituídas nacionalmente às peculiaridades regionais. Nesse sentido são as propostas que seguem, objetivando alterar a Resolução no 75 do Conselho Nacional da Justiça (CNJ), de 12 de maio de 2009, que dispõe sobre os concursos públicos para o ingresso na carreira da magistratura em todos os ramos do Poder Judiciário nacional, com: 1. Alteração da primeira fase do concurso, para permitir consulta ao texto legal e aos enunciados de súmulas dos tribunais superiores na prova objetiva, afastando o atual critério que privilegia a memorização da lei e o pensamento acrítico; 2. Equiparação do

ADMINISTRAçãO JuDICIáRIA – SELEçãO E FORMAçãO DE JuízES – PROPOSTAS DE ALTERAçõES NA RESOLuçãO No 75 DO CONSELHO NACIONAL DE JuSTIçA

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Juiz Leigo ao Conciliador, para reconhecimento da sua atuação como atividade jurídica para os fins previstos no inciso I do art. 93 da Constituição Federal; 3. Incentivo à formação integral dos novos juízes, tornando obrigatório o curso de preparação na fase final do concurso; 4. Valorização da participação das escolas de magistratura no processo de formação dos novos juízes e preservação da autonomia dos tribunais.

Justificativa prévia às propostas: O concurso público ainda é o melhor modo de selecionar os candidatos tecnicamente mais qualificados para funções que exigem alto grau de profissionalismo. Ao mesmo tempo em que assegura o controle público, garante, em tese, o acesso dos melhores, ou, no mínimo, a exclusão dos piores. A tradição de ingresso na magistratura por concurso público no Brasil, à semelhança dos modelos europeus, garante qualidade técnica e corresponde a um procedimento republicano e democrático de seleção dos mais idôneos e capazes, a partir de critérios objetivos, conferindo-lhes maior independência em face dos demais poderes, ao menos no que tange ao primeiro grau de jurisdição. Todavia, há que se reconhecer que tal modelo, por si só, não assegura atuação dos juízes como agentes de poder e de transformação social. Condições institucionais adversas – potencializadas pela verticalização e pela concentração da autoridade nas cúpulas – têm transformado, com frequência, a magistratura em corpo de funcionários públicos onde prevalecem comportamentos ritualistas e apegados às velhas práticas, por vezes relegando os conteúdos e objetivos da função1. Tal situação se agrava diante da “incapacidade do Estado em regular, pela via formal da lei, as multifacetadas relações sociais e termina por colocar nas mãos do juiz o encargo de fazer a adaptação da ordem jurídica ao mundo real”, como destaca com lucidez Ruy Rosado de Aguiar Junior2.

Neste contexto, aumenta a responsabilidade dos juízes na tarefa de construir um sistema que mais se aproxime das expectativas da sociedade, para o que devem ser não só preparados, mas também corretamente selecionados dentre aqueles que “tenham condições de compreender a complexidade da sua ação,

1 Ver, a propósito, ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O Poder Judiciário, Crises, Acertos e Desacertos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.2 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. A função jurisdicional no mundo contemporâneo e o papel das escolas judiciais. Artigo baseado em palestra proferida na Escola Superior da Magistratura da Ajuris por ocasião da solenidade comemorativa dos seus 25 anos, em Porto Alegre, no dia 17 nov. 2005.

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de perceber que o direito tem suas raízes submersas em valores históricos, de olhar para a causa das causas que lhe são submetidas, de se preocupar com as circunstâncias preexistentes que determinaram o surgimento do litígio, de apreender as razões que amparam as pretensões das partes, de viver a realidade presente e de refletir sobre as consequências concretas de seu julgamento”3, conforme o mesmo autor.

Daí a necessidade de aferir, nesse processo de seleção, não só o preparo intelectual e técnico-jurídico dos candidatos a juiz, mas também se está ele em condições de agir com o indispensável equilíbrio, com a sensibilidade, independência, responsabilidade e com o comprometimento quando exigido na tarefa de julgador, pacificador de conflitos e também agente de poder.

A mudança do concurso para a magistratura, com estímulo à seleção dos candidatos mais aptos, não os de maior capacidade de memorização, com incentivo à formação integral dos novos juízes e valorização da participação das escolas de magistratura nesse processo, mostra-se impositiva, assim como impositiva é a preservação de espaços de autonomia dos tribunais estaduais para que possam adequar as regras instituídas nacionalmente às peculiaridades regionais. Nesse sentido são as propostas que seguem, objetivando alterar a Resolução no 75 do Conselho Nacional da Justiça, de 12 de maio de 2009, que dispõe sobre os concursos públicos para o ingresso na carreira da magistratura em todos os ramos do Poder Judiciário nacional.

1a Proposta

Ao vedar a consulta à legislação durante a prova objetiva, a Resolução 75 do CNJ perdeu grande oportunidade de inovar, afastando-se de um modelo ultrapassado que segue impondo aos candidatos inócua memorização do texto legal na primeira prova do concurso, exigência totalmente dissociada do contexto da sociedade da informação, que permite a todos, em segundos, acesso a todo o tipo de conhecimento. Ora, hoje qualquer juiz, em qualquer lugar deste país, do Oiapoque ao Chuí, tem acesso à Internet e aos bancos de dados do Congresso Nacional e dos tribunais, onde pode em instantes consultar a legislação recém-aprovada, as súmulas e jurisprudência mais atualizada. Pergunta-se, então: quem de nós ainda memoriza a lei? Qual o objetivo de impedir que os candidatos possam ter acesso ao menos ao texto

3 AGUIAR JUNIOR, op. Cit.

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da lei ao realizar a prova objetiva? Não estaremos aqui apenas reproduzindo práticas do passado, sem refletir sobre a sua adequação aos novos tempos? A primeira proposta diz, pois, com a mudança no regramento do concurso para a magistratura, com estímulo à seleção dos mais aptos, que não são necessariamente os de maior capacidade de memorização, o que exige a alteração do art. 34, II, da Resolução 75 do CNJ, de modo a permitir que, na prova objetiva, possam optar os tribunais em permitir aos candidatos ter acesso aos textos de lei não comentados.

2a Proposta

A Resolução 75 do CNJ considera o exercício da função de conciliador junto aos juizados especiais, por período mínimo de 16 (dezesseis) horas mensais, durante um ano, atividade jurídica para fins de contagem do prazo mínimo de 3 anos exigido no inciso I do art. 93 da CF. Não contemplou, todavia, o exercício da função de Juiz Leigo, de relevante atuação no sistema dos juizados especiais de vários estados da Federação, como é o caso do RS. Considerando que função de Juiz Leigo envolve prática de atos de instrução processual e decisões, ainda que sob supervisão e homologação dos juízes togados, é evidente a exigência de maior grau de conhecimento jurídico, experiência e responsabilidade comparativamente com o conciliador. Propõe-se, pois, a alteração do inciso IV do art. 59 da Resolução 75 do CNJ, para permitir que os tribunais estaduais considerem também a atuação do Juiz Leigo como atividade jurídica, para fins de contagem do prazo de que trata o inciso I do art. 93 da Constituição Federal.

3a Proposta

Ainda no que tange ao processo de seleção, mas já focando também na necessária preparação dos novos juízes para o exercício da sua difícil e complexa tarefa, há que se tornar obrigatório o estágio prático de quatro meses na fase final do certame, nos termos das Resoluções nos 1/2007 e 2/2009 e Instrução Normativa no 1/2008, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), já adotada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) por meio da Resolução no 743/2008 do Conselho da Magistratura, por tratar-se de medida que pode viabilizar uma seleção mais adequada às especificidades da carreira da magistratura, aperfeiçoando o sistema de concurso até então vigente. Essa fase final do concurso pode,

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realmente, converter-se em momento de preparação e também de aferição acerca da formação integral do candidato e de seu comprometimento com a função jurisdicional que irá desempenhar. Até porque, a legitimidade do Judiciário não pode ser analisada, abstratamente, apenas na perspectiva da estrutura do modelo adotado, mas também no modo concreto como opera o sistema judicial. A forma de seleção e formação dos novos juízes, nesse contexto, assume enorme importância. A terceira proposta, portanto, é de alteração da Resolução 75 do CNJ, tornando impositivo o Curso de Formação para Ingresso na Carreira da Magistratura como etapa obrigatória do Concurso.

4a Proposta

Por fim, injustificável a alteração levada a efeito pelo CNJ, suprimindo o período de participação dos candidatos em cursos de preparação ministrados pelas escolas de magistratura dos estados, desde que integralmente concluídos com aprovação, como atividade jurídica para fins de contagem do tempo mínimo de exercício da atividade exigido no art. 93, I, da CF. De fato, não se justifica a exclusão do período de estudos nas escolas de magistratura do conceito de atividade jurídica, à vista da excelência da formação voltada para a preparação específica à função judicante desenvolvida por escolas como a do Rio Grande do Sul, com uma tradição de ensino reconhecida nacionalmente, e que há mais de três décadas forma gerações de magistrados, por meio de atividades não só teóricas como práticas. Não se concebe que os candidatos ao concurso não possam optar pela formação específica à carreira da magistratura, proporcionada pelos cursos desenvolvidos pelas respectivas escolas, para fins de cômputo do período respectivo como atividade jurídica. Evidente que a aprovação nesses cursos exige muito mais, em termos de preparação dos operadores, do que a singela comprovação da “prática anual de, no mínimo, cinco (5) atos privativos de advogados, judiciais e/ou extrajudiciais” prevista na citada Resolução do CNJ como suficiente à comprovação da atividade jurídica. Ademais, não se pode perder de vista a importância da aculturação e socialização proporcionada pelas escolas judiciais, permitindo que os novos juízes bem compreendam a importância da função judicante e compartilhem, desde cedo, dos objetivos institucionais do Poder Judiciário. A quarta proposta, portanto, envolve

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a necessária alteração do art. 59 da Resolução 75 do CNJ, para que os tribunais possam considerar o período de participação dos candidatos em cursos de preparação ministrados pelas escolas de magistratura, desde que integralmente concluídos com aprovação, como atividade jurídica para fins de contagem do tempo mínimo de exercício desta atividade exigido no art. 93, I, da CF.

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Diógenes VicenteDesembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

ALTERAR O ART. 103-B DA CONSTITuIçãO FEDERAL, QuANTO à COMPOSIçãO E àS ATRIBuIçõES DO CONSELHO NACIONAL DE JuSTIçA

O art. 103-B da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de dezenove membros com mais de trinta e cinco anos e menos de sessenta e seis anos de idade, com mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo:............ IV – três desembargadores de Tribunal de Justiça, indicados pelo Supremo Tribunal Federal; V – três juízes estaduais, indicados pelo Supremo Tribunal Federal;..............§ 4o ...........III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra os seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, em caso de comprovada omissão e sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em

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curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;.....§ 8° - Ao CNJ é vedado conhecer de matéria jurisdicional.

Art. 2° Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.

1. Justificativa

A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados funciona junto ao Superior Tribunal de Justiça nos termos do artigo 105, parágrafo único, inciso I, da Constituiição da República, cabendo-lhe, dentre outras funções, regulamentar os cursos oficiais para o ingresso e promoção na carreira. Conta com representantes das associações de classe conforme a Resolução nº 3, de 30 de novembro de 2006, da Presidência do Superior Tribunal de Justiça (um indicado pela AMB e outro indicado pela AJUFE). Não conta, porém, com os representantes das próprias escolas cujas atividades regula. A participação destes representantes é relevante à realidade vivenciada pelas escolas e para as suas reivindicações. A proposição é de que se gestione para a alteração da Resolução nº 3, com vistas a que representantes das Escolas sejam eleitos entre os Diretores das Escolas em exercício, assim prestigiando-as e prestigiando a nossa Escola da AJURIS, trazendo maior legitimidade à ENFAM.

a) Pela atual composição do Conselho Nacional de Justiça, estabelecida pela Emenda Constitucional n° 45/2004, são 15 os seus membros, dos quais, em igualdade de representação com todos os demais integrantes, há um Desembargador de Tribunal de Justiça e um juiz estadual.

Este número não reflete a proporcionalidade que deveria existir, em decorrência da organização da Justiça Brasileira. Para se ter uma idéia do exposto, segundo dados do próprio CNJ1, há 10.396 juízes estaduais, 1.346 juízes federais e 2.892 juízes do trabalho. Na composição atual não é respeitada a proporcionalidade, pois há um número idêntico de representantes das justiças.

Acresce dizer que a justiça dos estados tem o maior volume de demanda, com enorme sobrecarga de trabalho.

1 Informações do “Justiça em números”, 4ª edição. Fonte: www.cnj.gov.br

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b) É necessário vincular-se a reclamação de que trata o § 4o, inciso III, à comprovada omissão do Tribunal de origem.

Viola o princípio federativo o conhecimento de reclamação pelo Conselho Nacional de Justiça, sem prévia submissão da matéria aos órgãos correicionais e disciplinares dos Tribunais Competentes.

A condenável prática do acesso “per saltum” ao CNJ implica o enfraquecimento do Judiciário. Constitui frontal infringência à autonomia dos Tribunais e estimula o oferecimento de denúncias infundadas.

Cumpre lembrar que já foi apregoado, pelo Ministro Cesar Asfor Rocha, atual Presidente do STJ, em palestra no TJRS, quando no exercício da Corregedoria Nacional da Justiça e na Presidência do CNJ, que o CNJ não tomava providências em relação aos magistrados, salvo demonstrada a omissão dos órgãos correicionais locais. Todavia, não há regra que imponha essa rotina, podendo, portanto, vir a ser alterada essa prática do CNJ. Daí a necessidade de emendar a CF.

c) O acréscimo do § 8o impõe que se resguarde a jurisdição e os recursos próprios e inerentes às decisões judiciais, possibilitando a liberdade, a autonomia e a independência do magistrado no seu mister de prestar jurisdição, evitando-se indevidas, ilegais e inconstitucionais ingerências, em especial do CNJ.

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Maria Isabel Pereira da CostaDiretora do Departamento Extraordinário de Previdência dos Magistrados e

Pensionistas da Associação dos Juízes do Rio Grande Do Sul (Ajuris)

APOSENTADORIAS E PENSõES DO PODER JuDICIáRIO:

INTEGRALIDADE E PARIDADE

Resumo

As aposentadorias e pensões da magistratura devem ser integrais e em paridade com os vencimentos dos magistrados em atividade para manter as garantias e prerrogativas constitucionais do Poder Judiciário, o equilíbrio profissional, social, familiar e pessoal do Juiz e os princípios do Estado Democrático de Direito.

1. Fundamentação

As prerrogativas da magistratura servem à sociedade estruturada sob a égide do Estado Democrático de Direito e não à pessoa do magistrado.

As garantias da inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos e proventos se destinam à estabilidade necessária ao exercício da judicatura para garantir a liberdade e independência funcional do julgador diante dos conflitos sociais que lhe são apresentados.

As garantias da magistratura não podem ser temporárias, isto é, persistirem apenas durante o período em que o Juiz esteja em atividade efetiva da jurisdição, por isso o Poder Constituinte estabeleceu a garantia da vitaliciedade. A razão da existência desta garantia, vitaliciedade, é o fato de ser necessária a estabilidade permanente do julgador, pois a sua segurança, para ser plena, limitada apenas pelos princípios constitucionais, não pode ser apenas pelo período em que está em atividade.

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Fosse assim, as pressões de quem tem seus interesses contrariados poderiam ser exercidas após a aposentadoria e intimidariam o Juiz, em função da insegurança a que estaria exposto a tempo certo ou por uma questão de tempo.

Por sua vez, a garantia da irredutibilidade dos vencimentos e proventos também foi estabelecida pelo Poder Constituinte em face da insegurança a qual estaria sujeito o Juiz e a sua família do ponto de vista da subsistência digna, inclusive na inatividade.

A função jurisdicional exige do Magistrado exclusividade, não permitindo durante a judicatura o exercício de qualquer outra atividade, a não ser a atuação como professor em ensino superior em um único cargo e com horário limitado. Assim, não existe nenhuma possibilidade de o Magistrado buscar outra forma de subsistência para a sua velhice ou para a sua família na sua ausência. Em razão disso, se não for mantida a integralidade e paridade para os proventos e pensões não haverá garantia para a magistratura.

Em assim sendo, descaracterizado fica o Estado Democrático de Direito, pois o Poder Judiciário ficará sujeito, no seu mister constitucional, a sofrer pressões dos demais poderes, dificultando sobremaneira o controle da legalidade dos atos políticos do próprio Estado que causem lesões individuais e/ou coletivas. Mas também as pressões podem vir de outras instituições, não apenas dos demais poderes. Podem vir de pessoas jurídicas e/ou físicas das mais diferentes formas, em face de contrariedade a qualquer de seus interesses no exercício da jurisdição.

De outra parte, em sendo o Magistrado um ser humano, depende da existência de pilares de sustentação psíquica, entre os quais destacamos a sobrevivência, a preservação da espécie, a dignidade e a força de autodeterminação.

Todos esses pilares estão de alguma forma apoiados na estabilidade econômica.

Desse modo, é de suma importância para o desenvolvimento psicológico sadio da pessoa a manutenção do equilíbrio na sua sustentação psicoemocional para não acarretar prejuízos no seu comportamento profissional, social, familiar e pessoal.

O perfil de pessoa exigido e estimulado para a carreira da magistratura é o de uma pessoa organizada e segura. O exercício da judicatura requer estabilidade emocional, sobriedade e honestidade, dentre outros.

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Como não é possível, nem desejado, o enriquecimento durante o exercício da função jurisdicional, o único meio de manter a dignidade do Magistrado e de sua família é uma aposentadoria e um pensionamento com o mesmo ganho e a mesma dignidade, equiparados aos rendimentos de quem se mantém em atividade.

O Estado Democrático de Direito exige uma magistratura digna, respeitada e forte. Sem esse pilar a democracia desmorona, dando lugar à instalação do Estado de força, não de Direito.

2. Conclusão ou proposição

As aposentadorias dos magistrados devem ter proventos integrais e paritários com os vencimentos dos magistrados em atividade, devendo ser concedidas, revisadas e pagas pelos respectivos tribunais, assegurando-se a paridade das pensões, mediante o ressarcimento dos valores pela Previdência Social e, observado no que couber, o disposto no art. 40 da Constituição Federal.

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José Luiz Leal VieiraCentro de Pesquisa Judiciário, Justiça e Sociedade da Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris)

ASSESSORIAS DE IMPRENSA àS uNIDADES JuDICIáRIAS

Resumo

O Judiciário é desconhecido pela sociedade e, consequentemente, ostenta uma imagem negativa de um modo geral. Por isso, há a necessidade de um estreitamento na relação do Judiciário com a comunidade objetivando corrigir essas mazelas. Uma assessoria de imprensa qualificada constitui um valioso instrumento de aproximação do Judiciário junto à sociedade. Em face das dificuldades orçamentárias sempre presentes nas diversas esferas do Judiciário brasileiro, a inviabilizar a contratação de profissionais, a tese proposta é a de que os tribunais estabeleçam convênios com faculdades de jornalismo e relações públicas, permitindo a contratação de estagiários desses cursos que, com o acompanhamento de um professor responsável, exerçam a atividade de assessoria de imprensa de todas as unidades judiciárias.

1. Fundamentação

O Poder Judiciário brasileiro, diante da sua responsabilidade pela pacificação dos conflitos sociais e a garantia dos direitos, exerce uma relevante função no Estado de Direito e, à medida em que se caracteriza como o verdadeiro guardião da Constituição da República e de todo o ordenamento jurídico brasileiro, fundamental se entremostra que a sociedade o conheça. No entanto, a realidade é outra.

O Judiciário não é conhecido pela sociedade que, inclusive, considera como seus integrantes de outras instituições. Com efeito, considerando o desconhecimento que grassa acerca da função do Judiciário, da sua estrutura funcional e material, da demanda existente e das diversas ações dos magistra-

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dos, o resultado natural é a existência de uma imagem negativa a seu respeito. Como bem assinala José Renato Nalini:

O Judiciário não tem sabido dialogar com os demais poderes do Estado, nem com a sociedade, nem com a mídia. Resulta disso a aura de incompreensão com que se vê ornado neste início de século. O fenômeno não é brasileiro. Mas é trágico no Brasil, país de iníqua distribuição de renda, onde não se tem conseguido resgatar a dívida social para com milhões de excluídos. (NALINI, José Renato. A rebelião da toga. Campinas: Millenium, 2006, p. 141)

Recentemente, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) realizou uma pesquisa que confirmou o que intuitivamente sempre se soube: a população brasileira não conhece o Judiciário. Por meio da pesquisa denominada “Barômetro de Confiança nas Instituições Brasileiras” concluiu-se que:

Apenas 8% dos entrevistados afirmam conhecer bem o funcionamento do Poder Judiciário. Um contingente maior, 45%, “conhece mais ou menos”, e outros 46% “conhecem só de ouvir falar” ou “não conhecem”. O conhecimento cresce no estrato com instrução universitária, chegando a 26% que “conhecem bem”. (http://www.amb.com.br/portal/docs/pesquisa/barometro.pdf )

A sua imagem também não é das melhores, porquanto essa mesma pesquisa colheu como média da nota atribuída ao Judiciário pelos entrevistados a de 6,1, ficando atrás das Forças Armadas, Igreja, Polícia Federal, Imprensa e do Ministério Público.

Nesse contexto, surge a necessidade de aproximação do Judiciário da comunidade, visando a torná-lo conhecido e sua imagem melhorada. Uma competente assessoria de imprensa tem o condão de viabilizar esse estreitamento, transformando a linguagem jurídica em uma linguagem popular, otimizando a relação Judiciário e Imprensa, mostrando a carga de trabalho existente, e as diversas ações desenvolvidas pelos juízes, as quais não são conhecidas pela população.

É certo que a maioria dos tribunais brasileiros possui suas respectivas assessorias de imprensa. Todavia, essas assessorias pouco conseguem fazer em relação às unidades judiciárias, levando em conta o seu elevado número. Portanto, surge a necessidade de cada unidade judiciária possuir sua respectiva

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assessoria de imprensa, potencializando a imagem do Judiciário em todos os rincões do Brasil.

Por outro lado, não menos certo que os tribunais enfrentam dificuldades orçamentárias e carências de servidores a obstaculizar a contratação de profissionais para todas as unidades judiciárias ou, no mínimo, para a maior parte delas.

Daí que surge a possibilidade de esse serviço ser realizado por estagiários dos cursos de Jornalismo e Relações Públicas, supervisionados por professores. Atualmente, somente estagiários do curso do Direito são contratados, e a experiência demonstra que essa mão de obra viabiliza ótimo retorno para o Judiciário.

2. Proposta

Sugerir que os tribunais brasileiros ofereçam a possibilidade de criação de convênios de estágios remunerados com as faculdades de Jornalismo e Relações Públicas, viabilizando a estruturação de assessorias de imprensa em todas as unidades judiciárias brasileiras, visando a aproximação do Judiciário da comunidade para que ele seja conhecido e sua imagem melhorada.

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José Barroso FilhoJustiça Militar da união (Amajun)

BARCOS DA JuSTIçA: CIDADANIA EFETIVA

NA REGIãO AMAzôNICA

Resumo

A falta de acesso à Justiça é inconciliável com o princípio da dignidade humana, sendo um severo limitador quanto ao exercício da igualdade e da liberdade. Dadas as imensas distâncias e dificuldades de transporte, não é possível esperar que o cidadão que mora nos distritos (muitas vezes distantes dois ou três dias da sede da comarca) vá até o Fórum demandar os serviços de justiça. Um habitante da floresta por vezes trabalha 30, 40 anos e quando não tem mais forças para erguer uma enxada, infelizmente, vai passar necessidades pois não pode pleitear um benefício previdenciário; vez que sequer tem o registro de nascimento. O Estado precisa promover o encontro deste caboclo com a efetiva cidadania e o Projeto Barcos da Justiça se propõe a ser mais um instrumento nesta empreitada.

1. Introdução

Apesar dos avanços evidentes nos campos educacional e das comunicações, uma parcela significativa da população amazonense permanece à margem, desprovida das garantias sociais e do acesso à justiça, principalmente nas regiões mais isoladas, no interior da floresta, nos rios e lagos longínquos, perdidos na imensidão da geografia amazônica.

Necessário levar esperança e cidadania ao caboclo amazônico – sofrido, desconfiado de tanto ser explorado, valente e disposto a alcançar a sua parcela

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de “felicidade”, nas exatas palavras do escritor ÁLVARO MAIA, no seu romance “Beiradão”, há mais de meio século:

(...) Fala-se ainda desta gente que vive sem esmorecer e cresce sem gemer. Certos atos, aparentemente desusados, têm a desculpa do ambiente. Aqui não há polícia, não há remédios, não há professores, não há médicos.

Neste diapasão surge o projeto Barcos da Justiça

2. Fundamentação

O projeto Barcos da Justiça visa o acesso dos cidadãos residentes nas comunidades isoladas à justiça e possibilitar o gozo dos benefícios decorrentes da inclusão social.

Os rios são as estradas na Amazônia, assim, o acesso aos ribeirinhos será através de barcos, os Barcos da Justiça. Estes veículos de cidadania poderão ser compartilhados pela Justiça Estadual, pela Justiça Federal, pela Justiça do Trabalho e pela Justiça Eleitoral.

Basicamente, o projeto objetiva oferecer aos habitantes das comunidades serviços judiciários em geral, especialmente:

• registro civil tardio;• guarda consensual;• acordo alimentício;• casamentos;• pedidos na área previdenciária; e• procedimentos de jurisdição voluntária.Serão organizadas caravanas utilizando os Barcos da Justiça e percorrerão

os rios da Amazônia, observado o regime das águas.Tomemos o exemplo do Estado do Amazonas. Excetuando Manaus, há

61 municípios no interior do Amazonas que serão abrangidos pelo projeto. O custo por município está orçado em 20 mil reais. Destes, a Petrobras comprometeu-se a doar 40 mil litros de combustível por mês, situação que reduz os custos para 8 mil reais por município.

Cada viagem dura cerca de um mês e abrangerá vários municípios.Os gastos remanescentes dizem respeito à alimentação e material de expediente.Assim, o orçamento do projeto é de 500 mil reais por ano, no tocante aos

municípios do Estado do Amazonas.

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Os recursos serão repassados diretamente aos municípios envolvidos, pois será muito mais barato efetuar as compras na região do que centralizar tudo em Manaus e depois transportar para os locais de atendimento.

O Governo Federal lançou em agosto de 2007, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). O programa integra projetos de segurança com ações sociais.

Conforme o Ministro Tarso Genro (Ministro da Justiça):As ações do PRONASCI visam à valorização dos profissionais da área da segurança, à ressocialização de pessoas com penas restritivas de liberdade, à promoção do acesso de jovens e adolescentes às políticas sociais do governo, à promoção do acesso à Justiça em territórios de descoesão social e à intensificação das medidas de enfrentamento ao crime organizado e à corrupção policial.

É justamente nesse novo conceito multidisciplinar que vislumbramos a oportunidade de perenizar o projeto da Justiça Itinerante, os Barcos da Justiça.

O Tribunal de Justiça manteria o projeto em funcionamento com o apoio da Petrobras (doação do combustível – cerca de 60 a 70% dos custos) e o Ministério da Justiça repassaria os recursos (cerca de 8 mil reais por município) diretamente aos municípios.

Valiosa a exortação do Ministro César Asfor Rocha (Superior Tribunal de Justiça):

Nosso maior sonho é ter um Judiciário brasileiro que possa distribuir justiça não como uma iguaria de festa, mas como o pão nosso de cada dia.

Ante as dificuldades logísticas vivenciadas, é necessário o estabelecimento de parcerias de modo a cidadãos que moram no interior da Amazônia.

Nas palavras do Ministro Ubiratan Aguiar (Tribunal de Contas da União):Serei ferrenho defensor da construção de pontes institucionais. Solitários, somos todos pequenos e impotentes. Solidários, multiplicamos nossas ações e adquirimos condições de exponencializar resultados.

Sejamos todos artífices destas “pontes institucionais”.Esta tese é uma homenagem a magistrados como Luiz Cláudio Cabral

Chaves (AM) e Sueli Pini (AP) dentre tantos outros que dedicam as suas vidas à efetivação da cidadania pelos rios e florestas da região amazônica.

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3. Proposições

3.1. A falta de acesso à Justiça é inconciliável com o princípio da dignidade humana, sendo um severo limitador quanto ao exercício da igualdade e da liberdade.

3.2. Na região amazônica, dadas as imensas distâncias e dificuldades de transporte, o Estado precisa promover o encontro deste caboclo com a efetiva cidadania e o Projeto Barcos da Justiça se propõe a ser mais um instrumento nesta empreitada.

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A jurisdição é produto do fortalecimento e aperfeiçoamento do Estado de Direito, fruto da sociedade organizada, marco de transposição da justiça privada para a justiça pública. Trata-se de um dos meios de controle social, em que o Estado exerce uma função pacificadora, solucionando os conflitos interindividuais. Todavia, o Estado possui o monopólio da jurisdição, mas não o monopólio da justiça.

Nos últimos anos, tem-se dado espaço a outros meios eficazes de pacificação social, que a doutrina considera como alternativos ou diversos da tradicional jurisdição estatal. Não se trata de uma inovação, mas de um retorno às origens. Vale lembrar que antes da afirmação do Estado com o exercício da função jurisdicional a sociedade já se valia de outros meios anteriores para resolução dos conflitos. Podemos assim citar a autocomposição, a arbitragem e a mediação, como pré-existentes à organização estatal.

A necessidade de retorno à utilização destes meios, considerados característicos das sociedades primitivas, ganhou força com as debilidades, as dificuldades, a morosidade, os excessos de formalismo, a insatisfação e as inoperâncias encontradas na jurisdição estatal.

Na atualidade, as questões jurídicas se deparam com processos de constante discussão, muitas vezes demorados devido aos inúmeros recursos previstos na lei processual. Por conta disso, a sociedade reclama por soluções mais rápidas e efetivas de seus problemas e a atividade jurisdicional típica não mais se solidariza

Deisy Cristhian Lorena de Oliveira FerrazAssociação dos Magistrados de Rondônia – Ameron

CâMARAS DE CONCILIAçãO – uMA PROPOSTA CONTRA A MOROSIDADE DO PODER

JuDICIáRIO

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a estes anseios sociais. Neste contexto, destaca-se uma forte tendência na busca de resoluções alternativas para as demandas jurídicas, já que o Poder Judiciário encontra-se impossibilitado de solucionar, em curto espaço de tempo, todos os problemas que lhe são apresentados. Daí a necessidade da valorização da conciliação como forma de prevenção de conflito.

É nesse contexto que a conciliação judicial se revela como importante papel na esfera da prevenção de conflitos. Trata-se de um procedimento que visa a solução jurídica diante da satisfação de todas as partes, por meio de uma proposta entabulada por elas mesmas, contando com a participação de um conciliador que intermediará a efetivação deste processo.

Partindo dessa realidade, a proposta a ser apresentada neste trabalho está pautada na necessidade de se aprimorar e aperfeiçoar o mecanismo da conciliação judicial já abraçado pela legislação pátria, como meio de prevenção do conflito e da própria jurisdição em sua atividade ampla e complexa, proporcionando um maior êxito na resolução da lide sociológica.

Para consecução deste fim, acreditamos que a conciliação no processo civil da Justiça Comum, se bem conduzida, pode alcançar resultados ainda não atingidos pela falta de estruturação do mecanismo e adoção de suas técnicas no processo judicial. Aposta-se no aperfeiçoamento da técnica conciliatória mediante sua aplicação em momento processual adequado e através de profissional tecnicamente qualificado para o desempenho da atividade em sua essência.

Propõe-se, portanto, a criação de câmaras de conciliação auxiliares às varas cíveis da Justiça Estadual, com vistas à realização concentrada da atividade conciliatória no processo judicial. Trata-se, sumariamente, de um departamento concentrado de conciliação, com vistas ao auxílio do magistrado na prática conciliatória nos processos judiciais.

Destaca-se que a finalidade precípua da adoção dessa proposta é proporcionar, através dos fundamentos legais já existentes (CPC, art. 125, IV), a melhor utilização da conciliação no âmbito da Justiça Comum, proporcionando agilidade e efetividade na prestação jurisdicional, prevenção do conflito e da jurisdição no desenvolvimento amplo de sua atividade, buscando a resolução da lide sociológica, por vezes não alcançada com a sentença.

De acordo com a legislação pátria, poderá ser objeto da prática conciliatória, concentrada através das câmaras de conciliação, toda demanda judicial que envolva direitos patrimoniais privados (art. 841 do Código Civil) e assim permitam às partes dispor de seus direitos da forma que lhe convier em busca do acordo.

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A criação de câmaras de conciliação como meio de prevenção de conflitos e de desenvolvimento do processo em sua amplitude permitirá ao Judiciário a experimentação de inúmeras vantagens no exercício da jurisdição: resolução da lide sociológica; desafogamento das varas e dos tribunais; celeridade da prestação jurisdicional; redução dos custos processuais; prevenção dos conflitos; redução do tempo da pauta de audiência do juiz; ampliação do tempo para o magistrado despachar e sentenciar ações mais complexas e/ou de direitos indisponíveis; diminuição das tarefas nos cartórios das varas; redução do tempo médio de tramitação dos processos; redução do tempo médio do magistrado para prolação de sentenças e designação de audiências.

Tais vantagens são alcançadas considerando que inquestionavelmente a conciliação atinge com maior êxito a resolução da lide sociológica, ou seja, o conflito em todas as suas proporções e amplitude, permitindo a continuidade das relações entre os envolvidos e prevenindo novos conflitos. Uma atividade conciliatória bem aplicada, com tempo e profissionais (conciliadores) capacitados, dará abertura a um maior número de resolução de processos por autocomposição, o que permitirá o desafogamento do Judiciário, reduzindo o número de lides que são levadas a efeito até o julgamento final, por sentença.

A conciliação pode prevenir não só o exercício de uma atividade jurisdicional ampla para a solução de um litígio, mas evitar que outros surjam em virtude do mesmo fato, em razão da insatisfação dos envolvidos ou do próprio descumprimento da decisão judicial proferida. A ampliação da efetividade da atividade conciliatória nas lides judiciárias permitirá, não só a deflação processual, mas também maior agilidade e rapidez aos processos em geral.

Conclui-se, pois, que paralelamente ao exercício da atividade jurisdicional típica, cumpre ao Poder Judiciário também atuar de forma preventiva, mediante a utilização de mecanismos que rechacem as lides em seu nascedouro. Num país onde se discute a “crise do Poder Judiciário” calcada na morosidade na tramitação dos processos, em especial na Justiça Estadual Comum, e na dessintonia do direito com a realidade social, à vista da sobrecarga de serviços pelos juízes, vislumbra-se na análise da atividade preventiva do Poder Judiciário um meio de evitar o abarrotamento de processos nos Tribunais.

Proposição

Diante da necessidade de se proporcionar maior brevidade na prestação jurisdicional propõe-se a criação de câmaras de conciliação nas comarcas da Justiça Estadual.

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José Barroso FilhoJustiça Militar da união (Amajum)

CENTROS INTEGRADOS DE CIDADANIA

Resumo

Na busca do “nosso ambiente” de desenvolvimento, igualmente ilícita é a ação lesiva ao meio ambiente, como a inação, quando possível a exploração ambiental sustentável. Considera-se o impacto ambiental negativo da falta de desenvolvimento, que resulta na manutenção do nível de miséria, desemprego, desnutrição, claras violações aos direitos fundamentais. Neste diapasão, a falta de acesso à Justiça é inconciliável com o princípio da dignidade humana, sendo um severo limitador quanto ao exercício da igualdade e da liberdade. Os centros integrados de cidadania congregam uma sinergia de ações de modo a implementar condições de uma cidadania efetiva e “desenvolver” o direito fundamental à esperança.

1. Introdução

De logo, convido a compartilharmos a inquietação com o diálogo abaixo:Em um município pobre da nossa região amazônica, quando acompanhava, como observador, a operação Timbó III – exercício combinado entre a Marinha, o Exército e a Aeronáutica – tive a oportunidade de conversar com uma garota de 16 anos de idade. Primeiro perguntei sobre os estudos, ela respondeu: não ia muito bem. Apesar de estar na 2a série do 2o grau, ela não sabia escrever direito... Perguntei sobre o trabalho: ela disse que na região não havia trabalho... No início da tarde, quase todos os jovens ficavam olhando o horizonte... “um olhar perdido”. Perguntei sobre namoro – na tentativa de aliviar o clima – ela falou que os meninos de 12, 13 anos já se envolviam

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com drogas ou bebida e não era essa a vida que ela queria... Por fim, perguntei: O que você espera da vida? Tristonha, respondeu: NADA!

Faz lembrar a expressão de EDUARDO GALEANO: “Te convence de que servidão é um destino e a impotência, a tua natureza: te convence de que não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser”. Associo a imagem desta menina a de um pequeno bonsai, em cuja semente há o potencial de uma árvore frondosa, porém, pelas limitações ambientais, permanece contida em um diminuto vaso.

“É preciso educar para a esperança” (ZILDA ARNS), e esta tarefa é necessariamente multidisciplinar.

2. Fundamentação

De tiros-de-guerra a centros integrados de cidadania

2.1. Formação cívicaO objetivo dos tiros-de-guerra (TG) é formar reservistas de 2a categoria aptos

ao desempenho de tarefas no contexto da Defesa Territorial e Defesa Civil. O TG é um bom exemplo de como é possível conciliar a prestação do serviço militar obrigatório com as atividades civis dos jovens convocados. Os alunos dos TG participam de várias ações comunitárias. A ideia é que em cada município seja instalado um Tiro-de-Guerra, de modo que, nessa ação conjunta entre o EB e o respectivo município, a juventude possa receber noções básicas de civismo de modo a habilitá-lo a ser um cidadão prestante.

2.2. Acesso à Saúde (Médico e Dentista)Vale ressaltar, em cada TG da região amazônica, em regiões carentes,

existe um médico e um dentista, ambos prestando serviço militar obrigatório. Estes militares atenderão os participantes do TG, mas também poderão atender as comunidades da região. Infelizmente, o número de TG na Amazônia é reduzido, apesar das vantagens evidentes, mormente no tocante à área de saúde, pois os médicos e dentistas não se fixam nos municípios do interior e com o TG sempre haverá uma assistência médica para a população. Pois bem, cabe ao Município fornecer e manter o local onde será instalado o TG, porém, nossos municípios, em sua grande maioria, não têm condições de fazê-lo. Como solução, eu proponho a confecção de convênios de cooperação entre a União, o Estado, os municípios e o Comando Militar da Amazônia para que o Estado possa assumir as despesas da

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parte física do Centro Integrado de Cidadania, pois todo o restante, material e pessoal, será de responsabilidade do Exército brasileiro.

2.3. Inclusão digital

Nestes centros integrados de cidadania poderiam ser instalados infocentros visando promover a inclusão digital. Os infocentros são centros públicos de acesso à informática, ou seja, locais de livre acesso onde a população pode utilizar os computadores para fazer trabalhos, conhecer diversos softwares, navegar e pesquisar na internet. Tudo com a utilização do Sistema GESAC (Governo Eletrônico). O objetivo é possibilitar ao cidadão, especialmente o de baixa renda, o livre acesso às tecnologias de informação e comunicação.

2.4. Acesso à EducaçãoNos rincões da nossa Amazônia, nas localidades mais afastadas, por vezes,

sequer existe escola ou professores. Surge, pois, a necessidade de utilizarmos novas tecnologias para que a educação cumpra a sua missão emancipatória, no sentir de PAULO FREIRE. Nas comunidades mais afastadas, mormente naquelas próximas aos pelotões especiais de fronteira, a docência é exercida pelos militares, por suas esposas e por professores destacados pela Secretaria Estadual de Educação. As dificuldades são inúmeras: falta de unidade metodológica, deficiência de material didático, inexistência de merenda escolar e de bibliotecas. O Ensino à Distância (EAD) pode ser uma grande opção para que cheguemos de forma efetiva às comunidades mais longínquas. Trago como sugestão, o sistema EAD do Colégio Militar de Manaus (CMM), dada a sua excelência, praticidade e baixo custo. O projeto de EAD do CMM tem por objetivo oferecer uma educação de qualidade a jovens de todo o País e também aos filhos e dependentes de militares que sofrem as consequências educacionais advindas de constantes movimentações. O apoio local ao aluno é prestado por um orientador, uma pessoa devidamente escolhida na comunidade. A proposta é ampliar o campo de abrangência do projeto para atender as populações civis que vivem próximas às unidades militares e aos infocentros. A iniciativa pode ser aperfeiçoada com a implementação de telessalas nas quais seria transmitido o material didático fornecido pela Fundação Roberto Marinho.

2.5. TelemedicinaNa região Amazônica, marcada pelas grandes extensões territoriais, pela

dificuldade de fixação de profissionais e pela estrutura deficiente, a utilização da

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telemedicina pode ser um fator contribuinte para a melhoria da qualidade de vida do nosso povo. A ferramenta é aplicável a todos os campos médicos, incluindo cirurgia. Dessa forma, obtém-se um ganho de eficiência nos diagnósticos, bem como, há um incremento na eficiência e qualidade dos serviços.

2.6. Apoio técnico à agriculturaAplicar os conhecimentos dos concludentes das escolas agrotécnicas federais

da região amazônica como sargentos técnicos temporários junto a organizações militares. Esta ação estimulará o desenvolvimento tecnológico, a capacitação de pessoal, o aprimoramento logístico e a produção regional de gêneros alimentícios visando o autossustento das OM’s e das comunidades nativas/indígenas.

2.7. Acesso à JustiçaNos centros integrados de didadania poderá ser instalado um posto de

atendimento remoto da Justiça. Relembrando que em cada organização militar na Amazônia poderá ser instalado um Centro Integrado de Cidadania (CIC), situação que demonstra a grande capilaridade e abrangência da proposta. Pois bem, em cada CIC um militar poderá ser destacado para a orientação e recepção de documentos e da petição inicial para futuramente os interessados comparecerem à audiência perante um Juiz. As Forças Armadas fornecerão o transporte da equipe judiciária (juiz, representante do Ministério Público, defensor e servidores) para a realização destas audiências. Por certo, com a provável concessão de benefícios previdenciários, a renda média da localidade iria aumentar significativamente, o que seria um claro fator de desenvolvimento regional.

As grandes distâncias na Amazônia ocasionam um grande problema quanto ao cumprimento de cartas precatórias. Desde que não haja condições materiais para o cumprimento da diligência deprecada pelo oficial de justiça, o Juiz deprecado pode nomear um militar como oficial de justiça “ad hoc” e remeter a precatória para o CIC. Há de se observar o limite territorial das operações em cada Unidade Militar.

3. Conclusão e proposição

Os centros integrados de cidadania buscam a efetivação da cidadania ante as dificuldades logísticas vivenciadas na região amazônica que desafiam à adoção de ações que, literalmente, aproximem o cidadão do Poder Público, de modo a desenvolver uma relação de pertinência do cidadão com o Estado brasileiro. Falamos do direito fundamental à ESPERANÇA de um futuro melhor.

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Resumo

Concretização do direito humano de acesso à justiça. Com a consagração do princípio da igualdade material, o tema passou a ser investigado sob o prisma da possibilidade concreta de as populações terem acesso à justiça. Em decorrência de sua caracterização como direito social, defende-se a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas e de ações afirmativas de parte do Estado e da sociedade à garantia do acesso material da humanidade a mecanismos de pacificação social. Apregoa-se, então, a valorização das ferramentas consensuais de resolução de conflitos, com a utilização dos recursos humanos e materiais existentes nas comunidades, reservando-se a jurisdição formal como instrumento subsidiário e complementar à realização da justiça.

1. Fundamentação

O direito humano de acesso à justiça constitui-se em tema da mais alta relevância na atualidade, seja em razão da sua extensão, seja em decorrência da necessidade de sua afirmação. Garantir-se concretude a esse direito

Marcelo Maliizia CabralAssociação dos Juízes do Rio Grande do Sul – Centro de Pesquisas Justiça e Sociedade, órgão da Escola Superior da Magistratura do RS

CONCRETIzAçãO DO DIREITO HuMANO DE ACESSO à JuSTIçA: IMPERATIVO éTICO DO ESTADO DEMOCRáTICO DE DIREITO

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implica, por princípio, ofertar-se informação precisa à humanidade quanto aos direitos que titulariza, os quais, em regra, são desconhecidos por dezenas de milhões de brasileiros. Um grande esforço de informação e de educação há de produzir seres humanos conscientes da verdadeira dimensão que a Carta Política outorgou aos povos que ocupam o território nacional.

Ao lado da consciência das promessas de garantia de direitos humanos insculpidas pela República Federativa do Brasil em sua norma maior, ao povo deve chegar, igualmente, informação sobre a magnitude das violações a esses direitos, impostas diariamente à humanidade. Somente o conhecimento coletivo e integral da amplitude dos direitos conferidos à população, da necessidade de sua concretização imediata e do descomprometimento do poder público e da sociedade para com esses compromissos éticos, pode construir lastro firme e dar vida ao direito humano de acesso à justiça. Em outras palavras, sem que a comunidade se aproprie do rol de direitos que a ordem jurídica lhe confere e do sistemático desrespeito a essas ordenações, não haverá percepção das injustiças que lhe são impostas cotidianamente. Da mesma forma, sem essas experiências, a população não experimentará a necessidade incessante da busca por justiça e não reclamará a concretização desse direito, pressuposto do alcance de todos os outros. Então, somente com educação e informação formar-se-á uma cidadania consciente, questionadora, organizada, articulada, protagonista da luta pela asseguração de seus direitos. Esse, exatamente, constitui o primeiro elemento do direito humano de acesso à justiça. Somente uma cidadania informada do conteúdo e da extensão de seus direitos promoverá a mobilização social necessária à realização das políticas públicas e das ações afirmativas imprescindíveis à realização do direito humano de acesso à justiça.

Importante registrar-se que essa política de informação e de disseminação do conhecimento dos direitos humanos há de ser direcionada, preferencialmente, às comunidades que registram hipossuficiência social, porquanto a igualdade material somente será alcançada com o estabelecimento de ações estratégicas à sua redução. O conceito de direito humano de acesso à justiça carece, da mesma forma, de revisão. Com efeito, o que se verifica, na atualidade, é uma garantia de acesso à justiça eminentemente formal. O sistema de distribuição de justiça está aberto a todas as pessoas. Todavia, somente aquelas que dispõem de condições sociais, econômicas e culturais mínimas, dele se utiliza. E essa realidade se instala como decorrência de diversos fatores que limitam o acesso

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da população à justiça, tais como a desinformação sobre o conteúdo dos direitos humanos e dos mecanismos de resolução de conflitos existentes; o elevado valor das custas processuais; a insuficiência dos serviços ofertados pelas defensorias públicas; a impossibilidade econômica e social de se suportar a longa tramitação dos processos até a realização do direito; a distância física, social e cultural das comunidades com os locais de prestação de justiça e com as pessoas que neles trabalham; a falta de compreensão das formalidades e da linguagem próprias do sistema de justiça formal, assim como de sua morosidade, dentre outros. A revisão conceitual necessária é justamente aquela capaz de reduzir esses obstáculos em número e intensidade, o que reclama o desenvolvimento de políticas públicas e de ações afirmativas.

Nesse sentido, há de se caminhar na busca da democratização, da desburocratização, da informalização, da celeridade e da consensualização do acesso à justiça. Somente se alcançará a tão sonhada igualdade material dos usuários dos serviços de pacificação social com a real universalização dos mecanismos de resolução de conflitos, quando os serviços de distribuição de justiça estiverem próximos da população, nos bairros, nos centros comunitários, assim como nos grupos sociais mais distantes e periféricos. Além de se integrar aos contextos territorial, social e cultural, os mecanismos de pacificação social hão de estabelecer comunicação adequada com seus usuários. Hão de existir, assim, locais para a informação e para a distribuição de justiça nos centros comunitários e nas escolas, em parceria com os serviços já existentes nas comunidades em situação de hipossuficiência social. O atendimento há de ser descomplicado, a linguagem acessível, o que se mostra possível com a integração, a articulação e a utilização preferencial dos recursos humanos existentes nas próprias comunidades. Valorizam-se, dessa forma, os recursos comunitários, seu protagonismo e reconhece-se seu potencial organizacional, passível, inclusive, de proceder à pacificação dos conflitos existentes, com geração de justiça e paz. Do mesmo modo, os mecanismos tradicionais de resolução de conflitos formais, lentos e dispendiosos, hão de ceder lugar a ferramentas informais, rápidas, gratuitas, que privilegiem o consenso, o diálogo, o entendimento. Para que se alcance esse objetivo, necessária se faz a ruptura de paradigmas culturais, dentre os quais aquele que traduz a justiça como algo alcançável somente após um longo tempo de batalha, com a observância e a reverência a fórmulas e formalidades. Esse novo modelo de justiça participativa, informativa,

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consensual, próxima, acessível, somente será alcançado com a integração e com o estabelecimento de parcerias entre o poder público e a sociedade. A valorização de ferramentas pouco utilizadas e algumas vezes até mesmo desvalorizadas, como a informação, a orientação, a conciliação, a mediação, a arbitragem, dentre outras, há de ser procedida pelos agentes do sistema de justiça e pela sociedade. A justiça há de ser pensada como instrumento de concórdia, de consenso, de restabelecimento de relações, de reajuste de regras de convivência, de diálogo, valores sempre buscados com informalidade, rapidez e eficiência. A jurisdição formal, instrumento a que se resume o acesso à justiça hodiernamente, há de constituir instrumento complementar, utilizado somente após o insucesso daquelas ferramentas, ou quando não recomendada sua utilização. Óbices legais à garantia do acesso materialmente igualitário e à redução da morosidade do sistema formal de prestação de justiça também haverão de ser transpostos. Enfim, com a ruptura de paradigmas, utilização de ferramentas modernas, valorização da participação comunitária, desenvolvimento de políticas públicas e ações afirmativas de ampliação do acesso à justiça, será possível materializar-se o acesso universal a um sistema de resolução de conflitos seguro, rápido e eficaz, com produção de justiça e paz. O desafio, agora, prende-se à concretização do direito humano de acesso à justiça, transformando-se em realidade a promessa de justiça para todos.

2. Proposições

Fomento à organização popular. Desenvolvimento de políticas públicas e ações afirmativas para a superação dos óbices à concretização do acesso à justiça. Valorização e criação de novos mecanismos de tutela coletiva de direitos. Desenvolvimento de ações informativas sobre direitos humanos e cidadania, a cargo do poder público e da sociedade. Valorização dos meios não adversariais de resolução de conflitos: mediação e conciliação, a cargo do poder público e da sociedade. Valorização dos recursos comunitários para a realização de ações de informação e pacificação social – realização de justiça. Fortalecimento dos serviços de assistência jurídica comunitários e estatais. Fortalecimento dos juizados especiais: ampliação da competência, descentralização. Desburocratização, redução e/ou supressão dos custos e da morosidade no acesso ao Poder Judiciário. Alterações legislativas necessárias à implementação das propostas.

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João Ricardo dos Santos CostaJuiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

CRIAçãO DE COMISSãO DOS DIREITOS HuMANOS NOS TRIBuNAIS, COMO AuxILIAR NAS POLíTICAS LIGADAS AO COMBATE à TORTuRA

1. Ementa

Criação, em todos os tribunais do País, de comissão que centralize informes obtidos na atividade jurisdicional sobre denúncias de tortura ou outras violações contra os Direitos Humanos perpetradas por agentes públicos. Mecanismo que atende aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil nos tratados e convenções de Direitos Humanos.

2. Justificativa

A situação dos Direitos Humanos na América Latina está na pauta dos debates internacionais e o Brasil vem sendo citado em todos os informes internacionais que diagnosticam tais violações. As instituições democráticas são sempre alvo de críticas pela sua ineficiência em coibir e reprimir as violações e por sua inefetividade em garantir os Direitos Humanos. Existem muitas políticas desenvolvidas pelos vários órgãos do Estado voltadas à promoção dos Direitos Humanos e outras vêm sendo discutidas, em fase de implementação. O Poder Judiciário tem um papel fundamental nesta luta, daí a necessidade da criação de instrumentos direcionados a garantir os Direitos Humanos

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capacitando o Judiciário para contribuir com ações obstativas às violações.Muitas das denúncias de tortura que chegam aos organismos internacionais

decorrem de fatos promovidos por agentes públicos, principalmente em relação à atuação das polícias.

O Judiciário, através da jurisdição criminal, recebe informações de violações perpetradas pelas polícias, em que as denúncias de tortura praticada por agentes policiais se repetem num macabro cotidiano de transgressões.

Não há, nos tribunais, uma política específica para diagnosticar e contribuir com a repressão à tortura. A prática desse ilícito geralmente atinge pessoas vitimadas pela exclusão social e desprovidas de acesso aos serviços públicos essenciais, dentre os quais está inserido o acesso à justiça. Como é um ilícito de severa gravidade que caracteriza-se pela repetição de práticas, com identidade de agentes violadores e modus operandi, a criação de um mecanismo que centralize informações sobre tais ações é fundamental para sua repressão.

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Maria Gilmaíse de Oliveira Mendes

Maria das Graças Almeida de QuentalTribunal de Justiça do Estado do Ceará

CRIAçãO DE CONSELHOS COMuNITáRIOS NOS JuIzADOS ESPECIAIS

Resumo

A democracia cumpre seu papel primordial quando proporciona a todos, indiferentemente de sua condição, o exercício pleno da cidadania. A implantação do Conselho Comunitário de Apoio ao Juizado Especial e à Promotoria de Parangaba, em Fortaleza-CE, com o objetivo de promover a interação entre a comunidade jurisdicionada e os órgãos estatais, mormente aqueles diretamente envolvidos na prestação de serviços à comunidade, proporciona a cidadania ativa, surgindo como uma experiência fecunda, de vez que a comunidade atua de forma participativa na Administração Pública.

Palavras-chave: Conselho Comunitário. Juizado. Serviços à Comunidade. Cidadania Ativa.

1. Descrição e fundamentação do projeto

Desde janeiro de 2001, por iniciativa do Promotor de Justiça e da Juíza de Direito da 17a Unidade dos juizados especiais, funciona o Conselho Comunitário de Apoio ao Juizado e ao Ministério Público, formado pelas lideranças do bairro de Parangaba. Dentre as principais conquistas, pode-se salientar a melhoria dos serviços públicos. O Juiz de Direito desempenha um papel revolucionário no contexto atual, onde somente poucos usufruem de todos os privilégios. Fácil é prolatar uma sentença em sintonia com os supostos ditames legais; bem mais difícil é aplicar a verdadeira justiça social num país

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com tantas desigualdades. Há necessidade de examinar os atos sem esquecer a realidade de seus agentes, sopesando os direitos humanos e sociais. Com essa finalidade, esses profissionais do Direito implementaram um novo modelo, adotando procedimentos de interação com os moradores da localidade, na tentativa de melhor efetivar os direitos fundamentais do cidadão, implantando o Conselho Consultivo de Parangaba com o objetivo de assessorá-los na luta por políticas públicas para o desenvolvimento estrutural e sócio-cultural da comunidade. O Conselho de Parangaba visa o enfrentamento de questões ligadas aos seguintes eixos: meio ambiente, criança e adolescente, saúde, idoso e segurança pública. É um importante espaço democrático de lutas e conquistas, colaborando com o fortalecimento da cidadania e da dignidade dos habitantes daquele bairro. Dessa forma, o Conselho realiza um trabalho em parceria com a comunidade, com reuniões mensais, alavancando a confiança da população e gerenciando a justiça com transparência e democracia em prol do bem comum, na construção de um mundo mais ético, mais humano e mais justo, no dizer de Cappelletti.

O Conselho é a voz da comunidade, procurando envolver todas as associações do bairro na formação de parcerias com universidades, secretarias do Estado e do Município. Enquanto o Juizado se prende a competências na forma da Lei 9.099/95, o Conselho, com reconhecida eficácia, soluciona litígios com rapidez, satisfazendo plenamente a coletividade pela concretização dos direitos fundamentais na verdadeira consonância com a ordem jurídica, sem a necessidade da formalização de um processo judicial.

A comunidade participa de fóruns de debates com as mais diversas classes sociais, apresentando suas opiniões, sentindo-se uma força viva no complexo jogo do poder público, que passa a embasar suas decisões ouvindo a experiência e a sabedoria popular. É a justiça com apoio do povo, tornando-se mais forte e efetiva, exigindo o cumprimento dos compromissos daqueles que assumiram o cargo que ocupam respeitando os direitos básicos do cidadão. Trata-se de um novo perfil de justiça: democrática e participativa. Os resultados são visíveis e reconhecidos pela sociedade. É o exercício quotidiano da verdadeira justiça cidadã. O Conselho está sempre atento às reclamações da comunidade. Todo o trabalho é centrado na cidadania e, dentre os resultados obtidos, salientam-se:

• Colocação de sinais de trânsito em locais de grande fluxo;• Construção de um prédio digno para funcionamento da delegacia do 5o

Distrito Policial;

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• Construção do prédio da 7a Companhia da Polícia Militar; • Retorno do posto do INSS à Parangaba; • Apoio e atenção às crianças moradoras de rua; • Fiscalização dos postos de saúde; • Permanência da farmácia central de medicamentos do SUS; • Limpeza das margens da Lagoa da Parangaba, a segunda maior de Fortaleza; • Melhor direcionamento do Hospital Frotinha, com a destinação correta

do lixo hospitalar;• Tombamento e restauração, esta em vias de concretização, do edifício da

estação ferroviária da Parangaba, construído em 1873, um dos mais antigos prédios do bairro;

• Controle da poluição sonora, mediante a utilização correta do sistema acústico nos clubes e na via pública, evitando os abusos anteriormente cometidos e os problemas de saúde deles decorrentes;

• Nomeação de Defensor Público para atuação permanente no Juizado.O trabalho é desenvolvido com foco nos problemas sociais, em busca de

soluções direcionadas às pessoas que enfrentam dificuldades na luta por seus direitos, na certeza da valorização do ser humano e da garantia da sua dignidade, erigida à condição de fundamento axiológico da ordem constitucional (art. 1o, III, da Constituição Federal).

De tudo, observa-se que com o compromisso de fazer o bem comum e alcançar a finalidade social da lei (art. 5o, Lei de Introdução ao Código Civil), mantém-se a transparência dos atos, o respeito, a credibilidade e a responsabilidade, delineando um modelo de conduta pública, o que se revela paradigmático por partir precipuamente de autoridades, nas quais todos devem depositar sua confiança, a base de toda solidariedade social. O Conselho aufere resultados concretos como paradigma de uma justiça revolucionária, exigindo profissionais desprendidos, pois exige atos de verdadeira doação e coragem, com desafios diuturnos.

2. Conclusão e proposição

Após quase uma década de atuação, o trabalho do Conselho já se faz sentir além de suas fronteiras, tendo incentivado a apresentação de um projeto de lei na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará para que todos os juizados passem a ter seu próprio Conselho. Aprovado este projeto de lei, todos os juizados especiais passarão a possuir seus conselhos de apoio; o Conselho

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também motivou a criação do Conselho de Caucaia e da 13a Unidade dos juizados especiais do bairro de Monte Castelo.

Com a semeadura na 17a Unidade dos juizados especiais cíveis e criminais, colheu-se a experiência expressiva da participação do cidadão através de seus líderes, numa interação harmoniosa com as autoridades. Além dos proveitosos resultados obtidos, a proposta maior é a criação de conselhos comunitários em cada Juizado Especial do País, atendendo às formalidades legais e contribuindo de forma efetiva para o despertar da cidadania do povo brasileiro.

Para tanto, propõe-se, a apresentação de projeto de lei que venha a complementar a atual Lei 9.099/95, prevendo a criação dos conselhos comunitários e sua estruturação, inclusive a mediação comunitária, nos moldes do Projeto de Lei no 5.869, de 1998, de autoria da deputada Zulaiê Cobra, atualmente em tramitação no Congresso Nacional.

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Anastácio Lima de Menezes Filho Associação dos Magistrados do Acre

DA IMPRESTABILIDADE DA TAxA DE CONGESTIONAMENTO PARA A AFERIçãO DE LITIGIOSIDADE, PRODuTIVIDADE E EFICIêNCIA

DE VARAS CRIMINAIS

1. Introdução

Em 20 de abril de 2006 o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução no 15, que “dispõe sobre a regulamentação do Sistema de Estatísticas do Poder Judiciário” e dá outras providências. Trata-se de louvável esforço na busca de indicadores para a Justiça como um todo, implantando-se parâmetros para a aferição das várias mazelas e dos bons exemplos que permeiam o Judiciário. Tais indicadores, por óbvio, não existem destituídos de uma finalidade. Ao contrário, é com base nesses dados estatísticos que o planejamento estratégico deve ser elaborado, muito embora não se desconheça que a coleta desses mesmos dados já seja produto do planejamento. A Taxa de Congestionamento, aliás, consubstancia-se em “Indicador Estatístico Geral Fundamental da Litigiosidade” do Poder Judiciário, consoante Resolução CNJ no 76/2009, art. 14, inc. II, letra b.

Pretende-se mostrar neste pequeno trabalho que a Taxa de Congestionamento, implantada pelo art. 14, inc. IV e art. 18 da Resolução CNJ no 15/06 é completamente imprestável para a aferição da produtividade ou improdutividade de uma Vara Criminal. Aliás, para este tipo de Vara pode-

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se mesmo dizer que a Taxa de Congestionamento é dado estéril, sem qualquer relevância e, pior, pode prestar desserviços ao Judiciário.

2. Fundamentação

De acordo com o que dispõe o item 2, anexo III, c/c art. 18 da Resolução CNJ no 15/06, a Taxa de Congestionamento no primeiro grau de jurisdição é calculada pela seguinte fórmula:

TC1o = 1 – Sent1 º____ CN1o + Cpj1o

Onde:TC1o: Taxa de CongestionamentoSent1o: Número de Sentenças no 1o Grau. Todas as sentenças proferidas

no 1o grau no período-base (ano ou semestre).CN 1º: Casos Novos de 1o Grau. Todos os processos que ingressaram ou

foram protocolizados na Justiça Estadual de 1o Grau no período-base (ano ou semestre), excluídas as cartas precatórias, de ordem e rogatórias recebidas, recursos internos, execuções de sentença e as execuções fiscais sobrestadas e suspensas, os precatórios judiciais e RPV’s (Requisições de Pequeno Valor), e outros procedimentos passíveis de solução por despacho de mero expediente.

Cpj1o: Casos Pendentes de Julgamento no 1o Grau. Saldo residual de processos não sentenciados na Justiça Estadual de 1o Grau no final do período anterior ao período-base (ano ou semestre), excluídas as cartas precatórias, de ordem e rogatórias recebidas, as execuções de sentença, os precatórios judiciais e RPV’s (Requisições de Pequeno Valor), e outros procedimentos passíveis de solução por despacho de mero expediente.

Por outro lado, a Resolução CNJ no 76/09, por meio de seus anexos, instituiu duas modalidades de Taxas de Congestionamento: 1 – Taxa de Congestionamento da Fase de Conhecimento e 2 – Taxa de Congestionamento da Fase de Execução.

Ocorre que, na varas criminais, vários fatores influenciam negativamente os indicadores da Taxa de Congestionamento, podendo passar a impressão de que a unidade jurisdicional encontra-se caótica devido aos elevados números obtidos.

Isso é assim porque no cálculo da referida taxa não se leva em consideração, por exemplo, os processos suspensos com base no art. 366 do Código de Processo Penal (réu citado por edital). Nestes casos, os processos ficarão

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adormecidos nas prateleiras das escrivaninhas por longos anos, sem qualquer movimentação processual, não podendo o juiz sentenciá-los. E, pior ainda, com prescrição suspensa. No cálculo da TC, tais processos serão computados como “casos pendentes de julgamento”, provocando impacto negativo e indicando falsamente piora nos índices de eficiência e produtividade.

O problema também se repete nas varas criminais de pequenas comarcas, com competência para o processamento de execuções penais. Isso porque o processo de execução penal deve durar, geralmente, o tempo da pena imposta. Se o réu for condenado a 20 anos de reclusão, por mais ágil que seja o juízo, por mais diligente que seja o magistrado, o processo de execução penal tramitará na Vara enquanto a pena não for extinta. Da mesma forma que no exemplo anterior, fixará computado como “processo pendente de julgamento”, indicando pioras na taxa.

Outro grave vetor são os processos cujos réus foram beneficiados com as medidas do art. 89 da Lei 9.099/95 (suspensão condicional do processo). Nessas hipóteses o processo ficará suspenso por dois a quatro anos sem qualquer possibilidade de sentença.

Em resumo, os processos de execução penal e os suspensos com base no art. 366 do CPP e art. 89 da Lei 9.099/95 são contabilizados, no cálculo da Taxa de Congestionamento, como “casos pendentes de julgamento”, mas não são passíveis de sentenciamento ou de qualquer outra medida tendente a retirá-los do “estoque processual” que tramita na unidade jurisdicional avaliada. Como tais ações correspondem à significativa percentagem dos chamados “casos pendentes de julgamento”, chega-se à inevitável conclusão de que a Taxa de Congestionamento obtida, quando calculada em varas criminais, não espelhará a real situação de eficiência e produtividade da unidade jurisdicional. Em outros termos, a Taxa de Congestionamento, ao menos da maneira como proposta pelo CNJ nas Resoluções nos 15/06 e 76/09, é dado estatístico imprestável para a aferição da eficiência e produtividade de uma Vara Criminal.

É bem verdade que o art. 18 da Resolução CNJ no 15/06 manda excluir dos processos em estoque as “execuções de sentença”, dando margem à interpretação no sentido de se excluírem os processos de execução criminal dos índices que compõem a TC, muito embora a expressão, segundo nos parece, refira-se unicamente às execuções de sentenças cíveis1. Isso pode ser facilmente comprovado com a leitura dos anexos à Resolução CNJ no 76/09, que ao

1 Observe-se que a Resolução CNJ no 15/06 é anterior à Lei 11.232/05, que alterou o Código de Processo Civil e pretendeu eliminar o processo autônomo de execução de sentença nos feitos cíveis.

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instituir a Taxa de Congestionamento na Fase de Execução não faz qualquer tipo de referência aos processos de execução criminal. Já a primeira Resolução também mandou excluir as “execuções fiscais sobrestadas e suspensas”, fazendo revelar que os processos suspensos e sobrestados, embora criminais, também devam merecer idêntico tratamento. Mas a exceção não constou dos anexos da Resolução CNJ no 76/09.

Ao que parece, a Taxa de Congestionamento foi criada unicamente para feitos cíveis.

Assim, para que a Taxa de Congestionamento sirva aos seus propósitos, não podem ser contabilizados, quando se tratar de varas criminais, os processos de execução penal e os suspensos com base no art. 366 do CPP e no art. 89 da Lei 9.099/95.

3. Conclusão e proposição

Da forma como as Resoluções CNJ nos 15/06 e 76/09 orientam o cálculo, a Taxa de Congestionamento é dado estatístico imprestável para a aferição da litigiosidade, produtividade e eficiência de uma Vara Criminal.

Para que a Taxa de Congestionamento sirva aos seus fins, propõe-se que não sejam contabilizados em seus cálculos – quando se tratar de varas criminais –, os processos de execução penal e os suspensos com base no art. 366 do CPP e art. 89 da Lei 9.099/95.

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Jorge Luiz Lopes do CantoDesembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Representante do TJRS no Comitê Gestor da Autoridade Certificadora do Estado do Rio Grande do Sul – RS

DEMOCRATIzAçãO DO JuDICIáRIO – PARTICIPAçãO

DOS MAGISTRADOS NOS óRGãOS DE GESTãO

1. Resumo

Adoção do sistema de rodízio, à semelhança do instituído na Justiça Eleitoral, para ocupar os cargos nos órgãos jurisdicionais e diretivos dos tribunais, a fim de que a participação no órgão especial, no conselho da magistratura e nas presidências de câmaras ou de turmas, dentre outros grupos, decorra da alternância na antiguidade.

O sistema proposto prevê a alternância na antiguidade para ocupar os cargos na presidência das unidades jurisdicionais e na metade do órgão especial dos tribunais, cujas vagas são preenchidas de acordo com o tempo de exercício da jurisdição na Corte.

Fixação do tempo de exercício na condição de mais antigo na Corte, o qual poderia variar de dois a quatro anos, nesta última hipótese caso fosse renovada a indicação do titular do cargo pelo órgão especial para mais um biênio.

Instituição da alternância na metade do órgão especial ocupada pela antiguidade, bem como no exercício da presidência das unidades jurisdicional, a fim de democratizar o Poder Judiciário, permitindo uma maior participação de magistrados nos órgãos diretivos e jurisdicionais.

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2. Justificativa

A adoção de prazo para ocupar cargo diretivo no Tribunal visa democratizar o Poder Judiciário e concitar a todos que contribuam com a sua experiência nesta função, bem como evitar a sobrecarga de serviço aos colegas mais antigos que ocupam estes órgãos, liberando estes para a atividade fim, ou seja, jurisdicionar, onde a experiência se revela indispensável.

A alternância no poder serve para oxigenar as cortes com novas ideias e visões sobre a problemática jurisdicional, indicando novos vieses e diretrizes administrativas para os tribunais. A experiência não deve ser desprezada, mas não pode ser petrificada como única vertente na gestão judicial.

Ademais, a adoção desse sistema permitiria aos magistrados que recusassem a participação nos órgãos diretivos, a fim de dedicarem mais tempo à jurisdição, atividade fim que deve ser cada vez mais valorizada, pois a sociedade espera uma Justiça cada vez mais transparente, produtiva e eficaz na solução dos litígios, a fim de restabelecer a paz social e atingir o bem comum.

Adoção do sistema de rodízio, à semelhança da Justiça Eleitoral, para ocupar os cargos nos órgãos jurisdicionais e diretivos dos tribunais, a fim de que a participação no órgão especial, no conselho da magistratura e nas presidências de câmaras ou de turmas, dentre outros grupos, decorra da alternância na antiguidade.

O sistema proposto prevê a alternância na antiguidade para exercer os cargos na presidência das unidades jurisdicionais e na metade do órgão especial dos tribunais, cujas vagas são preenchidas de acordo com o tempo de exercício da jurisdição na Corte.

Fixação do tempo de exercício na condição de mais antigo na Corte, o qual poderia variar de dois a quatro anos, nesta última hipótese caso fosse renovada a indicação do titular do cargo pelo órgão especial para mais um biênio.

Instituição da alternância na metade do órgão especial ocupada pela antiguidade, bem como no exercício da presidência das unidades jurisdicionais dos tribunais, a fim de democratizar o Poder Judiciário, permitindo uma maior participação de magistrados nos órgãos diretivos e jurisdicionais.

O sistema de rodízio no exercício de funções administrativa e judiciais auxilia no aprendizado dos membros mais modernos dos tribunais, limitando no tempo a investidura naqueles cargos, o que vem ao encontro

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do Estado Democrático de Direito, pois não se admite na atualidade o exercício vitalício de cargos político-institucionais.

3. Proposta

Instituir a alternância para exercer cargos nos órgãos jurisdicionais e diretivos dos tribunais com base no critério da antiguidade, estabelecendo prazo para exercer a titularidade naquelas funções.

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Resumo

A tese em epígrafe propõe a criação de juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em todos os municípios brasileiros que sejam sede de terceira/última entrância, com vistas: a) à facilitação do acesso das vítimas à justiça; b) ao surgimento de novas oportunidades de promoção/remoção de magistrados; e, c) à especialização da função do juiz que passará a lidar somente com matérias pertinentes à Lei Maria da Penha. Pugna-se, ainda, pela criação nesses juizados, e nos já existentes, de um sistema de educação dos agressores voltado para não-reincidência, como forma de evitar o retorno do mesmo caso à Justiça.

1. Introdução

O acesso à Justiça deve ser encarado, na contemporaneidade, como um dos mais importantes direitos humanos, na medida em que é através desse acesso que o indivíduo pode cobrar do Estado outros direitos dos quais é titular.

Não se pode olvidar, portanto, que a facilitação do acesso à Justiça é

Higyna Josita Simões de Almeida BezerraAssociação dos Magistrados da Paraíba (AMPB)Pertinência à área temática de Procedimentos Judiciários (área IV)

EFETIVIDADE DO ACESSO à JuSTIçA: CRIAçãO OBRIGATóRIA DE JuIzADOS DA VIOLêNCIA DOMéSTICA E FAMILIAR CONTRA A MuLHER

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paradigma viabilizador da afirmação dos direitos humanos e corolário da cidadania, mormente no que se refere ao acesso das pessoas consideradas socialmente vulneráveis, que requerem maior proteção do Estado. Nesse contexto, insere-se a mulher vítima de violência doméstica, cuja condição de hipossuficiência no cenário social, legou-lhes a Lei no 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha.

A Lei no 11.340/06, criada no âmbito nacional, tem o objetivo de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher e veio atender aos ditames estabelecidos no § 8o do art. 226 da Constituição Federal; na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher; na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e, em outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil.

Para que, entretanto, o estatuto protetivo em epígrafe alcance todo o potencial para o qual foi criado, faz-se necessário que o Poder Judiciário contribua para que esse acesso seja viabilizado na prática, através da implantação dos juizados da Violência Doméstica Contra a Mulher. Tais juizados precisam ser criados aos menos nos municípios que sejam sede de comarcas de terceira/última entrância, pelas mesmas razões que qualificaram essas comarcas a estarem inseridas na referida entrância.

2. Fundamentação

A Lei Maria da Penha em seu art. 14 dispõe que “os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”.

Defendemos, entretanto, que o fato do legislador ter colocado o verbo “poder” ao invés de “dever” não pode servir de empecilho para que os tribunais de justiça do País criem os referidos juizados. O argumento da existência de baixo número de processos em trâmite tratando de causas de violência doméstica, não pode ser usado como escusa para a não criação dos referidos juizados (pelo menos) nos municípios-sede de Comarcas de 3a/última entrância. Isso por que: a) a inexistência do JVDFM1 pode ser (justamente) a

1 Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

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causa motivadora da baixa demanda de processos, já que (ela própria) dificulta o acesso à Justiça; b) as pesquisas têm demonstrado que nos locais onde houve a criação do JVDFM o número de denúncias/processos envolvendo mulheres vítimas de violência doméstica aumentou.

Por outra vertente, o fato de os processos continuarem sendo julgados por varas criminais comuns dificulta o acesso à Justiça, em um tempo onde esse acesso tem sido priorizado. Dois fatores corroboram esta assertiva: I) o tratamento de processos sobre violência doméstica requer um juiz preparado para lidar com essas questões, mormente por causa da peculiaridade de ter que julgar causas cíveis e criminais relacionadas à Lei 11.340/2006; e, II) a vara que tratar da violência doméstica contra a mulher deve está amparada com uma equipe multidisciplinar, de modo que os processos não podem continuar sendo julgados em varas criminais comuns.

Ademais, a criação de JVDFM2 será fator de melhoria nas condições de trabalho dos magistrados. Primeiro, por que haverá criação de novas varas e surgimento de oportunidades para remoção/promoção na carreira. Segundo, por que haverá especialização da função do juiz, que se limitará a lidar com um só sistema de regras – o da Lei no 11.340/2006 – ao invés de estar trabalhando com o rito ordinário e o da Lei Maria da Penha ao mesmo tempo.

O próprio CNJ já reconheceu a necessidade da criação desses Juizados3, quando editou a Recomendação no 09 que “recomenda aos Tribunais de Justiça a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e a adoção de outras medidas, previstas na Lei 11.340, de 9.8.2006, tendentes à implementação das políticas públicas, que visem a garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares”.

Propomos, ainda, que mesmo que a vítima renuncie ao direito de representação, o juiz deve fazer uma política de educação voltada para o “nunca mais”, ou seja, vincular o agressor a durante certo lapso de tempo participar de programa educacional desenvolvido pelo Judiciário, com vistas a que o agressor mude o paradigma, forme consciência no sentido de não reincidir na agressão.

3. Conclusão e proposição

Nesse diapasão, conclui-se que a efetividade no acesso à Justiça passa pela criação obrigatória de Juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a

2 Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.3 No Brasil, apenas os Tribunais de Justiça da Paraíba e de Tocantins ainda não criaram nenhum JVDFM.

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Mulher nos municípios que abrigam comarcas de terceira/última entrância. Nesse diapasão, propõe-se:a) que sejam criadas pelos Tribunais de Justiça juizados da Violência

Doméstica contra a Mulher nos municípios que forem comarcas de terceira/última entrância, como forma de facilitação do acesso à justiça; novas oportunidades de promoção/remoção de magistrados e, especialização da função dos juízes;

b) que os magistrados dos juizados da Violência Doméstica e Familiar adotem sistema de educação voltada para conscientização da não reincidência, para evitar que novos casos envolvendo as mesmas partes retornem aos átrios do Poder Judiciário.

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Fernando A. N. Galvão da Rocha Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis-MG)

FORMAçãO DOS JuízES DA JuSTIçA MILITAR PARA ATuAçãO DEMOCRáTICA

1. Resumo

As escolas judiciais devem capacitar os juízes da Justiça Militar para uma atuação democrática e independente em relação aos interesses do Poder Executivo. Sua missão não é auxiliar as instituições militares na tarefa de preservar os princípios organizacionais da hierarquia e da disciplina nas corporações militares.

2. Introdução

A Justiça Militar brasileira tem suas origens no sistema judiciário português e é a mais antiga do Brasil, tendo sido criada pelo príncipe regente D. João que instituiu o Conselho Supremo Militar e de Justiça em 1o de abril de 1808. Nosso primeiro Tribunal teve sua denominação posteriormente alterada para alcançar a atual denominação de Superior Tribunal Militar.

Ao tempo da instituição de nossa Justiça Militar, a Coroa Portuguesa precisava preservar a unidade e obediência das tropas que garantiam a dominação sobre a colônia e a defendessem dos ataques de possíveis inimigos externos. A racionalidade que orientava a atuação dos militares e também de seus juízes considerava as formas de intervenção do Estado frente aos seus possíveis inimigos. Esta racionalidade da guerra inspirou e continua a inspirar a interpretação da Justiça Militar por todo o mundo, de modo a vinculá-la apenas às necessidades e conveniências das Forças Armadas que integram o Poder Executivo. Nesse sentido, tornou-se clássica a afirmação de Clemenceau,

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primeiro ministro que comandou o exército francês durante a primeira grande guerra, no sentido de que “como há uma sociedade civil fundada sobre a liberdade, há uma sociedade militar fundada sobre a obediência, e o juiz da liberdade não pode ser o mesmo da obediência”.1 Este pensamento, muito próprio às necessidades da guerra, lamentavelmente, costuma ser muito lembrado para orientar a conduta de juízes que hoje atuam em contextos muito diversos daquele para o qual foi concebido.

É importante lembrar que na Constituição Republicana de 1891 o Tribunal Militar brasileiro foi previsto como órgão do Poder Executivo, sendo que a Justiça Militar somente passou a integrar o Poder Judiciário com a Constituição de 1934. Com base no artigo 84 dessa Constituição foi possível a criação da Justiça Militar estadual. Neste momento, não havia qualquer distinção entre as funções institucionais das milícias federais e estaduais. O art. 167 da Carta Magna de 1934 limitava-se a dispor que “as polícias militares são consideradas reservas do Exército, e gozarão das mesmas vantagens a este atribuídas, quando mobilizadas ou a serviço da União”. Nenhuma palavra sobre qual seja a missão das instituições militares estaduais ou da Justiça Militar estadual.

Ao tempo do regime militar, a Justiça Militar da União recebeu competência para o processo e julgamento dos crimes praticados contra a segurança nacional. Essa atuação fez com que a sociedade brasileira vinculasse a Justiça Especializada ao período de exceção. Pode-se ver no sítio do Superior Tribunal Militar a preocupação que ainda hoje existe de afirmar que o tribunal militar não é um tribunal de exceção (http://www.stm.gov.br/historia/papel_da_justica.php).

Hoje vivenciamos novos tempos. Tempos de iluminação, de liberdade e de responsabilidade social. Superamos aqueles dias de trevas, mas ainda precisamos reconstruir a identidade da Justiça Militar, sobretudo a estadual, com base na premissa democrática. A recente experiência autoritária induz a sociedade a visualizar na Justiça Militar um efetivo divórcio entre a racionalidade militar e os princípios de justiça, vinculando a prática do direito militar às razões instrumentais de um Estado opressor. A perspectiva é evidentemente equivocada. Na ordem constitucional brasileira, a intervenção militar é manifestação do poder público que deve se conciliar com o Estado Democrático de Direito.

1 ROTH, Ronaldo João. Primeiros comentários sobre a reforma constitucional da Justiça Militar estadual e seus efeitos, e a reforma que depende agora dos operadores do direito, Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 95, v. 853, p. 442-483, nov. 2006, p. 446

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Por outro lado, muitos operadores do Direito Militar racionalizam de maneira equivocada as questões da Justiça Militar, por se basearem na premissa de que esta se presta a assegurar observância aos princípios administrativos da hierarquia e da disciplina. Nos Conselhos de Justiça, militares sem qualquer formação para o exercício da jurisdição são juízes do fato e do direito que lhe é aplicável. A origem da instituição no Poder Executivo e a formação militar da maioria de seus juízes têm produzido a errônea compreensão de que a Justiça Militar presta-se a garantir os interesses administrativos das instituições militares.

Nesse contexto, pode-se constatar a ausência da intervenção qualificada das escolas judiciais na formação dos juízes da Justiça Militar. No Brasil existem 87 escolas judiciais, sendo 26 destas especializadas na matéria trabalhista e 25 na matéria eleitoral. Atuando especificamente na formação de juízes militares não há escola judicial. (http://www.enm.org.br/?secao=escolas_brasil&top=3)

3. Fundamentação

A Constituição da República estabelece que os princípios da hierarquia e da disciplina são pilares organizacionais das instituições militares, que constituem apenas meios para a realização de seus fins institucionais. Constituem fins das instituições militares da União, conforme o art. 142 da CF, a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais e a garantia da lei e da ordem. Por outro lado, os fins das instituições militares estaduais, nos termos do art. 144 da CF, são a preservação da ordem pública, da incolumidade e do patrimônio das pessoas, no contexto do direito fundamental à segurança pública.

As instituições militares estaduais estão inseridas no sistema de defesa social que foi concebido para a proteção de todo e qualquer cidadão, não havendo lugar para inimigos. O militar estadual deve ser considerado e tratado como cidadão, da mesma forma que se deve considerar e tratar o civil que eventualmente venha a infringir as regras estabelecidas para a boa convivência social. Por isso, a Justiça Militar estadual deve enfrentar o desafio de desvincular-se da racionalidade da guerra para aprimorar cada vez mais a sua constitucional vocação democrática.

Cabe observar que nem mesmo para as instituições militares a hierarquia e a disciplina constituem fins. Constituem apenas meios organizacionais peculiares que se prestam a conferir maior eficiência aos serviços públicos prestados pelas corporações militares para o atendimento de suas missões institucionais. Não podem os juízes da Justiça Militar, portanto, transformar

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os princípios organizacionais das instituições militares (meios) em sua missão institucional (fins). A confusão possui importantes repercussões práticas: dependência do Poder Judiciário em relação aos interesses das corporações militares e parcialidade que sempre acolhe as razões do superior hierárquico.

Ao Poder Judiciário cabe a garantia dos direitos fundamentais do cidadão, que estão expressos na Constituição e nas leis. Pensar que o Poder Judiciário, pelos órgãos da Justiça Militar, trabalha unicamente para preservar a hierarquia e a disciplina da tropa é transformar seus juízes em corregedores militares.

No exercício da competência criminal, especificamente nos casos de condenação pela prática de crimes impropriamente militares, a Justiça Militar tem a missão de viabilizar a intervenção punitiva estatal, garantindo a observância dos direitos fundamentais do condenado. Espera-se que a imposição de pena criminal pela prática de um crime militar, da mesma forma que nos casos de crimes comuns, possa desestimular a ocorrência de novos crimes. Mas, não é missão institucional da Justiça Militar aplicar medidas disciplinares aos militares.

Nos casos em que a Justiça Militar julga pedidos de perda do posto e patente de oficiais, ou da graduação das praças, a jurisdição não se presta a intimidar a tropa para observar os princípios da hierarquia e da disciplina. O exame de mérito a ser enfrentado pelo Poder Judiciário diz respeito à qualidade dos serviços prestados pelas instituições militares, excluindo da corporação o militar que apresenta conduta incompatível com a natureza do serviço público a ser prestado.

Por isso, é necessário consolidar a identidade democrática da Justiça Militar, definindo claramente a sua missão constitucional. Para tanto, as escolas judiciais devem capacitar os juízes da Justiça Militar para o exercício democrático da jurisdição, considerando os seus variados contextos de aplicação (União e Estados).

4. Conclusão e proposição

Do exposto, pretende-se chegar à conclusão de que, enquanto não houver escolas judiciais militares, as escolas judiciais federais e estaduais devem oferecer capacitação para os juízes da Justiça Militar, enfatizando que:

no âmbito de sua competência especializada, a Justiça Militar possui a missão institucional de resolver os conflitos de interesse que lhe são levados pelas partes com base na Constituição e nas leis, garantindo os direitos

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fundamentais do cidadão, como todos os demais ramos do Poder Judiciário; sua atuação deve ser absolutamente independente em relação aos

interesses administrativos das corporações militares, pois a independência do Judiciário Militar é uma garantia de todo e qualquer cidadão; não constitui missão institucional da Justiça Militar garantir a observância dos princípios administrativos da hierarquia e da disciplina militares; no Código Penal Militar apenas alguns crimes tutelam a hierarquia e a disciplina militar, de modo que não se pode reduzir sua finalidade protetiva a estes bens.

BibliografiaROTH, Ronaldo João. Primeiros comentários sobre a reforma constitucional da Justiça Militar estadual e seus efeitos, e a reforma que depende agora dos operadores do direito. Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 95, v. 853, p. 442-483, nov. 2006.

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Fernando A. N. Galvão da RochaAssociação dos Magistrados Mineiros (Amagis – MG)

GARANTIA DO DIREITO DE SuFRáGIO AOS PRESOS

PROVISóRIOS

Resumo

O Poder Judiciário deve tomar as providências administrativas possíveis para garantir o exercício pelo preso provisório de seu direito de voto.

1. Introdução

Segundo dados consolidados do Ministério da Justiça, em dezembro de 2007 havia 235.037 (duzentos e trinta e cinco mil e trinta e sete) condenados cumprindo pena privativa de liberdade no Brasil, não incluídos neste total os que são beneficiados por livramento condicional, e 127.562 (cento e vinte e sete mil, quinhentos e sessenta e dois) presos provisórios.1

Por força do disposto no art. 15 da Constituição da República, os presos condenados por decisão transitada em julgado estão com os direitos políticos suspensos e não podem exercer o direito de sufrágio. Na verdade, não há qualquer razão que justifique a suspensão do direito do condenado de votar em candidatos que possam representar, no parlamento ou no Poder Executivo, os seus interesses. No caso da suspensão dos direitos políticos que impeça a candidatura do condenado, o direito da sociedade de ser representada e de ter os recursos públicos administrados por pessoa que não esteja sob efeitos

1 Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Sistema Nacional de Informação Penitenciária - InfoPen: dados consolidados. 2008, p. 34. disponível em http://www.mj.gov.br/depen/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm.

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de reprovação de natureza penal justifica a medida. No entanto, não há interesse social que se legitime a restrição imposta ao condenado de escolher representantes para defender seus interesses. Em especial no caso de eleitores que estão submetidos às agruras do sistema prisional brasileiro, o direito de escolher representantes que possam propor leis que possam melhorar as condições carcerárias ou administradores que se comprometam com tal objetivo avulta em importância. A impossibilidade de voto, na verdade, evidencia uma deficiência de nosso ambiente democrático.

Quanto aos presos provisórios a Constituição da República assegura o pleno exercício dos direitos políticos. No entanto, por questões de ordem prática, esta significativa parcela do eleitorado brasileiro é excluída do processo de escolha da representação popular.

Para evitar essa grave violação ao direito fundamental de participar da escolha dos representantes populares o Poder Judiciário deve tomar as providências administrativas que garantam ao preso provisório o exercício de seu direito ao voto.

2. Fundamentação

Na preparação de uma eleição o Poder Judiciário precisa definir com antecedência quem serão os eleitores inscritos em cada seção eleitoral, já que ainda não é possível viabilizar administrativamente o voto dos eleitores que se encontram em trânsito. Com a tecnologia do cadastro de eleitores por características biométricas e a informatização nacional do sistema eleitoral será possível o exercício do voto do eleitor que se encontre fora de seu domicílio eleitoral. O Tribunal Superior Eleitoral estima que isso possa acontecer nos próximos 10 anos (http://www.tse.gov.br/downloads/biometria/index.htm). Por enquanto, a Lei no 9.504/97, em seu art. 91, determina que “nenhum requerimento de inscrição eleitoral ou de transferência será recebido dentro dos cento e cinqüenta dias anteriores à data da eleição”.

Algumas dificuldades administrativas se apresentam para colher o voto do preso provisório. Dentre as quais podem se destacar:

a) é incerto que o eleitor continue preso no dia da eleição;b) o eleitor pode estar fora de seu domicílio eleitoral;c) o eleitor pode ser preso após o prazo estabelecido pela Justiça para a

transferência de domicílio eleitoral; e

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d) se o eleitor votar na unidade prisional e vier a ser solto no dia da eleição poderá votar novamente em sua seção eleitoral.

Alguns dos problemas administrativos para a colheita do voto do preso provisório podem ser superados com a tecnologia que hoje já nos é disponível.

Nos casos em que o preso provisório encontre-se detido em unidade prisional situada em seu domicílio eleitoral a colheita de seu voto exige superar menores problemas. Pode a Justiça Eleitoral colher os votos em separado na própria unidade prisional, sem a necessidade de instituir uma seção especial e para ela transferir todos os eleitores que ali se encontrem provisoriamente presos. A colheita do voto em separado pode ser viabilizada por simples informação ao cartório eleitoral, que retira o nome do eleitor da lista de votação de sua seção eleitoral e o inclui em lista separada para utilização na unidade prisional. Se o eleitor for solto antes do dia da eleição, não havendo tempo hábil para incluir seu nome novamente na lista que será utilizada em sua seção eleitoral, poderá votar na unidade prisional.

Com alguma preparação administrativa também é possível garantir o direito de voto dos presos que não se encontrem em seu domicílio eleitoral. De qualquer forma, a dificuldade tecnológica que hoje pode inviabilizar a colheita do voto de quem se encontre provisoriamente preso fora de seu domicílio eleitoral não justifica deixar de garantir o voto de todos os presos provisórios que se encontrem em unidades prisionais situadas em seu domicílio.

3. Conclusão e proposição

Do exposto, pretende-se chegar às seguintes conclusões:O Poder Judiciário deve tomar todas as providências administrativas

possíveis para garantir que o preso provisório exerça o seu direito de voto;No caso de preso provisório que se encontre em unidade prisional situada

em seu domicílio eleitoral, a colheita do voto pode se dar em separado, sem a necessidade da instituição de uma seção eleitoral especial, excluindo-se o nome do preso/eleitor da lista a ser utilizada em sua seção eleitoral;

Neste caso, se o eleitor for solto antes do dia da eleição e não houver tempo hábil para incluir seu nome novamente na lista que será utilizada em sua seção eleitoral poderá votar na unidade prisional.

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João Ricardo dos Santos CostaJuiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

GESTãO DE AçõES DE MASSA

Criação de um órgão de monitoramento e diagnóstico no Poder Judiciário para identificação de macrolides, visando a uma atuação preventiva às denominadas ações de massa, decorrentes de violações que capturam vultuosos recursos financeiros da sociedade, causando severo abalo ao desenvolvimento econômico.

1. Ementa

As ações repetitivas têm sido um dos principais fatores de congestionamento processual. O Poder Judiciário ainda não possui instrumentos preventivos para atender a demanda decorrente de violações de direitos que atingem uma coletividade. Nos casos de violações de individuais-homogêneos, o litígio, geralmente envolvendo alguma forma de exploração econômica, acaba sendo institucionalizado e a resposta jurisdicional fica muito limitada aos que ingressam individualmente. Um alto percentual de vítimas não é atendido e as poucas que acessam o sistema judicial contribuem com o congestionamento processual.

A criação nos tribunais de um organismo direcionado ao monitoramento dessa demanda, poderia contribuir substancialmente para estimular de forma preventiva o enfrentamento pela via do processo coletivo, com solução integral da macrolide, além de possibilitar o conhecimento dos efeitos econômicos da violação.

2. Justificativa

Com a diversificação das relações de consumo, as demandas aumentaram assustadoramente, comprometendo farta parcela do orçamento do Judiciário

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e, mais grave, o funcionamento deste ente estatal, gerando um obstáculo intransponível ao direito fundamental do acesso à justiça.

Já não se identifica qualquer racionalidade no fato de um juiz julgar milhares de vezes o mesmo litígio quando dispomos de instrumentos processuais, como a ação coletiva, no qual, no caso de reconhecimento do direito postulado, se beneficia toda a comunidade vitimada, além de neutralizar o enriquecimento indevido da parte violadora do direito. Isso sem ocupar milhões de verbas orçamentárias e sem inviabilizar o sistema judicial.

É difícil, senão dramática, a situação da Justiça brasileira em virtude da explosão da demanda judicial, notadamente nas questões que envolvem os bancos e concessionárias de serviços públicos, situação que vem exigindo cada vez mais do Judiciário meios processuais adequados para seu enfrentamento.

O processo deve ser entendido como forma de viabilizar o acesso à justiça. Como tal, deve ser instrumentalizado, objetivando alcançar a satisfação do cidadão que busca efetivar um direito violado. Esse sentido teleológico do processo afeta a interpretação no emprego dos mecanismos processuais, no momento em que roga pela influência de parâmetros valorativos que privilegiam a administração da justiça. Aqui reside o ponto que pretendo chegar para justificar a imperiosa necessidade de abolirmos uma via de solução de conflitos que se mostra tão ineficaz quanto perniciosa ao funcionamento do Judiciário e ao desenvolvimento, aqui considerado na expressão dos Direitos Humanos.

O excedente de demandas desnecessárias, numa simples lógica matemática, é proporcional aos litígios que ficam excluídos da apreciação judicial. Assim, a demanda produzida desnecessariamente é uma excrescência por dupla via, por reprimir a demanda real por justiça e por consumir os parcos recursos do Poder Judiciário.

A criação de instrumentos que facilitem a percepção prematura de uma avalanche de ações repetitivas e uma avaliação de seus reflexos danosos à sociedade, poderá atuar como um mecanismo de repressão às praticas ilícitas que atentam contra os direitos econômicos e obstaculizam o desenvolvimento. O monitoramento e o diagnóstico dos efeitos destes fenômenos é o que se está propondo.

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GESTãO DO PODER JuDICIáRIO – JuIz ADMINISTRADOR

Ney Wiedemann NetoDesembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e integrante do Centro de Pesquisa Judiciário, Justiça e Sociedade da Escola Superior da Magistratura da Ajuris

1. Resumo

Para que o magistrado, enquanto gerente dos processos de trabalho do seu gabinete, possa tomar decisões estratégicas para aperfeiçoar a sua prestação jurisdicional, ele necessita estar amparado em fatos e dados.

Os tribunais devem desenvolver ações visando aprimorar a sua “Inteligência de Negócios”, ou, na língua inglesa, “Business Intelligence”, que consiste em obter relatórios pormenorizados através de programas de informática específicos que coletam informações dos bancos de dados das organizações. Não há dúvida que se trata de importante ferramenta para auxiliar a tomada de decisões pelo gerente do negócio, que será mais guiado por dados e fatos do que por sua mera “intuição”.

2. Justificativa

De acordo com Marcelo A. Bombarda1, o termo Business Intelligence (BI) refere-se a uma ferramenta de gestão utilizada para medir desempenho, fazer projeções futuras e tomar decisões. Acrescenta o autor, em artigo publicado em página especializada na Internet, o seguinte:

1 BOMBARDA. Marcelo A. Inteligência em Negócios. Disponível em <http://www.artigonal.com/tec-de-informacao-artigos/business-intelligence-bi-inteligencia-em-negocios-535676.html>. Acesso em 11 mar. 2009.

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Trazendo para nossa realidade, hoje em dia muitas empresas de pequeno e médio porte estão implantando esta tecnologia de ferramenta de decisões.

Praticamente toda a empresa necessita de um sistema integrado, onde todas as informações possam ser armazenadas em um único lugar, facilitando, agilizando e integrando assim todos os departamentos de uma organização. Mas somente a integração para nosso mundo de hoje não basta, precisamos de inovação, controle, e poder de decisões mais certeiras para sair na frente do mercado globalizado.O BI é um método de análise, integrando informações concretas retiradas do banco de dados, onde se mostra os desempenhos de praticamente todas as áreas da organização. Podendo ser configurado para cada departamento ou não.Sendo este de pronta vista, não depende de muitos esforços para visualização dos resultados, sendo projetados na forma de gráficos, sejam eles de formas configuráveis quaisquer. Quem tem as habilidades para trabalhar com ele, pode facilmente captar informações de como está sua empresa, ou seja, ele pode fornecer um “raio-X” da organização naquele momento em que foi solicitado à base de dados os resultados pedidos, avaliando e tomando importantes decisões como, aumento de investimentos em parques de máquinas, ou mesmo chegando a identificar possíveis investimentos na área de qualidade.

Em termos de “Inteligência de Negócios”, os tribunais podem desenvolver muitos aplicativos visando disponibilizar dados gerenciais aos magistrados. Além de relatórios apresentados na forma de tabelas, os dados poderiam ser estratificados em gráficos de vários formatos, cuja visualização mais amigável facilita a análise e decisão a respeito.

Alguns desses indicadores deveriam ser individuados pelo Tribunal para fornecer aos magistrados dados úteis à administração de seu trabalho. Entre eles, poderíamos destacar a taxa de congestionamento de cada gabinete, a carga de trabalho de cada gabinete e a taxa de recorribilidade de cada gabinete (interna e externa).

Importa destacar que a tomada de decisões de gestão do gabinete deve sempre estar amparada em dados e fatos, não apenas na intuição do magistrado ou mera opinião sobre o que está acontecendo. Esses dados, às vezes, já são

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disponibilizados com algum indicador. Outras vezes, não há o indicador calculado pelo Tribunal, mas os números permitem que seja feita a devida análise e valoração dos dados, como a própria taxa de congestionamento do gabinete, por exemplo, a amparar a tomada de decisões sobre o que fazer.

3. Proposta

Que os tribunais desenvolvam ações concretas para aprimorar a sua “Inteligência de Negócios”, por seus departamentos de informática, a fim de ampliar os relatórios e os dados estatísticos disponibilizados aos magistrados para a gestão da sua prestação jurisdicional.

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Vanderlei DeolindoJuiz de Direito do 1o Juizado da 1a Vara Cível de São Leopoldo – RS, Vice-Presidente

Cultural da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul e membro do Centro de Pesquisa Judiciário, Justiça e Sociedade da Escola Superior da Magistratura da Associação

dos Juízes do Rio Grande do Sul – Ajuris

MEDIDAS A SEREM ADOTADAS PELA AMB JuNTO àS

INSTITuIçõES DE ENSINO JuRíDICO DO PAíS

1. Ementa

Afirmação da responsabilidade das instituições de ensino jurídico do País no processo de mudança da cultura litigiosa para a conciliatória como alternativa fundamental para diminuir a crescente demanda judiciária, que ao fim e ao cabo termina por comprometer a eficiência do Poder Judiciário no atendimento das demandas em geral. Ação política da AMB, de suas associações filiadas e da Magistratura no sentido de contribuir para o desenvolvimento da cultura voltada para o consenso extrajudicial e judicial.

2. Justificativa

A demanda judicial vem aumentando geometricamente nos últimos anos em todo o Brasil. São várias as causas, desde a consagração de uma série de direitos fundamentais elevados a garantias constitucionais, que positivamente estimulam o exercício da cidadania, passando pela facilitação do acesso à Justiça em decorrência do elevado número de advogados atuantes no mercado e entendimento favorável à universalização do acesso à Justiça por meio do instituto da justiça gratuita, até o comprometimento da Magistratura nacional com a concretização dos direitos consagrados na Constituição e nas leis, em favor da Sociedade.

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Soma-se a tanto a cultura adversarial, que faz parte do meio social moderno, desapegado de um dos princípios fundamentais da humanidade: a solidariedade, que ainda é exceção, ausente, muitas vezes, até no âmbito familiar, onde preponderam individualismos, estendendo-se nas relações entre vizinhos e seguindo adiante no tecido social. Essa cultura de individualismo, que se transforma em conflitos de interesses, de confrontamento, cuja análise interessa a outros setores da ciência, como a Filosofia e Sociologia, vem originando a litigiosidade judicial, que também é desenvolvida no âmbito das Faculdades de Direito. Os acadêmicos, em regra, são talhados ao apego técnico-processual, com no mínimo quatro cadeiras/matérias de Processo Civil, mais três de Processo Penal, isso quando ainda não são precedidas de outras introdutórias às respectivas áreas processuais. São raras as faculdades que desenvolvem matérias voltadas para o desenvolvimento de técnicas de conciliação e mediação, passando por arbitragem, que também se constitui numa importante via alternativa de resolução de conflitos.

Essa cultura adversarial se projeta para o âmbito profissional dos futuros advogados, promotores e juízes. Em consequência, salvo exceções, não se desenvolve com expressão o costume entre os advogados de tentar uma composição extrajudicial antes de ingressar em juízo. Não se tem presente que o primeiro “profissional” a atuar no conflito social é o próprio advogado, e passa por ele a possibilidade de dirimir o conflito antes mesmo de adentrar no sistema judicial. Ultrapassada essa fase sem o esgotamento dessa alternativa, aportam as denominadas ações judiciais, que com o apoio da informática se apresentam volumosas e recheadas de teses e pedidos. É muito comum os profissionais deixarem para conversar acerca do processo somente em audiência, causando perplexidade quando se nota que sequer trocaram uma ligação telefônica para tentarem um acordo. Não se pode deixar de considerar que honorários advocatícios também podem ser cobrados no âmbito extrajudicial, com base em disposições expressas na lei.

E para que não fique parecendo apenas crítica aos advogados, também merece inclusão nesse rol os demais operadores do Direito, como referidos acima, que nem sempre apresentam apego à cultura da conciliação, que não priorizam audiências, ou que as realizam sem o empenho e capacitação adequados, não obstante o sempre elevado número de processos que esgotam as pautas.

Se é difícil atuar com eficácia na origem familiar dos conflitos, é preciso atuar na base de formação acadêmica e com essa fonte formadora, repensar o

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exercício do direito, fazendo com que a preponderância da cultura adversarial seja relativizada pela cultura consensual. Para tanto, respeitosamente, conclui-se propondo, então, debate e aprovação da ementa pelos eminentes congressistas, visando ao desenvolvimento de atuação política da AMB, das associações filiadas e da Magistratura junto aos demais operadores do Direito nas respectivas comarcas e, no caso, com ênfase no âmbito acadêmico. Palestras, contatos, artigos, entrevistas, manifestações, enfim, o desenvolvimento de ações que apesar de não aparecerem nos mapas mensais de produção da unidade judiciária, constituem-se de fundamental importância para o aperfeiçoamento da Justiça brasileira.

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1. Resumo

O Poder Judiciário, com sua estrutura atual e foco nos modelos adversariais com solução heterocompositiva, trata apenas superficialmente da conflitualidade social, dirimindo controvérsias, mas nem sempre resolvendo o conflito. Essa visão de holofote (restrita aos limites do pedido) não enxerga os verdadeiros interesses e, por isso, se afasta do postulado maior, princípio e finalidade do direito, do processo e do próprio Poder Judiciário que é a pacificação social.

O holofote ao iluminar a lide processual, deixa de iluminar fatos, argumentos, justificativas e razões que na perspectiva do jurisdicionado representariam a verdadeira Justiça (essa sim considerada a justa composição do conflito).

2. Fundamentação

No modelo adversarial o raciocínio é puramente dialético. De um conflito entre pessoas, analisado sob o prisma da lide em disputa, resultam sempre vencedores e vencidos. Por isso o juiz fica adstrito aos limites da inicial e da contestação.

NAS SOLuçõES AuTOCOMPOSITIVAS O JuIz NãO ESTá LIMITADO, NEM DEVE FICAR ADSTRITO, AO PEDIDO E à CONTESTAçãO

Roberto Portugal BacellarJuiz de Direito – Poder Judiciário do Paraná

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Nas soluções heterocompositivas o juiz só pode decidir a partir de premissas inafastáveis, entre as quais é possível citar as que envolvem os estreitos limites da lide processual, o procedimento legal e os princípios informativos do processo. Não pode, por exemplo, decidir citra, extra ou ultra petita; decidirá a lide nos limites em que foi proposta (verdade formal dos autos), não podendo proferir decisão diversa mesmo que perceba, no caso, o efetivo interesse das partes de ampliar o conhecimento da matéria (verdade real dos fatos).

Para satisfazer integralmente os interesses dos jurisdicionados é preciso investir na adoção de um modelo consensual que amplie o foco, busque visão holística com raciocínio exlético.

No modelo adversarial, segundo o qual se pautou a estrutura processual brasileira, o raciocínio é puramente dialético. De um conflito entre pessoas, analisado sob o prisma da lide em disputa, resultam sempre vencedores e vencidos.

Assim, em parcela significativa dos casos, o Poder Judiciário não soluciona o conflito, não resolve ou dá atenção aos verdadeiros interesses das partes, mas apenas extingue, com ou sem julgamento de mérito, a “lide processual” (aquela descrita no processo judicial e materializada na petição inicial e na contestação).

Distingue-se, portanto, aquilo que é trazido pelas partes ao conhecimento do Poder Judiciário e que a solução heterocompositiva deve focar daquilo que efetivamente é interesse das partes (verdade real dos fatos) e que a solução autocompositiva necessariamente tem de ampliar.

Durante muitos anos, talvez inspirados em Carnelutti, afirmamos que o objetivo do processo ou da própria jurisdição é a “justa composição da lide” – aquela porção circunscrita do conflito que a demanda polarizada evidencia.

Descabe ao magistrado, na técnica processual, conhecer de qualquer fato, argumento, justificativa ou razão que não constituam objeto do pedido, competindo-lhe apenas decidir a lide nos limites em que foi proposta. Assim, continuamos a repetir “o que não está nos autos de processo não está no mundo”!

Se isso é correto em relação aos métodos adversariais e heterocompositivos em que devemos nos ater a uma verdade formal dos autos, isso não é adequado nos métodos consensuais e autocompositivos onde a maior preocupação deve ser dirigida à verdade real dos fatos.1

1SOUZA NETO, João Batista de Mello e. Mediação em juízo: abordagem prática para a obtenção de um

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Enquanto nos modelos adversariais e nos processos heterocompositivos (arbitragem e julgamento) há sempre vencedores e vencidos (ganha/perde), nos modelos consensuais e nos processos autocompositivos (negociação, mediação e conciliação) buscam-se soluções vencedoras (ganha/ganha).

Se mantivermos o raciocínio adverdarial, puramente dialético e a análise do conflito circunscrito aos limites da lide processual, continuaremos a ter perdedores.

Vimos que a finalidade do Poder Judiciário é a pacificação social, e se esse é um valor a ser buscado, independentemente do processo e do procedimento desenvolvidos para a resolução dos conflitos no âmbito do que se denomina monopólio jurisdicional, cabe a ele incentivar processos e mecanismos consensuais e autocompositivos que mais aproximem o cidadão da verdadeira justiça.

A verdadeira justiça só se alcança quando os casos “se solucionam”2 mediante consenso. Não se alcança a paz resolvendo só parcela do problema (controvérsia); o que se busca é a pacificação do conflito com a solução de todas as questões que envolvam o relacionamento entre os interessados.

Para o alcance da pacificação o raciocínio deve ser exlético3 e o conflito deve ser analisado sempre na sua integralidade com visão holística, global e transdisciplinar4 abrangendo todos os prismas relacionais a fim de que possam resultar apenas vencedores (ganha/ganha).

Para satisfazer integralmente os interesses dos jurisdicionados é preciso investir na adoção de um modelo consensual que amplie o foco, busque visão holística com raciocínio exlético.

Analisando apenas os limites da “lide processual”, na maioria das vezes não há satisfação dos verdadeiros interesses do jurisdicionado. Em outras palavras, pode-se dizer que somente a resolução integral do conflito (lide sociológica – verdadeiros interesses) conduz à pacificação social; não basta

acordo justo. São Paulo: Ed. Atlas, 2000. p.472 Não é preciso solucioná-los por meio de decisões.3 A exlética permitiria segundo Edward de Bono tirar de uma situação o que ela tem de válido – não importa de que lado se encontre. Maury Rodrigues da Cruz e Nádia Bevilaqua Martins igualmente descrevem aplicações exléticas. Maury Rodrigues da Cruz prefere a grafia eslético ou eslética.4 O termo transdisciplinar foi forjado por Jean Piaget, num encontro sobre a interdisciplinaridade promovido pela Organização da Comunidade Européia (OCDE), em 1970. Segundo Piaget “Enfim, na etapa das relações interdisciplinares, pode-se esperar que se suceda uma fase superior que seria ‘transdisciplinar’, a qual não se contentaria em atingir interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas situaria tais ligações no interior de um sistema total, sem fronteiras estáveis entre as disciplinas” (WEIL, Pierre. Rumo à nova transdisciplinaridade. Sistemas abertos de conhecimento. São Paulo: Summus, 1993, p.39)

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resolver a lide processual – aquilo que foi trazido pelos advogados ao processo – se os verdadeiros interesses que motivaram as partes a litigar não forem identificados e resolvidos.

3. Conclusão objetiva

A visão restrita da lide e o raciocínio puramente dialético são importantes para as soluções heterocompositivas. O mesmo raciocínio não é adequado para os modelos consensuais e processos autocompositivos.

Nos modelos consensuais e nos processos autocompositivos como a conciliação e a mediação, buscam-se soluções vencedoras (ganha/ganha) e por isso o juiz não está adstrito aos limites da lide processual.

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NOS MODELOS CONSENSuAIS AuTOCOMPOSITIVOS (CONCILIAçãO, MEDIAçãO) NãO Há PRODuçãO DE PROVAS

Roberto Portugal BacellarJuiz de Direito – Poder Judiciário do Paraná

Resumo

No Brasil há um ensino jurídico moldado pelo sistema da contradição (dialética) que forma guerreiros, profissionais combativos e treinados para a guerra, para a batalha, em torno de uma lide, onde duas forças opostas lutam entre si, colhem provas de suas versões e, ao final, só pode haver um vencedor (modelo heterocompositivo). Todo caso tem dois lados polarizados. Quando um ganha, necessariamente o outro tem de perder.

No modelo autocompositivo, de regra confidencial e sigiloso, não haverá preocupação com provas e se a tentativa de conciliação resultar infrutífera nada do que foi conversado será consignado ou repassado ao magistrado.

1. Fundamentação

O atual sistema processual brasileiro incentiva e estimula (a qualquer tempo), mas também ao início da instrução e julgamento (solução heterocompositiva), a tentativa de conciliação entre as partes (solução autocompositiva). Vimos também ser costume do operador do Direito já armado para a batalha, segundo o prisma heterocompositivo, buscar a todo o custo os elementos de prova que

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fortaleçam a sua posição no processo. Essa premissa é verdadeira para o processo heterocompositivo: onde serão necessárias todas as provas a fim de que o juiz possa decidir. Quando se trata de processo autocompositivo (onde a solução é dos interessados), não deve haver qualquer preocupação com produção de prova e a doutrina autocompositiva recomenda como fundamental o sigilo sobre tudo que for conversado. Caso os interessados não encontrem uma solução, esquece-se o que foi tratado na fase autocompositiva e aí sim cada parte vai procurar produzir provas que demonstrem a veracidade de suas alegações. Os operadores do Direito no Brasil muitas vezes pretendem que o teor da conversa no ambiente autocompositivo seja utilizado como prova e requerem fique consignado no termo propostas, confissões, desabafos que possam fortalecer seus argumentos jurídicos. Fecho parênteses que teve o objetivo de registrar a incongruência, neste ponto específico, entre a doutrina jurídico-processual voltada para o processo judicial heterocompositivo e a doutrina de visão interdisciplinar/transdisciplinar que fundamenta o processo autocompositivo.

2. Conclusão objetiva

Quando se trata de processo autocompositivo (onde a solução é dos interessados), não deve haver qualquer preocupação com produção de prova e sim com a pacificação.

Se a paz é a razão da existência do Poder Judiciário, só quando ela não for alcançada diretamente pelas partes em uma negociação, conciliação ou mediação é que se tornará necessária a solução heterocompositiva, onde a busca de provas é necessária para instruir a decisão do juiz nos autos de processo.

Formar prova ou tentar registrar o que for consignado na audiência de conciliação é contraproducente e inadequado ao modelo autocompositivo e consensual.

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O PRINCíPIO DA SEPARAçãO DOS PODERES E O REGIME PREVIDENCIáRIO DOS MAGISTRADOS

Cláudio Luís MartinewskiAssociação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AjurisEscola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul – Centro de Pesquisa Judiciário, Justiça e Sociedade

Resumo

A vedação à existência de mais de uma unidade gestora do regime previdenciário em cada ente estatal, prevista no art. 40, § 20, da Constituição Federal1, com a redação dada pela EC no 41, de 19.2.03, não subtraiu do Poder Judiciário qualquer parcela de sua independência, decorrente do princípio da separação dos poderes (CF, art. 2o 2) e das garantias institucionais (CF, art. 99 3) e funcionais (CF, art. 95 e parágrafo único4), entre as quais se encontra

1 § 20. Fica vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social para os servidores titulares de cargos efetivos, e de mais de uma unidade gestora do respectivo regime em cada ente estatal, ressalvado o disposto no art. 142, § 3o, X. 2 Art. 2o. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 3 Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira.4 Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:I – vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado;II – inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII;III – irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4o, 150, II, 153, III, e 153, § 2o, I. Parágrafo único. Aos juízes é vedado:I – exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério;II – receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo;III – dedicar-se à atividade político-partidária.

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o poder de iniciativa privativo do processo legislativo em relação ao Estatuto da Magistratura no qual se inclui a questão relativa à aposentadoria dos magistrados (CF, art. 93, VI 5) e o autogoverno dos Tribunais(CF, art. 96 6).

A previsão constante da parte final do inciso VI, do art. 93, da CF, no sentido de observância do disposto no art. 40 da CF, não autoriza o deslocamento da competência da administração, gerenciamento, concessão, pagamento e manutenção da aposentadoria de seus membros para órgão do Poder Executivo, em face do princípio da separação dos poderes e das garantias constitucionais de independência.

Nesse sentido, afronta o princípio da separação dos poderes e as garantias constitucionais de independência institucionais e funcionais do Poder Judiciário, concretizados no poder de iniciativa exclusivo do Supremo Tribunal Federal de encaminhar projeto de lei complementar (CF, art. 93, VI), a legislação federal ou estadual que, não observando a referida iniciativa, versar sobre a administração, o gerenciamento, a concessão, o pagamento, a revisão e a manutenção do benefício previdenciário de aposentadoria dos magistrados.

IV – receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em leiV – exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração.

5 Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:(...)VI – a aposentadoria dos magistrados e a pensão de seus dependentes observarão o disposto no art. 40.6 Art. 96. Compete privativamente:I – aos tribunais:a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;b) organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correicional respectiva;c) prover, na forma prevista nesta Constituição, os cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição;d) propor a criação de novas varas judiciárias;e) prover, por concurso público de provas, ou de provas e títulos, obedecido o disposto no art. 169, parágrafo único, os cargos necessários à administração da Justiça, exceto os de confiança assim definidos em lei;f ) conceder licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem imediatamente vinculados;II – ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169:a) a alteração do número de membros dos tribunais inferiores;b) a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver; c) a criação ou extinção dos tribunais inferiores;d) a alteração da organização e da divisão judiciárias;

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1. FundamentaçãoCom base no substrato normativo do art. 40, § 20, da Constituição

Federal, e instados pelo Ministério da Previdência Social, por intermédio de atos infralegais (Portaria no 4.992/99, art. 10 e parágrafo único, de 5.2.99, do Ministro da Previdência e Assistência Social7, e Orientação Normativa no 01, art. 2o, V, de 23.1.7, do Secretário de Políticas de Previdência Social8), diversos governadores estaduais encaminharam projeto de lei ou projeto de lei complementar às respectivas Assembleias Legislativas reformatando os seus institutos previdenciários ao modelo de gestor único preconizado pelo referido ministério.

Neles introduziram a previsão de que a administração, o gerenciamento, a concessão, o pagamento e a manutenção da aposentadoria dos magistrados passariam a ser efetivados pela referida unidade gestora, normalmente autarquia vinculada ao Poder Executivo, cujo dirigente máximo, como regra, é nomeado tendo em vista o critério exclusivamente político-partidário.

A referida inclusão, no entanto, é inconstitucional, por violação formal e material da Constituição Federal.

Com efeito, corolário do princípio da separação dos poderes (CF, art. 2o), cujo valor constitucional é absoluto, decorrente da cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4o, III 9), e das garantias institucionais (CF, art. 99) e funcionais (CF, art. 95 e parágrafo único) do Poder Judiciário, compete privativamente ao STF deflagrar o processo legislativo em relação à aposentadoria dos magistrados (CF, art. 93, VI),

Não há espaço, outrossim, com base na remissão constante na parte final do enunciado do inciso VI do art. 93 ao art. 40, ambos da CF, para pretender-

7 Art. 10. Fica vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social dos servidores públicos, e de mais de uma unidade gestora do respectivo regime próprio de previdência social em cada ente estatal, salvo disposição em contrário da Constituição Federal. Parágrafo único. Entende-se como unidade gestora de regime próprio de previdência social, aquela com a finalidade de gerenciamento e operacionalização do respectivo regime.8 Art. 2o. Para os efeitos desta Orientação Normativa, considera-se:(...)V – unidade gestora: a entidade ou órgão integrante da estrutura da administração pública de cada ente federativo que tenha por finalidade a administração, o gerenciamento e a operacionalização do RPPS, incluindo a arrecadação e gestão de recursos e fundos previdenciários, a concessão, o pagamento e a manutenção dos benefícios;9 Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:(...)§ 4o – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:(...)III – a separação dos Poderes;

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se que a vedação à existência de mais de uma unidade gestora em cada ente estatal desconstitua as competências próprias da autonomia e gestão dos tribunais, entre os quais o de dispor sobre a administração, gerenciamento, concessão, pagamento e a manutenção das aposentadorias dos magistrados.

É próprio da constituição do Estado Democrático de Direito um Poder Judiciário, institucionalmente, e seus magistrados, individualmente, independentes.

Sem a existência das garantias constitucionais de independência não há Poder Judiciário e sem Poder Judiciário não há garantia da efetividade dos direitos e das liberdades públicas e preservação das garantias fundamentais.

A importância de tal valor constitutivo do próprio Estado de Direito foi construído em cima de penosas experiências para a humanidade, sendo, portanto, histórico nas democracias ocidentais.

Afirmam-na, à unanimidade, a doutrina não só nacional como estrangeira, como exemplificativamente se transcreve:

Na verdade, o fator que compatibiliza o Poder Judiciário com o espírito da democracia (no sentido que Montesquieu conferiu ao vocábulo) é um atributo eminente, o único capaz de suprir a ausência do sufrágio eleitoral: é aquele prestígio público, fundado no amplo respeito moral, que na civilização romana denominava-se auctoritas. Ora, esta, numa democracia, funda-se essencialmente na independência e na responsabilidade com que o órgão estatal em seu conjunto, e os agentes públicos individualmente considerados, exercem as funções políticas que a Constituição, enquanto manifestação original de vontade do povo soberano, lhes atribui.Se quisermos, portanto, verificar quão democrático é o Poder Judiciário no Brasil, devemos analisar a sua organização e o seu funcionamento segundo os requisitos fundamentais da independência e da responsabilidade. (....)Diz-se que o Poder Judiciário em seu conjunto é independente quando não está submetido aos demais Poderes do Estado.10

10 COMPARATO, Fábio Konder. O Poder Judiciário no regime democrático, Revista Cidadania e Justiça, ano no 7, vol. 13, 1o sem. 2004, páginas 7-8.

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Aos órgãos jurisdicionais, consoante vimos, incumbe a solução dos conflitos de interesses, aplicando a lei aos casos concretos, inclusive contra o governo e a administração. Essa elevada missão, que interfere com a liberdade humana e se destina a tutelar os direitos subjetivos, só poderia ser confiada a um poder do Estado, distinto do Legislativo e do Executivo, que fosse cercado de garantias constitucionais de independência. Essas garantias assim se discriminam: (1) garantias institucionais, as que protegem o Poder Judiciário como um todo, e que se desdobram em garantias de autonomia orgânico-administrativa e financeira; (2) garantias funcionais ou de órgãos, que asseguram a independência e a imparcialidade dos membros do Poder Judiciário, previstas, aliás, tanto em razão do próprio titular mas em favor ainda da própria instituição11.

“Um Judiciário independente” – há muito referiu William O. Douglas, célebre Juiz norte-americano – “é condição sine qua non para uma sociedade livre. Onde ficam sujeitos ao Poder Executivo ou ao Legislativo, os juízes tornam-se instrumentos de expressão dos critérios ou caprichos dos detentores do poder”12.

A independência da magistratura está na própria essência do Poder Judiciário. E tão marcante é êsse princípio que Story dizia que a magistratura deve ser organizada como se fosse uma instituição fora do próprio Estado (“as it were something exterior to the state”) (apud Pedro Lessa, “Do Poder Judiciário”, 1915, pág. 4), o que sob outra forma, repete Radbruch, ao mostrar que a independência do juiz é a consagração do império do Direito em face do próprio Estado (Filosofia do Direito, tradução portuguesa, 1034, pág. 255)13

Retirar do Poder Judiciário a competência de expedir a ato de aposentadoria de seus membros e os demais atos correlatos, atinge diretamente o seu auto-governo, pois submete não só o Chefe do Poder Judiciário, mas igualmente seu membro, à possibilidade do Presidente da autarquia previdenciária passar a

11 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros, São Paulo, 2003, 22a edição, p. 575. 12 DOUGLAS, William O. Anatomia da Liberdade, tradução Geir Campos, Zahar Editores, 1965, p. 96.13 SANTAMARÍA, Hermano Roberto. O Poder Judiciário como um dos poderes de Estado – Sua independência e suas garantias, in Revista Justitia, Ano XXXI, 3o Trimestre de 1969, vol. 66, p.ç 135.

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determinar os critérios formais e materiais para a concessão das aposentadorias por invalidez ou a compulsória (LOMAN, art. 42, V 14) e, consequentemente, a negá-las, dessa forma atingindo e fragilizando na essência a atividade jurisdicional do Poder Judiciário.

Nesse sentido, aliás, já decidiu o Tribunal Pleno do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul no processo no 2976-02.00/08-2, sessão do dia 13.8.08, cuja ementa reza:

PEDIDO DE ORIENTAÇÃO TÉCNICA. Unidade Gestora do Regime Próprio de Previdência Social. Invasão de competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Lei Estadual no 12.909/2008. Instituto de Previdência do Estado como gestor único. Competências que extrapolam a simples gestão. Interpretação do art. 2o, I, da Lei Estadual no 12.909/2008. Deve haver respeito às autonomias administrativas do Poder Judiciário, Assembleia Legislativa, Ministério Público Estadual, Defensoria Pública do Estado e Tribunal de Contas do Estado.

A vitaliciedade, outrossim, que integra o regime constitucional brasileiro de separação e independência dos Poderes (STF, ADI no 98-5/MT), reafirma a mesma convicção na medida em que não cessa pela aposentadoria, nem se confunde com a salvaguarda dos requisitos para a perda do cargo. O cargo é vitalício porque assim o afirma a Constituição.

A aposentadoria, embora faça cessar o feixe de obrigações pessoais do magistrado em relação ao exercício do cargo, não torna o cargo assumido e exercido em não vitalício.

Dada a necessidade da função e a gravidade do seu exercício, em prol dos mais altos interesses da Nação e da sociedade, a vitaliciedade e a irredutibilidade de vencimentos é o que resta como garantia, com tudo o que elas representam, em relação aos efeitos que perduram na inatividade quanto aos atos praticados no exercício da atividade.

A não ser assim, sem essa garantia – que longe está de se caracterizar como privilégio15 – o magistrado que estivesse em vias de se aposentar, se veria

14 Art. 42. São penas disciplinares:(...)V – aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço;15 “Longe de ser um privilégio para os juízes, a independência da magistratura é necessária para o povo,

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fragilizado em sua independência, sujeito à injunções de qualquer ordem, porque logo a seguir, pela concessão da aposentadoria, passaria a não dispor de qualquer garantia, o que vale a dizer, ele passaria a se orientar não mais sob o manto das garantias de independência, mas sim com os olhos voltados aos efeitos que decorreriam para ele, individualmente, da decisão que viesse a tomar.

Daí a sempre presente advertência de Fábio Konder Comparato: “se quisermos, portanto, garantir a independência do Poder Judiciário, precisamos, sobretudo, protegê-lo contras as indevidas incursões do Executivo em seu território” (op. cit. p. 10).

2. Conclusão

Compete exclusivamente ao Poder Judiciário a administração, o gerenciamento, a concessão, o pagamento, a revisão e a manutenção dos benefícios previdenciários de aposentadoria e pensões relativos aos magistrados que, para tanto, não se submete à unidade gestora constante do enunciado do art. 40, § 20, da CF, vinculada ao Poder Executivo.

que precisa de juízes imparciais para a harmonização pacífica e justa dos conflitos de direitos. A rigor, pode-se afirmar que os juízes têm obrigação de defender sua independência, pois sem esta a atividade jurisdicional pode, facilmente, ser reduzida a uma farsa, uma fachada nobre para ocultar do povo a realidade das discriminações e das injustiças” (DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes, São Paulo, Saraiva, 1996, p. 45).

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Higyna Josita Simões de Almeida BezerraAssociação dos Magistrados da Paraíba (AMPB)

PAPEL DAS ESCOLAS NA FORMAçãO DO

MAGISTRADO: CuRSO OBRIGATóRIO DE GESTãO

JuRISDICIONAL

Resumo

A tese em epígrafe propõe um meio de transformação do juiz-juiz em juiz-gestor, através da ministração de cursos obrigatórios de gestão jurisdicional pelas escolas da magistratura, sob a supervisão da Enfam – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. Defendemos que através da educação voltada para a gestão administrativo-jurisdicional, os juízes habilitar-se-ão a usar suas habilidades administrativas na unidade judiciária com vistas à entrega com excelência da prestação jurisdicional e atingimento das metas previstas na Resolução no 70/2009 do CNJ.

1. Introdução

Vivemos um tempo de crise no Judiciário, consubstanciada no fato de o processo não conseguir cumprir a missão que lhe é atribuída de ser instrumento de acesso à justiça e meio efetivo de entrega da prestação jurisdicional em prazo razoável. A Emenda Constitucional no 45/2004 não trouxe a reforma estrutural necessária à transformação do Judiciário em serviço público célere, eficiente e efetivo pelo qual clama a sociedade.

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Todavia, não é aconselhável a conformação com essa problemática que assola o Judiciário, sob o argumento de que a mudança deve partir de outros poderes e não somente do Poder Judiciário. O juiz da atualidade precisa superar a crença de que sua função é apenas despachar e sentenciar processos; precisa ter responsabilidade social e contribuir com o Judiciário utilizando as armas de que dispõe para que o jurisdicionado tenha pleno acesso à Justiça.

O primeiro passo a ser dado é no sentido da mudança de mentalidade do juiz, para que ele possa ousar, utilizando, sobretudo, a criatividade no âmbito em que trabalha, vislumbrando o processo sob o ângulo dos “consumidores” da prestação jurisdicional. Como se dará essa mudança de mentalidade? A educação é a resposta. Através da educação voltada para conhecimentos de gestão, o magistrado poderá saber da existência de métodos e técnicas facilitadoras do exercício da função de juiz-administrador. Defendemos que a transformação do juiz-juiz em juiz-gestor encontra amparo em conceitos e ensinamentos advindos da ciência da Administração.

2. Fundamentação

Partindo da assertiva de que, na atualidade, a função de juiz pressupõe também a função de administrador e que a educação é um ato de formação de consciência, a transformação do juiz-juiz em juiz-gestor realizar-se-ia através da participação em cursos de gestão jurisdicional a serem ministrados pelas escolas da magistratura.

O juiz-gestor é aquele magistrado que administra sua unidade judiciária com visão de administrador, utilizando métodos que vão desde a economia de material até o desenvolvimento de técnicas que acelerem a entrega da prestação jurisdicional. É o juiz que, diferentemente do juiz-juiz, não se restringe a sentenciar e despachar processos e usa a criatividade para superar os problemas existentes na Vara.

O próprio CNJ já sentiu a necessidade de o Judiciário se adequar a padrões de gestão ao instituir a Resolução no 70/2009, que dispõe sobre o planejamento e a gestão estratégica no âmbito do Poder Judiciário.

Os objetivos de números 11 e 12 da prefalada Resolução, pertinente à gestão de pessoas, tem como foco, respectivamente, “desenvolver conhecimento, habili-dades e atitudes dos magistrados e servidores” e “motivar e comprometer magistra-dos e servidores com a execução da Estratégia”. Entendemos que o êxito no cum-primento desses objetivos só é possível através da educação voltada para a gestão.

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Esses cursos seriam ministrados pelas escolas da magistratura, sob coordenação/orientação da Enfam – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, de forma padronizada e de caráter obrigatório para todos os magistrados na ativa. Obrigatoriedade essa decorrente do próprio fim a que o curso se destina: de ser meio de mudança de mentalidade.

Os cursos deveriam, outrossim, ser contabilizados para os fins de promoção por merecimento e ministrados em lapso temporal de curta duração. Uma das disciplinas a serem ministradas deve ser a de “Boas Práticas de Gestão” para que os juízes apliquem em suas varas as práticas que forem compatíveis com o seu ambiente de trabalho.

O que mudaria com a transformação do juiz-juiz em juiz-gestor? De posse do conhecimento das técnicas advindas da ciência da Administração, o juiz passaria a estabelecer metas de trabalho para cumpri-las. Preocupar-se-ia mais com a busca da excelência nos serviços prestados, na racionalização de material, no modo como o público e os advogados são atendidos em sua unidade judiciária. Essa mudança também traria benefícios para a temática da celeridade processual, como resultado normal do processo de gestão.

3. Conclusão e proposição

Por todo o exposto, chega-se à ilação de que a educação de magistrados voltada para a gestão administrativo-jurisdicional é imprescindível na construção do juiz-gestor, munindo-o de habilidades administrativas a serem usadas como parâmetros para desempenho de suas funções na unidade judiciária. Funções estas voltadas para a excelência na entrega da prestação jurisdicional e atingimento das metas previstas na Resolução no 70/2009, CNJ.

Nesse diapasão, propõe-se:I) que as escolas da magistratura ministrem curso de aperfeiçoamento na

área de Gestão Jurisdicional, com as seguintes características: a) sob a coordenação da Enfam;b) de forma padronizada em todos os estados brasileiros;c) caráter obrigatório para todos os magistrados “na ativa”;d) como requisito para promoção/remoção por merecimento;e) de curta duração; ef ) com a inserção da disciplina de “Banco de Boas Práticas de Gestão do

Poder Judiciário”.

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PARTICIPAçãO DE TODOS OS MAGISTRADOS NAS ELEIçõES PARA OS CARGOS ADMINISTRATIVOS DOS TRIBuNAIS

Thiago Melosi SóriaAssociação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2a Região (Amatra – SP)

1. Introdução

A questão da forma de escolha dos administradores dos tribunais é importantíssima quando se trata do aperfeiçoamento dos mecanismos de gestão do Poder Judiciário. Com efeito, a restrição do “eleitorado”, em qualquer situação (dentro ou fora dos tribunais), implica em possível confronto com a vontade dos administrados. A democratização da gestão do Poder Judiciário deve ter como primeiro passo a democratização da forma de escolha dos gestores.

2. Fundamentação

O Estado brasileiro é um Estado Democrático e a democracia deve qualificar todas as suas instituições, inclusive o Poder Judiciário. Essa democracia deve sempre ser a mais ampla possível, sob pena de o vocábulo perder seu conteúdo. Nesse sentido, mostra-se indevida qualquer limitação do eleitorado que não esteja relacionada à impossibilidade de manifestação consciente da vontade.

O Poder Judiciário é o único poder do Estado cujos membros não são, pelo menos em parte, escolhidos pelo povo. A característica técnica da função jurisdicional exige que o acesso aos cargos da magistratura seja feito através de concurso meritório. Mesmo esse concurso meritório, no entanto, não pode ser considerado antidemocrático, pois a participação é aberta a todos que se disponham a atender requisitos mínimos relacionados à formação educacional. Isso, porém, não justifica a restrição interna na escolha dos dirigentes dos tribunais. É natural

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que os administrados sempre participem da escolha dos seus administradores.É certo que os magistrados que compõem os tribunais propriamente ditos

assumem diversas funções administrativas e, através do órgão pleno ou do órgão especial, assumem tarefas inacessíveis aos juízes de primeiro grau de jurisdição. Porém, o direito de sufrágio não se confunde com atribuições administrativas. É, antes, um direito político de exercício de poder. O acesso a certo grau da carreira não é capaz de atribuir ao Magistrado direito político maior do que o de seus pares, nem se admite distinção entre eles.

O voto censitário há muito tempo foi banido do Direito brasileiro, mas ainda subsiste no Poder Judiciário, onde há cidadãos com direitos políticos diferentes (magistrados que possuem e que não possuem direito de votar para escolha dos dirigentes dos tribunais). A natureza de exercício de direito político que o voto para eleição de administradores de um Poder possui não permite que sejam criadas restrições indevidas ao exercício desse mesmo poder.

É razoável que a evolução da carreira seja tida como critério adequado para a delimitação dos elegíveis, pois compatível com as regras da Constituição da República, que escolheu critérios como idade para a elegibilidade a certos cargos, trazendo o fator temporal (observado na carreira) para a qualificação dos candidatos. No entanto, o tempo somente é fator relevante para que um cidadão seja considerado eleitor quando relacionado à maturidade desse. No caso da Magistratura, não se pode considerar objetivamente que há imaturidade de seus membros, em quaisquer instâncias, não se justificando a exclusão de parte dos juízes do processo eleitoral.

Importante ainda destacar que o ordenamento jurídico brasileiro impõe mesmo que a mais simples das associações eleja seu administrador de forma direta, com participação dos associados. Se tal imposição ocorre dirigida a entes privados, mais justo se mostra que a eleição direta com participação ampla seja instituída no Poder Judiciário.

Portanto, é justo que se lute pelas necessárias alterações constitucionais destinadas a permitir que magistrados de todos os graus de jurisdição participem da escolha dos administradores dos tribunais aos quais estão vinculados.

3. Conclusão e proposição

Diante da necessidade de democratização da gestão do Poder Judiciário propõe-se que a escolha dos administradores dos tribunais seja realizada através de eleição direta com participação de todos os magistrados vinculados ao respectivo tribunal.

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Jorge Luiz Lopes do CantoDesembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Representante do TJRS no Comitê Gestor da Autoridade Certificadora do Estado do Rio Grande do Sul – RS

PLANEJAMENTO ESTRATéGICO DO PODER JuDICIáRIO – DESCENTRALIzAçãO ADMINISTRATIVA E GERENCIAL – PROCESSO ELETRôNICO

Resumo

Criação de página informatizada para cada unidade judicial (Vara, Câmara, Turma, Grupo, Órgão Especial, Distribuição, Contadoria, Diretoria Processual, Diretoria de Material, etc.) no próprio sítio de cada Tribunal, objetivando atender ao princípio da transparência, com a divulgação dos dados estatísticos relacionados à atividade jurisdicional, além de informações relativas ao funcionamento daquele órgão e, inclusive, históricas, divulgando esta gama de informações à comunidade.

A divulgação dos serviços prestados pelo Poder Judiciário em meio eletrônico quanto à atividade desempenhada, auxiliará na desmistificação da Justiça e melhor compreensão do trabalho realizado, além de permitir a criação de índices de avaliação e controle deste, a fim de possibilitar a gestão mais eficaz do Judiciário.

A transparência das ações do Judiciário de forma institucional e coletiva afasta a possibilidade do culto ao individualismo, de sorte a que não sejam criados sites

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ou blogs de forma individual, a fim de que se tenha uma análise institucional e conjunta de toda atividade realizada no âmbito do Poder Judiciário.

Facilitar o acesso a cada unidade jurisdicional e administrativa do Poder Judiciário, mediante a instituição da comunicação por meio eletrônico, inclusive com consultas e agendamento de audiências.

1. Justificativa

A criação de página informatizada para cada unidade judicial (Vara, Câmara, Turma, Grupo, Órgão Especial, Distribuição, Contadoria, Diretoria Processual, Diretoria de Material, etc.) no próprio sítio de cada Corte, objetivando atender ao princípio da transparência, com a divulgação dos dados estatísticos relacionados à atividade jurisdicional e administrativa realizada, a fim de que a comunidade tenha acesso a estas informações.

A existência de página de cada unidade jurisdicional dos tribunais facilitaria o acesso a informações quanto ao funcionamento daquele órgão, além de permitir obter dados até mesmo de cunho geopolítico de determinada Comarca, como número de habitantes, de processos, dentre outras, a fim de auxiliar na gestão de cada órgão, de acordo com a necessidade da comunidade a que este pertença.

A constituição de página individualizada de cada órgão jurisdicional facilitaria o acesso ao Judiciário, bem como atenderia aos princípios da celeridade e economia processual, tendo em vista que os usuários poderiam contatar diretamente com a unidade que tivessem eventual interesse a ser solvido.

A possibilidade de atualização dos dados na própria unidade judicial de origem torna o sistema ágil e seguro, permitindo a dupla conferência daquelas informações com os dados existentes em cada órgão correcional dos Tribunais.

Ademais, poderia ser instituído um e-mail setorial para comunicação em cada página, a fim de implementar as comunicações coorporativas (ofícios, requisições, instrução de precatórios, intimações, citações, etc.) a serem feitas entre as unidades jurisdicionais de cada Corte, entre estas e os demais tribunais, bem como em relação aos usuários (partes, advogados, Ministério Público, serventuários da Justiça, etc.). Tal medida serviria para as comunicações por meio eletrônico, como remessa de petições (iniciais, recursos, por exemplo), diminuindo custos com correios e protocolos, além de evitar o retardo no processamento com a impressão imediata do documento encaminhado, cujos custos passariam a integrar as custas judiciais.

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A implementação das comunicações coorporativas poderia ser feita em computador central, mediante a gravação daqueles dados. Tal providência auxiliaria para atestar a autenticidade da referida documentação e, por via de consequência, na segurança jurídica do ato praticado, mediante cadastramento prévio dos usuários, o que impediria o ataque de “hackers” ou “crackers” ao sistema informatizado.

O acesso as dados e a comunicação instantânea com a unidade judicial desejada, auxilia na redução de custos elevados do Poder Judiciário com a manutenção de quadro funcional e construção de prédios para a guarda de documentos e atendimento ao público, o que também importa em despesas com manutenção e segurança igualmente elevadas.

Os usuários poderiam ser cadastrados previamente, com a vantagem de que a informação conteria não só a data do recebimento como aquela de acesso ao documento, o que serviria para identificar qual o funcionário que recebeu este e quando, bem como se o prazo de execução da medida correspectiva foi razoável e atendeu aos parâmetros legais, servindo de prova hábil quanto à utilização do meio eletrônico, à semelhança do que ocorre na Justiça Federal com a intimação de órgãos do Estado e Ministério Público.

As vantagens da criação deste sistema de páginas para cada unidade no sítio dos tribunais tanto em termos econômicos, como também relativo à segurança jurídica deste, são evidentes, além de dar maior efetividade à prestação jurisdicional, revelando-se esta mais ágil e transparente.

Ademais, a utilização de meio eletrônico no trânsito de documentos e comunicações permite também a criação de índices de avaliação e controle, possibilitando com isso a aferição da eficiência do sistema mediante a verificação de dados estatísticos, a fim de possibilitar a melhor forma de gestão, com redução de custos e aumento de produtividade.

A criação de páginas setoriais impede a proliferação de sites ou blogs de forma individual, afastando a possibilidade do culto ao individualismo, bem como implementando a desejada transparência das ações do Judiciário de forma institucional e coletiva, a fim de que se tenha uma análise institucional e conjunta de toda atividade realizada no âmbito do Poder Judiciário.

A facilitação do agendamento de audiência para conversar com os magistrados, com informação prévia do assunto e interesse a ser tratado, possibilitaria até mesmo que estas informações fossem encaminhadas de pronto por e-mail, quando desnecessário o sempre profícuo contato pessoal.

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Instituição de um portal de transparência que seria útil a todos os magistrados com as informações do acervo do gabinete, com o número de processos para julgamento com indicação destes e das datas de conclusão, bem como o número de processos que ingressam no mês, de processos julgados neste interregno de tempo e do prazo médio em que estes são solvidos, com a prestação de contas devida à sociedade.

A transparência do Poder Judiciário não está só na análise e gestão financeira, mas também na possibilidade de acesso dos cidadãos à atividade desempenhada por este de forma rápida e segura.

2. Proposta

Criar páginas setoriais relativas às unidades judiciárias dos tribunais, jurisdicionais e administrativas, no site oficial de cada Corte, objetivando divulgar as atividades realizadas em cada unidade, dados estatísticos e informações úteis, como forma de acesso ao serviço judicial prestado, prestando as contas devidas, em tempo real, à sociedade.

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PLANEJAMENTO ESTRATéGICO E ORçAMENTO PARTICIPATIVO: A FuNDAMENTAL CONTRIBuIçãO DOS MAGISTRADOS

José Barroso FilhoJustiça Militar da união (Amajun)

Resumo

No âmbito do Poder Judiciário, há que se reconhecer que existe um “cliente” interno que são os magistrados e é necessário dotar os órgãos julgadores com as adequadas condições materiais para o efetivo desempenho de suas funções institucionais com uma prestação jurisdicional justa e célere ao “cliente” externo, a população. Fundamental a participação dos magistrados nas fases do planejamento estratégico, do orçamento e da formulação e execução dos planos de ação de modo a propiciar as necessárias condições materiais para a justa e efetiva “atividade fim” que é a prestação jurisdicional, razão da existência do Poder Judiciário, personificado na atuação de seus magistrados.

1. Introdução

A função primordial do Poder Judiciário é a prestação jurisdicional e esta se realiza por intermédio da atuação dos magistrados. A participação destes nas fases do planejamento estratégico, da elaboração da peça orçamentária e dos consequentes planos de ação constituem uma exigência lógica e sistêmica necessária à eficiência do sistema judicial.

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2. Fundamentação

O princípio constitucional da eficiência impulsiona o Poder Judiciário a rever a forma de atuação e a alterar a estrutura de funcionamento, exigindo de seus integrantes a avaliação periódica da qualidade dos serviços que prestam à sociedade.

Para cumprir seu dever jurisdicional, o Judiciário exerce também a função administrativa, que compreende a atuação necessária à organização e gestão de seus órgãos e serviços.

Essa atuação administrativa é tarefa desempenhada individualmente pelo magistrado, na qualidade de agente público e também, institucionalmente, pelos tribunais, no exercício de suas funções decorrentes de sua autonomia administrativa e financeira (CF/88, art. 99) e está profundamente relacionada com o desempenho da atividade final que é a prestação jurisdicional.

O princípio da eficiência na Administração Pública exige obediência ao princípio, à avaliação periódica da qualidade dos serviços e o desenvolvimento de programas de qualidade, de produtividade, de modernização e de racionalização nas ações (CF/88, art. 37, § 3o, I; art. 39, § 7o).

Para o alcance das metas institucionais serão definidos projetos e planos de ação para cada unidade envolvida, juntamente com os respectivos indicadores, metas setoriais, responsáveis e prazos de conclusão, o que reforçará a ideia de melhoria contínua e inovação.

Assim sendo, há que se definir que existe um “cliente” interno que são os magistrados e é necessário dotar os órgãos julgadores com as adequadas condições materiais para o efetivo desempenho de suas funções institucionais com uma prestação jurisdicional justa e célere ao “cliente” externo, a população.

Fundamental a participação dos magistrados nas fases do planejamento estratégico, do orçamento e da formulação e execução dos planos de ação. Nesse contexto, o planejamento estratégico surge como importante ferramenta para operacionalizar esse processo de mudança.

Na sua raiz semântica, estratégia significa “estabelecer caminhos”. Estratégica envolve as questões relativas ao caminho determinado e também o processo de se determinar o caminho.

A Administração Estratégica é definida como um processo contínuo e iterativo e significa a administração de mudanças, a gestão de mudanças estratégicas. É um quebra-cabeça dinâmico, cujas peças são encaixadas dia a dia e não montadas de uma só vez.

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O Controle Estratégico é um tipo especial de controle organizacional que se concentra em monitorar e avaliar o processo de administração estratégica.

Planejar não é um fim em si mesmo, mas um instrumento dinâmico de gestão.Os planos precisam ser traduzidos em ações competentes que produzam os

resultados almejados: são as ações que criam a realidade.Neste diapasão, os magistrados devem participar do planejamento

estratégico e, sobretudo, da elaboração da peça orçamentária e de sua execução, ou seja, promover a transição da realidade atual para a visão de futuro.

Sem a contribuição efetiva de quem é responsável pela prestação jurisdicional, a percepção dos objetivos estratégicos e das respectivas ações compromete a qualidade do serviço público da Justiça.

Implementar processos de mudanças organizacionais é mudar pessoas: comportamentos, habilidades e atitudes.

O coração da cultura são os seus valores, pois representam a essência da filosofia da organização; definem o que é importante para os servidores e estabelecem padrões a serem alcançados.

O processo de Gestão Estratégica tem de ser participativo. Informação e participação são aliados importantes.

As pessoas precisam saber aonde a organização quer chegar, quais são os benefícios, por que é necessário, como será feito, que comportamentos são esperados. A luta por uma causa dá às pessoas sentido ao trabalho, gera motivação. Os objetivos, além de direção, dão significado à caminhada.

Engajado neste processo, desde o planejamento estratégico, cabe ao magistrado estimular competências individuais. Competência é a inteligência prática e está associada a verbos como: saber fazer, saber aprender, saber engajar-se, saber compartilhar, mobilizar recursos, integrar saberes múltiplos e complexos, assumir responsabilidades, ter visão estratégica.

Assim sendo, o magistrado, em sua unidade jurisdicional, deve promover uma gestão por competências que nada mais é do que a gestão de pessoas vista por uma ótica mais ampla e sistêmica. É uma gestão integrada. Não há mais como compreender os treinamentos desarticulados da estratégia, ou o sistema de seleção desvinculado das demais áreas.

A gestão por competências mostra-se como um caminho racional, pois já é possível traduzir visão, missão, valores, estratégias e cultura em conhecimentos, habilidades, atitudes e experiências, ou seja, as competências necessárias para concretizar a estratégia formulada.

A gestão por competências sinaliza para os servidores o que se espera deles. Em contrapartida, a instituição deverá sinalizar também qual é a recompensa para quem alcança o que se espera.

O estudo dos processos organizacionais objetiva erradicar o trabalho desnecessário, reduzir o tempo investido em ações repetidas e verificar desvios de lotação ou novas demandas. Essa análise deve ser realizada de forma participativa, envolvendo os magistrados e os servidores de modo a erradicar a cultura de feudos organizacionais que tanto comprometem a efetiva prestação jurisdicional.

3. Conclusão e proposição

É essencial e sistêmica a participação dos magistrados nas seguintes fases:• planejamento estratégico;• elaboração da peça orçamentária; e• definição e execução dos planos de ação.Desta forma, dotado dos meios materiais e promovendo uma gestão

por competência, há de se desenvolver um sinérgico clima organizacional, ambiente que aprimorará a prestação jurisdicional de forma justa e célere.

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Vanderlei DeolindoJuiz de Direito do 1o Juizado da 1a Vara Cível de São Leopoldo – RS, Vice-Presidente Cultural da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul Membro do Centro de Pesquisa Judiciário, Justiça e Sociedade da Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJuRIS

PLANEJAMENTO ESTRATéGICO EM COMARCA

1. Ementa

Inserção da AMB no processo de estudo, reivindicação e capacitação de magistrados, em parceria com o Conselho Nacional de Justiça, visando a elaboração, por magistrados e servidores, de um “Planejamento estratégico no âmbito das direções de Foro, na linha dos planejamentos estratégicos a serem elaborados pelos tribunais, em cumprimento à Resolução no 70/2009, de forma a conduzir a definição dos objetivos estratégicos da Comarca junto às respectivas Comunidades.

2. Justificativa

A inexistência de planejamento estratégico é uma carência histórica do Poder Judiciário em suas diversas esferas (justiças estaduais, federais, militares, do Trabalho e eleitorais), salvo exceções. Urge que as altas administrações dos respectivos tribunais deem início aos referidos planejamentos, estendendo-se a cultura de planejamento estratégico para o âmbito da Comarca, com a efetiva participação de magistrados, servidores e advogados, estes com base no art. 133 da Constituição Federal. É sabido que cada unidade forense conta com peculiaridades segundo a cultura da região, padrão de vida diverso em âmbito nacional, maior ou menor apego à cultura da gestão, meios social e jurídico diferentes, que exigem ajustes na comunicação, nos processos de trabalho, na estrutura e no ambiente de trabalho, na relação entre os atores judiciais (magistrados, servidores, advogados, promotores e outros). Não raras vezes esses atores se limitam ao exercício das respectivas atividades tradicionais,

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deixando de atuar de forma organizada e harmônica na busca de soluções para os problemas locais. Não são poucas as críticas e reivindicações aos tribunais buscando soluções para problemas que estão ao alcance da própria Comarca, desde que desenvolvidas ações de liderança, muitas vezes adormecida ou não estimulada. Impende, então, o estímulo ao desenvolvimento de medidas a serem realizadas pelas lideranças, a partir dos magistrados, no sentido de mudar o status quo, mobilizando pessoas, analisando os cenários, os pontos fortes e fracos da organização, oportunidades e ameaças do meio ambiente, de forma a estabelecer objetivos estratégicos para os próximos anos, indicadores e ações que possibilitem o desenvolvimento ordenado da organização no passar dos mandatos dos gestores diretores do Foro. Gestões empíricas, firmadas em personalismos dos gestores do momento, não obstante a moralidade que tem caracterizado as administrações do Judiciário, em regra são desapegadas das técnicas gerenciais sugeridas pela ciência da Administração. Conclui-se propondo, então, após os planejamentos estratégicos dos tribunais, com a identificação dos objetivos estratégicos para os próximos anos, a realização de Planejamento Estratégico no âmbito das comarcas, nas direções de Foro, fazendo com que o Poder Judiciário sistematize ações ordenadas em todos os níveis da organização perseguindo objetivos comuns em favor da sociedade, razão da sua existência.

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PROCEDIMENTOS JuDICIáRIOS – MODERNIzAçãO E RACIONALIzAçãO DOS PROCEDIMENTOS JuDICIáRIOS

Jorge Luiz Lopes do CantoDesembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Representante do TJRS no Comitê Gestor da Autoridade Certificadora do Estado do Rio Grande do Sul – RS

Resumo

Atendimento ao disposto na Lei no 11.419/2006, a fim de que as comunicações quanto aos resultados dos julgamentos sejam feitas eletronicamente e em tempo real.

Criação de pauta virtual, diária ou semanal, com a publicação de data de julgamento dos processos nos quais não haja intervenção das partes nas sessões dos colegiados feita nos moldes atuais (embargos de declaração, agravos, etc.) e daqueles que importarem em julgamentos repetitivos que envolvam somente questões de Direito.

O sistema em questão atenderia aos princípios da economia e celeridade processual, a fim de reduzir o tempo de tramitação dos feitos no segundo grau, agilizando a solução das causas, pois não seria necessária a designação de ato formal e presencial para liberação dos resultados, o que poderia ser feito semanalmente em cada unidade judicial.

Tramitação mais célere e segura dos processos massificados e repetitivos, que envolvam apenas questões de Direito, pois estes seriam pautados nas sessões eletrônicas, cujas intervenções, porventura existentes, seriam admitidas também de forma eletrônica por e-mail ou vídeo-conferência com data e horário a serem apresentados aos magistrados.

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A redução de custos desse sistema para partes, advogados e para o próprio Judiciário seria considerável, pois dispensa o deslocamento daqueles ao Tribunal, bem como os custos com a construção e manutenção de prédios para abrigar as salas de sessão de julgamento, o que facilitaria o uso do mesmo local de trabalho por diversos colegiados. Ocorrendo, também, a consequente diminuição dos custos com pessoal para atender as sessões nos tribunais em relação ao sistema utilizado atualmente.

1. Justificativa

A utilização de sistemas on-line como a criação de sessões eletrônicas dá maior transparência e segurança jurídica às decisões no segundo grau, pois facilita o acesso a estas pelos interessados.

O sistema proposto daria maior segurança e agilidade na solução das causas, pois os membros de determinado colegiado teriam condições de disponibilizar com maior rapidez os seus julgados, com isso, diminuindo o estoque de processos e tempo de tramitação do feito em Gabinete.

A solução preconizada poderia ser implementada mediante a mera alteração dos regimentos internos dos tribunais, estabelecendo aqueles prazos para Revisor e Vogal se manifestarem eletronicamente quanto ao voto do Relator, colhidos os votos eletrônicos, o processo já estaria apto a ser pautado, bem como publicada a decisão deste de forma célere.

No dia e hora aprazados seria publicado no sistema informatizado dos tribunais o resultado dos julgamentos, iniciando a fluir o prazo recursal a partir desta publicação eletrônica.

Os processos massificados e repetitivos que envolvam apenas questões de Direito, teriam trâmite mais célere e seguro, pois estes seriam pautados nas sessões eletrônicas, cujas intervenções, porventura existentes, seriam admitidas também de forma eletrônica por e-mail ou vídeo-conferência com data e horário a serem apresentados, sendo disponibilizadas na rede aos magistrados.

A adoção deste sistema possibilitaria a realização de sessões apenas para discussão de processos que os relatores ou o Colegiado reputassem de interesse público, relevantes, ou que houvesse pedido prévio e por escrito para realização de sustentação oral em sessão.

Aplicação do princípio da transparência ao sistema, com maior publicidade do trâmite do ato processual em questão, pois o tempo de tramitação do processo no Tribunal até a sua solução poderia ser acompanhado pelas partes

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e pelos advogados de qualquer lugar do País em tempo real, uma vez que seria divulgada a solução na rede mundial de computadores.

Eliminação do volume de processos que tramitam em sessão, pois as partes seriam encaminhadas diretamente às secretarias dos órgãos colegiados, a fim de terem acesso aos autos e à solução dada, o que importa em segurança no trâmite dos feitos e reduz a possibilidade do extravio de autos.

As vantagens na utilização desse sistema de sessão eletrônica, tanto em termos econômicos, como também relativo à segurança jurídica deste são evidentes, além de dar maior efetividade à prestação jurisdicional, revelando-se esta mais ágil e transparente.

Ademais, a utilização de meio eletrônico nas sessões dos tribunais permite também a criação de índices de avaliação e controle, possibilitando com isso a aferição da eficiência do sistema mediante a verificação de dados estatísticos, a fim de possibilitar a melhor forma de gestão, com redução de custos e aumento de produtividade.

A transparência do Poder Judiciário não está só na análise e gestão financeira, cujas vantagens seriam evidentes neste caso, com a diminuição de custos com papel, construção e manutenção de prédios, além da contratação de funcionários para atendimento de partes, advogados e magistrados nas sessões presenciais existentes atualmente, mas também na possibilidade de acesso dos cidadãos à atividade desempenhada por aqueles de forma rápida e segura.

2. Proposta

Criação de sessões eletrônicas nos tribunais do País para publicação das decisões dos colegiados nos processos em que não haja intervenção das partes naquele ato processual e nos julgamentos de processos massificados e repetitivos que envolvam somente questões de direito, implementando de forma efetiva a Lei no 11.419/2006 nos tribunais do País.

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Aluízio Pereira dos SantosAssociação dos Magistrados do Estado de Mato Grosso do Sul (Amansul)

PRORROGAçãO DA COMPETêNCIA DA VARA DO

TRIBuNAL DO JúRI

1. Introdução

Como todos sabem, nas capitais e grandes centros do País há considerável número de homicídios e tentativas de homicídio por ano. As varas dos tribunais do Júri, ainda que especializadas, não são suficientes para atender à grande demanda, razão pela qual os julgamentos tornam-se morosos.

Assim, em tais circunstâncias, por óbvio, os réus soltos raramente vão a julgamento por falta de pauta, gerando sensação de impunidade e os presos, principalmente pobres, aguardam por muito tempo o dia dos seus julgamentos, implicando também em injustiça.

No máximo, para atender a situações de emergência, os Tribunais de Justiça, muitas vezes premidos pelo Conselho Nacional de Justiça, fazem “mutirões”. Essas, porém, são ações isoladas, paliativas, sem caráter definitivo e jamais resolverão o acúmulo de processos, pois novamente retornam à tona em poucos anos.

Dessa forma, as varas do Júri refletem pequena fração da crise que assola o Judiciário, razão pela qual urge a mudança de alguns procedimentos para agilizar a prestação jurisdicional, a exemplo da prorrogação da competência dos juízes titulares das varas do Júri, o que, a princípio, parece paradoxal.

2. Fundamentação

Se tomarmos como exemplo o estado de Mato Grosso do Sul – e acredito que a maioria dos demais estados da federação –, a competência do Juiz da

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Vara do Júri é para “processar os crimes dolosos contra a vida e presidir o Tribunal do Júri”.

Por óbvio, em havendo desclassificação, na fase da sentença de pronúncia, de tentativa de homicídio para lesão corporal leve, grave, gravíssima, lesão corporal seguida de morte ou outro crime como disparo de arma de fogo, periclitação da vida ou saúde de outrem, etc., as varas do Júri perdem a competência para processá-los e julgá-los e, no caso, remetem os autos para um Juiz da Vara Criminal residual.

Todavia, este procedimento tem dado margem a conflitos negativos de competência, pois os juízes declinados em muitas vezes discordam, motivados ou não pelos promotores, entendendo que ficou configurada a intenção de matar, etc.

Importa aqui uma pequena digressão:Guilherme de Souza Nucci, Código de Processo Penal, p. 410, comenta

sobre a possibilidade de o Juiz a quem foi remetido o processo suscitar conflito de competência e, inclusive, faz a seguinte pergunta.

O Juiz pode suscitar conflito ou está impedido de fazê-lo, tendo em vista que já houve decisão a respeito, da qual não mais cabe recurso?“Há duas posições bem apontadas por Jacques de Camargo Penteado: Para a primeira corrente, o Juiz singular não poderia suscitar conflito negativo de competência para sustentar que deva ser restabelecida a classificação originária e o caso ser julgado pelo Tribunal do Júri. Ferir-se-ia a coisa julgada e o acusado seria submetido à possibilidade de condenação por fato mais grave, em face de exclusiva dinâmica judicial. Se o acusador e a vítima, ou seu representante legal, conformaram-se com a desclassificação, ao julgador não é dado promover o restabelecimento da denúncia mais gravosa”.

Prossegue o jurista:A segunda corrente sustenta que o julgador pode declarar a sua incompetência em qualquer fase procedimental e a omissão recursal das partes não vincula o magistrado afirmado competente. Aduz que, acolhida a primeira orientação, extinguir-se-ia a possibilidade de conflito negativo, pois sempre haveria a preclusão para o juiz que foi apontado como competente (Acusação, defesa e julgamento, p. 339/340).

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Finaliza, emitindo a sua opinião:Em um primeiro momento, críamos ser mais correta a primeira posição, embora atualmente faça mais sentido, para nós, a segunda. Note-se que a competência em razão da matéria é absoluta e não pode ser prorrogada, razão pela qual, a todo instante, pode o magistrado suscitá-la, tão logo dela tome conhecimento. Além disso, há a questão do juiz natural, que é o constitucional e legalmente previsto para deliberar acerca de uma causa, incluindo-se nesse contexto o tribunal competente para dirimir o conflito de competência. Em São Paulo, cabe à Câmara Especial do Tribunal de Justiça deliberar sobre os conflitos de competência entre magistrados estaduais, não sendo, pois, atribuição de qualquer das Câmaras do Tribunal essa apreciação. (...)

Ainda sobre o assunto, confira Adriano Marrey, em sua obra “Teoria e Prática do Júri”, p. 284/5.

Como se vê, quando ocorre o conflito negativo de competência é o Tribunal de Justiça que deverá resolver o impasse, e, naturalmente, há demora na prestação jurisdicional em prejuízo principalmente de réus presos.

Por tais motivos, em muitos casos, tem-se optado pela pronúncia e, por ocasião do julgamento no Tribunal do Júri, o Promotor, em regra, propõe a desclassificação ao Conselho de Sentença e, in casu, resolve-se de forma prática ou sem a mencionada polêmica.

Porém, se de um lado o caminho da pronúncia tem resolvido os problemas acima enumerados, ou seja, evitado os referidos conflitos, por outro lado, complica em muito. Isso porque, no fundo, são muitos processos que acabam sendo pronunciados e in casu vão a julgamento, este por sinal, um ato complexo, formal e oneroso ao Tribunal (convocação dos jurados, etc.), o que torna extenuante para ouvirem, no mais das vezes, o pedido de desclassificação do Promotor por falta do animus necandi, redundando no comprometimento da pauta para inclusão de outros julgamentos de presos, com certeza mais relevantes à sociedade.

Daí porque surgiu a ideia de, em havendo desclassificação na fase da pronúncia, manter a competência da Vara do Júri para processar e julgar os novos crimes.

Assim, evita-se:

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a) demora na prestação jurisdicional no cipoal de divagações jurídicas entre os juízes para saber quem é competente;

b) interpretações divergentes entre juízes acerca da intenção do agente – se era ou não o homicídio – se estendendo aos promotores;

c) o aumento da carga de processos das varas criminais residuais, aliás, assoberbadas tanto quanto as varas dos júris;

d) a falsa ideia de que os juízes e/ou promotores das varas do Júri estão “lavando as mãos, se eximindo de trabalho, etc”, na medida em que remetem processos a outros colegas, o que, convenhamos, acaba sendo fato inibidor considerando que são muitos processos;

e) quebra do princípio da identidade física do Juiz/Promotor, que instruíram o processo, ditos naturais, por preceito constitucional.

A mesma tem respaldo legal, conforme vejamos:O art. 74 do Código de Processo Penal preconiza que a competência – pela

natureza da infração – é regida pelas leis de organização judiciária de cada Estado.

No Estado do MS, por exemplo, a Lei de Organização Judiciária no 1.511/94 (CODJ) disciplinou a matéria de competência dos juízes no art. 83: “Nas comarcas com mais de uma Vara, a competência de cada uma é estabelecida pelo Tribunal de Justiça” por resolução.

Importante salientar, neste diapasão, que a competência privativa do Tribunal do Júri nada tem a ver com a do Juiz que o preside, até porque são órgãos do Poder Judiciário totalmente diferentes, art. 20, inc. IV e V, do mencionado CODJ/MS.

Logo, apenas a competência do Tribunal do Júri é fixada pela Constituição Federal e pelo Código de Processo Penal, portanto não passiva de modificação ou alteração pelo ato normativo supracitado (Resolução).

O mesmo não se pode dizer da competência dos juízes de Direito, a qual, conforme acima mencionado, é regida pelo art. 83 do CODJ/MS e, no caso do MS, editada a Resolução no 221/94.

Esta mesma sugestão foi feita ao TJ/MS, sendo aprovada por unanimidade, redundando na edição do art. 2o de outra Resolução, no 518/07, com o seguinte teor:

Compete aos juízes das varas do Júri processar os crimes dolosos contra a vida e presidir o Tribunal do Júri e, ainda, processar os crimes em que houver desclassificação na pronúncia após o

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trânsito em julgado dessa, ou quando houver reunião de processos decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência.

Logo, no MS esta questão foi resolvida e reduziu de forma significativa o número de processos que iam a julgamento popular, o que afasta a ideia, em princípio, paradoxal.

3. Conclusão

Destarte, sugere-se que a AMB proponha, junto aos tribunais, a alteração no CODJ dos estados, que possuem varas especializadas e normativo parecido com o que existia no Estado/MS no sentido de “prorrogar a competência do magistrado para prosseguir com o processo em caso de desclassificação na fase da pronúncia para outro crime”.

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Giordane de Souza Dourado

Laudivon de Oliveira NogueiraAssociação dos Magistrados do Acre – ASMAC

uNIFICAçãO DE ENTRâNCIAS NA MAGISTRATuRA ESTADuAL

Resumo

A unificação de entrâncias na estrutura do Poder Judiciário estadual é indispensável para conferir-se unidade à magistratura nacional, bem como para mitigar a excessiva hierarquização administrativa existente no 1o grau de jurisdição.

1. Introdução

A divisão do 1o grau de jurisdição da magistratura estadual em entrâncias é prática antiga e enraizada na estrutura da Justiça brasileira. Desde a Carta Magna de 1946, o texto constitucional refere-se expressamente à “promoção de entrância para a entrância” ao disciplinar a organização do Poder Judiciário.

De acordo com essa forma de estruturar a carreira da magistratura, o apro-vado em concurso público para o cargo de Juiz de Direito Substituto deverá, ao longo da sua vida funcional, galgar vários degraus na organização judiciária até finalmente, através de promoção por antiguidade ou merecimento, esta-bilizar-se na entrância final ou especial, geralmente situada nas capitais dos estados ou em cidades de maior contingente populacional.

É espantoso o forte apego da magistratura estadual à “cultura das entrâncias”, como se ela integrasse a própria identidade do funcionamento da jurisdição. Tal não ocorre na Justiça Federal e no Poder Judiciário do Distrito Federal e territórios, onde o conceito de entrância foi abolido, pois os magistrados de 1o grau desse segmento do Judiciário dividem-se apenas em substitutos e titulares.

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Durante muitos anos poucas reflexões foram produzidas sobre as vantagens e desvantagens da existência das entrâncias. Nesse período mais recente de discussão da reforma do Poder Judiciário, surgiram alguns questionamentos a respeito do tema, os quais procuram diagnosticar os possíveis reflexos positivos da unificação das entrâncias no âmbito da Justiça Estadual.

O assunto torna-se mais relevante quando analisado a par da discussão sobre a unidade da magistratura nacional, ponto que têm suscitado fecundos debates na comunidade jurídica brasileira.

Diante desse contexto, no espírito do pulsante movimento de renovação do Poder Judiciário, é razoável sustentar que o modelo de estruturação da magistratura estadual em entrâncias está desgastado e é incompatível com a intenção de consolidar a unidade da magistratura brasileira.

2. Fundamentação

A existência de entrâncias no 1o grau de jurisdição tem respaldo constitucional no artigo 93, incisos I, III, e VIII-A, da Carta Magna de 1988. Esses dispositivos, ao contrário do que uma leitura apressada possa sugerir, não obrigam a magistratura dos estados a criar entrâncias na sua organização judiciária. O que a Constituição estabelece é uma autorização para a existência das entrâncias. Reforça esse argumento o fato de que o artigo 93 da Constituição da República estabelece os princípios básicos que regem a magistratura como um todo, não apenas o Poder Judiciário dos estados. Dessa forma, sendo o citado dispositivo de aplicação geral para a magistratura, ele também incide sobre o Poder Judiciário da União, o qual, repise-se, não estabeleceu entrâncias no seu 1o grau de jurisdição.

Logo, conquanto a Justiça Federal comum e o Poder Judiciário do Distrito Federal e territórios não tenham previsto a criação de entrâncias, em nenhuma inconstitucionalidade incorreram.

É coerente então a assertiva de que a norma contida no inciso II do artigo 93 da Constituição Federal representa mero critério de promoção a ser observado na hipótese de existência de entrâncias.

Falece, portanto, óbice constitucional para a unificação das entrâncias no âmbito da magistratura estadual.

Superada essa questão constitucional, convém destacar os principais problemas causados pela existência das entrâncias.

Para qualquer magistrado que já enfrentou várias promoções até chegar

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à última entrância, é bastante evidente que a existência de várias entrâncias submete o juiz à excessiva hierarquização frente à administração do Poder Judiciário ao qual está vinculado. Com efeito, notadamente nas promoções pelo critério de merecimento, onde os requisitos objetivos de avaliação são ainda nebulosos, o juiz fica na dependência do alvedrio e, não raras vezes, do humor dos membros do Tribunal para progredir na carreira.

Tal ambiente favorece a corrupção de consciência, que estimula a prática do apadrinhamento de magistrados por membros do Tribunal. Isto compromete sobremaneira a integridade dos juízes, os quais, ao procurarem proximidade com integrantes do 2o grau de jurisdição, ficam mais vulneráveis à tentação pelo poder.

Não bastasse isso, esse acentuado grau de hierarquização, mais pertinente para as carreiras militares, causa a desconfortável impressão de que o magistrado de entrância inicial é menos graduado do que o colega que ocupa outra mais elevada, embora ambos tenham as mesmas prerrogativas e responsabilidades constitucionais. Isto, aliás, gera uma disparidade de remuneração entre magistrados que exercem a mesma função.

E, neste ponto, merece reflexão o fato de se vincular o escalonamento remuneratório da magistratura de 1o grau às entrâncias, quando em verdade não há diferença alguma entre juízes de Direito da capital ou do interior do Estado, dado que num ou noutro caso são profissionais investidos no mesmo cargo.

A antiguidade, como é cediço, constitui valor de significativa importância na carreira, que vai de Juiz Substituto a Desembargador. A valorização da carreira, entretanto, não se firma com a mera existência de entrâncias, mas sim com o tempo de serviço na classe, requisito sempre considerado na promoção, remoção ou acesso.

Depois de promovido o Juiz Substituto a Juiz Titular, nada justifica que este tenha tratamento diferente de outro Juiz de Direito, a não ser naturalmente, em decorrência da antiguidade.

Há quem possa compreender que a mínima margem remuneratória daquele que está no início da carreira e de quem está no final possa constituir um desprestígio para os mais antigos. De fato, isso é um problema, contudo não decorrente do sistema de entrância única e, sim, do sistema remuneratório dos magistrados, que não contam atualmente com a extinta vantagem pecuniária do adicional por tempo de serviço. Vale lembrar que já existe esforço da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB para o resgate dessa vantagem pecuniária.

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De outra parte, o escalonamento em entrância contribui para o distanciamento institucional do 2o grau de jurisdição em relação ao 1o grau. Deveras, em muitos estados o Juiz de entrância final costuma ser mais prestigiado pelo Tribunal de Justiça do que o magistrado de entrância inferior.

A instabilidade da prestação jurisdicional é outro efeito colateral decorrente da criação de entrâncias, porquanto estas aceleram a alta rotatividade de juízes em município de menor porte. É realmente comum que o juiz designado para uma pequena cidade, onde normalmente a entrância é inicial, nela permaneça por pouquíssimo tempo em virtude das promoções realizadas para outras entrâncias.

Ainda que o magistrado tenha a intenção de residir por mais tempo no pequeno município para ali desenvolver um projeto de trabalho, ele será praticamente obrigado a concorrer em promoções deflagradas para entrâncias superiores instaladas em cidades maiores, sob pena de sofrer prejuízo na sua carreira. O funcionamento desse sistema inevitavelmente estimula a vacância nas comarcas menores de entrância inferior.

O sistema de várias entrâncias cria um desvalor social em relação a tais localidades, desprestigiando-as, em flagrante prejuízo à administração da Justiça, na medida em que força a movimentação prematura de magistrados e a vacância do cargo de Juiz em municípios menores.

É certo que a existência de entrância única nos estados ainda representa um tabu entre os magistrados, sobretudo por aparentemente colocar num só universo um número maior de concorrentes ao acesso ao Tribunal de Justiça. Essa questão, no entanto, é um problema inerente à efetividade dos critérios objetivos de promoção e acesso, que devem ser aperfeiçoados, e não pode ser apontado como decorrente dos sistemas de entrâncias.

Por fim, a consolidação de uma entrância única não engessará o magistrado nas comarcas do Estado, pois ele poderá concorrer às remoções para outras comarcas, conforme os critérios de antiguidade e merecimento. A vantagem é que ele concorrerá se quiser realmente ser removido, e não apenas para progredir na carreira, enfraquecendo a cultura do “carreirismo”.

3. Conclusão e proposição

A existência de várias entrâncias, como se vê, muito mais prejuízo resulta ao sistema Judiciário do que benefícios, razão por que se propõe a adoção da entrância única nos estados, permitida pela Constituição, como medida de se conferir efetiva unidade à magistratura nacional.

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Roberto Portugal BacellarAMAPAR

A PRESSA DA JuSTIçA MOROSA*

Há muitos anos o Poder Judiciário recebe a crítica de que as soluções são muito demoradas e em face do grande volume de serviço dos magistrados, mesmo com a designação de muitas audiências por dia, algumas delas são agendadas para até dois anos para frente.

Esta monografia de nome curioso e, a princípio, paradoxal – A pressa da justiça morosa – apresenta um modelo de abordagem mais comum no sistema do common law denominado estudo de caso.

No começo da década de 90, vários jornais inauguraram seções ou colunas especializadas em Direito, descrevendo sentimentos dos leitores de pertencer a uma sociedade mais justa onde seus direitos fossem respeitados. Registraram-se dezenas de denúncias de mau atendimento e desrespeito ao cidadão pelos prestadores de serviços públicos. Os jornais, por sua vez, diante desse novo papel que lhes foi atribuído, abriram espaço em suas colunas, para registrar e até responder a essas questões, servindo de instrumento de justiça para esse grupo de indivíduos (SADEK, 2001).

Para contextualizar o problema objeto do estudo, por meio do método “caso análise”, temos como ponto de partida a suposta narrativa de um jurisdicionado encaminhada a um veículo de comunicação. A partir dessa história de atendimento ao jurisdicionado pelo Poder Judiciário passaremos a analisar a percepção dele como consumidor de serviços judiciários sobre a qualidade e eficiência/ineficiência do sistema. Após a análise dos fatos o desafio será o de projetar e construir medidas prospectivas em prol da atuação de um Poder Judiciário de qualidade com a abertura de um leque de soluções

* Concurso de Monografia da AMB –Vencedor da Área II (Planejamento Estratégico do Judiciário)

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possíveis a fim de que o verdadeiro atendimento do jurisdicionado também seja “Finalidade da Justiça”.

A monografia tem inspiração constitucional no postulado maior e fundamento antropológico comum da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1o, III) e no princípio da Eficiência (previsto, dentre outros, nos arts. 37 e 39 da Constituição da República).

1. Os fatos do caso análise

“Recebi a intimação de que meu processo teria audiência de conciliação, instrução e julgamento. Pensei: finalmente meu caso vai ser julgado; como ainda tinha um ano e meio até o dia designado, me preparei muito para falar com o juiz.

Dias antes da audiência não pude nem dormir e minha cabeça rememorava cada uma das melhores formas que eu já tinha planejado para contar o caso para o juiz.

No dia, já pulei da cama bem cedinho revisei tudo, fiz anotações e uma hora antes já estava no Fórum esperando meu advogado. Meu coração estava agitado e esperar com calma era difícil no ambiente do fórum que estava uma correria.

Uma coisa eu estranhei: demorou tanto para chegar o dia do julgamento e lá no fórum parecia que todo mundo estava com pressa. A audiência estava marcada para 14h, já era mais de 15h e ninguém falava nada; meu advogado confirmou que o caso ia ser julgado, mas ia atrasar mais um pouco. Começou com quase duas horas de atraso e o juiz estava com muita pressa: ele entrou na sala, nem se apresentou e já foi falando sobre o caso. Também percebi que ele estava com pressa porque quando eu comecei a contar o ocorrido ele enfiou a cabeça dentro daquele monte de papel do processo e ficou virando as páginas para frente e para trás. Parei de falar por um instante e ele disse: ‘pode falar que eu estou ouvindo!’. Comecei novamente a falar sobre o que eu queria e ele disse que era para eu chegar logo no ponto; continuei um pouco inseguro e ele esclareceu que eu estava falando sobre coisas que não eram ‘objeto da lide’. Não entendi muito bem, mas avancei falando e definitivamente fui interrompido porque o ponto que eu deveria falar era aquele do processo: era para falar do valor que o advogado pediu; quando eu comecei a falar do dinheiro ele começou a ler ‘de novo’ o caso; capotou o processo para um lado e para o outro sem prestar atenção no que eu estava falando. Percebi que ele realmente estava com pressa e não ia me ouvir. Parei de falar. Eu havia me preparado muito e tinha todo o tempo do mundo para contar o caso e buscar uma solução.

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No fundo eu até entendi que para o juiz eu era só mais um número. Para mim, resolver o caso com meu vizinho era realmente muito importante.

Lembro que teve uma hora na audiência que começamos a conversar – meu vizinho (a outra parte) e eu – e parecia que as coisas iam se encaminhar, já tínhamos algumas possibilidades de acordo e quase chegamos lá. Mas o juiz disse que infelizmente não teria mais tempo para conversa e tinha de começar a instrução. Eu argumentei que a conversa estava boa e poderia nos levar a uma conciliação. Ainda assim o caso foi instruído – como eles dizem. Ouviram testemunhas, minha fala não foi registrada porque quando eu tentei falar novamente disseram que os advogados não tinham pedido depoimento. Meio difícil de entender: eu estava ali e poderia esclarecer algumas coisas para ajudar a resolver a questão.

Saiu a decisão na hora. Condenaram o vizinho a me pagar 7 mil. Eu tentei falar com o juiz sobre a sentença e ele disse que agora só podia mudar alguma coisa se eu recorresse. Eu ia dizer apenas que eu sei que ele não tem como pagar e por isso queria muito contar para o juiz que não era bem isso que eu queria, eu queria era resolver o caso mesmo. Fazer o quê? Tinha muita vontade de voltar o caso e aproveitar aquele momento e continuar conversando até achar uma solução. Agora a coisa ficou pior e o relacionamento está péssimo. Eu tinha todo o tempo do mundo, mas depois de tantos anos de espera, o juiz estava com muita pressa de julgar rápido o processo naquele dia. Foi o que ele fez e até entendo: são tantos os outros casos, não é?”

2. Desafios

Sabe-se que o desafio de satisfazer os interesses do jurisdicionado não é tarefa fácil.

Os resultados que o usuário espera (e avalia de maior importância) – rapidez, bom atendimento (qualidade), clareza, informalidade e efetividade geram uma expectativa.

A relação entre o que o cidadão (jurisdicionado) espera do juiz e aquilo que o juiz faz (decidindo ou não o mérito da causa) é que determina a qualidade do serviço – segundo a perspectiva dele, jurisdicionado.

Se no passado atender apenas ao pedido imediato do jurisdicionado dirigido ao Estado-juiz de condenação, de constituição ou de declaração era suficiente para determinar a eficiência formal do Poder Judiciário, hoje a exigência é por uma tutela de resultados que produza efetivos resultados

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práticos e proporcione atendimento à expectativa de justiça do cidadão. A isso, como resultado, se tem denominado de tutela jurisdicional justa.

Se no passado prometer acesso formal à justiça era suficiente, hoje esse acesso é denominado de acesso à ordem jurídica justa, o que inclui um processamento adequado e célere. A celeridade, entretanto, não mais pode ser analisada apenas na perspectiva do Estado, antes deve ser tomada a partir dos interesses do principal destinatário da Justiça que é o jurisdicionado. A celeridade só se impõe e se justifica tendo em vista o interesse do jurisdicionado.

O acesso à ordem jurídica justa mede-se pela correspondência mais próxima que houver entre a qualidade esperada do Poder Judiciário e a experimentada pelo cidadão. Essa relação vai determinar a satisfação ou não satisfação do jurisdicionado e a realização ou não realização da nova promessa “acesso à ordem jurídica justa”.

O caso retrata a evidência corrente de que muitos dos valores e expectativas do cidadão de ser respeitado, ouvido e valorizado pelo Poder Judiciário não têm sido considerados. Mesmo no plano operacional dos tribunais, valorizam-se mais a celeridade numérica, quantitativa e as soluções que resultam na extinção de processos. Esse tecnicismo, embora elogiável para parcela das demandas e necessário a vencer o índice de congestionamento dos tribunais, não pode desconsiderar o jurisdicionado como ser humano (art. 1o, III, da Constituição da República).

Os fatos narrados indicam haver algumas soluções técnico-jurídicas que acabam sendo inadequadas: na perspectiva do Tribunal, a celeridade de extinguir processos na própria audiência é mais produtiva, a despeito e até contra a vontade do jurisdicionado (desconsiderando totalmente a sua perspectiva).

Aos olhos do principal destinatário e usuário da prestação jurisdicional, a celeridade desejada no atendimento de seu caso (rapidez) não se confunde com a pressa que ele percebe (da parte do Poder Judiciário) no dia do julgamento do seu caso. Nesse dia, ele quer ser ouvido, quer atenção, quer ser respeitado e valorizado. Para o jurisdicionado, qualidade depende de um serviço atencioso que será célere ainda que demore todo o tempo necessário à satisfação de seus interesses.

Essa postura do Poder Judiciário, que desconsidera os interesses do jurisdicionado, lembra a da rainha descrita por Antoinne de Saint-Exupéry que “desejando conhecer os seus súditos e saber se eles gostavam de seu reinado, saiu dos limites do palácio e vislumbrou pessoas felizes, bem alimentadas;

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tudo isso cuidadosamente preparado pelos cortesãos que ergueram ao longo da estrada um cenário maravilhoso e contrataram artistas para que dançassem ali. Fora daquele estreito caminho ela nem sequer entreviu nada, e não soube que pelos campos adentro seu nome era amaldiçoado pelos que morriam de fome” (apud, CALANZANI, 1999, p. 29).

O acesso à ordem jurídica justa, como concretização da realidade dos fatos, exige uma nova percepção de celeridade voltada a analisar o tempo pela importância que o jurisdicionado a ele destina.

Todos os entraves já conhecidos que determinam a demora na prestação da tutela jurisdicional não justificam a pressa no atendimento ao jurisdicionado.

“O tempo social é estudado pela cronêmica. Trata-se da percepção, estruturação e reação ao tempo social, assim como às mensagens que interpretamos através de seu uso. O conceito de tempo é parte essencial da forma como vemos o mundo e interagimos com ele.” (RECTOR, 2003, p.78)

“Hoje, a unidade ‘hora’ deixou de ser o referencial da rapidez porque os cronômetros estão preparados para os milionésimos de segundo. Esta nova modalidade de viver tem como referencial a instantaneidade...” (MACCALÓS, 2002, p. 162).

A exigência de rapidez assusta porque sabemos que em alguns casos a demora (na prestação da tutela jurisdicional) é necessária ao alcance de uma solução justa. Há situações, entretanto, que independentemente do tempo de espera é preciso valorizar o atendimento.

A falta de respeito ao jurisdicionado ou a percepção dele de que foi mal atendido, ou atendido com pressa, prejudica a imagem e a legitimação social do Poder Judiciário.

Não interessa e não é a prioridade do jurisdicionado, por exemplo, se o índice de congestionamento dos tribunais diminuiu ou se os juízes são trabalhadores e têm boa produtividade nas suas (belas e bem fundamentadas) sentenças de mérito. Interessa sim, a esse consumidor (de justiça), que ele seja bem atendido, receba as informações necessárias em linguagem acessível. Claro que a ele também interessa que a solução final do seu caso seja rápida, seja eficaz e, segundo sua perspectiva, seja justa.

Além do conhecimento técnico-jurídico, o desenvolvimento de habilidades sociais e humanistas pelos magistrados é uma necessidade voltada ao melhor atendimento jurisdicionado. Capacitações permanentes a partir da definição de políticas públicas podem ser estimuladas ainda mais pela Escola Nacional

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de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam-STJ) e aplicadas em todos os tribunais brasileiros.

A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), a partir do art. 105, parágrafo único, I, da Constituição da República, por meio das Resoluções 1/2007 e 2/2007, com ênfase na formação humanística e pragmática dos magistrados apresentou, em um primeiro momento, um balizamento geral destinado a orientar e colaborar com os tribunais regionais federais e tribunais de Justiça na implementação dos cursos de formação para ingresso, aperfeiçoamentos para vitaliciamento e promoção de magistrados. Em seguida, e antes ainda de estabelecer as diretrizes para os conteúdos programáticos mínimos, a Enfam colheu subsídios das escolas de Magistratura Federal e Estadual e obteve, por meio dessa interface, preciosas informações necessárias a projetar o perfil de magistrado que se espera ver integrado aos quadros da magistratura, perfil esse de um magistrado integral, humanista, pragmático e com conhecimentos interdisciplinares que o capacitam a manter um relacionamento aberto com a sociedade.

Uma formação humanista e interdisciplinar, além de tratar de situações práticas da atividade e de assuntos diretamente relacionados ao exercício jurisdicional (elaboração de decisões, sentenças, audiências e alterações legislativas), abrange conhecimentos relativos às relações interpessoais e interinstitucionais, psicologia, sociologia, deontologia, ética, administração e gestão de pessoas, recursos da informação, impacto político, econômico e social das decisões judiciais, difusão da cultura de conciliação como busca da paz social, técnicas de conciliação, dentre outros conhecimentos.

O próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como gestor de políticas gerenciais de uma magistratura nacional pode formular recomendações aos tribunais no sentido de formar, capacitar e aperfeiçoar continuamente os magistrados e servidores para atender, no contexto de programas de qualidade, as expectativas do jurisdicionado como cidadão.

Indaga-se e questiona-se sobre essa possibilidade de efetivamente atender a todas essas expectativas do cidadão.

A experiência do Poder Judiciário, como órgão oficial de resolução de controvérsias, tem indicado que a satisfação plena é muito difícil de ser alcançada. Quem decide sempre desagrada e, portanto, sempre haverá insatisfação. Ninguém melhor que Millôr Fernandes para exprimir esse

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sentimento de desagrado permanente do destinatário da justiça: “– como é que eu posso acreditar numa Justiça que dá razão aos outros?”.

Se não é possível chegar ao ideal, certamente é possível conduzir um processo de modo a valorizar a pessoa humana dentro de uma perspectiva de acesso à ordem jurídica justa.

A celeridade esperada pelo jurisdicionado não é a que decorre de julgamentos apressados ou a que determina produtividade quantitativa.

Para chegar mais além, há necessidade de um esforço no sentido de prestigiar o jurisdicionado dando ao caso atenção e destinando a ele o tempo necessário à sua percepção de satisfação com celeridade. E a proposta é a de que o atendimento presencial seja qualificado, que a morosidade e a demora não pretendam ser compensadas no dia do atendimento das partes e em desatenção às suas necessidades de serem ouvidas.

3. A Dignidade da pessoa humana e o Princípio da eficiência

O Postulado maior e fundamento antropológico comum a todos os princípios constitucionais é o da Dignidade da Pessoa Humana.

Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:...III – A dignidade da pessoa humana.

O princípio constitucional da eficiência é originário da ciência da Administração e é descrito, dentre outros, nos arts. 37 e 39 da Constituição da República.

O parágrafo 7o do art. 39 deixa clara essa assertiva ao descrever:Art. 39(...)§ 7o Lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios disciplinará a aplicação de recursos orçamentários provenientes da economia com despesas correntes em cada órgão, autarquia e fundação, para aplicação no desenvolvimento de programas de qualidade e produtividade, treinamento e desenvolvimento, modernização, reaparelhamento e racionalização do serviço público, inclusive sob a forma adicional ou prêmio de produtividade.

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O Poder Judiciário, por ser titular do monopólio jurisdicional1, pouco se incomodava, no passado, com a visão do povo, principal destinatário das decisões judiciais.

Hoje, as colunas de leitores nos jornais, artigos assinados (como verdadeiros desabafos), enquetes e pesquisas de opinião têm retratado a falta de respeito ao cidadão que necessita dos serviços judiciários.

Tais reclamações, em relação ao atendimento do jurisdicionado, devem ser também consideradas com fonte de inspiração para mudanças, inclusive na interpretação do que seja acesso à ordem jurídica justa que deve ter como componente a celeridade, tendo em vista os interesses dos jurisdicionados.

Alguns formulários de satisfação aplicados em tribunais brasileiros igualmente têm sido uma rica fonte de conhecimento para identificar desrespeitos ao cidadão e aperfeiçoar a atividade do Poder Judiciário.

A qualidade dos serviços judiciários – com foco na satisfação dos interesses dos usuários – é o caminho para o alcance da eficiência.

A eficiência, em parte, resultará como consequência da melhor qualificação do tempo destinado ao atendimento do jurisdicionado. Independentemente da fração de tempo destinada ao jurisdicionado, nela o juiz e os servidores precisam dar toda a atenção aos desabafos, ansiedades e reclamos do cidadão.

Resulta a convicção de que a imagem do Poder Judiciário perante a população pode melhorar, a despeito da demora e até mesmo do conteúdo da decisão de mérito, desde que o jurisdicionado seja bem atendido e valorizado.

4. Celeridade e justiça como valores dos jurisdicionados

A busca da paz é a razão da existência do Poder Judiciário. A pacificação social é o resultado que se almeja quando se procura o Estado-Juiz e na pacificação está o valor: Justiça.

Como se fez breve referência e bem ressalta GRISSANTI em seu estudo, “a partir do começo da década de 90, um crescente número de jornais inaugurou seções ou colunas especializadas em direito. Essa data tem estreita relação com o restabelecimento da democracia e movimentos de conscientização da cidadania. Esse sentimento de pertencer a uma sociedade, de ter seus direitos respeitados, levou alguns cidadãos a apresentar denúncias contra os

1 Nasce hoje uma pequena “concorrência” formada pelos denominados tribunais arbitrais oriundos da Lei 9.307/1996 (Lei Marco Maciel).

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serviços prestados por certos órgãos públicos, no que diz respeito ao mau atendimento, não execução de serviços etc. E outros, como consumidores, foram levados a apresentar queixas quanto à qualidade dos serviços ou produtos adquiridos. Perceberam, então que, para essas “pequenas” questões de direito, os jornais com que tinham contato diário, ou quase diário, poderiam ser um veículo a mais para fortalecê-los diante da ‘surdez’ de uma empresa que se recusa a atender às reclamações de seus consumidores, ou da ‘cegueira’ de órgãos públicos que não vêem seus usuários com o respeito que merecem. Os jornais, por sua vez, diante do novo papel que lhes foi atribuído, abriram espaço em suas colunas, passando a responder a essas questões, servindo de instrumento de justiça para esse grupo de indivíduos.” (SADECK, 2001, p. 219).

Só na cidade de São Paulo esse estudo selecionou sete jornais – o Estado de S. Paulo, Gazeta Mercantil, Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde, Agora São Paulo, Diário Popular e Notícias Populares –, dos quais cinco foram analisados.

As reclamações são tanto em relação ao processo (forma, tempo, local, atendimento) quanto em relação ao resultado.

Sabe-se haver maior satisfação quando a solução é alcançada diretamente pelas partes em uma negociação, conciliação ou mediação. Quando isso não é possível torna-se necessário fazer Justiça pela atividade final do juiz no processo, que é a sentença (a decisão da causa). O desafio de fazer com que o sentimento de justiça do juiz corresponda exatamente ao sentimento de justiça das partes é muito difícil de ser alcançado.

Não é missão difícil, porém, atender com respeito, com educação e com urbanidade ao cidadão que procura pelos serviços judiciários.

Justificado pelo absurdo volume de serviço nos juízos brasileiros, os magistrados estão constatando a triste realidade narrada pelo cidadão: “demoram para atender as partes e ao atendê-las o fazem com pressa”.

Perceba-se, em uma análise realista, que, depois de toda a demora no atendimento das partes, não se afigura razoável um atendimento apressado e que seja percebido pelo jurisdicionado como falta de respeito, falta de atenção e desconsideração.

5. Reflexões e conclusões

Por acreditar na viabilização de efetivas medidas de gestão oriundas do próprio Poder Judiciário é que os tribunais deverão construir, com base nos

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princípios da administração, uma projeção estratégica voltada ao atendimento do jurisdicionado.

Além de produzir, em nome do Estado, decisões judiciárias e solucionar controvérsias, os magistrados e os servidores precisam ser capacitados para ouvir os reclamos da população e viabilizar um atendimento ao público de qualidade.

Formulários de satisfação e outros mecanismos de pesquisa poderão indicar as deficiências a serem corrigidas. Instrumentos de gestão estratégica e de acordo com as diretrizes da Enfam facilitarão a capacitação e qualificação dos magistrados para melhor desempenho social e atendimento do jurisdicionado.

As propostas estratégicas de treinamento, capacitação e percepção da celeridade poderão levar o Poder Judiciário a alcançar o ideal de efetivação da promessa de “acesso à ordem jurídica justa”, que é aquela analisada segundo a perspectiva do jurisdicionado.

Da experiência vivida pelo Poder Judiciário, resulta a convicção dirigida à necessidade de democratizar gestão ouvindo os jurisdicionados e capacitando melhor os magistrados.

O prestígio dos juízes e do próprio Poder Judiciário depende fundamentalmente do atendimento do jurisdicionado. A demora na prestação jurisdicional é menos traumática do que a pressa que é percebida pelo jurisdicionado como desatenção e desrespeito.

O momento atual exige que o Poder Judiciário resgate a sua boa reputação, amplie a sua legitimação social e faça aflorar sua essência (um serviço público essencial e de qualidade).

“Há esperança, e o limite entre o possível e o impossível está na força, na coragem e na determinação que dedicarmos aos nossos ideais.”

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DA HIERARQuIA à DEMOCRACIA: A DIFíCIL

APROxIMAçãO ENTRE O DISCuRSO E A REALIDADE

JuDICIáRIA

Guilherme Newton Dumont PintoAMARN – RN

Resumo

A independência dos órgãos que compõem o Judiciário, inclusive os singulares, para ser plena, necessita abranger tanto a independência interna quanto a externa. Assim, a forma hierarquizada como foi concebido o Judiciário brasileiro, por atentar contra a independência interna, vulnera a garantia constitucional. A hierarquia decorre da concentração, nos chamados “órgãos de cúpula”, das funções jurisdicionais e administrativas, de tal forma que a quebra da hierarquia só se daria com a redistribuição das funções a serem entregues a órgãos distintos, cabendo a função administrativa, com exclusividade, ao Conselho Nacional de Justiça e a conselhos estaduais, instituídos com respeito ao princípio democrático.

Palavra-chave

Poder Judiciário. Independência. Hierarquia. Democracia. Funções Judiciárias. Conselho Nacional de Justiça. Conselhos Estaduais de Justiça.

ABSTRACT In order to be absolute, the independence of all organs that

* Concurso de Monografia da AMB – Vencedor da Área I (Democratização do Judiciário)

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constitute the Judiciary, including the singular ones, has to be internal as well as external. Therefore, the way that Brazilian Judiciary has been conceived, hierarchically, attempts against the internal independence and offends the constitutional guarantee. The hierarchy originates from the concentration of both jurisdictional and administrative functions in what we call “dome organs”, in such a way that the rupture of this hierarchy would only be possible with the redistribution of the mentioned functions to different organs, competing the administrative function exclusively to the National Council of Justice and to State Councils, both created with absolute respect to the democratico principle.

KEY-WORDS. Judiciary. Independence. Hierarchy. Democracy. Judicial functions. National Council of Justice. State Councils of Justice.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Independência do Judiciário. 3. Independência Interna e Hierarquia. 4. A Distribuição das Funções Judiciárias e a Hierarquização do Judiciário. 5. A Redistribuição das Funções Judiciárias e a Democratização do Judiciário. 6. O Significado Institucional do Conselho Nacional de Justiça. 7. Os Conselhos de Justiça Estaduais. 8. Conclusão.

1. Introdução

Costuma-se falar em independência do Judiciário e em democratização da Justiça como se fossem apenas belas expressões destinadas a enfeitar, com a marca da retórica, os eloquentes discursos que, com certa frequência, se repetem nas tradicionais solenidades dos edifícios judiciários, sem que o verdadeiro significado, que se encontra sufocado pela sua utilidade estética, tenha qualquer possibilidade de emergir ao mundo real, onde se travam as verdadeiras batalhas por Justiça, cuja realização clama, e quase que grita, por um Judiciário efetivamente independente e democrático .

Qual o verdadeiro grau de independência do Judiciário brasileiro? Estará a Instituição Judiciária no Brasil, em seu todo e em sua plenitude, protegida pela independência que, com certa facilidade, passeia entre os dispositivos constitucionais e os discursos forenses?

Para que se possa responder a estas indagações, se faz necessário examinar o alcance e a abrangência da independência necessária à Instituição Judiciária. Não só em seu aspecto externo, perante os demais Órgãos e

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Poderes do Estado, mas, sobretudo, a independência interna, de um órgão para com o outro, de juízes, por exemplo – órgãos singulares e base de toda a estrutura judiciária –, para com os tribunais, que se situam no topo da pirâmide recursal.

Se a percepção dos que fazem da independência uma ferramenta retórica é da presença desta em sua mais larga abrangência – salvo, se muito, algumas máculas decorrentes da insuficiência financeira –, um exame um pouco mais profundo faz com que nos deparemos, de imediato, com a constatação de uma estrutura hierarquizada, em que órgãos se sobrepõem a outros, não somente no aspecto recursal, mas em absolutamente todas as esferas de atuação, donde se torna inafastável a perplexidade diante da incompatibilidade que o senso comum diz existir entre independência e hierarquia. Surge a indagação, quase que intuitiva, se poderá haver hierarquia e, ao mesmo tempo, a proclamada independência dos órgãos judiciários.

A democracia, por sua vez, encontra dificuldades ainda maiores em sair do mundo retórico e vir a povoar a realidade forense. A começar pelo fato de que qualquer democracia que se pretenda na Instituição Judiciária terá que conviver com o seu “pecado original”, decorrente da impossibilidade de se impor, de forma razoável, a legitimidade eletiva aos seus membros – legitimidade que se faz presente nos demais poderes do Estado, mas que, na acertada opção constitucional pelo critério técnico de seleção dos membros do Judiciário, encontra um obstáculo intransponível.

Resta a democracia interna, isto se a pretensão for a de que o princípio democrático, proclamada em verso e prosa na Constituição Federal, não seja um conceito absolutamente estranho à Instituição Judiciária que, curiosamente, é posta como responsável pela proteção e garantia do princípio, erigida que é ao grau de sua guardiã.

O enfrentamento desta questão se dará na abordagem de alguns aspectos mais relevantes e atuais, como o significado do Conselho Nacional de Justiça na independência e democratização do Judiciário, e na perspectiva de criação de Conselhos Estaduais assemelhados que puderem cumprir o mesmo papel e de forma até mais alargada.

É esta a pretensão temática do presente trabalho, que aqui foi posta, ainda que de forma sucinta e introdutória, e que almeja ser uma contribuição, ainda que singela, para a aproximação entre o discurso e a realidade.

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2. Independência do Judiciário

A primeira questão a ser enfrentada é a referente à independência do Judiciário, tema que, aliás, não raras vezes enfrenta incompreensão e confusão.

Não nos interessa, para efeito do presente trabalho, enfrentar a questão da independência institucional do Judiciário, pelo menos em seu aspecto direto, ou seja, a independência da Instituição, do Poder Judiciário como um todo e frente aos demais Poderes do Estado, que se traduz na independência para se organizar e para regular o seu próprio funcionamento (art. 96 da CF) e na autonomia administrativa e financeira (art. 98 da CF) que, de forma razoável, já refletem a independência dos Poderes proclamada pelo art. 2º da Constituição Federal.

Para os fins que aqui se propõe, centraremos o foco na independência da magistratura, a partir da independência do juiz, ainda que considerado em sua acepção orgânica, ou seja, como órgão do Judiciário, tal qual faz emanar, com propriedade, a descrição do art. 92 da Constituição Federal, que coloca não somente os tribunais, mas, também, o próprio juiz, como órgão do Poder.

Sob este ângulo, que traduz uma concepção da independência do magistrado em seu aspecto individual, ainda que orgânico, poderíamos dizer que a independência pode ser interna ou externa, e que, na expressão de Canotilho, assim se diferencia:

A independência dos juízes tem uma dimensão externa e uma dimensão interna. A independência externa aponta para a independência dos juízes em relação aos órgãos ou entidades estranhas ao poder judicial. A independência interna (que alguns autores identificam como independência funcional) significa a independência perante os órgãos ou entidades pertencentes ao poder jurisdicional”1.

A independência externa, acreditamos, já se encontra satisfatoriamente blindada pelas garantias insculpidas na Constituição Federal, desde a independência da própria Instituição e seu reflexo sobre os órgãos que a compõem, até aquelas que Silva considera “garantias de independência dos órgãos judiciários”2 – vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios – sem desconsiderar, com inegável força, a distribuição de funções

1 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Edições Almedina, 2003. p.664.2 SILVA, José Afondo da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 578.

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entre os órgãos e poderes estatais que, se de alguma forma se submetem a um controle recíproco decorrente da necessária manifestação do chamado sistema de freios e contrapesos (cheks and balances), por outra não há qualquer avanço significativo, a nível institucional, de qualquer dos Poderes sobre o Judiciário que possa comprometer a independência, não só do Poder, como também dos magistrados que o integram.

Daí que, salvo descompassos que se podem atribuir a fraquezas pessoais ou desvios de caráter, não se pode imaginar, na realidade brasileira, em face de todas as garantias constitucionalmente asseguradas, que algum magistrado possa se sentir vulnerável diante de pressões porventura partidas de órgãos externos à Instituição.

No que diz respeito à independência interna, entretanto, não obstante as garantias constitucionais – da Instituição e dos juízes – a estrutura concebida pela Constituição para o Poder Judiciário atenta contra o seu necessário resguardo, de tal forma que os magistrados, em especial de primeiro grau, não guardam o sentimento de estarem absolutamente isentos de pressões partidas dos órgãos internos ao próprio Judiciário, pelo menos com a mesma desenvoltura com que este sentimento se apresenta em relação aos órgãos externos.

Entre as razões que podemos apontar para tanto, uma nos parece determinante – ainda que não tenha recebido dos que se propõem a enfrentar o tema considerações mais profundas –, que é a forma hierarquizada como foi concebida a estrutura do Poder Judiciário e que decorre, em grande parte, de uma indesejável mistura e distribuição inadequada das funções atribuídas ao Judiciário – em especial a jurisdicional e a administrativa –, que trataremos na sequência.

3. Independência Interna e Hierarquia

A independência interna que, no dizer de Zaffaroni, “implica a segurança de que o juiz não sofrerá as pressões dos órgãos colegiados da própria judicatura” está a exigir um mesmo grau de atenção que a independência externa, razão pela qual, no seu pensar, “deve-se ter o mesmo cuidado em preservar a independência interna, isto é, a independência do juiz relativamente aos próprios órgãos considerados ‘superiores’ no interior da estrutura judiciária”. E adverte: “na prática, a lesão à independência interna costuma ser de maior gravidade do que a violação à própria independência externa”3.

3 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Poder Judiciário: Crise, Acertos e Desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 88.

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Com efeito, nenhum valor tem a independência do magistrado em relação aos órgãos externos ao Judiciário se, em relação às autoridades e órgãos que compõem a própria estrutura do Poder a que pertence, guarda laços de dependência capazes de comprometer a absoluta isenção e liberdade de seus atos, em razão de pressões que destes possa receber.

Examinando o Judiciário brasileiro, não se pode negar que a independência interna, que pretensamente também estaria garantida pela tríplice proteção constitucional – vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios – sofre um visível ataque das contingências que decorrem da própria estrutura do Poder, como que a miná-la em seu intento de tornar isento o magistrado, de forma absoluta, de eventuais pressões que lhe sejam dirigidas de dentro da própria instituição.

É que a estrutura do Judiciário brasileiro, diferentemente do que se apregoa no discurso comum, se posta de forma inegavelmente hierarquizada e, ao que nos parece, difícil supor hierarquia divorciada de força advinda da escala superior ou, pelo menos, de pressão desta, de modo que a suposta independência de todos os órgãos jurisdicionais, em especial os de “menor hierarquia”, há de vulnerar-se ou, pelo menos, desprover-se do necessário caráter absoluto, em face da estrutura hierarquizada. Em outras palavras, incompatível a independência pretendida com hierarquia efetivamente existente.

Há de se acentuar que a hierarquia que se observa na estrutura judiciária brasileira não se limita ao campo recursal que, inclusive, não é suscetível de ocasionar maiores problemas quanto à independência, máxime quando se permite a compreensão da questão sob o ângulo tão somente da diferenciação de competência, onde alguns órgãos, de hierarquia recursal superior, têm competência distinta, competência esta que se compreende como a de julgar, com igual independência, e em segunda instância, causa já decidida pelo órgão de hierarquia recursal inferior. Tal circunstância, em verdade, muito longe de se constituir em afronta à independência do órgão de competência originária, se traduz em uma garantia ao duplo grau de jurisdição, ou seja, em uma garantia de que os julgamentos podem ser revistos por outro órgão, distinto do que julgou inicialmente a causa, preferencialmente coletivo e formado por magistrados supostamente mais experientes.

O problema é que a hierarquia que se verifica na estrutura do Judiciário brasileiro vai muito além da recursal, já que abrange absolutamente todas as esferas de atuação, destacadamente a correicional, a funcional e a

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administrativa. Com efeito, os órgãos de cúpula recursal de cada esfera do Judiciário concentram, a par desta função, a supremacia e a superioridade no exercício das funções de administração da Justiça, aí se incluindo as esferas relativas à atividade correicional e as deliberações de natureza funcional.

Dessa forma, não se pode enxergar o Judiciário brasileiro senão sob a forma de uma estrutura hierarquizada e, neste ponto, está o primeiro descompasso entre o discurso – que insiste em se apegar a uma suposta horizontalidade que, entretanto, não vai além da fronteira da retórica – e a realidade, de onde se extrai uma hierarquia que, de tão transparente, é perceptível até mesmo pelos que, sem integrarem o Judiciário e mesmo sem ter com ele nenhuma afinidade, lançam sobre o mesmo breves, leigos e despretensiosos olhares.

Necessário salientar que ao afirmar a existência de uma estrutura hierarquizada não estamos falando de um plano ideal, pretendido pela Constituição. Não nos referimos à intenção constitucional de um Judiciário horizontalizado, plano, mas à situação real, fática, observável em seu aspecto prático, onde há uma inegável verticalidade dos órgãos que integram o Poder Judiciário. Evidentemente, não se trata de uma hierarquia absoluta, ao estilo castrense, onde há simplesmente obediência, até porque presentes, como formas genéricas destinadas a preservar a independência dos magistrados, as garantias constitucionais já mencionadas, mas apenas de uma estrutura de formato hierarquizado onde prevalece, pelo menos, a reverência de um órgão para com o outro.

Seria ingenuidade afirmar, tomando por base observação apenas empírica, que entre os diversos órgãos que compõem a estrutura judiciária, marcadamente entre os de instância “inferior” em relação aos de instância “superior”, que persiste uma absoluta horizontalidade, sem que haja, de uma forma geral, qualquer resquício de reverência, de deferência proveniente da posição de “superioridade” estrutural. Seria ingenuidade afirmar que o único sentimento existente entre tais órgãos seria o respeito decorrente dos atributos inerentes ao fato de estarem situados em uma escala superior da estrutura recursal, destacadamente a experiência e a suposta amplitude de conhecimento. Evidentemente há, de forma inegável, um sentimento que ultrapassa a fronteira da admiração e do respeito meritório para se situar no campo da reverência, que decorre diretamente da posição estrutural “superior” que ocupa, com visível correlação com os poderes que dispõem tais órgãos.

É neste sentido que se fala em hierarquização da estrutura judiciária.

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Os perigos desta hierarquização, em especial sobre a independência interna, são proclamados, em forma de uma comparação genuinamente original, por Zaffaroni, em uma feliz metáfora:

Um juiz independente, ou melhor, um juiz, simplesmente, não pode ser concebido em uma democracia moderna como um empregado do executivo ou do legislativo, mas nem pode ser um empregado da corte ou do supremo tribunal. Um poder judiciário não é hoje concebido como mais um ramo da administração e, portanto, não se pode conceber sua estrutura na forma hierarquizada de um exército. Um judiciário verticalmente militarizado é tão aberrante e perigoso quanto um exército horizontalizado4.

Com efeito, a essência do Judiciário é a independência, incompatível com a hierarquia, assim como a essência de uma organização militar, como o Exército, é a disciplina, a hierarquia, incompatível com a independência. Não se concebe juízes em uma estrutura verticalizada, hierarquizados, devendo obediência uns aos outros, assim como não se concebe militares horizontalizados, independentes, descomprometidos com ordens de seus superiores.

Inegável, portanto, sob este argumento, que a forma hierarquizada do Judiciário brasileiro corresponde a um atentado à independência dos seus juízes e que, se não se manifesta de forma mais acentuada, é pelo fato de que as demais garantias constitucionais, a despeito da estrutura verticalizada de organização do Poder, embasam uma pretensão mínima de independência.

Em outras palavras, as garantias constitucionais que pretendem preservar a independência do juiz não o fazem de forma absoluta, plena, pois que esta se encontra sujeita aos ataques das pressões dos próprios órgãos internos ao Judiciário, e que inequivocamente decorrem da estrutura hierarquizada que se verifica na organização do Poder Judiciário.

5. A Distribuição das Funções Judiciárias e a Hierarquização do

Judiciário

Costuma-se identificar, dentre as funções atribuídas ao Poder Judiciário, funções ditas judiciárias, três em especial: função de controle constitucional

4 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Poder Judiciário: Crise, Acertos e Desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 88.

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(ou jurisdição constitucional); função de solução de conflitos (ou jurisdicional propriamente dita); e função de auto-governo (ou de administração da Justiça em sentido estrito).

São três funções distintas e inconfundíveis em sua essência cuja distribuição entre os diversos órgãos que compõem a estrutura do Judiciário é de fundamental importância para definir o perfil da Instituição.

Tradicionalmente, no Brasil, a função jurisdicional propriamente dita e a de controle de constitucionalidade caminham juntas e se traduzem numa opção constitucional plenamente admissível que, sob certo ângulo, até mesmo fortalece o Judiciário. Assim, diferentemente da tradição continental europeia, onde, pelo menos a partir do início do século XX, passou a adotar uma separação mais rígida entre as duas funções, em especial através do sistema “austríaco”, de inspiração Kelseniana, com a criação dos chamados tribunais constitucionais, no Brasil os juízes e tribunais, a par de sua competência para a solução de conflitos – função jurisdicional propriamente dita – também acumulam a função de controle de constitucionalidade, seja de forma difusa, seja de forma concentrada.

Mesmo o Supremo Tribunal Federal concentra as duas funções – e nisto se distingue essencialmente dos tribunais constitucionais europeus – exercendo concomitantemente a função de controle de constitucionalidade, tanto na forma concentrada quanto difusa, e a jurisdicional propriamente dita, se constituindo em um Tribunal híbrido, ou seja, em um Tribunal Judicial que, ao mesmo tempo, também faz as vezes de Corte Constitucional.5

O certo é que, não sendo desarrazoada esta opção constitucional pela concentração das duas funções – ainda que haja defensores fervorosos da existência no Brasil de uma Corte exclusivamente constitucional – e não trazendo qualquer implicação sobre a independência do Judiciário e de seus órgãos, foco de nosso trabalho, não dispensaremos maiores reflexões à questão.

Concentremo-nos na distribuição, entre os órgãos judiciários, das funções jurisdicionais – e aí não há problema em se tratar indistintamente a jurisdição propriamente dita e a jurisdição constitucional – e de administração da justiça6.

5 Observe-se que a Suprema Corte dos EUA também acumula as funções de controle de constitucionalidade e a jurisdicional propriamente dita, porém somente as exerce de forma difusa, nisto se diferenciando do STF que exerce as duas funções e o faz na forma difusa ou concentrada.6 A expressão “Administração da Justiça” é, muitas vezes, utilizada em seu sentido amplo, principalmente na doutrina estrangeira, significando a própria função jurisdicional, de julgar, porém aqui empregamos em sentido restrito, que se assimila a função de auto-governo, e que significa tão somente a função administrativa dos órgãos integrantes do Judiciário.

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No Brasil, como já foi referido, a função jurisdicional, atribuída a todos os órgãos integrantes do Poder, encontra, entretanto, nos chamados “órgãos de cúpula”, a sua instância superior, o que não poderia ser diverso e, ainda que signifique uma certa forma de “hierarquia recursal”, não se afasta da expressão de uma diferenciação de competências, necessária à garantia do duplo grau de jurisdição, e que não atinge a independência de qualquer dos órgãos jurisdicionais, tanto os que decidem em primeira instância quanto os que detêm a competência recursal, ou seja, a de julgar em instância superior7.

Tal “hierarquia recursal” não é vista como uma hierarquia comprometedora da independência dos juízes – em especial a independência política – de tal forma que, em relação a esta, não se podem aplicar as advertências em relação à verticalização da Instituição que, com apoio do pensamento de Zaffaroni, acima foram feitas. É que tal hierarquia é insuscetível de fazer emanar pressões dos órgãos “superiores” sobre os órgãos “inferiores” da estrutura judiciária.

Veja-se, a título de exemplo, a estrutura dos juizados especiais em que, tal qual se observa na jurisdição comum, há órgãos que julgam em primeira instância e outros que julgam em grau de recurso, ou seja, em um “grau superior” na hierarquia recursal, que são as turmas recursais. No entanto, a observação empírica demonstra a inviabilidade de qualquer forma de pressão dos órgãos “superiores” (turmas recursais) sobre os órgãos “inferiores” pelo só fato da posição que ocupam na estrutura recursal.

Em outras palavras, a existência de uma certa “hierarquia recursal” não é suscetível de atentar contra a independência dos órgãos judiciários.

O problema é que, na estrutura judiciária brasileira, os órgãos que estão no topo da estrutura recursal, os chamados órgãos de cúpula, acumulam, também, a função administrativa – aí se incluindo todas as suas facetas, como a gestão administrativa e financeira, a função correicional e o controle funcional – e é exatamente neste aspecto que reside não só a percepção mas o efetivo formato hierarquizado da estrutura do Judiciário brasileiro.

Com efeito, se o órgão que julga, e julga em instância superior, e detém o legítimo poder de reapreciar os atos jurisdicionais dos demais órgãos sujeitos à sua jurisdição, acumula também e em sua totalidade as funções

7 Questões como a da súmula vinculante, e mesmo o efeito vinculante das ações diretas de inconstitucionalidade e das ações declaratórias de constitucionalidade, sob certo aspecto, podem atingir a independência – não política mas jurídica – dos órgãos jurisdicionais, porém é uma reflexão que não cabe no contexto do presente trabalho.

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administrativas, exercendo a gestão administrativa e financeira sobre estes mesmos órgãos sujeitos à sua jurisdição, exercendo o poder correicional sobre os juízes que lhe são “inferiores”, detendo o total controle funcional sobre os mesmos, decidindo, por exemplo, todas as questões inerentes à sua vida funcional, como promoções, remoções, apreciação de direitos, concessões etc., não se poderia, ao se examinar a estrutura do Poder Judiciário, sequer supor que aí não se encontra uma forma estruturalmente verticalizada, hierarquizada.

É precisamente nisto – no acúmulo da função jurisdicional em sua instância mais alta com a totalidade da função administrativa, em sua mais larga abrangência – que reside o formato hierarquizado da estrutura do Judiciário brasileiro. E é inegavelmente nesta hierarquia que a independência dos juízes se encontra mais vulnerável.

6. A Redistribuição das Funções Judiciárias e a Democratização

do Judiciário

Identificado o problema da acumulação das funções jurisdicionais de cúpula e administrativa como o que, de forma inequívoca, faz definir como indesejavelmente hierarquizada a estrutura do Judiciário brasileiro, e já bem fincado o sério atentado que tal hierarquia representa para a independência interna do Juiz – que, se por um lado, goza de uma satisfatória independência externa, fica, por outro, suscetível a pressões dos próprios órgãos internos ao Judiciário –, não se poderia deixar de refletir sobre os efeitos benéficos, sob este aspecto, que pudesse ter uma redistribuição de tais funções.

Ora, as três funções judiciárias básicas – solução de conflitos, controle de constitucionalidade e administração – não se encontram, nenhuma delas, entrelaçadas ao ponto de não poderem diferenciar-se e separar-se.

Na maioria dos países da Europa continental, por exemplo, estas funções já se encontram separadas e entregues a órgãos distintos. Em geral, o controle de constitucionalidade é exercido por um Tribunal Constitucional, algumas vezes externo ao próprio Judiciário, que exerce, com plenitude, a jurisdição constitucional. A função administrativa, em regra, é exercida por um Conselho de Magistratura, composto não só por membros do Judiciário, como também por membros externos à instituição, e que concentra a totalidade destas funções, inclusive as funcionais, como nomeação de magistrados e controle da vida funcional dos mesmos.

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Uma observação interessante é a de que a criação destes conselhos de Magistratura na Europa, no início da segunda metade do século XX, foi recebida com aplausos da maioria da magistratura, tendo em vista que, como até então a função administrativa referente ao Judiciário era exercida pelo Executivo, representou um avanço em termos de independência. Diferentemente, no Brasil, as sucessivas tentativas de se criar qualquer órgão de cunho eminentemente administrativo, a exemplo do Conselho Nacional de Justiça, é sempre visto com reservas, e isto se deve ao fato da função administrativa já ser exercida, em sua plenitude, pelo próprio Judiciário, ainda que somente por sua cúpula.

No Brasil, todas as três funções já se encontram inseridas no âmbito do Judiciário, o que dá uma dimensão importantíssima à Instituição – o que, aliás, confere ao Judiciário brasileiro, sob este ângulo, uma situação ímpar em comparação com o Judiciário de outros países –, fazendo-a satisfatoriamente independente, institucionalmente, em relação aos órgãos e poderes externos, com reflexo, também, sobre a independência externa de cada um dos órgãos que a compõem, inclusive órgãos singulares.

Nada indica, assim, que seja conveniente o deslocamento destas funções para qualquer órgão externo ao Poder Judiciário. A questão que resta examinar, portanto, é a de acumulação de funções e, em consequência, de uma redistribuição destas funções de forma interna, ou seja, dentre os órgãos do próprio Judiciário.

No que diz respeito à acumulação de função jurisdicional propriamente dita com a função de controle de constitucionalidade, embora pudessem estar separadas, a exemplo da experiência europeia – até porque não afeta, conforme já afirmado, a independência dos juízes –, não enxergamos, sob este aspecto, nenhum inconveniente da persistência deste sistema híbrido, sem prejuízo de outras reflexões que, analisando sob outros ângulos, possam entender adequada a implantação, no Brasil, de uma Corte exclusivamente constitucional e a diferenciação das respectivas funções.

A acumulação, no entanto, da função administrativa com a função jurisdicional propriamente dita, nos chamados órgãos de cúpula, por representar sério risco à independência interna dos juízes merece, a nosso ver, uma revisão, ou seja, há de se fazer uma redistribuição de tais funções, atribuindo-se a outros órgãos, que não aquele que ocupa o ponto superior na estrutura recursal, a supremacia da função administrativa.

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Evidentemente, a inviabilidade de simplesmente se entregar tal função administrativa a outro órgão, que já compõe a estrutura do Judiciário, é patente. Seria tal hipótese tão somente uma subversão da ordem, uma inversão estrutural, que levaria a uma estruturação talvez até mais maléfica que a atual, quando o que se exige é uma mudança tendente a desconcentração que, a nosso ver, não poderia ocorrer de outra forma senão através de um processo de democratização da instituição, o que inexiste atualmente.

E aí, neste ponto específico da democratização, temos mais um enorme descompasso entre um discurso em que o Judiciário surge como democrático e guardião da ordem democrática e uma realidade em que o princípio democrático não frequenta, de forma desejável, a estrutura da Instituição.

Não estamos aqui nos referindo ao “pecado original”, que corresponde à ausência de uma inalcançável e inadequada legitimidade eletiva dos membros do Judiciário, por incompatível com a função a ser exercida com independência e imparcialidade, e que representou uma legítima e correta opção constitucional por uma seleção predominantemente técnica dos que integram a Instituição.

Mas a ausência de uma legitimidade eletiva não pode significar uma renúncia ao princípio democrático que, como princípio constitucional basilar de toda a ordem política e jurídica brasileira, deveria irradiar-se, também, sobre a estruturação do Judiciário, máxime quando a ausência desta diretriz leva a uma indesejável hierarquização que, como já argumentado, afronta a independência, ainda que interna, dos órgãos que compõem o Poder que, também por imposição constitucional fundamental, devem guardar esta marca.

Assim, e sob pena de uma total abdicação ao princípio democrático, resta a necessidade de uma democratização interna do Poder Judiciário, a partir do exercício da função administrativa de forma harmônica com o princípio democrático.

Não significa isto vislumbrar-se a possibilidade de fracionar a função administrativa entre os diversos órgãos que compõem o Judiciário, até porque absolutamente inoperante e ineficiente, tendo em vista que a função administrativa exige unidade, uniformidade e harmonia, mas a existência de órgãos de administração constituídos sob o signo do princípio democrático, o que significa a possibilidade de participação de todos os níveis da magistratura na sua eleição e na sua composição.

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Aí há de se abrir um parêntese para manifestar a incompreensão que nos invade, no que diz respeito ao entendimento aceito ou partilhado por quase todos, de que a administração da Justiça deve estar concentrada necessariamente no mesmo órgão que ocupa o ponto mais alto da estrutura recursal, ainda que isto conduza a uma indesejável hierarquia, conforme se demonstrou, e a uma ausência de contornos democráticos. Não poderíamos encontrar outra resposta senão o apego, por descuido ou tradição, a velhas e obsoletas formas que herdamos, talvez até sem perceber, de tempos em que predominavam concepções teológicas ou militares, de cunho hierárquico, despreocupados com princípios democráticos que hoje nos são tão caros.

É a mesma incompreensão que, transportada para o campo empírico, nos traz indagações como, por exemplo, por que, existindo múltiplos órgãos em uma determinada estrutura judiciária pretensamente não hierarquizada, somente um, no caso o tribunal de cúpula, exerce a função administrativa? Por que os demais órgãos, inclusive singulares, não compartilham com a administração e sequer participam da escolha dos que vão administrar?8 Por que se confunde a presidência de um tribunal com a presidência do Poder Judiciário e esta confusão se reflete sobre a forma de escolha do titular desta presidência, inclusive sobre o universo dos que podem ser eleitos para ocupá-la? Por que o que preside um “Poder” – “Poder” este instituído sob a égide de um Estado dito Democrático – não é eleito por todos os que o integram, mas somente pelos que compõem um de seus órgãos, no caso o tribunal de cúpula?

São indagações cuja resposta usual não se justifica diante da inadmissi-bilidade da hierarquização da estrutura, da inadequação de qualquer afronta à independência, ainda que interna, do juiz, nem do necessário respeito ao princípio democrático, que está a exigir uma democratização, também, do Poder Judiciário.

Talvez Garapon pudesse incluir a resposta no que chama de “funcionamento aristocrático”9 e Dallari nas suas “tradições paralisantes”, que se traduzem na constatação de que “a magistratura, na prática, ficou imobilizada, voltada para si própria, incapaz de perceber que, em alguma medida, os outros procuravam adaptar-se ao dinamismo da sociedade enquanto ela estagnava” ou, em outras

8 Neste contexto, a eleição direta dos órgãos administrativos dos tribunais, com participação de todos os magistrados, tese por muito defendida pelos representantes das associações de magistrados, parece solução parcial que não resolve por completo o problema da administração que se pretende democrática.9 GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia: o guardião de promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

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palavras, que “o Judiciário envelheceu e o que muitos, dentro dele, veneram como tradições, não passam de sinais de velhice”. Em outras palavras, sentencia Dallari, “no Judiciário o passado determina o presente” e conclui: “esse é um dos principais motivos pelos quais há evidente descompasso entre o Poder Judiciário e as necessidades e exigências da sociedade contemporânea”10.

O certo é que o respeito a valores tão caros e necessários, em especial a independência interna, incompatível com a hierarquia, e a democracia, também interna, está a exigir uma redistribuição das funções judiciárias, deslocando-se a função de administração para um órgão próprio, distinto do órgão de cúpula recursal, que seja plural, já que composto por representantes de todas as esferas do Judiciário; que seja legítimo, já que eleito por todos os que integram a esfera do Poder a ser administrado; que seja autônomo, já que não deve guardar vinculação direta com nenhum órgão específico e nem com a função jurisdicional. Em suma, um órgão democrático que exerça, distintamente da função jurisdicional, a função de administração da Justiça.

É esta, no nosso entendimento, a única forma de, separando as funções jurisdicionais e administrativas, e democratizando esta última, se quebrar a hierarquização da estrutura do Judiciário e, por consequência, afastar o mais forte fator que atenta contra a independência interna dos magistrados, devolvendo a sua plenitude, de forma a aproximar a realidade do discurso em que o Judiciário aparece como um Poder democrático e plenamente independente.

7. O Significado Institucional do Conselho Nacional de Justiça

A Emenda Constitucional no 45, de 8 de dezembro de 2004, criou o Conselho Nacional de Justiça, com competência para o “controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”11.

Não nos cabe, no presente trabalho, examiná-lo em sua abrangência, mas apenas tecer alguns comentários direcionados para a questão que aqui se aborda, em especial na sua configuração como órgão titular da função de administração e no que o mesmo se conforma ao perfil do órgão sugerido no tópico anterior.

10 DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p.5-7.11 Artigo 103-B da Constituição Federal.

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Diga-se, de início, que o CNJ não é órgão de controle externo, mas de controle interno, uma vez que integra a estrutura do Poder Judiciário (art. 92, I-A), independentemente da existência de membros que não pertençam originariamente ao Judiciário12 e que é um órgão nacional, e não apenas federal, o que afasta a alegação de que suas funções possam afrontar o princípio federativo.

Acentue-se, outrossim, o seu verdadeiro significado institucional, não como órgão de controle externo, que não o é, ou como órgão de controle social da função jurisdicional, que também não o é. Significa ele, para a Instituição Judiciária, aquele órgão que veio assumir – ainda que parcialmente e apenas em nível nacional – uma das três funções judiciárias, mais precisamente a de administração da Justiça. É este o seu papel, é esta a sua função, e é este o seu significado institucional.

Neste papel, entretanto, não obstante significar um real avanço sobre o que acima já se apregoou como necessidade, de distinguir e entregar a órgãos diferentes as funções jurisdicionais propriamente ditas e administrativas, a instituição do Conselho Nacional de Justiça se deu de maneira tímida, insuficiente e incompleta.

Tímida porque não atribuiu ao Conselho, em sua integralidade, a função administrativa, gerando, de forma definitiva, a retirada desta função da esfera de atuação dos órgãos que exercem a função jurisdicional. Somente aí poderia exercer, com plenitude, a função que se poderia esperar de um órgão administrativo nacional, não só de administração geral do Poder Judiciário mas, também, de planejamento estratégico, de função correicional, direta ou subsidiária, de controle funcional etc.

Insuficiente porque, se por um lado instituiu um órgão de composição plural, com representantes de todos os seguimentos da magistratura e, inclusive, de funções essenciais à Justiça – Ministério Público e Advocacia – por outro não foi tão democrática assim na forma de escolha, não havendo participação dos próprios administrados – membros do Poder Judiciário – mantendo a indicação predominantemente a cargo dos chamados “órgãos de cúpula”, destacadamente o Supremo Tribunal Federal13.

12 Os tribunais eleitorais, por exemplo, que são órgãos de jurisdição e não apenas administrativos, têm, dentre seus membros, pessoas que não integram o Judiciário sem que, no entanto, se possa alegar que não integrem a estrutura do Judiciário.13 Na proposta original do Conselho Nacional de Justiça a escolha, pelo menos dos magistrados de primeira instância – juiz estadual, juiz do trabalho e juiz federal – se daria através de eleição direta dos magistrados.

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Incompleto porque não recebeu a necessária complementação estrutural, imprescindível a um Estado da dimensão do Brasil e que se constitui sob a forma Federativa, de órgãos similares de atuação em âmbito estadual. Evidentemente, não se pode esperar, de um órgão nacional, uma atuação minimamente eficiente em funções específicas, como a correicional, por exemplo, salvo se o fizer de forma subsidiária. Também não se pode esperar que seja assimilada uma mudança estrutural que, em nível nacional, desloque a função de administração para outro órgão distinto do jurisdicional, ainda que parcialmente, sem que a mesma providência seja adotada no âmbito dos estados, fazendo com que subsista um sistema que se submeta e conviva com duas lógicas estruturais absolutamente diversas.

A instituição do Conselho Nacional de Justiça, entretanto, não obstante as deficiências acima apontadas, representou, ainda assim, um avanço parcial no que se refere especificamente à independência da magistratura, sem prejuízo de outros importantes avanços em outros campos que não nos cabe aqui examinar.

É que representou ele, de alguma maneira, um contrapeso à forma hierarquizada de diversas estruturas judiciárias que se inserem no Judiciário brasileiro.

A Justiça Estadual, por exemplo, não somente guardava uma forma hierarquizada, nos termos acima já demonstrados, como, ainda, uma hierarquização fechada, já que estanque em seu próprio universo. Assim, todas as questões funcionais e disciplinares, por exemplo, se fechavam até o limite dos tribunais de Justiça. Isto implicava em pelo menos dois aspectos particularmente maléficos: primeiro, a função correicional, quando exercida no âmbito do próprio tribunal e em relação aos seus próprios membros, era inegavelmente deficiente, de forma que, em alguns casos, parecia mesmo inexistente; em segundo lugar, a estrutura hierarquizada, que já tem naturalmente uma considerável força sobre as garantias de independência dos magistrados de primeiro grau, ganha indesejável reforço com a concentração, no topo desta hierarquia, do poder sobre toda a vida funcional dos magistrados singulares, desde promoções até eventual punição disciplinar, sem que pudesse haver, pelo menos, um controle desta atuação que viesse de órgãos situados fora deste círculo.

Neste sentido é que a instituição do Conselho Nacional de Justiça representou, ainda que parcialmente, uma quebra no poder decorrente da

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hierarquia estrutural de esferas do Judiciário, ainda que não tenha significado o fim desta estrutura hierarquizada.

Para que cumpra o seu papel com a integralidade que vislumbramos teria que ser menos tímido institucionalmente, de forma que representasse uma completa distinção entre as funções jurisdicionais e administrativas, assumindo esta última integralmente em âmbito nacional; teria, ainda, que afastar a sua insuficiência no sentido de, não somente na composição mas, também na escolha dos seus integrantes, ser mais atento aos preceitos democráticos. Teria, por fim, que receber a necessária complementação estadual, imprescindível a um Estado que se constitui sob a forma federativa e da dimensão do Brasil.

8. Os Conselhos de Justiça Estaduais

Ao tratarmos do Conselho Nacional de Justiça, no tópico anterior, atentamos para o fato de sua instituição não somente ter sido tímida e insuficiente como, também, incompleta, e isto porque não recebeu, em âmbito estadual, a sua necessária complementação.

Na verdade, não só a necessidade de complementação das tarefas atribuídas ao Conselho Nacional de Justiça – o que já teria sido possível deste a Emenda Constitucional 45 – mas, sobretudo, a necessidade de efetivamente se buscar a quebra total da hierarquização da estrutura judiciária, em âmbito também estadual, e, ainda, de democratizar, pelo menos internamente, a instituição judiciária, enseja a necessidade – o que representa uma mudança mais radical – da instituição dos conselhos de Justiça estaduais.

Tais órgãos, para que possam atingir a plenitude da missão que para eles se vislumbra, teriam que representar, a exemplo do que se apregoa para órgão nacional, uma distinção e separação completa entre a função jurisdicional propriamente dita e a função administrativa, assumindo, em sua inteireza, esta última, e nisto representariam a consolidação da independência judicial também em nível interno.

Somente desta forma, distinguindo e entregando a órgãos diversos as funções administrativas e jurisdicionais, se quebraria, em definitivo, a estrutura hierarquizada, uma vez que inexistiria vinculação necessária entre estas duas esferas e, portanto, a hierarquia recursal se constituiria, efetivamente, em mera forma de diferenciação de competências, e não, como se verifica na atual realidade, em um dos itens essenciais para configuração de uma completa hierarquização da Instituição Judiciária.

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Teriam, por outro lado, que se constituir em órgãos plurais compostos por representantes de todos os setores e instâncias da estrutura judiciária, não se descartando, inclusive, a exemplo do Conselho Nacional de Justiça, a participação de representantes de funções essenciais à Justiça, como o Ministério Público e a Advocacia. Neste ponto, o avanço da democratização interna do Judiciário.

É que tais órgãos, ou conselhos estaduais, não poderiam deixar de ter a marca do princípio democrático, essencial à estrutura do Judiciário que, como se afirmou, já carecendo de uma reclamada “legitimidade eletiva” não poderia virar as costas, também em âmbito interno, aos preceitos inerentes à democracia. Desta forma, não se poderia concebê-los sem a participação efetiva de todos os que compõem a esfera de Poder, tanto na possibilidade de integrá-los como no direito de escolher os que irão compô-los.

Não se pode deixar de vislumbrar alguns problemas que mereceriam ser enfrentados, como a interação mais intensa entre quem administra e quem é administrado, o que é particularmente delicado em questões como as funcionais e correicionais, mas permitem solução adequada. De antemão, é de se apresentar a necessidade de, para enfrentar a questão funcional, em especial no que se refere a promoções e remoções de magistrados, se buscar, para a magistratura, uma postura cada vez mais profissional e, no entanto, menos “carreirista”. Quanto a questão correicional, acreditamos que a temporariedade dos mandatos de seus membros e a existência de uma via recursal administrativa, no caso o Conselho Nacional de Justiça, por si só, dilui a questão. De qualquer forma, tais questões merecem uma argumentação mais profunda, que deverá ser objeto de outro trabalho.

O essencial é que, para que cumpram adequadamente a função a que se propõem, os conselhos estaduais de Justiça aqui vislumbrados, terão que ser instituídos sob a lógica do seu verdadeiro significado, que é a separação entre as funções jurisdicionais e administrativas, em complementação, neste intuito, ao Conselho Nacional de Justiça, o que faz com que seja quebrada a visível hierarquia da estrutura judiciária brasileira, devolvendo a plenitude da independência dos órgãos judiciários, inclusive e especialmente os singulares, e trazendo, pelo menos no âmbito interno, os raios do princípio democrático para a Instituição Judiciária, passando a função administrativa a ser exercida, direta ou indiretamente, por todos os que integram a estrutura do Poder.

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9. Conclusão

Ao final deste trabalho se pode, de forma resumida, enfatizar as seguintes conclusões, extraídas do próprio corpo da exposição:

a) Não obstante as garantias constitucionais – da Instituição e dos juízes –, a estrutura concebida pela Constituição para o Poder Judiciário atenta contra o necessário resguardo da independência interna, de tal forma que os magistrados, em especial de primeiro grau, não guardam o sentimento de estarem isentos de pressões partidas dos órgãos internos ao próprio Judiciário, pelo menos com a mesma desenvoltura com que este sentimento se apresenta em relação aos órgãos externos;b) Entre as razões que podemos apontar para tanto, uma nos parece determinante, que é a forma hierarquizada como foi concebida a estrutura do Poder Judiciário, o que decorre, em grande parte, de uma indesejável mistura e distribuição inadequada das funções atribuídas ao Judiciário – em especial a jurisdicional e a administrativa;c) É precisamente no acúmulo da função jurisdicional, em sua instância mais alta, com a totalidade da função administrativa, em sua mais larga abrangência, que reside o formato hierarquizado da estrutura do Judiciário brasileiro. E é inegavelmente nesta hierarquia que a independência dos juízes se encontra mais vulnerável;d) O respeito a valores tão caros e necessários, em especial a independência interna e a democracia, também interna, está a exigir uma redistribuição das funções judiciárias, deslocando-se a função de administração para um órgão próprio, distinto do órgão de cúpula recursal, que seja plural, composto por representantes de todas as esferas do Judiciário; que seja legítimo, já que eleito por todos os que integram a esfera do Poder a ser administrado; que seja autônomo, já que não deve guardar vinculação direta com nenhum órgão específico e nem com a função jurisdicional. Em suma, um órgão democrático que exerça, distintamente da função jurisdicional, a função de administração da Justiça;e) A instituição do Conselho Nacional de Justiça representou, ainda que parcialmente, uma quebra no poder decorrente da hierarquia estrutural de esferas do Judiciário, ainda que não tenha significado o fim desta estrutura hierarquizada. A sua instituição, entretanto,

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não somente se deu de forma tímida e insuficiente, como também incompleta, e isto porque não recebeu, em âmbito estadual, a sua necessária complementação, o que enseja a necessidade da instituição dos conselhos de Justiça estaduais. f ) Para que cumpra o seu papel com a integralidade que vislumbramos, o Conselho Nacional de Justiça teria que ser menos tímido institucionalmente, de forma que representasse uma completa distinção entre as funções jurisdicionais e administrativas, assumindo esta última integralmente em âmbito nacional; teria, ainda, que afastar a sua insuficiência no sentido de não somente na composição mas também na escolha dos seus integrantes, ser mais atento aos preceitos democráticos. Teria, por fim, que receber a necessária complementação estadual, imprescindível a um Estado que se constitui sob a forma federativa e da dimensão do Brasil.g) Para que os conselhos estaduais de Justiça aqui vislumbrados cumpram adequadamente a função a que se propõem, terão que ser instituídos sob a lógica do seu verdadeiro significado, que é a separação entre as funções jurisdicionais e administrativas, em complementação, neste intuito, ao Conselho Nacional de Justiça, o que faz com que seja quebrada a visível hierarquia da estrutura judiciária brasileira, devolvendo a plenitude da independência dos órgãos judiciários, inclusive e especialmente os singulares, e trazendo, pelo menos no âmbito interno, os raios do princípio democrático para a Instituição Judiciária, passando a função administrativa a ser exercida, direta ou indiretamente, por todos os que integram a estrutura do Poder.

Portanto, resgatada que seja a independência plena, inclusive e especialmente interna, de todos os órgãos judiciários, principalmente singulares, mediante a quebra da visível hierarquização do Judiciário brasileiro, com o deslocamento da função administrativa para órgãos específicos, plurais, representativos de toda a magistratura e democráticos, se estaria aproximando o discurso da realidade, de forma que as eloquentes expressões que proclamam um Judiciário plenamente independente e democrático poderiam ecoar pelos edifícios judiciários sem causar estranheza aos personagens forenses.

Não se propõe aqui, pois, que se abandone o discurso, por ausência de substância fática, por descompasso com o real, pelo vazio da eloquência desnuda

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de significado, mas que se o adote como bandeira a nortear a construção de uma nova realidade. De forma mais simplória, que o fato busque a palavra para que o discurso se aproxime da realidade.

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DEMOCRATIzAçãO DOS TRIBuNAIS: Eu QuERO

VOTAR PRA PRESIDENTE! *

Roberto da Silva Fragale FilhoAmatra I - RJ

1. Eleitor potencial

A quele era, sem dúvida, um momento especial, único. No Centro do Rio de Janeiro, diante da multidão que se perdia no horizonte, o jurista Sobral Pinto pedia silêncio e dizia querer falar à nação brasileira: “Este movimento não é contra ninguém. Este movimento é a favor do povo”1. E quando ele, repetindo o comando do artigo 1º da precedente Constituição Federal, lembrou que “todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”, um frisson percorreu a multidão, emocionada. Com efeito, a certeza da aprovação da Emenda Dante de Oliveira, que reinstituía, de forma imediata, a eleição direta para Presidente da República, sobrepairava os manifestantes e prolongar-se-ia nos dias que se seguiram ao comício de 10 de abril de 1984, quando mais de um milhão de pessoas se reuniram na frente da Igreja da Candelária para reclamar “Diretas Já”! Este grito coletivo voltaria a ecoar, seis dias depois, na passeata percorrida da Praça da Sé até o Vale do Anhangabaú, onde se concentraram um milhão e quinhentas mil pessoas para realizar aquela que ainda é a maior manifestação pública da história do país. Para todos os ali presentes com menos de 40 anos, a eleição presidencial de 1960, que era até então a última a ter sido realizada mediante voto direto, tinha sido uma festa cívica para a qual não obtiveram ingresso. Pior: para os mais novos, ela era apenas uma página de história, um evento passado e longínquo que pouco ou nada lhes dizia.

* Concurso de Monografia da AMB – Menção Honrosa1 Cf. “O grito da Candelária”, Revista Veja, de 18.04.1984. Disponível em: http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_18041984.shtml, acesso em: 16 jul. 2009.

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A pajelança cívica, entretanto, seria barrada no Congresso Nacional, que lhe recusou os últimos 22 votos necessários para que o quorum mínimo para aprovação fosse atingido2. O frustrante resultado trouxe à tona o dilema em torno da participação no colégio eleitoral indireto. Entre a recusa de compactuar com o processo eleitoral indireto e a construção de uma candidatura viável no reduzido colégio eleitoral, a oposição dividiu-se, assim como, com a oficialização da candidatura de Paulo Maluf, dividiu-se a base governista. A recomposição político-partidária daí oriunda resultou na eleição de Tancredo Neves em um colégio eleitoral indireto composto por 686 eleitores3. Não se encerrava ali, contudo, o longo processo da transição democrática, cujo desfecho viria, tão somente, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a eleição presidencial de 1989, dessa vez pelo voto direto e universal. Este último ato da transição representava, sem dúvida, uma mudança expressiva, pois o colégio eleitoral nas eleições presidenciais havia passado dos 686 membros indiretos da eleição de Tancredo Neves para um total de 82.074.718 eleitores. O envolvimento desse expressivo contingente populacional produziu um importante impacto na democracia brasileira ao alavancar uma cidadania eleitoral e ampliar sobremaneira o seu grau de participação. Duas décadas mais tarde, o eleitorado cresceu quase 60% e ultrapassou cento e trinta milhões de pessoas4.

Semelhante processo poderia ser experimentado pelos tribunais nacionais, guardadas as devidas proporções, caso a eleição de seus dirigentes ocorresse de forma direta, com participação de toda a magistratura. Consoante os dados do relatório Justiça em Números 2008, entre primeiro e segundo graus nas Justiças Estadual, Federal e do Trabalho, existem 15.731 magistrados5, dos quais apenas uma pequena parcela participa dos processos eleitorais das cortes nacionais. Com efeito, tome-se o maior tribunal do país, ou seja, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, como referência e constatar-se-á que seu atual colégio eleitoral é composto pelos 352 membros do Tribunal Pleno6, muito

2 A Emenda Dante de Oliveira recebeu 298 votos favoráveis, 65 contrários e três abstenções. 3 No colégio eleitoral, Tancredo Neves e Paulo Maluf obtiveram, respectivamente, 480 e 180 votos. Houve, ainda, 26 abstenções.4 Em junho de 2009, consoante os dados do TSE, havia 130.958.083 eleitores no país. Cf. http://www.tse.gov.br/internet/eleicoes/evolucao_eleitorado.htm, acesso em: 16 jul. 2009.5 Consoante o Justiça em Números 2008, haveria 1.478 juízes federais, 3.145 juízes do trabalho e 11.108 juízes estaduais. Cf. http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/justica_em_numeros_2008.pdf, acesso em: 24 jul. 2009. 6 Cf. http://www.tj.sp.gov.br/ComposicaoCamaras/Composicao.aspx, acesso em: 16 jul. 2009.

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embora o contingente de magistrados ali existente seja de 2.2917. Em outras palavras, o colégio eleitoral é composto por 15,36% da magistratura estadual paulista. Ainda exemplificativamente, tome-se a Justiça do Trabalho como referência e ter-se-á que apenas 463 magistrados8 participam dos processos eleitorais, muito embora haja, entre primeiro e segundo grau, 3.145 juízes do trabalho. Mais uma vez, o percentual de juízes eleitores sobre a totalidade de magistrados gira em torno de 15%. Naturalmente, esse é um dado genérico, pois as realidades regionais são diversas. No Tribunal Regional do Trabalho da Primeira Região (Rio de Janeiro), por exemplo, há 54 eleitores para um total de 329 magistrados9, o que se traduz em 16,41%. Esse percentual pode oscilar bastante em tribunais de menor porte, cujo segundo grau é composto pelo número mínimo de oito desembargadores, como indicado na tabela I.

Tabela I Tribunais Regionais do Trabalho com oito desembargadores

Dimensão percentual do colégio eleitoral

Tribunal Desembargadores Magistrados1 Percentual TRT-20 (SE) 08 30 26,66% TRT-22 (PI) 08 34 23,52% TRT-21 (RN) 08 46 17,39% TRT-19 (AL) 08 46 17,39% TRT-16 (MA) 08 46 17,39% TRT-14 (AC e RO) 08 57 14,03% TRT-7 (CE) 08 57 14,11% TRT-24 (MS) 08 61 13,11% TRT-17 (ES) 08 62 12,90% TRT-23 (MT) 08 65 12,30% TRT-13 (PB) 08 67 11,94% TRT-11 (AM e RR) 08 71 11,26% TRT-18 (GO) 08 76 10,52%

 

                                                                                                 

1  Cf.  Justiça  em  Números  2008,  p.  117.  Disponível  em:  http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/justica_em_numeros_2008.pdf,  acesso  em:  24  jul.  2009.  

7 Cf. Justiça em Números, 2008, p. 209. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/justica_em_numeros_2008.pdf, acesso em: 24 jul. 2009. A listagem de magistrados de primeiro grau do TJ-SP por antiguidade indica, entretanto, a existência de 2.030 juízes entre substitutos, entrância inicial, intermediária e final. Assim, o total de magistrados seria de 2.382, o que reduz ainda um pouco mais a dimensão percentual do colégio eleitoral. Cf. http://www.tj.sp.gov.br/Download/ComposicaoCamaras/lista_antiguidade.pdf, acesso em: 16 jul. 2009.8 Cf. http://www.tst.jus.br/Sseest/PESSOAL/Trtjuiz/2003.htm, acesso em: 16 jul. 2009.9 O dado aqui utilizado foi extraído do relatório Justiça em Números 2007 (Cf. http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/relatorios/justica_em_numeros_2007.pdf, acesso em: 24 jul. 2009). Surpreendentemente, a edição de 2008 registra uma redução no quadro de magistrados para 278. Nada semelhante é observado nas demais regiões. Com efeito, as variações negativas, salvo o caso do TRT-1 (RJ), nunca foram superiores a três magistrados. Por outro lado, as variações positivas superiores a três juízes sinalizam para a realização de concurso público com elevado número de candidatos aprovados. São os casos de TRT-2 (SP), TRT-3 (MG), TRT-9 (PR), TRT-11 (AM e RR) e TRT-15 (SP-Campinas), cujo número de juízes sofreu o acréscimo, respectivamente, de 42, 34, 20, 15 e 26 novos magistrados. Na verdade, tudo indica que os dados do TRT-1 (RJ) foram preenchidos sem se levar em consideração o segundo grau, uma vez que com a redução observada é quase equivalente à dimensão do segundo grau.

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Na Justiça Federal, a oscilação percentual dá-se para baixo, uma vez que a proporcionalidade média entre eleitores e a totalidade de magistrados é pouco superior a 9%. Contudo, conforme ilustra a tabela II, as peculiaridades regionais fazem com que três tribunais tenham percentuais em torno de 7%!

Tabela IITribunais Regionais Federais Dimensão percentual

do colégio eleitoral

Tribunal Desembargadores Magistrados Percentual

TRF-1 27 378 7,14%

TRF-2 27 237 11,39%

TRF-3 43 328 13,10%

TRF-4 27 370 7,29%

TRF-5 10 165 6,06%

Total 134 1.478 9,06%

Constata-se, por conseguinte, que mais de quatro quintos da magistratura nacional encontra-se alijada dos processos eleitorais para escolha de seus dirigentes. Esse alijamento produz como conseqüência a ausência de accountability10 das direções dos tribunais em relação a essa ampla parcela da magistratura que não participa do colégio eleitoral. Em outras palavras, as direções desenham suas legitimidades em relações horizontais, a partir de colégios eleitorais enxutos, com um diálogo marcadamente facultativo com a maior parcela da magistratura, cuja opinião revela-se periférica ao processo deliberativo sobre seus destinos.

Na verdade, impõe-se reconhecer que até mesmo essa legitimidade construída a partir da eleição pelos pares é relativa, uma vez que as condições de elegibilidade são bastante restritas. Com efeito, o artigo 102 da Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN) estabelece que a escolha dos tribunais para os cargos de direção deverá recair sobre seus juízes mais antigos, ficando vedada a eleição daqueles que tiverem exercido quaisquer cargos de direção por quatro anos, ou o de Presidente, salvo se já tiverem esgotados todos os nomes, na

10 Embora a literatura especializada eventualmente utilize a expressão responsabilização, na ausência de uma tradução exata, optou-se pela utilização do termo original da língua inglesa, que remete à obrigação de prestação de contas em sentido amplo e de responsividade em relação ao eleitorado.

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ordem de antiguidade. Ou seja, a eleição, pautada por uma lógica de exclusão, ganha ares homologatórios, reduzindo drasticamente as possibilidades de institucionalização de um efetivo debate sobre os rumos do tribunal. E assim seria, pois, consoante o voto vencido do Ministro Ricardo Lewandowski na ADI nº 3.976-MC-SP, “a LC nº 35/1979, à imagem e semelhança do macromodelo jurídico que lhe emprestava abrigo, arquitetou um Judiciário centralizador, rigidamente hierarquizado, no qual prevalecia, absoluto, o princípio da autoridade, baseado na mera antiguidade, engendrando uma estrutura que inviabilizava qualquer interlocução entre a base e a cúpula do sistema”.

Isso quer, no fundo, dizer que a legitimidade das direções dos tribunais não está atrelada ao seu processo de escolha, mas encontra seu fundamento alhures, mais precisamente na própria função judicante. Em outras palavras, pode-se dizer que não é a eleição que legitima o escolhido, mas é a sua própria prática judicante, que traz em si, de forma quase ontológica, a prerrogativa de um dia exercer a direção administrativa de seu tribunal. Consoante o voto vencedor do Ministro Cezar Peluso na mesma ADI nº 3.976-MC-SP, a natureza democrática do Poder Judiciário não é afetada pelo fato dos juízes não serem eleitos, do universo elegível ser restrito ou de nem todos os juízes poderem votar, pois ela estaria fundada em outras conexões jurídicas. Em suma, a eleição, em seu sentido mais estrito, percebida como disputa ou concorrência entre pares, é assim repudiada, de forma a evitar que, “pela porta do aparente pluralismo, da aparente democratização, entrem nos tribunais, no interior da vida dos tribunais, o partidarismo, o sectarismo, que levam à desagregação, à discórdia, a desprestígios e a retaliações que a história tem registrado”.

Essa não é, entretanto, a vontade da grande maioria da magistratura, que deseja não só a eleição direta para a escolha de seus dirigentes, mas também uma efetiva participação na construção de uma gestão democrática do Judiciário, como, aliás, demonstram recentes e diferentes surveys realizados junto a si. Com efeito, é o que se constata ao se tomar como parâmetro para pensar o alcance da gestão democrática no Judiciário uma dupla referência mínima, i.e., a participação coletiva: (a) na escolha de seus dirigentes e (b) na definição de alocação dos recursos financeiros. Em outras palavras, a existência de eleições diretas para escolha de seus dirigentes e a elaboração de um orçamento participativo. Ora, consoante a pesquisa coordenada por Sadek

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(2006), quase três quartos dos magistrados seriam favoráveis à participação de juízes do primeiro grau na elaboração do orçamento dos tribunais e quase quatro quintos seriam favoráveis à realização de eleições diretas para os órgãos dirigentes. É inegável, entretanto, como evidencia a tabela III, que o lugar da fala tem um importante impacto sobre tais números, uma vez que o orçamento participativo é desejado por 80,2% dos juízes de primeiro grau, ao passo que esse percentual desce para 48,4% quando se consideram apenas os juízes de segundo grau. Observa-se, ainda, a mesma redução percentual em relação à eleição direta, já que, no primeiro grau, ela seria desejada por 85,8% dos juízes, enquanto, no segundo grau, apenas 52,6% de seus membros seriam favoráveis à sua realização.

Tabela IIIGestão democrática

Critério Primeiro grau Segundo grau Magistratura

Eleição direta 85,8% 52,6% 77,5%

Orçamento participativo 80,2% 48,4% 72,3%

Por sua vez, sem que seja possível observar as nuanças entre seus diferentes graus de jurisdição, outro não foi o resultado obtido na pesquisa “Trabalho, Justiça e Sociedade: o olhar da magistratura do trabalho sobre o Brasil do século XXI”, realizada pelo Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) para a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA). Com efeito, ela indica que 83,6% dos magistrados trabalhistas são favoráveis à eleição direta para escolha de seus dirigentes11. Já o survey realizado por Gomes et alli (2007) junto à magistratura trabalhista ratifica o desejo de participação dos juízes de primeiro grau no processo de escolha de seus dirigentes, uma vez que ele aponta para uma preferência pela eleição direta em mais de 80% de seus componentes. No entanto, o grau de resistência do segundo grau, quando comparado à pesquisa de Sadek, é superior, já que, entre esses, a eleição direta é desejada por menos de 40% de seus integrantes. Essa dissonância em

11 O percentual foi obtido pela soma das respostas favoráveis à eleição direta, que, entretanto, distinguem entre eleição para todos os cargos e eleição para todos os cargos, salvo corregedor. Cf. http://ww1.anamatra.org.br/sites/1200/1223/00000990.pdf, acesso em: 19 abr. 2009.

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relação aos resultados obtidos na outra pesquisa pode, talvez, ser explicada pela dimensão quantitativa dos diferentes ramos do Judiciário. Em outras palavras, como o universo de desembargadores trabalhistas é bastante inferior ao correlato contingente das Justiças Estaduais é bem provável que entre eles se encontre uma maior disposição ao “conformismo”, aqui entendido como o desejo de manutenção do status quo. Embora não haja dados quantitativos para corroborar tal assertiva, caso essa hipótese se revele correta, constatar-se-ia a existência de um percentual ainda menor entre os desembargadores federais.

A democracia corporativa não se limita, contudo, à participação no processo de escolha de seus dirigentes e na elaboração orçamentária. Ela vai, certamente, além de tais parâmetros e inclui outras dimensões aqui não abordadas, que dizem respeito à deliberação conjunta e à construção de um sentido coletivo para as instituições judiciais. Nesse sentido, ela alcança o próprio processo associativo, como evidenciam o processo eleitoral da ANAMATRA e o sistema por ela institucionalizado para indicação dos representantes de primeiro e segundo grau da magistratura trabalhista no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Assim, a eleição para escolha dos dirigentes associativos trabalhistas, desde a reforma estatutária de agosto de 1994 da ANAMATRA, é realizada por voto direto dos associados e não mais por meio de um processo eleitoral indireto, que limitava o voto às representações estaduais. Institucionalizou-se, assim, um colégio eleitoral de quase três mil magistrados, cuja deliberação escolhe os porta-vozes de uma vontade coletiva. O exercício não é por certo desinteressante na medida em que possibilitou um efetivo debate sobre os rumos e os posicionamentos da magistratura trabalhista quanto aos temas mais controversos da profissão. A experiência estendeu-se para o processo de escolha de seus representantes junto ao CNJ, que resulta na elaboração de duas listas tríplices encaminhadas ao Tribunal Superior do Trabalho (TST), já que este é constitucionalmente o responsável pelas referidas indicações. Embora o TST não esteja vinculado à lista tríplice organizada pela ANAMATRA, é inegável que a escolha por um desses indicados reforça a legitimidade da representaçãona medida em que traz o respaldo de toda a corporação12. Enfim, o mecanismo eleitoral não é aqui repudiado

12 Na primeira eleição organizada pela ANAMATRA, em 2007, ela deu origem a duas listas tríplices: para o primeiro grau, foram indicados os Juízes Paulo Schmidt (TRT-RS), Firmino Alves Lima (TRT-Campinas)

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como um passaporte para o partidarismo e o sectarismo, mas, ao contrário, é visto como uma forma de institucionalizar e reconhecer o dissenso em uma magistratura que, sem dúvida, está longe de ser homogênea. A eleição é a tradução mais simples de um amplo desejo de participação, cujo real alcance diz respeito à construção de uma verdadeira gestão democrática, consoante constatado nos diferentes surveys.

Poder-se-ia objetar que tais pesquisas possuem o bias de terem sido realizadas a pedido do movimento associativo. Ora, por um lado, o trabalho de Gomes et alli (2007) não possui tal origem, já que realizado no âmbito do projeto de pesquisa “História do Direito e da Justiça do Trabalho no Brasil”, com apoio institucional do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Por outro lado, ainda que os trabalhos de Sadek (2006) e do CESIT-UNICAMP (2008) tenham surgido a partir de encomendas das associações, sua independência acadêmica é inquestionável e encontra-se evidenciada nas preocupações explícitas de validação do universo amostral. De qualquer sorte, a crítica perde sentido quando são examinados os dados da recente pesquisa realizada pela Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (EJEF), do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV). Com efeito, a pesquisa “Radiografia da Justiça Mineira”13, além de não ter qualquer vínculo com o movimento associativo, contou com uma expressiva taxa de participação de 75%. Ou seja, 746 dos 989 magistrados estaduais de Minas Gerais responderam, de forma não identificada, o questionário enviado pela FGV.

Tabela IV

e Antonio Umberto de Souza Júnior (TRT-DF) e, para o segundo grau, Gustavo Tadeu Alkmim (TRT-RJ), Manoel Edílson Cardoso (TRT-PI) e Fernando da Silva Borges (TRT-Campinas). Por sua vez, o TST indicou o Juiz Antonio Umberto de Souza Júnior (TRT-DF) e o Desembargador Altino Pedrozo dos Santos (TRT-PR). Em 2009, foi realizada nova eleição que deu origem a duas novas listas: para o primeiro grau, foram indicados Marcos Neves Fava (TRT-SP), Guilherme Guimarães Feliciano (TRT-Campinas) e Antônio Umberto de Souza Júnior (TRT-DF) e, para o segundo grau, Éridson João Fernandes Medeiros (TRT-RN), Francisco das Chagas Lima Filho (TRT-AC e RO) e Gustavo Tadeu Alkmim (TRT-RJ). Dessa vez, o TST indicou, como representantes da magistratura trabalhista, a Juíza Morgana de Almeida Richa (TRT-PR) e o Desembargador Nélson Tomáz Braga (TRT-RJ). Constata-se, assim, que, se, em 2007, um dos indicados do TST trazia consigo a legitimidade do processo eleitoral do movimento associativo, em 2009, isso não ocorreu para nenhum dos dois indicados pelo Tribunal.

13 Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/radiografia-justica-.pdf, acesso em: 23 jul. 2009.

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Grau de satisfação

Critério Insatisfeito Regular Bom

Participação na gestão estraté-gica

64% 24% 12%

Participação na gestão finan-ceira4

72%

Os dados sistematizados na tabela IV indicam que cerca de dois terços da magistratura mineira está insatisfeita com o nível de participação que lhe é oferecido nas gestões estratégica e financeira do tribunal. Não surpreende, portanto, que 87% dos respondentes se manifestem em favor da eleição direta para a direção do tribunal. Ainda que todos os não-respondentes se manifestassem de forma contrária, os magistrados favoráveis à eleição direta representariam 65,6% da totalidade dos magistrados estaduais mineiros. Mais uma vez, os dados expressam um intenso e inequívoco desejo de participação e podem ser entendidos como uma clara manifestação em favor de uma cidadania eleitoral no espaço judicial. Essa é, aliás, uma vontade perene e presente em diferentes universos da magistratura, conforme pode ser constatado na tabela V.

Tabela V Eleição direta

Não obstante essa ressonante manifestação coletiva em favor de uma

Pesquisa Universo Primeiro grau Segundo grau

Magistratura

Sadek (2006) Juízes Brasileiros

85,8% 52,6% 77,5%

Gomes et alli (2007) Juízes do Trabalho

>80,0% <40,0%

CESIT-UNICAMP (2008) Juízes do Trabalho

83,6%

EJEF e FGV (2009) Juízes Mineiros

93% 25% 87%

 

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mais ampla participação de todos os segmentos nos processos deliberativos do Judiciário, em especial no que diz respeito à escolha de seus dirigentes e à elaboração de seus orçamentos, tal demanda não encontra amparo no atual quadro normativo, consoante a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal (STF), que se encontra sistematizada na tabela VI.

Tabela VIJurisprudência do STF

Período Processo Relator Objeto

Pré-EC nº 45/2004 ADI nº 841-2 RJ Carlos Veloso Duração do manda-to dos dirigentes do Tribunal

ADI nº 2012 MC SP Marco Aurelio Eleição direta para escolha dos diri-gentes do Tribunal

ADI nº 2370-5 CE Sepúlveda Pertence Elegibilidade de to-dos os membros do Tribunal

Pós-EC nº 45/2004 ADI nº 3566-5 DF Joaquim Barbosa (Cezar Peluso, acór-dão)

Elegibilidade de to-dos os membros do Órgão Especial

ADI nº 3976-8 MC SP

Ricardo Lewando-wski

Elegibilidade de to-dos os membros do Órgão Especial

ADI nº 4108-8 MG Ellen Gracie Elegibilidade de metade do Órgão Especial

RCL nº 5158 Cezar Peluso Ofensa à decisão proferida na ADI nº 3566-5 DF

O julgamento da ADI nº 3566-5 DF tem aqui especial relevância, pois nele restou consignado, de forma explícita, que uma mudança de paradigma em relação à escolha dos dirigentes dos tribunais não estaria inscrita no bojo da Emenda Constitucional nº 45/2004, ainda que ela pudesse vir a ocorrer no âmbito do futuro Estatuto da Magistratura. É o que se extrai da intervenção do Ministro Cezar Peluso, quando ele afirma que “se a Corte não conhecer da ação ou julgá-la improcedente, vai permitir a subsistência de ambas as normas e deixar, pelo menos implicitamente, assentado ou admitido o princípio de que os regimentos internos dos tribunais têm competência para disciplinar criação e competência de órgãos diretivos, tempo de duração de mandatos

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– são todas as matérias conexas –, condições de elegibilidade, universo de elegíveis e de eleitores. De modo que cada tribunal neste país terá um perfil diferenciado, com possibilidades ilimitadas de hipóteses que talvez não valha a pena comentar”. Em outras palavras, o espaço para realização de tais mudanças, em virtude do princípio da unidade nacional da magistratura, não é o dos regimentos internos, mas o do futuro Estatuto da Magistratura, pois tais matérias devem receber tratamento uniforme. É, por conseguinte, no âmbito da elaboração do Estatuto da Magistratura que esta voz coletiva, que está a gritar “Eu quero votar pra Presidente!”, terá que se esforçar para se fazer ouvida. Assim, nesse momento paradoxal, em que, por um lado, a LOMAN acaba de completar 30 anos com uma eloqüente ausência de celebração da data e, por outro lado, intensificam-se os trabalhos para elaboração de um novo Estatuto da Magistratura, mais adequado aos contornos da Constituição-Cidadã e da Reforma do Judiciário, esta voz coletiva precisa se empenhar para não se tornar uma mera testemunha privilegiada da mudança.

Na verdade, o debate em torno da necessidade de uma nova regulamentação profissional não constitui uma novidade. Com efeito, em 1992, o Supremo Tribunal Federal encaminhou ao Congresso o Projeto de Lei Complementar nº 14414, que foi sobrestado pelo Relator, Deputado Inaldo Leitão (PSDB-PB), por conta, de uma banda, das modificações introduzidas pelas Emendas Constitucionais nº 19/1998, nº 20/1998 e nº 24/1998 e, de outra banda, da tramitação da PEC nº 96-A/1992, cujo conteúdo versava sobre a Reforma do Judiciário. O projeto, que chegou a receber uma proposta substitutiva encaminhada pelo então Presidente do STF, Ministro Maurício Corrêa, acabou, entretanto, sendo retirado da agenda legislativa, por solicitação da própria Corte, aprovada pela Mesa Diretora do Congresso em novembro de 2003.

Além da nova arquitetura constitucional, construída essencialmente entre 1998 e 2004, a atuação do movimento associativo ganhou uma outra dimensão, com os juízes procurando participar de forma mais intensa na elaboração da nova proposta a ser encaminhada pelo STF. Nesse sentido, contribuições isoladas foram elaboradas pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça

14 Cf. http://imagem.camara.gov.br/dc_20.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=13/01/1993&txpagina=66&altura=650&largura=800, acesso em: 19 jul. 2009.

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do Trabalho (ANAMATRA) e pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), sendo que, recentemente, as duas primeiras encaminharam um expediente conjunto à Comissão do STF designada para a elaboração da proposta de novo Estatuto15.

É certo que as diferentes propostas encaminhadas pelo movimento associativo refletem, simultânea e paradoxalmente, tanto o consenso até aqui nele construído quanto as percepções “individualizadas” de uma representação funcionalmente pulverizada e segmentada. A ampliação do debate, com a desejável integração da sociedade civil e da universidade, é urgente e necessária. A heterogeneidade de olhares e opiniões será certamente enriquecedora para a qualificação das discussões, que não podem ser aprisionadas em uma perspectiva corporativa. Neste texto, de forma singela, postulo minha participação no debate, trazendo uma contribuição, cujo conteúdo pode ser apresentado a partir de três distintos eixos:

• Cidadania eleitoral, que diz respeito às propostas com vistas a ampliar a participação dos diferentes segmentos da magistratura na deliberação de seus desígnios;

• Gestão financeira, que alcança as propostas tendentes a ampliar a participação da magistratura na elaboração e na implementação da gestão orçamentária, emprestando-lhe maior transparência e efetividade; e

• Transparência, que inclui as propostas com vistas a aproximar o Poder Judiciário da sociedade civil, ampliando sua participação na construção de uma Justiça democrática e de proximidade, atenta às necessidades da população.

No âmbito da cidadania eleitoral, ter-se-ia a eleição direta para a direção dos tribunais e para escolha dos representantes da magistratura de primeiro e segundo graus no CNJ. As condições de elegibilidade em relação à primeira eleição devem assegurar a possibilidade de todos os membros do segundo grau concorrer aos cargos de direção, vedando-se a possibilidade de reeleição, bem como o exercício de cargos de direção por mais de quatro anos, de sorte a impedir a perpetuação dos mesmos nomes. Por outro lado, deve-se exigir que os candidatos possuam, ao menos, cinco anos de exercício da atividade judicante, de modo a assegurar que tenham conhecimento da realidade dos

15 Cf. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=104213&caixaBusca=N, acesso em: 23 jul. 2009.

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tribunais. Quanto à segunda eleição, deve-se também exigir o mesmo tempo de exercício da magistratura, com vistas a assegurar que a representação seja exercida por membro vitalício da corporação, com conhecimento da realidade representada, com possibilidade de uma recondução.

Por sua vez, no âmbito da gestão financeira, propõe-se a adoção do orçamento participativo, de sorte a possibilitar que a totalidade da comunidade dos tribunais – magistrados e servidores – possa interferir na destinação de seus recursos. É, aliás, medida essencial para dar cabo à situação de desconhecimento retratada na Primeira Pesquisa sobre Condições de Trabalho dos Juízes, realizada pela AMB, em janeiro de 2009. Com efeito, nela restou identificado que 99% dos magistrados desconhecem o percentual do orçamento que é destinado às suas unidades judiciais16. Não basta, entretanto, assegurar a participação das comunidades dos tribunais na elaboração de seus orçamentos. É necessário assegurar a possibilidade de acompanhamento de sua execução, o que se tornaria possível mediante a implantação de comitês gestores, com participação de representantes de todos os segmentos das respectivas comunidades. Como instrumento de acompanhamento, inclusive aberto ao público externo, seria importante criar uma espécie de jus-siafi17, que possibilitaria o acesso imediato a todos os dados da execução orçamentária.

Por fim, no âmbito da transparência, conforme já indicado no segundo eixo, faz-se necessário possibilitar o acompanhamento da execução orçamentária pela sociedade, facultando a todo e qualquer um o acesso aos dados de elaboração e execução dos orçamentos dos tribunais. Outra medida salutar consistiria na criação de Observatórios de Justiça na esfera de cada tribunal, com a presença de membros da sociedade civil e da universidade, com o propósito de refletir sobre o planejamento do Judiciário. Para dar voz à mais ampla parcela de pessoas da sociedade civil, a prática de audiências públicas deve ser institucionalizada pelos referidos Observatórios, que poderiam assim

16 Cf. Primeira Pesquisa sobre Condições de Trabalho dos Juízes, slide 54. Disponível em: http://www.amb.com.br/portal/docs/pesquisas/MCI_AMB.pdf, acesso em: 21 jul. 2009.17 O Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI) foi implantado, em janeiro de 1987, “para suprir o Governo Federal de um instrumento moderno e eficaz no controle e acompanhamento dos gastos públicos”. Cf. http://www.tesouro.fazenda.gov.br/SIAFI/index_conheca_siafi.asp, acesso em: 24 jul. 2009. A adoção de semelhante instrumento para o Poder Judiciário já estaria em gestação no âmbito do CNJ, como indicado por seu Presidente Ministro Gilmar Mendes. Cf. http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8051:amb-elogia-ideia-do-cnj-de-criar-sistema-de-divulgacao-dos-gastos-do-judiciario&catid=1:notas&Itemid=169, acesso em: 23 jul. 2009 e http://www.conjur.com.br/2009-jul-22/cnj-criara-sistema-fiscalizacao-gastos-judiciario, acesso em: 24 jul. 2009.

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integrar a mais ampla pluralidade de concepções sobre o papel da Justiça. Estas são medidas que possibilitariam, sem dúvida, a aproximação da sociedade civil à realidade dos tribunais, bem como sua interação com eles, tudo de sorte a contribuir para seu desenvolvimento.

Enfim, as medidas aqui preconizadas, que se encontram sistematizadas na tabela VII, embora não se constituam em condições sine qua non para a democratização dos tribunais, correspondem à tradução mais fiel e acabada dos mecanismos usualmente associados à construção democrática, o que torna difícil pensar que aquela será sem elas alcançada.

Tabela VIIPropostas para o Estatuto da Magistratura

Ainda que elas sejam, portanto, desejáveis e importantes para o desenvolvimento de uma eventual gestão democrática dos tribunais, não nos iludamos, contudo, assumindo que esta será uma conseqüência natural da aqui postulada mudança legislativa. Qualquer que seja o conteúdo da norma

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que venha a ser inserida no futuro Estatuto da Magistratura, seu alcance será, na verdade, definido pela prática, pelo efetivo exercício de construção de uma vontade coletiva. Afinal, as potencialidades da norma dependem da forma com que ela é implementada, das interpretações que lhe são dadas pelos tribunais. Nesse sentido, ainda que sob uma dimensão judicial, os tribunais estejam organizados sob uma perspectiva vertical, é preciso que seus intérpretes percebam que sua dimensão administrativa deve ser cada vez mais horizontal, possibilitando a participação de toda a comunidade nas deliberações de seu destino. É, aliás, por meio dessa horizontalidade que os tribunais poderão dar conta da crescente accountability que lhes está sendo exigida pela sociedade. Afinal, a cobrança não é dirigida tão somente à cúpula, mas é endereçada a cada um de seus magistrados, em seu dia-a-dia judicial, no contato com a população e seus usuários diretos. Na ausência de uma figura emblemática como o velho Sobral Pinto, é a voz coletiva e anônima que deve se levantar para dizer que este não é um movimento contra ninguém, contra nenhuma das Cortes Superiores, contra nenhum dos atuais dirigentes dos tribunais. Este é, apenas, um movimento a favor de um Judiciário de proximidade, de um Judiciário transparente, enfim, de um Judiciário democrático!

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Referências BibliográficasASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS (2009). Primeira Pesquisa sobre Condições de Trabalho dos Juízes. Disponível em: http://www.amb.com.br/portal/docs/pesquisas/MCI_AMB.pdf, acesso em: 21 jul. 2009. CENTRO DE ESTUDOS SINDICAIS E DE ECONOMIA DO TRABALHO (CESIT-UNICAMP) (2008). Trabalho, Justiça e Sociedade: o olhar da magistratura do trabalho sobre o Brasil do século XXI. Disponível em: http://ww1.anamatra.org.br/sites/1200/1223/00000990.pdf, acesso em: 19 abr. 2009. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (2009a). Justiça em Números 2007. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/relatorios/justica_em_numeros_2007.pdf, acesso em: 24 jul. 2009. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (2009b). Justiça em Números 2008. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/justica_em_numeros_2008.pdf, acesso em: 24 jul. 2009. ESCOLA JUDICIAL DESEMBARGADOR EDÉSIO FERNANDES (EJEF); FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (2009). Radiografia da Justiça Mineira. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/radiografia-justica-.pdf, acesso em: 23 jul. 2009. GOMES, Ângela de Castro; PESSANHA, Elina G. da Fonte; MOREL, Regina de Moraes (2007). “Perfil da Magistratura do Trabalho no Brasil”. in: GOMES, Ângela de Castro (Org.). Direitos e cidadania: justiça, poder e mídia. Rio de Janeiro: Editora FGV. SADEK, Maria Tereza (2006). Magistrados: uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV

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EDuCAçãO PARA FORMAçãO DE JuízES-GESTORES: uM

NOVO PARADIGMA PARA uM JuDICIáRIO EM CRISE*

Hygina Josita Simões de Almeida BezerraAMPB – PB

1. Introdução

O acesso à Justiça deve ser encarado, na contemporaneidade, como um dos mais importantes direitos fundamentais, na medida em que é através dessa via que o indivíduo pode cobrar do Estado outros direitos dos quais é titular. Nessa ordem de ideias, o acesso a uma ordem jurídica justa deve estar inserido dentro do núcleo intangível de Direitos Humanos e estar elevado à categoria de direito fundamental e essencial do qual emanam os demais direitos.

Uma releitura do conceito de acesso à Justiça à luz dos Direitos Humanos ensina-nos que esse direito não pode mais ser entendido apenas como a mera possibilidade de propor uma ação em Juízo. Pressupõe, também, a manutenção da demanda em trâmite até a prolação da sentença, que deve ser proferida em prazo razoável e efetivada na prática.

O Judiciário é a ponte que liga o indivíduo à Justiça. É instituição central à democracia brasileira, quer no que se refere à sua expressão propriamente política, quer no que diz respeito à sua intervenção no âmbito social1. Quanto mais estável for esta ponte, mais forte será o Estado Democrático de Direito.

Ainda hoje a Bósnia, a antiga Iugoslávia, Ruanda, Zaire, Afeganistão ou Darfur demonstram que o Judiciário está passível de anulação como instrumento

1VIANA, Luiz Werneck. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. MELO, Manoel Palácios Cunha. A Judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 9.

* Concurso de Monografia da AMB – Vencedor da Área III (Autonomia e Gestão do Judiciário)

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de garantia de direitos mínimos aos habitantes da Terra, principalmente se não estiver fincado em bases estáveis.

O Judiciário se fortalece na medida em que consegue cumprir o seu papel de ser instrumento viabilizador do acesso à Justiça e pacificador dos conflitos sociais. Não pode, pois, reduzir-se a uma mera proclamação formal de direitos sem que se verifiquem as condições materiais para o seu exercício efetivo2.

A Era dos Direitos trouxe consigo a ampliação da cidadania, ou seja, “do direito a ter direitos3”, e isso aumentou a busca pelo Judiciário, que até hoje não conseguiu se preparar adequadamente para fazer face aos anseios dos jurisdicionados. O fato de não ter conseguido acompanhar a demanda da sociedade gerou uma crise nesse poder, consubstanciada, principalmente, na morosidade na entrega da prestação jurisdicional.

O juiz precisa, paralelamente ao desempenho de suas funções jurisdicionais, assumir a função de administrador da unidade judiciária.

Defendemos, pois, que o Judiciário brasileiro, através das escolas da Magistratura, forme juízes-gestores, usando processo educativo pertinente, que os torne capazes de administrar suas unidades judiciárias de maneira criativa, e de superar os problemas existentes de forma eficiente e eficaz.

2. A crise como fator de motivação para aperfeiçoamento do

Judiciário

Se de um lado não se pode negar que o Judiciário está em crise, de outro a história desse poder no Brasil justifica essa crise, na medida em que nos mostra que o Judiciário passou de coadjuvante a protagonista do processo de democratização social que aconteceu logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Ressalte-se que:

[...] o Poder Judiciário, enquanto instituição, não foi diretamente envolvido no processo da transição, permanecendo como árbitro do contrato básico que persistia na sociedade brasileira de então, distanciado da cena política. Todavia, essa distância do Judiciário em relação à travessia política do autoritarismo para a democracia é quebrada no momento seguinte, quando a ordem democrática se consolida. De mero coadjuvante, o Judiciário passa a ser mobilizado

2 NUNES, João Arriscado. Um novo cosmopolitismo? Reconfigurando os direitos humanos. In: BALDI, César Augusto (org). Direitos Humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 29.3 Conceito de cidadania, segundo Hannah Arendt.

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para uma posição de protagonista ativo, instado por um poderoso processo de democratização. [...] o Judiciário foi surpreendido no papel político de árbitro do equilíbrio entre os Poderes, assim como destes em relação à sociedade. [...] O Judiciário de hoje – e nesse contexto o próprio magistrado – vive uma contradição, posto que não foi obrigado a construir a sua identidade nos difíceis trâmites da transição e inesperadamente vê-se alçado a essa posição estratégica de árbitro efetivo entre os outros dois Poderes e responsável, num certo sentido, pela inscrição na esfera pública dos novos atores trazidos pelo processo de democratização4.

A verdade é que, atualmente, a sociedade procura no juiz um mega assistente social, porque outras instituições, notadamente o Estado, estão desertando das relações sociais. O fenômeno novo do acesso à Justiça coloca o cidadão a defender os seus direitos civis, os direitos sociais, procurando cada vez mais o Judiciário, justamente por falta do Estado e de outras instituições5.

A despeito da crise, contudo, o Judiciário segue o curso da história afirmando-se como poder necessário para existência do Estado Democrático de Direito e garantidor do exercício da cidadania.

Hannah Arendt ensina-nos que é através da ação, desempenhada no espaço público, que podemos mudar as coisas. Segundo ela, “o fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável”6. Os juízes devem agir buscando mudanças positivas para o Judiciário.

A crise não precisa ser algo negativo, ao contrário, deve ser vista como um processo que servirá de motivação para busca de um Judiciário melhor. Acredito que a referida crise deve ter a conotação que lhe deu Albert Einstein quando afirmou:

[...] A crise é a melhor benção que pode ocorrer com as pessoas e países, porque a crise traz progressos. A criatividade nasce da angústia, como o dia nasce da noite escura. É na crise que nascem as invenções, os

4 ABREU, Pedro Manoel. Crise do Judiciário, globalização e o papel do juiz orgânico na sociedade brasileira.In:< http://tjsc25.tj.sc.gov.br/academia/cejur/arquivos/crise_poder_papel_juiz_pedro_abreu.pdf >.5 Artigo intitulado “Crise do Judiciário, globalização e o papel do juiz orgânico na sociedade brasileira” de autoria de Pedro Manoel Abreu. Disponível na internet.6 ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 191.

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descobrimentos e as grandes estratégias. Quem supera a crise, supera a si mesmo sem ficar “superado”. Quem atribui à crise seus fracassos e penúrias, violenta seu próprio talento e respeita mais aos problemas do que às soluções. A verdadeira crise, é a crise da incompetência. O inconveniente das pessoas e dos países é a esperança de encontrar as saídas e soluções fáceis. Sem crise não há desafios, sem desafios, a vida é uma rotina, uma lenta agonia. Sem crise não há mérito. É na crise que se aflora o melhor de cada um. Falar de crise é promovê-la, e calar-se sobre ela é exaltar o conformismo. Em vez disso, trabalhemos duro. Acabemos de uma vez com a única crise ameaçadora, que é a tragédia de não querer lutar para superá-la.

Apropriemo-nos dessa visão otimista da crise para superá-la logo, porque ela afeta não só a legitimidade do Poder Judiciário para o exercício de sua função soberana, como também afeta a economia do País. Isso porque a atividade produtiva de uma nação se embasa na consistência e na credibilidade das instituições, criadas e mantidas com o escopo de fazer nascer um ambiente seguro para os diversos relacionamentos sociais, através da elaboração e da preservação de regras de convivência. A lentidão do Judiciário, a demora em exercer suas atividades típicas, acaba por mitigar o contexto estável necessário para o aprimoramento das relações comerciais e financeiras indispensáveis ao crescimento econômico7.

Ter conhecimento das causas que motivam a crise do Judiciário é passo imprescindível para a busca de soluções rápidas e não superficiais para a superação do problema. Tais causas resumem-se a duas: a morosidade e a falta de acesso à Justiça. As pesquisas revelam que o Judiciário não tem conseguido cumprir a missão que lhe é atribuída de ser instrumento de acesso à justiça e meio efetivo de entrega da prestação jurisdicional em prazo razoável. A Emenda Constitucional no 45 não trouxe a reforma estrutural necessária à transformação do Judiciário em serviço público célere, eficiente e efetivo pelo qual clama a sociedade.

A resolução da problemática que afeta o Judiciário encontra guarida na questão da gestão judicial.

7 BOTTINI, Píerpaolo Cruz. A reforma do Judiciário: aspectos relevantes. Revista da Escola Nacional da Magistratura. Ano II. N. 3. Abril 2007. p. 89-99.

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Segundo BOTTINI8, a gestão da Justiça é feita em três níveis: o governo judicial, a gestão judicial e a gestão de cartórios. Na primeira camada, estão os órgãos responsáveis pelo planejamento estratégico da implementação de políticas judiciais, que fixam normas genéricas para a atividade administrativa do Judiciário, entre eles o Conselho Nacional de Justiça. Na segunda camada encontram-se os órgãos responsáveis pela elaboração das propostas orçamentárias e pela execução dos orçamentos nas diversas unidades judiciais. Como exemplo, podemos citar os tribunais de justiça do País. A última camada da administração da Justiça é a gestão de cartórios. Esta é de domínio do juiz e diz respeito à organização da tramitação cotidiana dos processos e procedimentos realizados na unidade judiciária.

Uma análise dos três eixos mencionados revela que através da gestão judicial o magistrado pode agir para vencer os problemas afetos à lentidão de processos e referentes ao acesso à Justiça, colocando em prática conhecimentos de gestão para a qualidade total dos serviços judiciários.

3. Mudança de paradigma: transformação do juiz-juiz em juiz-gestor

Como asseverou o Ministro Gilmar Mendes em um dos seus discursos: “o juiz brasileiro tem que ser um gestor. Quem administra uma Vara é um administrador e deve assumir responsabilidade”9. O Judiciário precisa de juízes que mudem a realidade existente a partir das ferramentas que têm à disposição deles, sem esperar que a solução parta da cúpula do Poder Judiciário ou de outros poderes.

O primeiro passo a ser dado é no sentido da mudança de mentalidade do juiz, para que ele possa ousar, utilizando, sobretudo, a criatividade no âmbito em que trabalha, vislumbrando o processo sob o ângulo dos “consumidores” da prestação jurisdicional.

Como se dará essa mudança de mentalidade? A educação é a resposta. Através da educação voltada para conhecimentos de gestão, o magistrado poderá saber da existência de métodos e técnicas facilitadoras do exercício da função de juiz-administrador. A transformação do juiz-juiz em juiz-gestor encontra amparo em conceitos e ensinamentos advindos da ciência da Administração.

8 BOTTINI, Píerpalo Cruz. Op. cit.9 Discurso proferido no encerramento do mutirão carcerário em Vitória. Retirado do site do CNJ, na seção de notícias. < http://www.cnj.jus.br >

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E, como gestor, o juiz é capaz de desenvolver as atividades de gestão judicial e de gestão de cartórios. Prova disso são as diversas práticas celebradas nos diversos cantos do País, onde juízes conseguiram, de forma criativa, superar deficits existentes em suas unidades judiciárias.

Propomos, como já fez NALINI10 outrora, que “a chave da transformação é a gestão pela qualidade total na administração da Justiça”. O juiz deve usar as armas de que dispõe para enfrentar os obstáculos ao acesso à Justiça, entre eles a morosidade, sem contar com a atuação e ajuda de fatores externos. E quando se fala em acesso à justiça, referimo-nos à tríade: propor ação em juízo; mantê-la até o final; receber resposta célere e efetiva do Judiciário. É indubitável que o Judiciário precisa de reformas processuais que diminuam a burocracia existente nas leis, e de reformas estruturais que melhorem a organização judiciária e aumentem o número de juízes, insuficiente para julgar tantas causas. Nenhuma serventia resultará de reforma processual alguma, por mais brilhante tecnicamente que seja, por mais astutos, preparados e dignos seus idealizadores e coordenadores, se o sistema brasileiro continuar admitindo que um juiz tenha sob sua responsabilidade uma média de feitos em muito superior ao milhar; ou que o Poder Judiciário sobreviva com um número mínimo de tribunais, muitas vezes situados a milhares de quilômetros de distância dos jurisdicionados, constituídos por um número mais reduzido ainda de juízes11. Essas ações, certamente, contribuiriam para a celeridade na entrega da prestação jurisdicional. Mas os juízes não precisam esperar que essas mudanças cheguem para começar a agir por conta própria. O juiz não pode se limitar a esperar pelas modificações na esfera legiferante ou na esfera administrativa dos tribunais. Estas, em regra, chegam a destempo, e o acesso à justiça é caso de urgência.

Os entraves burocráticos não podem ser usados como desculpa para entrega ineficaz e ineficiente da prestação jurisdicional. O juiz pode, a despeito de suas limitações pessoais, dos defeitos de estrutura, da má produção da lei processual, tornar a justiça mais eficiente. Para que isso ocorra, entretanto, ele deve se livrar da roupagem arcaica acaso existente, e ter em si a vontade de mudar o

10 José Renato Nalini prefaciando o livro Administração da Justiça: a gestão pela qualidade total, de autoria de Rogério A Correia Dias. Editora Millenium, 2004.11 REBELO, José Henrique Guaracy. O processo civil e o acesso à justiça. Conferência proferida no “Seminário sobre Acesso à Justiça”, realizado pelo Centro de Estudos Judiciários, nos dias 24 e 25 de abril de 2003, no auditório do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG. Publicado na Revista CEJ, Brasília, n. 22, jul/set.2003.

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presente status quo atuando dentro de suas limitações, no espaço que o sistema lhe reservou para atuar.

A ação do juiz voltada para melhoria do acesso à Justiça, a partir do paradigma da gestão para a qualidade total, produz reação e como diz Hannah Arendt12:

[...] o ator nunca é simples agente, mas também, e ao mesmo tempo, paciente. Agir e padecer são como faces opostas da mesma moeda, e a história iniciada por uma ação compõe-se de seus feitos e dos sofrimentos deles decorrentes. Estas conseqüências são ilimitadas porque a ação, embora possa provir do nada, por assim dizer, atua sobre um meio no qual toda a reação se converte em reação em cadeia, e todo processo é causa de novos processos. Como a ação sobre seres que também são capazes de agir, a reação, além de ser uma resposta, é sempre uma nova ação com poder próprio de atingir e afetar os outros [...].

Urge que se supere a “visão tradicional” da magistratura, forçando o juiz a repensar o seu papel dentro da nova sociedade contemporânea. Quando se reflete sobre a necessidade de um novo juiz, é porque se tem em conta que o juiz de hoje não mais pode estar identificado com o juiz de ontem, ou seja, diante de uma nova sociedade, com inéditas demandas e necessidades, o novo juiz é aquele que está em sintonia com a nova conformação social e preparado para responder, com eficiência e criatividade, às expectativas da sociedade moderna, tendo em consideração as promessas do direito emergente e as exigências de uma administração judiciária compromissada com a qualidade total. Esse juiz, que é impactado pelas profundas deficiências da prestação de serviços estatais, os quais não conseguem fazer frente às necessidades sociais básicas. Assim, o novo juiz, a par de sua formação técnico-jurídica, desfruta de uma formação interdisciplinar que lhe permite ir além, conhecendo a realidade social, econômica e mesmo psicológica envolvida na lide em julgamento. Portanto, a interdisciplinaridade é característica marcante do novo juiz13.

Essa mudança de mentalidade concretizar-se-á através da substituição “do estar adstrito ao processo” pela busca da excelência nos serviços prestados pelo Poder Judiciário. Desse modo, o juiz-juiz passará a ser o juiz-gestor, com

12 ARENDT, Hannah. A condição humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 203.13 ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. O novo juiz e a administração da justiça. Curitiba: Juruá, 2006. p. 67 e 68.

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visão além do processo. Isso viria com a consciência de que o juiz não pode ficar adstrito às paredes de seu gabinete, apenas sentenciando e despachando processos e achar que com isso cumpriu seu mister. Cada juiz, resguardando sua imparcialidade, deve ter compromisso com a racionalização dos serviços judiciários, com o atendimento ao público e aos advogados, com o estreitamento comunicativo com os demais órgãos públicos, entidades de classe e com outras esferas da sociedade civil organizada. Deve ter responsabilidade social.

A interdisciplinaridade é marcante na otimização dos serviços prestados pelo Judiciário, na medida em que a impositiva aliança entre o Direito e a ciência da Administração empresta valioso subsídio à revisão e à modernização dos métodos de gerenciamento do serviço judiciário, nem sempre aptos à entrega dos resultados práticos exigíveis pelos jurisdicionados. A ciência da Administração dotará os magistrados de conhecimentos sobre mecanismos que podem ser usados no Judiciário para entrega eficiente e eficaz da prestação jurisdicional, tais como: ferramentas P. D. C. A14., 5W2H15 e 5S16; inteligência de negócios, entre outros.

Falamos de um gerenciamento que não precisa necessariamente vir da Cúpula, mas que pode ser iniciado pelo próprio juiz “a quo”, dentro do espaço que lhe cabe atuar. Não propomos a transformação do Poder Judiciário em uma grande empresa, mas a adoção das experiências positivas que a atividade

14 PDCA significa plan (planejar), do (fazer), check (verificar) e action (ação para correção de imperfeições). Através do PDCA o gestor planeja, executa, controla e corrige a estratégia que está sendo colocada em prática. O ciclo PDCA deve ser uma constante dentro da unidade judiciária, pois uma vez aplicado continuamente levará ao aprimoramento das tarefas, dos processos e das pessoas.15 A técnica 5W2H é constituída de sete palavras em inglês, sendo cinco delas iniciadas com W e duas iniciadas com H: What, Who, When, Why, Where, How e How much. Em português, significa: a) O que será feito? b) Quem fará? c) Quando será feito? d) Por que será feito? e) Onde será feito? f ) Como será feito? g) Quanto custará? Essa técnica incorpora a grande vantagem de propiciar a definição objetiva e clara de todos os itens que compõem um planejamento. Com essa ferramenta, temos um quadro completo de cada atividade, com os dados necessários para implementar um projeto. A resposta às perguntas mencionadas vai guiar a atuação da equipe na fase de implantação das estratégias.16 O nome 5S provém de cinco palavras do idioma japonês, iniciadas com a letra “S”, e que designam cada um dos princípios a serem adotados: a) Seiri (Senso de Utilização), b) Seiton (Senso de Organização), c) Seisou (Senso de Limpeza), d) Seiketsu (Senso de Saúde/Melhoria Contínua) e, e) Shitsuke (Senso de Autodisciplina). O seiri consiste em deixar no ambiente de trabalho apenas os materiais úteis, descartando ou destinando os demais da maneira mais adequada. O seiton consiste em estabelecer um lugar para cada material, identificando-os e organizando-os conforme a frequência do uso. Se utilizado frequentemente, o material deve ficar perto do trabalhador, caso contrário, deve ser armazenado em um local mais afastado, para que não prejudique as tarefas rotineiras. O seisou consiste em manter os ambientes de trabalho limpos e em ótimas condições operacionais. Este princípio diz: “melhor que limpar é não sujar”. O seiketsu é um princípio que pode ser interpretado de duas formas. Na aplicação de ações que visam à manutenção e melhoria da saúde do trabalhador e das condições sanitárias e ambientais do trabalho. Como melhoria contínua, aplica-se o princípio do kaizen, melhorando e padronizando os processos. O shitsuke consiste na autodisciplina é um estágio avançado de comprometimento das pessoas, que seguem os princípios independente de supervisão. Para atingir este estágio é necessário ter atendido satisfatoriamente os 4 princípios anteriores do 5S.

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empresarial pode fornecer para ampliar a qualidade dos serviços prestados pelo Poder Judiciário.

4. Conhecendo a gestão judiciária

Frise-se que gestão Judiciária é um conjunto de tarefas que procuram garantir a afetação eficaz de todos os recursos disponibilizados pelo Poder Judiciário com o escopo de se alcançar uma entrega da prestação jurisdicional excelente. A gestão otimiza o funcionamento da unidade judiciária através da tomada de decisões racionais fundamentadas pelo gestor como forma de caminhar para o desenvolvimento e satisfação das necessidades dos jurisdicionados.

Nesse diapasão, gestor judiciário é, ab initio, o juiz, a quem compete colocar em prática o objetivo maior do Poder Judiciário que é a entrega da prestação jurisdicional, em prazo razoável e de forma efetiva. O que se torna possível através de planos estratégicos e operacionais mais eficazes para atingir os objetivos propostos através da concepção de estruturas e estabelecimento de regras, políticas e procedimentais mais adequadas aos planos desenvolvidos; implementação, coordenação e execução dos planos mediante de um determinado tipo de comando e de controle.

Como bem afirmou Sidnei Agostinho Beneti:O juiz deve ser encarado como um gerente de empresa, de um estabelecimento. Tem sua linha de produção e o produto final, que é a prestação jurisdicional. Tem de terminar o processo, entregar a sentença e a execução. Como profissional de produção, é imprescindível mantenha ponto de vista gerencial, aspecto da atividade judicial que tem sido abandonado. É falsa a separação estanque entre as funções de julgar e de dirigir o processo – que implica orientação ao cartório. (...) Como um gerente, o juiz tem seus instrumentos, assim como um fabricante os seus recursos. São o pessoal do cartório, as máquinas de que dispõe, os impressos. É o lugar em que trabalha; são os carimbos, as cadeiras, o espaço da sala de audiências e de seu gabinete; são a própria caneta, a máquina de escrever, o fluxo de organização dos serviços e algumas coisas imateriais17.

17 BENETI, Sidnei Agostinho. Da conduta do juiz. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 12.

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Essa gestão deve ser voltada para a qualidade total, o que pode ser alcançado a partir do envolvimento de todas as pessoas ligadas ao processo produtivo visando à excelência no serviço prestado pelo Poder Judiciário.

5. A era do saber: educação para mudança de mentalidade

Para que o juiz adquira consciência e técnicas, com vistas a alcançar as mudanças anteriormente mencionadas, faz-se necessário ter acesso a uma educação voltada para a gestão.

A educação desperta a capacidade de expansão da autonomia individual. Uma cultura voltada para a gestão jurisdicional é aquela capaz de incentivar o juiz, em processo de formação educacional, a pensar no processo jurídico e de gestão por si próprio, através do incentivo ao desenvolvimento de habilidades e competência que o aparelhe a tomar medidas para a qualidade total na entrega da prestação jurisdicional18.

Educar só tem sentido enquanto preparação para o desafio. Uma educação que não seja desafiadora, que não se proponha a formar iniciativas, que não prepare para a mobilização, que não instrumente a mudança, que não seja emancipatória, é mera fábrica de repetição de formas de ação já conhecidas19.

As escolas da Magistratura desempenham importante papel na formação do magistrado. Formação esta que inclui não somente o aprimoramento intelectual dos juízes, mas a transformação deles em núcleos pensantes capazes de produzir propostas e soluções para o desenvolvimento de todo o sistema judicial. BOTTINI20 assevera que

A formação de profissionais conscientes dos problemas concretos que afetam o sistema e capazes de refletir sobre as alternativas para sua superação deve ser uma prioridade. Mais do que um técnico com atribuições de aplicar as normas aos casos concretos, o magistrado é um agente de Estado, responsável por administrar a distribuição de Justiça de maneira coerente e racional. Logo, é dever das instituições responsáveis pela formação e pelo aprimoramento intelectual dos juízes formar núcleos pensantes que produzam propostas e soluções

18 BENETI, Sidnei Agostinho. Da conduta do juiz. São Paulo: Saraiva, 1997, pg. 12.19 BITTAR, Eduardo C. B. Educação e metodologia para os direitos humanos: cultura democrática, autonomia e ensino jurídico. 20 Píerpaolo Cruz Bottini. Op. cit.

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para o desenvolvimento de todo o sistema judicial, contribuindo, desta forma, para a construção de um novo modelo mais eficiente e mais acessível a toda a população.

FOUCAULT aduz que “todo o sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que estes trazem consigo”21.

As escolas da Magistratura devem se apropriar do discurso voltado para a gestão jurisdicional e usá-lo para incutir na mente do juiz esse papel que ele precisa desempenhar na condução da unidade judiciária, onde a atividade administrativa é indispensável à realização da Justiça.

6. As escolas da magistratura como coadjuvantes no processo

de formação do juiz-gestor

Partindo da assertiva de que, na atualidade, a função de juiz pressupõe também a função de administrador e que a educação é um ato de formação de consciência, a transformação do juiz-juiz em juiz-gestor realizar-se-ia através da participação em cursos de gestão jurisdicional a serem ministrados pelas Escolas da Magistratura.

O juiz-gestor é aquele magistrado que administra sua unidade judiciária com visão de administrador, utilizando métodos que vão desde a economia de material até o desenvolvimento de técnicas que acelerem a entrega da prestação jurisdicional. É o juiz que não se restringe a sentenciar e despachar processos e usa a criatividade para superar os problemas existentes na Vara.

O próprio CNJ já sentiu a necessidade de o Judiciário se adequar a padrões de gestão ao instituir a Resolução n. 70/2009, que dispõe sobre o planejamento e a gestão estratégica no âmbito do Poder Judiciário.

Os objetivos de números 11 e 12 da referida Resolução, pertinente à gestão de pessoas, têm como foco, respectivamente, “desenvolver conhecimento, habili-dades e atitudes dos magistrados e servidores” e “motivar e comprometer magistra-dos e servidores com a execução da Estratégia”. Entendemos que o êxito no cum-primento desses objetivos só é possível através da educação voltada para a gestão.

Os cursos de gestão jurisdicional devem ser ministrados pelas escolas da

21 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Disponível na internet: <http://www.scribd.com/doc/2520353/Michel-Foucault-A-Ordem-do-Discurso>,acessado em 12.8.2009.

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Magistratura, sob coordenação/orientação da Enfam – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, de forma padronizada e de caráter obrigatório para todos os magistrados na ativa. Obrigatoriedade essa decorrente do próprio fim a que o curso se destina: de ser meio de mudança de mentalidade.

Os cursos devem, outrossim, ser contabilizados para os fins de promoção por merecimento, e uma das disciplinas a ser ministrada deve ser a de Boas Práticas de Gestão para que os juízes apliquem em suas varas as práticas que forem compatíveis com o seu ambiente de trabalho.

O que mudaria com a transformação do juiz-juiz em juiz-gestor? De posse do conhecimento das técnicas advindas da ciência da Administração, o juiz passaria a estabelecer metas de trabalho para cumpri-las. Preocupar-se-ia mais com a busca da excelência nos serviços prestados, na racionalização de material, no modo como o público e os advogados são atendidos em sua unidade judiciária. Essa mudança também traria benefícios para a temática da celeridade processual, como resultado normal do processo de gestão.

7. Considerações finais

O Judiciário brasileiro ainda não está construído. Vem se construindo a cada dia. A cada nova ação tenta superar a crise da morosidade e das limitações do acesso à Justiça, com vistas a suprir os anseios da sociedade. É um poder que se tornou tão necessário, por causa da sua função de garantidor dos direitos dos indivíduos, que não conseguiu acompanhar a demanda dos jurisdicionados, com a velocidade necessária aos novos tempos.

Não existe uma única solução capaz de sanar o problema da crise do Judiciário. Podemos dizer que existe um conjunto de soluções que trarão melhorias concretas para a Justiça. Entre elas, apontamos uma imprescindível: a educação voltada para a formação de juízes-gestores. Papel a ser desempenhado pelas escolas da Magistratura.

Educado para acompanhar as mudanças trazidas pelos novos tempos, o juiz será capaz de, ele mesmo, empreender diligências para resolver os problemas de sua unidade judiciária. O contato com a ciência da Administração é capaz de tornar o juiz criativo e capacitado a colocar métodos de racionalização de atividades em prática; elaborar técnicas para agilização dos despachos e consequente redução do tempo de entrega da prestação jurisdicional.

A educação voltada para a gestão é uma solução de base para o Judiciário. É como se, ao invés de “dar o peixe se ensinasse a pescar”, para que, de posse desse

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novo ofício – o de juiz-gestor – o magistrado possa contribuir para o acesso à Justiça e para a celeridade na entrega da prestação jurisdicional.

Seguindo raciocínio lógico, temos que o acesso a uma ordem jurídica justa é alcançado a partir da interdisciplinaridade e da gestão judiciária na busca pela qualidade total. Só assim é possível ao Judiciário alcançar a celeridade processual, sem que haja necessidade da interferência de fatores externos. A gestão é apta a transformar o juiz-juiz em juiz-gestor, o que fará com que o Judiciário passe a ousar e a centrar-se em tudo aquilo que pode fazer por iniciativa de seus integrantes. Algo que pode ocorrer se trocar formalidade por criatividade e dificuldade por capacidade de iniciativa.

O Judiciário deve caminhar para a aceitação de que a interdisciplinaridade e a gestão jurisdicional são medidas indispensáveis ao acesso à justiça e à celeridade na prestação jurisdicional.

Chega-se à ilação, pois, de que a educação de magistrados voltada para a gestão administrativo-jurisdicional é imprescindível na construção do juiz-gestor, munindo-o de habilidades administrativas a serem usadas como parâmetros para desempenho de suas funções na unidade judiciária. Funções estas voltadas para a excelência na entrega da prestação jurisdicional e atingimento das metas previstas na Resolução no 70/2009, CNJ.

A despeito de toda a problemática que acomete o Judiciário, o tempo tem mostrado que a história tem se curvado na direção da justiça. A ideia de que a justiça é possível, que a brutalidade será punida e que o Judiciário é capaz de proteger os brasileiros de ameaças ou violações de direitos, cria esperança e promove a confiança nas instituições públicas.

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Gláucia Falsarella Pereira Foley Amages – DF

O PODER JuDICIáRIO E A COESãO SOCIAL*

“A sociedade é o conjunto das relações sociais. Ora, entre estas, podem ser distinguidos dois tipos extremos: as relações coercitivas, cuja particularidade é impor do exterior, ao indivíduo, um sistema de regras com um conteúdo obrigatório; e as relações de cooperação, cuja essência é fazer nascer, no interior mesmo dos espíritos, a consciência das normas ideais que comandam todas as regras”. (Jean Piaget)

1. Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar o papel do Poder Judiciário na promoção da coesão social, como uma das expressões da realização da justiça. Uma comunidade coesa pressupõe a corresponsabilidade de seus membros pela resolução de seus conflitos, articulados sob um sentimento de identidade, alteridade e pertença. Um dos instrumentos aptos a promover esta coesão é a mediação que, na qualidade de meio autocompositivo de resolução de conflitos, pode colaborar na construção do consenso, sob a lógica da cooperação.

O que se pretende demonstrar é que os esforços de modernização dos recursos do Sistema Judiciário – humanos, materiais, normativos e tecnológicos – não terão a capacidade de responder ao fenômeno de explosão da litigiosidade se não houver uma profunda transformação na concepção do papel do Poder Judiciário, no sentido de ir além de uma célere e eficiente prestação jurisdicional.

* Concurso de Monografia da AMB – Vencedor da Área IV (Procedimentos Judiciários)

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Se, de um lado, o aumento da litigiosidade vem revelando um traço adversarial na sociedade brasileira, de outro, o fenômeno do culto ao litígio – que encerra uma dimensão positiva ao expressar a consciência dos cidadãos em relação aos seus direitos – parece refletir a ausência de espaços institucionais voltados à comunicação de pessoas em conflito. O Estado brasileiro não oferece serviços públicos dotados de técnicas apropriadas para a promoção do diálogo entre partes em litígio. Diante deste déficit de consenso, as pessoas utilizam os meios de resolução de conflito disponíveis: a aplicação da “lei do mais forte”, seja do ponto de vista físico, armado, econômico, social ou político – o que gera violência e opressão – a resignação – o que provoca descrédito e desilusão – ou o acionamento do Poder Judiciário, cujas restrições ainda são uma realidade1.

Os que acessam a via judicial enfrentam as dificuldades próprias de um sistema organizado sob a lógica adversarial. Os profissionais do Direito, por sua formação, tendem a aplicar técnicas excessivamente persuasivas, que comprometem a qualidade dos acordos obtidos, na medida em que não atendem às necessidades dos usuários do Sistema.

Nesse sentido, para o sistema operar com eficiência, é preciso que as instâncias judiciárias, em complementaridade à prestação jurisdicional, fomentem políticas públicas voltadas à pacificação e coesão sociais, o que implica o fornecimento de serviços direcionados à construção do consenso.

Conforme já se assinalou, a premissa adotada é a de que para se construir uma justiça do futuro, o Poder Judiciário não pode se limitar à atividade da prestação jurisdicional, eis que não há realização efetiva da justiça sem coesão social.

Para sustentar a ampliação do papel a ser desempenhado pelo Poder Judiciário, há que se analisar, primeiramente, o paradoxal contexto de desjudicialização e de explosão de litigiosidade no qual se encontra inserido o Sistema Judiciário. Logo em seguida, serão apresentados os modelos disponíveis de resolução de conflitos, para que se destaquem os meios aptos a colaborar neste projeto. Ao final, apresentar-se-á uma proposta concreta de ampliação das portas de acesso ao Sistema de Justiça, denominado Sistema Múltiplas Portas.

1 ANDRIGUI, Nancy e FOLEY, Gláucia Falsarella. Sistema multiportas: o Judiciário e o consenso. Tendências e Debates. Folha de São Paulo, 24 de junho de 2008.

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2. Desjudicialização e explosão de litigiosidade

As sociedades contemporâneas ocidentais passam por um momento de transformação em relação ao Sistema de Justiça que revela um fenômeno aparentemente paradoxal: de um lado, o acelerado processo de urbanização e o desenvolvimento da sociedade de consumo – e, com ele, o aumento da consciência em relação aos direitos individuais e coletivos – ensejaram uma explosão de litigiosidade2 que judicializou o social. De outro, é possível constatar um processo de desjudicialização3 da resolução dos conflitos.

A judicialização da esfera social, visível a partir do aumento vertiginoso das demandas judiciais sem a correspondente ampliação dos recursos estatais, elevou a expectativa social em relação ao papel do Sistema de Justiça, que passou a absorver quase que exclusivamente a quota da responsabilidade pela coesão social. Ocorre que este fenômeno atingiu somente uma determinada parcela da sociedade que dispõe de recursos para recorrer ao Sistema de Justiça mediante a violação de um direito. Além disso, essa demanda aumentada foi colonizada por causas numerosas, porém de baixo impacto, como o são as dívidas cobradas pelas prestadoras de serviço público4, fato que contribuiu ainda mais para o déficit de celeridade e eficiência que trazem insatisfação aos usuários do Sistema de Justiça.

A desjudicialização, por seu turno, ocorre exatamente por força dessa exclusão de uma significativa parcela da sociedade do acesso ao Sistema de Justiça, aliada à fragmentação e complexidade das sociedades contemporâneas que exigem respostas plurais a uma realidade multifacetada. Essa busca por informalização dos procedimentos revela uma (re) descoberta de novos meios de resolução de conflitos que não se limitam à atividade jurisdicional e que procuram veicular uma “justiça democrática da proximidade”.5 Compreender esse fenômeno e posicionar-se diante dele é uma tarefa necessária para aqueles que consideram que a criação do direito – mesmo antes da (re) emergência destes meios “alternativos” de solução de conflitos – não é, nem nunca foi, obra exclusiva dos parlamentos e tribunais.

2 Também denominado “o direito em abundância”, por Marc GALANTER. Apud, PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização – por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada), p. 14, disponível na Internet no sítio: http://opj.ces.uc.pt/portugues/relatorios/relatorio_6.html. Acesso em 7 de maio de 2009. 3 Idem, p. 32-33.4 Fenômeno que se verifica no Brasil, conforme notícias diariamente veiculadas na imprensa e, em Portugal, conforme SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça, p. 27. 5 Idem, p. 59.

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O monopólio estatal da resolução de litígios nunca foi uma realidade. Há um direito vivo, latente, que se traduz na forma como os cidadãos lidam com as adversidades da vida no cotidiano. Afastados dos tribunais, estes conflitos vão sendo solucionados da melhor maneira – nem sempre emancipatória – encontrada pelos seus protagonistas.

Como afirma Aguiar6, o direito, que se expressa nas lutas sociais, não se restringe à legalidade estatal, emergindo “em todas as situações onde existam as relações de alteridade, onde os olhares diversos sobre problemas engendrem soluções novas, aberturas diferentes e consignação de novos direitos”.

As sociedades são consideradas juridicamente pluralistas quando há uma sobreposição entre o direito oficial e os demais direitos que são erigidos nas relações sociais – família, produção, trabalho, vizinhança. E é exatamente essa normatividade que “é freqüentemente mobilizada pelos mecanismos informais de resolução de litígios7”.

Embora a utilização de métodos autocompositivos de solução de conflitos não seja uma novidade do século XX8, houve um resgate do uso destes meios nos anos 60/70, nos EUA, reunidos sob a sigla ADR9. Este processo foi o resultado de dois movimentos sócio-políticos aparentemente contraditórios. De um lado, o ADR mostrou-se um remédio para lidar com o excessivo número de demandas judiciais que, uma vez não absorvidas pelo sistema oficial, causaram insatisfação e descrédito na justiça. Era o “direito em abundância”, expressão cunhada por Galanter10 para expressar o fenômeno da inflação jurisdicional, verificado em um momento de grande atividade política voltada para a defesa dos direitos. De outro, o movimento ADR constituiu um meio de contestação da centralidade do monopólio estatal, visando valorizar o espaço comunitário

6 AGUIAR, Roberto Armando Ramos. Procurando superar o ontem: um direito para hoje e amanhã, p. 70. 7 SANTOS, Boaventura de Sousa, MARQUES, Maria Manuel Leitão, PEDROSO, João, FERREIRA, Pedro Lopes. Os Tribunais nas sociedades contemporâneas. O caso português, p. 48. 8 Conforme Nazareth Serpa, “Começando pelo diálogo até a guerra, são incontáveis e informais os métodos utilizados pela humanidade para pôr fim aos seus conflitos. Os tribunais sempre foram a última opção. ADR não é panacéia do século XX. É a institucionalização do que vem sendo feito, desestruturada e informalmente, em matéria de resolução de disputas em todo século. Apud ROMÃO, José Eduardo Elias, Justiça procedimental. A prática da Mediação na Teoria Discursiva do Direito de Jürgen Habermas, p. 155. E, ainda, para um excelente resgate histórico do movimento ADR nos EUA, consultar AUERBACH, Jerold S. Justice without Law? UK: Oxford University, 1983.9 Alternative Dispute Resolution (ADR) ou Resolução Alternativa de Disputas (RAD). Adotar-se-á, neste trabalho, a nomenclatura ADR, por ser a mais freqüentemente utilizada nas fontes bibliográficas citadas neste trabalho. Outras denominações, entretanto, são possíveis: justiça informal, justiça da proximidade, justiça de vizinhança, justiça popular, dentre outras.10 Apud PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização – por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada), p. 14.

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e estimular a participação ativa na solução dos conflitos. O propósito era o de promover a reapropriação da gestão dos conflitos pela sociedade.

Se o que se pretende aqui é a retomada da gestão dos conflitos pela sociedade, os meios autocompositivos devem ser considerados eis que abertos à produção da normatividade que se constrói nas relações concretas e à autolegislação, adequando a lei às inúmeras e fragmentadas realidades sociais11. O acesso à justiça não pode se limitar, pois, a proporcionar que todos recorram aos tribunais, mas “implica que se procure realizar justiça no contexto em que se colocam as partes: nesta óptica, os tribunais só desempenham um papel indirecto e, talvez mesmo, menor”.12

Confere-se, assim, aos cidadãos, a autonomia de participar na formação racional da vontade e da opinião. Sob esta ótica, somente aqueles meios de resolução de conflitos que contemplem a razão comunicativa – ou seja, que garantam a participação com direitos iguais de comunicação, a racionalidade, a exclusão de enganos e ilusões e de coação – é que podem proporcionar a aplicação de um direito válido13.

Para Habermas, a vontade racional extrai-se das narrativas inseridas nas negociações, conferindo legitimidade ao direito, sob um arranjo comunicativo: “enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem poder examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o assentimento de todos os possíveis atingidos”.14

O objetivo deste trabalho é exatamente ampliar as possibilidades para que o Sistema Judiciário promova coesão social, por meio do agir comunicativo e da força transformadora do diálogo presentes na mediação.

Para tanto, adotar-se-á a mediação de conflitos como foco principal do trabalho, logo após a apresentação do panorama e da classificação dos meios de resolução de conflitos disponíveis na sociedade.

3. A realização da Justiça e os modelos de resolução de conflitos

Segundo Azevedo15, a processualística atual organiza-se em torno de três espécies de resolução de conflitos: a autotutela ou autodefesa, que implica

11 HESPANHA, António. Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva, p. 2112 GALANTER, Marc. A justiça não se encontra apenas nas decisões dos tribunais. In: HESPANHA, António. Idem, p. 75.13 ROMÃO, José Eduardo Elias, Justiça procedimental. A prática da Mediação na Teoria Discursiva do Direito de Jürgen Habermas, p. 135.14 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. Volume I, p. 138. 15 GOMMA, André Azevedo. Perspectivas metodológicas do processo de mediação: apontamentos sobre a autocomposição no direito processual, p. 151-153.

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a dissolução do conflito com a imposição de uma vontade sobre outra pela violência física ou moral; a heterocomposição que enseja a resolução de disputas por meio da imposição de uma decisão de um terceiro a qual as partes encontram-se vinculadas – assim como ocorre no processo judicial e na arbitragem – e, finalmente, a autocomposição.

Os meios autocompositivos são aqueles em que a resolução do conflito decorre da vontade dos próprios envolvidos na situação, sem a intervenção vinculativa de um terceiro, ou seja, sem a emanação de uma decisão unilateral.

Essa autocomposição pode ser impulsionada pela aplicação de técnicas de negociação, conciliação ou mediação. Como todos estes instrumentos podem ser judiciais ou extrajudiciais, há que se ressaltar que, ao contrário da imediata associação que usualmente se faz entre meio extrajudicial e meio alternativo – os meios autocompositivos de solução de conflitos não necessariamente correspondem aos meios extrajudiciais – por vezes, denominados “alternativos” – ao Sistema Judiciário.

Conforme já assinalado, um dos objetivos deste trabalho é investigar quais são os meios de resolução de conflito que, convertidos em práticas comunicativas, podem colaborar para a promoção da coesão social, por meio do desenvolvimento da autonomia e do empoderamento16 individuais e coletivos.

Antes, porém, que se proceda a essa seleção, é preciso traçar um panorama dos principais instrumentos de resolução de disputas colocados à disposição dos cidadãos em conflito, contextualizando-os.

2. 1. Apresentação e Classificação dos Meios de Resolução de ConflitosA apresentação dos principais mecanismos de resolução de conflito pode

ser feita a partir de um critério de classificação que contenha as variáveis regulatório/emancipatório e estatal/não-estatal. A primeira variável se justifica pelo fato de que o objeto da presente investigação é analisar em que medida as práticas comunicativas estabelecidas entre cidadãos em conflito podem colaborar para a coesão e emancipação sociais. O critério estatal/não-estatal, apesar da sua dificuldade – posto que, em uma sociedade complexa, por vezes,

16 A palavra empoderamento, traduzida do inglês, empowerment, será adotada neste trabalho, à luz da definição talhada por SCHWERIN, pela qual “O processo de empoderamento reúne atitudes individuais (auto-estima, auto-avaliação) e habilidades (conhecimento, aptidões e consciência política) para capacitar ações individuais e colaborativas (participação política e social), a fim de atingir metas pessoal e coletivas (direitos políticos, responsabilidades e recursos)”, In: SCHWERIN, Edward. Mediation, Citizen Empowerment and Transformational Politics, p. 56.

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essa classificação não se mostra suficiente – tem por finalidade demonstrar que os espaços de construção do consenso podem ou não ser estatais.

A fim de apresentar um quadro no qual os meios de resolução de conflitos se organizam segundo tais vértices, urge adotar uma definição de direito capaz de abarcar diferentes ordens jurídicas. Adotar-se-á, aqui, a definição talhada por Sousa Santos, pela qual o direito é “um corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos, com base nos quais uma terceira parte previne ou resolve os litígios no seio de um grupo social”.17

Este conceito amplo permite o reconhecimento de uma pluralidade de ordens jurídicas. Segundo Sousa Santos18, apesar de não admitido oficialmente pelo Estado, há, nas sociedades contemporâneas, uma constelação de direitos, vários sistemas jurídicos que regem os conflitos e a ordem social. Neste cenário, estão incluídas diferentes ordens jurídicas internas e transnacionais cujo campo transborda o espaço nacional do direito estatal. Nesse sentido, a unidade estatal não pressupõe a unidade do direito. Este hiato entre o controle político e o administrativo promove a fragmentação e a heterogenização do Estado e, consequentemente, a perda de sua centralidade, a partir de dois movimentos estatais aparentemente contraditórios: de um lado, a terceirização – ou mesmo privatização de alguns serviços – de suas funções outorgadas à esfera privada. De outro, um retorno à comunidade incentivando as suas organizações sociais. Nas palavras de Sousa Santos, “na situação actual, a centralidade do Estado reside, em grande parte, na forma como ele organiza o seu próprio descentramento”.19 Porque esta perda de centralidade é controlada pelo próprio Estado, há uma unidade regendo a heterogeneidade.

Neste cenário múltiplo de reconhecimento da pluralidade de ordens jurídicas, podemos identificar a variável estatal/não-estatal, esta última abarcando as práticas jurídicas levadas a efeito fora do âmbito oficial, ainda que densamente reguladas pelo direito estatal, como é o caso da arbitragem.

Os modelos podem vir a ser classificados, ainda, sob a variável regulatório/emancipatório. Teoricamente, o modelo emancipatório é o campo de exercício

17 SOUSA SANTOS, Boaventura de. O Estado heterogêneo e o pluralismo jurídico, In: SOUSA SANTOS, Boaventura de e TRINDADE, João Carlos (Orgs.). Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique, p. 50. 18 Idem, p. 48.19 E complementa: “e isso é bem ilustrado nas políticas, por ele apoiadas, de regresso à comunidade e de recuperação da comunidade. Desse modo, a distinção entre o estatal e o não-estatal é posta em questão, o que, naturalmente, só vem tornar ainda mais complexo o debate sobre pluralidade de ordens jurídicas.” Ibidem, p. 56.

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da retórica, enquanto que no regulatório impera o direito permeado pela coerção e/ou burocracia. Assim, o grau de “contaminação” ou colonização entre estes elementos – retórica, coerção e burocracia – é que define se o modelo é do tipo emancipatório ou regulatório.

Pretende-se, aqui, analisar quais as combinações possíveis entre as variantes estatal/não-estatal e regulatória/emancipatória. Nada impede que, nas esferas não estatais, haja uma forte prevalência da coerção, em detrimento da retórica. Ou ainda, uma retórica persuasiva ao invés de dialógica20. Nesse sentido, essas classificações são válidas para guiar o nosso debate, mas deve-se ressalvar que “as dicotomias são um bom ponto de partida se for claro, desde logo, que não são um bom ponto de chegada”.21

O critério, portanto, de classificação sob as variáveis adotadas obedecerá a articulação entre os três componentes estruturais do direito22, bem assim, da natureza da retórica utilizada. Assim, onde há prevalência da retórica dialógica, há o exercício do direito emancipatório. As práticas que privilegiam a coerção e a burocracia serão identificadas como manifestações do direito regulatório. Em um campo intermediário, situa-se a retórica do tipo persuasivo, cujo enfoque se concentra na produção de resultados satisfatórios para as partes.

A adoção dessas duas variáveis nos conduz a desenhar um quadro com quatro campos para a classificação das diferentes ordens jurídicas: a) o direito estatal regulatório; b) o direito estatal emancipatório; c) o direito não-estatal regulatório; e, d) o direito não-estatal emancipatório. O gráfico apresentado a seguir classifica os diversos modelos segundo os critérios já expostos. Desse modo, temos os seguintes modos de resolução de litígios: 1) a jurisdição; 2) a violência; 3) conciliação; 4) a arbitragem; 5) a mediação – judicial e comunitária.

2.1.1. A jurisdiçãoSob o modelo estatal do tipo regulatório, identificam-se os meios de

resolução de litígios realizados por intermédio da jurisdição formal. Nele estão

20 Segundo SANTOS a ‘novíssima retórica’, ou retórica dialógica “deve privilegiar o convencimento em detrimento da persuasão, deve acentuar as boas razões em detrimento da produção de resultados.” SOUSA SANTOS, Boaventura de. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência, p. 104-10521 SOUSA SANTOS, Boaventura de. O Estado Heterogêneo e o Pluralismo Jurídico, In: SOUSA SANTOS, Boaventura de e TRINDADE, João Carlos (Orgs.). Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique, p. 61.22 Retórica, burocracia e coerção são, na análise de Sousa Santos, os três componentes estruturais do direito que podem se articular sob diferentes combinações, a depender do campo jurídico ou dentro de um mesmo campo. SOUSA SANTOS, Boaventura de. Idem, p. 50.

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incluídas as experiências que, embora denominadas “informais”, reproduzem os mesmos pressupostos da jurisdição formal.23

A jurisdição formal é, por excelência, palco da justiça da Modernidade, já que inspirada em princípios universais baseados em imperativos de uma razão profundamente intrínseca a todos os seres humanos. Essa é a justiça que, codificada, aplica o mesmo procedimento a casos tão diferentes, com base em deduções racionais advindas da autoridade da lei ou dos precedentes.

Nas democracias ocidentais, uma das fontes de legitimidade do parlamento está no procedimento democrático por meio do qual seus membros são eleitos. O pressuposto é que os indivíduos são livres e racionais, capazes de eleger seus representantes. Esta lógica, quando transferida para a resolução de disputas, é a de que, quando em conflito, os indivíduos – sujeitos de direitos – provocam o Estado para “dizer o direito” no caso concreto. Nesta esfera, os representantes deste Estado legítimo são os juízes que, com imparcialidade e saber jurídico, aplicarão a lei, que fora expedida pelo parlamento democrático, ao caso concreto.

Todo o procedimento judicial é, pois, estruturado para dar cumprimento a esta racionalidade: a) o sistema é adversarial e dialético – porque direcionado a oferecer uma síntese resultante da contraposição de direitos que necessariamente se excluem. Ao final, haverá um vencedor e um vencido; b) é autocrático – posto que pautado na autoridade da lei ditada por um terceiro imparcial também revestido da autoridade estatal; c) tem pretensão universal, porque, conforme adverte Shonholtz, “o tratamento da lei é igual, não respeitando as diversidades cultural, lingüística, étnica, cultural e racial”;24 d) é coercitivo, burocrático e não-participativo, na medida em que produz resultados mandamentais, sem que tenha sido dada a oportunidade das partes interessadas se manifestarem livres das amarras e estratégias da linguagem forense traduzida pelos denominados “operadores do direito”.

Não raro, os “clientes da justiça” sentem-se excluídos do processo conduzido por seus advogados, os quais fornecem estratégias baseadas na interpretação da lei no interesse imediato das partes. Muitos clientes ficam intimidados com a formalidade do processo de adjudicação e sentem que não

23 Tais como as iniciativas de democratização do acesso à jurisdição no Brasil – juizados especiais cíveis e criminais, juizados itinerantes, dentre outros – os quais procuram despir a jurisdição do excessivo formalismo que reveste o rito comum. 24 SHONHOLTZ, Raymond. Justice from another perspective: the ideology and developmental history of the Community Boards Program, p. 203.

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estão aptos a participar de forma ativa. Trata-se da “advocacia ritualística”, conforme denomina W. Simon25, pela qual “os litigantes não são os sujeitos da cerimônia, mas os pretextos para ela”.

O padrão adversarial nem sempre se mostra adequado, na medida em que o sistema binário – considerado pela Modernidade o melhor meio de se atingir a verdade – polariza o debate, distorce a realidade, omite informações importantes, simplifica complexidades e obscurece, ao invés de clarificar. Carrie Menkel-Meadow26 argumenta que a pós-modernidade é marcada por uma realidade multicultural que apresenta problemas complexos, os quais requerem soluções multifacetadas nem sempre fornecidas pelas cortes. Toda esta complexidade é distorcida quando o conflito é analisado sob uma estrutura binária.

Apesar de sua longevidade, o padrão adversarial como um modo do discursar humano e como uma ferramenta para se buscar a verdade parece ter entrado em crise. O problema está em saber se a verdade existe fora daquilo que se conhece. No mundo atual, marcado pela complexidade, fragmentação e multiplicidade, não há como sustentar a imutabilidade ou universalidade dos fatos e valores. Seria possível fixar a verdade? Sentidos são “descobertos” ou estabelecidos contextualmente? As pessoas cuja tarefa é “encontrar” a verdade – juízes, jurados, a mídia, ou mesmo os cientistas – possuem interesses sociais, econômicos, políticos, raciais, de gênero que afetam a forma como eles vêem o mundo. Este novo olhar que questiona a objetividade e neutralidade traz sérias consequências para o modelo adversarial baseado na imparcialidade, neutralidade e inércia dos juízes. Para Menkel-Meadow, a realidade da vida não pode ser reconhecida pela “verdade”, mas por meio de múltiplas histórias e deliberações. Há que se pensar em caminhos que possibilitem mais vozes, mais histórias e mais complexas versões da realidade.

É possível identificar uma alta intensidade regulatória na jurisdição formal, tendo em vista a presença dos elementos da burocracia e da coerção, em detrimento da retórica. Urge, assim, apontar outros meios capazes de realizar a justiça do consenso, dentro e fora do âmbito jurisdicional.

O fato de a jurisdição pertencer ao campo do direito regulatório, contudo, não significa que o seu exercício não possa contribuir para a emancipação.

25 Apud MACFARLANE, Julie In: An alternative to what? p. 5.26 MENKEL-MEADOW, Carrie. The Trouble with the Adversary System in a Postmodern, Multicultural World, 2001.

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Em situações extremas, nas quais os conflitos repousam na violência e na eliminação da divergência pela força, a jurisdição revela-se um instrumento hábil a conferir uma decência na regulação, protegendo direitos e garantindo a realização da justiça.

2.1.2. A violênciaCom a retração das instituições em razão da centralidade do mercado,

outros núcleos de emanação do poder e de resolução de conflitos emergem. Diante do enfraquecimento da regulação estatal, o Estado é, hoje, um campo de disputas de diferentes projetos e interesses, no qual novas formas de fascismo societal buscam consolidar suas regulações despóticas, privatizando a esfera estatal27.

Um deles é o apartheid social. Trata-se da segregação, no espaço urbano, dos excluídos que vivem em zonas consideradas “selvagens”, onde impera a lei do Estado de natureza hobbesiano. Neste espaço, o Estado age de maneira predatória, sem qualquer observância aos princípios do Estado de Direito. Do outro extremo, os cidadãos incluídos no contrato social buscam proteção do constante perigo que emana das zonas segregadas, fechando-se em guetos nos quais se faz presente a ação estatal, por meio do fornecimento dos serviços públicos garantidores do bem-estar social, ainda que muitas vezes de forma insatisfatória. Este duplo padrão de atuação estatal, a depender da zona destinatária, é o que constitui a segunda forma de fascismo, o do Estado paralelo.

É, sobretudo em razão dos fascismos do apartheid social e do Estado paralelo que algumas formas de resolução de litígios reproduzem um modelo no qual imperam a violência e a coerção em detrimento da retórica. Tais práticas têm assento em um pilar regulatório, na medida em que funcionam por meio de mecanismos de controle, tutela e coerção.

A violência como meio de resolução de conflitos pode assumir diversas colorações. No seu extremo, temos aquela realizada por um fascismo social local, que opera segundo as regras da denominada sociedade civil não civil.28 Não há qualquer exercício da retórica e o poder de decisão acerca dos conflitos é monopólio dos membros da comunidade que a controlam pela imposição

27 SOUSA SANTOS, Boaventura de. Reinventar a Democracia.28 Segundo Santos, “A sociedade incivil é o círculo exterior habitado por aqueles que estão completamente excluídos. Eles são socialmente invisíveis. Este é o círculo do social fascismo e, a rigor, aqueles que o habitam não pertencem à sociedade civil, na medida em que foram jogados no novo Estado de natureza. Eles não têm expectativas estáveis porque, na prática, não possuem direitos”. Idem, p. 457.

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do silêncio, do medo e das armas. Como exemplo, os chefes do tráfico de drogas nas favelas brasileiras, que destroem o sentido da comunidade a partir da negação do outro.

A justiça desenvolvida segundo os ditames do fascismo social opera por meio da violência, e sua retórica é a arma. O julgador, terceiro a substituir a vontade das partes, não se pretende imparcial. Ao contrário, trata-se de uma justiça politizada e parcial, na medida em que o julgador não atua segundo orientação da justiça, mas do controle da política. A justiça do fascismo societal não oferece um segundo grau de jurisdição; qualquer questionamento da decisão pode implicar eliminação física do queixoso, mesmo porque este modelo comunitário adota, em alguns casos, a pena de morte como uma das formas de punição. A violência – estatal ou não – é, pois, a manifestação mais extremada da justiça, praticada sob um viés regulatório.

2.1.3. A conciliaçãoEm uma zona intermediária, mais próxima do exercício da retórica

persuasiva, encontra-se a conciliação, como um meio de resolução de conflito pertencente ao campo regulatório. É que, embora tecnicamente a conciliação seja uma modalidade de autocomposição do conflito, uma vez que dispensa o pronunciamento unilateral do juiz sobre o mérito da causa, a condução do procedimento é atribuída a um terceiro – juiz, juiz leigo ou conciliador privado – com poderes para sugerir, ponderar, aconselhar as partes quanto à melhor solução para o conflito29.

Além disso, o que se verifica, em geral, é que o objeto da conciliação judicial encontra seus limites no próprio objeto da lide. De qualquer sorte, sendo ou não judicial, a atuação do conciliador é interventiva, na medida em que seu papel é o de estimular as partes para que cheguem a um acordo, sugerindo alternativas e condições para a resolução do conflito, interferindo, assim, no resultado da composição.

Conforme se verá adiante quando da análise da mediação, enquanto na conciliação o objetivo é a celebração de um acordo para evitar um processo judicial, na mediação, o acordo não é a meta, mas a – provável – resultante

29 Sem prejuízo de que a conciliação pode ocorrer em uma esfera privada, a tentativa de conciliação judicial está prevista na legislação brasileira como uma etapa obrigatória, tanto no procedimento ordinário – art. 331 do Código de Processo Civil – quanto no rito previsto na Lei de Juizados Especiais – art. 21 da Lei 9.099/95 – bem assim, no art. 846 da CLT.

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de um processo de comunicação sobre os reais interesses que se escondem sob a rigidez das posturas assumidas pelas partes em conflito. Para Warat, a conciliação limita-se a atuar na disputa das posições, não explorando o conflito e suas circunstâncias30.

Embora opere com elementos da retórica, a conciliação é do tipo persuasivo o que afasta a sua consideração nesta obra como um meio de resolução de conflitos de alta intensidade emancipatória para a promoção da coesão social.

2.1.4. A arbitragem

Conforme afirma Moore, arbitragem é um termo genérico para um processo voluntário em que as pessoas em conflito submetem a questão objeto de controvérsia a uma terceira parte imparcial e neutra para que tome uma decisão por elas. O instituto, segundo previsão na legislação brasileira31, é definido como um processo formal pelo qual as partes, de comum acordo, aceitam submeter o litígio envolvendo direito patrimonial disponível a um terceiro, cuja decisão terá observância obrigatória. A sentença arbitral produzirá os mesmos efeitos que a sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário, constituindo, inclusive, título executivo, quando condenatória.

Tendo em vista que o papel do árbitro é o de adjudicação, sua estrutura segue o padrão do processo judicial. O paradigma que se revela na arbitragem é o de uma estrutura piramidal-coercitiva, sendo que no vértice desta relação, ao invés do estado-juiz, está o árbitro escolhido pelas partes nos contratos celebrados à luz do direito privado.

2.1.5. A mediaçãoCom precisão e simplicidade, Littlejohn afirma que “mediação é um

método no qual uma terceira parte imparcial facilita um processo pelo qual os disputantes podem gerar suas próprias soluções para o conflito”.32

30 “A conciliação e a transação não trabalham o conflito, ignoram-no, e, portanto, não o transformam como faz a mediação. O conciliador exerce a função de ‘negociador do litígio’, reduzindo a relação conflituosa a uma mercadoria. O termo de conciliação é um termo de cedência de um litigante a outro, encerrando-o. Mas, o conflito no relacionamento, na melhor das hipóteses permanece inalterado, já que a tendência é a de agravar-se devido a uma conciliação que não expressa o encontro das partes com elas mesmas”. WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador, p.79- 80. 31 Conforme previsão na Lei n. 9.307, de 23/9/96. 32 LITTLEJOHN, Stephen W. Book reviews: The Promise of Mediation: Responding to Conflict Through Empowerment and Recognition by Roberto A. B. Bush and Joseph. P. Folger, p. 103.

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Segundo a sistematização de Garrett33, mediação é um processo voluntário de resolução de conflitos, no qual um terceiro coordena as negociações entre as partes. Diferentemente do juiz, o mediador não tem autoridade para impor a decisão sobre os disputantes. Ao contrário, o mediador conduz o processo, por meio da discussão do problema, dos temas que precisam ser resolvidos e das soluções alternativas para a solução do conflito. As partes, entretanto, é que decidem como construirão o consenso.

Vê-se, pois, que o núcleo do conceito de mediação contém, basicamente, os seguintes elementos: a) processo voluntário; b) mediador como terceira parte desinteressada; c) mediador sem poder de decisão; d) solução talhada pelas partes em conflito.

Mais completa, contudo, é a análise de Schwerin34 que reúne os elementos da mediação a partir das suas finalidades. Para o autor, trata-se de um processo: a) apto a lidar com as raízes dos problemas; b) não-coercitivo; c) voluntário e permite aos disputantes resolverem seus problemas por eles próprios; d) mais rápido, barato e igualitário; e) desenvolve a capacidade de comunicação entre os membros da comunidade; f ) reduz o congestionamento das cortes; g) reduz as tensões na comunidade; h) não-burocrático e flexível; i) os mediadores não são profissionalizados, eles representam a comunidade e compartilham os valores, não sendo estranhos aos disputantes; j) um veículo de empoderamento da comunidade e um estímulo às mudanças sociais.

Posto que voltada para a construção do consenso, a mediação sugere que onde há conflito e dificuldades humanas, há a oportunidade para a reconciliação, a comunicação, o aprendizado. O paradigma visivelmente presente na proposta da mediação desafia o sistema oficial de resolução de disputas baseado na lógica adversarial, o qual pressupõe um sistema binário, dialético, pelo qual as partes confrontam-se entre si perante uma autoridade cuja decisão será coercitiva e amparada no ordenamento legal. A lógica da mediação, ao contrário, obedece a um padrão dialógico, horizontal e participativo, o qual inaugura um novo enfoque para o tema da realização da justiça.

As soluções construídas pelas partes envolvidas no conflito podem ser talhadas além da lei. Quando os protagonistas do conflito inventam seus próprios remédios, em geral, não se apoiam na letra da lei porque seu pronunciamento é por demais genérico para observar a particularidade dos

33 GARRETT, Robert. Mediation in Native America, p. 40. 34 SCHWERIN, Edward. Mediation, Citizen Empowerment and Transformational Politics, p. 21.

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casos concretos. Há, pois, a liberdade de criar soluções sem as amarras dos resultados impostos pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, as partes, antes alheias ao processo de elaboração das leis, “legislam” ao constituir suas próprias soluções, não somente para enfrentar os conflitos já instaurados, mas para evitar adversidades futuras.35

A estrutura da mediação pode veicular, em sua gênese, um potencial emancipatório, na medida em que sua lógica subverte o padrão adversarial do sistema oficial. Assim, ainda que atrelado ao sistema judicial, a mediação de conflitos mostra-se essencial para a tarefa de ampliação do papel do Judiciário na promoção do consenso, conforme se verá a seguir.

3. Uma proposta concreta: “Sistema Múltiplas Portas: o

Judiciário aberto ao Cidadão”.

A presente proposta tem por objetivo colaborar com a formulação de políticas públicas afetas ao Sistema Judiciário que pretendam enfrentar o déficit de consenso e promover a coesão social. Trata-se de um esboço de um sistema que contempla múltiplas portas de acesso ao Judiciário, pelo qual os cidadãos possam escolher meios de resolução de conflitos que pacifiquem as suas relações sociais e atendam às suas necessidades e aos seus interesses.

O projeto tem, ainda, por objetivo ampliar o acesso à justiça e assegurar eficiência e celeridade na gestão e tramitação dos processos judiciais, por meio do exercício e valorização do consenso.

Conforme já analisado, por meio da mediação de conflitos, as partes constroem, em comunhão, uma solução talhada nas suas necessidades. O mediador não julga, não sugere, nem aconselha. O seu papel é o de facilitar que a comunicação seja (re) estabelecida, sob uma lógica cooperativa e não adversarial. Além de efetiva na resolução de litígios, a mediação confere sentido positivo ao conflito porque patrocina o diálogo respeitoso entre as diferenças; o empoderamento individual e social; a consciência das circunstâncias em que repousam os conflitos; a prevenção de futuros litígios; a ética da alteridade; a coesão social e, com ela, a diminuição da violência.

35 Isto não quer dizer, por óbvio, que a mediação seja um instrumento voltado para o “fazer justiça com as próprias mãos”, o que poderia, em alguns casos, configurar o crime de “exercício arbitrário das próprias razões”, conforme art. 345 do Código Penal Brasileiro. Na verdade, trata-se de um “fazer justiça com múltiplas vozes”.

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Conforme se verá adiante, o serviço de mediação do Sistema pode ser organizado a partir de núcleos temáticos que deverão ser acionados após a devida triagem. Embora não haja qualquer previsão legal, nada impede que este meio de resolução pacífica de conflitos seja oferecido nas demandas que já ingressaram no Sistema Judicial como também naquelas que ainda não foram judicializadas. Para tanto, o projeto deverá contemplar a capacitação de servidores do Sistema Judiciário para o manejo desta técnica, conferindo permanência e estabilidade ao investimento que a sua implantação demandará.

3.1. Os núcleos temáticosO “Sistema Múltiplas Portas: O Judiciário aberto ao Cidadão” contempla

a instituição de núcleos temáticos de mediação que possam atender às mais diversas demandas: cíveis; familiares; conflitos criminais e de violência doméstica; mediação comunitária, incluída aqui a mediação escolar. Nada impede que o rol temático se alargue, conforme a iniciativa e interesse dos tribunais, a fim de que se inclua a mediação de conflitos agrários e a mediação em presídios, por exemplo.

Todos os núcleos devem estar preparados para o manejo de técnicas de mediação sob um enfoque específico, a depender da natureza da matéria veiculada em cada demanda trazida ao sistema após a devida triagem.

3.1.1. Núcleo de Mediação CívelEsse núcleo contempla as matérias objeto de processos que tramitam

em todas as varas cíveis e juizados especiais cíveis, a quem competirá a homologação de eventual acordo celebrado ao final do processo de mediação. Sugere-se, aqui, a aplicação de uma abordagem pragmática, com técnicas de negociação destinadas à resolução dos problemas, em especial quando as partes não mantêm relação afetiva ou de caráter permanente.

Conforme se verá adiante, esse Núcleo poderá desenvolver suas atividades, tanto nos processos judiciais já instaurados quanto nos conflitos ainda não judicializados.

3.1.2. Núcleo de Mediação de Conflitos FamiliaresEsse núcleo poderá desenvolver técnicas de mediação adequadas para conflitos

que tramitam junto às varas de família. Sugere-se, aqui, o desenvolvimento de

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enfoques de mediação que possam lidar com partes em conflito que guardam relação de parentesco e afetivas. A mediação, nesse caso, é especialmente aconselhável na medida em que pode proporcionar o empoderamento e transformação das relações humanas que permeiam o conflito.

3.1.3. Núcleo de Mediação de Conflitos CriminaisA atuação desse núcleo é afeta aos conflitos que configuram crimes de

menor potencial ofensivo, cujos processos tramitam nos juizados especiais criminais. As experiências consolidadas de Justiça Restaurativa poderão ser adotadas como referência para a implantação deste serviço. O núcleo poderá acolher uma equipe especializada em violência doméstica que possa desenvolver estratégias e pesquisas sobre a adequação ou não da aplicação de mediação neste tipo de conflito.

3.1.4. Núcleo de Justiça ComunitáriaA experiência e consolidação de programas de Justiça Comunitária

demonstram a viabilidade de se oferecer um serviço de mediação fora do âmbito da atividade jurisdicional. O conceito de mediação comunitária não se define pela natureza da matéria, mas por ser um instrumento manejado para, na e pela comunidade36.

A adoção de um enfoque transformativo37 para os conflitos comunitários de toda a ordem – excluídos, a princípio, os de natureza criminal – assegura que o objetivo da mediação comunitária não se limite à resolução pontual do conflito, eis que toda a sua abordagem está voltada à promoção da emancipação individual e do empoderamento comunitário.

Pode-se, ainda, inserir, neste núcleo, a mediação de conflitos escolares e de políticas públicas, esta última envolvendo conflitos entre o poder público local e a comunidade.

3.2. A mediação pré-processual e incidentalConforme já assinalado, a ausência de previsão legal não obsta que

as partes sejam convidadas para o processo de mediação, antes mesmo do ajuizamento da ação judicial. Nesta hipótese, o comparecimento das

36 Conforme FOLEY, Gláucia. Justiça Comunitária. Uma experiência. 37 O enfoque transformativo é desenvolvido na obra BUSH, Robert A. Baruch; FOLGER, Joseph P. The Promise of Mediation. Responding to Conflict Through Empowerment and Recognition.

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partes será, por óbvio, voluntário e a assistência de um advogado, opcional ou obrigatória38.

Se o serviço ostentar eficiência e assegurar satisfação dos usuários, a sua ampla divulgação assegurará o êxito da iniciativa, compensando a ausência de intimação da parte solicitada. Quando incidental, a mediação poderá substituir a audiência de conciliação já prevista na legislação processual.

3.3. O quadro de mediadoresCom exceção do Núcleo Comunitário, cuja mediação é realizada por

membros da comunidade capacitados para tal fim, os demais núcleos deverão contar com a atuação de servidores dos tribunais que, voluntariamente, manifestarem interesse em colaborar com o Projeto, no horário de expediente forense. Uma vez formalizada a adesão dos servidores, os tribunais passarão a investir na capacitação dos mediadores, sob o compromisso do servidor permanecer naquele serviço por um período previamente estabelecido, sob pena de restituição do valor investido. Essa medida mostra-se essencial para evitar que o serviço dependa da atuação voluntária, conferindo assim estabilidade ao projeto e, consequentemente, melhor aplicação dos recursos públicos.

3.4. O planejamento e a implantação do SistemaCada Tribunal que aderir ao Sistema desenvolverá o seu planejamento, em

permanente interlocução com os demais e sob a coordenação do Conselho Nacional de Justiça, para a definição do seguinte: a) Procedimento a ser desenvolvido, adequado à legislação processual em vigor e enfoques de técnicas de mediação; b) Número de servidores necessários para compor a equipe de mediadores para a atuação em cada Tribunal; c) Financiamento para a capacitação dos servidores interessados; d) Estratégias de captação da demanda para cada núcleo, eis que, com exceção dos processos já judicializados que ainda não se submeteram à fase de conciliação prevista na legislação processual, o uso desse serviço deve ter, a princípio, natureza voluntária para as partes e seus advogados; e) Metas que cada núcleo pretende alcançar, no primeiro ano da experiência piloto; f ) Definição das situações em que a presença de um advogado ou defensor público será essencial; g) Avaliação do

38 A assistência opcional ou obrigatória do advogado poderá seguir o mesmo critério da previsão da Lei 9.099/95, segundo a qual as partes poderão ajuizar causas cujo valor não supere vinte vezes o salário mínimo, sem a assistência de um advogado.

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impacto do projeto, em todas as suas fases de execução; h) Criação de um Fórum permanente de Mediação para a partilha das experiências; i) Outros.

Conclusão O atual arcabouço legal permite que as instâncias judiciárias abertas a

novos paradigmas viabilizem um sistema de múltiplas portas que possa gerar um choque de eficiência na gestão judiciária. Indispensável, contudo, será o investimento de recursos públicos para intensificar as possibilidades de acesso e, sobretudo, qualificar a prestação jurisdicional. Somente após a consolidação de múltiplas experiências, em nível nacional, é que haverá elementos para eventual proposta legislativa que regulamente a matéria. Vencidos os desafios institucionais para a implantação do sistema, caberá à sociedade, que legitimamente anseia por justiça e paz, intensa participação para que o exercício do diálogo e do consenso colabore na construção de uma sociedade mais pacífica, coesa e solidária.

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A APRENDIzAGEM COMO FERRAMENTA ESTRATéGICA NA ADMINISTRAçãO JuDICIáRIA

Roberto Portugal BacellarJuiz de Direito em Curitiba, professor e mestre em Direito pela PuCPREspecialista em Direito Civil e Processo Civil pela uNIPARMBA em Gestão empresarial pela uFPRProfessor convidado do CNJ, ENFAM e MJ (SRF) para capacitar magistrados estaduais e federais em técnicas de mediação e conciliaçãoCoordenador Nacional do Programa Cidadania e Justiça também se aprendem na Escola da AMB e Diretor-Geral da EMAP)

1. A base de um planejamento estratégico

Os órgãos do Poder Judiciário previstos no art. 92 da Constituição da República (CR), existem para prestar serviço público (serviço judiciário) ao povo (usuário dos serviços jurisdicionais – jurisdicionado) de maneira a concretizar a promessa de resolver oficialmente (no âmbito do Estado) as controvérsias existentes entre as pessoas e ao final alcançar a coordenação dos interesses privados e a paz na sociedade.

Para efeitos didáticos a expressão Tribunais será apresentada não no sentido estrito de órgão de segundo grau que reaprecia as decisões dos juízes, mas no sentido amplo de órgão julgador e também órgão de cúpula administrativa (ad-ministrador) responsável pelas políticas públicas específicas que traça os destinos e comanda todos os setores do Poder Judiciário em cada uma das suas esferas de atuação (estadual e federal, da justiça comum ou especial). Além disso, as expressões administração de tribunais, administração da justiça e administração judiciária serão utilizadas como sinônimas e abrangerão não só os tribunais, mas também o trabalho dos juízes na qualidade de administradores de fóruns,

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gabinetes, secretarias, dentre outras tantas atividades administrativas e de repre-sentação política (não jurisdicionais) que desempenharem perante a sociedade.

Há problemas estruturais que atingem o Poder Judiciário como um todo. Note-se que esses problemas não são novos e o decurso do tempo tem agravado os seus efeitos sem que os tribunais consigam implementar sistemas de administração eficazes para atenuar ou resolver o que se costumou denominar crise da Justiça ou crise do Poder Judiciário.

Os valores Justiça (e seu acesso), Segurança Jurídica, Rapidez e Efetividade são alguns que compõem o “pacote” de ideais que o Poder Judiciário promete, formalmente, oferecer ao cidadão.

A falta de planejamento estratégico adequado e específico ao ambiente do Poder Judiciário motiva a ideia inicial deste artigo: viabilizar o início de um ciclo empreendedor alicerçado no conhecimento acumulado, na profissionalização da administração dos tribunais (e por consequência de seus diversos órgãos) para cumprir a promessa de acesso à uma ordem jurídica justa. Além de viabilizar o acesso ao Poder Judiciário verifica-se a necessidade de se ofertar instrumentos públicos e privados não só de entrada (acesso), mas de saída da justiça1.

É preciso retomar o foco na missão do Poder Judiciário e a partir daí, com esteio nos problemas (forças restritivas), planejar as metas de aprendizagem para alcançar os objetivos da administração judiciária.

São poucos ainda os trabalhos científicos e muito restritas as pesquisas específicas dirigidas à administração dos órgãos do Poder Judiciário2. Muitas pesquisas existentes tomam por base modelos empresariais (sem trabalhar a redefinição e ressignificação de seus conceitos) que pouco ou nada se identificam com as linhas gerenciais e administrativas dos tribunais.

O objetivo geral deste artigo é o de transportar algumas experiências do denominado sistema de aprendizagem da ciência da administração e adequá-las ao complexo modelo de administração dos serviços judiciários.

2. O Poder Judiciário e seus problemas gerais

Foram muitas as pesquisas gerais, não qualitativas, já desenvolvidas para avaliar o trabalho do Poder Judiciário. Embora essas pesquisas já tenham

1 O número de processos judiciais em andamento é desproporcional à estrutura, como constatam várias peças de informação oriundas da imprensa e pesquisas sobre o tema.2 Há poucos, mas bons exemplos de projetos de administração judiciária em tribunais federais e estaduais, entretanto, com metodologia de pesquisa e análise diversas das eleitas para este trabalho.

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respondido algumas das várias indagações e outras tenham respostas notórias, as abordagens seguintes são importantes, como ponto de sustentação e até de conveniência para o desenvolvimento deste artigo:

• A administração dos tribunais é satisfatória?• A população, que necessita dos serviços judiciários, está satisfeita com o atendimento do Poder Judiciário?• Há necessidade de mudanças?• A estrutura organizacional para a administração da justiça é adequada?

Constatou-se que a estrutura organizacional do Poder Judiciário, analisado em sua generalidade, é centenária, inadequada, burocratizada e de baixa aprendizagem. Ainda em consideração geral, normalmente o ambiente físico não é o mais adequado ao atendimento dos jurisdicionados na condição de consumidores dos serviços judiciários.

Assim, em geral, a Administração dos Tribunais é insatisfatória, se analisada mediante a perspectiva do usuário dos serviços.

2.1 Insatisfação dos usuários dos serviços da JustiçaJá se percebeu que aos olhos do principal destinatário e usuário da

prestação jurisdicional (população), a segurança jurídica, tão só pela promessa de segurança, não mais se justifica e há de se considerar outros aspectos e valores que interessam diretamente ao povo como a celeridade (rapidez), o custo, o atendimento, a clareza e a efetividade – estes sim representativos, para ele cidadão, da verdadeira justiça.

A constante possibilidade de revisão das decisões desprestigia os magistrados, principalmente os magistrados de primeiro grau, e a cada passo procedimental abre-se oportunidade para que as partes apresentem seus recursos. A justificativa dos processualistas é de que na ausência do recurso (mecanismo de impugnação das decisões) poderia eternizar erros e prejudicar, ao final, de maneira irreversível, o direito da parte.

Portanto, para garantir a segurança jurídica, muitos doutrinadores não aceitam a diminuição do número de recursos judiciais, o que de certa forma contribui para a morosidade dos julgamentos.

A população, que necessita dos serviços judiciários, está, portanto, insatisfeita com o atendimento prestado pelo Poder Judiciário que, embora assegure possibilidade de vários recursos e outras formas de

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impugnação (e por isso atenderia a um dos aspectos do ideal de segurança jurídica), é moroso.

Nesse ponto, não há controvérsias. Os dados informativos colhidos da imprensa e as pesquisas só confirmaram o que já era conhecido. É notória a morosidade e a insatisfação do povo com os órgãos do Poder Judiciário que, responsáveis pela prestação jurisdicional, a entregam com atraso muitas vezes de anos, para não dizer lustros ou décadas.

Até aqui alguns aspectos da atividade jurisdicional, função típica do Poder Judiciário, foram considerados.

2.2 Deficiência organizacional da administração judiciária

A análise organizacional em relação à administração do Poder Judiciário informa:

a) baixa qualidade no atendimento operacional; b) ausência de informatização adequada (e padronizada) e falta de controle dos procedimentos nas áreas operacionais;c) centralização dos poderes na cúpula (juízes, presidentes de tribunais) e ausência de tecnoestrutura;d) falta de conhecimento, pela cúpula estratégica, em administração, com prejuízo da liderança perante diretorias, assessorias da linha intermediária e área operacional;e) juízes sobrecarregados de processos judiciais, sem disponibilidade de tempo ou condições para desviar sua atenção para atividades administrativas (que podem ser desenvolvidas por servidores do quadro ou outros profissionais específicos e qualificados).

Tratou este tópico de análise organizacional geral sem intenção de passar a ideia de generalizações – sempre injustas. Registra-se, assim, a existência de pontuais experiências onde há bom atendimento e destacam-se magistrados com conhecimento em administração que contam com apoio de tecnoestrutura ou assessorias especializadas.

2.3 Os juízes são muito caros para atender telefone, preparar ofícios e administrar fóruns

Os juízes assumem, em geral, responsabilidade por várias funções administrativas, cartoriais, de pessoal e mesmo de simples impulso processual,

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que lhes retiram de suas atividades principais (que deveriam ser de dedicação exclusiva) para as quais foram preparados (julgar).

A falta ou deficiência de assessoria, notadamente nos juízos de primeiro grau, transforma o juiz em um operário que faz tudo: do atendimento do telefone, arquivamento de documentos, gerenciamento de processos, controle de provimentos, organização da pauta de audiências, redação de ofícios, formulação de pedidos de material, elaboração de portarias, orientação aos servidores, inspeção permanente nas secretarias até chegar a suas atividades típicas consistentes na fundamental presidência das audiências, decisões e o julgamento dos processos.

De todas essas atividades, a presidência das audiências e o julgamento dos processos são de sua exclusiva atribuição. Essas outras atividades administrativas, frequentemente, geram desinteresse e desmotivação dos juízes em comandá-las.

Parece uma afirmação pesada, mas há de se registrar, que o juiz – como membro de Poder – é, dentre os prestadores de serviço público, um “servidor” muito caro para desempenhar atividades administrativas comuns, corriqueiras e para as quais não se exige a sua alta qualificação técnico-jurídica. Portanto, mais do que aumentar o número de juízes no Brasil é imperioso capacitar os existentes,3 fornecendo-lhes assessoria de apoio para o melhor exercício de suas tantas funções – administrativas, de gestão, de representação e jurisdicionais.

2.4 Estrutura simples e burocracia mecanizada na administração judiciáriaAs organizações podem ser descritas de acordo com suas configurações

preponderantes. No que diz respeito à estrutura do Poder Judiciário, em face da diversidade de órgãos que o compõe, de acordo com os dados levantados, ora se apresenta como uma estrutura simples, ora se identifica com a configuração estrutural de uma burocracia mecanizada, em outras situações lembra a burocracia profissional, em alguns tribunais é possível visualizar a forma divisionada e em outras a Adhocracia. Adiante descrevem-se características de cada configuração. Nenhum desses perfis, de forma isolada, é suficiente ao alcance da excelência.

3 A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM-STJ, por meio das Resoluções 1 e 2 de 2007 e 1 e 2 de 2009, tem estabelecido diretrizes de trabalho, orientação e colaboração aos tribunais, além de conteúdos mínimos que devem ser ministrados aos magistrados estaduais e federais, desde a formação inicial (ingresso na carreira) até o aperfeiçoamento e formação continuados durante o decorrer da carrreira.

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Devemos extrair as vantagens decorrentes de cada uma das configurações e afastar os vícios e as deficiências que brotam em cada um desses cenários.

Da análise de Henry Mintzberg (1995)4, extrai-se que muitas organizações sofrem essas cinco solicitações, porém, na proporção que as condições favorecem uma em prejuízo das demais, a organização é levada a estruturar-se como uma das configurações. Assim, resume:

a) Estrutura Simples: a cúpula estratégica exerce uma tração para a centralização, por meio da qual pode manter o controle sobre a tomada da decisão e na proporção que as condições favorecem essa tração, a organização se identifica com a Estrutura Simples.b) Burocracia Mecanizada: a tecnoestrutura exerce sua tração para a padronização dos processos de trabalho. Na proporção que as condições favorecem essa tração, a organização estrutura-se como Burocracia Mecanizada5.c) Burocracia Profissional: contrastando, os membros no núcleo operacional procuram minimizar a influência dos administradores – gerentes, bem como analistas – sobre o seu trabalho. Quando eles conseguem, trabalham com relativa autonomia, obtendo tudo o que é necessário para a coordenação pela padronização de habilidades. Dessa forma, os operadores exercem uma tração para a profissionalização – isto é, para o apoio do treinamento externo que amplia suas habilidades. Na proporção que as condições favorecerem essa tração, a organização estrutura-se como Burocracia Profissional.d) Forma Divisionada: os gerentes da linha intermediária também procuram autonomia, porém, para obtê-la, retiram poder da centralização da cúpula estratégica para baixo e, se necessário, do núcleo operacional para cima, a fim de concentrá-la em suas unidades. Na proporção que as condições favorecem essa tração, resulta na Forma Divisionada.e) Adhocracia: finalmente, conclui Mintzberg e ensina haver nova configuração que ocorre nas ocasiões em que a assessoria de apoio consegue mais influência na organização e sua colaboração é solicitada para a tomada de decisão em virtude de sua perícia. Na

4 MINTIZBERG. Henry. Criando organizações eficazes, p.155.5 Há muitos pontos positivos na burocracia mecanizada que devem ser conservados. O que preocupa são os vícios que se proliferaram em face de suas características como a reatividade a quaisquer mudanças.

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proporção que se favorece essa tração para colaborar, a organização adota a configuração da Adhocracia.

Na administração da justiça, com a precariedade e falta de uniformidade nos sistemas de informatização (várias ilhas incomunicáveis) percebe-se a preponderância de uma administração de estrutura simples eminentemente burocrática, com as ações e decisões vindas de cima para baixo. O mesmo cenário, por vezes, se repete nas formas de administração da Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério Público e Defensorias Públicas, componentes do tripé básico de sustentação do sistema judiciário brasileiro.

Na administração judiciária há a percepção de que muitos magistrados (ao atuar na administração) trazem características de império, mando, ordem, da jurisdição e transformam-se em péssimos gestores.

Sem conhecer essas configurações estruturais, vantagens e desvantagens de cada um desses mecanismos, o resultado, no plano operacional dos tribunais, acaba sendo inadequado e desconhecido da cúpula diretiva tal qual o foi pela rainha descrita por Antoinne de Saint-Exupéry que desejando conhecer os seus súditos e saber se eles gostavam de seu reinado, saiu dos limites do palácio e vislumbrou pessoas felizes, bem alimentadas e alegres. Tudo cuidadosamente preparado pelos cortesãos que ergueram ao longo da estrada um cenário maravilhoso e contrataram artistas para que dançassem ali. Fora daquele estreito caminho ela nem sequer entreviu nada, e não soube que pelos campos adentro seu nome era amaldiçoado pelos que morriam de fome6.

Renovam-se as gestões administrativas dos tribunais, direção de foro (fórum), a cada dois anos, normalmente, e permanece a mesma estrutura simples de baixa aprendizagem, burocrática, centralizada e sem padronização do sistema de informática aos usuários (não há, em geral, padronização interna entre os órgãos da própria estrutura, muito menos entre os demais operadores do direito – advogados, promotores de justiça, delegados de polícia, procuradores, defensores públicos, dentre outros), o que contribui com a demora, facilita o erro e gera deficiência no atendimento da atividade fim, que é a prestação do serviço jurisdicional. No ambiente do Estado e em cada uma das instituições essenciais à função jurisdicional, igualmente é importante o conhecimento das vantagens e desvantagens de cada uma dessas estruturas organizacionais a fim de

6 Apud, CALANZANI, José João. Metáforas jurídicas. p. 29.

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planejar estrategicamente a integração e eficiência dos serviços judiciários.Para avançar na padronização operacional, mais racional dos processos

de trabalho e dos serviços, a administração judiciária poderá servir-se de consultores, analistas, estrategistas, administradores, dentre outros profissionais que integrarão as assessorias de apoio e a tecnoestrutura7.

2.5 Necessária profissionalização dos serviços na administração de tribunaisOs servidores dos tribunais, em vista da configuração estrutural existente e

da falta de mecanismos de coordenação, de regra, estão acomodados carregando as características culturais brasileiras do personalismo, protecionismo, jeitinho e aversão à sistematização (e padronização objetiva) do trabalho.

Aqui, não se trata de generalização, ressaltam-se os bons exemplos de profissio-nais, servidores públicos, vocacionados, dedicados, responsáveis e competentes8.

Para eficiência no atendimento ao povo é preciso que o Estado valorize seus servidores. Há muitos servidores vocacionados esperando oportunidade para realizar grandes projetos.

Os dedicados servidores vocacionados ao atendimento público não têm merecido a atenção devida. Os próprios magistrados, notadamente os de juizados especiais estaduais e federais (de maior visibilidade), que defendem a Justiça democrática, simples, informal, célere e econômica, são, constantemente, tratados como magistrados de segunda categoria.

A assertiva de que os servidores dos tribunais (no sistema com contornos de estrutura simples e burocracia mecanizada) estão acomodados e viciados no personalismo e protecionismo, tem base nos dados nacionais colhidos de pesquisas e noticiados nos órgãos de imprensa. Além disso, essa afirmação é ratificada pela percepção do jurisdicionado como principal consumidor dos serviços judiciários que precisa conhecer alguém (dentro da estrutura) para conseguir que o processo seja distribuído com eficiência, que tramite mais rápido, além de outras percepções ainda mais pejorativas como “uma tendência ‘natural’ de julgar a favor dos mais ricos”9.

7 O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem exigido padronização de relatórios e trabalhado na consolidação e divulgação de dados estatísticos confiáveis; há ações no CNJ no desenvolvimento de sistemas e apoio técnico e suporte aos tribunais; há coordenação de programas nacionais de conciliação, gestão, cadastros e pela efetividade da legislação, passos importantes para o alcance da qualidade dos serviços judiciários brasileiros.8 A honestidade não entrou no rol das qualidades por ser dever e obrigação de todos.9 IBOPE. Pesquisa qualitativa sobre a imagem do Poder Judiciário encomendada pela Associação dos Magistrados Brasileiros e realizada em quatro capitais de 1º a 5 de março de 2004.

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Não mais se justifica o conhecimento de vícios (oriundos da estrutura simples e da burocracia mecanizada) sem aprendizagem. A administração judiciária deve aprender a extrair – dessas configurações estruturais –, apenas as suas vantagens e, mais que isso, buscar uma visão estratégica voltada ao conhecimento.

2.6 A baixa aprendizagem dos tribunaisOs erros, ao serem constatados, não geram correção e se repetem há anos,

demonstrando um perfil administrativo dos órgãos do Poder Judiciário de baixa aprendizagem.

Do erro conhecido é possível disseminar a inteligência e estabelecer instrumentos de maior controle e previsibilidade.

Na maioria das empresas que vão à falência, os indícios de problemas já haviam se manifestado anteriormente, mas por negligência dos administradores as evidências não foram consideradas.

No ambiente do Poder Judiciário, os juízes, os servidores, os auxiliares diretos e a própria população, têm denunciado sintomaticamente que a situação não está bem. As deficiências não são novas nem se originaram de eventos súbitos, repentinos, mas de processos lentos e graduais. Não é de hoje que a administração judiciária vai mal.

A maneira como os tribunais são estruturados e administrados cria enormes deficiências de aprendizagem. Muitas vezes o próprio juiz da Comarca avisa que está sobrecarregado de processos e que não mais consegue “dar conta do serviço” mesmo que trabalhe nos feriados, finais de semana e à noite: vêm os argumentos de que cabe ao Poder Executivo atribuir mais verbas e ao Poder Legislativo criar os cargos necessários por lei e, portanto, nada pode ser feito. Resposta: – Não há outro juiz para auxiliá-lo, “se vire”. Alguns, com criatividade, encontram soluções, outros não recebem a ajuda necessária.

Só esse fato já é conhecido há décadas e não gerou correção, nem se converteu em aprendizagem para os tribunais. Sabe-se de alguns programas emergenciais, no estilo mutirão, que apresentam soluções paliativas.

O problema, até hoje, nunca foi assumido como de administração judiciária. O inimigo sempre está fora10. Existe uma propensão a procurar alguém ou alguma coisa para culpar quando as coisas não dão certo. Os

10 SENGE. Peter. A quinta disciplina.

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fatores externos (exógenos), por evidente, não devem ser desconsiderados, até porque, como veremos, muitos deles significativos. Os fatores externos não podem, entretanto, inibir as ações necessárias no âmbito interno da administração judiciária.

Ao discorrer sobre as novas direções para o aprendizado estratégico, MINTZBERG lembra a distinção de Argyris e Schön (1978) entre o aprendizado de laço simples e o aprendizado de laço duplo: o de laço simples é mais conservador e sua finalidade principal é detectar erros e manter as atividades organizacionais nos trilhos.

O aprendizado de laço duplo é aprender a respeito do aprendizado de laço simples: “aprender a respeito de como aprender”. Exemplifica: (...) Um termostato que liga automaticamente o aquecedor sempre que a temperatura numa sala cai abaixo de 20 graus Celsius é um bom exemplo de aprendizado simples. Um termostato que pudesse perguntar “porque estou regulado para 20ºC?” e então explorar se alguma outra temperatura poderia ou não atingir, de forma mais econômica, a meta de aquecer ou resfriar a sala, estaria se empenhando em aprendizado de laço duplo11.

Independentemente dos fatores externos, a demora dos processos, a falta de acesso à justiça, a falta de efetividade, o mau atendimento ao usuário são fatores endógenos de responsabilidade do Poder Judiciário. Assumir a responsabilidade pelas falhas é passo fundamental para a aprendizagem.

Há de se refletir sobre a seguinte constatação: sempre que se culpa o outro, nada se faz para melhorar. Sempre se fica no aguardo de que o outro, o culpado, faça; e se ele não faz, a culpa é dele. Não se pode esquecer que a resolução desses problemas é responsabilidade dos tribunais. Assumir a responsabilidade pela crise e difundir essa percepção para buscar alternativas, é aprender.

A sabedoria só tem sentido quando posta em prática: saber e não difundir é perder o conhecimento e a inteligência da empresa12.

Se o primeiro passo para sanar as deficiências é identificá-las, isso já foi feito. A responsabilidade é do Poder Judiciário.

A base de dados históricos, experiências e críticas é grande e apenas precisam ser estrategicamente analisadas com os olhos no futuro.

11 Apud. MINTZBERG, Henry. Safári de estratégia, p. 157.12 SCHWANFELDER, Werner. Buda: o encontro do equilíbrio. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 98. Conhecimento adquirido, pelo autor do artigo, das aulas do Prof. Renato Marchetti. Gestão Estratégica de Marketing. MBA – CEPPAD/UFPR, Banco do Brasil, 2003.

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2.7 A importância da crise e da experiência da criseÉ significativa a lição de John Ramée (1987) no prisma de que a

administração de uma empresa sempre deve avaliar as ações que empreendeu durante a crise. Entre as questões mais importantes que a empresa deve se formular estão as seguintes:

a) O que a empresa fez para evitar a crise?b) Quais ações foram tomadas pela empresa, se e quando percebeu os

sinais de que a crise era iminente?c) Os dirigentes da empresa ajudaram ou atrapalharam os esforços para

debelar a crise?d) As decisões tomadas para resolver a crise foram efetivas?13.Marco Antonio Oliveira (1994) vai mais além e, mais que isso, recomenda

que as empresas provoquem elas mesmas sua próxima “crise”, estabelecendo um clima de alerta suficientemente perceptível, para que todos percebam os sinais de que algo deve ser feito, bem antes que a empresa seja novamente atingida14.

No ambiente da Justiça15 não será necessário provocá-la vez que a situação de crise tem se manifestado constantemente sem que se tenham aproveitado as experiências dela decorrentes.

O Poder Judiciário, em sua história, ao não aprender com a experiência do passado e não prevenir o futuro, foi negligentemente surpreendido pela crise e continua “apagando incêndios” sem solucionar os problemas de fundo ou projetar ações para minorá-los.

Em linguagem figurada, em face de sua baixa aprendizagem, ocorreu que: o tribunal não foi mais capaz de ver a floresta por causa das árvores.

3. Sistema de aprendizagem e suas ferramentas estratégicas

Há expressões populares que ensinam: “Errar é humano, persistir no erro é burrice”. Em outras palavras, o erro pode servir de aprendizado e uma vez cometido não deve ser repetido, tecnicamente ensinam Anthony J. BiBella e Edwin C. Nevis:

A organização aprendiz tem sido caracterizada como sendo aquela que possui a capacidade de adaptar-se às mudanças que ocorrem

13 RAMÉE, John. Aput OLIVEIRA, Marco Antonio. Vencendo a crise à moda brasileira.14 OLIVEIRA, Marco Antonio. Vencendo a crise à moda brasileira.15 A expressão não é técnica mas é usada popularmente para se referir ao Poder Judiciário. Para facilitar a comunicação, em algumas situações, a expressão será utilizada.

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com seu ambiente e reagir às lições trazidas pelas experiências por meio da alteração do seu comportamento organizacional16”.

3.1 Alta aprendizagemA alta aprendizagem nas organizações manifesta-se quando, nos

planejamentos e decisões, a liderança apresenta-se de forma altamente envolvida e quando os planejamentos são flexíveis e interativos. A estratégia é de construção permanente. A dependência dos setores diretivos, via de regra, apresenta-se como menor (baixa), ao contrário das organizações de baixa aprendizagem, onde essa dependência é maior (alta)17.

Nas organizações de alta aprendizagem o grau de difusão e acessibilidade às informações é amplo. Já o grau de centralização da comunicação é baixo. As organizações que têm alta aprendizagem buscam interpretar seus “erros” de forma legítima e institucionalizada, nunca de forma puramente punitiva. O erro faz parte do processo conquanto se aprenda com ele e ele não se repita em situações idênticas ou similares: aprende-se com os erros do passado e projetam-se ações experimentais para alcançar os acertos do futuro. Se da experiência resultarem novos erros a ação é refeita, gera-se reflexão, teorização e nova experimentação em um ciclo de aprendizagem.

Para que uma organização possa gerir seus conhecimentos e atingir a aprendizagem a partir da própria experiência, ela deve tratar seus conhecimentos e experiências dentro desse ciclo, onde após iniciar sua atividade, reflete e teoriza sobre ela e experimenta novos caminhos, para, a partir daí, reiniciar sua atividade aplicando a experiência anterior.

TEORIZAR

(RE)

FAZER

REFLETIR

EXPERIMENTAR

16 DiBELLA, Anthony J. e NEVIS, Edwin C. Como as organizações aprendem, p.6.17 Há exemplos na organização judiciária de baixa aprendizagem que tudo depende do presidente e nada acontece sem que ele autorize. A pergunta mais comum é: o presidente já resolveu?

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No dizer de DiBella e Nevis: “Aprender significa ganhar experiência, construir competência e evitar a repetição de enganos, problemas e erros que desperdiçam os recursos da empresa”18.

3.2 Estilos, orientações e fatores integrantes do sistema de aprendizagemA ciência da administração tem ampliado o estudo do papel da

aprendizagem como ferramenta de múltiplas aplicações inclusive para o alcance da qualidade e da excelência. Abre-se um leque de dezenas de situações a serem consideradas no contexto de um verdadeiro sistema de conhecimento considerando fontes, orientações, fatores e portfolios de aprendizagem. A aplicação, nas atividades judiciárias, de alguns desses elementos (que integram o sistema de aprendizagem) poderá abrir promissoras frentes de oportunidade de correção viáveis e totalmente compatíveis com a ideia de um serviço público de qualidade.

3.2.1 Fonte de conhecimento e finalidade da aprendizagemPode haver aprendizagem que tenha fonte em criação interna (construir

sobre o que já existe) ou tenha fonte em conhecimento buscado no ambiente externo (tentar uma transformação). As duas formas de busca de conhecimento se completam e não é necessário que elegendo uma tenhamos de afastar a outra. As possibilidades dentro da ideia de orientação para aprendizagem são sempre complementares e não excludentes. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem buscado conhecimento e articulado ações a partir de fontes extraídas dos próprios tribunais, o que não deixa de ser fonte interna considerando-se o sistema judiciário como um todo.

Quando internamente a tentativa de incrementar e melhorar situações já conhecidas não é suficiente, há de se buscar fontes externas e procurar alternativas transformativas inteiramente novas.

3.2.2 Registro ou reserva de conhecimento Alguns servidores públicos da linha intermediária (chefias de departamentos

e divisões – equivalentes às gerências da iniciativa privada), como resultado de suas experiências pessoais, acabam concentrando um conhecimento informal que muitas vezes desaparece nas trocas de gestão dos tribunais. A despeito de

18 DiBELLA, Anthony J. e NEVIS, Edwin C. Como as organizações aprendem, p. 30.

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toda a burocracia no serviço público é comum não haver registro documental de muitos desses conhecimentos.

Tanto o conhecimento informal quanto o formal são fundamentais e cabe aos administradores orientar a documentação e o registro desse conhecimento na memória do Tribunal (cultura corporativa).

A memória de todo o conhecimento adquirido (interno ou externo), registrado ou não registrado formalmente é muito importante para se estabelecer qualquer planejamento projetivo ou corretivo na administração judiciária.

3.2.3 Modos de disseminação da aprendizagemO conhecimento pode circular e evoluir informalmente ou pode

ser disseminado por meio de procedimentos burocratizados escritos. A recomendação é a de que o administrador de acordo com a importância, necessidade, urgência, dentre outros fatores selecione a forma mais adequada de fazer com que ocorra o processo de aprendizagem. Novamente uma situação não é excludente da outra e mais importante é que todos saibam o que precisam saber para melhor desempenhar suas atividades.

Como vimos, a circulação do conhecimento e sua disseminação variam de acordo com o perfil das organizações. O perfil da nossa administração judiciária, de regra, é configurada como de estrutura simples ou de uma burocracia mecanizada (com padrões de baixa aprendizagem) e com pouca ou nenhuma legitimação social19.

O diagnóstico do Poder Judiciário vem sendo construído há anos. Os problemas evoluíram e, sem perda de tempo, justifica-se a necessidade de ministrar as estratégias específicas e já conhecidas pela ciência da administração. O desenvolvimento de sistemas de aprendizagem, nos tribunais, poderá orientar estrategicamente a ação dos administradores.

3.3 Cultura de aprendizagemAdverte-se que a mera contratação de consultorias, universidades ou

fundações produzirá resultados ínfimos e de curto prazo caso não ocorra uma significativa mudança de mentalidade por parte da cúpula estratégica. Um

19 Legitimação social como reconhecimento perante a sociedade. Ressalta-se a evidente necessidade de apresentar com clareza os argumentos que justificam a importância do Poder Judiciário como um dos Poderes do Estado. Investimentos em marketing e comunicação institucional – sem promoções pessoais – são instrumentos que produzirão bons resultados.

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plano de desenvolvimento estratégico plurianual também não será suficiente se a cada dois anos todo o conhecimento adquirido for esquecido e não houver o registro do planejamento na memória dos tribunais.

A consciência da necessidade de mudança estrutural, da profissionalização e da implementação de padrões de aprendizagem (e qualidade), contribuirão para a realização de um trabalho empreendedor pelos administradores de tribunais brasileiros.

4. Diagnóstico, objetivos e propostas para utilização

da aprendizagem como ferramenta estratégica na

administração judiciária

Vale-se da definição de diagnóstico – originária da medicina – para descobrir, a partir dos sintomas, as doenças e com base no conhecimento sobre elas, ministrar os respectivos remédios (construir planos estratégicos para combater os problemas).

Muito embora fosse notório o agravamento dos problemas, o ambiente organizacional dos tribunais sempre foi desfavorável às mudanças conduzindo os administradores, mesmo em situações “de crise”, a seguir a tendência natural de acomodação.

Da constatação do desajuste administrativo em relação à coordenação das atividades do Poder Judiciário, se impõe a adoção de mecanismos para ativar a organização das atividades a partir da cúpula estratégica (no campo institucional e estrutural) e investir na tecnoestrutura e nas assessorias de apoio a fim de alcançar uma nova visão estratégica modificadora dos antigos esquemas interpretativos.

Se há necessidade de mudanças, o objetivo geral é estabelecer bases estratégicas para que elas, uma vez implementadas, solucionem os mais graves e notórios problemas que atingem o Poder Judiciário como a morosidade (demora) e ineficiência (falta de efetividade).

As experiências passadas formam uma rica estrutura de referência (dados já colhidos) para futuros processos de alta aprendizagem.

A análise dos erros do passado ampara a definição dos objetivos específicos a serem alcançados em benefício do jurisdicionado.

4.1 Aprendizagem para a descentralização e empoderamento no ambiente da administração judiciária

Conforme enfatiza Alvacir Correa dos Santos (2003), ao tratar das

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mudanças no ambiente empresarial, o administrador contemporâneo terá que desenvolver algumas habilidades, tais como:

a) capacidade para prever e se antecipar às mudanças;b) capacidade para liderar e para formar líderes (e líderes que sejam avessos à acomodação, à inércia, que tenham espírito empreendedor e que também sejam receptivos às mudanças).

Ressalta, ao concluir, que as empresas que se destacarão nos próximos anos serão aquelas cujos gestores apresentarem habilidades para liderar, estimulando a capacidade de criação dos empregados, proporcionando-lhes treinamento e reciclagem adequados, fazendo-os sentir-se realizados e gratificados20.

Note-se que cabe, como regra, aos presidentes de tribunais, a coordenação ou supervisão direta, a chefia de todos os departamentos, além das atribuições naturais de comando, planejamento e execução do orçamento. Por meio da alternância de mecanismos administrativos de coordenação (por desenvolvimento ou ajustamento mútuo, por padronização dos resultados, por habilidades e por padronização dos processos de trabalho) e com uma gestão participativa os presidentes poderão desenvolver habilidades para distribuir recursos de forma a alcançar os melhores resultados. A descentralização e coordenação das atividades é nesse contexto um passo de suma importância.

São tantas as missões do Poder Judiciário que a centralização impede a implementação de uma gestão empreendedora.

Empowerment é uma ferramenta de exercer poder e sem perdê-lo.Compartilhá-lo com subordinados que assumirão a responsabilidade de fazer

acontecer. Em tradução livre, é o que se tem denominado de “empoderamento”.Aquele administrador que está “sem tempo” de realizar todas as suas

importantes atividades e “sem perda de tempo” deve empoderar alguém, dentre seus subordinados ou auxiliares, a cumprir uma ou algumas dessas muitas tarefas sem, contudo, perder o controle e o poder de também realizá-las.

4.2 Padrões de aprendizagemUm dos focos mais destacados da aprendizagem tem sido o de correção

dos erros do passado. Conhecedores dos problemas e das forças restritivas,

20 Santos, Alvacir Correa dos. Princípio da eficiência da administração pública. p.124

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resta aos administradores desta geração corrigir os erros do passado, aprender com os erros em um processo de contínua aprendizagem e, ao final, sugerir alternativas viáveis e concretas para manter as forças propulsoras e potencializá-las.

Um dos desafios para traçar os caminhos ao alcance da alta aprendizagem preparando, estrategicamente, os tribunais para os desafios do futuro – inclusive em relação ao macroambiente (aumento populacional, diminuição dos recursos naturais e consequente crescimento dos conflitos) – é a mudança de mentalidade.

Alguns vícios da burocracia mecanizada fortalecem a ideia de manter as coisas como estão e continuar a fazer o que sempre se fez (fazer mais do mesmo) exatamente porque sempre foi assim e é cômodo permanecer na inércia.

Com um planejamento estratégico contínuo, os gestores dos órgãos do Poder Judiciário (administrados pelos tribunais), poderão projetar criativamente a visão administrativa para cumprir, com eficiência, seus respectivos planos de ação e, ao final, atingir os objetivos de uma Justiça ágil, organizada e eficiente.

4.3 Diminuir a quantidade de serviço e aumentar a qualidadeSempre quando se discute a possibilidade de delegar ou transferir algumas

questões para solução extrajudicial, privada, fora do âmbito do Poder Judiciário, surge de imediato uma primeira prevenção: haverá perda de poder, portanto um desprestígio aos juízes, se o Poder Judiciário permitir solução privada para alguns conflitos. Ao juízo do autor, a maior perda de prestígio e poder decorre da absoluta incapacidade de solucionar as demandas que são ofertadas aos tribunais.

Note-se que se afigura possível, sem qualquer quebra ao estado de direito e à segurança jurídica, que algumas atividades administrativas negociais, consensuais e enunciativas, sejam desenvolvidas por outros servidores, administradores, e não só por juízes.

Várias atividades, relacionadas com as atividades principais do Poder Judiciário, prescindem da atuação direta dos juízes e podem ser praticadas por auxiliares da Justiça dentro ou fora do ambiente do Poder Judiciário, até porque um especialista em Direito, um jurista experiente e experimentado, muitas vezes, como se afirmou, é muito caro para o Estado para “perder seu precioso talento jurídico” e, por que não dizer, “perder tempo” com questões operacionais e administrativas diversas da atividade jurisdicional.

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5. Conclusões

Com base na análise do passado, em parcela significativa dos órgãos do Poder Judiciário, verifica-se a ausência de profissionalização e uma organização simples de espírito burocrático, com centralização de poder e características de baixa aprendizagem.

Por acreditar na viabilização de efetivas medidas de gestão oriundas do próprio Poder Judiciário (mesmo que buscando transformações por conhecimentos externos) é que os tribunais deverão construir, com base nos sistemas de aprendizagem, uma projeção estratégica de administração da justiça.

A administração do Poder Judiciário necessita urgentemente abandonar o ciclo burocrático e iniciar um ciclo empreendedor marcado pelo planejamento estratégico e pela visualização do futuro.

Ser empreendedor é ser criativo, avançar em mudanças necessárias sem medo de errar. É também aceitar os erros e encará-los como parte do processo de desenvolvimento estratégico.

A crise deve ser trabalhada construtivamente. A inadequação administra-tiva, a falta de planejamento e análise de impacto das condições externas (do aumento populacional, do crescimento das demandas, diminuição dos recur-sos naturais...), importarão no agravamento da atual crise e na impossibilidade de tratar da previsibilidade em relação aos novos problemas oriundos de uma sociedade em constante evolução.

Como vimos, se “errar é humano, persistir no erro é burrice”. O erro, bem aproveitado, pode e deve servir de aprendizado.

A administração judiciária pós-moderna será aquela com capacidade de adaptar-se às mudanças que ocorrem no contexto tempo-cultural (ambiente) e reagir às lições trazidas pelas experiências negativas, projetando, passo a passo, as alterações na sua estrutura e no seu comportamento organizacional.

É possível, como a experiência registra, tirar partido positivo da crise, investindo na sinergia de administração (experiência anterior sendo aproveitada na solução de novos problemas com traços comuns com antigas decisões de sucesso).

Esse é o desafio dos magistrados pós-modernos, gestores, administradores e líderes servidores que, a despeito de todas as limitações estruturais do Poder Judiciário, farão a travessia entre a promessa de eficiência e o alcance do verdadeiro sentido da palavra “Excelência”.

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A MELHOR REFORMA DA JuSTIçA DO TRABALHO: A FORMAçãO DO JuIz

Amauri Mascaro NascimentoProfessor Titular e Professor Emérito da Faculdade de Direito da uSPPresidente Honorário da Academia Nacional de Direito do TrabalhoMembro da Academia Brasileira de Letras JurídicasSecretário Geral da Sociedade Iberoamericana de Direito do Trabalho e Seguridade SocialJuiz do Trabalho aposentado

1. Introdução

Dar ao País um Judiciário com maior eficiência, celeridade e acerto cada vez maiores em suas decisões é uma aspiração da sociedade e um imperativo do desenvolvimento do País, como é possível concluir das pesquisas sobre a imagem da Justiça perante a população.

As reformas do Judiciário são estudadas em mais de uma perspectiva, porém a principal delas, aqui avaliada, é a da formação do Juiz que não pode ser descuidada, como não é, embora não tendo atingido ainda os níveis maiores que pode alcançar.

Para que esse objetivo seja atingido a Resolução no 75 do Conselho Nacional da Justiça altera os critérios e o conteúdo dos concursos de ingresso na magistratura visando exigir do candidato uma formação não apenas técnica, mas também humanística, modificação que merece a atenção e o elogio de todos.

Um sistema judicial, por melhor que seja, sucumbe nas mãos de um mau Juiz e um sistema judicial, por pior que seja, pode dar resultados positivos se conduzido por um bom Juiz. Logo, o centro da atenção deve ser dirigido ao sujeito e ao seu comportamento, e não tanto na estrutura, embora esta também represente bastante para o aperfeiçoamento da organização.

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É nessa perspectiva que as observações a seguir são dirigidas.

2. Sociologia da administração judiciária

O Juiz deve preocupar-se com os fenômenos sociais, uma das dimensões do Direito.

Já sabemos que Sociologia é a ciência dos fatos sociais, termo atribuído a Comte para indicar a “ciência de observações dos fenômenos sociais”, isto é, toda espécie de análise dos fatos que ocorrem na sociedade, os grupos de que é constituída, as instituições nela encontradas, na tentativa de levantamento das leis que disciplinam o seu comportamento.

Assim, cabe à Sociologia a investigação das estruturas do fato social, valendo-se de técnicas diversas, como a pesquisa, a estatística, os trabalhos de campo, etc. Uma das maiores autoridades da Sociologia, Émile Durkheim, em As Regras do Método Sociológico, ensina que existem vários tipos dessas regras: regras sobre observação dos fatos sociais, distinção entre normal e patológico, constituição dos tipos sociais, explicação dos fatos sociais e regras de administração da prova em alentado estudo que se tornou dos mais conceituados na sua área. Considera os fatos sociais como objeto da sua análise. Afirma que a estrutura política de uma sociedade não é mais do que o modo pelo qual os diferentes segmentos que a compõem tomaram o hábito de viverem uns com os outros. Se suas relações são estreitas, os segmentos tendem a se confundir e, no caso contrário, tendem a se distinguir. Conclui que política não se situa apenas no nível das estruturas estatais, mas sim no nível da sociedade.

Desse modo, a preocupação maior da Sociologia é a procura do método sociológico e suas regras para responder à indagação central que a move: o que é um fato social?

Quando voltados esses estudos para o Direito em geral estar-se-á diante da sociologia jurídica que Ramón Soriano — para quem o direito é provavelmente o instrumento mais importante de controle social —, em Sociologia del derecho (1997), define por meio da interconexão dos dois termos da sua nomenclatura: a sociologia jurídica ocupa-se da influência dos fatores so ciais no direito e da incidência que este tem, por sua vez, na sociedade. Há, portanto, uma mútua dependência entre o jurídico e o social. Se dirigidos para a sociedade empresarial, os grupos trabalhistas e econômicos e suas relações, o âmbito será o da sociologia do trabalho.

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Na sociologia jurídica, estudam-se os fatos que influenciam a formação do direito, portanto parte-se desses fatos para a norma; quando na ciência do Direito o movimento é contrário, parte-se da norma para os fatos, sem prejuízo de uma concepção integrativa de implicações recíprocas.

Um dos aspectos da Sociologia do Direito é a administração judiciária vista, obviamente, sob o prisma da gestão e da gerência da atividade judiciária.

Sobre o tema existe um interessante estudo de Boaventura de Sousa Santos, Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. Esses estudos interessam ao Direito Processual do Trabalho e especialmente para o Poder Judiciário.

Ele afirma que não se trata de examinar o conceito de Justiça, de Direito, nem a tipologia das normas jurídicas e sua aplicação, temas que pertencem a outras áreas de estudo. O autor centraliza sua análise em outros temas como o pessoal especializado encarregado da aplicação nas normas jurídicas, as profissões jurídicas, a burocracia estatal e o desenvolvimento da sociologia das organizações das quais a organização judiciária é uma das partes.

Propõe uma sociologia da administração da justiça desenvolvida a partir de linhas de investigação concentradas em três grandes grupos temáticos: o acesso à justiça; a administração da justiça enquanto instituição política e organização profissional; e a litigiosidade social e os mecanismos da sua resolução existentes na sociedade, aspectos demarcatórios do tema e para os quais volta a sua atenção.

Quanto ao acesso à justiça – que é pelo mesmo examinado no Judiciário em geral e específico para o Judiciário trabalhista – adverte que é um direito cuja denegação acarretaria a de todos os demais. Nesse domínio, a contribuição da Sociologia consiste em investigar sistemática e empiricamente os obstáculos ao acesso efetivo à justiça por parte das classes populares. Salienta que o Processo do Trabalho é uma conquista dos trabalhadores no sentido de consolidar o direito de acesso a um órgão para decidir os seus conflitos com os empregadores, mas não deixa de mostrar que existem também obstáculos sociais e culturais que dificultam esse acesso por parte dessas classes. Os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades e reconhecer um problema que os afeta como sendo um problema jurídico. Uma sensação de dependência e insegurança produz o temor de represálias de se recorrer aos tribunais. Quanto mais baixo é o estrato sócio-econômico do cidadão menos provável é que conheça um advogado que demonstre os caminhos que deve seguir para ingressar numa organização judiciária, enfrentar audiências, apresentar recursos e discutir com fundamentos as questões que

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vão aparecendo no processo. A assistência judiciária colabora para facilitar o processo. Todavia, para isso, deve estar bem estruturada e contar com recursos suficientes para que possa cumprir os seus fins.

Acrescento que o realismo jurídico norte-americano colocou temas como esses e os próprios juízes no centro do campo analítico para estudar os seus comportamentos, as decisões e o problema da neutralidade ou não do juiz.

Diversos pensadores optaram por essa temática. Já os estudos italianos ocupam-se mais da ideologia da magistratura e não do comportamento decisório e, como ensina Renato Trevis, o mito do apoliticismo da função judiciária diante das três grandes tendências ideológicas no seio da magistratura italiana: a tendência estrutural funcionalista dos juízes conservadores ou moderados, a tendência do conflitivismo pluralista que defende as ideias de mudança social e reformismo e a tendência mais radical do conflitismo dicotômico de tipo marxista e do direito alternativo.

Boaventura chega a algumas conclusões.Entende que uma nova política judiciária deve zelar por alguns aspectos

básicos que devem ser mencionados.Primeiro, a democratização da administração da justiça, fundamental para a

democratização da vida social, econômica e política e que tem duas vertentes, uma é a constituição interna do processo com maior envolvimento dos cidadãos, individualmente ou em grupos, e a ampliação dos conceitos de legitimidade das partes e do interesse de agir; a segunda vertente diz respeito à democratização do acesso à justiça.

Segundo, preocupa-se com a diminuição do contencioso jurisdicional em vários países. Considera disfuncional e negativa em relação ao processo de democratização da justiça a demora na solução dos litígios.

Terceiro, adverte que os litígios entre cidadãos ou grupos parificáveis admitem a informalização da justiça como fator de democratização, todavia, e ao contrário, os litígios entre cidadãos ou grupos com posições de poder estruturalmente desiguais – como os litígios entre patrões e operários, entre consumidores e produtores, entre inquilinos e senhorios –, se informalizados, podem se deteriorar diante da posição jurídica da parte mais fraca contribuindo para a maior desigualdade social, a menos que os amplos poderes do juiz compensem a perda das garantias.

Termina dizendo que a contribuição maior da Sociologia para a democratização da justiça está em mostrar empiricamente que as reformas do

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processo ou mesmo do direito material não terão maior significado sem outras duas reformas, a da organização judiciária e a da gestão dos recursos de tempo e capacidade técnica, em especial os processos de recrutamento dos magistrados, tudo para que se possa contar com a magistratura culturalmente esclarecida.

Entende a concepção de administração da justiça, inicialmente propugnada pelos cientistas políticos, vendo no Poder Judiciário “uma instância política, subsistema do sistema político geral partilhando com este a característica de processar uma série de inputs externos constituídos por estímulos, pressões, exigências sociais e políticas e de, através de mecanismos de conversão, produzir outputs (as decisões) portadoras elas próprias de um impacto social e político nos restantes subsistemas”.

E conclui:Uma tal concepção dos tribunais teve duas consequências muito importantes. Por um lado, colocou os juízes no centro do campo analítico. Os seus comportamentos, as decisões por eles proferidas e as motivações delas constantes passaram a ser uma variável dependente cuja aplicação se procurou nas correlações com variáveis independentes, fossem elas a origem da classe, a formação profissional, a idade ou, sobretudo a ideologia política e social dos juízes. A segunda consequência consistiu em desmentir por completo a ideia convencional da administração da justiça como uma função neutra protagonizada por um juiz apostado apenas em fazer justiça acima e equidistante dos interesses das partes.

Penso que a sociologia da administração judicial pode desempenhar um papel importante no sentido de promover o levantamento de dados de que o Juiz, na administração do Tribunal ou da Vara, para que possa ter melhor conhecimento da realidade que dirige.

Para esse fim, o Juiz deve contar com dados estatísticos e relatórios periódicos que o municiem dos elementos necessários para a verificação da situação em que o seu órgão se encontra. Com esses dados, o Juiz poderia fazer uma reflexão melhor, necessária para a procura da racionalização dos serviços judiciais, com a aplicação dos métodos de gestão que simplifiquem as funções de cada um dos que colaboram para o desenvolvimento das respectivas atividades.

É o que aconteceria com as pautas de audiências nas grandes cidades quando acumulam um grande número de audiências no mesmo dia, o que impede, por falta de tempo, uma tentativa de conciliação mais detalhada e

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quando as partes não se conciliam o caso é adiado para outro dia, em prejuízo das partes que terão que retornar e das testemunhas que compareceram e que são dispensadas sem serem ouvidas para que retornem futuramente também.

Há, por outro lado, um aspecto negativo dos levantamentos de dados estatísticos do trabalho do Juiz. Como no atual período há um controle maior sobre a produtividade do Juiz, esse fato pode sobre ele exercer uma pressão para que sua atividade seja voltada para a produtividade. Isso que pode prejudicar a qualidade do seu serviço. Mas não vejo como abrir mão desse controle e a solução é definir, com precisão, os limites exigíveis do Juiz e pressionar o Poder Executivo para que amplie os quadros do Judiciário, o que pode trazer resultados quando o pleito é bem conduzido – como aconteceu em 2009 com a ampliação desses quadros na Justiça Federal e do Trabalho.

A informatização pode prestar também uma excelente contribuição e corrigir defeitos crônicos que durante muito tempo foram um suplício para os advogados, e hoje já não são mais, como obter informações sobre trâmites processuais e localização de autos nas secretarias.

Mas escapa ao seu âmbito a avaliação da postura dos juízes na sua atividade jurisdicional, tema que não pertence à Sociologia, embora nada impeça que nela incursione, mas sim a uma opção do próprio Poder Judiciário.

Questão complexa é a da neutralidade ou não do Juiz. Não estou convencido de que as suas sentenças são resultados das influências que sofreu na sua formação e das variáveis de origem, classe, idade e ideologia política e social. Esses fatores podem, de algum modo, pesar na cosmovisão do Juiz, e seria mesmo difícil negar que tal influência não se manifestasse. Faz parte de toda pessoa trazer consigo um pouco da sua história. Porém, daí a chegar à conclusão de que as pessoas, não obstante essa dependência, são incapazes de mudar o seu pensamento depois de uma diversidade de cosmovisões das quais toma conhecimento é o mesmo que negar a possibilidade de evolução intelectual do ser humano. O Juiz, qualquer que seja sua classe social de origem ou ideologia, como Juiz, sempre decide com a responsabilidade e com as interpretações segundo técnicas jurídicas que aprendeu durante os cursos que fez. Desse modo, ele sabe que tem que ser neutro, e fazer justiça acima dos interesses das partes, sob pena de não ser um Juiz. Não devemos nos deixar influenciar nesse ponto, pelo realismo jurídico norte-americano, porque o nosso sistema é completamente diferente, aquele um sistema de Common Law enquanto que no nosso território o sistema é de Direito Legislado.

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Esses fatores influem muito no problema e modificam a posição do Juiz, que nunca poderá, aqui, afrontar o modelo em que vivemos, no respeito à Lei, da inspiração na Doutrina, e da nossa cultura. Reconheço, no entanto, que há juízes que são tidos como conservadores, e outros como progressistas. Porém, o que é ser conservador? O que é ser progressista? Essa é uma questão de alta indagação, porque muito do que é feito por um chamado conservador é muito mais progressista do que diversas iniciativas de um Juiz considerado moderno e reformador. Por exemplo, foi na magistratura do período dos governos militares no Brasil que o Judiciário teve que lidar com questões como suspensão dos contratos individuais de trabalho por motivos econômicos, porque foi feita uma lei nesse sentido. Essa lei é flexibilizadora. Não é conservadora. O Juiz teve que aplicá-la, quer fosse conservador ou progressista e a despeito do regime político na época vigente.

As afirmações do conceituado sociólogo sobre a maior contribuição da Sociologia para a democratização da administração da Justiça, a reforma da organização judiciária e a reforma dos meios de recrutamento dos magistrados, são de inegável consistência.

A reforma da administração da Justiça do Trabalho no Brasil tem como sua última medida de repercussão a extinção dos juízes classistas. Estes eram representantes dos sindicatos que integravam os órgãos judiciais em todos os níveis. Era uma forma de administração popular, na administração da justiça. Foi suprimida porque não deu certo. Esses representantes sempre eram vencidos nos votos que proferiam, e sempre com escassa fundamentação. Acabava valendo a posição do Juiz embora os três votos, do Juiz e dos dois classistas, um de empregado e o outro de empregador, tivesse o mesmo peso. O Juiz era sempre acompanhado por um dos classistas ficando o outro vencido. Essa modificação na organização judiciária é tida como acertada. Não foi um meio de inclusão do povo no Judiciário. Ao contrário, foi uma forma de eliminar a composição paritária dos tribunais.

Vê-se, portanto, que nem sempre a proposta de democratização com inclusão popular traz benefícios à administração judicial, como ficou comprovado na nossa história da Justiça do Trabalho. Justiça internamente democrática é a transparente, e não a popular. A Justiça do Trabalho poderá, no entanto, democratizar-se mais, como já o fez com as varas itinerantes que vão até o local onde haja uma razoável concentração de demandantes que teriam difícil acesso ao Judiciário, para, ali mesmo, instruir e julgar as demandas

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trabalhistas, como tem ocorrido com sucesso em estados do norte do País. Outra forma, já experimentada com êxito, é a dos tribunais que apreciam os recursos quando constituída, pelo Tribunal, uma Turma compostas por juízes de varas que, em nome do mesmo, apreciará o apelo, como já foi feito na Região do Tribunal de Campinas. É o caso, também, de atuação conjunta e programada do Tribunal Regional e das subseções da OAB para, mediante convênio entre ambas as instituições, em cada Subseção da OAB atuar um grupo de mediação, conciliação ou arbitragem composto de advogados indicados pela Subseção ao Presidente do Tribunal que os designaria para essas atribuições durante um tempo.

Por outro lado, os processos de recrutamento dos magistrados podem melhorar cada vez mais com medidas, como a do Conselho Nacional de Justiça, em 2008, que programou exigências necessárias dos candidatos. É o que se fez com a Resolução no 75, do Conselho Nacional de Justiça, e das novas exigências de conhecimentos dos candidatos a juízes. A resolução exige uma formação humanística, incluindo temas de Filosofia do Direito, Sociologia da administração judiciária e Psicologia Jurídica, além das matérias tradicionais.

3. Os mecanismos de resolução dos conflitos sociais

No Direito, e segundo os estudos de Niceto Alcalá Zamora y Castillo em Processo, Autocomposição e Autodefesa os conflitos, nas diversas etapas da história, foram solucionados por diferentes meios, cuja amplitude alterou-se com o tempo.

Nas sociedades primitivas, prevaleceu a autotutela, que é a imposição do mais forte ao mais fraco mesclada com os juízos de Deus. Os conflitos eram resolvidos mediante os duelos, os combates, as liças, as ordálias, com a exposição física das pessoas a toda sorte de atrocidades para, no caso de resistência, tornarem-se vitoriosos, práticas que o direito procurou afastar, apesar de, nas épocas em que eram comuns, terem aceitação social.

Em um segundo período, os conflitos passaram a ser resolvidos pelo processo, quando o direito aperfeiçoou o estudo das técnicas de solução e desenvolveu o conceito de jurisdição, hoje inafastável do Estado Democrático de Direito. Ganhou relevância, também, a solução dos conflitos diretamente pelas partes, mas não pela imposição do forte ao fraco, e, sim, pelo entendimento ou a negociação. O direito deu forma a várias técnicas destinadas a esse fim.

São formas tradicionais de resolução dos conflitos a autocomposição ou heterocomposição.

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Há autocomposição quando as próprias partes, diretamente, solucionam-no e haverá a heterocomposição quando, não sendo resolvidos pelas partes, o são por um órgão ou uma pessoa suprapartes. Forma autocompositiva é, principalmente, a negociação coletiva para os conflitos coletivos e o acordo ou a conciliação para os conflitos individuais, estes acompanhados ou não de mediação. A aproximação das partes por um terceiro que tem a incumbência não de decidir, mas de ajudar o acordo, é a mediação. Técnicas heterocompositivas são a arbitragem e a jurisdição do Estado. Acompanhando essas formas, podem empregar as partes, quando autorizadas ou não proibidas pela legislação do País, técnicas de autodefesa: a greve e o lock-out.

Dentro desses conceitos centrais é que são classificadas diversas formas compositivas no Direito do Trabalho, com maior ou menor relevo, permitindo um debate sobre a natureza de cada uma delas.

A relação dos meios de solução dos conflitos de interesses no setor privado pode não coincidir com a do setor público; a dos conflitos jurídicos com a dos econômicos; a dos conflitos individuais com a dos conflitos coletivos; a greve pode ser, para alguns, forma de solução dos conflitos e, para outros, não, apenas meio de pressão que pode conduzir a uma forma de solução do conflito; a conciliação e a mediação, para alguns, não apresentam características que permitam distingui-las, enquanto, para outros, são inconfundíveis; alguns doutrinadores defendem uma lista maior para os conflitos coletivos de interesses para o setor privado, incluindo negociação coletiva, greve, conciliação, informes oficiais, investigação dos fatos, fórmulas mistas de conciliação, mediação e arbitragem, decisões judiciais e decisões administrativas; em alguns ordenamentos, a principal forma de solução é a jurisdicional, enquanto, em outros, é a arbitral.

Em alguns países, como o Brasil, prevalecem soluções jurisdicionais. Em outros, como os Estados Unidos, destaca-se a arbitragem. Em todos se procura dar ênfase à autocomposição coletiva e cercar-se de garantias à vontade do trabalhador nas individuais. Em todos os ordenamentos coexistem diversas formas que compõem um sistema. Há, portanto, um sistema de composição dos conflitos trabalhistas, o que pressupõe que as partes que o integram estejam entrelaçadas e ordenadas conforme uma sequência rígida. É possível falar-se em sistema entrelaçado mesmo sem uma ordem sequencial no sentido de que, invariavelmente, as partes teriam de procurar a solução do conflito por um dos meios previstos para, depois, passar a outros, como degraus de uma

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escada obrigatória, portanto, em sistema de composição dos conflitos como conjunto de técnicas de composição existentes em um ordenamento jurídico, utilizáveis de modo facultativo ou obrigatório na conformidade que lhe for atribuída pelas normas jurídicas.

A substituição da autodefesa pelo processo é descrita pelos processualistas como uma conquista do desenvolvimento cultural. Merece de Alcalá-Zamora y Castillo uma observação. A proibição da autodefesa, tal como existe nos ordenamentos jurídicos modernos, é o resultado de uma larga e trabalhosa evolução. Em associação primitiva, na qual não existisse acima dos indivíduos uma autoridade superior, capaz de decidir e de impor decisão, não se pode pensar para resolver os conflitos de interesses entre coassociados, a não ser em dois meios: ou no acordo voluntário entre dois interessados (contrato), destinado a estabelecer, amigavelmente, qual dos interesses opostos deve prevalecer, ou, quando não se chegasse a acordo voluntário, ao choque violento entre os interessados.

Na atual fase, ainda segundo a mesma fonte, desde que acima dos indivíduos, afirmou-se um princípio de autoridade, esta interveio primeiro para disciplinar ou para limitar; depois, para proibir, de um modo cada vez mais enérgico e absoluto, o uso da autodefesa, até chegar ao ponto mais extremo da evolução atual: o exercício da autodefesa considerado como delito.

4. O Juiz e a emoção

Dentre as questões abordadas pela Psicologia Judiciária e, de certo modo, por uma corrente da Filosofia Jurídica, o realismo jurídico, está a do Juiz e a Emoção na qual se procura saber ao proferir uma decisão o que é mais importante, a razão ou a emoção, ou se ambas caminham juntas, como nos parece.

Sobre o tema, um criterioso estudo é o de Lídia Reis de Almeida Prado, em O Juiz e a Emoção – Aspectos da Lógica da Decisão Judicial, no qual a autora, com a dupla condição de jurista e psicóloga, examina, para o nosso fim, os aspectos da lógica da decisão judicial. Concluiu que há evidências neste início de milênio de uma gradativa valorização da emoção junto com o pensamento na tomada de decisões. Esse fenômeno continua, pode ser entendido no contexto de um novo paradigma dentro de um padrão democrático, numa tentativa de dirimir a dissociação positivista e racionalista do passado. Cita Antônio Damásio, em O erro de Descartes, ao afirmar que o sentimento, a emoção e a regulação biológica são essenciais para a racionalidade, e aduziu que é incompleta a razão que existe

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sem nenhuma ligação com o sentimento, o que poderia comprometer a própria racionalidade ao desequilibrar a razão e a emoção.

Transcrevemos da autora o seguinte trecho:A sentença judicial, embora baseada no conhecimento jurídico, constitui uma decisão como outra qualquer. Por isso, como ocorre em outras áreas do saber, lentamente começa a se notar no direito a valorização da emoção no ato de decidir, sem ser desconsiderada a racionalidade.

E acrescenta: Existem prenúncios de novas configurações, novas imagens arquetípicas da justiça e do juiz, mais adequadas ao nosso tempo, que começam a se abrir para a sensibilidade. Penso não estar sendo irrealisticamente otimista ao acreditar que tais transformações estariam anunciando os primeiros sinais observáveis no Brasil neste momento histórico, de uma lenta e gradativa comunhão no ato de julgar entre pensamento e sentimento.

Muito há de verdade nas conclusões acima resumidas, e que só podem ser mais bem compreendidas com a leitura integral do livro da Professora Lídia Reis.

Penso que a emoção está presente em praticamente todos os atos decisórios da vida, porque é através dos sentidos que conseguimos conhecer os objetos da realidade que nos cerca e sei que, como Juiz que fui, pode haver sim a influência da emoção numa decisão judicial, entendendo-se por emoção um conjunto de aspectos que vão desde valores pessoais a influências ideológicas, desde o impulso de solidariedade a uma rejeição liminar de um ato que no passado já nos causou um impacto negativo.

Eu mesmo, num caso concreto, dispus-me a julgar por emoção para ajudar uma idosa desamparada, dispensada do serviço e sem outras opções de vida profissional. Ela estava com uns 55 anos de idade. Vivia da prostituição. Ganhava da gerência da casa uma ficha por “serviço”. A idade fez com que raramente fosse escolhida pelos clientes. As colegas solidarizaram-se com ela. No final do expediente cada colega lhe dava algumas fichas que eram por ela trocadas no “caixa” por dinheiro. Fiquei penalizado com a sua situação e me inclinei a decidir que havia uma relação de emprego entre ela e a “casa”, embora não fosse obrigada a lá comparecer só o fazendo por sua iniciativa.

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Deparei-me, no entanto, com um problema: o Juiz é obrigado a fundamentar a decisão por escrito. Ora, a fundamentação é jurídica com base no sistema normativo. Se eu fundamentasse a sentença nas verdadeiras razões de decidir, que eram de solidariedade humana e de ordem emocional, certamente a minha decisão seria reformada pelos tribunais que não aceitam uma decisão do juiz quando não tem suporte no sistema normativo e nos princípios jurídicos.

Ao interpretar as normas, o Juiz tem margem de discricionariedade, mas nunca a ponto de ser liberado da fundamentação da sentença ou do despacho. Essa exigência tem tamanha importância que se tornou preceito constitucional (Constituição Federal, art. 93, IX). A fundamentação consiste na exposição pelo Juiz dos motivos que o levaram a decidir da forma que o fez. Uma decisão sem fundamentação é nula. E não terá sustentabilidade se for uma fundamentação decorrente de motivos de ordem sentimental experimentados pelo Juiz. Existem limites impostos ao Juiz pelo Direito num sistema moderno e democrático. Instransponíveis para que a emoção se sobreponha à razão. A garantia das partes que litigam no processo está exatamente na fundamentação da decisão, pois é esta que vai proporcionar a rediscussão do tema nos tribunais, para reforma ou manutenção da sentença.

Miguel Reale afirma que o psicologismo jurídico é redutivista.O debate está aberto na Filosofia do Direito. A contribuição da Psicologia

poderá ser relevante.

5. §2º Relacionamento do magistrado com o advogado, as partes

e os servidores

Uma das questões de constantes divergências entre o Juiz e a Comissão de Defesa das Garantias do Advogado da Ordem dos Advogados é exatamente a do relacionamento entre magistrado e advogado, ambos na sua atividade jurídica.

Nas audiências surgem, às vezes, embates que nada lembram os padrões éticos que devem prevalecer. São às vezes dominados pela paixão dos advogados entre si, em outras vezes pela impaciência do Juiz perante os advogados diante do desentendimento entre as partes conflitantes.

Felizmente, esses casos não são em número elevado, mas deles é possível uma ideia mais concreta mediante um levantamento casuístico na Comissão de Defesa das Garantias do Advogado da OAB ou nas Corregedorias da Justiça do Trabalho, órgãos para os quais são encaminhadas as representações contra o magistrado por quem se sentiu pelo mesmo agravado.

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Nesses órgãos, em algumas raras situações, que não são a regra geral, é inevitável a influência de um sentimento corporativista na apreciação do comportamento do colega.

Na OAB a sanção praticada é uma sessão de desagravo designada pela entidade dos advogados na sua sede, na qual um dos advogados designados fala em nome da categoria para relatar o ocorrido e solidarizar com o ofendido, porém as decisões nos órgãos do Poder Judiciário em representações semelhantes são pouco conhecidas.

O certo é que existem algumas regras que devem ser seguidas por magistrados e advogados. São, primeiramente, as dos respectivos códigos de ética, nem sempre conhecidas, apesar da sua maior importância; depois as regras da Moral, indicativas do respeito ético que deve existir nesse relacionamento; em seguida o que eu chamaria de regras pessoais, que vão desde a formação educacional de cada um até a sua capacidade de controle dos instintos que eclodem do seu psiquismo quando contrariados por alguma coisa, controle esse que deve ser muito maior no magistrado, pela sua posição suprapartes. O magistrado que não tem essa capacidade de controle dos impulsos irrefletidos, às vezes até compreensíveis, não tem vocação para a magistratura. Esta foi feita para os com paciência, equilíbrio emocional, discernimento, altitude no sentido de se sobrepor aos embates que surgem na sua frente, mas que estão no chão, e não no teto das salas de audiência.

Confesso que, como advogado, já me descontrolei em uma audiência. Não me lembro de outra em que isso tenha ocorrido. O advogado, numa defesa insustentável para ele, tentava confundir a Juíza com perguntas desnecessárias, desvirtuantes da questão e com nítido propósito tumultuário. Não interferi até quando o limite do razoável tivesse sido pelo mesmo ultrapassado. Nessa altura dirigi-me diretamente ao meu opositor não o fazendo por meio da Juíza, porque achava que deveria defendê-la da postura indevida do advogado pelo qual ela estava sendo envolvida. Não fui ameno. Indevidamente exaltei-me – pelo que peço desculpas. A intervenção da Juíza foi a mais sábia possível. Em vez de me punir, pediu-me várias vezes o seguinte: “Paciência, Professor. Calma, Professor....” Foi o suficiente para que eu voltasse ao normal. O incidente terminou e a audiência também. Um Juiz arbitrário poderia ter tomado outra atitude mais rigorosa. Poderia, até mesmo, determinar intervenção policial, o que teria sido um desastre diante dos desdobramentos que daí decorreria, sem

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resolver o incidente. Foi sábia a Juíza que presidiu a audiência. Não recomendo que façam o que eu fiz, mas entendo se alguém o fez, e indico como melhor comportamento o da Juíza.

Todos nós, juízes e advogados, temos que apagar os incêndios da vida. Nosso dever é colaborar para o curso normal da atividade judiciária e das partes e manter um bom relacionamento entre dois sujeitos do triângulo judicial.

Quanto aos servidores, o maior contato do advogado com os mesmos é no cartório ou na secretaria para procura de processos, necessidade que decaiu de intensidade na medida em que os trâmites processuais foram informatizados.

Entre o Juiz e o seu servidor há uma relação hierárquica. Não é por isso que o Juiz não possa humanizar as suas relações com os serventuários.

Problemas atuais da Psicologia com reflexos no Direito.É clara a importância da Psicologia e seus reflexos no Direito.Os reflexos atingem mais de um ramo do Direito, em especial no Direito

de Família do Direito Civil, a ponto de Rodrigo da Cunha Pereira (Direito de família e psicanálise, in Psicanálise e Direito) afirmar que “o direito de família é a tentativa de organização das relações de afeto, do desejo e das relações econômicas aí envolvidas. E sobre as relações do Direito com a Psicanálise sustentar que talvez possamos dizer que o Direito, para a Psicanálise, seja mesmo uma avançada técnica de controle das pulsões”.

É que para conhecer a subjetividade do sujeito que atua no Direito temos que buscar ajuda em outros campos do conhecimento, regra válida para todo o intérprete do Direito, juízes, procuradores, professores e advogados. Ao interpretar, o intérprete parte de uma pré-interpretação que sofre a influência de toda a sua vida profissional marcada por episódios que ficam gravados em seu inconsciente e que podem levá-lo a uma racionalização diversificada do objeto interpretado, diferente de um para outro sujeito. Difere a intensidade concorrente no ato interpretativo dos seus gigantes da alma como a vaidade que o leva a não reconsiderar uma decisão, um memorial, um parecer, um pleito jurídico reconhecidamente equivocado segundo os padrões do Direito, o que o impede de voltar atrás para não se sentir ferido em sua personalidade, o ódio, a simpatia, a antipatia, a raiva, a infelicidade, a ansiedade e outros sentimentos, bem como não se excluem os distúrbios afetivos como a de pressão, as neuroses e o comportamento desajustado em geral.

A influência do psiquismo do Juiz na sentença é tema que já foi estudado, entre outros, por Lídia Reis de Almeida Prado, em O juiz e a emoção nos seus

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variados aspectos: o papel criador do Juiz; as conquistas na construção de uma nova compreensão do Direito; a influência das características psicológicas do Juiz na sentença segundo Recaséns Sichez, Joaquim Dualde, Jerome Frank, Miguel Reale e Renato Nalini, o arquétipo do Juiz e o arquétipo da Justiça.

Por arquétipo entende-se uma potencialidade inata de pensar, sentir ou agir, que se transforma, na medida em que a consciência do ego se modifica no decorrer da história. O arquétipo, ensina a autora, têm dois pólos, o homem que reage arquetipicamente a alguma coisa ou a alguém quando se defronta com uma situação recorrente e típica e outro sujeito, como o Juiz e o infrator que está sendo julgado, surgindo nessa relação uma tensão entre essas polaridades.

6. Teoria psicológica do conflito

Se uma reivindicação do trabalhador é resistida pelo empregador contra o qual é dirigida, surge um conflito de trabalho. O vocábulo conflito, de conflictus, que significa combater, lutar, designa posições antagônicas. Outra palavra usada é controvérsia. Segundo a teoria, surge uma controvérsia quando alguém pretende a tutela do seu interesse, relativa à prestação do trabalho ou seu regulamento, em contraste com interesses de outrem e quando este se opõe mediante a lesão de um interesse ou mediante a contestação da pretensão, mas é possível dizer que o conflito trabalhista é toda oposição ocasional de interesses, pretensões ou atitudes entre um ou vários empresários, de uma parte, e um ou mais trabalhadores a seu serviço, por outro lado, sempre que se origine do trabalho e uma parte pretenda solução coativa sobre outra.

Os sociólogos dividem-se quanto ao estudo da sociedade e dos conflitos. A sociologia dos conflitos sustenta a natureza conflitante dos grupos sociais e a consequente impossibilidade da sua integração como modo natural do desenvolvimento dos movimentos sociais e outra teoria, a sociologia da integração, afirma que há um caráter integrativo dos conjuntos sociais, não obstante a sua oposição, sendo possível uma ordem social sem conflitos.

Na infinidade de grupos existentes na sociedade, há diversos fatores que atuam nestes e nas relações com outros grupos, como a solidariedade de interesses materiais e espirituais, a interação, o predomínio dos laços de aproximação sobre os motivos de afastamento, a consciência comum unificante, a uniformidade de sentimentos, de modo que o que ocorre dentro de um grupo pode, também, suceder nas relações entre as pessoas e entre os grupos.

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O trabalho é um traço instituidor de um grupo como a atividade econômica comum é outro. Os trabalhadores, como classe social, podem ter interesses contrapostos aos dos empregadores, como segmento. O conflito de classes existe. Mas a possibilidade de convivência, apesar da contraposição de interesses, também. A experiência demonstra a impossibilidade de eliminação de classes sociais. Basta haver de um lado governantes e, de outro lado, governados para que duas classes sociais coexistam.

Conflitos trabalhistas, como são denominados aqueles que existem entre os trabalhadores e os empregadores, eclodem em um conjunto de circunstâncias fáticas, econômicas e outras, como a insatisfação com a própria condição, pessoal, social ou profissional.

O conflito não é apenas a insatisfação com as condições de trabalho, mas, também, a exteriorização dessa insatisfação, expressada como ruptura com o modelo jurídico pondo em crise a relação de trabalho.

A ruptura não observa uma unidade de forma e, às vezes, tem a máxima evidência, como na greve; outras vezes, a exteriorização é mínima, como o pleito de novas condições de trabalho visando à negociação. Há conflitos pacíficos e violentos. O encaminhamento de um dos dois modos depende de uma série de fatores, não só dos trabalhadores como a ideologia de um grupo sindical, como dos empregadores com a sua política mais aberta ou fechada de receptividade ao diálogo e sensibilidade diante dos problemas do trabalhador.

Assim, há aqueles que só acreditam no conflito como meio de exteriorizar insatisfações e outros que não participam dessa convicção.

O conflito leva à reformulação, embora não seja a única forma de reformular e em sua base está também um problema de produção de novos modelos jurídicos, de estruturas normativas como unidades integrantes de um conjunto fático-axiológico (Reale). A tensão de novos fatos e novas exigências rompe uma determinada ordem que nunca se mantém imutável em um movimento normativo contínuo de destruição e reconstrução em que se desenvolve dialeticamente o direito e que não se completaria sem um ato decisório, entendido como a manifestação da qual resulta a escolha, dentre várias opções, a que for eleita, ou por imposição de um poder institucionalmente constituído ou contratualmente assim investido, ou por convergência de consentimento entre os conflitantes no exercício da autonomia da vontade ou por submissão de uma parte às pressões ou maior organização da outra.

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Sendo assim, o conflito não é apenas um fenômeno de dimensões sociológicas, mas, também, um fato jurídico estruturado em conjunto com instrumentos criados pela cultura jurídica dos povos e incluídos nos seus sistemas de organização normativa da sociedade, indispensáveis para o equilíbrio da vida na sociedade e nas relações entre as pessoas e os grupos.

As empresas podem evitar processos judiciais na medida em que passem a usar mais e melhor as técnicas da Psicologia aplicadas às relações de trabalho que nelas se desenvolvem.

Lembro-me de um caso que me foi trazido por uma colega, professora de Faculdade de Assistência Social. Um empregado era problemático. Criava casos desnecessários e a empresa pretendia despedi-lo, mas queria saber como deveria fazer para garantir-se contra o processo judicial. O empregado tinha por volta de 50 anos, fazia a faxina das instalações sanitárias e ganhava pouco. Li a sua Carteira de Trabalho e a sua função nela registrada: faxineiro.

Sugeri que a empresa alterasse a anotação da sua função registrada na Carteira de Trabalho para Responsável pela Higiene do local e desse um pequeno aumento de salário. Nem cogitei de saber se o nome sugerido para a mesma função constava do Código Brasileiro de Ocupações. O que queríamos era solucionar um problema. Minha sugestão foi aceita pela empresa. Deu certo: um processo judicial a menos para a Justiça do Trabalho.

A Teoria Psicológica estuda o conflito numa dimensão mais ampla da que é considerada pelo Direito ao examinar os aspectos psicossociais do conflito, as concepções psicanalíticas, conflito e consciência, conflito e conduta, conflito intrassubjetivo e intersubjetivo, o ego diante do conflito e tantos outros temas da maior relevância para a correta compreensão do tema.

Davidoff, em Introdução à Psicanálise, mostra que a escolha de uma opção em detrimento de outra causa a frustração, contribuindo para a decisão fatores como o vigor dos conflitos, porque as metas despertadas por motivos fortes exercem mais atração do que as que são excitadas por motivos fracos, à distância no tempo e espaço das opções porque uma meta atrativa torna-se mais forte à medida que a data do acontecimento se aproxima e as expectativas a respeito das opções em conflito.

Sustenta que sob o prisma da Psicologia, frustração, conflito e outras tensões estão associados a estados emocionais desagradáveis como a ansiedade e a raiva. Quando as pessoas se controlam respondem de um modo que lhes permita evitar, escapar ou reduzir sua aflição ao tratar de um determinado

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problema. Nossas decisões podem ser tomadas conscientemente ou sem o percebermos.

Concluo que as causas dos conflitos não se identificam no plano da Psicologia e do Direito. Neste as motivações que levam as pessoas ao conflito são principalmente econômicas e morais, naquela as excitações que geram o conflito são de ordem emocional. É possível que ambas as causas atuem em conjunto, mas o que interessa à Psicologia são as reações subjetivo-psicológicas das pessoas, o que difere do que interessa ao Direito. Este, no entanto, pode valer-se com proveito dos conhecimentos da Psicologia, notadamente nos conflito individuais, mais dificilmente nos conflitos coletivos nos quais além das causas mencionadas pode ser acrescentada outra, a motivação política.

Outro tema da Psicologia Forense é o estudo da expressão dos sentimentos e reações das partes em conflito.

7. Código de Ética da Magistratura Nacional

Ética é um dever de todos os que vivem numa sociedade civilizada, na medida em que o seu fim é a criação de normas morais que devem inspirar o comportamento das pessoas e permitir uma convivência saudável, de modo espontâneo, já que as normas morais, ao contrário das jurídicas, são destituídas de coação.

A magistratura nacional, fiel a essas premissas e reconhecendo a importância da ética, elaborou um código denominado Código de Ética da Magistratura Nacional (2008), aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça, que considerou a adoção desse código necessária como instrumento essencial para os juízes incrementarem a confiança da sociedade em sua autoridade moral. Cultivar os princípios é, pois, uma função educativa e exemplar de cidadania em face dos demais grupos sociais. O magistrado não pode ter um “procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções” e é seu dever “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular”.

O código dispõe sobre transparência, imparcialidade, integridade pessoal e profissional, independência, diligência e dedicação, cortesia, prudência, sigilo profissional, dignidade, honra e decoro. Cada um desses itens têm dispositivos específicos no código, dos quais salientaremos apenas alguns.

Primeiro, a transparência como dever do magistrado de sempre que possível dar publicidade aos seus atos, salvo nos casos de sigilo contemplado em lei. Deve comportar-se de forma prudente em relação aos meios de comunicação social,

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abstendo-se de emitir opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos, sentenças ou acórdãos, ressalvada a crítica nos autos, a crítica doutrinária e a do exercício de magistério.

Segundo, a imparcialidade que o obriga à procura da verdade dos fatos mostrados pela prova e evitando todo o tipo de comportamento de favoritismo, predisposição ou preconceito.

Terceiro, a integridade pessoal e profissional também fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional como meio de inspirar confiança nos jurisdicionados, sendo que para esse fim na sua vida privada deve comportar-se de modo a dignificar a função.

Quarto, a independência, o que significa que o único poderoso para o Juiz deve ser o titular do direito e a única pressão que deve sofrer é a arterial (Homero Diniz Gonçalves, ex-presidente do TRT de São Paulo).

Quinto, a diligência e a dedicação, zelando pela celeridade, rejeitando iniciativas dilatórias e protelação processual.

Sexto, a cortesia, para com os colegas, os membros do Ministério Público, os advogados, os servidores, as partes, as testemunhas e todos quantos se relacionem com a administração da justiça, utilizando-se de linguagem polida, respeitosa e compreensiva.

Sétimo, a prudência, que é a busca de comportamento e decisões que resultem de um juízo justificado racionalmente após meditação e valoração dos argumentos e contra-argumentos, sem deixar de considerar as consequências que as suas decisões podem provocar.

Oitavo, o Sigilo Profissional, obrigando-se a manter absoluta reserva sobre os dados ou fatos pessoais de que haja tomado conhecimento na sua atividade, bem como o sigilo dos seus votos.

Nono, o Conhecimento e a Capacitação, que têm como fundamento o direito dos jurisdicionados e da sociedade em geral à obtenção de um serviço de qualidade na administração da justiça, bem como a obrigação de formação contínua, mediante o estudo constante.

Décimo, Dignidade, Honra e Decoro vedado procedimento incompatível com a dignidade, a honra de suas funções, o exercício de atividade empresarial, salvo se acionista ou cotista e desde que não exerça o controle ou gerência.

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AS DuAS DEMORAS DA JuSTIçA

José Ernesto Lima GonçalvesProfessor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV

Consultor da Fundação Getulio VargasCoordenador de projetos de consultoria para a modernização dos Tribunais

(TJSP, TRT 2a Região, TRT 12a Região, TRE-SP e TST)

1. Introdução

Muito se fala da demora da Justiça, que corresponde à espera pela decisão nos processos judiciais. Mas existe uma segunda espera muito importante, pois também gera insatisfação de quem precisa recorrer aos locais físicos onde estão instaladas as unidades judiciárias. Muito da imagem que é transmitida ou percebida pelo público com relação à Justiça decorre exatamente desta segunda demora e está associada a um atendimento muitas vezes prestado sem padronização geral do serviço ou mesmo preparo técnico específico para o atendimento das solicitações do público.

Em qualquer instituição de prestação de serviços, inclusive nos tribunais, existem dois tipos de esperas por parte do público, bastante independentes entre si: o tempo transcorrido para a execução das providências indispensáveis para a efetivação do serviço solicitado e o tempo transcorrido para o atendimento presencial a cada vez que as pessoas comparecem aos locais físicos da instituição, seja para solicitar o serviço, para acompanhar o andamento das providências ou para receber o que foi solicitado.

Partindo do princípio de que o público é a razão de existir de qualquer instituição prestadora de serviço e, portanto, a razão dos tribunais existirem, é razoável que essas instituições se preocupem em melhorar a forma de atender a esse público. O assunto é do interesse de todos os tribunais.

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A primeira demora da Justiça refere-se à execução das atividades, em geral de retaguarda, quando um número muito grande de etapas deve ser cumprido, distante fisicamente e independente da presença física do seu solicitante.

A realização dessas atividades envolve os deslocamentos de documentos e de informações internamente pela estrutura da organização, a participação de diversas pessoas e equipes e muitas vezes depende de trâmites e respostas externas à organização.

Essa primeira demora, que chamamos de demora do processo de trabalho, ocorre sempre que as atividades necessárias para o atendimento forem executadas, seja no restaurante, seja no hospital, seja na oficina mecânica. No caso dos tribunais, ela ocorre principalmente nos cartórios e deve ser analisada para que sejam apresentadas soluções que otimizem o funcionamento do processo de trabalho para a diminuição do tempo total desse processo de trabalho1, ou seja, do trâmite do processo judicial. Este tipo de demora tem sido objeto da atenção dos projetos de redesenho dos processos de trabalho que, atualmente, estão sendo realizados nos órgãos públicos e nas empresas privadas.2

Essa demora não é claramente entendida pelo público que sente os seus reflexos e consequências, mas não tem contato direto com os mecanismos internos da Justiça nem com as pessoas que a representam. Essa demora é interna, invisível, com motivos muitas vezes imperceptíveis pelo público.

Aliás, a percepção da demora, a provável distinção entre a espera tolerável e a espera inaceitável pela execução das tarefas, certamente tem relação com a informação disponível a quem espera a respeito das atividades a serem realizadas e do tempo de duração previsto para a execução dessas atividades.

Já a segunda demora da Justiça ocorre em cada uma das diversas vezes que as pessoas se dirigem às unidades judiciárias.

No caso do Tribunal3, o público enfrenta esperas quando comparece às audiências, para entregar documentos solicitados, para acompanhar o

1 A duração total do processo de trabalho corresponde ao “tempo de ciclo”, que é a demora percebida pelo cliente.2 A abordagem conceitual do assunto pode ser encontrada nos artigos “As empresas são grandes coleções de processos” e “Processo, que processo ?”, publicados na Revista de Administração de Empresas, São Paulo, 2000.3 Neste documento, Tribunal se refere ao conjunto integrado das unidades judiciárias que atuam numa dada jurisdição. Assim, o Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região corresponde, para efeito desta discussão, ao conjunto formado pelas 1a e 2a Instâncias da Justiça Trabalhista na região da Grande São Paulo e Baixada Santista, mais a correspondente área administrativa.

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andamento do processo judicial ou para conhecer os resultados do processo. O público também espera pelo atendimento às solicitações em situações

que não têm relação obrigatória com o andamento de processos judiciais, como, por exemplo, para receber as certidões que solicitou, para obter as autorizações de viagem ou para casamento de menor. Podemos dizer que o solicitante dos serviços percebe demora quando perde tempo indo de um local a outro, quando as providências poderiam ser tomadas todas no mesmo local. Esta segunda demora geralmente ocorre fora dos cartórios judiciais, principalmente nos corredores dos fóruns. Este artigo se concentra na segunda demora da Justiça.

2. Os elementos do atendimento ao público

A abordagem da demora no atendimento ao público que comparece às unidades onde os serviços são prestados exige falar sobre:4 as filas de pessoas em espera e o tratamento dessas filas; a entrega efetiva do serviço frente à expectativa do usuário sobre o retorno da sua solicitação; a acomodação física das pessoas para a espera do atendimento e outros itens ligados ao conforto do público; as alternativas para solicitação e recebimento do serviço, que possam dispensar ou simplificar o comparecimento pessoal; e a informação prestada ao usuário quando ele solicita um serviço.

A segunda demora tem relação com a necessidade de orientação do público leigo que se apresenta às unidades judiciárias, sobre como proceder, para onde se dirigir, que documentação preparar e apresentar em cada situação.

Os estudos de otimização de rotinas e de redesenho de processos de trabalho são muito utilizados para aperfeiçoar a lógica da execução das tarefas necessárias, mas não costumam levar em consideração as demoras para que o interessado seja atendido, para ele receber uma resposta correta para a pergunta que faz em cada local por onde passa ou para resolver o que o fez se dirigir até o local indicado. Muitas vezes também não levam em conta o deslocamento do cliente de um local a outro para que possa percorrer todas as estações envolvidas no processo de atendimento.5

4 Para tratamento mais sistemático e completo do assunto, referir-se a GONÇALVES, José Ernesto Lima (coordenador) Atendimento ao Público na Prestação de Serviços, Cadernos FGV Projetos no 5, Fundação Getulio Vargas, 2007.5 O fluxo de atendimento, chamado de “caminho do cidadão”, corresponde ao trajeto que o público realiza, desde que ele apresenta uma necessidade, passando por todos os pontos de atendimento, até a realização completa de todas as etapas para o atendimento da sua solicitação.

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A segunda demora da Justiça pode ter impacto muito menor no desconforto do cidadão, já que depende diretamente de ações que podem ser planejadas pela Justiça. As medidas que devem ser tomadas referem-se à padronização do atendimento, à preocupação com o conforto das pessoas e à utilização de conceitos de orientação especializada e informações uniformes, com a introdução de conceitos de:

a) triagens específicas das pessoas para os serviços prestados;b) divulgação da informação sobre as condições e requisitos a serem preenchidos,

documentos a serem oferecidos, locais e prazos de solicitação e de entrega;c) esclarecimento de dúvidas do público, tanto no local de prestação do

serviço como por meio dos diversos canais de comunicação; ed) utilização de linguagem clara, objetiva e simples que atinja todos os

níveis de conhecimento que o público possa ter com relação aos serviços prestados pelos tribunais.

As diferentes demandas do público devem ser analisadas e o seu atendimento deve ser planejado. O Tribunal precisa ter procedimentos únicos, homogêneos e padronizados para o tratamento dessas demandas. Os assuntos da Justiça, assim como o de outras prestadoras de serviço público ou privado, têm e devem ter um padrão de funcionamento, uma lógica de operação, uma sequência de atividades, segundo regras e critérios da Instituição para o atendimento das necessidades do seu público-cliente. Esse conjunto de definições deve ser adequado às necessidades, possibilidades e expectativas desse público.

Uma das formas de se olhar para uma instituição é através dos serviços prestados por ela ao seu público. Esse público não deve precisar entender nada da estrutura e da organização da instituição para poder ser bem atendido nas suas demandas. Esta abordagem reforça a importância do pessoal de linha de frente, que é quem recebe o público diretamente.

Para que o serviço seja realizado existem regras e deveres dos dois lados, do público-cliente e da Instituição. Essas regras devem ser claras e conhecidas, bem como devem ser criados mecanismos para divulgá-las, seja em forma de sinalização, folhetos, Internet, telefone, equipamentos de auto-atendimento ou outros meios. Mas, o imprescindível é que elas sejam do conhecimento do público que solicita os serviços nessa Instituição.

O público tem contato direto com os tribunais durante a prestação de serviços jurisdicionais em diversos momentos ao longo do andamento do processo judicial:

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a) o interessado busca orientação inicial para uma situação específica da sua vida que demanda uma solução judicial;

b) o interessado toma as providências iniciais que foram solicitadas pelo Poder Judiciário;

c) o interessado participa de ações intermediárias de todo o tipo (audiências, conciliações, apresentação de documentos ao longo do processo etc);

d) o interessado obtém informações sobre o andamento das providências solicitadas;

e) e o interessado recebe o resultado final, conforme solicitado inicialmente. O público também entra em contato com as unidades judiciárias quando

precisa de algum das outras dezenas de serviços prestados pelo Tribunal e que não tem necessariamente relação com processos judiciais: a obtenção de autorizações de viagem, de certidões de vários tipos, de definições sobre pensão alimentícia ou de informações sobre tempo restante de pena a ser cumprida.6 Em cada uma dessas situações, ocorre a relação cliente-prestador de serviço e a oportunidade de ser aperfeiçoado o atendimento ao público.

Desta forma, fica muito ampliado o conceito de serviço nos tribunais, que vai muito além da tramitação do processo judicial. A imagem do Tribunal depende de muitos outros aspectos, além da demora na obtenção de uma resposta na tramitação do processo e é responsabilidade da administração da Instituição tomar todas as providências que forem necessárias para aperfeiçoar os demais serviços oferecidos.

Uma pergunta que sempre pode ser feita aos servidores públicos envolvidos nessas situações é com relação à atenção que tem sido dada à qualidade do atendimento ao público. Trata-se de questão de resposta difícil pelo simples fato de que, na maioria dos órgãos públicos, não existe propriamente familiaridade com o assunto, o que leva a que ele dificilmente tenha alguma importância ou que receba alguma prioridade por parte da administração. Na maioria das vezes, o que se vê são iniciativas pontuais, fruto da boa vontade e da improvisação, de pouquíssima eficácia. É difícil até mesmo obter dados estatísticos básicos sobre o atendimento prestado.

Provavelmente é impossível de eliminar a segunda demora da Justiça, como não se pode pretender eliminar a primeira. Mas é possível, sim, procurar reduzir essa demora e o desconforto que ela causa e este é o desafio presente.

6 Um levantamento realizado em 2007 no Tribunal de Justiça de São Paulo identificou mais de 80 serviços deste tipo prestados pelo Tribunal.

252 Revista ENM

3. Os tipos de atendimento ao público

O atendimento ao público pode ser presencial, remoto ou por autosserviço. Cada uma dessas alternativas se aplica melhor a determinados serviços jurisdicionais e conforme o perfil do público ou especialidade do processo judicial, como no caso das atividades que exigem a presença física do interessado ou da emissão de certidões, que pode ser feita por autosserviço.

A utilização maior ou diferente de recursos de informática para a integração dos interessados ao processo de trabalho deverá provocar profundas mudanças, por exemplo, no padrão de comparecimento do público, no andamento dos processos judiciais e em outros serviços a serem identificados na etapa de revisão dos processos de trabalho do Tribunal.

Um número grande de demandas que poderiam ser resolvidas de forma remota acaba congestionando o atendimento presencial, que deveria ser focado nas demandas que não têm como ser atendidas sem a presença do envolvido. Deve-se considerar que o comparecimento do público quando não estritamente necessário provoca a necessidade de destinar espaço físico, deslocar servidores para o atendimento e se preocupar com todos os aspectos relativos ao conforto e à segurança de quem comparece. Esse deslocamento de recursos termina por comprometer a execução de todos os serviços em execução na unidade.

O agendamento do atendimento é uma técnica bastante utilizada, para no caso de solicitação de serviços que requeiram a presença do interessado e não tenham caráter de urgência A opção pelo autosserviço é cada vez mais comum a todos os que operam com bancos e pode ser oferecida, quando possível, nos casos que não dependam de análise para decisões para o atendimento.

Como exemplos de serviços em que o público desnecessariamente entra em contato direto com os locais de atendimento presencial temos: dúvidas sobre recebimento de direitos trabalhistas, cálculos de direitos trabalhistas, atermação de processo trabalhista, tirar dúvidas sobre a forma de conduta em uma audiência para a qual foi intimado, solicitação de pedido de alimentos, solicitação de uma certidão cível, orientação sobre a forma e viabilidade de adoção de uma criança, denúncia de maus tratos de menor etc. Muitas dessas atividades poderiam ser resolvidas satisfatoriamente sem o comparecimento do público nas unidades judiciárias.

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O grande desafio de oferecer a orientação e a informação é estar perto dos locais onde o público precisa de ajuda. É também entender a solicitação e a linguagem desse público, de forma a auxiliá-lo para a solução correta da sua solicitação, sem necessidade de idas e vindas desnecessárias.

Um dos mais importantes parâmetros para o aperfeiçoamento do atendi mento corresponde ao volume de público a ser atendido: soluções aceitáveis para atender a pequeno número de pessoas muito dificilmente será a solução adequada para grandes volumes de público. Precisamos lembrar que o número de pessoas atendidas numa Vara Judicial pode variar de algumas por dia a várias centenas no mesmo período. A unidade de emissão de certidões da Comarca de São Paulo, por exemplo, atende entre 1.200 e 1.400 pessoas por dia e emite aproximadamente 2.400 certidões por dia. Todas as características dessa unidade, equipe, recursos de informática, lay-out, lógica de atendimento, procedimentos, tudo precisa ser muito específico e diferente das de uma unidade que atenda a apenas algumas pessoas por dia.

Quando se trata de unidades judiciais que recebem quantidades muito grandes de solicitações de todos os tipos, são necessárias soluções adequadas para o tratamento de volumes industriais. Em certos tribunais, temos varas com 10.000 a 150.000 processos judiciais cada uma, milhares de certidões emitidas por dia e milhares de pessoas interessadas em licenças, negociação de pensão alimentícia. Nestas circunstâncias, é impossível obter tempos de espera razoavelmente pequenos com técnicas e processos de trabalho típicos de unidades judiciais pequenas.7

4. Como aperfeiçoar o atendimento ao público

Algumas ações concretas podem ser adotadas para otimizar o atendimento ao público, diminuindo, portanto, a demora do atendimento, especialmente o presencial, nos tribunais:8

Possibilitar que vários serviços do Judiciário possam oferecer informações e/ou receber solicitações nos mesmos espaços, facilitando a compreensão e a movimentação do público nos Fóruns;9

7 Quanto mais oferecer, de forma contínua e consistente, tempo de razoável duração do processo, como prevê a Constituição Federal, em função da EC 45 de 2004. 8 O caso mais marcante de aplicação destas ações é o do Poupatempo, do Governo de São Paulo, que se tornou padrão e referência no assunto, graças aos resultados alcançados.9 A ideia é aplicar intensamente o conceito do single point of contact.

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Permitir que a requisição de um serviço ou informação, sempre que possível, possa ser feita em qualquer Fórum, sem vinculação ao local de início do processo ou de local de moradia do público solicitante;

Orientar a criação de alternativas de atendimento para aqueles serviços, ou etapas de serviços, que não necessitem do atendimento presencial, podendo ter como opções o atendimento via telefone, Internet ou autoatendimento. A ênfase fica colocada, desta forma, em melhorar ao máximo possível as condições de interação pessoal quando ela for necessária e indispensável; promover a uniformidade de conhecimento sobre os serviços do Tribunal, tanto para o público como para seus servidores; orientar a criação de estrutura própria para a gestão e manutenção da prestação do serviço, envolvendo a manutenção constante da infraestrutura, da capacitação dos servidores e da divulgação da informação; consolidar o conhecimento das necessidades e características do seu público como base para a melhora no atendimento; criar as unidades executoras das tarefas internas não relacionadas ao processo de trabalho e, que aparentemente não são voltadas ao público, mas que fazem parte do suporte ao atendimento.

Outros pontos que devem ser observados na prestação de serviço para simplificar o funcionamento das unidades de atendimento e diminuir a demora pelo resultado:10 obedecer aos critérios da simplicidade, objetividade e segurança das informações prestadas ao público a respeito dos serviços prestados; acolher, orientar e informar o público sobre os requisitos necessários para a obtenção dos serviços disponíveis; diversificar a forma de prestação de informações, utilizando-se de todas as ferramentas novas (totens, Internet, etc.) ou antigas (faixas, cartazes, sinalização interna, etc); dar atendimento sem privilégios e sem discriminação, buscando adequação do horário de atendimento às necessidades do seu público; ampliar a divulgação, o conhecimento e o acesso do público às informações e aos serviços do Judiciário de forma clara, com vocabulário acessível; tornar polivalentes o atendimento e os atendentes, sempre buscando oferecer maior responsabilidade, informação e capacitação para as pessoas que realizam as atividades que envolvem a entrega do serviço ao público; e implantar padrão único para a prestação do serviço e atendimento ao público nas diversas Unidades do Tribunal.11

10 Ver GONÇALVES, José Ernesto Lima (coordenador) Atendimento ao Público na Prestação de Serviços, Cadernos FGV Projetos no 5, Fundação Getulio Vargas, 2007.11 O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, adotou o padrão do Poupatempo como referência para a prestação de serviços nas suas unidades judiciais.

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5. O tratamento das filas de espera

Outro aspecto da segunda demora, que pode ser um dos fatores que definem a imagem de um local de atendimento, é a fila de espera para o atendimento.

As filas de espera acontecem todas as vezes que o número de pessoas interessadas no serviço é maior do que a capacidade de atendimento no mesmo período de tempo. Elas são observadas em praticamente todas as instalações judiciárias, em todos os períodos do dia. Imaginando-se que as chegadas sejam aleatórias e que o ritmo médio de atendimento seja da mesma ordem de grandeza, corre-se o risco de termos filas infinitamente crescentes. Algumas características não intuitivas do funcionamento das filas de espera fazem com que o tratamento adequado do assunto requeira o apoio técnico de especialistas.12

A fila de espera deve ter tratamento específico em função do local, dos tipos de serviços prestados e do perfil de público. Temos observado o comportamento das filas e desenvolvido tratamentos específicos há mais de dez anos e percebemos que a avaliação que o público faz do tempo de espera, seja ele curto ou longo, depende muito da percepção e da expectativa de cada indivíduo. Por sua vez, a expectativa das pessoas depende muito da informação recebida a respeito dos prazos e condições de espera considerados mais frequentes.

Alguns pontos de desconforto na fila de espera, além do tempo de espera propriamente dito, são: a falta de informação sobre o tempo de espera estimado e sobre o que está acontecendo com o atendimento; a falta de alternativas para a espera, como por exemplo, poder sair do local e voltar mais tarde com a garantia do atendimento; a falta de regras claras, abrangentes e adequadas para o funcionamento da fila e para o atendimento de quem está em espera; a falta de instalações e de infraestrutura adequadas para a espera, com informações constantes, entretenimento (leitura, programas de vídeo etc).

Alguns fatores podem colaborar de maneira eficaz para mitigar o desconforto da espera nos locais de volumosa presença de público. É fácil de imaginar que as varas de Infância e Juventude sejam corriqueiramente visitadas por senhoras com crianças de colo e que bancos e sanitários disponíveis sejam necessidades usuais. Na mesma sequência de raciocínio, pode-se supor que é obrigatório que os detidos e apenados que tenham que comparecer às varas criminais para depoimento não se desloquem pelo meio do público presente nos corredores.

12 Ver, por exemplo, FITZSIMMONS, James e outro Administração de serviços, Bookman, Porto Alegre, 2004

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A análise da distribuição das chegadas do público ao longo dia pode sugerir alterações substanciais na distribuição do pessoal encarregado do atendimento. Esta técnica, chamada de alocação dinâmica de recursos, reforça a linha de frente nos períodos de maior afluxo de pessoas e redireciona esses recursos para a retaguarda ou para outras tarefas nos demais períodos do dia.

É comum encontrar unidades judiciais que não possuem registro nem conhecimento do número de pessoas que as procuram a cada dia. Nestas condições, é de se imaginar que não são tomadas providências objetivas para adequar o tratamento dado à quantidade das pessoas que comparecem.

6. Providências que estão sendo tomadas

Uma das maiores dificuldades para a efetiva redução da segunda demora reside na resistência, previsível e observada por parte dos responsáveis, pelas decisões que poderiam levar a novas e melhores situações. O aperfeiçoamento do atendimento ao público e a perceptível redução da segunda espera dependem da mudança de hábitos dos servidores, da troca de procedimentos tradicionais, do redirecionamento de recursos de todos os tipos e da requalificação do quadro de servidores. Não são atividades de fácil implementação e não bastam ordens internas e outros mecanismos puramente burocráticos.

Ainda assim, o Poder Judiciário tem realizado ações específicas com o objetivo de melhorar o atendimento ao público, além dos esforços estruturais destinados a fazer com que ele possa funcionar melhor e mais rapidamente. Modificações realizadas pelos tribunais regionais do Trabalho na interface com seus usuários e a criação de juizados virtuais pela Justiça Federal são iniciativas concretas que já estão surtindo efeito.

A importância da segunda demora da Justiça já é percebida em diversos grupos de pessoas e provocou a alteração do escopo do contrato do Tribunal de Justiça de São Paulo com a FGV no início de 2006 para incluir o foco no atendimento ao público, já que é conhecida a necessidade de atender às necessidades e situações específicas de vida do público que procura as unidades judiciais e, portanto, não é só a celeridade no trâmite processual que deve ser considerada nos estudos de novas maneiras de trabalhar para prestar os serviços jurisdicionais.

Durante a execução do projeto de aperfeiçoamento do atendimento público, foi estimado que os 660 edifícios utilizados pelo Tribunal de Justiça

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de São Paulo recebem aproximadamente 90 milhões de visitantes todos os anos. Estão incluídos nesta estimativa tanto o público profissional como o público comum. O público profissional, formado pelos advogados e auxiliares, conhece o funcionamento do Tribunal e está familiarizado com as rotinas do órgão. Já o público comum, leigo nesses assuntos, necessita de informações básicas sobre todos os aspectos do funcionamento do Tribunal e geralmente está constrangido e desorientado quando comparece.

Com o aperfeiçoamento dos processos de trabalho e a observação sistemática dos resultados obtidos em termos de atendimento ao público, é possível ir melhorando a previsibilidade da hora do atendimento, se cumpridas as exigências do procedimento. Quanto melhor for o conhecimento sobre o funcionamento dos processos de trabalho relativos aos serviços prestados, menor é a ansiedade do público e dos próprios servidores, o que leva à redução do stress dos servidores, da ansiedade do cidadão e da consequente pressão sobre o servidor e ao controle da gestão sobre o servidor.

O aperfeiçoamento do funcionamento dos tribunais, sob o ponto de vista que está sendo discutido neste documento, virá com a redução substancial das duas demoras aqui mencionadas. A adoção de indicadores de desempenho institucionais, como técnica básica para a gestão dos tribunais, poderá ajudar cada um deles a acompanhar a evolução da sua melhora no tocante a este aspecto, entre outros. Esses indicadores de desempenho podem servir como base para a tomada de decisão para possibilitar expressiva melhora nos resultados dos órgãos públicos, pois o seu emprego permite o monitoramento das áreas críticas de resultado.13

Para o Tribunal de Justiça de São Paulo foi desenvolvido um Modelo de Atendi-mento ao Público14 que está sendo implantado gradativamente nas suas unidades judiciárias. Um dos resultados esperados é a diminuição dessa segunda demora.15

13 Para maiores detalhes ver GONÇALVES, José Ernesto Lima e outro A utilização de indicadores de desempenho para tomada de decisão em órgãos públicos prestadores de serviços in GONÇALVES, José Ernesto Lima (coordenador) A construção do novo Tribunal de Justiça de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 200714 Este modelo está apresentado de forma detalhada em GONÇALVES, José Ernesto Lima (coordenador) A construção do novo Tribunal de Justiça de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 200715 Artigo baseado no documento As duas demoras da Justiça, de autoria dos Prof. José Ernesto Lima Gonçalves e Vera Lucia de Oliveira, consultores da Fundação Getulio Vargas, publicado em Buscando uma nova organização judiciária, Documento Técnico 1, 2007

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AuTONOMIA FINANCEIRA DOS TRIBuNAIS E GESTãO ORçAMENTáRIA EFICIENTE – ExIGêNCIA CONSTITuCIONAL

Luiz Felipe Siegert SchuchMestre em Ciência Jurídica. Pós-graduado pela Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina. Professor da Escola Superior da Magistratura e da Academia Judicial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Professor convidado do Curso de Pós-Graduação da Fundação universidade Regional de Blumenau. Juiz de Direito. Autor das obras “Acesso à Justiça e Autonomia Financeira do Poder Judiciário: a quarta onda?” e “Dano Moral Imoral: o abuso à luz da doutrina e jurisprudência”

1. Considerações preliminares – As reformas constitucionais e o

novo Judiciário

Vivemos em tempos de reformas sociais, políticas e institucionais.Encontramo-nos no epicentro de um processo acelerado de mutações na

história da humanidade. A globalização das informações, das culturas e dos mercados financeiros

se processa de forma real e “virtual”, na velocidade de um simples toque no teclado de um computador. Para onde estamos indo? Quais os produtos e subprodutos das modificações que hoje estamos a introduzir nas estruturas da sociedade? Qual o nosso legado para as gerações que virão?

No Brasil, se é certo afirmar a existência de um processo contínuo de mudanças político-econômicas e institucionais, não menos certo é advertir que eventuais alterações devem ser pautadas em obediência aos princípios fundantes da sociedade nacional, encimados na Carta Política de 1988, respeitando-se as liberdades individuais tão duramente conquistadas por

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aqueles que nos precederam, por vezes com o sacrifício de vidas humanas.Oportuno recordar as lições da história da humanidade e o exemplo da

Roma antiga, onde a lei já permitiu matar qualquer homem que almejasse ser rei; ou o pensamento da Antiguidade, segundo o qual o direito, a justiça, a moral, e tudo o mais, deveria ceder diante do interesse da pátria1, argumento este perigosíssimo, ainda hoje utilizado para legitimar o ilegítimo.

Assim, seja qual for a reforma imaginada pelo legislador constitucional, através de um processo de revisão ou de emenda, haverá de respeitar, sempre, as regras estabelecidas pelo constituinte originário como elementos fundamentais, seja na estruturação organizacional do Estado, seja no âmbito das tutelas erigidas em favor da própria sociedade. O poder constituinte derivado2, na clássica divisão de Sieyès, encontra limites, como assinalam Celso Ribeiro Bastos3 e Pinto Ferreira4.

Igual raciocínio se aplica em relação aos Direitos Fundamentais do cidadão, portadores de um “conteúdo essencial” concebido como limite à atividade legislativa, uma fronteira que o legislador não pode ultrapassar na regulação ou limitação dessa categoria especial e constitucional de direitos, sob pena de invadir espaço proibido, gerador de inconstitucionalidade5.

Nesse contexto, especialmente em relação ao Poder Judiciário, desde o início das anunciadas “reformas”, grandes foram as preocupações sobre o seu conteúdo e extensão, diante das forças vivas da sociedade inseridas no processo de mudança.

O temor maior, para muitos, residia na falta de consciência da importância desempenhada pela instituição judiciária na sobrevivência sadia da democracia, o que colocava em risco toda a ordem jurídica.

Destacou Silvio Dobrowolsky, em meio à turbulência reformista, a necessidade de se “arrostar a má vontade dos outros Poderes estatais e de setores dos poderes sociais, que buscam, a todo custo, alcançar resultados favoráveis em sua atuação, ainda que para isso tenham de pisotear a lei e os direitos.

1 Conforme noticia Fustel de Coulanges [1999, p. 194].2 Na definição de Ferreira Filho, “o Poder Constituinte de revisão é aquele poder inerente à Constituição rígida que se destina a modificar essa Constituição segundo o que ela estabelece. Na verdade, o Poder Constituinte de revisão visa, em última análise, a permitir a mudança da Constituição, a adaptação da Constituição a novas necessidades, a novos impulsos, a novas forças, sem que para tanto seja preciso recorrer à revolução, sem que seja preciso recorrer ao Poder Constituinte originário”. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte, p. 124. No mesmo sentido, observa-se a lição de Canotilho [2002, p. 1044].3 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 34.4 FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional, p. 607.5 LOPES, Ana Maria D’Ávila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar, p. 188.

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Compreendem-se, assim, os constantes ataques à independência judicial, orquestrados através dos meios de comunicação social, buscando destruí-la, a fim de transformar a Justiça em mero instrumento dos detentores de poder. A luta democrática, de momento, é preservar essa autonomia do Poder Judiciário, por sua ligação com a garantia dos direitos e, por isso mesmo, com a defesa da dignidade do homem e da Constituição”6.

Depois de longos anos de debates e embates, que atravessaram uma década e navegaram entre maiorias ideológicas e políticas diversas, veio a lume a “Reforma do Poder Judiciário”, condensada na Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004.

Diante das mudanças e inovações introduzidas na estrutura e no funciona-mento desse Poder da República, os temores maiores se dissiparam. O Judiciário não foi mutilado conforme se anunciara.

Mas a onda reformista permanece, apenas com o eixo deslocado do ambiente constitucional, voltando-se agora para as mudanças infraconstitucionais necessárias à implementação das novas diretrizes inseridas na Constituição Federal.

O saldo desse movimento contínuo, se positivo ou negativo, o tempo se encarregará de dizer.

De todo modo, a constatação imediata indica que o Judiciário “pós-reforma” não é mais o mesmo. Ganhou em transparência, visibilidade e necessita agora ajustar o rumo e o prumo em busca da eficiência para atender ao crescente clamor social por Justiça. Este, sem dúvida, é um caminho sem volta.

Enquanto as reformas sociais, as reformas política e tributária, todas tão urgentes e aguardadas pela sociedade brasileira, ainda se encontram em grande parte no plano das promessas, das boas intenções, a Reforma do Judiciário, ao contrário, vem se materializando não apenas no plano normativo, constitucional e infraconstitucional, mas gradativamente vem operando importante mudança na mentalidade dos operadores do Direito, resultando desse conjunto um processo construtivo permanente de um novo modelo.

O Poder Judiciário de hoje está aprendendo a trabalhar com dados estatísticos, a gerar esses dados, interpretá-los e utilizá-los no plano administrativo, visando a qualidade das decisões gerenciais, dada a compreensão dos seus reflexos diretos na eficiência da atividade-fim – a jurisdição.

6 DOBROWOLSKY, Silvio (org). A constituição no mundo globalizado, p. 315.

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A administração baseada no empirismo, no improviso, na eventual habilidade inata do administrador do momento, não mais se coaduna com o modelo de eficiência que se pretende edificar e, por conta disso, ganha força a tese das eleições diretas para os órgãos diretivos dos tribunais.

De sua vez, a revolução tecnológica alcançou o Judiciário como um todo e, rapidamente, estamos passando da máquina de escrever para o processo virtual.

O potencial da informática aplicado à atividade jurisdicional venceu medos, rompeu barreiras, deixando para trás o tempo em que o computador servia apenas como uma máquina de escrever qualificada.

Enfim, o fato é que todo este conjunto de mudanças, reformas e alterações tem um sentido, uma finalidade, um objetivo constitucional a atingir: reconstruir um Judiciário renovado, capaz de conferir eficácia aos direitos fundamentais, dentre eles o Acesso à Justiça e a Duração Razoável do Processo (art. 5o, CRFB/88), os quais, em última instância, consagram verdadeira garantia de respeito aos demais direitos fundamentais.

Vale lembrar que, para alcançar esse desiderato, a Constituição Federal vigente garantiu ao Poder Judiciário Independência e Autonomia, destacando-se aqui o princípio da Autonomia Financeira (art. 99, CRFB/88).

Na quadra atual, entretanto, não basta apenas proclamar e exigir o cumprimento desse instituto garantidor de independência institucional.

Imperioso que o Judiciário, paralelamente, avance para combinar esse preceito (Autonomia Financeira) com outro importante mandamento constitucional – o Princípio da Eficiência, consagrado no art. 37 da Carta Política em vigor, conceituado, na lição de Alexandre de Moraes, como aquele que “impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar desperdícios e garantir uma maior rentabilidade social”7.

Nessa combinação reside um novo desafio para o Judiciário da modernidade, ou pós-modernidade8, preferindo designá-lo de “contemporâneo”, cujos

7 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. p. 822.8 Cabe aqui registrar a discussão acadêmica sobre “modernidade” ou “pós-modernidade”, sendo esta última, se existente, a sustentação do direito constitucional pós-moderno ou neoconstitucionalismo. O tema refoge ao objetivo deste trabalho, razão pela qual deixamos de aprofundar o assunto. Relevante, entretanto,

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contornos adiante pretendemos traçar, obviamente sem a pretensão de esgotar tema tão complexo e multifacetado neste limitado espaço, e permitindo-se certa liberdade quanto ao rigor científico no tratamento da matéria.

Como primeiro passo dessa jornada que se inicia, necessário estabelecer algumas premissas teóricas para a melhor compreensão do tema central deste trabalho.

2. O Estado e o princípio da tripartição dos poderes – Um

modelo em constante reafirmação

O Estado, bem sabemos, não surgiu do acaso e resulta de um longo processo de transformação social e política, conforme doutrina Paulo Márcio Cruz9.

Assim também entende Celso Ribeiro Bastos10, ao afirmar que “o Estado – entendido portanto como uma forma específica da Sociedade política – é o resultado de uma longa evolução na maneira de organização do poder”11.

Modernamente, podemos conceituá-lo, conforme Ferreira Filho12, como “uma associação humana (povo), radicada em base espacial (território), que vive sob o comando de uma autoridade (poder) não sujeita a qualquer outra (soberania)”, com o que concordam Pontes de Miranda13, Cruz14, Bonavides15 e Canotilho16.

Não se pode olvidar, contudo, que o exercício do poder estatal sempre foi motivo de acirradas disputas, diante da imensa gama de interesses em jogo em qualquer sociedade, daí porque, ao longo da história, o Estado sofreu profundas

ao menos referir a existência de duas posições interessantes, antagônicas, sustentadas por conhecidos doutrinadores nacionais: I – em defesa da existência do direito constitucional pós-moderno – conferir artigo do Prof. Luís Roberto Barroso: “Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo)”. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I, no 6, setembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: agosto 2011; II – refutando a existência de um direito constitucional pós-moderno e o neoconstitucionalismo – conferir artigo do Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “Notas sobre o direito constitucional pós-moderno, em particular sobre certo neoconstitucionalismo à brasileira”. Revista de Ciências Jurídicas e Econômicas, v. 2, n. 1, p. 101-118, 2010. Disponível em: <http://revistasystemas.com.br/index.php/systemas/article/view/29>. Acesso em: 2.9.2011. 9 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia e estado contemporâneo, p. 61. Sobre a evolução histórica do Poder e os modelos históricos de organização política da Sociedade (Sociedade acéfala ou tribal, cidade Estado, império burocrático, Sociedade feudal e Estado), recomenda-se a leitura das páginas 64-74 da obra ora referenciada.10 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 05.11 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 05.12 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 47.13 MIRANDA, Pontes de. Comentários à constituição de 1946, p. 234.14 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos de direito constitucional, p. 43.15 BONAVIDES, Paulo. Ciência política, p. 67.16 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 89-90.

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alterações na sua forma de organização política, processo contínuo e que permanece ativo ainda hoje, na medida da intensidade das forças antagônicas (políticas, econômicas e sociais) envolvidas em determinado tempo e lugar.

Nesse processo histórico de construção e afirmação do Estado, os abusos, as arbitrariedades, o desrespeito aos mais elementares direitos dos cidadãos, a própria “ausência” de direitos do povo em relação ao Estado, as práticas semidespóticas e o excessivo poder político nas mãos de uma ou poucas pessoas, acabaram por criar condições para o surgimento do Estado Moderno, o qual trouxe consigo, como uma das suas características básicas, o Princípio da Separação dos Poderes17.

É a partir do Estado Moderno18, portanto, que se pode identificar com nitidez a adoção em sua estrutura do referido princípio, por intermédio do qual mantendo-se a unidade do Estado se buscou dividir as três funções estatais elementares19 como forma de evitar os abusos de outrora.

Devemos lembrar, contudo, que a existência de pelo menos três funções estatais básicas e distintas não era algo desconhecido da civilização, tanto que tal realidade já fora isolada na Antiguidade por Aristóteles20 e, mais tarde, por outros juristas21.

17 Diz Bonavides [2000, p. 135/136] sobre a fase monárquica: “O poder soberano do monarca se extraviara dos fins requeridos pelas necessidades sociais, políticas e econômicas correntes, com os quais perdera toda a identificação legitimativa. Mudaram aqueles fins por imperativo de necessidades novas e todavia a monarquia permanecera em seu caráter habitual e poder cerrado, poder pessoal, poder absoluto da coroa governante. Como tal, vai esse poder pesar sobre os súditos. Invalidado historicamente, serve tão-somente aos abusos pessoais da autoridade monolítica do rei” [p. 135]. E adiante complementa: “Todos os pressupostos estavam formados pois na ordem social, política e econômica a fim de mudar o eixo do Estado moderno, da concepção doravante retrógrada de um rei que se confundia com o Estado no exercício do poder absoluto, para a postulação de um ordenamento político impessoal, concebido segundo as doutrinas de limitação do poder, mediante as formas liberais de contenção da autoridade e as garantias jurídicas da iniciativa econômica”.18 Sobre o surgimento do Estado Moderno, também chamado de Estado Liberal, assevera Cruz [2001, p. 80-81]: “Com as revoluções inglesa, norte-americana e francesa, dos séculos XVII e XVIII, as novas forças sociais burguesas liberadas pelo desenvolvimento do capitalismo consolidam seu poderio econômico e sua hegemonia social e política, substituindo a Monarquia absoluta pelo Estado Liberal que, para o raciocínio científico levado a efeito nesta obra, coincide com o início efetivo do Estado Moderno. Este Estado se constitui como representativo e oligárquico – no qual o direito de participação política é daqueles que têm patrimônio ou título acadêmico – limitado pela razão, pelos direitos fundamentais e pela separação dos poderes”.19 Conforme esclarece Bastos (2001, p. 351), não se pode levar ao pé da letra a expressão tripartição de poderes estatais, uma vez que o poder é sempre um só, qualquer que seja a forma por ele assumida, indicando a princípio uma diferenciação entre as funções estatais.20 Aristóteles indica a consciência da existência de funções distintas dentro da organização do Estado, ao afirmar: “Porque o soberano não é um juiz, um senador, ou um membro da assembleia, mas o tribunal, o senado e o povo. Cada indivíduo não é mais que uma parte desses três corpos; entendo por uma parte cada senador, cada cidadão, cada juiz”. [ARISTÓTELES, 1988, p. 64].21 Assim conclui Bonavides [2000, p. 135/136], acrescentando outros juristas: “Distinguira Aristóteles

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Porém, inegavelmente, coube a Montesquieu, com a obra “L’Esprit des Lois” (O Espírito das Leis, 1748), a formulação melhor sistematizada juridicamente do referido princípio, servindo seu trabalho como um marco histórico, porquanto capaz de influenciar, definitivamente, a ordem jurídica mundial até os dias atuais.

Sobre a Tripartição dos Poderes, definiu: Em cada Estado há três espécies de poderes: o Legislativo; o Executivo das coisas que dependem do Direito das Gentes; e o Executivo das que dependem do Direito Civil. Pelo primeiro, o Príncipe ou o Magistrado faz leis para algum tempo ou para sempre, e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes, ou julga as demandas dos particulares. A este último chamar-se-á Poder de Julgar; e ao anterior simplesmente Poder Executivo do Estado22.

Para o constitucionalista Celso Ribeiro Bastos23, “a teoria da separação dos poderes diz que, qualquer que seja a atividade estatal, esta deverá ser sempre precedida por normas do último tipo citado, isto é, normas abstratas e gerais, denominadas leis. Os atos concretos, ainda segundo a teoria ora exposta, só serão legítimos na medida em que forem praticados com fundamento nas normas gerais. (...) Eis aí a função legislativa e a executiva. Além dessas, é prevista uma terceira função: a judiciária. Esta consiste em dirimir, em cada caso concreto, as divergências surgidas por ocasião da aplicação das leis”.

O grande mérito de Montesquieu foi o de indicar, para cada uma das três funções distintas do Estado, a correspondência de órgãos distintos e autônomos, ou seja, haveria necessidade da existência de uma divisão funcional que correspondesse a uma divisão orgânica, opondo-se assim esta disposição ao antigo poder estatal concentrado do monarca24.

a assembleia-geral, o corpo de magistrados e o corpo judiciário; Marsílio de Pádua no Defensor Pacis já percebera a natureza das distintas funções estatais e por fim a Escola de Direito Natural e das Gentes, com Grotius, Wolf e Puffendorf, ao falar em partes potentiales summi imperii, se aproximara bastante da distinção estabelecida por Montesquieu. Em Bodin, Swift e Bolingbroke a concepção de poderes que se contrabalançam no interior do ordenamento estatal já se acha presente, mostrando quão próximo estiveram de uma teorização definida a esse respeito. Locke, menos afamado que Montesquieu, é quase tão moderno quanto este, no tocante à separação dos poderes”.22 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis..., p. 166-167.23 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 353.24 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 354.

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Segundo Michel Temer25, “o valor de sua doutrina está na proposta de um sistema em que cada órgão desempenhasse função distinta e, ao mesmo tempo, que a atividade de cada qual caracterizasse forma de contenção da atividade de outro órgão do poder”, resultando num sistema de independência e ao mesmo tempo de inter-relacionamento entre os poderes, fórmula denominada pela doutrina americana de “freios e contrapesos”.

A solução proposta pelo jurista francês, a partir de então, alcançou inescondível importância para a humanidade ao servir de esteio ao Estado liberal que se formava, acabando por encontrar “objetivação positiva nas Constituições das ex-colônias inglesas da América, concretizando-se em definitivo na Constituição dos Estados Unidos de 17.9.1787”26.

Com o advento da Revolução Francesa, a teoria tornou-se um dogma constitucional, a ponto de ser inscrita no art. 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão27, sob a afirmação de que a ausência do Princípio da Separação dos Poderes na Constituição de um Estado, faria deste um Estado sem Constituição28.

Disseminada a proposta de Montesquieu, a tendência de inflexibilidade inicial na aplicação da teoria – separação rígida entre os Poderes – aos poucos cedeu lugar a uma melhor compreensão e inevitável acomodação entre o ideal teórico e a realidade, especialmente diante do fato de, muitas vezes, um Poder necessitar praticar atos que estavam fora de sua órbita, assemelhados à competência dos demais29.

25 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional, p. 119.26 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 109.27 Canotilho [p. 89-90] transcreve o dispositivo: “Toute société, dans laquelle la garantie des droits n’est pas assurrée ni la séparation des pouvoirs détérminée, n’a point de constitution (Art. 16o da Déclaration des droits de l’homme et du citoyen du 26 Août 1789)”.28 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional, p. 109.29 No dizer de Bastos (2001, p. 355), “(...) constata-se que os órgãos estatais não exercem simplesmente as funções próprias, mas desempenham também funções denominadas atípicas, quer dizer, próprias de outros órgãos. É que todo o poder (entendido como órgão) tende a uma relativa independência no âmbito estatal, e é compreensível que pretenda exercer na própria esfera as três mencionadas funções em sentido material”. E Canotilho [p. 114/115] refere mesmo que “hoje, tende a considerar-se que a teoria da separação dos poderes engendrou um mito (...). Consistiria este mito na atribuição a Montesquieu de um modelo teórico reconduzível à teoria dos três poderes rigorosamente separados: o executivo (o rei e os seus ministros), o legislativo (1a câmara e 2a câmara, câmara baixa e câmara alta) e o judicial (corpo de magistrados). Cada poder recobriria uma função própria sem qualquer interferência dos outros. Foi demonstrado por Eisenmann que esta teoria nunca existiu em Montesquieu (...)”, ou seja, o próprio Montesquieu admitira a interdependência entre os Poderes, uma combinação entre eles no exercício da atividade estatal. Exemplo dessa realidade é a hipótese do Poder Executivo conceder indulto aos condenados, quando então estaria julgando, ou no caso da elaboração, pelos tribunais, de seus regimentos internos, instrumentos jurídicos, através dos quais as Cortes disciplinam o funcionamento dos seus órgãos administrativos e jurisdicionais,

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Assim também reconhece Ivo Dantas30, quando diz que “o princípio não tem mais um sentido ‘absoluto’, podendo-se até afirmar que encontra-se caracterizado por aspectos que são predominantes a cada função, ou seja, o Legislativo, além de legislar, julga e executa (administra); o Executivo, além de executar (administrar), legisla e julga; finalmente, o Judiciário, além de julgar, legisla e executa (administra)”.

Alcança-se, desse modo, o estágio atual de aplicação deste Princípio constitu-cional, já desgastado e objeto de críticas, mas que tem sobrevivido ao tempo31.

A propósito, oportuna a análise efetuada por Cruz32 sobre o futuro do modelo:(...) é preciso esclarecer que a divisão clássica do poder do Estado em Executivo, Legislativo e Judiciário talvez não atenda mais à complexidade do mundo contemporâneo. A doutrina que permanece ativa é a da separação dos poderes e a da tripartição destes mesmos

exercitando validamente, nesses casos, atividade tipicamente legislativa. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a validade dos regimentos internos dos tribunais como típicas normas legisladas pelo Judiciário, na medida da competência que lhe foi outorgada pela Constituição, como se pode conferir na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1105 MC/DF, Relator Ministro PAULO BROSSARD, em julgamento pelo Tribunal Pleno, datado de 3.8.1994 e publicado no DJU de 27.4.2001, p. 00057. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 1105 MC/DF, Relator Ministro Paulo Brossard. Pleno. Brasília, 03 de agosto de 1994. DJU de 27.4.2001, p. 00057. Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 29 maio 2004.30 DANTAS, Ivo. Constituição federal..., p. 225.31 Confira-se o que diz Bonavides (2003, p. 557) sobre a eterna vitalidade deste Princípio: “Trata-se de um princípio invariavelmente sujeito a renascer das ruínas de todas as reformas políticas e jurídicas e institucionais que tentam bani-lo do novo Direito Constitucional construído por obra das idéias sociais do século XX. Nem poderia, aliás, ser diferente, desde que a primeira Constituição do Estado social pôs nos alicerces da divisão de poderes a proteção suprema dos próprios direitos fundamentais. É o que se depreende, com toda nitidez, das ponderações de um abalizado constitucionalista de nossa época – Karl August Bettermann (...)”. No mesmo sentido, afirma Saldanha que “não foi cancelada a idéia da separação, enquanto derivada da própria pluralidade de atribuições centrais existentes no Estado”. SALDANHA, Nelson. O estado moderno e a separação de poderes, p. 119.32 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos de direito constitucional, p. 101/102. Acrescenta-se aqui a constatação de Ferreira Filho [2003, p. 135/136], ao comentar sobre o valor atual da Separação de Poderes: “Historicamente, desempenhou ela papel relevante, contribuindo, e não pouco, para a instauração do governo moderado. Hoje, todavia, sua importância costuma ser minimizada; seu fim, profetizado; sua existência, até negada. De fato, conforme o sistema de partidos, ela é mais aparente do que real. O bipartidarismo, sobretudo se disciplinados os partidos, tende a reduzi-la a mera aparência, quando, é claro, o mesmo partido detém o Executivo e a maioria parlamentar. Por outro lado, a prática, universal quase, da delegação do poder Legislativo e as formas bem ou mal disfarçadas de ‘legislação’ pelo Executivo evidentemente a renegam”. E esta realidade também é anotada por Cruz [2002, p. 130], de forma bastante direta: “No Brasil, quase sempre os governos eleitos são obrigados a ‘negociar’ com o Parlamento para obter maioria. Esta maioria, ‘negociada’ normalmente em bases pouco indicadas, é volátil e inconfiável, além de irresponsável”. Igualmente relevante o destaque de Canotilho [p. 555/556]: “Uma das observações mais correntes sobre o «envelhecimento» do princípio da separação de «poderes» e de «órgãos de soberania» relaciona-se com o facto de a repartição horizontal clássica desconhecer o fenômeno partidário e o dualismo moderno «maioria-oposição». (...) Hoje, a «verdade» político-constitucional não é o dualismo – parlamento mas a relação de maioria-oposição, aquela «suportada» pelos partidos e coligações maioritários e esta dinamizada pelos partidos ou coligações minoritários”.

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poderes. Esta última já encontra, atualmente, muita contestação. Muitos doutrinadores entendem que a tripartição tradicional do poder do Estado já não atende às necessidades da Sociedade e do Estado. Alguns dos itens da agenda do terceiro milênio, como os meios de comunicação, a manipulação genética e a globalização empurram a doutrina no sentido de começar a propor uma nova divisão do poder do Estado, com quatro, cinco ou mais poderes.

As discussões sobre o declínio ou a ascensão do princípio em questão, ou mesmo o reconhecimento de um “quarto Poder”33, não são poucas, mas a con-clusão recorrente tem se pautado pela necessidade de sua manutenção como fór-mula capaz de dar sustentação à democracia. Conforme Canotilho, “separação ou divisão de poderes significa responsabilidade pelo exercício de um poder[...]”34.

Assim, a divisão referenciada ainda hoje permaneceria relevante pelo menos em dois pontos35:

a) ao garantir a diferenciação entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, mantém também a peculiaridade do processo legislativo, baseado na discussão e publicidade que permite a participação das minorias e a atividade de controle do governo por estas mesmas minorias. O Poder Legislativo se mantém como foco de controle e crítica, assim como de discussão pública, entre as diversas alternativas políticas;

b) a divisão permite, sobretudo, a manutenção da garantia da independência do Poder Judiciário, expresso pela independência de cada juiz em relação aos outros poderes do Estado.

No Brasil, o princípio se tornou tradição constitucional, e, especialmente com relação à vigente Carta Política da República de 1988, observa-se uma clara preocupação do legislador constituinte com a estabilização do preceito, tanto que vedou qualquer possibilidade de emenda constitucional tendente a abolir a Separação dos Poderes, tornando-a verdadeira Cláusula Pétrea36, conforme se verifica no art. 60, § 4o, inciso III37.

33 Saldanha refere a existência de constantes menções a um “quarto Poder”, que poderia ser a Opinião Pública, a Imprensa, a Igreja, a educação ou outra instituição, mas descarta qualquer validade a estas suposições. Saldanha, Nelson. O estado moderno e a separação de poderes, p. 121.34 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 250.35 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos de direito constitucional, p. 101.36 Cláusula Pétrea, na lição de Dantas [1994, p. 96], significa aquela disposição constitucional intocável, rija, resistente e insensível “[...] a qualquer proposta de manifestação do Poder de Reforma”.37 CRFB/88: “Art. 60. [...] § 4o Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...]

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Vive-se, pois, em um sistema constitucional no qual o Princípio da Tripartição dos Poderes, nas palavras de Bastos38, tornou-se “insuprimível da nossa Constituição”, e, por se tratar de peça fundamental para a Democracia, deve ser observado em toda a sua plenitude.

O Poder Judiciário tem contribuído nesse sentido, registrando a sua consagração em inúmeros julgados da Suprema Corte do País, impondo a sua observância por parte daquelas autoridades que atuam e corporificam concretamente cada uma das funções do Poder estatal39.

Para Bonavides40, foi o trabalho de intérpretes e aplicadores do Direito que rejuvenesceu o velho princípio, o qual, assim, voltou a “fruir a plena atualidade das ocasiões em que foi emblema da resistência a poderes autocráticos e a formas de governo havidas por usurpadoras de Direitos e garantias fundamentais da pessoa humana”. E arremata: “onde houver, pois, lesões à liberdade e ao Estado de Direito, aí sempre haverá lugar para invocar-se a tutela do princípio e conjurar prosperem ofensas aos valores que ele representa na ordem jurídica”.

Por certo, também no Brasil críticas existem quanto à operacionalização do princípio em referência, sendo oportuna a reflexão de Manoel Gonçalves Ferreira Filho41:

O exame da governança tal qual ela de fato se faz na realidade brasileira contemporânea aponta três fenômenos que merecem ser ponderados. São eles: 1) a exacerbação do presidencialismo, com a proeminência acentuada do Presidente da República; 2) o fenecimento do Legislativo, cujo papel empalidece; e 3) a assunção pelo Judiciário de um crescente papel político. Tudo isto evidentemente significa uma profunda transformação da separação

III – a separação dos Poderes;”. Dantas [1994, p. 144] reconhece expressamente essa condição da cláusula pétrea do Princípio da Separação dos Poderes na Carta Política vigente.38 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 356.39 Confira-se o seguinte precedente: “SEPARAÇÃO E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. Submissão de convênios firmados pelo Poder Executivo à prévia aprovação ou, em caso de urgência, ao referendo de Assembleia Legislativa: inconstitucionalidade de norma constitucional estadual que a prescreve: inexistência de solução assimilável no regime de poderes da Constituição Federal, que substantiva o modelo positivo brasileiro do princípio da separação e independência dos poderes, que se impõe aos Estados-membros: reexame da matéria que leva à reafirmação da jurisprudência do Tribunal (STF – ADI 165-5 – MG – TP – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 26.9.97)”. [MACHADO, 2002, p. 15]. 40 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 558.41 MARTINS, Ives Gandra da Silva (coordenador). Princípios constitucionais relevantes. Porto Alegre: Magister, 2012, p. 69.

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de poderes, que, paradoxalmente, a Constituição consagra como cláusula pétrea (art. 60, § 4o, III).

Contudo, vê-se que a necessidade de sobrevivência do Princípio da Tripartição dos Poderes ainda é uma realidade, notadamente em países em estágio de consolidação do regime democrático, para que se tenha uma efetiva proteção das liberdades individuais e preservação do Estado de Direito.

5. Independência e autonomia financeira do Poder Judiciário

brasileiro – Importância para a harmonia constitucional

O Estado brasileiro, desde a Constituição de 1824, vem consagrando o Princípio da Tripartição dos Poderes em seu ordenamento jurídico.

A Constituição da República vigente (1988) expressou a sua adoção já no art. 2o, ao determinar: “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”42.

Como resultado do modelo constitucional escolhido, identifica-se no Poder Judiciário, por intermédio de seus órgãos jurisdicionais – juízes, a grave função de dirimir os conflitos de interesses surgidos no tecido social, sejam eles de particulares entre si, ou aqueles estabelecidos entre os particulares e o próprio Estado.

Nesse sentido, define Pinto Ferreira43 que “o Poder Judiciário é um dos três Poderes clássicos previstos pela doutrina. Foi consagrado em seguida às grandes transformações dos séculos derradeiros como um Poder independente e autônomo”. Invocando lição de Pedro Lessa44, atesta que “o Poder Judiciário é o que tem por missão aplicar contenciosamente a lei a casos particulares”.

Contudo, por força da natureza dessa elevada função a desempenhar, a própria Constituição, ao mesmo tempo em que lhe impôs o encargo, outorgou ao Judiciário uma condição de Independência em relação aos demais poderes, sem o que não seria possível se desincumbir da missão a contento.

Isto porque, como adverte Pinto Ferreira45, dificilmente poder-se-ia supor um Estado de Direito sem a existência de um Poder Judiciário autônomo

42 Leciona Carlin [2002, p. 37] que “a relação entre eles obedece a critérios positivos constitucionais: entre eles deve imperar independência sem prejuízo da harmonia. Tais freios e contrapesos objetivam impedir a instauração do absolutismo. Trata-se do conhecido sistema de checks and balances, teoria que foi desenvolvida no século XIX”.43 FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional, p. 414.44 em sua obra Do Poder Judiciário.45 FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional, p. 414.

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e independente. Trata-se de verdadeira fórmula consagrada pela doutrina contemporânea, prática não repelida, mas consolidada pelas Constituições.

Esta também é a posição de Dallari46, ao afirmar que “sem juízes independentes não pode existir Estado democrático”.

Mas qual seria a razão dessa independência?Obviamente, diante da atividade desempenhada pelo Poder Judiciário –

dirimir conflitos - a condição de estar desobrigado a agradar este ou aquele litigante na solução do litígio exsurge essencial para a garantia da segurança jurídica (aqui entendida como a certeza do Direito e da força vinculante de suas previsões47).

A importância dessa condição de liberdade de atuação, por sua vez, se potencializa na medida em que são inúmeras as situações em que “o objeto da disputa ou o conflito a ser resolvido pelo juiz foi ocasionado pelo enfrentamento do cidadão com o poder do Estado, como a ação do Governo através da Administração Pública ou com a acusação pública levada a efeito pelo Ministério Público nos casos penais”48.

Desse modo, “só a absoluta Independência do juiz em relação aos poderes Executivo e Legislativo garante que será a lei, e não a vontade do Executivo ou de membros do Parlamento, a que decidirá o litígio”49, revelando-se o Princípio, assim, uma das pedras angulares na defesa dos interesses fundamentais do cidadão, mormente em tempos presentes, quando se pode constatar verdadeira hipertrofia do Poder Executivo, que julga (tem concedido, por exemplo, indultos criminais repetidamente nos últimos anos) e legisla (basta conferir o número expressivo de medidas provisórias editadas), por vezes indiscriminadamente50.

É o que também aponta com lucidez Manoel Gonçalves Ferreira Filho51:A Independência do Judiciário é uma necessidade da liberdade individual. Que existam no Estado órgãos independentes que possam

46 DALLARI, Dalmo de Abreu. O renascer do direito..., p. 58.47 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos de direito constitucional, p. 115.48 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos de direito constitucional, p. 115.49 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos de direito constitucional, p. 115/116.50 Anota Saldanha que, “o crescimento das atribuições do Executivo, em nosso século, tanto nas nações capitalistas como nas socialistas, determinou em certos setores (inclusive o didático e o jornalístico) a tendência a identificar os termos governo e Poder Executivo. Com efeito, a imagem que o homem comum tem do governo centra-se sobretudo nas atividades do Executivo: decisões e planejamentos, poder e administração. Nos regimes presidencialistas, a realidade constitucional corrobora esta imagem, havendo então uma separação de poderes sem igualdade e sem equilíbrio que eram preconizadas na fórmula clássica”, ao que acrescento ser fenômeno recorrente em países considerados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, com democracias ainda em fase de sedimentação. SALDANHA, Nelson. O estado moderno e a separação de poderes, p. 118.51 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 246.

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aplicar a lei, inclusive contra o governo e contra a administração, é condição indispensável para a liberdade e a proteção dos Direitos humanos. E não foi outra a razão que levou a doutrina clássica a erigir o Judiciário em poder do Estado, com função própria. De fato. Que argumento melhor havia para retirar das mãos do governo a administração da Justiça do que afirmá-la, por natureza distinta da a ele confiada?

Daí a razão, portanto, da relevância dessa garantia constitucional erigida em favor desse Poder.

Quanto ao sentido e alcance do termo examinado, destaca-se que a palavra independência, à primeira vista, nos traz a ideia de algo que é livre, desvinculado, totalmente liberto de forças estranhas que possam traduzir uma subjugação aos interesses ou desejos de outrem.

Esta noção inicial, conquanto eminentemente empírica, é intuitiva e serve perfeitamente como indicativo da necessidade dessa garantia instituída pelo ordenamento constitucional.

A independência, pois, relativamente aos três poderes reciprocamente considerados, na dicção de José Afonso da Silva52, significa: (a) que a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não depende da confiança nem da vontade dos outros; (b) que, no exercício das atribuições que lhe sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorização; (c) que, na organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais.

Isto quer dizer, num primeiro sentido, que cada Poder tem a liberdade de se organizar internamente, prover seus cargos e executar sua atividade-fim sem depender de autorização dos demais poderes constituídos, estabelecendo a norma constitucional, expressamente, a inexistência de qualquer grau de subordinação entre eles53.

Logicamente, esta ausência de subordinação não quer significar a possi-bilidade de cada um dos poderes atuar de forma deliberada e desencontrada,

52 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 110.53 Assim ensina Temer [2003, p. 123], ao destacar que “o Judiciário, tal como o Legislativo, também organiza seus serviços auxiliares, provendo-lhes os cargos, na forma da lei. Cuida de todo o aparato administrativo necessário para dar suporte ao desempenho de sua atividade típica. Não depende, como visto, do Poder Executivo, cuja atividade típica é administrar”.

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uma vez que a própria Constituição determina aos três poderes a realização de suas funções em cooperação, em “Harmonia”54, como forma de alcançar a consumação dos objetivos fundamentais da República, estampados no art. 3o da Carta Maior da nação brasileira55.

Neste sentido, relativamente ao Judiciário, anota José Afonso da Silva56 que a independência e a autonomia se tornaram ainda mais pronunciadas, pois passou para a sua competência também a nomeação de juízes e outras providências referentes à sua estrutura e funcionamento, inclusive em matéria orçamentária (arts. 95, 96 e 99).

A observação do doutrinador é pertinente, e, efetivamente, pode-se notar, no âmbito da vigente Constituição republicana, que a independência do Poder Judiciário foi estabelecida com um viés mais extenso do que em outras épocas57, passando a significar, além das conhecidas garantias instituídas em favor dos magistrados para o exercício seguro e imparcial da função judicante (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios – art. 95, CRFB 1988), também uma proteção estendida pelo legislador constituinte à Justiça-instituição, nivelando-a com os demais poderes, de sorte a preservar-lhe o pleno, correto e ininterrupto funcionamento, e protegê-la de eventuais efeitos decorrentes da alternância na chefia do Executivo e das mudanças na composição do Legislativo, decorrentes do cíclico processo eleitoral.

Portanto, partindo dessa constatação, torna-se possível subdividir as regras que compõem a independência do Poder Judiciário em dois grandes grupos.

Eugênio Raul Zaffaroni58 (citando lição de Picardi), identifica estes dois

54 Sobre a Harmonia discorre Silva [2002, p. 110]: “A harmonia entre os poderes verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados”.55 Art. 3o Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.56 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 110.57 Consoante lição de Ferreira [2002, p. 418-420], no início a Justiça não possuía qualquer independência, e, sendo a magistratura eletiva tanto na Antigüidade greco-romana como na monarquia, seus juízes haveriam de agradar o rei ou monarca, estando o sistema judicial logicamente sujeito às condições da investidura de seus membros. No Brasil, a primeira Constituição de 1824 concedeu uma tímida independência relativa à magistratura togada, a vitaliciedade. Somente com a República é que foram acrescidas as garantias da irredutibilidade de vencimentos (Constituição de 1891, art.57), e depois a inamovibilidade (Constituição de 1934).58 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Poder judiciário: crise, acertos e desacertos, p. 87/88.

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conjuntos de normas, que juntos formam o que chama de “Independência Judicial”. O primeiro, denomina de Independência da Magistratura, e corresponde a regras restritas à autonomia de governo e o poder disciplinar, aos órgãos ou ao conjunto de órgãos judiciários; o segundo conjunto, denominado como “Independência do Juiz”, refere-se àquelas normas dirigidas à pessoa dos juízes, de sorte a protegê-los de pressões, no exercício da atividade jurisdicional.

José Afonso da Silva59, por sua vez, igualmente faz a distinção quanto às garantias que integram a Independência do Poder Judiciário, separando-as em dois grupos: a) garantias institucionais – protegem o Poder Judiciário como um todo; b) garantias funcionais ou de órgãos – asseguram a Independência e imparcialidade dos membros do Poder Judiciário, previstas tanto em favor destes, como em favor da própria instituição (vitaliciedade, irredutibilidade de subsídios, inamovibilidade).

Esta operação também foi efetuada por Ferreira Filho60, ao comentar que em relação às garantias outorgadas ao Judiciário “algumas concernem ao poder como um todo, resguardando-o de interferência de outros poderes; outras dizem respeito aos órgãos desse poder, particularmente aos juízes”.

Bem identificadas, pois, estas duas partes, atentando agora somente para as regras atinentes à independência da Justiça-instituição (ou independência da Magistratura, segundo Zaffaroni, ou Garantias Institucionais, segundo Silva), observa-se que a doutrina realiza ainda uma outra subdivisão, identificando como seus elementos integrantes a Autonomia Administrativa e a Autonomia Financeira do Poder Judiciário.

A primeira, Autonomia Administrativa, consiste na “possibilidade de auto-organização de seus serviços, como prover suas secretarias, concursos e outros (art. 93, incisos e alíneas)”61.

A segunda, Autonomia Financeira, seria a “capacidade de elaboração de Orçamento próprio”62, encontrando no art. 99, “caput” e §§ 1o e 2o, da Constituição da República de 1988, a sua previsão63.

José Afonso da Silva64 decompõe a independência da Justiça-instituição em Autonomia Orgânico-Administrativa e a Autonomia Financeira, aquela

59 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 575.60 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 248.61 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 393.62 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 393.63 CRFB/88: Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira.64 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 575.

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compreendendo a independência na estruturação e funcionamento dos seus órgãos, e esta a independência na elaboração e execução do próprio Orçamento.

Enfim, chega-se, especificamente, na Autonomia Financeira do Poder Judi-ciário, consagrada no ordenamento constitucional vigente da seguinte forma:

a) cabe aos tribunais elaborar suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais poderes na lei de diretrizes orçamentárias (arts. 99, § 1o, e 165, II);

b) compete o encaminhamento da proposta orçamentária, ouvidos os outros tribunais interessados: (a) no âmbito da União, aos presidentes do STF e dos tribunais superiores (STJ, TST, TSE e STM), com a aprovação dos respectivos tribunais; (b) no âmbito dos estados e no Distrito Federal e territórios, aos presidentes dos tribunais de Justiça, com a aprovação dos respectivos tribunais65.

Soma-se a estas diretrizes, ainda, outro dispositivo de sentida importância, conforme reconhece Ricardo Lobo Torres66, servindo de garantia ao Poder Judiciário para fazer valer, concretamente, a sua Autonomia Financeira. Trata-se do artigo 168 da CRFB/88, que possibilita o direito de sequestro de sua cota-parte orçamentária em caso de ausência de repasse, sendo certeira a via mandamental:

Art. 168. Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9o67.

65 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 576.66 Diz o jurista: “A CF instituiu a autonomia financeira entre os poderes, estabelecendo, no art. 168, que ‘os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário e do Ministério Público, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9o’”. [TORRES, p. 164].67 CRFB/88. A redação está de acordo com a Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004. Exemplo disso ocorreu no Estado de Santa Catarina, quando, a partir do mês de outubro de 1998, o Poder Executivo deixou de efetuar o repasse da dotação orçamentária mensal devida ao Poder Judiciário estadual, obrigando-o a impetrar Mandado de Segurança diretamente junto ao Supremo Tribunal Federal. Distribuída a ação mandamental no dia 29.10.1998, a liminar foi deferida no mesmo dia pelo Ministro Néri da Silveira, determinando a regularização imediata dos repasses dos duodécimos orçamentários. O mérito do “mandamus” foi julgado em 3 de abril de 2003, com a seguinte ementa: “Mandado de segurança. 2. Ato omissivo de governador de Estado. 3. Atraso no repasse dos duodécimos correspondentes às dotações orçamentárias do Poder Judiciário. 4. Art. 168 da Constituição Federal. 5. Independência do Poder Judiciário. 6. Precedentes. 7. Deferimento da ordem”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança no

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Diante desse sistema garantidor criado pela Constituição da República em vigor, inevitável reconhecer que a Autonomia Financeira foi guindada pelo legislador constituinte à condição de um dos importantes elementos materializadores da independência do Poder Judiciário.

Essa realidade tem ligação direta com a evolução histórica das salvaguardas outorgadas ao Poder Judiciário ao longo do tempo, sempre no sentido de trazer maior confiabilidade e segurança às suas decisões.

Nessa perspectiva, a instituição da Autonomia Financeira, ao permitir que os Tribunais elaborem e executem seus próprios Orçamentos, cujo limite deverá ser estipulado em conjunto com os demais Poderes, e não unilateralmente, por qualquer deles, finalmente colocou o Poder Judiciário em pé de total igualdade com o Legislativo e o Executivo, não havendo mais espaço constitucional para se submeter a função jurisdicional do Estado à penúria da carência sistemática de recursos e à inviabilização de projetos orientados ao aperfeiçoamento e à ampliação do atendimento ao cidadão, não sem a violação de preceito expresso da CRFB/88.

As críticas de José Afonso da Silva68, ao dizer que a Autonomia “vai gerar mais problemas do que benefícios”, professando disputas entre tribunais na aprovação das propostas orçamentárias a demonstrar a inaptidão dos julgadores para administrar, bem como a necessidade de se deixar tal matéria aos cuidados dos administradores, parecem não encontrar fundamento jurídico ou científico a justificá-las, mormente se considerado que os tribunais são dotados de corpos técnicos nas áreas administrativa e financeira, são fiscalizados pelos tribunais de Contas e, agora, particularmente, ainda estão sob o olhar correicional do Conselho Nacional de Justiça.

Ao contrário de criar problemas, a Autonomia Financeira concedida ao Poder Judiciário, sem dúvida, constitui importante instrumento instituído pelo constituinte originário para libertar aquele Poder do jugo dos demais Poderes, especialmente do Executivo, aquele que administra a coisa pública e detém “a chave do cofre”.

23267/SC. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasília, 3 de abril de 2003. DJU de 16.5.2003. Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 29/maio/2004.68 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 576. No mesmo sentido afirma Torres [2002, p. 164]: “A gestão orçamentária pelo Legislativo, Judiciário e Ministério Público não fortaleceu em nada a autonomia dos poderes e ainda trouxe grandes desvantagens do ponto de vista gerencial. Políticos e juizes não estão habilitados tecnicamente a gerir orçamento, fazer licitações e pagar despesas. A CPI instalada em 1999 demonstrou o desacerto na realização de inúmeros gastos, principalmente a construção de sedes e palácios suntuosos, como ocorreu no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo”.

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A crítica que merece destaque em tema tão relevante é aquela desferida com agudeza e proficiência por Dalmo de Abreu Dallari69, ao exortar a leniência do próprio Poder Judiciário, acostumado a ser submisso e inferiorizado em relação ao Poder Executivo, ranço de séculos de perniciosa condescendência, parecendo desconhecer o próprio texto constitucional.

Disse certa vez o jurista, com absoluta propriedade:A maior evidência da acomodação está no Orçamento, tanto no plano federal quanto no estadual. O Judiciário elabora sua proposta orçamentária, prevendo o aumento do número de juízes, a ampliação e modernização de seu equipamento material e outras coisas que ajudariam a melhorar seu desempenho. Essa proposta sofre cortes substanciais no Executivo, que prepara o projeto geral de lei orçamentária, e, às vezes, também no Legislativo, que emenda e vota o projeto. E o Judiciário aceita passivamente esses cortes, como se não fosse um dos Poderes do mesmo nível dos demais70.

Esse comportamento, aliás, não é novidade em países da América Latina e no Brasil, portadores de longa tradição autoritária, notadamente quando a “história do continente é estigmatizada pela hipertrofia do Executivo, pela quebra das garantias da magistratura, por reformas constitucionais casuísticas e pela instabilidade constitucional constante”, conforme lembra Anna Cândida da Cunha Ferraz71.

A indignação, portanto, pode ser haurida em razão da passividade demonstrada por muitos tribunais, os quais, paradoxalmente, apesar de elaborarem propostas orçamentárias baseadas em louváveis projetos para ampliação e modernização dos seus serviços, ao sofrerem cortes reiterados, injustificáveis e significativos realizados pelo Executivo72 (seja por ocasião da preparação do anteprojeto geral de lei orçamentária, seja durante o exercício de execução orçamentária), ou, por vezes no Legislativo, com as emendas e votação do projeto de lei do Orçamento, permanecem inertes, sem reação,

69 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes, p. 142.70 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes, p. 142.71 Citação em obra de BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição..., p. 146.72 Sobre as constantes restrições orçamentárias impostas pelo Poder Executivo em relação ao Poder Judiciário, não só por ocasião da elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias, como também durante a sua execução, basta conferir as manchetes dos jornais: “Poderes terão corte de R$ 277 milhões: Governo sugere a redução de despesas”. Diário Catarinense. Notícias de Brasília. Florianópolis. 26 de março de 2003. p. 15; “Poderes esperam pelo aumento de percentuais”. [A Notícia,15 abr. 2004, p. A5].

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sem contestação, como se estivessem obrigados a aceitar os minguados recursos destinados unilateralmente, quando a própria Constituição determina que os limites devem ser “conjuntamente” estabelecidos.

Essa mentalidade, contudo, aos poucos vem apresentando uma tendência favorável de mudança.

O Supremo Tribunal Federal, em memorável precedente, teve a oportunidade de reconhecer expressamente a Autonomia Financeira do Poder Judiciário como novel atributo da independência entre os Poderes, estatuído na Constituição da República, ao firmar:

(...) O autogoverno da Magistratura tem, na autonomia do Poder Judiciário, o seu fundamento essencial, que se revela verdadeira pedra angular, suporte imprescindível à asseguração da Independência político-institucional dos Juízos e dos Tribunais. O legislador constituinte, dando consequência à sua clara opção política – verdadeira decisão fundamental concernente a Independência da Magistratura - instituiu, no art. 168 de nossa Carta Política, uma típica garantia instrumental, assecuratória da Autonomia Financeira do Poder Judiciário. A norma inscrita no art. 168 da Constituição reveste-se de caráter tutelar, concebida que foi para impedir o Executivo de causar, em desfavor do Judiciário, do Legislativo e do Ministério Publico, um Estado de subordinação financeira que comprometesse, pela gestão arbitrária do Orçamento – ou, até mesmo, pela injusta recusa de liberar os recursos nele consignados –, a própria Independência político-jurídica daquelas Instituições. Essa prerrogativa de ordem jurídico-institucional, criada, de modo inovador, pela Constituição de 1988, pertence, exclusivamente, aos órgãos estatais para os quais foi deferida. (...)73.

A imprensa, por sua vez, tem demonstrado maior interesse em conhecer o Poder Judiciário e seu funcionamento, de sorte a compreender seus desafios e limitações, o que lhe possibilita informar, de maneira mais fidedigna à população, as reais deficiências e entraves à melhoria do serviço judiciário, a ponto de respeitado jornal estampar em seu editorial:

73 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Mandado de Segurança Coletivo no 21291/DF. Relator Ministro Celso de Mello. Brasília, 12 de abril de 1991. DJU de 27 out. 1995, p. 36331. RTJ 159/454. Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 29 maio 2004.

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É indispensável que o Judiciário se aparelhe e se modernize, que supere falhas como o regime arcaico e burocratizado do processo, o excesso de formalismos, o espantoso número de lides por juiz, a escassez de julgadores, o vagar dos cartórios. Essa deveria ser causa comum de legisladores, magistrados e da própria Sociedade. Mas, para que haja efetivamente Justiça para todos, será imprescindível ainda que conte com meios materiais adequados e se utilize dos instrumentos tecnológicos hoje empregados em todos os campos de atividade humana74.

Conclui-se, portanto, que a CRFB/88, ao adotar o Princípio da Tripartição dos Poderes, atribuindo a cada um deles a garantia de independência, no exercício da função específica, em relação ao Poder Judiciário instituiu, ainda, a Autonomia Financeira como elemento particular da independência a ser observado, tornando-o indissociável e imprescindível para a consecução de um convívio harmônico e democrático, elevando o Judiciário, definitivamente, ao patamar de total igualdade relativamente aos demais Poderes da República.

A verdadeira Autonomia Financeira do Poder Judiciário, assim, pode ser entendida como a capacidade de elaborar e executar Orçamento próprio, dotado de recursos financeiros suficientes à manutenção e ampliação dos serviços necessários ao atendimento da demanda por Jurisdição, protegido de unilaterais e injustificadas reduções impostas pelos demais poderes da República75.

O desafio atual está em se fazer reconhecer e concretizar esse mandamento constitucional, tarefa que ainda tem encontrado toda a sorte de obstáculos.

4. Orçamento público – Noções sobre esta ferramenta

constitucional para a concretização da autonomia financeira

do Poder Judiciário

Como vimos, o Judiciário é um Poder independente na República brasileira, e uma das garantias institucionais asseguradas na Constituição vigente para concretizar esta independência constitui-se na Autonomia Financeira.

Diante da evidente relação entre a Autonomia Financeira e o Orçamento Público, relevante apresentar uma breve noção sobre este último instituto,

74 Leis Mofadas. Diário Catarinense. Florianópolis-SC, 7 set. 2003, p. 12.75 Este Conceito Operacional foi elaborado pelo autor e originalmente apresentado na seguinte obra: SCHUCH, Luiz Felipe Siegert. Acesso à justiça e autonomia financeira do Poder Judiciário: a quarta onda? Em busca da efetividade dos direitos fundamentais. 1. ed. (2006), 2ª reimpr. (2010). Curitiba: Juruá, 2010. 260 p.

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com duplo propósito: demonstrar a sua importante condição de instrumento realizador da Autonomia referenciada, e fornecer substrato teórico para melhor compreensão do tema central a ser tratado neste trabalho.

Nesse passo, rápida retrospectiva histórica permite observar que as necessidades sociais sempre aumentam na medida em que o Estado evolui, enquanto os recursos financeiros recolhidos junto aos cidadãos, ao contrário, são geralmente insuficientes para atender à demanda de bens e serviços disponibilizados pelo aparelho estatal76.

Por sua vez, a desorganização, tanto no que se refere à arrecadação, como no tocante aos gastos do dinheiro público, tem se mostrado outro problema recorrente.

Na Antiguidade, por exemplo, ao discorrer sobre a Lacedemônia, Aristóte-les77 retratou realidade que, ainda hoje, guardada a devida contextualização, encontramos em muitos países da atualidade:

As finanças são mal organizadas. Os lacedemônios são obrigados a sustentar grandes guerras, e no entanto não possuem um tesouro público, e os impostos são mal arrecadados. Proprietários da maior parte do território, são em consequência interessados em não impor muita severidade na cobrança dos impostos. Desse modo o legislador chegou a um resultado absolutamente contrário ao interesse geral: tornou o Estado pobre e o particular rico e cúpido. Tais são os vícios principais da Constituição da Lacedemônia.

Como resultado dessa desordem financeira, segundo Ricardo Lobo Torres78, a partir do Estado Moderno surgiram as primeiras regras disciplinando o lançamento de tributos e a realização de gastos, primeiro na Inglaterra (Magna Carta de 1215) e depois na França, Espanha e Portugal, as quais acabaram por ser constitucionalizadas nesses países; o fenômeno também ocorreu no Brasil, iniciando, timidamente, com a Constituição de 1824 e prosseguindo nas constituições nacionais seguintes até os dias atuais79.

A esta atividade do Estado, voltada à obtenção da receita e realização dos gastos, cumprindo uma determinada programação, se denominou Atividade

76 Segundo Rosa Junior [2002, p. 28], “há uma tendência universal no crescimento da despesa pública, que ocorreu lentamente até a Primeira Grande Guerra, quando passou a acelerar-se consideravelmente”. 77 ARISTÓTELES. A política, p. 44.78 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 153.79 FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional, p. 492.

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Financeira80, entendendo-se por Direito Financeiro o conjunto de normas e princípios reguladores daquela Atividade, disciplinando a constituição e a gestão da Fazenda Pública81, o estabelecimento das regras e os procedimentos para a obtenção da receita pública (na maior parte advinda dos Tributos82), bem como a realização dos gastos imprescindíveis à consecução dos objetivos do Estado83.

O produto dessa especialização do conhecimento humano, no que diz respeito ao controle das contas públicas, foi o aparecimento da figura do Estado Orçamentário, entendido aqui como aquele que, baseado num planejamento, procura através do Orçamento fixar a receita tributária e a patrimonial, redistribuir rendas, entregar prestações de educação, saúde, seguridade e transportes, promover o desenvolvimento econômico e equilibrar a economia84.

É a partir desse Estado Orçamentário, pois, que se inicia um processo contínuo de aperfeiçoamento no que se refere às regras para administração das receitas e despesas estatais, processo este que alcançou os dias presentes, tempos difíceis, porquanto as carências sociais cada vez mais se avolumam, ao passo que a capacidade da Sociedade de suportar a carga tributária já se encontra próxima ou no seu limite85.

Daí resulta a grande importância do Orçamento Público “na vida pública e administrativa do país como o plano das suas necessidades monetárias, em um determinado período de tempo, aprovado e decretado pelo Poder Legislativo

80 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 3.81 Fazenda Pública: “A Fazenda Pública, objetivamente considerada, é o complexo dos recursos e obrigações financeiras do Estado. [...] A Fazenda Pública, subjetivamente considerada, confunde-se com a própria pessoa jurídica de direito público, tendo em vista que a responsabilidade do Estado é apenas financeira”. [TORRES, p. 4].82 Na dicção de Nogueira [1990, p. 160], invocando o art. 3o do Código Tributário Nacional, Tributo significa “[...] toda a prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.83 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 12.84 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 154.85 Segundo BASTOS, “as finanças públicas podem tornar-se poderoso instrumento de atuação do Estado no domínio econômico. Atualmente a tendência é a utilização moderada desse recurso, porque a sua exacerbação pode conduzir a profundas distorções da economia. Embora não haja mais condições de voltar-se a uma concepção de finanças neutras, porque, obviamente, alguma influência elas haverão de cumprir, no entretanto, a procura de um orçamento equilibrado e a contenção de gastos públicos continuam a ser metas almejadas. Crê-se que é por aí que se propiciam as condições ideais de desenvolvimento, sobretudo com o combate ao gigantismo estatal, ao desperdício dos dinheiros públicos e, fundamentalmente, à inflação ...”. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito financeiro e de direito tributário, p. 13.

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como órgão de representação popular”86, sabendo-se que, se mal elaborado, pode inviabilizar a consecução dos objetivos e ações planejadas pelo Estado.

Mas, em verdade, o que significa o pré-falado Orçamento?Na abalizada lição de Aliomar Baleeiro87, o Orçamento constitui-se no “ato

pelo qual o Poder Legislativo prevê e autoriza ao Poder Executivo, por certo período e em pormenor, as despesas destinadas ao funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotados pela política econômica ou geral do país, assim como a arrecadação das receitas já criadas em lei”.

Assim também leciona Esmein, quando afirma que o Orçamento “é ‘um ato que contém, para um tempo determinado, a previsão das receitas e das despesas do Estado e ordena a percepção de umas e o pagamento de outras’”88.

Mais atual é o conceito de José Afonso da Silva89, ao assentar que o Orçamento, o qual também denomina de Orçamento-programa90, “é o processo e o conjunto integrado de documentos pelos quais se elaboram, se expressam, se aprovam, se executam e se avaliam os planos e programas de obras, serviços e encargos governamentais, com estimativa da receita e fixação das despesas de cada exercício financeiro”.

A natureza jurídica do Orçamento, por sua vez, encontra alguma discussão na doutrina, no tocante à definição quanto à sua classificação como uma lei formal ou material, conforme apontado por Pinto Ferreira91.

Todavia, entende Rosa Junior92 ser uma “lei formal, que por ser disciplinada pela Constituição em seção diferente daquela própria das leis, deve também ser considerada lei especial, mas seu conteúdo é de mero ato de administração. Isso porque fixa as despesas públicas e prevê as receitas públicas, não podendo versar sobre outra matéria que não seja orçamentária”.

86 ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro e tributário, p. 73.87 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças, p. 411.88 Citado por Pinto Ferreira. FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional, p. 492.89 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 714.90 Refere SILVA que o Brasil adotou a técnica do “orçamento-programa”, definindo-o como um “tipo de orçamento vinculado ao planejamento das atividades governamentais. Na verdade, o orçamento-programa não é apenas uma peça financeira, é, antes de tudo, um instrumento de execução de planos e projetos de realização de obras e serviços, visando ao desenvolvimento da comunidade. É um documento em que se designam os recursos de trabalho e financeiros destinados à execução dos programas, subprogramas e projetos de execução da ação governamental, classificados por categorias econômicas, por função e por unidades orçamentárias”. SILVA, José Afonso da. Orçamento-programa no Brasil, p. 41.91 FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional, p. 492.92 ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro e tributário, p. 83.

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É o que também defende Carlos Maurício Figueiredo93: “no Brasil prevalece a corrente doutrinária segundo a qual as leis orçamentárias são leis formais. Seus efeitos jurídicos não transcendem as relações existentes entre os Poderes de Estado, não garantem a realização de receitas nem impõem a execução de quaisquer despesas”.

De fato, a lei orçamentária, por ser de natureza formal, não modifica a legislação tributária e financeira pré-existentes, igualmente não cria Direitos subjetivos em favor de terceiros, servindo, assim, apenas como um instrumento para prever a receita e fixar as despesas, no período e nos limites estabelecidos pelo Poder Legislativo.

A CRFB/88, objetivando traçar um plano adequado para administrar as receitas e despesas públicas, inspirando-se na tripartição do planejamento orçamentário alemão94, estabeleceu no artigo 165 três formas de programar as Atividades Financeiras estatais – o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o Orçamento anual –, as quais devem se integrar harmoniosamente, cuja iniciativa legislativa é reservada ao Poder Executivo [art. 165, I, II e III, CF 198895].

O Plano Plurianual [art. 165, § 1o, CRFB/88], também conhecido pela sigla “PPA”, é uma lei formal que “tem por objetivo estabelecer os programas e as metas governamentais de longo prazo. É o planejamento conjuntural para a promoção do desenvolvimento econômico, do equilíbrio entre as diversas regiões do País e da estabilidade econômica”96, o qual, porém, não vincula o Legislativo na elaboração das leis orçamentárias, servindo apenas como orientação.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias [art. 165, § 2o, CRFB/88], de seu turno, também conhecida pela sigla “LDO”, trata-se, igualmente, de uma lei de caráter formal, não vinculativa, mas agora de periodicidade anual, servindo de orientação para a elaboração do Orçamento do ano seguinte, cujo

93 FIGUEIREDO, Carlos Maurício et alli. Comentários à lei de responsabilidade fiscal, p. 55. Ainda afeto ao tema, discorrendo sobre as teorias existentes que pretendem justificar a natureza jurídica do Orçamento, confira-se a seguinte obra: TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 156-160.94 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 154.95 CRFB/88. Este dispositivo se encontra reproduzido, por simetria, nas Constituições dos Estados Federados. No Estado de Santa Catarina a matéria está assim disciplinada: “Art. 120 – O plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais serão estabelecidos em leis de iniciativa do Poder Executivo”. SANTA CATARINA. Constituição do Estado de Santa Catarina, p. 105.96 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 154. No mesmo sentido, tem-se a lição de Rosa Junior [2002, p. 93]: “O plano plurianual deve conter, de forma regionalizada, as diretrizes, os objetivos e as metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada (art. 165, § 1o)”.

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projeto deve ser encaminhado pelo Executivo até oito meses e meio antes do encerramento do exercício financeiro (ou seja, do início do mês de Janeiro até metade do mês de Abril), e devolvido pelo Legislativo para sanção ainda no primeiro semestre (até o final do mês de junho)97.

Consiste, em última análise, de “um plano prévio, fundado em considerações econômicas e sociais, para ulterior elaboração da proposta orçamentária do Executivo, do Legislativo (arts. 51, IV e 52, XIII), do Judiciário (art. 99, § 1o) e do Ministério Público (art. 127, § 3o)”98.

Por último, a LOA – Lei Orçamentária Anual, igualmente de natureza formal, consiste em uma lei aprovada pelo Poder Legislativo, a partir de uma proposta enviada pelo Poder Executivo, englobando, num único documento, o Orçamento fiscal, o Orçamento de investimentos das empresas estatais e o Orçamento da seguridade social [art. 165, § 5o, incisos I a III, CRFB/88].

Destaca-se que o projeto de Lei Orçamentária deve ser encaminhado até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro (isto é, até o final do mês de Agosto), e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa (até o final do mês de Dezembro)99, sob pena de prorrogação da lei anterior, durante o novo exercício, até a aprovação das novas normas orçamentárias100.

É a Lei Orçamentária Anual, portanto, que poderá ou não dar concretude às recomendações e orientações expressas no Plano Plurianual e na Lei de Diretrizes Orçamentárias, porquanto não há relação de vinculação obrigatória na elaboração da primeira aos ditames destes dois últimos diplomas, senão a recomendação constitucional de harmonia e compatibilização entre as mesmas, conforme assevera Torres101.

Particularmente, em relação à Lei Orçamentária Anual, interessa ressaltar a importância de uma de suas partes – o Orçamento Fiscal, porquanto este é o documento que contém discriminadas todas as receitas e despesas,

97 Estes prazos estão de acordo com o disposto no art. 35, inciso III, do Ato das Disposições Transitórias da Constituição da República de 1988, enquanto outros não forem definidos pela Lei Complementar a que se refere o art. 165, § 9o, da referida Constituição, até hoje não editada. Confira-se, a propósito: ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro e tributário, p. 95-96.98 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 156.99 Este prazo está de acordo com o disposto no art. 35, inciso II, do Ato das Disposições Transitórias da CRFB/88, enquanto outro não for definido pela Lei Complementar a que se refere o art. 165, § 9o, da referida Constituição, até hoje não editada. Confira-se, a propósito: [ROSA JUNIOR, 2002, p. 95-96].100 No mesmo sentido entende ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro e tributário, p. 96.101 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 156.

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abrangendo os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além dos fundos, órgãos e entidades da administração direta, indireta e fundações públicas102.

A análise do Orçamento Fiscal, assim, pode servir de relevante fonte de informação para se aferir até que ponto o Princípio da Independência e da Harmonia entre os Poderes é respeitado, bastando, para isso, comparar a proposta orçamentária elaborada e encaminhada ao Executivo pelos poderes Legislativo e Judiciário, para efeito de elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei Orçamentária, bem como as respectivas justificativas apresentadas sobre necessidades e projetos de aperfeiçoamento e ampliação, com a efetiva dotação orçamentária que, ao final, lhes foi consignada pela Lei Orçamentária.

Com efeito, o maior ou menor grau de atendimento das necessidades e expectativas orçamentárias destes poderes, na Lei de Diretrizes Orçamentárias ou na Lei Orçamentária, o maior ou menor grau de consenso na elaboração do Orçamento Público, indicarão o equivalente estágio de evolução e maturidade no cumprimento da Independência e Harmonia constitucionais, daí decorrendo reflexos positivos ou negativos para a efetividade da Autonomia Financeira do Poder Judiciário.

Destaca-se ainda outro grande desafio, quando se fala em Orçamento Público, consistente na gestão orçamentária, isto é, a administração das Receitas previstas e das Despesas fixadas103.

A relação entre Receita e Despesa, explica Ricardo Lobo Torres104, consiste nas “duas faces da mesma moeda, as duas vertentes do mesmo Orçamento. Implicam-se mutuamente e devem se equilibrar”.

Recolhe-se na doutrina que a política vigorante no período de 1930 a 1980, admitindo Orçamentos com déficit por excesso de despesa, para viabilizar investimentos no sentido de garantir o pleno emprego e a estabilidade econômica, hoje se encontra superada, buscando-se alcançar estes mesmos objetivos, mas com a manutenção de um Orçamento equilibrado105.

Neste sentido, em busca do referido equilíbrio, a Constituição da República de 1988, além das três formas de planejamento já referidas (PPA, LDO e LOA),

102 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 157.103 A Categoria Receita deve ser entendida como a “[...] soma de dinheiro percebida pelo Estado para fazer face à realização do gastos públicos”, ao passo que a Categoria Despesa significa “[...] a soma dos gastos realizados pelo Estado para a realização de obras e para a prestação de serviços públicos”. [TORRES, 2002, p. 165 e 172].104 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 173.105 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 173.

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ainda determinou a edição de lei complementar para disciplinar as finanças públicas (art. 163, inciso I), bem como para limitar os gastos com pessoal ativo e inativo, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 169), deixando o quantum de limitação para a norma infraconstitucional.

Em cumprimento ao mandamento da Carta Política, sobreveio a Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – “LRF”) 106, até hoje objeto de críticas e aplausos.

Louvando os propósitos da referida Lei Complementar, assevera Figueiredo107:

A LRF [...] trouxe novamente à tona a discussão sobre o equilíbrio orçamentário e não se limitou à ingenuidade do mero equilíbrio entre previsão de receitas e fixação de despesas na proposta de Orçamento. Foi mais longe e impôs o efetivo equilíbrio financeiro ao longo de todo o exercício, com ênfase no último ano de mandato dos gestores, inclusive instituindo formalmente preocupação com o que denomina riscos fiscais, fatores que, se não adequadamente previstos, podem comprometer o equilíbrio das contas e a qualidade da gestão. Equilíbrio e transparência são, aliás, dois grandes pilares sobre que se assenta a LRF.

Evidentemente, a necessidade de controlar os gastos com pessoal, por parte do Estado, é um problema histórico, sendo elogiável a preocupação do legislador constituinte em buscar alternativas para estancar práticas clientelistas e de apadrinhamentos políticos, condutoras de verdadeiro loteamento de cargos públicos, fonte geratriz de inchaço da máquina administrativa e cujos custos impedem os investimentos necessários para a melhoria e ampliação dos serviços estatais.

Adverte Torres108, todavia, que a Lei de Responsabilidade Fiscal, inspirada no modelo autoritário da Nova Zelândia, ao trazer diversas previsões visando ao controle dos gastos com “pessoal”, incorreu em situações de duvidosa constitucionalidade por promover uma centralização vertical (no

106 O art. 163 está assim redigido: “Art. 163. Lei complementar disporá sobre: I – finanças públicas;”; o caput do art. 169 da Constituição Federal tem a seguinte redação: “Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar”. CRFB/88.107 FIGUEIREDO, Carlos Maurício et alli. Comentários à lei de responsabilidade fiscal, p. 61.108 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 9. ed. atual. até a publicação da Emenda Constitucional n. 33, de 11.12.2001 e da Lei Complementar 113, de 19.9.1. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 164-165.

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Governo Federal) ou horizontal (no Poder Executivo) do poder controlador. E exemplifica:

(...) a) o art. 19 estabeleceu limites de gastos com o pessoal para cada ente da Federação e o art. 20 repartiu tais gastos entre o Judiciário, o Legislativo, o Executivo e o Ministério Público;b) o § 3o do art. 9o prescreveu que “no caso de os Poderes Legislativo e Judiciário e o Ministério Público não promoverem a limitação no prazo estabelecido no caput, é o Poder Executivo autorizado a limitar os valores financeiros segundo os critérios fixados pela Lei de Diretrizes Orçamentárias” (o dispositivo foi suspenso por liminar concedida pelo STF em 22.2.02, na ADIN 2.238).c) os arts. 21, 22 e 23 estabelecem normas para o controle total do pessoal.

A impressão do jurista, no que se refere à violação de preceitos constitucionais pela Lei Complementar referenciada, quando estabelece limites no âmbito dos entes federados e entre os poderes para gastos com pessoal, não é isolada.

Adauto Viccari Junior109, de forma bastante direta e incisiva, ao interpretar o artigo 20, da Lei de Responsabilidade Fiscal, deixa estampada sua posição crítica:

A nova lei de responsabilidade fiscal ao importar o modelo de metas inflacionárias de países que adotam a forma parlamentar de governo, tais como Alemanha, Canadá, Grã-Bretanha e Nova Zelândia, des-considerou as especificidades do sistema presidencialista e a estrutura do Estado Federal. Daí se extrai que os Estados são dotados de auto-nomia, enquanto a União é dotada de soberania. A autonomia dos Estados manifesta-se por meio de governos próprios e competências exclusivas. Está na autonomia a capacidade de auto-organização. A fixação de percentuais, no art. 20, II, para os Poderes e para o Minis-tério Público, no âmbito dos entes da federação brasileira, importou na revogação da autonomia de auto-organização. A União, ao invadir a autonomia dos Estados-membros, afronta o disposto no art. 2o da CF (Separação de Poderes) e art. 60, § 4o, I e II, de CF (forma federa-tiva e separação de poderes), que trata das cláusulas pétreas.

109 VICCARI JUNIOR, Adauto. et alli. Lei de responsabilidade fiscal comentada..., p. 78.

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Por sua vez, destaca Figueiredo110 que “esse artigo encerra uma série de análises, muitas vezes polêmicas, sobretudo quanto à sua constitucionalidade. Inova em relação às leis Camata I e II, pois fixa o limite máximo de gasto com pessoal em cada Poder e não apenas no ente”.

Acrescenta ainda outros importantes questionamentos: “como esses percentuais foram encontrados? Qual o critério, ou critérios, para determinar o percentual de cada Poder”111.

E a resposta à pergunta é contundente: “simplesmente foi estabelecida uma medida aritmética dos valores encontrados para todos os Estados da Federação. O critério de estabelecimento dos limites do artigo 20 foi, se não arbitrário, no mínimo, pueril”112.

Porém, ao analisar, especificamente, o artigo 20, da Lei de Responsabilidade Fiscal, malgrado as suas desconfianças, ainda assim entende constitucional o dispositivo, apontando para tanto uma interpretação intermediária, qual seja a possibilidade das Leis de Diretrizes Orçamentárias de cada ente federado estipularem limites diferentes para gastos com pessoal, respeitado o valor global, previsto no artigo 19, da “LRF”. Defende o doutrinador:

(...) harmonizando princípios de hermenêutica constitucional com o princípio fundamental da autonomia dos entes federados e, por fim, arrimados em pronunciamento da Suprema Corte, entendemos que os entes federados poderão estabelecer em suas LDOs limites percentuais de gastos com pessoal diferentes daqueles estabelecidos no artigo 20 da LRF. No entanto, é importante lembrar, poderão fazê-lo desde que respeitados os limites globais do artigo 19. Caso as LDOs sejam omissas, serão utilizados, então, os limites dispostos no art. 20 (...)113.Mas esses argumentos são rebatidos por Régis Fernandes de Oliveira114, ao afirmar taxativamente que a União, no âmbito da legislação concorrente (art. 24, CRFB/88), tem competência para legislar aos entes federais apenas na edição de normas gerais, e, descendo a LRF a minúcias quanto aos percentuais de gastos com

110 FIGUEIREDO, Carlos Maurício et alli. Comentários à lei de responsabilidade fiscal, p. 138.111 FIGUEIREDO, Carlos Maurício et alli. Comentários à lei de responsabilidade fiscal, p. 61.112 FIGUEIREDO, Carlos Maurício [et al]. Comentários à lei de responsabilidade fiscal, p. 61.113 FIGUEIREDO, Carlos Maurício [et al]. Comentários à lei de responsabilidade fiscal, p. 61.114 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Responsabilidade fiscal. p. 55.

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pessoal por parte dos Poderes dos Estados, agrediu de forma direta o princípio federativo, incidindo em flagrante inconstitucionalidade.E acrescenta o mesmo autor que, “por maior boa vontade que se tenha no entendimento de que a norma é moralizadora, antes de mais nada, deve o jurista respeito aos princípios cardeais do sistema jurídico constitucional115.

Decididamente, a questão não é pacífica quanto à constitucionalidade dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, relativamente aos gastos com pessoal.

Observa-se, neste ponto, que desconsideradas pelo legislador as funções específicas de cada Poder, ao estabelecer os limites indicados, notadamente no que se refere ao Poder Judiciário, porque um exclusivo prestador de serviços. Não é possível perder de mira ser a atividade judicial um monopólio estatal, que não admite delegação, erigindo-se, pois, como condição imprescindível ao cumprimento da missão constitucional imposta ao respectivo Poder, a existência de um corpo funcional qualificado (material humano insubstituível por máquinas) e em número capaz de suportar a demanda, sempre crescente.

De qualquer forma, o fato é que a questão encontra-se sub judice perante o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN, no 2.238116.

Em decisão cautelar, proferida no referido processo, datada de 22.2.2001, restou suspensa a eficácia do § 3o, do artigo 9o, da lei em referência, justamente por suspeita de malferimento olímpico ao Princípio da Tripartição dos Poderes (Independência e Autonomia do Poder Judiciário e do Poder Legislativo), eis que permitia ao Poder Executivo limitar, unilateralmente, os valores financeiros dos demais poderes e do Ministério Público, na hipótese de comportamento inadequado da receita em relação ao previsto, com risco de comprometimento das metas de resultado primário e nominal, estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais.

A liminar deferida pela Corte Suprema, se de um lado ainda se mostra precária porque não apreciou com profundidade o mérito da controvérsia, de

115 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Responsabilidade fiscal. p. 56.116 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 2.238/2000-DF. Relator Ministro Ilmar Galvão (substituído pelo Ministro Carlos Britto). Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 2 de março de 2006.

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outro, continua a lançar dúvida117 séria de que a Lei Complementar no101/2000 efetivamente possui incompatibilidades com o texto constitucional, as quais aguardamos sejam devidamente declaradas, em tempo.

Anota-se, ainda, relativamente à referida decisão da Excelsa Corte que, mesmo na parte onde foi reconhecida a constitucionalidade do art. 20 da LRF, o placar de seis votos a cinco assinala a dificuldade do problema e aponta o caráter político do Tribunal, sustentando Régis Fernandes de Oliveira seu inconformismo ao afirmar não ser possível “(...) entender constitucional o dispositivo, no que vincula Estados e Municípios, impondo-lhes restrições, bem como no que alcança os Poderes Judiciário e Legislativo. A norma nacional complementar apenas pode dispor sobre ‘normas gerais’ e, positivamente, assim não se podem entender aquelas que descem a detalhes sobre percentuais de aplicação obrigatória”118.

A indignação do jurista encontra eco nas palavras do ex-Ministro Carlos Mário da Silva Velloso, do próprio Supremo Tribunal Federal, ao prefaciar obra de Ives Gandra Martins e Carlos Valder do Nascimento, oportunidade em que sustentou a inconstitucionalidade do artigo 20 da LRF, em face do malferimento da autonomia estadual, a qual classifica como “espinha dorsal do federalismo”.119

E manifestou surpresa o então Ministro, inclusive, com a aprovação do texto da LRF por parte de alguns Governadores, dizendo que estariam eles “esquecidos de que o dispositivo provoca a ofensa ao princípio maior, o da autonomia do Estado, sem o qual não há federação”, e indagou: “o que vai acontecer, então, daqui para frente?”.

Antevendo os efeitos negativos para o Poder Judiciário, finalizou o ex-Magistrado do Pretório Excelso:

O serviço da Justiça, de regra deficiente, porque deficiente o número de juízes, deficiente o apoio administrativo aos juízes de 1º grau, tende a piorar, porque os Tribunais não poderão aperfeiçoá-lo. Convém registrar que, por esse Brasil afora, há juízes que não dispõem nem

117 Dúvida, para Mendes [2004, p. 107], “[...] pressupõe uma opinião hipotética que traduz insegurança sobre a validade da lei [...]. Não se exige, tal como admitido por Schumann [...], uma opinião definitiva ou a negação da legitimidade da norma [...]. Aquele que tem dúvida sobre a constitucionalidade de uma norma não nega, definitivamente, a sua legitimidade”.118 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Responsabilidade fiscal. p. 57.119 MARTINS, Ives Gandra da Silva; NASCIMENTO, Carlos Valder do. Comentários à lei de responsabilidade fiscal, p. XXVIII.

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de máquina de escrever, quando a máquina de escrever, diante da revolução dos computadores e da informática, virou peça de museu.

Enfim, possível constatar, de tudo o quanto foi trazido que, para a concretização das complexas atividades desenvolvidas pelo Estado, no âmbito das três esferas de Poder (Executivo, Legislativo e Judiciário), dado o volume de recursos financeiros envolvidos na atualidade, necessário se faz, cada vez mais, um controle eficiente das receitas e despesas públicas.

Para tanto, o sistema de planejamento orçamentário previsto na CRFB/88 e acima apresentado (PPA, LDO, LOA, LRF), assume uma função de extrema relevância, qual seja, a otimização dos recursos captados da Sociedade, de forma a possibilitar a ampliação dos serviços estatais e atender uma população cada vez mais ávida pelo exercício da cidadania, sob pena de se vivenciar uma situação de “ingovernabilidade”, usando, aqui, a expressão de José Eduardo Faria120.

E o risco desse desgoverno é sempre iminente em períodos de crise fiscal, assegurando Faria121 que “se agrava ainda mais quando as dificuldades fiscais, as tensões orçamentárias e os demais problemas políticos ameaçam a própria autonomia, a coesão, a operacionalidade e a funcionalidade das instituições governamentais”.

O esforço permanente para o Poder Judiciário, pois, está em não permitir que as normas disciplinadoras da Atividade Financeira do Estado, na ânsia de solucionar o déficit de caixa, sejam conformadas em confronto com os preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito, em prejuízo da sua Autonomia Financeira e em detrimento da promoção dos Direitos Fundamentais, dentre eles o Acesso à Justiça.

120 Sobre este fenômeno da “ingovernabilidade”, adverte Faria [2002, p. 119-120]: “A situação limite de um cenário de ingovernabilidade é uma crise fiscal, quando o Estado perde crédito público, deixa de acumular poupança, é pressionado por grupos de interesses de todos os tipos, enfrenta dificuldades crescentes para executar suas políticas e vê comprometida sua capacidade de regular a economia e promover transferências de renda no interior da sociedade. Essa crise se torna particularmente visível no momento em que as despesas sociais destinadas a legitimar um modo específico de produção, mediante a busca de harmonia social e de lealdade às regras do jogo econômico, em troca de programas de bem-estar nas áreas da saúde, transporte, previdência, saneamento básico, moradia e educação, passam a crescer mais rapidamente do que os meios de financiá-la. Como é sabido, essas despesas, uma vez efetivadas, convertem-se em direitos sociais que acabam não podendo mais ser suprimidos sem o risco de grandes tensões – sob a forma de greves por vezes selvagens, protestos por vezes violentos e grandes mobilizações – para a sustentação dos governos e para legitimidade do próprio sistema político”.121 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada, p. 121.

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5. Autonomia financeira dos tribunais e gestão orçamentária

eficiente – Exigência constitucional

Estabelecidas essas importantes premissas para a correta compreensão do tema (Princípio da Tripartição dos Poderes, Independência, Autônoma Financeira e Orçamento Público), volvemos ao início para repisar, uma vez mais, que as mudanças impostas ao Poder Judiciário brasileiro, a partir da Reforma Constitucional 45/2004, buscaram, em sua essência, a reconstrução desse Poder da República, tornando-o moderno e capaz de conferir eficácia aos direitos fundamentais, notadamente o Acesso à Justiça e a Duração Razoável do Processo (art. 5o, CRFB/88), os quais, em última instância, consagram verdadeira garantia de respeito aos demais direitos consagrados na Carta Constitucional.

A empreitada é de grande envergadura, na medida em que os dados es-tatísticos continuam a demonstrar um desconcertante déficit entre a estrutura judicial nacional hoje existente e a crescente demanda dos “consumidores” da Justiça, usando aqui expressão cunhada por Cappelletti.

Somente para exemplificar, no ano de 2007 existiam no Brasil 64.510.608 processos em andamento no Primeiro Grau122, para um quadro de 13.349 Juízes (Estaduais, Federais e do Trabalho), do que resulta uma média de 4.832 processos por Juiz, conforme planilhas divulgadas pelo Conselho Nacional de Justiça no Projeto “Justiça em Números 2007”.

No mesmo ano, se considerada a estimativa populacional do Instituto Bra-sileiro de Geografia e Estatística – IBGE, igual a 184.000.000 de habitantes, e ainda, partindo do pressuposto de que a Justiça brasileira é nacional e está apenas dividida em dois níveis com competências distintas (Estadual e Federal – esta última subdividida em Comum e do Trabalho), encontramos a seguinte realidade no tocante ao número de Juízes de Primeiro Grau por habitante, no âmbito nacional:

a) 19.440 habitantes por Juiz Estadual de Primeiro Grau;b) 143.413 habitantes por Juiz Federal de Primeiro Grau;c) 70.742 habitantes por Juiz do Trabalho de Primeiro Grau.No ano de 2010, a situação não registrou grandes avanços positivos,

122 Os dados se referem apenas ao Primeiro Grau, e englobam a Justiça Comum Estadual, a Justiça Federal e a Justiça do Trabalho. Foram somados os processos novos ajuizados e os processos pendentes de julgamento no ano de 2007, inclusive os feitos do Juizado Especial, as execuções de títulos extrajudiciais na Justiça Federal, e as execuções na Justiça do Trabalho.

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alcançamos o contingente de 83.400.000 processos tramitando nos três ramos da Justiça, para um universo de 16.553 magistrados123.

Esses dados, seguramente, mostram realidade desconfortável se comparados a outros países, como a Alemanha, cuja razão é de um Juiz para cada grupo de 4.000 habitantes, segundo referiu certa vez o então Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Mário da Silva Veloso124.

Em nossa obra “Acesso à Justiça e Autonomia Financeira do Poder Judiciário”125, as carências materiais e humanas do Judiciário brasileiro, assim como a insuficiência crônica de recursos financeiros, especialmente nos tribunais estaduais, foram cientificamente demonstradas através de pesquisa de campo realizada entre os anos de 2001 a 2004. O trabalho acadêmico que serviu de base à referida obra, então marcado pelo ineditismo em razão da temática e abrangência nacional, posteriormente foi continuado de forma amplificada e aprofundada pelo Supremo Tribunal Federal e, ao depois, pelo Conselho Nacional de Justiça (Justiça em Números).

De todo modo, a análise dos dados estatísticos hoje disponíveis permanece apontando para o descumprimento do primado da Autonomia Financeira do Poder Judiciário; esse problema de natureza político-institucional (posto que a solução exige uma agenda comum positiva, um significativo esforço entre os Poderes da República), em grande medida, situa-se na base do fenômeno da morosidade processual.

Assim, forçoso reconhecer que a erradicação da morosidade passa, necessariamente, pelo cumprimento efetivo desse preceito constitucional, inserido no art. 99 da Carta Política de 1988.

Todavia, essa afirmação/constatação, ousada para alguns, equivocada para outros, mas respeitada por muitos daqueles que vivenciam a realidade do Judiciário brasileiro, remete a um desdobramento complementar e oportuno.

Ocorre que o legislador constituinte, ao mesmo tempo em que corajosamente avançou e emancipou o Poder Judiciário, conferindo-lhe expressa Autonomia Administrativa e Financeira, igualmente dele exigiu o cumprimento de outro

123 Esses dados, extraídos do Relatório “Justiça em Números 2010”, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça-CNJ, englobam o primeiro e o segundo graus de jurisdição.124 SCHUCH, Luiz Felipe Siegert. Acesso à justiça e autonomia financeira do Poder Judiciário: a quarta onda? Em busca da efetividade dos direitos fundamentais. 1. ed. (2006). 2. reimpr. (2010) Curitiba: Juruá Editora, 2010. p. 156.125 SCHUCH, Luiz Felipe Siegert. Acesso à justiça e autonomia financeira do Poder Judiciário: a quarta onda? Em busca da efetividade dos direitos fundamentais. 1. ed. (2006), 2. reimpr. (2010). Curitiba: Juruá Editora, 260 p.

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preceito – o Princípio da Eficiência (art. 37, CRFB/88), já conceituado linhas atrás e que, resumidamente, significa a obrigação de bem gerir os recursos públicos para extrair o máximo de produtividade.

Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, no plano do Direito Administrativo a Eficiência significa a “melhor realização possível da gestão dos interesses públicos, em termos de plena satisfação dos administrados com os menores custos para a sociedade”126.

Como corolário, temos então que a combinação dos princípios da Eficiência e da Autonomia Financeira do Poder Judiciário faz surgir para este Poder a obrigação constitucional de uma Gestão Orçamentária Eficiente, aqui entendida como um conjunto de atos de administração do orçamento público, destinados à sua elaboração sintonizada com as políticas institucionais eleitas como prioritárias, e voltados para a responsável, fiel e integral execução no curso do exercício financeiro para o qual foi projetado127, do que não escapam, obviamente, os demais entes públicos.

Transportando a discussão do plano teórico para o mundo das coisas terrenas, significa dizer que a adoção pura e simples dos métodos e técnicas do Direito Financeiro por parte dos tribunais, brevemente referenciadas do tópico anterior, dentre as quais a utilização da peça orçamentária apenas como baliza de receitas e despesas, não mais condiz com a quadra atual de exigência social de qualidade dos serviços.

O Poder Judiciário contemporâneo precisa ser proativo para superar as adversidades e alcançar a excelência no cumprimento de sua missão institucional/constitucional.

Nesse quadro, pois, a Gestão Orçamentária Eficiente se apresenta como importante meta a ser perseguida e implementada, razão pela qual neste breve estudo entende-se oportuno destacar três ferramentas úteis para a sua concretização, como forma de contribuir para o aprimoramento da atividade gerencial: a) orçamento participativo; b) planejamento e gerenciamento estratégico – adoção do sistema “Balanced Scorecard (BSC)”; c) execução orçamentária plena.

Vejamos cada uma delas em separado.A adoção da prática do Orçamento Participativo na formulação da

proposta orçamentária do Poder Judiciário se revela de grande importância, na

126 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A lei de responsabilidade fiscal e seus princípios jurídicos. RDA n. 221, jul./set. 2000, p. 84.127 Conceito operacional elaborado pelo autor.

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medida em que democratiza a decisão sobre as necessidades e prioridades da instituição, produzindo maior comprometimento dos envolvidos na execução futura da peça orçamentária consolidada.

Conforme Cláudia Dantas Ferreira da Silva, “somente um plano de gestão legitimado pelo corpo de magistrados do tribunal e pelos servidores pode possibilitar a implementação de mudanças a longo prazo e garantir a continuidade, superando o problema dos avanços e retrocessos a que se submete o órgão a cada nova gestão”128.

A realização de reuniões regionais com magistrados, servidores, membros do Ministério Público e representantes da Ordem dos Advogados do Brasil no processo de colheita de informações, sugestões, identificação dos problemas e suas causas, contribui para a confecção de um orçamento mais próximo das expectativas sociais, e, por conseguinte, com maior probabilidade de produzir os resultados esperados.

Diferentes percepções sobre uma mesma realidade podem enriquecer a avaliação sobre as verdadeiras causas dos problemas enfrentados por determinada comarca ou unidade jurisdicional.

É preciso diferenciar a deficiência de estrutura da unidade/comarca para atender a demanda, que reclama maiores investimentos financeiros em equipamentos e material humano, da deficiência de gestão na mesma unidade/comarca/seção judiciária por parte dos seus responsáveis, o que reclama outro tipo de abordagem.

De outro lado, a adoção do Planejamento Estratégico e a combinação com o sistema “Balanced Scorecard (BSC)”, este último adaptado para o setor público129, constitui importante ferramental para a produção do retorno almejado na execução orçamentária.

Entenda-se como planejamento estratégico o processo pelo qual os integrantes e líderes de uma organização visualizam cenários futuros a partir de causas e efeitos e, partindo dessas projeções, estabelecem procedimentos

128 SILVA, Cláudia Dantas Ferreira da. Administração judiciária: planejamento estratégico e a reforma do judiciário brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 976, 4 mar. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8062. Acesso em: 21 maio 2007.129 Segundo Kaplan e Norton, o sistema Balanced Scorecard pode perfeitamente ser adaptado às entidades governamentais e não lucrativas, bastando colocar os clientes no alto da pirâmide, ou seja, como o principal objetivo a atingir. KAPLAN, Robert S.; NORTON, David P. Organização orientada para a estratégia. Tradução Afonso Celso da Cunha Serra. 9. Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000. p. 146.

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e ações direcionados a alcançar um resultado futuro; quanto ao Balanced Scorecard, representa um sistema de monitoramento, medições e indicadores para aferir a eficiência/realização daquilo que se planejou realizar.

Assim, o planejamento é substancialmente potencializado quando as metas predefinidas como prioritárias e os projetos incluídos no orçamento são monitorados durante a execução orçamentária, através de um conjunto de indicadores sobre o desempenho desses projetos, permitindo uma posterior avaliação, um amplo feedback.

O resultado dessas medições é necessário ao aperfeiçoamento do planejamento e aferição da correção ou não das estratégias então utilizadas, aqui residindo, pois, uma das grandes virtudes do sistema Balanced Scorecard (BSC).

Como bem afirmam Kaplan e Norton, “medir é importante: o que não é medido não é gerenciado”130, elencando uma série de vantagens na utilização do sistema BSC na gestão estratégica, tais como:

a) esclarecer e obter consenso em relação à estratégia;b) comunicar a estratégia a toda a empresa;c) alinhar as metas departamentais e pessoas à estratégia;d) associar os objetivos estratégicos com metas de longo prazo e orçamentos

anuais;e) identificar e alinhar as iniciativa estratégicas;f ) realizar revisões estratégicas periódicas e sistemáticas;g) obter feedback para aprofundar o conhecimento da estratégia e

aperfeiçoá-la.Por último, também importante para uma gestão orçamentária eficiente,

a busca permanente da Execução Orçamentária Plena, aqui entendida como a completa execução dos projetos inseridos no orçamento, durante o seu exercício.

Injustificável à população, ao jurisdicionado, a carência ou deficiência dos serviços judiciários por falta de execução dos projetos previstos, quando disponíveis os recursos orçamentários necessários para a melhoria do atendimento.

Também não se mostra razoável, no atual quadro de dificuldades orçamentárias enfrentado pelos tribunais, a alocação de recursos em projetos de

130 KAPLAN, Robert S.; NORTON, David P. A estratégia em Ação: balanced scorecard. Tradução Luiz Euclydes Trindade Frazão Filho. 17. Ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 21.

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difícil realização ou que previamente se sabe não serão executados, porquanto tal prática produz desequilíbrio e, por vezes, falta de recursos em outros setores prioritários. Pior ainda são os casos de hipertrofia de alguns projetos, fruto da falta de um correto planejamento prévio à confecção da proposta orçamentária.

Esses desvios na execução do orçamento público frustram expectativas, sendo necessário lembrar que o objetivo do planejamento estratégico, da execução orçamentária eficiente, da adoção de ferramentas de medição e controle dos projetos, não está, como na iniciativa privada, na obtenção do lucro, mas sim na satisfação do “consumidor” da Justiça, do cidadão, na prestação de um serviço de qualidade e com níveis de excelência capazes de fortalecer ainda mais o Estado democrático.

A adoção dessas ferramentas poderá, seguramente, produzir melhores resultados gerenciais, emprestando mais eficiência no dispêndio dos recursos financeiros disponíveis.

Como consequência, estarão os gestores públicos protegidos dos dez pecados capitais enumerados por Valéria Fernandes da Silva131:

a) o gestor público não programa suas Ações de forma planejada, mas as concebe no dia a dia, conforme a urgência de cada situação;

b) o gestor público não dá importância ao orçamento público, concebendo-o como entrave burocrático à sua administração;

c) o gestor público não gosta de descentralizar decisões, pois entende que isto significa perda de poder;

d) o gestor público não investe em capacitação e nem tampouco busca as melhores referencias profissionais. O seu foco é político e não técnico;

e) o gestor público tem receio de ser transparente, pois teme ser questionado sobre suas ações;

f ) o gestor público não tem o hábito de socializar informações e de utilizá-las em sua estratégia de ação;

g) o gestor público fica tentando inventar a roda, quando poderia aperfeiçoar e adequar para a sua realidade situações já existentes;

h) o gestor público ainda não acredita que será punido se cometer erros ou prejuízos à sociedade;

i) o gestor público administra a coisa pública como se fosse uma administração doméstica e baseada em contabilidade de botequim;

131 SILVA, Valeria Fernandes da. Orçamento público e controle democrático. TCEMG. 5/2004. Disponível em: www.scribd.com/doc/7393026/Orcamento-Publico-E-Democracia. Acesso em 15.9.2009.

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j) o gestor público não se preocupa em ser responsável do ponto de vista legal, mas sim em ser eficiente do ponto de vista político.

Ao finalizar, resta apenas consignar uma necessária advertência: a melhora gerencial, tão somente, não possui o condão de arrostar o grave problema do déficit estrutural do Poder Judiciário brasileiro, antes referenciado; tampouco se mostra o remédio adequado para curar a chaga degenerativa que acomete a legislação processual, que de tantos curativos e cirurgias vem se transformando em um verdadeiro Frankstein.

O Judiciário nacional permanece com uma desproporção acentuada entre o número de julgadores, o quantitativo populacional e o volume de processos novos e em andamento, desproporção esta que se afigura mais destrutiva do que em países desenvolvidos, na medida em que, nestes últimos, o elevado nível cultural é fator auxiliar na autocomposição dos conflitos, ao contrário do que se vê no Brasil, onde os Tribunais convivem com questões da mais alta complexidade ladeadas por brigas de vizinhos, decorrentes de motivos dos mais exóticos132.

Enfim, planejamento, gestão eficiente e investimento, estes são os três alicerces fundamentais para reconstruir o Judiciário atual, e sobre os quais devem ser apoiadas as novas bases para o Judiciário do futuro.

Para encerrar, resta apenas dizer que é tempo de vivificar os princípios constitucionais fundantes da Sociedade nacional, através de posturas ativas daqueles que detém o poder político, social e econômico. O momento exige a demonstração de “vontade de Constituição” (Wille zur Verfassung), para que a Carta Magna possa expressar, na sua plenitude, a “força normativa” de cada um dos seus preceitos, usando aqui as valiosas expressões de Konrad Hesse133.

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DEMOCRACIA E PODER JuDICIáRIO: PROPOSTAS PARA uMA NOVA JuSTIçA BRASILEIRA

Fernando Cesar Baptista de MattosJuiz Federal Titular da 1a Vara Federal de Execução Fiscal de Vitória – ESMestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da universidade do Estado do Rio de Janeiro – uERJ

Vilian BollmannJuiz Federal SubstitutoMestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do ItajaíAutor dos livros “Novo Código Civil: princípios, inovações na parte geral e direito intertemporal”, “Juizados Especiais Federais: comentários à legislação de regência”, “Hipótese de Incidência Previdenciária e temas conexos” e “Justiça e Previdência”Diretor Tesoureiro da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) para o biênio 2008/2010.

Resumo

O estudo aborda a democratização do Poder Judiciário. São analisadas tanto a ideia de Democracia no plano político e na dogmática constitucional quanto no âmbito dos novos papéis assumidos pelo Poder Judiciário contemporâneo. A partir desta análise, busca-se apontar alguns instrumentos para ampliação da Democracia na atividade-fim jurisdicional quanto na sua gestão interna.

Palavras-chave

DEMOCRACIA – PODER JUDICIÁRIO – STF – AÇÕES COLETIVAS – JUIZADOS ESPECIAIS – CNJ – CJF – CSJT

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1. Nota introdutória

A evolução histórica da humanidade revela uma aparente ampliação do debate acerca da legitimidade do Estado e das instituições sociais que detêm e exercem o poder1. As pressões sociais pela participação na tomada de decisões levam, cada vez mais, a uma consolidação do exercício da Democracia como elemento de regulação dos embates políticos. Neste caminho, influenciado pelas contínuas transformações da Sociedade, o Constitucionalismo2 sofreu diversas alterações no tempo, especialmente no que se refere à ampliação da esfera de atuação do Poder Judiciário bem como à necessidade de observância do princípio democrático.

Por outro lado, muito embora cresça o consenso quanto à necessidade de estabelecimento e perenidade da Democracia, não há, ainda, um discurso claro sobre o que significa este regime e nem tampouco como este discurso teórico deve se concretizar na prática, especialmente no âmbito das instituições que compõem o Estado.

Neste processo é possível apontar algumas direções, ainda que elas possam trazer contradições entre si e não formem um todo sistemático. A questão não é achar uma resposta definitiva (objetivo que seria no mínimo ingênuo e, no limite, arbitrário3), mas sim a possibilidade de formação de um discurso que

1 O poder é capacidade que um sujeito ou grupo de realizar a sua vontade, influenciando, condicionando ou determinando o comportamento de um ou mais pessoas (BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política, p. 216. NOVA, Sebastião Vila. Introdução à Sociologia, p. 85). Há três teorias para conceituar poder: (a) substancialista, o poder é o meio – força psicológica – para obter um fim; (b) subjetivista, o poder é a capacidade de obter algo; (c) relacional, poder é a relação entre sujeitos na qual um obtém de outro um efeito desejado (BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade, p. 77-78). Diz-se que há três formas de poder, que produzem desigualdades entre fortes e fracos: (1) riqueza ou poder econômico, decorrente da organização das forças produtivas; (2) saber ou poder ideológico, oriundo organização do consenso; (3) força ou poder político, mediante a organização do poder coativo (BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade, p. 82-85). A partir da obra de Foucault, o poder pode ser considerado como uma situação estratégica complexa numa sociedade que não representa uma única dominação maciça e homogênea de um grupo sobre outro, mas sim um de forma fragmentada nas múltiplas instâncias da vida, manifestando-se de formas sutis, como a criação e classificação de identidades ou o controle do corpo e dos desejos, ou expressas, como julgamentos e condenações. Segundo essa visão, o poder é uma forma múltipla de dominação que circula, pois funciona em cadeia, ou seja, o poder funciona e se exerce em rede e os indivíduos estão sempre em posição de exercer o poder e de sofrer sua ação (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder, p. 160-162/179-181/183. WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito, p. 76-77).2 Constitucionalismo é, simultaneamente, uma teoria ou ideologia e um movimento que, sob a influência do Iluminismo e do Contratualismo, estrutura a organização política a partir do princípio do governo limitado como indispensável para a garantia dos direitos. Apresenta-se como uma teoria normativa da política contra o absolutismo, pregando que o Direito limita o poder Estatal. Logo, a liberdade, como sentido axiológico inicial do constitucionalismo, fundamentou a ideia da Constituição como a lei para reger o Estado. Tem como traços marcantes a Organização do Estado e a Limitação do seu poder (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 51).3 Ao revés, é natural e previsível que diversas das propostas aqui apresentadas sejam criticadas e, com isso, aperfeiçoadas ou até mesmo rejeitadas.

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tenha possibilidade de aplicação no mundo da vida e, mais particularmente, no cotidiano do Poder Judiciário.

O fio condutor do presente trabalho é a de que a democracia é um processo e não uma simples instituição, e que ela permeia tanto a sociedade quanto pequenos grupos sociais, em qualquer aspecto em que o poder é exercido.

Para isso, após (1) uma breve exposição das características principais do conceito de Democracia no plano da Filosofia Política e do Direito Constitucional Positivo e (2) do papel do Judiciário, (3) buscar-se-á apresentar algumas possibilidades para implementação de uma gestão democrática do Judiciário, (3.1) tanto no plano de sua atividade-fim, (3.2) quanto a aspectos de suas atividades-meio.

2. Desenvolvimento

2.1. A ideia e a prática da DemocraciaA Democracia é um termo utilizado tanto para designar um tipo de regime

político quanto uma teoria política. Ambos partem do pressuposto de que os governos são legítimos quando as pessoas afetadas pelas decisões coletivas participam do processo de sua formulação4. Em função da competição política nos regimes democráticos, a existência de oposição representa um mecanismo de controle que obriga a prestação de contas pelos detentores do poder político5. Essa Democracia competitiva facilita a discussão sobre os argumentos utilizados pelos políticos, obrigando-os a justificar as suas decisões6.

O princípio fundamental da Democracia é o de que, nas questões que afetam a vida e os interesses coletivos, o povo sabe se governar7. Ou seja, a legitimação do Estado decorre da soberania popular, que seria, em última instância, o verdadeiro detentor do poder8. Contra esse princípio, argumenta-se que, em certos assuntos, o povo não saberia decidir adequadamente (argumento do comandante do navio)9. Este argumento contrário a uma “democracia total” foi inicialmente desenvolvido por Platão na sua obra “A República”. Segundo ele, por analogia, o povo seria como tripulantes de um

4 SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 7-8. Confira-se, também: CAPELLA, Juan Ramón. Os cidadãos Servos.5 SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 258-261. 6 SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 265. 7 SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 248. 8 Para o tema, especialmente para a configuração do chamado “Estado Democrático de Direito” confira-se: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 98-100; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 133-138.9 SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 250.

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navio que, por não terem ideia de que existe uma ciência da navegação, em vez de estudarem os astros, as estações do ano e os ventos para guiar o barco, discutem, entre si, para ver quem comandará o navio, embora todos se achem mais aptos do que os demais10. Para Platão, o bem supremo é o conhecimento e a democracia acaba sendo regida pelo princípio da bajulação das massas, geralmente incapazes de aceitar ou ver a verdade11.

Decorre do princípio da democracia a regra da maioria, isto é, as decisões são feitas a partir da vontade da maior parte dos votantes. Para os antigos, o regime democrático implicava que as decisões fossem tomadas em assembleias com a participação de todos; o que não seria possível em estados com grande extensão territorial. Porém, a partir da experiência norte-americana, foi iniciada, com os escritos dos federalistas, uma distinção entre Democracia e República. Esta permitiria a representação. Mais tarde, passa-se a admitir que a forma representativa também é Democracia12.

Um argumento que se opõe à regra da maioria é o da tirania da maioria, isto é, o fato de que as minorias ficariam sujeitas à vontade das maiorias. Por isso, alega-se que a Democracia seria, em certa medida, inimiga dos direitos individuais13. Esse perigo pode ser reduzido por alguns instrumentos antimajoritários, tais como a previsão de mecanismos de veto institucionais entre os poderes (freios e contrapesos), constitucionalização de direitos individuais cuja alteração seja possível somente por um quorum maior e atribuição para um órgão independente (tribunal constitucional) da tarefa de manter estes limites14. Este argumento é utilizado por Dworkin para atacar a concepção de direito que, em nome de um tipo de democracia, limita as decisões políticas e morais aos órgãos responsabilizáveis. Para ele, porém, diante da equidade, as decisões que digam respeito a direitos contra a maioria não podem ser deixados para a própria maioria15.

Dworkin sugere uma dupla classificação de concepções de democracia. Uma concepção dependente de democracia é a que tenha a maior probabilidade de produzir decisões substantivas que tratem com igual consideração os membros da comunidade, exigindo, portanto, sufrágio universal, liberdade de expressão

10 SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 250. 11 SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 252. 12 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade, p. 149-152.13 SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 268-269.14 SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 269-281. HÖFFE, Otfried. Justiça política, p. 369-374.15 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 221-223.

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e outros direitos inerentes16. Uma concepção separada de democracia julga o processo político apenas pelas suas próprias características, e não pelo resultado que dele pode surgir17. Assim, enquanto a concepção separada avalia a partir de um teste inicial, a dependente avalia por um teste de chegada, ou seja, a democracia é um conjunto de dispositivos para produção de resultados do tipo certo18. Por conta dessas diferenças, a concepção separada é mais popular e a concepção dependente gera mais controvérsias19. Essa distinção de Dworkin corresponde à distinção entre democracia formal e democracia substancial. Numa discussão sobre os fins e valores que movem um grupo político, o discurso sobre democracia distingue a democracia formal que trata da forma de governar (como se governa) e a substancial, que diz quais os fins para que se governa (o conteúdo da forma de governo)20.

Como se vê, muito embora a expressão “Democracia” tenha uma carga valorativa positiva, gerando um consenso sobre a sua importância, o seu detalhamento contém diversos aspectos sobre os quais há divergência.

No plano do Direito positivo, notadamente no Constitucional, a Democracia foi uma opção política explícita tomada pelos constituintes em 1988, tanto que assim a expressam no Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil (CR). De fato, o texto constitucional é aberto com a menção de que a República constitui-se num “Estado Democrático de Direito” (art. 1o) e que os entes federados deverão zelar pela Constituição e pelas instituições democráticas (art. 23, I). Aliás, se os Estados atuarem contra o regime democrático, poderão ser alvos de intervenção Federal (art. 34, VII, “a”).

A Democracia, enquanto regime político valorizado pelo constituinte, foi alçado à proteção especial, seja pela hipótese de previsão de inafiançabilidade e imprescritibilidade da ação de grupos armados contra o Estado Democrático (art. 5o, XLIV), seja pela vedação de partidos políticos que não resguardem o regime democrático (art. 17) ou que não haja norma tendente a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico (art. 60, §4o, II)21.

16 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana, p. 255.17 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana, p. 25618 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana, p. 256.19 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana, p. 260.20 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade, p. 157-158.21 Os direitos políticos, que abrangem o Voto (exercício do direito) e o Sufrágio (direito propriamente dito de votar), decorrem do princípio democrático. O sufrágio é o direito de eleger (capacidade eleitoral ativa = alistabilidade) e de ser eleito (capacidade eleitoral passiva = elegibilidade). Não se confunde com o voto, que é o exercício do direito de eleger. O voto é exercício do direito de sufrágio; logo, o direito ao voto é instrumento

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É importante notar que a ideia democrática não está restrita ao exercício do direito de votar e ser votado, mas também na ordem constitucional para que certas instituições sejam geridas com a participação dos interessados. Com efeito, a Seguridade Social, como conjunto de ações de iniciativa do Estado e da Sociedade, deve ser administrado de forma democrática, mediante gestão quadripartite (art. 194, p. único, VII). Também deve ser gerido democraticamente o ensino público (art. 206, VI) e o acesso aos bens culturais (art. 215, §3o, IV). Além disso, a participação popular também se dá na forma de consultas (iniciativa popular, referendo e plebiscito), previstas na Constituição (art. 14) e regulamentadas pela Lei 9.709/1998.

Por fim, como um dos mais importantes instrumentos de salvaguarda das minorias ou dos indivíduos em face da regra da maioria, a Constituição de 1988 prevê a impossibilidade de edição de norma para certos assuntos, ainda que a ofensa seja potencial (= “tendente a abolir”). Por isso, são previstas as chamadas cláusula pétreas, ou seja, normas constitucionais imunes a alterações futuras, constitucionais ou legais, que abrangem a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais (art. 60, §4o)22.

2.2. O Poder Judiciário no Estado ContemporâneoO Poder Judiciário sempre foi caracterizado como o conjunto de

atribuições do Estado destinado a compor litígios concretos, ou seja, órgão estatal cuja função jurídica e social é de individualizar as normas gerais e abstratas emanadas do Poder Legislativo para dizer a solução de um conflito específico que lhe foi trazido.

Porém, um novo papel foi exigido do Poder Judiciário nas sociedades contemporâneas23. Houve uma invasão da Política pelo Direito em função

para a realização dos direitos políticos. No Brasil, o voto tem as seguintes características (art. 60, §4o, I): (1) Direto; (2) Secreto e (3) Igual. A capacidade de ser votado depende do preenchimento das condições de elegibilidade (art. 14, § 3o) e não haver nenhum das hipóteses de inelegibilidade (art. 14, §§4o a 9o).22 Para uma análise do mecanismo das cláusulas pétreas como mecanismos de garantia de direitos, princípios e instituições, confira-se: VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de Justiça. Nesta obra, o autor não só descreve o fundamento teórico, como também a prática jurídica comparada a partir das experiências das cortes constitucionais brasileira, norte-americana e alemã.23 Confira-se, dentre outros: CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores, p. 31-46. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, p. 24-25. VIANNA, Luiz Werneck; REZENDE DE CARVALHO, Maria Alice; MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, p. 15-25. ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil, p. 9-10/34-39/50-51/100-103.

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evolução do Estado de Bem-Estar. A profusão de direitos sociais e o ideal de um Estado regido por uma Constituição dirigente produziram novas exigências por parte da Sociedade e uma transformação do Estado legal para um Estado Constitucional.

Nele, o Executivo e Legislativo buscam regrar os processos econômicos de forma simultânea ao seu acontecimento. Orientam-se, para essa regulação, não pelo tempo passado, mas pelo tempo futuro. Com isso, surgem as leis experimentais de caráter temporário e a utilização cada vez maior de conceitos jurídicos indeterminados.

Cada vez mais é exigido o cumprimento das promessas da Jurisdição de pacificação, da qual surgem os chamados escopos do processo, isto é, (1) o escopo social, pelo qual o processo se torna elemento para educação dos direitos próprios e alheios; (2) os escopos políticos, caracterizados tanto pela preservação da liberdade individual de cada um, quanto de participação de todos nos destinos da nação, e, ainda, (3) o escopo jurídico do processo, pelo qual este atua a fim de fazer valer a vontade concreta do direito.

Como consequência, aumentam os litígios trazidos pela Sociedade Civil ao Judiciário, deslocando o poder de decisão política para este, já que ele dará a palavra final. Aliados a este fenômeno que tornou o juiz um legislador implícito, surgem, também, (1) a positivação de princípios jurídicos e direitos fundamentais nas constituições modernas, ampliando os limites de interpretação jurídica direcionada a um imaginário do ético e do justo, e (2) a massificação da tutela jurídica nos conflitos coletivos, transformando o Judiciário em uma alternativa para o exercício do jogo político.

Neste sentido, enquanto face do Estado (art. 2o, CR), o Poder Judiciário está orientado não só pelos ditames que regem toda a Administração Pública (art. 37, CR) – legalidade, moralidade, impessoalidade, finalidade e eficiência – e pelos objetivos previstos para a República (art. 3o, CR) – construir uma sociedade livre, justa e solidária, com desenvolvimento nacional e igualdade social, erradicando a pobreza e a marginalização para promover o bem de todos, sem discriminação –, mas também pelos deveres específicos e inerentes à sua atividade precípua, dentre eles, motivar, pública e fundamentadamente, suas decisões (art. 93, IX e X, CR), que são a última instância de proteção dos direitos (art. 5o, XXXV, CR), fazendo-o dentro de um tempo razoável (art. 5o, LXXVIII, CR).

Como integrante do Estado, é possível classificar os atos oriundos do Poder Judiciário sob duas categorias, conforme seja, ou não, uma decisão

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inerente à sua atividade precípua (composição de litígios): (1) atos ligados à atividade-fim (= ato jurisdicional), ou seja, dizer o direito dentro de uma relação jurídica controvertida, como um terceiro externo ao conflito; (2) atos ligados a atividades-meio, ou seja, atos administrativos de gestão do aparelho burocrático que compõem os órgãos judiciais. Por isso, o exame da democratização do Poder Judiciário pode ser feito sob dois prismas distintos, conforme o tipo de ato a que se refere.

2.3. A democratização do Poder Judiciário na sua atividade-fimPartindo-se da premissa lógica e prática de que a atividade judicial não pode

ser substituída por uma máquina ou por decisões de assembleias permanentes e censitárias24, a democratização do Poder Judiciário na sua atividade-fim não significa trocar o sujeito emissor dos juízos de valor e de fato, mas sim assegurar que as formas de participação popular sejam mantidas e ampliadas. Isso não significa simplesmente aumentar o direito à ampla defesa e ao contraditório, já previstos na Constituição (art. 5o, LV), mas sim o de permitir que os instrumentos processuais hoje existentes sejam transformados a fim de garantir a permeabilidade das decisões à soberania popular.

Para isso, os seguintes instrumentos podem ser utilizados como técnicas para ampliação dos espaços democráticos no âmbito da atividade-fim da jurisdição: (1) efetivação e observância das regras da teoria do discurso; (2) audiências públicas; (3) ampliação dos “amicus curiae”; (3) priorização das ações coletivas sobre as individuais; (4) acesso à justiça; (5) desconcentração das competências do STF; e (6) aprimoramento dos procedimentos de seleção e composição do STF.

Um dos primeiros aspectos é a interiorização definitiva nas regras lógicas do discurso e das teorias da argumentação no âmbito do Judiciário25. Como

24 Esta premissa funda-se em diversos argumentos. O primeiro é que o próprio conceito de jurisdição, como um terceiro desinteressado na lide de fundo, é incompatível com a possibilidade de um dos litigantes ser o seu próprio juiz. O segundo consiste no caráter contramajoritário que há nos direitos fundamentais, isto é, há esferas de proteção que, pelo seu papel moral, são reconhecidos pelo Direito a partir do embate entre as forças políticos. O terceiro é a impossibilidade de que os milhões de processos julgados todo ano sejam submetidos à consulta popular. Por fim, o critério lógico de igualdade, como um dos fundamentos da Justiça, implica que as decisões jurídicas sejam as mesmas se mantidas as características essenciais, o que poderia não ocorrer se as decisões judiciais fossem realizadas por “eleições adhoc”. 25 As teorias da argumentação jurídica têm como objeto de estudo a argumentação produzida nos contextos jurídicos e teriam a função de fornecer critérios para a aplicação do ordenamento (ATIENZA, Manuel. As razões do direito, p. 18-19). As décadas de 1960 e 1970 viram o crescimento e evolução de correntes antilogicistas da argumentação jurídica, especialmente com Toulmin, Viehweg e Perelman,

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a repercussão social da decisão é proporcional à posição ocupada pelo órgão judicial dentro da estrutura do Poder Judiciário, maior é a necessidade de que os tribunais de cúpula observem os princípios democráticos.

Outro ponto fundamental para a Democratização do Poder Judiciário no âmbito de sua atividade-fim é a realização de audiências públicas, que asseguram uma maior participação dos entes sociais potencial ou efetivamente atingidos pela decisão de um conflito. Este mecanismo é relevante especialmente em duas situações: (1) processos coletivos ligados à defesa de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, notadamente os veiculados por intermédio de ação civil pública; e (2) processos de índole constitucional, tanto no caso de controle objetivo e concentrado da constitucionalidade de normas quanto no controle subjetivo e difuso26.

Nesta mesma linha, já está incorporada na prática jurídica brasileira a figura do “amicus curiae”. Do original latino que significa “amigo da corte”, esta figura representa a possibilidade de terceiros, não incluídos na lide processual, ingressarem na demanda a fim de se manifestar sobre a questão jurídica de fundo. Está prevista na Lei 9.868/99, que, ao regular o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, previu, expressamente que: “O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades” (art. 7o, § 2o). Nota-se, portanto, a possibilidade de participação da Sociedade Civil com voz no curso do procedimento de formação da vontade/decisão judicial que poderá lhe afetar.

influenciando os estudos contemporâneos com orientação hermenêutica e analítica de Alexy, Dworkin, Aarnio, Peczenik, MacCormick e Wróblenski (FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito, p. 43-44). O desenvolvimento destas teorias insere-se numa dimensão política da democratização ocidental em que a autoridade institucional perde seu valor e se passa a exigir dos órgãos públicos que justifiquem racionalmente suas decisões (DUARTE, Écio Oto Ramos. Neoconstitucionalismo e Positivismo jurídico, p. 57-58).26 No segundo caso, a necessidade de ampliação dos debates acerca de decisões a serem proferidas no âmbito de recursos extraordinários torna-se maior em função do mecanismo da repercussão geral, especialmente pelo fato de que a implantação desta nova técnica jurídica é caracterizada pelo julgamento simultâneo. Nota-se, de fato, que há, cada vez mais, uma “objetivação” destas demandas individuais, ou seja, em razão do elevado número de feitos (centenas de milhares por ano), deixa-se de analisar o recurso extraordinário como um caso individual para julgar a questão constitucional de fundo, determinando-se a suspensão das remessas dos processos pelos tribunais de segunda instância. Esta dinâmica, oriunda da exitosa inovação contida na Lei dos Juizados Especiais Federais (Lei 10.259/2001) foi incorporada no texto do Código de Processo Civil pela Lei 11.418/2006, que inclui os artigos 543-A e 543-B.

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Assim, uma democratização do processo sugere, por exemplo, que, em vez de aguardar a manifestação de eventuais interessados, o próprio relator dê ampla divulgação ao tema discutido e oficie a entes representativos a fim de colher suas opiniões. Abre-se a discussão para argumentos que possibilitem uma decisão afinada com os ditames de ordem social que estejam sob a influência deste julgamento. Por exemplo, em ações que envolvam matéria previdenciária, é possível cogitar-se de manifestações de associações de aposentados; nas que envolvam créditos do sistema financeiro de habitação, permite-se sejam apresentadas razões por associações de mutuários e também pelas instituições financeiras envolvidas direta ou indiretamente.

Há, também, uma necessidade de priorização das ações coletivas em face das individuais, otimizando os recursos do Poder Judiciário e simultaneamente resguardando o princípio material da igualdade. De fato, as ações coletivas foram esvaziadas pela prática jurídica em razão da legislação ultrapassada. Logo, a sua revalorização não pode ser apenas no plano teórico que busca criar ritos que reproduzem os conceitos tradicionais, mas sim focada nos aspectos que viabilizem a plena efetividade das ações coletivas.

Assim, diante do efeito “erga omnes” ou “ultra partes” destas ações, é imprescindível a abertura da participação dos interessados na ação, seja pela previsão de publicação das questões envolvidas em meios de comunicação em massa (suportados por fundos específicos para isso), seja pela sensibilização da importância de aceitação da participação oral e efetiva de quem tenha sido admitido como “amicus curiae”.

A partir do momento em que os tribunais superiores exercem políticas de ampla repercussão pelas ações coletivas, há que se possibilitar que a decisão tenha efeitos diferidos no tempo, como ocorre atualmente com as ações de controle concentrado de constitucionalidade. A decisão, por exemplo, referente à correção de benefícios previdenciários pode determinar que o pagamento dos valores atrasados seja feito em parcelas. Ou, em outro exemplo pertinente às concessionárias de serviços públicos monopolizados pela iniciativa privada, que seja determinada a realização e implementação de um plano de adequação da conduta. Inibe-se, com isso, o argumento “ad terrorem” de colapso econômico, pois as dificuldades podem e devem ser levadas em conta na decisão que implementar um plano de cumprimento.

Essa revalorização das ações coletivas, que resolveriam as questões jurídicas de forma mais célere e democrática, implicaria, necessariamente, no óbice

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ao ajuizamento de milhares de ações individuais. Porém, para que isso possa ser alcançado, o descumprimento da decisão coletiva tem que receber forte sanção, sob pena de se tornar inócua.

Outro aspecto da Democratização do Poder Judiciário são as chamadas ondas renovatórias27 do processo civil que implicaram a remoção ou diminuição dos obstáculos ao acesso à Justiça28. Ao removerem o formalismo do processo civil e criminal, os juizados especiais29, regrados pela Lei 9.099/1995, no plano da Justiça Estadual, e 10.259/2001, para a Justiça Federal, representaram um dos mais importantes passos para a democratização do Poder Judiciário. Com efeito, a título exemplificativo, é importante notar que, de 2004 a 2008, por meio de seus julgamentos, só os juizados federais já pagaram mais de 15 bilhões de reais, beneficiando quase 4 milhões de pessoas, na maioria dos casos os mais carentes. Por isso, a importância da ampliação da competência destes juizados e da estruturação dos órgãos encarregados de processar e julgar essas ações.

A preocupação com a sobrevivência da democracia reflete também na necessidade de desconcentração de competências do Supremo Tribunal Federal. Com efeito, embora seja necessário que algum órgão dê a última palavra nas discussões constitucionais, este direito e dever implica que ele não seja cumulado com outros poderes e que haja uma postura discreta e reservada. Algumas características do sistema brasileiro geram deturpações, que, se não são problemáticas agora, podem representar um perigo no futuro.

Uma delas é o excesso de atribuições do STF, que, além de Corte Constitucional, também é instância para processar e julgar autoridades com foro privilegiado. Isso provoca não só um elevado número de processos no STF, mas também cria um poder adicional que é o de controlar os agentes dos demais poderes que deveriam fiscalizar aquele tribunal. Evitar que o STF se transforme em um órgão centralizador dos três poderes implica modificar suas competências não-constitucionais, acabando com privilégio de foro para altas autoridades. Também é necessário alterar a sua composição e o seu procedimento de nomeação de ministros, prevendo que os cargos sejam destinados a membros

27 As chamadas ondas renovatórias do processo civil são reformas decorrentes da evolução da ciência processual que se torna mais preocupada com a assistência judiciária aos pobres e a representação dos interesses difusos e a racionalização do modo-de-ser do processo na busca de sua efetividade (CINTRA, Antônio; GRINOVER, Ada; DINAMARCO, Cândido. Teoria Geral do Processo, p. 43).28 O acesso à justiça é a ideia ou fim de que as partes têm que ter acesso a uma ordem jurídica justa, implicando não apenas a admissão no processo, mas também a da efetividade do próprio direito material (CINTRA, Antônio; GRINOVER, Ada; DINAMARCO, Cândido. Teoria Geral do Processo, p. 33-34).29 Para o tema, confira-se: BOLLMANN, Vilian. Juizados Especiais Federais, p. 3-10.

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oriundos das carreiras jurídicas (juízes, promotores e advogados) mediante listas formadas pelo Congresso Nacional, mediante prévia e exaustiva sabatina.

2.4. A democratização interna do Poder JudiciárioSe a prática democrática é determinada pela Constituição ao Estado,

ela deve influenciar não só a atividade final do Judiciário, mas também as suas próprias relações internas. É democratização interna que interioriza os valores necessários para a sua prática externa, sob pena de haver uma incompatibilidade genética que cause ruídos à atividade jurisdicional, refletindo, por consequência, na própria Sociedade.

Logo, no âmbito da democratização do Poder Judiciário dentro de suas atividades-meio, são medidas que devem ser buscadas como técnicas para fortalecimento dos valores democráticos: (1) eleição dos dirigentes do Poder Judiciário pelos juízes; (2) ampliação da participação dos juízes nas decisões dos conselhos (CNJ, CJF e CJT), seja diretamente, seja indiretamente, por meio das associações; (3) garantia de participação dos juízes na gestão orçamentária dos tribunais; e (4) aprimoramento dos mecanismos de planejamento estratégico dos tribunais.

A seleção dos dirigentes do Poder Judiciário30 é um dos principais aspectos para ampliação do ideal democrático. Com efeito, atualmente, pelo texto da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), cabe aos próprios tribunais, privativamente, eleger seus presidentes e demais titulares de sua direção e exercer a direção dos serviços (art. 21, I, e V, da LC 35/1979; art. 96, I, “a”, da CR). Apesar de serem diretamente interessados no curso das ações administrativas que serão dadas pelos tribunais, os juízes de primeira instância não podem participar do processo de decisão. É de se ressaltar, por exemplo, que tal prática já é adotada pelo Ministério Público de vários estados e, em certo grau, pelo Ministério Público Federal, que, por exemplo, indica, por meio de todos os membros da carreira em atividade no Ministério Público Federal (art. 52, da LC 75/1993). Logo, há, no mínimo, a necessidade propositura de Emenda Constitucional que amplie a democracia no Poder Judiciário.

Outro ponto é a participação dos juízes de primeira instância na composição dos conselhos de controle, quais sejam, o Conselho Nacional de

30 No caso, em especial, os presidentes dos tribunais de Justiça, tribunais regionais federais e tribunais regionais do trabalho.

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Justiça (CNJ), o Conselho da Justiça Federal (CJF) e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), previstos, respectivamente, nos artigos 103-B; 105, par. único, II; e 111-A, §2o, II; todos da Constituição. Muito embora o primeiro tenha previsão de assentos por parte de juízes de primeiro grau, a indicação destes é faculdade outorgada aos tribunais superiores (STF, STJ e TST), impedindo a escolha por parte dos próprios juízes. Nos demais, não há, na Constituição, a previsão de sua composição. Logo, a alteração pode ser feita por meio de lei, prevendo tanto que sejam integrados também por juízes de primeira instância quanto o procedimento de sua escolha.

Um aspecto importante para a democratização interna do Judiciário é a criação de comissões de orçamento formadas por juízes e desembargadores, que, cumprindo a autonomia financeiro-orçamentária (art. 99, §1o, CR), teria a competência para emitir parecer prévio sobre a proposta orçamentária organizada pelo respectivo Tribunal, inclusive com a sugestão de modificações e ajustes que devam ser implementados, inclusive mediante abertura de créditos suplementares e especiais; e, principalmente, receber sugestões de magistrados e servidores acerca de pontos que devam ser priorizados por ocasião da elaboração da proposta orçamentária. Além disso, caberia a esta comissão avaliar a execução do orçamento do Tribunal, bem como os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial, sem prejuízo da atuação dos órgãos encarregados do controle interno.

Por fim, é vital, para a democracia dentro do Judiciário, que aos juízes seja oportunizada a participação nos processos de elaboração, acompanhamento e controle do planejamento estratégico dos tribunais. O CNJ, por meio da Resolução 70/2009, instituiu o Planejamento Estratégico do Poder Judiciário, com suas diretrizes e objetivos (art. 1o) e determinou que os tribunais elaborem os seus planejamentos, com abrangência mínima de cinco anos, aprovando-os em seus plenários até dezembro de 2009 (art. 2o), que devem ter efetiva participação dos magistrados de primeiro e segundo grau (art. 2o, §4o). Logo, o descumprimento desta abertura democrática admite questionamento do Tribunal perante o CNJ.

3. Considerações finais

A partir do texto apresentado, é possível traçar algumas premissas que, embora não conclusivas no sentido de uma verdade inalcançável, permitem supor que, muito embora exista uma clara tendência de aprimoramento dos

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instrumentos de democratização no plano da atividade-fim do Judiciário (com ampliação do uso das técnicas do “amicus curiae”, audiências públicas, ampliação dos juizados especiais etc.), não há, ainda, o mesmo movimento no âmbito da sua atividade-meio, sobremodo no que toca à participação da magistratura de primeira instância na formulação das políticas administrativas dos tribunais.

Neste ponto, há a necessidade de uma articulação dos integrantes do Poder Judiciário para a busca de alterações legislativas e constitucionais que permitam, dentre outros, (1) a escolha dos presidentes, vice-presidentes e corregedores dos tribunais por parte também dos juízes de primeiro grau, tal como ocorre no âmbito do Ministério Público; (2) a ampliação da composição dos conselhos específicos da Justiça Federal e da Justiça do Trabalho para que prevejam assento pelos juízes, seja por indicação das associações nacionais, seja por meio de eleição direta pelos juízes; (3) alteração do procedimento de escolha dos integrantes do CNJ para permitir os representantes dos juízes de primeiro grau seja feita pelos próprios juízes, e não pelos órgãos de cúpula (que já têm seus respectivos assentos naquele órgão); e, mediante ação judicial ou administrativa, (4) a participação dos juízes nas comissões de planejamento estratégico (conforme já determinado pelo próprio CNJ) e (5) criação de comissões de orçamento nos tribunais.

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Newton Meyer FleuryGraduado em Administração e Mestre em Gestão Empresarial pela Escola Brasileira de

Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas, Doutorando pela COPPE/UFRJ, Professor da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Turismo, e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Gestão Empresarial e Sistemas de Informações, na universidade Federal Fluminense, Professor convidado dos Programas

de Pós-graduação em administração judiciária da Fundação Getulio Vargas (FGV in Company) , Professor colaborador dos Programas de Pós-graduação da universidade da Força Aérea (uNIFA), Pesquisador e instrutor em programas de modernização da gestão

em instituições do Poder Judiciário

GESTãO ESTRATéGICA NO JuDICIáRIO: ASPECTOS CONCEITuAIS E LIçõES

APRENDIDAS

1. Introdução

Nos últimos dez anos a modernização da gestão tem sido enfatizada como um dos meios fundamentais para o reordenamento do papel das instituições públicas na sociedade, na busca da otimização das suas competências essenciais1.

No âmbito da administração pública brasileira, não obstante os esforços pontuais que resultaram na criação de “ilhas de excelência” no setor público desde a década de 1970, a reflexão mais intensa sobre o processo de modernização da gestão se deu a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que consagrou os princípios que devem reger o desempenho na administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência2.

1 Papéis que cabem exclusivamente ao Estado, tendo em vista a natureza de suas funções e as possibilidades de outros atores nas esferas do mercado e terceiro setor poderem desenvolver outras funções a contento. MARTINS, Humberto Falcão (2005) 2 Artigo 37 da Constituição Federal

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Tendo como pano de fundo a recomendação da Carta Magna do País, diversos movimentos se desenvolveram desde então, no sentido de promover uma gestão eficiente e eficaz voltada à melhoria da qualidade dos serviços prestados aos cidadãos. Nesta linha se insere o GESPÚBLICA3, programa ao qual têm aderido diversas instâncias do Poder Público, incluindo o Judiciário, cujas principais diretrizes estão voltadas para o aumento da capacidade de formulação, implementação e avaliação das políticas públicas, melhor aproveitamento dos recursos, e adequação entre meios, ações, impactos e resultados alcançados, entre outros aspectos.

É neste contexto que a gestão estratégica se insere, como um dos elementos fundamentais para a promoção de um processo de aperfeiçoamento da governança pública. Este artigo tece considerações sobre a aplicação dos conceitos e métodos relacionados à formulação e implementação de estratégias no setor público, com ênfase nas instituições do Poder Judiciário. Destaca também o papel que deve ser exercido pelos magistrados, especialmente quando investidos de funções gerenciais na condução dos órgãos julgadores4.

O texto está dividido em três seções: a primeira apresenta conceitos básicos e busca desenvolver a compreensão sobre os processos de gestão estratégica e de planejamento estratégico; a segunda discorre sobre os objetivos e os resultados que devem ser perseguidos com a formulação e a implementação da gestão estratégica e do planejamento estratégico no Poder Judiciário; a terceira busca identificar a contribuição do magistrado como agente de formulação e implementação das estratégias de gestão, e os requisitos de formação e comportamentais necessários ao desempenho deste papel.

2. Gestão Estratégica e Planejamento Estratégico

Para entendermos a aplicação nas organizações da gestão estratégica e do planejamento estratégico, há que se distinguir inicialmente o que significam estes dois conceitos e qual é a relação entre os mesmos.

O que é Gestão Estratégica? Estratégia é a direção e o escopo de atuação de uma organização, em um horizonte de tempo, constituindo instrumento gerencial imprescindível tanto no setor privado como na administração

3 Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização – GESPÚBLICA, instituído pelo Decreto no 5.378, de 23/2/20054 Os órgãos julgadores são as unidades diretamente relacionadas à entrega da prestação jurisdicional, tais como as varas de 1a Instância e as câmaras de 2a Instância nas cortes.

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pública. As estratégias, dessa forma, representam as principais linhas de ação a serem seguidas pela organização para atingir seus objetivos, consubstanciadas em políticas, planos de ação, projetos e alocação de recursos.

Assim, a gestão estratégica “é um processo contínuo e iterativo, que visa man-ter uma organização como um conjunto apropriadamente integrado ao seu am-biente” (Certo & Peter, 1993). Tal definição nos permite então afirmar que ele reveste-se de três características fundamentais: continuidade, iteratividade e inte-gração com o ambiente externo no qual a empresa desempenha suas atividades.

Quando vista sob a perspectiva da continuidade, a gestão estratégica deve ser entendida como um processo que tem data de início mas não de conclusão, isto é, após desencadeado deve manter-se como uma ação permanente envolvendo toda a organização.

A iteratividade significa que a gestão estratégica se dá por meio de um conjunto de etapas que se repetem ciclicamente, e cada ciclo tenderá a tornar os resultados do processo mais precisos. É o que afirmam Certo & Peter ((1993 : 8):

O termo “iterativo” usado na definição de administração estratégica indica que o processo de administração estratégica começa pela primeira etapa, vai até a última e, então, começa novamente com a primeira etapa. A administração estratégica, então, consiste de uma série de etapas que são repetidas ciclicamente.

Finalmente, a integração com o ambiente externo consiste na implementação de estratégias em sintonia com as necessidades e expectativas dos atores que fazem parte do relacionamento permanente e contínuo com a instituição, sejam estes fornecedores, parceiros ou clientes dos produtos e serviços que fazem parte do ambiente do negócio. A integração também deve se dar por meio de adaptações a novas condições ambientais que surgem, tais como a legislação que afeta a instituição, novas condições políticas e econômicas, ou tecnologias emergentes, entre outros aspectos.

O processo de pensar estrategicamente com o foco na flexibilidade e agilidade organizacional, associado à adaptação às condições ambientais externas, é assim estabelecido por Motta (1999 : 76):

Devido à sua complexidade, as organizações tendem à inflexibilidade e lentidão, incompatibilizando-se com a velocidade das demandas e tornando-se insensíveis a valores sociais externos. Assim, recomenda-se como um elemento indispensável à mudança a análise profunda

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e sistemática da ambiência na qual a empresa opera. No mundo moderno, o êxito de qualquer instituição depende de sua capacidade de perceber alterações em valores ambientais e incorporá-los aos objetivos organizacionais. Em outras palavras, é preciso aprender a pensar estrategicamente considerando variações ambientais e seus efeitos sobre a missão da empresa.

Levados em conta os pressupostos anteriores, deve-se complementarmente entender que o processo de gestão estratégica, antes de um conjunto de ações concretos, é um “modelo mental”5 que deve ser disseminado e internalizado entre todos os membros da organização. Nesta linha de raciocínio, embora embasada no pensamento sistematizado e na racionalidade, a gestão estratégica é também decorrente da experiência vivida, das emoções e dos valores pessoais de cada uma das pessoas que fazem parte da organização.

Pensar e agir estrategicamente, então, consiste em atuar no presente de forma proativa, tendo consciência dos fatores críticos que devem ser enfrentados e superados para possibilitar o alcance do cenário futuro aonde se pretende chegar.

Adicionalmente, em conformidade com o modelo originalmente proposto por Kaplan e Norton (2009), o pensamento estratégico deve contemplar quatro perspectivas complementares entre si6: (1) financeira/resultado global, (2) cliente/usuário/sociedade, (3) processos; e (4) aprendizagem/crescimento.

A perspectiva financeira/resultado global tem como foco a geração de impactos relacionados à satisfação e aos ganhos financeiros para os acionistas nas empresas privadas, e voltados à geração de valor público, no caso específico das empresas e demais instituições na esfera do Poder Público. Assim, as organizações públicas devem prioritariamente buscar geração de valor para a sociedade, por meio da contribuição de suas ações para a efetividade das políticas públicas.

A perspectiva do cliente/usuário/sociedade tem como foco o alcance de resultados que atendam às expectativas quanto a atributos associados aos produtos e serviços fornecidos, tais como preço, qualidade, disponibilidade,

5 Modelos mentais são representações conceituais e operacionais, na mente das pessoas, de situações e eventos reais, ou de pensamentos e situações imaginárias (WIIG, 2004)6 A formulação original dos autores trabalha com as perspectivas financeira, de clientes, processos e aprendizagem e crescimento. Em relação às duas primeiras perspectivas estamos acrescentando os termos resultado global (perspectiva 1) e usuário/sociedade (perspectiva 2), de modo a contemplar de forma mais precisa as organizações do setor público.

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seleção e funcionalidade, ou relacionados ao relacionamento entre a empresa e o cliente, e quanto à imagem da instituição.

No caso específico do setor público, além dos atributos anteriores devem ser incorporados aspectos associados à garantia do acesso igualitário de todos os cidadãos aos serviços e informações disponibilizados, transparência da gestão e accountability7.

A perspectiva dos processos contempla os impactos relacionados a otimizações nos procedimentos internos, ou relacionados ao ambiente externo, que resultem na melhoria dos serviços para clientes internos ou externos, nas relações com o ambiente externo, ou no controle da gestão interna.

A perspectiva de aprendizagem/crescimento tem como foco os impactos relacionados à evolução da instituição, em termos de melhorias na sua infraestrutura de operações, especialmente quanto a tecnologias de informação e comunicação; desenvolvimento de ambientes de informação e conhecimento para apoio ao processo decisório; e capacitação e desenvolvimento dos seus quadros técnicos, administrativos e gerenciais.

Sintetizando os conceitos anteriormente apresentados, a gestão estratégica é então uma ação contínua que deve se institucionalizar no seio da organização e ser internalizada pelos seus quadros funcionais em todos os níveis. Ela diferencia-se do planejamento estratégico que, como veremos adiante, constitui um processo sistematizado e suportado por métodos e técnicas específicos.

O que é Planejamento Estratégico? Segundo Bryson e Alston, “o planejamento estratégico é um esforço disciplinado para produzir decisões e ações fundamentais, que moldam e guiam o que é uma organização, o que ela faz, e porque faz” (1996 : 3). Então, por meio do planejamento estratégico as organizações devem: (1) examinar o ambiente externo, onde existem e operam; (2) observar os aspectos organizacionais e gerenciais internos; (3) avaliar os desafios que devem enfrentar e superar para cumprir a sua missão; e (4) formular e implementar objetivos e metas para curto, médio e longo prazos.

A execução do planejamento estratégico deve ser apoiada em uma metodologia para definir a direção que a empresa deve seguir, concretizada por meio da identificação e formulação de objetivos e metas não subjetivos. Deve constituir-se em um processo participativo, não exclusivo da alta

7 O termo accountability é aqui usado no sentido dos meios que a empresa disponibiliza para o exercício da fiscalização da sua gestão pelos cidadãos e pela sociedade, procurando estabelecer formas de controle de baixo para cima sobre os governantes e burocratas (conforme propõe CENEVIVA : 2006)

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administração, tendo como resultado um documento escrito denominado de Plano Estratégico.

Para que o planejamento estratégico seja efetivo, ele deve ser orientado para ações e resultados concretos e mensuráveis, abrangendo um horizonte de médio e longo prazos8, e deve estar relacionado aos planos de ação nos níveis tático e operacional. Deve ser executado como um projeto específico, dividido em etapas e dentro de um prazo determinado, usualmente entre três a quatro meses. Após sua implementação, deve ser revisto sistematicamente de forma a incorporar ajustes decorrentes de modificações nos ambientes interno e externo.

Assim, diferentemente da gestão estratégica, o planejamento estratégico tem datas de início e de conclusão, e cada uma das suas etapas deve estar relacionada a produtos e resultados específicos, conforme demonstrado na figura que se segue.

A Análise de Contexto tem por finalidade, de um lado, identificar no ambiente externo as ameaças e oportunidades que se apresentam face à organização e, de outro lado, determinar as suas vulnerabilidades e potencialidades internas.

As ameaças externas são fatores ou situações identificadas no ambiente

8 Não existe um horizonte padrão para o plano estratégico, que é condicionado pelas características de cada setor de negócio específico. No Judiciário brasileiro, as diretrizes do Conselho Nacional de Justiça recomendam o desenvolvimento de planejamento estratégico plurianual abrangendo, no mínimo, cinco anos (anexo II da Resolução CNJ no 70, de 18/3/2009).

Processo de Planejamento Estratégico

Análise de Contexto ( externo e interno)

Construção (ou revisão) da Identidade Institucional

Formulação da Estratégia

Elaboração dos Planos de Ação

Implementação e Acompanhamento dos Planos de Ação

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externo que, se ignoradas ou não enfrentadas, poderão dificultar a instituição no desempenho efetivo de sua missão. Já as oportunidades externas são fatores ou situações identificados no ambiente externo que, se adequadamente aproveitados, poderão contribuir favoravelmente para os seus resultados.

As vulnerabilidades internas constituem deficiências associadas a recursos ou capacitações que, se ignoradas ou não enfrentadas, poderão dificultar o desempenho da instituição, ao passo que as potencialidades internas constituem aspectos a serem valorizados e enfatizados como meios efetivos para a consecução das estratégias corporativas.

A Análise de Contexto é um método bastante explorado na literatura sobre planejamento estratégico, e constitui instrumento consagrado e eficaz para subsidiar a formulação das estratégias corporativas. Em complementação à análise de contexto, deve ser salientada a importância de se identificar e clarificar os mandatos relacionados à organização, que são constituídos por prescrições externas sobre o que deverá ser feito no âmbito da instituição, usualmente associados a leis, normas e instruções provenientes de órgãos reguladores de determinadas atividades e políticas públicas, entre outros aspectos.

Nesta linha, Bryson e Alston postulam que, no estabelecimento do curso futuro para a organização, os mandatos devem ser levados em conta como restrições que condicionarão a formulação das estratégias: “é vital que a organização tenha claro entendimento dos seus mandatos e das implicações relacionadas a suas ações e utilização de recursos” (1996 : 37).

A Construção (ou revisão) da Identidade Institucional é a etapa seguinte no processo de planejamento estratégico, e deve resultar na formulação da missão, da visão de futuro e dos valores da organização.

A missão deve deixar claro o propósito da instituição (sua razão de ser e de existir), por meio de uma formulação objetiva e precisa, possível de ser entendida e assimilada por todos que dela fazem parte, ou pelos que com ela mantêm relações significativas. Já a visão de futuro, estabelece um cenário sobre como se deseja estar e ser visto em um determinado horizonte de tempo, constituindo um balizador essencial para o direcionamento dos esforços internos e junto aos atores externos com os quais se interage.

Embora a formulação da missão e da visão de futuro seja uma prática consagrada, e bastante usual, no processo de planejamento estratégico, segundo Kaplan e Norton (2009) tais direcionadores não raro são descritos em termos que não favorecem a execução. Ainda em conformidade com os mesmos

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autores, a missão deve ser breve, geralmente em uma ou duas sentenças, enquanto a visão de futuro deve buscar incorporar três componentes vitais: objetivo ousado, definição de nicho e horizonte temporal.

Nesta linha, exemplificam o que postulam com os casos do GOOGLE, para ilustrar uma missão de forma objetiva, e da Universidade de Leeds, no Reino Unido, para caracterizar uma visão de futuro dotada dos requisitos por eles propostos (Kaplan e Norton, 2009 : 39 – 41):

Organizar as informações disponíveis no mundo e torná-las acessíveis e úteis para todos – missão do GOOGLE.Classificar-se entre as 50 universidades mais importantes (objetivo ousado), integrando pesquisa, bolsas de estudos e educação de classe mundial (nicho) até 2015 (horizonte temporal) – visão de futuro da Universidade de Leeds.

Os valores organizacionais estabelecem as regras de conduta essenciais que devem nortear as ações da instituição e das pessoas que dela fazem parte, tanto nas práticas de trabalho internas como nas relações com o ambiente externo. A identificação de valores não é uma tarefa fácil, dada a tendência de se buscar formulações genéricas e sem uma vinculação com objetivos e ações de caráter prático.

Exemplificando, se uma organização considera a transparência como um valor que deve fazer parte de sua estratégia, deve-se tornar explícito o seu significado em termos de ações concretas: utilização dos meios de comunicação para informação e divulgação dos seus atos e procedimentos.

A Formulação da Estratégia é o passo seguinte do processo de planejamento estratégico, iniciada com a explicitação dos desafios estratégicos institucionais, que são os focos de ação e de mudança essenciais que devem ser contemplados pela organização, de forma a cumprir sua missão e caminhar no sentido de alcançar a visão de futuro estabelecida.

Conforme postulado por Bryson, “a identificação dos desafios estratégicos é o coração do processo de planejamento estratégico” (1995 : 104). É uma questão política fundamental, afetando mandatos, missão e valores organizacionais, produtos ou serviços ofertados, estrutura organizacional, paradigmas quanto à gestão e outras questões essenciais.

Ainda em conformidade com Bryson, “a identificação dos desafios estratégicos é tipicamente um dos mais excitantes passos do planejamento

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estratégico, para os que dele participam. Virtualmente, cada desafio estratégico envolve conflitos: o que será feito, por que será feito, como será feito, quando será feito, onde será feito, quem fará o quê e quem será favorecido ou prejudicado pela sua concretização” (1995 : 104 – 105).

A escolha dos desafios estratégicos, portanto, é o momento da escolha dos caminhos fundamentais a serem trilhados na direção do futuro, quando vai se definir o que é prioritário para a organização. Eles devem ter caráter seletivo, abrangendo as questões chave a serem enfrentadas, e a percepção dos mesmos decorre de uma análise acurada e integrada dos resultados apurados nas etapas precedentes do planejamento estratégico: análise de contexto e construção da identidade institucional.

Alguns exemplos de desafios estratégicos são a seguir apresentados, a partir de situações vivenciadas ou constatadas pelo autor:

Eficiência na gestão do salário educação e na gestão dos programas finalísticos (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE)9; elevar a produção de julgados (Superior Tribunal de Justiça)10; garantir a agilidade nos trâmites judiciais e administrativos (Conselho Nacional de Justiça).11

A partir de sua explicitação e formalização, os desafios estratégicos passam a constituir, então, os balizadores que direcionam o estabelecimento dos objetivos estratégicos e das metas a eles associados que correspondem às diretrizes de ação fundamentais para o cumprimento da missão e o alcance da visão de futuro estabelecida.

Os objetivos estratégicos representam resultados a serem alcançados ou mantidos pela instituição, podendo extrapolar o horizonte do plano estratégico, e as metas devem fluir naturalmente dos mesmos, constituindo pontos de referência para avaliação do progresso das estratégias de ação.

As estratégias representam as principais linhas de ação a serem seguidas, devendo responder a seguinte questão básica: como vamos chegar aos objetivos e metas pré-estabelecidos? Segundo Bryson & Alston (1996), elas se materializam por meio de políticas, decisões, planos de ação, projetos e alocação de recursos.

9 Plano Estratégico do FNDE, 2004 - 200610 Plano de Gestão do STJ, 2006 - 200811 A Estratégia do Poder Judiciário, CNJ, Anexo I da Resolução no 70, de 18/3/2009

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Deve ser entendido também que as estratégias podem constituir-se por meio de decisões e ações imediatas, ou através de planos de ação e mobilização de recursos de médio e longo prazo. Outrossim, podem estar relacionadas a um objetivo estratégico como um todo, ou à determinada meta específica.

Ainda cabe salientar que o alcance de cada meta deve ser sistematicamente acompanhado e avaliado, para o que são estabelecidos instrumentos para a sua mensuração, os indicadores de desempenho que, conforme Cérutti & Gattino, “constituem um dado objetivo que descreve uma situação do ponto de vista estritamente quantitativo, que constata um resultado” (1992 : 6).

A utilização de indicadores de desempenho como instrumento de apoio à gestão parte do princípio que a avaliação de qualquer empreendimento, seja no plano da organização como um todo ou na dimensão de ações e projetos específicos, deve estar apoiada em critérios objetivos de medição. Entretanto, para implementar um sistema de medição em uma organização, as seguintes providências básicas se fazem necessárias:

a) definir os objetos (ou campos) de medição (o que medir);b) estabelecer critérios objetivos de medição (fórmula e variáveis associadas

à medição);c) definir o significado de cada variável, e as fontes de sua obtenção;d) definir o resultado esperado (meta);e) estabelecer os processos de obtenção dos dados associados às variáveis

de medição.Exemplificando os conceitos anteriores, vamos utilizar como exemplo

direcionadores relacionados ao plano estratégico do Tribunal de Justiça de Goiás, para o período 2009 – 201112:

Objetivo Estratégico: ser efetivo nos trâmites judiciais, trabalhando com foco no atendimento ao cidadão e buscando a melhoria contínua do desempenho.

Meta 1: Reduzir para 78% a taxa de congestionamento de 1o grau.Meta 2: Reduzir para 30% a taxa de congestionamento de 2o grau.Estratégias (linhas de ação): promoção do programa Justiça Ativa nas

comarcas, incentivo ao sistema não adversarial de resolução de conflitos, alocação de equipes de apoio itinerante.

12 Manual do Plano Estratégico 2009 / 2011, disponível em http://www.tjgo.jus.br, acesso em 16/8/2009.

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Indicadores de desempenho (relacionados à meta 1): o indicador mede o índice que reflete a divisão dos casos não sentenciados pela soma dos casos novos mais os casos pendentes de julgamento, e indica se a Justiça consegue decidir com presteza as demandas da sociedade, ou seja, se as novas demandas e os casos pendentes do período anterior são finalizados ao longo do ano.

A Elaboração dos Planos de Ação, e sua subsequente Implementação e Acompanhamento, constituem as etapas finais do planejamento estratégico. Para que sejam criadas condições efetivas para o alcance dos objetivos e metas estabelecidos, este momento deve abranger o detalhamento das ações de implementação necessárias à consecução de cada estratégia específica. Nesta ocasião, são também especificadas as datas de início e término de cada uma das ações, assim como os valores orçados para a alocação dos recursos humanos, técnicos e materiais necessários à sua execução.

Cabe salientar que esta é uma etapa extremamente delicada do processo de planejamento estratégico, pois é aqui que se estabelece a ponte entre o nível estratégico e os níveis tático e operacional da instituição, onde estarão as instâncias que responderão pela concretização de todas as ações planejadas.

Conforme postulam Bryson & Alston, “a mera criação de um plano estratégico não é suficiente. O desenvolvimento de planos de ação efetivos, e sua posterior implementação, dará vida à estratégia e agregará valor real e concreto à organização” (1996 : 97).

Finalmente, cabe aqui enfatizar a necessidade imperiosa da existência de uma unidade dentro da organização que articule, de forma integrada e sistemática, a elaboração e implementação das ações, seja mobilizando os recursos necessários ou, posteriormente, coordenando a avaliação dos resultados alcançados e promovendo a revisão, quando necessário, dos objetivos e metas estabelecidos e do próprio plano estratégico como um todo.

É por meio desta ação catalisadora que o processo de planejamento se tornará iterativo, conforme proposto por Certo & Peter (1993), com um conjunto de etapas se repetindo ciclicamente.

3. A Gestão Estratégica no Poder Judiciário

No âmbito do Poder Judiciário, as preocupações quanto à modernização da sua gestão remontam à primeira metade da presente década de 2010. Naquela ocasião, o Ministro Nelson Jobim, então Presidente do Supremo Tribunal Federal, argumentava que a legitimidade do Judiciário deveria estar

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alicerçada na prestação do serviço jurisdicional com qualidade e eficiência, o que dependeria de uma gestão orientada por objetivos e metas voltados à eliminação dos gargalos apresentados pelo sistema judiciário para ofertar decisões, identificação, qualificação e quantificação das demandas, e redução dos custos da prestação jurisdicional, entre outros aspectos.13

Desde então, diversos tribunais em todas as instâncias do Poder Judiciário vêm desenvolvendo ações no sentido de, mediante uma visão estratégica, consolidar as bases para responder, com efetividade, as demandas básicas da sociedade por justiça: maior acesso da população ao Judiciário, prestação de serviços em tempo razoável, efetividade e celeridade no julgamento e na aplicação das decisões.

Neste contexto, há que salientar o papel indutor à gestão e ao planejamento estratégico que vem sendo desempenhado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), especialmente a partir dos mandatos14 que institucionalizaram o processo no âmbito do Poder Judiciário e, complementarmente, com a promoção de encontros de âmbito regional e nacional, congregando os presidentes e principais gestores de todas as cortes para a discussão conjunta de problemas e soluções no âmbito do planejamento e da gestão.

A ação de coordenação do CNJ, através da Resolução no 70, recentemente baixada pelo órgão, buscou pautar os principais desafios que devem ser enfrentados e superados pelas cortes no âmbito da eficiência operacional, do acesso ao sistema de justiça, da responsabilidade social, do alinhamento e integração, da atuação institucional, da gestão de pessoas, da infraestrutura e tecnologia, e da garantia de recursos orçamentários necessários à execução das estratégias15.

Ainda na mesma Resolução foram estabelecidas dez metas de nivelamento para o ano de 2009, visando o início de um processo de equalização de ações e resultados entre todas as instituições e instâncias do Poder Judiciário16.

A partir das diretrizes emanadas do CNJ, torna-se oportuna uma digressão sobre a situação atualmente existente em algumas cortes, quanto à gestão e ao planejamento estratégico, baseada na experiência vivida e na observação participante do autor em algumas instituições do Judiciário.

13 JOBIM, Nelson (2004).14 Resolução CNJ no 49, de 18/12/2007, que dispôs sobre a organização de núcleos de Gestão Estratégica nos órgãos do Poder Judiciário, e Resolução CNJ no 70, de 18 de março de 2009, que dispôs sobre o planejamento e a gestão estratégica do Poder Judiciário.15 Anexo I da Resolução CNJ no 70: A Estratégia do Poder Judiciário.16 Anexo II da Resolução CNJ no 70: Metas Nacionais de Nivelamento – Ano de 2009.

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Inicialmente, não nos parece que existam problemas para a mobilização dos quadros gestores internos, especialmente em nível da administração dos tribunais, para apoiar e participar da formulação das estratégias, já que o funcionamento de comissões de modernização da gestão e grupos similares tem sido bastante participativo e proveitoso nos projetos observados.

A análise dos contextos interno e externo e a construção da identidade institucional (missão, visão de futuro e valores organizacionais), são etapas que não constituem problema significativo nos processos de planejamento observados, visto que os temas envolvidos já estão bastante difundidos e assimilados nos tribunais, principalmente a partir da ação do CNJ e dos tribunais superiores, que têm incentivado e orientado tais formulações.

Por outro lado, a maioria das cortes tem sistematicamente envolvido seus principais quadros em programas de capacitação em administração judiciária, nos quais esta temática já é abordada de forma corriqueira. Os encontros regionais e nacionais do Poder Judiciário, promovidos pelo CNJ para a discussão da gestão estratégica, já salientados anteriormente, também têm auxiliado na sensibilização e no envolvimento das pessoas com o tema.

A etapa de formulação das estratégias, especialmente quanto aos objetivos estratégicos, metas e indicadores de desempenho, a despeito do material que tem sido amplamente disseminado na literatura sobre o tema, constitui ainda um desafio a ser superado, em face de a cultura de gestão baseada em critérios objetivos de medição não estar ainda arraigada no setor judiciário de forma sistemática.

Uma das principais razões para tal dificuldade deve-se ao fato que, especialmente no nível dos órgãos julgadores, os dados primários sobre a atividade de prestação jurisdicional carecem ainda de maior precisão e padronização, dificultando a sua obtenção e tratamento com qualidade.

A despeito de as instâncias superiores do Poder Judiciário virem insistindo formalmente no sentido de que os tribunais gerem resultados padronizados para possibilitar uma comparação mais objetiva e precisa entre as cortes17, o fato concreto é que o acompanhamento dos resultados através de indicadores carece ainda de uma adequada infraestrutura de dados primários, conforme salientado acima, de forma a possibilitar um acompanhamento coerente e eficaz das ações desenvolvidas.

17 As Resoluções CNJ no 4, de 24/8/2005, e no 15, de 20/4/2006, dispõem sobre a criação e regulamentação do Sistema de Estatística do Poder Judiciário.

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Nesta linha, cabe enfatizar a necessidade, que ainda se faz sentir, de uma abordagem mais sistemática e objetiva para a geração de indicadores de desempenho com a qualidade almejada, a partir da estruturação de um processo centrado em um roteiro conforme preconizado anteriormente: definição dos objetos (ou campos) de medição (o que medir); estabelecimento de critérios objetivos de medição (fórmula e variáveis associadas à medição); definição do significado de cada variável e das fontes de sua obtenção; definição do resultado esperado (meta); e estabelecimento dos processos de obtenção dos dados associados às variáveis de medição.

No âmbito das unidades prestacionais, especialmente em nível da primeira instância, o envolvimento dos magistrados e servidores no processo de planejamento ainda deixa a desejar, provavelmente porque não tem havido mobilização efetiva destas unidades no sentido de integrá-las de forma mais direta no processo de gestão. Esta situação se fez notar em praticamente todas as instâncias do Judiciário observadas pelo autor, especialmente quando se trata das comarcas do interior dos estados.

Ainda existe dificuldade na formulação das metas e resultados para prazos maiores do que dois anos, de um lado pela necessidade de sanar problemas emergenciais que afligem cotidianamente a vida das unidades judiciais e administrativas, de outro lado pela dificuldade em se visualizar horizonte maior do que aquele associado à Administração que está à frente da gestão do Tribunal.

Tal situação ainda é vista mesmo naqueles casos onde existe um “pacto informal” de continuidade administrativa entre os gestores atuais e futuros, pois tal compromisso geralmente não é diretamente percebido por aqueles que exercem as funções de comando nas instâncias de nível tático e operacional.

A elaboração e a posterior implementação dos planos de ação (como chegar lá, isto é, como definir e estruturar as ações e responsabilidades para chegar aos objetivos e metas pré-estabelecidos) constitui um grande problema na maior parte das situações, devido à dificuldade de mobilizar efetivamente as pessoas para pensarem em planos de ação concretos e focados em ações encadeadas, e em indicadores efetivos para medir o progresso das ações e dos resultados alcançados.

Este fato deve-se a nosso ver, em primeiro lugar, ao envolvimento ainda insuficiente da maioria dos quadros da instituição no processo inicial de formulação das estratégias, ou à inexistência de mecanismos que tornem efetiva a motivação e o comprometimento de todos com a mudança e com o alcance das metas estabelecidas.

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Por outro lado, a divulgação e assimilação dos direcionadores estratégicos e das estratégias provenientes da cúpula dos tribunais junto à maior parte da população que compõem os quadros dos órgãos julgadores ainda não é um processo consolidado. Isto porque nos parece ainda faltar, na cultura de boa parte das organizações do Judiciário, uma ação arraigada voltada para a criação de mecanismos e atitudes que tornem fluida a comunicação entre os diversos níveis organizacionais.

Não queremos dizer, com a afirmação anterior, que não existam esforços e intenções neste sentido. Todos os tribunais, via de regra, possuem ambientes de comunicação eletrônica através da internet e das redes internas, são criados folhetos ilustrativos das diretrizes e intenções da Administração quanto à estratégia, e “banners” são espalhados pelas instalações, com a divulgação da missão, dos valores organizacionais e do cenário futuro a que se pretende chegar.

Entretanto, os efeitos pretendidos pela administração, em termos do envolvimento coletivo e de respostas sob forma de ações concretas, têm sido bastante tímidos e abaixo das expectativas, em nosso entendimento. Nesta linha, já observamos experiências de divulgação dos direcionadores estratégicos da instituição – a missão, a visão de futuro e os valores organizacionais – na rede corporativa interna, a intranet, seguida da formulação de uma pergunta para todos os funcionários, “como você pode contribuir para o alcance da missão e da visão de futuro do Tribunal?”, mas os resultados constatados, em termos de retorno de contribuições e sugestões, foram pouco significativos.

Dessa forma, pode-se concluir que o modelo mental proposto na literatura de um “pensar estrategicamente” envolvendo toda a instituição, a nosso ver ainda é mais uma aspiração do que um fato real nos tribunais observados pelo autor.

Finalmente, o que se percebe é um enorme esforço para dotar as instituições de métodos e tecnologias para apoio à formulação e à implementação das estratégias, sem que haja ainda uma institucionalização de políticas consistentes de recursos humanos para criar contrapartidas de incentivo real para recompensar o alcance das metas estabelecidas, seja em termos financeiros ou por meio de outras formas de premiação aos funcionários individualmente ou a grupos (times) envolvidos com a concretização dos planos.

4. O magistrado como agente de mudança na gestão estratégica

Conforme enfatizado no início deste trabalho, a gestão estratégica é uma ação contínua que deve se institucionalizar no seio da organização e

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internalizar-se nos seus quadros funcionais em todos os níveis. O planejamento estratégico, visto como um esforço disciplinado para produzir decisões e ações fundamentais, é o instrumento conceitual e metodológico para concretizar a formulação e a implementação das estratégias.

Entretanto, por melhor que sejam as formulações derivadas do processo de planejamento, elas não são um substituto para a liderança como o meio fundamental para motivar as pessoas, desencadear as ações e fazer acontecer os resultados em qualquer instância da organização.

Nas instituições do Judiciário o principal foco de concentração das ações estratégicas, tendo como propósito final a prestação do serviço jurisdicional com qualidade e eficiência, deve estar voltado para os órgãos julgadores, no âmbito da primeira e da segunda instâncias. É neste contexto que deve se ressaltar o papel chave dos magistrados como os agentes fundamentais nas ações de formulação e de implementação das estratégias.

Tendo como referência a compreensão da natureza dos processos inerentes ao Poder Judiciário, conforme proposto por Dakolias (1996), além do seu exclusivo espaço do livre convencimento para a resolução dos conflitos, razão de ser da instituição judiciária, o magistrado ainda atua na esfera da administração da justiça em outra instância, a da gestão das funções administrativas dos órgãos julgadores e da tramitação do processamento das ações relacionadas à resolução dos conflitos de interesse entre as partes envolvidas.

É nesta dimensão administrativa do órgão julgador que ressalta o papel do magistrado como agente da transformação estratégica da gestão. Nesta situação, para uma atuação eficaz, ele deve desvincular-se do modelo mental utilizado no processo de formação do seu convencimento para a resolução das lides, orientado por uma atuação bastante individualizada e condicionada pelos fatos inerentes ao processo que está sendo analisado, pelas normas e doutrinas do direito e pelos seus valores pessoais.

Na figura de gestor administrativo, alinhado com a estratégia da instituição, o magistrado deve desenvolver e internalizar outros papéis e habilidades, especial-mente no sentido de conduzir os processos que requerem, essencialmente, o desempenho de tarefas de natureza interpessoal, conforme proposto a seguir.

Em primeiro lugar deve entender o contexto estratégico em que está atuando, sendo capaz de perceber como as proposições relacionadas à missão, visão de futuro e valores organizacionais podem transformar-se em ações concretas no âmbito de sua esfera de atuação, o órgão julgador.

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Para tanto, de forma a atuar efetivamente como o principal agente facilitador do processo de mudança, o magistrado deve, antes de tudo, internalizar o sentido do que significa pensar e agir estrategicamente na sua esfera de atuação, para o que é imperativo o desenvolvimento de uma visão clara, objetiva e sucinta dos fatores críticos a serem enfrentados e superados para o sucesso da implementação das ações propostas no órgão onde atua.

Em seguida, deve envolver o pessoal sob sua jurisdição (os funcionários do gabinete e do cartório) na execução das ações propostas, para o que faz-se necessária uma prévia discussão com os mesmos a respeito dos direcionadores estratégicos formulados e da forma como eles podem impactar o funciona-mento e os resultados da unidade prestacional.

A partir da compreensão das pessoas sobre o significado das diretrizes estratégicas no seu cotidiano, o passo seguinte do magistrado é investir-se da missão de ser o patrocinador político das mudanças no seu contexto de jurisdição. Neste papel, ele não estará necessariamente envolvido nos detalhes do dia a dia das ações, mas deverá acompanhar acuradamente o progresso das ações e a reação das pessoas às mudanças que estarão acontecendo.

Como principal articulador local da implementação das estratégias, deve também dispor de um canal efetivo de comunicação com a administração da instituição, notadamente com a unidade responsável pela gestão estratégica, de forma a garantir os recursos necessários para a concretização das ações, especialmente quanto à provisão dos meios materiais, e à capacitação, reconhecimento e recompensa das pessoas envolvidas.

Finalmente, no seu papel de líder do processo de mudanças, deve utilizar o diálogo e as discussões em grupo como os meios essenciais para construir um ambiente de transformação dotado de significado para as pessoas.

5. Conclusões

A aplicação da gestão estratégica nas organizações públicas é plenamente factível, desde que a cultura predominante favoreça a adoção de procedimentos centrados na racionalidade do processo de gestão.

O primeiro e principal benefício potencial da gestão estratégica é a oportunidade de se criar um ambiente coletivo orientado para o pensamento e a ação estratégica no âmbito da organização como um todo. Este é o principal resultado a ser alcançado.

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Neste sentido, o planejamento estratégico tem utilidade somente se dele resultarem elementos que facilitem e fortaleçam o pensamento e a ação estratégica.

Como decorrência do primeiro, o segundo benefício potencial consiste na possibilidade de se alcançar melhores resultados na gestão do negócio, a partir do foco nos desafios cruciais que se apresentam à organização, tanto no plano interno como no relacionamento com o ambiente externo.

O terceiro benefício potencial, melhor resposta aos desafios provenientes do ambiente externo e maior transparência da gestão, é uma decorrência direta e natural dos dois primeiros.

A implementação da gestão estratégica no setor público tem o mesmo grau de complexidade que nas empresas privadas, entretanto apresenta uma conotação bastante diferente quando observada a perspectiva dos seus resultados, dado que estes devem contemplar a contribuição da instituição para a efetividade das políticas públicas estabelecidas.

No caso do Poder Judiciário, a formulação das estratégias deve buscar o fortalecimento de suas instituições no sentido de prover uma efetiva prestação jurisdicional para a sociedade, política pública estabelecida pelas suas instâncias de nível superior.

A experiência recente nas organizações do Judiciário, conforme percebido pelo autor, revela um contínuo progresso na utilização de processos de planejamento estratégico como um meio sistemático de fortalecer a compreensão de sua missão e a visão do cenário futuro onde se pretende chegar.

Entretanto ainda permanece, como um grande desafio, a concretização efetiva do “pensar estrategicamente” envolvendo toda a instituição, que ainda constitui mais uma aspiração do que um fato real nas situações observadas pelo autor.

Para se chegar efetivamente ao cenário desejado, ressalta a missão que deve ser assumida pelos magistrados como agentes da transformação estratégica da gestão. Na figura de gestor administrativo alinhado com a estratégia corporativa, o magistrado deve desenvolver e internalizar novos papéis e habilidades, notadamente no sentido de conduzir os processos que requerem, essencialmente, o desempenho de tarefas de natureza interpessoal, especialmente quanto à comunicação, negociação e condução de grupos.

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JuDICIáRIO DO NOVO TEMPO

Cesar Augusto Mimoso Ruiz AbreuMestre em Direito e pós-graduado em Administração PúblicaAutor de “Sistema Federativo brasileiro: degeneração e reestruturação” e “Governo Judiciário”Ex-Presidente da Associação dos Magistrados Catarinenses − AMCDesembargador

1. Fundamento primeiroO Poder Judiciário sempre viveu uma cultura de não-poder. É chegada a

hora da mudança, que se inicia com a participação nas decisões que permeiam as transformações da sociedade. O Judiciário é poder político com o mesmo grau de quantidade e qualidade de poder que possam ter o Legislativo e o Executivo. Os três são um. E em conjunto devem decidir as questões de Estado.

A mudança para o Novo Tempo está a exigir do Judiciário outra postura, um caminhar proativo, e dos juízes maior envolvimento na consolidação dos alicerces da República. Os desafios econômicos, políticos e sociais da atualidade colocam os juízes no epicentro dos acontecimentos, alterando-lhes o perfil tradicional, de isolamento e equidistância, para obrigá-los, no sítio da sua jurisdição, a perseguir ativamente a concretização da justiça e do direito.

O juiz é, por mandato social, o curador dos excluídos, menores, idosos, órfãos e ausentes. É curador, também, da Criação, da vida, do meio ambiente e da cidadania. A ele é reservada a tarefa de conferir e graduar a dimensão política do Poder Judiciário e, por extensão, a do seu próprio múnus.

É de sua responsabilidade, também, adotar posição firme e clara perante o controle externo do Poder Judiciário e as relações deste Poder com o Executivo, Legislativo, Tribunal de Contas, Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil.

Mudar, portanto, é preciso. E a mudança começa por um novo olhar dos juízes, para além dos escaninhos dos processos!

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2. Os outros fundamentosA passagem para o Judiciário do Novo Tempo reclama algumas iniciativas,

entre elas o diálogo interinstitucional permanente, a formulação de parcerias para o desenvolvimento, a democratização e descentralização da atuação judicio estatal, a revisão do papel do juiz na sociedade, a remodelação da divisão e organização judiciárias, a desburocratização e modernização das atividades administrativa e judicial e, fundamentalmente, a transformação da Justiça brasileira em padrão mundial de segurança jurídica.

Como fazer?O Poder Judiciário de Santa Catarina criou o seu modelo ao instituir

o Conselho de Gestão, Modernização Judiciária, de Políticas Públicas e Institucionais, órgão por meio do qual recobre tarefas que vão além da prestação jurisdicional corrente. No conjunto, as funções atribuídas ao Conselho conduzem ao chamamento dos demais poderes e instituições que lhe são afins para um necessário diálogo interinstitucional, com vistas a um projeto comum de reconstrução e desenvolvimento.

É desse Conselho a tarefa de apontar o caminho que deve percorrer o Judiciário para assumir qualitativamente a sua parte de responsabilidade política na produção do bem comum.

2.1 Diálogo interinstitucional permanenteO diálogo interinstitucional é a instância que congrega, permanen-

temente, formal ou informalmente, os poderes (Judiciário, Legislativo e Executivo) e as instituições (Ministério Público, Tribunal de Contas e Ordem dos Advogados) para definição e implementação de prioridades e o recobrimento de oportunidades, emergências e ocasionalidades que afetam o interesse coletivo.

2.1.1 Os poderes do Estado brasileiro e o direito à coadjuvaçãoEstá expresso na Constituição, em seu art. 2o, que Executivo, Legislativo e

Judiciário são harmônicos e independentes.A harmonia há ser interpretada como reveladora de um acordo

interinstitucional permanente, de cooperação mútua, facilitadora do cumprimento pelos órgãos que compõem o Estado, dos seus respectivos papéis institucionais. Espera-se que o Executivo possa resolver com competência os reclamos sociais e econômicos da população, o Legislativo legisle melhor, num

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ambiente de correção e moralidade, e o Judiciário realize com maior presteza e eficiência os ideais de justiça da sociedade.

A independência, pré-requisito para o Estado de Direito, impõe apenas que Poder nenhum se sujeite à dominação do outro, não inibe iniciativas conjuntas, muito menos conjunção de esforços para superação das causas que embaraçam ou causam ineficiência a um ou outro dos poderes.

Na consecução dos objetivos fundamentais da República, é direito-dever dos que exercem poder de mando e comando dos órgãos que compõem a estrutura política do Estado, exatamente, coadjuvarem no cumprimento dos postulados inscritos na Carta Constitucional.

2.1.2 A inter-relação entre os órgãos do Estado e as instituições democráticasA separação de poderes, tal como concebida na Constituição brasileira,

não é tão acentuada ou absoluta a ponto de inibir iniciativas conjuntas, que, antes de ferir a sagrada e necessária independência do Legislativo, Executivo e Judiciário, lhes propicia a melhora de desempenho.

É a lição que se extrai dos últimos dois pactos, escritos pelos poderes da União, em favor de um Judiciário mais rápido e republicano.

Aliás, é da essência democrática que os poderes do Estado devem ser mantidos tão separados e independentes uns dos outros quanto o admita a natureza de um governo livre; ou na medida compatível com aquela cadeia que liga todo o tecido da Constituição num laço indissolúvel de unidade e amizade.

Como adverte o professor Alcides Abreu, o poder do Estado divide-se por conveniência. Em concreto, a prática da tripartição resultou, no Brasil, em três absolutismos, sob a capa da independência dos poderes. Em verdade, no Poder que se divide os subpoderes são interdependentes porque são sistêmicos. Não são independentes. O poder do Estado, dividido por especialização em serviços legislativo, judiciário e executivo, deve atuar sinergicamente. A sinergia é obtida no interior de cada serviço ou subpoder e entre os subpoderes pela retroalimentação ou controle externo e interno. Na visão moderna – e apropriada –, prossegue, tudo é sistêmico, isto é, constituído de partes interatuantes e, por isso, interdependentes. A interdependência impõe a concertação permanente, a sincronia na ação, a retroalimentação – controle – constante, on-line, a sinergia.

Com essa visão de conjunto e de cooperação mútua, por simetria, os estados federados e os municípios estão convocados a escrever, cada um, o

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seu próprio pacto, observadas as exigências que lhes sejam próprias e mais imediatas, não apenas para superar a ineficiência deste ou daquele Poder ou Instituição, mas para fazer cumprir os compromissos escritos na Carta da República, preferencialmente os de conteúdo social.

Na costura desse acordo de recíproca cooperação devem concorrer as instituições que, direta ou indiretamente, contribuem para que o Estado-Nação brasileiro se faça democrático de direito. Refiro-me ao Tribunal de Contas, ao Ministério Público e à Advocacia. Instituições que não competem com os poderes da República, apenas somam esforços para realização do ideário da sociedade.

A responsabilidade conjunta pela busca do bem comum os tornam parceiros obrigatórios em quaisquer iniciativas.

2.1.3 O Poder Judiciário catarinense propondo-se ao diálogoA ideia que Santa Catarina coloca à discussão, como contribuição na

construção de um novo Judiciário, é a formulação de uma agenda política, social e econômica, comum às duas esferas de Poder, estadual e municipal, e a institucionalização do Diálogo Interinstitucional Permanente entre os Poderes Judiciário, Legislativo, Executivo e as instituições do Ministério Público, Tribunal de Contas e, como sugestão, a OAB/SC, com o objetivo de adotar e fazer implementar o Projeto de Reconstrução e Desenvolvimento de Santa Catarina para 2020.

A tendência pela conversação, pelo diálogo, pela discussão prévia e pelo consenso é sentida universalmente, basta citar a iniciativa da Comunidade Europeia, que, em 2004, via resolução do seu Parlamento, entendeu desejável um diálogo interinstitucional permanente entre as diversas instituições comunitárias sobre a melhoria da qualidade da legislação. O exemplo deve ser seguido. A União já escreveu o seu segundo pacto em favor de um Judiciário mais rápido e republicano. Os estados, o Distrito Federal e os municípios precisam aderir, escrevendo também os seus.

Esse diálogo democrático e construtivo, que servirá de instrumento à solução de problemas na área dos direitos fundamentais sociais e formulação de políticas de implementação desses direitos, deve começar pelo Município, ou Município-comarca, não só em decorrência do princípio federativo da subsidiariedade, mas por se concentrarem ali, na menor divisão geopolítica do Estado-Nação, os problemas mais sensíveis da sociedade.

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A magistratura deve fazer-se presente. O juiz não está excluído desse contexto. É ele agente propulsor do desenvolvimento social e econômico, portanto, agente político, na exata dimensão e conteúdo da expressão. Os promotores de justiça, advogados, prefeitos e vereadores também são convocados ao diálogo, porque mais próximos das pessoas e das causas de suas angústias e aflições. Cabe-lhes, comprometidos que estejam com o desenvolvimento e progresso das comunidades a que servem, avaliar e operacionalizar as soluções para as adversidades.

Temos nesses cinco legítimos representantes da sociedade – aos quais deve somar-se, em nível estadual, o Tribunal de Contas –, o embrião para uma agenda que seja do tamanho do Brasil.

2.2 Formulação de parcerias para o desenvolvimentoA cooperação entre os poderes da República está expressamente prevista

no art. 241 da Constituição Federal. É a chave da própria descentralização, implícita no princípio federativo da subsidiariedade, segundo o qual, presume-se, melhor realiza quem está mais próximo dos problemas e das pessoas, ou seja, o Município prefere ao Estado e à União. O Estado, por sua vez, prefere à União.

Um dos direitos fundamentais da cidadania é exatamente o direito a uma boa administração. Objetivando alcançá-la e facilitando o diálogo entre os entes federados e os respectivos poderes do mesmo ou de outros níveis é que a Constituição autorizou a edição de leis permissivas de consórcios públicos e convênios de cooperação.

No Estado de Santa Catarina, o diálogo interinstitucional foi deflagrado, em alguma medida, e com concretude, a partir da edição da Lei no 14.266, de 21/12/2007, que dispôs sobre as execuções fiscais de pequeno valor e autoriza a celebração de convênios de cooperação entre o Poder Judiciário e os municípios catarinenses, com vistas na instalação, descentralizada e desburocratizada, em próprios municipais, de unidades judiciais de cobrança de dívida ativa, o que importará, a curto prazo, tão logo disseminados os convênios, na retirada física dos escaninhos do Pretório Estadual de 1/3 do volume de demandas que correm na Justiça de primeiro grau.

Espera-se, com iniciativas de igual importância, em áreas como segurança pública, meio ambiente, saúde, educação, justiça, desenvolvimento, por exemplo, transmudar a realidade dos municípios, das comarcas, transformando

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as sedes destas em ponto de efervescência, de reuniões e encontros para a discussão e resolução de importantes temas de interesse local, e porque não, Estadual e Federal, definindo estratégias e estabelecendo consensos para a consecução de objetivos comuns, relacionados ao bem estar das pessoas, das famílias e das comunidades.

Uma nova cultura há de se implementar na base, no interior das comunas, para que, fortalecidas, venham facilitar ao Poder Judiciário o cumprimento de sua missão estratégica.

Para iniciar esse diálogo, e como corolário dele, parece essencial que os poderes públicos municipais, Legislativo (vereadores) e Executivo (prefeito), em harmonia, com o concurso do juiz de direito, do promotor de justiça e do advogado, este na condição de representante da subseção local da Ordem dos Advogados do Brasil, revejam as suas leis, extirpando tudo quanto seja fonte de iniquidade, e as suas práticas administrativas, na busca por maior qualidade para que melhor se realizem os direitos de cidadania.

Rever os poderes, passar a limpo as suas práticas, é um bom começo para um diálogo sério, maduro, democrático. Nenhum deles, Legislativo, Executivo ou Judiciário, pode esquivar-se do chamamento. O Legislativo é o primeiro que deve sofrer revisão adequada, profunda, para que esteja à altura das aspirações do seu povo, porque fonte de leis hostis aos parâmetros constitucionais. Dessa revisão não escapa o Executivo, que deve priorizar a profissionalização do serviço público. Mas não seria apenas isso.

Outros temas podem ser objeto de consideração, de debate, de consenso, como a elaboração orçamentária, com vistas na adequada distribuição dos recursos públicos, e um maior controle não só das despesas como também das receitas. O Judiciário, que sofre os efeitos das leis imperfeitas e dos atos administrativos, quando malferem direitos, também não está fora. Precisa remodelar-se, adaptar-se à realidade, para que sejam mais céleres os seus pronunciamentos, sem perda da qualidade ou da referência ao justo. Deve, enfim, primar pela excelência de seu serviço e pela segurança jurídica.

A sociedade reclama segurança legislativa, jurídica e administrativa. Almeja um governo ótimo, porque o interesse público não é protegido com violação de direitos, mas com a supressão de vícios e irregularidades.

O Judiciário, como o Poder de Estado, mais presente nas comunidades, bem como a instituição do Ministério Público, com essa iniciativa e a participação ativa da nobre classe dos advogados, será capaz, a médio prazo, de concretizar

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a ideia do povo no poder, fazendo do espaço público de que dispõe o lugar para o exercício da cidadania e o fortalecimento da democracia.

O despertar da consciência popular, para o controle do governo, é tarefa que cabe também aos juízes, insuspeitos e imparciais que o sejam, e igualmente ao Ministério Público, atores privilegiados para a accountability do serviço público. E esse controle sobre o Estado, em qualquer das suas divisões – Legislativo, Executivo e Judiciário −, só vai ocorrer efetivamente se os seus atos e as suas ações forem verdadeiramente fiscalizados pelos cidadãos, ou por quem responsavelmente os represente. Não haverá condição para a accountability, entretanto, enquanto o povo se definir como tutelado e o Estado como tutor. Essa, talvez, a maior contribuição que o Judiciário possa dar à democracia e ao povo brasileiro, qual seja, fazer dele o tutor, e não mero tutelado.

É momento, pois, de mudança, da deflagração de um processo revolucionário na Administração Pública, de passar a limpo as instituições democráticas do País, a começar pela casa, pelo Município, menor ente político, mas lugar onde vivem as pessoas e se produzem as riquezas da nação. Não há dinheiro em Brasília que não provenha dos municípios, das pessoas.

2.3 Democratização e descentralização da atuação judicio estatalEm Santa Catarina três fatos políticos marcaram o início do processo de

democratização e descentralização da atuação judicio estatal, pela ordem: a dissolução do Órgão Especial; a instituição do Governo Judiciário a partir do Tribunal Pleno; a criação do Conselho de Gestão, Modernização Judiciária, Políticas Públicas e Institucionais.

A extinção do Órgão Especial representou: a) a restauração das prerrogativas dos desembargadores excluídos de sua composição; e b) um primeiro passo para a democratização do próprio Poder Judiciário.

A implosão desse órgão nasceu da consciência de que o Poder Judiciário, como Poder Político que é, não pode e não deve se partilhar em grupos de interesses, por mais democráticos e republicanos que possam parecer.

Aliás, é da experiência parlamentar que uma câmara escolhida por grupos de interesses cuidará de todos os interesses, menos de um, o coletivo, que, por ser geral, não terá defensor específico.

Essa advertência, trazida à realidade do Poder Judiciário, está a indicar que todas as decisões a serem tomadas, que digam respeito ao interesse geral da

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sociedade, por um corpo de juízes, não podem prescindir da participação de nenhum deles, sob pena de quebra de sua legitimidade.

A dissolução do Órgão Especial, portanto, constituiu-se num marco na busca pela plena democratização do Poder Judiciário catarinense e representou o início do que se passou a denominar Governo Judiciário a partir do Tribunal Pleno.

O Governo Judiciário no âmbito externo, pode-se dizer, é governo do povo, pelo povo e para o povo. No interno, no seu âmago, o Governo Judiciário é do seu órgão máximo de cúpula, o Tribunal Pleno, e a sua administração – no sentido de Administração Pública, e não de Justiça – é delegada, vale dizer, reversível, com poderes sempre menores, nunca superiores, portanto reduzidos aos limites consignados regimentalmente.

A retomada do controle político da instituição pelo Tribunal Pleno, antes de caracterizar uma mudança de mentalidade ou tomada de consciência, representa, isto sim, o exercício soberano das suas prerrogativas e o único caminho capaz de ensejar governabilidade, que consiste na capacidade de alcançar resultados possíveis e desejados.

O individualismo cedeu à governabilidade.Reflexo da retomada do comando da instituição pelo Tribunal Pleno está

exatamente na criação do Conselho de Gestão, Modernização Judiciária, Políticas Públicas e Institucionais. É ele o órgão através do qual o Poder Judiciário recobre tarefas que vão além das prestações judiciárias correntes. No conjunto, as funções atribuídas ao Conselho compõem o chamamento dos demais poderes a um necessário Diálogo Interinstitucional para um novo tempo catarinense, brasileiro e planetário.

O Conselho propõe-se a promover: (1) avaliação de conjunturas com vistas ao planejamento estratégico e desenhos de futuro; (2) formulação de agenda pública e institucional; (3) avaliação de proposta orçamentária; (4) acompanhamento e verificação de desempenhos, conducentes à gestão para resultados.

Vistas uma a uma, as funções se descrevem como a seguir: (1) Agenda pública e institucional: colaborar na formulação da agenda pública de discussão das questões direta ou indiretamente ligadas à Justiça, Segurança Pública e aos direitos da Cidadania, e na definição da agenda institucional, relativa a ações concretas para melhoria na prestação jurisdicional e nos serviços judiciários e afins, voltadas para uma gestão pública de qualidade e de resultados, com ênfase no cidadão catarinense, visando ao bem comum; (2) Proposta orçamentária anual: emitir parecer prévio, quando solicitado pelo Tribunal

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Pleno, sobre a proposta orçamentária anual e sobre os pedidos de abertura de créditos adicionais e especiais, submetidos à sua apreciação pelo Presidente do Tribunal; (3) Acompanhamento e avaliação de desempenhos: acompanhar, em nome do Tribunal Pleno, o desempenho da Administração e de seus órgãos subordinados, bem como o cumprimento das metas estabelecidas pelo Poder Judiciário na Lei de Diretrizes Orçamentárias; (4) Planejamento estratégico: desenvolver estudos na área do planejamento estratégico, com a participação ativa dos servidores, juízes e órgãos da Administração, ouvidos a associação de classe da magistratura e o sindicato dos servidores, para apresentação de planos e metas de gestão e geração de programas de avaliação institucional, objetivando o aumento da eficiência, da racionalização e da produtividade do sistema, bem como o maior acesso à Justiça; (5) Gestão para resultados: elaborar programas de aperfeiçoamento de gestão administrativa e financeira do Poder Judiciário, propondo suas metas.

A decisão do Tribunal Pleno dá ao Poder Judiciário o caminho para assumir qualitativamente a sua parte de responsabilidade política na produção do bem comum dos brasileiros de Santa Catarina. De mediato.

A adoção do Conselho de Gestão abre também ao Judiciário a oportunidade de promover, entre os poderes Judiciário, Legislativo, Executivo e as instituições do Ministério Público, Tribunal de Contas e OAB, o diálogo interinstitucional ampliado, com o objetivo de, em conjunto, escreverem e reescreverem o futuro do Judiciário e de Santa Catarina.

A descentralização recentemente adotada pelo Tribunal de Justiça, pela via da regionalização, com a instalação de uma câmara experimental de julgamento no Oeste catarinense, distante 630 km da Capital, impõe exatamente discutir Santa Catarina e o seu futuro.

A atuação estatal de distribuição da justiça é historicamente uma atividade descentralizada, não sendo propriamente uma inovação o permissivo constitucional da instituição de câmaras regionais.

Como está posto objetivamente na Constituição Federal (arts. 107, § 3o e 125, § 6o), esse deslocamento centrífugo representa mais uma das formas de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo.

Configurando o acesso à justiça, a própria facilitação do ingresso em Juízo, em todas as suas instâncias, a instituição das câmaras regionais constitui não só a garantia da recorribilidade, ou seja, do exercício do direito fundamental de revisão das decisões judiciais, mas também um modo de assegurar a razoável

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duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (CF, art. 5o, LV e LXXVII), além de expressar a aplicação do princípio federativo da subsidiariedade e revelar uma ação afirmativa em direção à plena democratização do Poder Judiciário brasileiro.

É expressão ainda do desejo de mudança, no sentido estrutural do sistema de distribuição de justiça, do desapego a qualquer forma de corporativismo e de uma ação estratégica de consolidação de uma cultura jurídica não patrimonialista, vale dizer, que bem separa o público do privado, fazendo do Judiciário, se não uma instituição mais representativa dos interesses da sociedade, ao menos positivamente compromissada com a redução da tensão que gravita na relação que mantém com os usuários dos seus serviços, colaborando na redução do grau de insatisfação desses mesmos consumidores de justiça.

Aliás, as causas da ineficiência que se atribui ao Judiciário, em grande parte com indiscutível razão, não estão apenas nas leis imperfeitas produzidas no Legislativo, ou nos abusos e desmandos do Executivo, mas na sua própria estrutura e cultura, que deita raízes no Brasil-Colônia.

Está exatamente na maior franquia de acesso à justiça o elemento democratizante, garantidor da universalização dos direitos de cidadania.

O acesso à Justiça, que a Constituição busca garantir, está fundado basicamente na concepção de um sistema a todos acessível e na produção de resultados que sejam individual e socialmente justos.

2.4 Revisão do papel do juiz na sociedadeO papel do juiz na sociedade ultrapassa os limites do mero aplicador e

intérprete qualificado das leis. Investe-se da condição de agente político propulsor do desenvolvimento social e econômico de sua terra e de sua gente, além de garante do Estado Democrático de Direito. Equipara-se ao estadista, que se preocupa com o bem-estar comum, coletivo, enfim, com as gerações futuras, antes de preocupar-se consigo mesmo, ou com os seus. E o juiz, estadista será se tiver qualidades para sem perda da independência que lhe confere a ordem jurídica, ao lado do Legislativo e do Executivo, utilizar-se do Poder Político de que é detentor para decidir em conjunto e simultaneamente as questões de Estado, que incluem a revisão da Constituição e das leis infraconstitucionais, planejamento, orçamento e implementação de políticas públicas, especialmente quanto aos direitos sociais fundamentais.

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É preciso preparar o juiz para esse desafio. Fazer dele um ativista social. Alguém altamente comprometido com o bem-estar das pessoas, das famílias, da comunidade em que vive, do Estado que o abriga e da Nação que o acolhe como filho.

A dimensão política, as qualificações pessoais, a visão da realidade econômico-social do País (do Município, do Estado e do mundo, por que não), o alto espírito público, que caracterizam as ações que se disponha a implementar, a capacidade de não se deixar envolver pela rotina, que desgasta e cansa, sem proveito maior, para concentrar-se nas grandes decisões, é que fazem do juiz um estadista.

O estadista, aliás, não precisa, como não precisam os juízes, de acesso aos postos de mando e comando das instituições para a promoção do bem comum. Ele, o estadista, serve sem servir-se. Nem sempre busca o poder para si. Viabiliza-o, em empenho, para pô-lo nas mãos de quem possa desempenhar com desenvoltura as competências e atribuições próprias do cargo transitoriamente ocupado.

Os juízes são povo; não estão fora nem acima do povo; são, em relação a ele, um igual. Simples, austero, respeitoso, contido, mas sem diferenças. Cabe-lhe, é verdade, velar pelo pleno cumprimento da lei, resguardar os direitos fundamentais que a Constituição assinala, como o direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, e conter energicamente quem a desrespeite, pois sem a preservação deles, fundamentais que são segundo o juízo do pacto maior, todos os demais direitos, derivados que lhes sejam, acabam por substituir a ordem pela anarquia, a paz pelo conflito.

Copartícipe da construção de uma sociedade mais livre, justa, solidária e fraterna, reserva-se ao Judiciário e a seus juízes o desafio de garantir um mínimo de existência condigna ao povo, elevando os direitos sociais fundamentais, pelo menos os mais básicos, ao status constitucional de bens juridicamente protegidos, de modo a afastar o trágico distanciamento entre a promessa de direitos posta solenemente na Constituição e a sua realidade prática.

2.5 Remodelação da divisão e organização judiciáriasObra do constituinte derivado, extrai-se da Constituição um princípio que

se tem por impositivo, qual seja, o número de juízes na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população (CF, art. 93, XIII).

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Para atender a essa exigência, de duas uma: ou se amplia imediatamente o número de juízes, para dar adequada e tempestiva vazão aos processos, ou se facilitam iniciativas e o exercício da criatividade, com vistas na célere administração da Justiça.

No primeiro caso, vale a advertência da Doutora em Ciência Política, Luciana Gross Cunha, quando trata da necessária mudança do gerenciamento da Justiça, verbis: “Se quanto mais processos mais se contratar juízes, vai se chegar em um mo-mento que o Judiciário se transformará em uma instituição muito cara e inviável.

A solução, então, é conferir ao Judiciário uma gestão empresarial. A filosofia é a da visão do Estado-empresa como instrumento da sociedade à qual deve resultados e produtividade.

Ora, sendo finalidade do Estado o bem comum, cumpre, por primeiro, na distribuição territorial das instâncias judiciárias, considerar as pessoas mais à margem do processo cultural-econômico e colocar à sua disposição os meios de inclusão. E mais, promover o diálogo interinstitucional Judiciário-Executivo-Legislativo-Ministério Público-Tribunal de Contas-OAB, incluindo na pauta o estudo e a definição da presença ativa do Estado, serviço executivo e serviço judiciário no território tendo em conta, quanto ao tema Judiciário do Novo Tempo, garantir a Santa Catarina e, por que não, ao País, o melhor Índice de Segurança Jurídica e padrão mundial nesse campo.

Para alcançar o melhor índice devem ser considerados na distribuição territorial tanto os juízes de primeiro como os de segundo grau. O Tribunal de Justiça, como o Tribunal Federal de Recursos, este seguindo o modelo do Tribunal Regional do Trabalho, com atuação em todos os estados da Federação, deve descentralizar-se em câmaras, tantas quantas necessárias, para dar celeridade com qualidade às disputas judiciais. Na busca desse melhor Índice de Segurança Jurídica, que exprime o melhor serviço (presteza, qualidade e oportunidade) à sociedade, cumpre ao Judiciário também agilizar e ampliar o processo de especialização dos juízes.

O Poder Judiciário deverá organizar-se, outrossim, dentro do modelo de Administração Pública voltada para resultados. Isso impõe a implementação da reforma gerencial, com o objetivo de aumentar a governança e a governabilidade do sistema político de que o Judiciário faz parte. São princípios do modelo gerencial de gestão: orientação para o cidadão, transparência, responsabilização e participação. O Juízo é, em princípio, uma unidade de produção de solução de conflitos, unidade de produção de serviços de garantia jurídica.

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É indispensável, pois, promover a remodelação do sistema tradicional da Justiça, o que implica na alteração, ainda, da formatação da divisão e organização judiciárias dos estados.

A fórmula, para mudar o paradigma, é estabelecer uma divisão judiciária não uniforme, que possa a um só tempo compatibilizar os princípios do pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo e da razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (CF, arts. 125, § 6o, e 5o, LXXVIII) com eficiência, de modo a garantir redução de custo e racionalização do trabalho.

Pois bem, uma das soluções seria considerar a divisão judiciária a partir da matéria (cível, criminal, previdenciária, fiscal, família, infância e juventude, etc.); outra, a partir da pessoa do litigante (física ou jurídica, cliente habitual ou não eventual − exemplo do ente estatal, das instituições financeiras, bancárias, securitárias, etc.). Não haveria coincidência nessa divisão, a não ser que o interesse público o recomende. Assim, poder-se-ia redesenhar o mapa da divisão judiciária do Estado, por exemplo, para as matérias criminais, diferentes das civis, diversas da fiscal, da previdenciária, e assim sucessivamente. Ou seja, seria possível que em dada comarca houvesse um juiz competente apenas nas áreas penal e de família, por exemplo, sendo do juiz sediado na Vara regional as demais competências.

As causas conexas, referentes ao mesmo bem jurídico, a tornar a prevenção, se não obrigatória, ao menos um elemento de política judiciária, garantindo-se segurança jurídica, seriam tratadas num único Juízo, ou processadas em todos, mas julgadas pelo juiz prevento, ou a partir da orientação deste. Haveria, então, varas especializadas em causas repetitivas, múltiplas, sazonais ou não.

Evitar-se-iam decisões contrárias ou divergentes, que fogem à compreensão do cidadão em geral, que espera por justiça e não entende o motivo pelo qual perdeu a demanda, idêntica àquela em que foi vitorioso um vizinho seu.

Há que se buscar, primeiro, nos próprios juízes essa visão. Depois, estimular as partes e procuradores – e nisso podem colaborar, também, nas ações de que participem, os promotores de justiça − para que informem da existência dessas ações repetidas, correlatas, como contribuição ética para o processo, e para o Judiciário, por que não?

A garantia do acesso à justiça, que pressupõe manter o Judiciário próximo dos que lhe batem à porta, poderia ser atendida, também, com a transformação do juiz local, nas hipóteses de causas repetidas, mas espalhadas por diversas unidades

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jurisdicionais do Estado, em juiz preparador, com jurisdição concorrente para levá-las até o ponto em que se apresentem aptas ao julgamento, quando então as remeteria ao juízo indicado como prevento (o primeiro a receber a causa), mantendo-se, entretanto, competente também para o julgamento, desde que participe do mesmo entendimento ditado por aquele.

O que se busca com a iniciativa é garantir eficiência, segurança jurídica e, ao mesmo tempo, satisfazer o ideal de uma Justiça presente, próxima do cidadão, acessível nas imediações do seu habitat. O processo e as suas regras, porque instrumentos para ministrar justiça, são secundários em relação a esta. Busca-se, apenas, a harmonia entre as decisões e com isso satisfazer o princípio da igualdade entre os jurisdicionados, evitando-se decisões díspares em situações idênticas de direito material.

Uma só Justiça Estadual, entretanto várias divisões judiciárias, consideradas as especialidades. Uma divisão judiciária para enfrentamento das questões criminais, por exemplo, outra divisão para as matérias comerciais, e assim por diante. Dar-se-ia uma nova feição às comarcas, quiçá desconsiderando-as, e, em substituição, apenas varas, como ocorre na Justiça Federal (CF, art. 110), cada uma delas com uma determinada abrangência territorial, sem uniformidade, e com uma ou duas especialidades, o que for mais conveniente para o exercício rápido e seguro da prestação jurisdicional.

2.6 Desburocratização e modernização das atividades administrativa e judicialO Judiciário, em termos de administração, não é fato que passa

despercebido; tem sido marcado pelo conservadorismo, havendo pouca predisposição para o novo, portanto demora para o processo de adaptação às mutações que permeiam a vida em sociedade.

Entretanto, constitucionalizado o direito à obtenção de decisão administrativa e judicial em prazo razoável, o pronunciamento intempestivo passou a representar para a Administração Pública em geral, e para o Judiciário em particular, causa de responsabilidade.

Portanto, no âmbito da Administração Pública, todo o sistema deve modernizar-se funcionalmente, aproveitando-se das atualidades da informática e das técnicas disponíveis de gestão pública.

Há, ainda, a necessidade de se estabelecer, na exata medida, uma conexão competente entre a atividade-meio exercida pelo Poder Judiciário e a atividade-fim, de prestação eficiente da jurisdição.

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Essa conexão passa pela consciência de que nenhuma iniciativa ou ação, na via administrativa, é boa o bastante se não adotada de forma a repercutir na atividade principal da instituição.

A desburocratização é, pois, necessária. Um imperativo na atualidade. A burocracia, aliás, constitui-se em prática antidemocrática e é a prova mais concreta da ineficiência e da falta de racionalidade no serviço público, se não resultado do próprio centralismo a que se submetem as instituições.

A distribuição pelo Estado dos centros decisórios, creio seja uma exigência da modernidade e possa contribuir para a desburocratização, porque a descentralização é uma decorrência lógico-sistêmica da aplicação do princípio federativo da subsidiariedade, e qualquer iniciativa nessa direção constitui uma decisão política a ser tomada para garantia de uma gestão de qualidade.

Santa Catarina adotou o modelo da regionalização das suas atividades, meio e fim. O Estado foi dividido em 9 regiões, com indicativo, na Lei de Organização e Divisão Judiciárias do Estado (LC n. 339, 8/3/2006), da descentralização, pela via das câmaras regionais (CF, art. 125, § 6o), e da desconcentração, para operacionalização de suas atividades administrativas, objetivando a eficiência e a eficácia (art. 21, I e II).

Para bem atuar, entretanto, as regiões judiciárias, no âmbito de seu espaço territorial, devem aparelhar-se de forma a dispor de uma miniorganização judiciário-administrativa autarquizada, com autonomia, no mínimo, relativa, para a realização das suas atividades administrativas e judiciais.

Essas unidades funcionariam como sátrapas da unidade central, ou com a feição de uma autarquia sui generis. Disporiam de órgãos administrativos e de disciplina próprios, descentralizados, vinculados à Secretaria-Geral do Poder Judiciário, bem como, se for o caso, à Corregedoria-Geral da Justiça. Exerceriam as funções: a) de acompanhamento do rendimento das atividades forenses; b) de fiscalização das atividades extrajudiciais; c) de avaliação do funcionamento das comarcas e varas para proposta de futuros desdobramentos ou instalação de juízos especiais, transitórios, direcionados para a solução de conflitos não ordinários; e d) de desempenho de outras funções delegadas ou complementares, como, por exemplo, de início, a realização de licitações de pequeno porte para satisfação de necessidades imediatas e otimização de custos de transporte quando as compras realizam-se de forma centralizada.

Serviriam, ainda, para superintender as atividades extraordinárias do Judiciário, com ênfase no desenvolvimento da política de expansão dos juizados

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especiais, instalação de casas da cidadania, câmaras de Autocomposição e juizados informais de pequenas causas, programas de Conciliação e Mediação, abrangendo também o Direito de Família. Alternativamente, poderiam propor o agrupamento ou a divisão de comarcas, bem como a instituição de juízos itinerantes, com alçada especial.

É – ou deve ser – da índole das regiões judiciárias a inter-relação, o mais informal possível, de forma que picuinhas burocráticas não comprometam o objetivo maior, que é, com a descentralização, a simplificação do sistema, com a consequente celeridade da prestação jurisdicional. Em suma, os meios não devem nem podem comprometer os fins.

A busca por soluções e métodos, como aqui proposto, enfim por melhoria da qualidade na prestação do serviço, diante da avassaladora pletora de processos, que a todos os juízes angustia, antes da própria sociedade destinatária dos serviços, com o propósito de dar-lhes cabo – embora sabido que não é, em absoluto, exclusivo da Justiça brasileira esse verdadeiro caos instalado, pela aparente falta de perspectiva de superação –, deve ser fonte permanente de preocupação daqueles a quem cabe distribuir justiça, e não causa para esmorecer ou abandonar o otimismo que alimenta a vida e os sonhos de cada um.

2.6.1 A era da tecnologia: aparelhamento dos juízes e das estruturas de sustentação do Poder

A instrumentalização do magistrado, indiscutivelmente, deve ser a preocupação primeira daqueles que acreditam em mudanças e na capacidade individual e coletiva de superação das dificuldades. Prover o magistrado de melhores, mais modernas e eficazes ferramentas de trabalho, com a incorporação das inovações tecnológicas, conhecidos os avanços na área da informática, deve corresponder a uma ação concreta, aliada à gradativa ampliação do quadro funcional e ao uso do melhor instrumental que é inato ao homem e, consequentemente, aos juízes: a inteligência e a criatividade.

A disposição pessoal do juiz de enfrentar o problema passa por uma revisão interna do seu próprio comportamento e grau de comprometimento com a instituição que serve, com vistas a verificar e detectar as causas e os problemas, e, com base neles, implementar as soluções pessoais ou coletivas para melhor atender às expectativas do Judiciário. Portanto, ao juiz não basta mais somente saber julgar; tem que adotar práticas de gestão para conseguir desempenhar bem as suas funções. Não é suficiente dizer do problema nem questionar sobre o que

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a instituição fará para superá-lo. Antes, cabe ao juiz dizer o que pode e como fazer para ajudar a instituição a superar as dificuldades sentidas.

É aquela velha história: não pergunte o que a instituição pode fazer por você, mas o que você pode realizar para fazê-la melhor! Isso vale não só para os juízes, advogados e membros do Ministério Público, como também para toda a sociedade, em maior grau para os que utilizam os serviços judiciários.

Não deve ser esquecida a atividade-meio, de suporte, administrativa, defasada ou esquecida tecnologicamente. Primeiro, fortalecendo a própria DRH – Diretoria de Recurso Humanos com aplicativos e sistemas de informação, que existem no mercado e podem ser adaptados à realidade da Instituição, com vistas numa gestão de pessoal mais condizente com a modernidade disponível.

A gestão da folha de pagamento, o registro de pessoal, os direitos individuais dos servidores, o andamento de processos relacionados à seleção, promoção, treinamento e aposentadoria devem tornar-se mais ágeis e transparentes, reduzindo até mesmo a necessidade de participação do próprio servidor no reconhecimento de direitos que decorrem de lei, e, portanto, independem de provocação do beneficiário. Com isso, diminui-se a margem de erros e melhora-se a qualidade do serviço numa área sensível da Administração. Facilita-se a própria profissionalização da gestão de recursos humanos.

Mas não é só essa área da administração que prescinde de urgente revisão. Dela não escapam as áreas de compras e licitações, engenharia, saúde, controle interno, publicações, enfim, é indispensável passar a limpo as práticas e as praxes, conferir à administração um novo perfil para que possa se transformar em verdadeira parceira na consecução das atividades finalísticas do Poder Judiciário, de distribuição de justiça, sem comprometimento da grandeza dos serviços que lhe são correlatos.

2.6.2 Comando político e o gerenciamento da instituição judiciáriaO Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por seu órgão máximo,

consciente dessa necessidade de controle do poder pelo poder, criou o seu modelo, um Conselho de Gestão, Modernização Judiciária, de Políticas Públicas e Institucionais, ao qual incumbe, além da avaliação de conjunturas, com vistas no planejamento estratégico e desenhos de futuro, a formulação da agenda, pública e institucional, com o exame de proposta orçamentária e o acompanhamento e verificação de desempenhos, conducentes à gestão

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para resultados. Esse Conselho, ao submeter propostas de ação à aprovação do Tribunal Pleno e receber deste o placet, cria as diretrizes do Governo Judiciário, de curto, médio e longo prazos. Aos integrantes da cúpula administrativa, representados pelo Presidente do Tribunal, vice-presidentes, Corregedor-Geral da Justiça e respectivo Vice-Corregedor, cumpre traduzir essas diretrizes em decisões políticas concretas e avançar na sua implementação. Ao Pleno, numa segunda fase, é reservada a tarefa de fiscalização e controle da eficiência dessa administração por ele eleita. Esse controle, aliás, por outros mecanismos ou formas, diretas ou indiretas, também acaba sendo exercido pelos juízes, servidores e pela sociedade em geral.

Mas não só de decisão política vive a alta Administração. A máquina judiciária precisa movimentar-se racionalmente, cumprindo que se cerquem os seus administradores eleitos de auxiliar competente, criativo, dedicado, e com alto grau de comprometimento com a instituição e de compreensão da importância da atividade-meio – administrativa − para a concretização da atividade-fim − jurisdicional. Esse auxiliar, categorizado, um membro do próprio Poder delegante, haverá de manter-se em plano obviamente secundário ou complementar, mas não menos responsável, tendo em vista a atuação do Presidente da Corte, a relação com os demais poderes, seus órgãos e suas secretarias. Portanto, esse qualificado auxiliar, que haverá de se cercar de outros especialistas, especialmente das áreas da Administração Pública, Gestão de Pessoas, Finanças e Informática, não deve estar abaixo das autoridades com quem obrigatoriamente terá de se relacionar para a execução competente das decisões políticas adotadas na cúpula. Falo de alguém que possa estar no mesmo nível funcional daqueles que, soberanamente (Pleno), apontam os caminhos da Instituição ou decidem sobre as políticas a implementar.

Seria o auxiliar uma espécie de executivo, com a função de dar cabo a duas tarefas fundamentais: a) ajudar o Presidente e a cúpula diretiva do Tribunal na tomada de decisões, trazendo à discussão a opinião da máquina administrativa; e b) supervisionar o cumprimento dessas diretrizes políticas encetadas pelo Tribunal Pleno.

Diretamente ligado ao Presidente, e por este escolhido pessoalmente, com ele despacharia as matérias não delegadas e de maior significação administrativa ou política. Esse modelo evitaria: primeiro, a impropriedade da subdelegação de atribuições à pessoa não qualificada como membro de Poder; e, segundo, reservaria ao Presidente maior tempo à adequada e eficiente representação da

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Instituição e ao exame mais apropriado das opções políticas fundamentais, para pensar e refletir sobre os grandes temas que angustiam o Judiciário, seus agentes e a quem servem, a sociedade.

Sabido que o sucesso ou insucesso de qualquer política pública, ou institucional, por melhor que tenha sido concebida, depende sempre da capacidade de desempenho da máquina burocrática estatal, pois a esta cumpre a sua execução, por óbvio que o estabelecimento de uma certa estabilidade administrativa é sempre preferível, porque presumivelmente de melhor resultado. Afasta-se a luta intestina por cargos administrativos, preferindo-se os que sejam competentes aos mais próximos.

A escolha de um desembargador para o exercício de função de controle administrativo da execução das decisões políticas do Presidente do Tribunal e de sua cúpula diretiva parece constituir uma garantia de eficiência e um passo decisivo em prol da continuidade administrativa e do Governo Judiciário a partir do Tribunal Pleno.

2.7. Transformação da Justiça brasileira em padrão mundial de segurança jurídica

Entende-se por segurança jurídica a garantia relativa provida pelo Estado às pessoas e respectivas instituições pertinentes à estabilidade, certeza, previsibilidade e calculabilidade das normas constitutivas das relações sociais de toda ordem; e à prestação rápida, eficaz, qualificada e definitiva dos direitos questionados à autoridade que os deve reconhecer e suprir.

Sustenta-se a segurança jurídica pelos princípios constitucionais dos direitos individuais e coletivos, sociais e políticos; com destaque aqui para o mandamento segundo o qual a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Para alcançar o nível do desejável, faz-se necessário superar as principais causas da baixa segurança jurídica, retratada nos seguintes indicadores: (1) frequência com que a Administração Pública modifica ou invalida seus atos pretéritos. Isso inclui desde a quebra recorrente de contratos até as alterações constantes das regras tributárias; (2) má qualidade da produção legislativa, resultando em leis ambíguas e conflitantes. A fragmentação político-partidária conduz a que apenas leis muito gerais tenham condições de aprovação no Congresso Nacional. O conflito político é transferido à arbitragem do Poder Judiciário, surgindo então a judicialização da política; (3) decisões judiciais

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contaminadas pela visão política dos magistrados, descuidadas e ao arrepio da jurisprudência estabelecida pelos tribunais superiores, dando margem à chamada politização do judiciário.

E o objetivo é exatamente esse, fazer da Justiça brasileira padrão mundial de segurança jurídica.

Santa Catarina poderia ser a sede do projeto piloto. Distingue-se o Poder Judiciário catarinense dos demais do País por ter assumido uma posição protagônica na condução de seu munus institucional: criou e opera um Conselho de Gestão, Modernização Judiciária de Políticas Públicas e Institucionais.

O Conselho atua com duas agendas: uma pública e outra institucional. Na esfera pública repercutirão os temas de interesse social – segurança pública e meio ambiente, por exemplo. As duas agendas fazem do Judiciário um poder significativamente protagônico na construção do “país” Santa Catarina, no imediato e no futuro.

Em sua reunião de 16 de junho de 2008 ficou registrado que no campo teórico o órgão vai construir cenários a partir de indicadores sociais, econômicos, geográficos e políticos, com vistas a definir políticas do Poder Judiciário até 2030. Voltado também ao futuro, o Tribunal de Justiça conhece a demanda judiciária para até 2016.

Para aumentar a eficiência – produtividade – o próprio Tribunal regionaliza-se. A regionalização do Tribunal de Justiça reúne à inovação o desafio do sucesso. Reforma o Estado, renova o compromisso com o crescimento e a justiça social, exprime-se num choque de gestão. Zerar o déficit da prestação jurisdicional e recobrir as novas demandas em padrão superior ao da Coreia do Sul é o desiderato.

Artigo dos professores Alcides Abreu e Nelson de Abreu a esse respeito, invocando estudos do Banco Mundial, procedidos em 155 países, registra a Coreia do Sul como o país que melhor recobre a demanda por segurança jurídica nos fatos econômicos.

Na avaliação, o Banco Mundial considerou para cada ação o número de dias corridos contados entre o momento da petição inicial e a decisão final, e, nos casos apropriados, o pagamento. Os indicadores foram medidos computando-se a evolução passo a passo de uma cobrança judicial padrão e de uma dívida vencida, por meio da análise dos códigos de processo e de outras regulações judiciais, assim como de pesquisas com advogados de cada país.

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Em um quarto dos países, juízes também foram entrevistados. Para garantir a comparabilidade dos indicadores, aos respondentes foram apresentadas situações iguais definidas com grande detalhe quanto ao valor da disputa, à localização e às principais características das partes em litígio, ao mérito das causas do réu e do seu acusador e às implicações sociais das decisões.

A Coreia do Sul constitui-se, então, em padrão de segurança jurídica que os países pudessem imitar.

E por que não Santa Catarina e o Brasil como padrão mundial em segurança jurídica? É o desafio que completa este despretensioso artigo!

3. Proposições

Penso que mais oportuno do que pretender formular conclusões será apresentar proposições, que possam ser enriquecidas pela experiência e o debate.

a) proposição: revisar a atuação administrativa, legislativa e judicial do Estado brasileiro, em seus três níveis e esferas de governo, horizontal e verticalmente; passar a limpo suas instituições e costurar ações conjuntas para satisfação do ideário da sociedade.

b) proposição: escrever os pactos estaduais e municipais, para, a partir da revisão do comportamento interno de cada Poder e Instituição, fazer do Judiciário um Poder por inteiro, com vista na justiça social e na realização do bem comum.

c) proposição: criar nos estados e nas regiões metropolitanas, por iniciativa conjunta do Executivo, Legislativo, Judiciário, Tribunal de Contas, Ministério Público e OAB, uma Secretaria de Governo Estadual e intercomunal, incumbida de levantar as carências que impedem melhor desempenho dos poderes e das instituições, com a atribuição fundamental de antecipar ações corretivas e preparar a primeira agenda do diálogo interinstitucional, cujas deliberações caberá a ela implementar ou fazer executar. O secretário dessa pasta seria, portanto, escolhido por consenso.

d) proposição: fazer da Escola Judicial o instrumento de fomento de inclusão da comunidade na discussão dos grandes temas locais, estaduais e nacionais, e sua organização para o controle responsável e ético do governo, considerados os diversos poderes e instituições democráticas, para que se realize a ideia do povo no poder.

e) proposição: escrever, pelas mãos do Conselho de Gestão, Modernização Judiciária de Políticas Pública e Institucionais, do Poder Judiciário, uma

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vez instituído em todos os tribunais, em sintonia com o pensamento da magistratura, com o concurso das instituições que lhe são essenciais e da sociedade civil, o Judiciário desejável e possível, tendo em vista 2030.

f ) proposição: reivindicar a descentralização dos tribunais de Justiça dos estados, via regionalização, recobrindo todo o território do Estado, e dos tribunais regionais federais, em nível dos estados-membros, com instalação de câmaras regionais, com relativa autonomia administrativa e financeira.

g) proposição: estimular a cultura do juiz agente político e estadista, sacer-dote do direito e da justiça, verdadeiro cavalheiro da cidadania, com os olhos voltados à satisfação das legítimas aspirações da sociedade, compromissado em fazer concretas as promessas sociais inscritas na Constituição.

h) proposição: revisar o modo e a forma da divisão judiciária, que não precisa ser uniforme, considerados a natureza das causas e os clientes habituais, fugindo ao modelo tradicional da concentração de todas as competências próprias da Justiça estadual nas comarcas, dando prevalência à divisão a partir da Vara, menor unidade jurisdicional, com abrangência territorial díspar, a mais adequada à consecução rápida e segura da prestação jurisdicional.

i) proposição: criar a função de Secretário Executivo, vinculada à Presidência do Tribunal, a ser ocupada por um desembargador ativo, para o exercício do controle administrativo da execução das decisões políticas do Presidente e de sua cúpula administrativa, assegurando a continuidade no serviço público e lib-erando o comando político da Instituição da praxe do cotidiano, que desgasta e cansa, sem proveito maior, para concentrar-se nos desafios do porvir.

j) proposição: transformar a Justiça brasileira, com a participação e coo-peração dos poderes do Estado e instituições ao Judiciário essenciais, com o concurso da sociedade, em padrão mundial de segurança jurídica.

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O JuDICIáRIO QuE QuEREMOS... REFLExõES SOBRE O PLANEJAMENTO ESTRATéGICO DO PODER JuDICIáRIO

Luciano Athayde Chaves Juiz do Trabalho da 21a Região (RN)Professor da universidade Federal do Rio Grande do NorteEx-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra

Alice - Você poderia me dizer, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?Gato - Isto depende bastante de aonde você quer chegar [...].

Alice - Eu não me importo muito com isso [...].Gato - Então não importa muito que caminho você irá tomar.

(Alice no País das Maravilhas)

1. Introdução

Na obra de Lewis Carrol, a menina Alice está perdida diante de uma encruzilhada e tem à sua frente a única criatura que lhe é sincera, entre ironias e brincadeiras, num mundo sabidamente louco e confuso.

Nos apontamentos que fez esse clássico de Carrol, Martin Gardner sugere que a cena tenha sido tirada do Talmud1: “se você não sabe aonde está indo, então qualquer estrada o levará lá”.2

1 O Talmude ou Talmud (em hebraico: דומלת) é um registro das discussões rabínicas que pertencem à lei, ética, costumes e história do judaísmo. É um texto central para o judaísmo rabínico, perdendo em importância apenas para a Bíblia hebraica (cf. www.wikipedia.org).2 cf. GARDNER, Martin. The Annotated Alice. The Definitive Edition. New York: W. W. Norton & Company, 2000.

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Vivemos num mundo realmente confuso e assimétrico, talvez, em muitos aspectos, semelhante ao País de Alice. Um mundo de relações sociais hipercomplexificadas, que frequentemente demanda soluções novas em relação às quais não temos caminhos já percorridos ou experiências conhecidas.

As instituições públicas, inseridas de forma inexorável nesse contexto, também são diariamente desafiadas a encontrar novos meios e veios para cumprir suas missões, num ambiente societal em constante transformação.

O Judiciário do Brasil tem 70 milhões de processos em andamento, numa aproximada proporção de um para cada três brasileiros!

Isso nos faz os maiores, senão o maior, dos litigantes do mundo e em nada lembra a imagem que possuímos de nós mesmos, como um povo tranquilo, pacífico e cordato.

A cada ano, exibimos com entusiasmo impressionantes números de casos resolvidos, centenas, milhares.

O valor a esses resultados é refletido nas expectativas depositadas nos responsáveis pela solução dos conflitos.

O padrão do bom juiz, num olhar pelo menos majoritário, é o daquele que está com o trabalho em dia, que consegue resolver o maior número de casos possíveis, conciliador, que profere despachos, sentenças e votos aos cântaros, numa verdadeira linha de produção.

E a ideia de trabalho em dia supõe, quase sempre, prazos razoáveis na fase de conhecimento, olvidando que a jurisdição sugere a entrega integral da tutela material, que somente faz algum sentido para o jurisdicionado quando presentes os efeitos concretos da atuação do Poder Judiciário (a satisfação de uma obrigação de pagar, a entrega da coisa objeto do litígio, a desconstituição de uma relação jurídica, etc.).3

3 Tenho, já de algum tempo, realçado os problemas desse quadro de prestígio demasiado à ideia de jurisdição como apenas a declaração de direitos. Em outro texto, assinalei: “tenho insistido, já de algum tempo, quanto aos dissabores causados no sistema processual pelo fenômeno do ‘mito da cognição’, que ainda insiste em predominar nas práticas judiciárias. Por ‘mito da cognição’ entendo a demasiada ênfase na fase de conhecimento dos feitos (audiências, sentenças, etc.), que também visa a atender às expectativas institucionais de prazos e otimização de pautas de audiência projetadas pelas corregedorias, sem se estabelecer, contudo, um equilíbrio de atuação do juiz do Trabalho na fase de cumprimento da sentença. A par dessa circunstância, temos um verdadeiro paradoxo: os novos processos e os novos clientes da Justiça recebem, em geral, uma boa (e merecida!) atenção. Tanto que os prazos médios para sentença de primeiro grau apresentam bons números na maioria das regiões trabalhistas. Os processos já julgados e em fase de execução forçada, porém, têm sua análise e impulso muitas vezes comprometidos pela falta de tempo do juiz para neles atuar, já que os prazos na fase de conhecimento são mais curtos. Disso resulta o seguinte: quem já teve um crédito reconhecido em seu favor e ainda não satisfeito por quem de direito, deve

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O tempo judiciário não é cíclico, ele é contínuo, embora nos pareça renovado a cada ano judiciário ou a cada biênio de alteração nas cúpulas dos tribunais, quando uma nova leva de administradores é chamada para “encontrar o caminho certo”.

Aproveitando a metáfora de Carrol, podemos nos valer do gato, como uma espécie de oráculo, e buscar, mercê de sua provocação, a saída para uma situação que insiste em nos incomodar, apesar das melhorias no sistema judiciário nas últimas décadas.

Talvez possamos pensar diferente, propor uma nova caminhada.Num ambiente em que a efetividade de direitos é tão importante quanto a

sua conquista, é fundamental planejar e administrar os problemas da Justiça, procurando implementar uma visão moderna do “governo dos juízes”, de modo a construir um Poder Judiciário acessível, célere e justo.

Não raro ouvimos críticas a essa “governança” do Judiciário, em grande parte centradas na ideia de que os magistrados brasileiros não são bons gestores e que sua função, no cenário republicano, não seria essa.

O interessante é notar que, em muitos países (como Espanha, Argentina e França), onde é encargo do Poder Executivo gerir a máquina judiciária, cresce a demanda dos magistrados por uma independência em relação aos outros poderes. O sentimento é o de que o atrelamento do Judiciário a outro poder, ainda que na área administrativa, compromete em grande medida seu desempenho e, em última instância, seus próprios predicamentos.

No Brasil, onde o Judiciário goza de um forte estatuto constitucional que robustece sua independência administrativa, financeira e orçamentária, ainda sobrevive uma leitura de que a gestão judiciária não seria um problema dos juízes.

Por isso, desde logo, creio ser apropriado assentar uma nota metodológica para o enfrentamento dos bloqueios para uma justiça melhor: cabe aos juízes, com apoio da comunidade jurídica e em harmonia dos outros Poderes4, identificá-los e pensar na formulação e execução de soluções.

aguardar ainda mais, enquanto novos feitos ocupam a centralidade da atuação judicial” (CHAVES, Luciano Athayde. Estudos de direito processual do trabalho. São Paulo: LTr, 2009, p. 256). Sobre o mesmo assunto, consultar, ainda, CHAVES, Luciano Athayde. A recente reforma no processo civil e seus reflexos no direito judiciário do trabalho. São Paulo: LTr, 3. ed., 2007, p. 346 e ss.).4 Exemplo dessa harmonia está na relação entre os tribunais brasileiros e a Secretaria da Reforma do Poder Judiciário, vinculada ao Ministério da Justiça, órgão que, nos últimos anos, tem realizado um grande esforço para concretizar reformas processuais e sugerir ferramentas de acesso à justiça. Foi no âmbito dessa relação interpoderes que tiveram lugar os dois Pactos de Estado em favor de um Judiciário Rápido e Republicano, por meio dos quais muitos projetos de lei chegaram à aprovação perante o Congresso Nacional, inclusive o da grande reforma do Código de Processo Civil brasileiro de 2005 e 2006.

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2. Resolvendo problemas, além dos processos

Antes de olharmos para o futuro que podemos e devemos imaginar, nossa própria história recente poderá nos indicar o caminho que não deve ser seguido.

Durante os últimos anos, os tribunais brasileiros têm dado mostra de grande capacidade de resolução dos processos.

Os números são impressionantes, como indicam os relatórios dos últimos anos do Programa Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça5.

Se os administradores do Judiciário fossem um CEO6 de uma grande corporação prestadora de serviço, estariam esfregando as mãos contentes, pois a tendência é de aumento da demanda por mais decisões.

A realidade, entretanto, não é essa.Aumento de demandas pode indicar muitas coisas, mas jamais pode ser

associado ao êxito dos serviços prestados, normalmente uma consequência da fidelidade da clientela, numa organização empresarial que objetiva o lucro, o que não sucede aqui.

O recrudescimento da demanda é fenômeno dos mais complexos, e seu exame não cabe nos propósitos do presente texto. Nada obstante, creio ser possível assinalar que esse fenômeno tem causas sistêmicas (burocracia, formalismo, etc.) e decorrentes do comportamento dos atores sociais (falta de observância da legislação nas relações sociais, aproveitamento da morosidade para dilação no cumprimento das obrigações, dentre outras).7

Precisamos nos preparar para a caminhada na busca de uma excelência na gestão judiciária. Ter a consciência de que somos um único Poder Judiciário. Estarmos conectados ao mundo, sermos transparentes e “organizar a casa”.

As 10 metas para o Judiciário, fixadas pelo Conselho Nacional de Justiça e tribunais brasileiros, a partir do II Encontro do Poder Judiciário (Belo Horizonte, fev. 2009), mostram que ainda estamos na primeira etapa de uma longa jornada.

5 Disponível em: www.cnj.jus.br. Acesso em: 20/7/2009. A propósito, trata-se de um programa dos mais importantes, pois a existência de estatísticas e números confiáveis sobre o funcionamento do Judiciário brasileiro é uma importante ferramenta para a concepção e o desenvolvimento de projetos de gestão, conquanto não seja elemento que, por si só, possa definir as políticas de governo do Judiciário.6 Chief executive officer (“Diretor-executivo” ou “diretor-geral”, em português), mais conhecido como CEO, é um termo em inglês para designar a pessoa com a mais alta responsabilidade ou autoridade numa organização.7 Aproveito-me, neste ponto, do método oferecido por Boaventura de Sousa Santos para qualificar as causas da morosidade judiciária. Para maiores detalhes do método, cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2007.

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Do contrário, para ficarmos apenas no caso da Meta 2 (julgamento de todos os processos distribuídos até dezembro de 2005), seria possível imaginar que em 2014, ano da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, a meta número 2 será julgarmos todos os processos de 2009?

O pensador português Boaventura de Souza Santos, ao falar sobre a criação do Observatório da Justiça no Brasil, menciona estar interessado não apenas na quantidade e na velocidade dos processos, mas na qualidade das decisões e se os cidadãos sentiram-se bem e se tiveram dificuldade de acesso ao tribunal.8

Nesse sentido, o primeiro aspecto a considerar é descobrir qual Judiciário queremos, quando falamos em qualidade e eficácia das decisões, por exemplo, com decisões de qualidade, com potencial efetivamente pacificador e pedagógico, etc.

Nosso objetivo é pura e simplesmente continuar resolvendo processos ou podemos desejar mais? Podemos almejar também eficácia e qualidade nas decisões? O que significa isso?

Como agentes de um Poder estatal, o Judiciário e seus órgãos e os próprios magistrados estão sujeitos, obrigados e compelidos ao cumprimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, nos termos do art. 3o da Constituição da República.

Em última medida, as pretensões deduzidas em juízo por pessoas e instituições estão impregnadas do espírito contido nestes objetivos: liberdade, justiça, solidariedade, desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e marginalização, redução de desigualdades sociais e regionais, promoção do bem comum, sem preconceitos e discriminação.

Todavia, o mito do princípio da inércia processual impregnou o juiz brasileiro, cristalizando uma situação que, em alguns momentos, parece retirar-lhe a condição de cidadão e agente do Estado.

Como ‘guardiões’ 9 e realizadores das promessas do Estado de Direito os juízes poderiam e podem realizar mais.

Não no sentido de mais trabalho ou mais processos, mas de pensar diferente, na busca de solucionar também os problemas causadores das demandas.

8 A apresentação foi feita no Ministério da Justiça, cuja Secretaria de Reforma do Poder Judiciário é parceira na implementação do modelo de ‘Observatório’ já em funcionamento na Universidade de Coimbra, sob a coordenação do Professor Boaventura de Sousa Santos. Cf., sobre esse assunto, a matéria está disponível em: www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/02/03/materia.2009-02-03.0316125551/view. Acesso em 20.7.2009.9 cf. GARAPON, Antonie. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução de Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

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No caso da Justiça do Trabalho, os problemas são conhecidos e também suas consequências.

Considerando a afirmação de que as decisões do Poder Judiciário moldam o comportamento dos cidadãos, qual é então o comportamento que nossas decisões estão impondo?

Qual a razão do contínuo aumento das demandas e por que nossas decisões não provocam a redução dos conflitos?

Um exemplo. No dia a dia das manchetes dos periódicos e fazendo parte das estatísticas oficiais, temos o trabalho informal, um eufemismo para a ilegalidade nas relações de trabalho. Esse fenômeno socioeconômico produz um exército de trabalhadores à margem da seguridade social, torna desleal a concorrência de mercado fundada na livre iniciativa, igualmente inserida no texto da Constituição, bem como expõe a clara desigualdade social existente no País, a partir da consolidação de um abismo social entre os “trabalhadores formais e informais”.

Para melhor exemplificar tal condição, podemos mencionar dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), uma fundação pública federal vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

Seu relatório semestral sobre o mercado de trabalho, conjuntura e análise10 mede oficialmente o “nível de informalidade” ou de “trabalhadores sem carteira assinada”, que corresponde a 38,1% do nível de ocupação no Brasil e associa a melhoria da “formalização” ao crescimento econômico do País.

Nesse compasso, seria possível indagar como a Justiça do Trabalho, reconhecidamente célere, pode contribuir para que a eficácia de suas decisões compreenda também medidas que contribuam para redução da ilegalidade nas relações de trabalho e na melhoria das condições de saúde e segurança no ambiente de trabalho?

Voltando à metáfora do início do texto, parece-me que o primeiro passo é es-colher um caminho e ele pode muito bem considerar a hipótese de que o Judiciário também esteja preocupado em resolver o problema e não apenas o processo.

3. Conhecimento de suas próprias entranhas

Para saber aonde se quer chegar é preciso descobrir o que se deseja e o desejo implica em autoconhecimento.

10 Disponível em: www.ipea.gov.br.

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Projetos do Conselho Nacional de Justiça têm buscado compreender a realidade do Judiciário brasileiro, seus números e suas práticas. Além disso, para os casos mais severos, há notícias de trabalhos realizados pela Corregedoria Nacional de Justiça, investigando in loco a realidade de determinada instituição.

O presente texto é escrito a partir do olhar da Justiça do Trabalho e, nesse particular, não se observam projetos buscando conhecer as origens de suas demandas e práticas que tenham buscado a solução desses problemas ou mesmo o resultado provocado por suas decisões.

O Judiciário que queremos deve olhar a si mesmo sob dois aspectos: para dentro do aparelho estatal, como um dos pilares do Estado. Enxergando a si mesmo como um produtor de demandas que precisa administrar os próprios compromissos, tais como gastos e aumento de pessoal; para fora, como administrador da Justiça, observando quais os efeitos que suas decisões provocam externamente. Quais as mudanças concretas e como essa “política judiciária” é vista. Qual é o efetivo resultado das decisões que proferimos e quais são os efeitos desejados.

Conhecer e reconhecer a própria estrutura implica em saber o custo do Judiciário para o Estado, não apenas do ponto de vista econômico, mas os recursos e energias despendidos para a solução dos processos e, como ousamos propor, também dos problemas.

As administrações dos tribunais precisam olhar para fora e indagar a respeito dos efeitos de suas decisões na vida dos trabalhadores e empregadores, quais as efetivas mudanças e como esta “política judiciária” é vista.

Há necessidade de se saber qual é o efetivo resultado das decisões que proferimos, ou seja, o alcance para além das partes envolvidas no litígio solucionado.

Assim, uma primeira proposta deveria ser a adaptação da marcha até agora realizada e caminhar no sentido de também saber as origens ou causas dos conflitos, como eles têm sido resolvidos e quais os resultados das decisões proferidas, do ponto de vista da coletividade originária.

A segunda proposta, igualmente importante na busca por autoconhecimento da Instituição, reside na necessidade de ajustar a própria estrutura, para que não atue como um fim em si mesma, mas para alcance dos objetivos e da missão a que se propõe.

Como é possível levar toda uma Instituição para o melhor caminho quando diversos de seus principais atores são alijados do processo decisório?

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4. O Magistrado como gestor judiciário

Lara Cristina de Alencar Selem, em sua obra Gestão Judiciária Estratégica, define o gestor judiciário como aquele responsável por “exercer todas as atribuições inerentes à função jurisdicional, bem como as administrativas referentes aos serviços conexos ou auxiliares da Justiça, que estejam a ele vinculados, bem como os servidores que lhe sejam diretamente subordinados” (SELEM, Lara Cristina de Alencar. Gestão Judiciária Estratégica: o Judiciário em busca da eficiência. Natal: Esmarn, 2004, p.29).

Sob esse aspecto, a autora define outras atribuições desse gestor, que vão além das responsabilidades jurisdicionais e administrativas determinadas por lei. Gestão geral, de atendimento ao cliente, de pessoas, de tecnologia e sistemas, de infraestrutura e da qualidade judiciária são algumas das obrigações atribuídas por Lara Selem ao encargo do gestor judiciário, em nosso caso o magistrado, com o imprescindível apoio do corpo funcional.

Tendo o magistrado sob sua responsabilidade todas essas tarefas, e sendo ele auxiliado por uma equipe, não restam dúvidas de que todos esses atores precisam estar inseridos no planejamento estratégico de forma efetiva e democrática.

Assim como define Selem, “o gestor será o grande líder que levará a equipe da Unidade Judiciária sob sua responsabilidade a realizar seu maior intento. Sem ele, toda e qualquer iniciativa de implementação de melhorias e modernização da Gestão Judiciária sucumbirá” (2004, p.34).

Desse modo, temos que compreender o papel do juiz em sua dupla dimensão, na perspectiva dinâmica da atuação do Poder Judiciário: como julgador e como gestor. Ambas as tarefas se entrelaçam e se completam, ainda que reconheça que a visão da maioria dos atores é de que essa dupla dimensão implica em disfunção institucional, já que o papel do juiz seria apenas o de distribuir justiça, em sentido estrito e endoprocesssual.

Definitivamente, não compartilho dessa leitura limitada da atuação do magistrado perante a estrutura e o funcionamento do Judiciário. Não enxergo essa disfunção e me recuso a admitir que se pode exercer os predicamentos da magistratura, com liberdade e independência, sem uma gestão participativa e baseada na ideia de um governo dos juízes, e de todos eles, respeitadas as atribuições de cada um e as tarefas reservadas pela lei e pelos regulamentos e regimentos.

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5. Democracia interna, gestão e controle

Um Estado Democrático pressupõe a ampla participação da sociedade nos negócios e nos espaços públicos, bem como o fortalecimento do sistema político vigente, o que resulta, via de regra, em instituições fortes e republicanas.

Porém, esse é um processo ainda em curso e que expõe diversos pontos de melhoria em nossa democracia, inclusive no Judiciário. Um desses pontos é a questão da legitimidade democrática dos agentes de poder.

Por certo, não nos referimos aqui à falta de legitimidade dos juízes em exercerem suas funções de acordo com o modelo profissional vigente em nosso país.

Como tem destacado a literatura jurídico-constitucional, a soberania estatal das decisões de índole jurisdicional encontra sua legitimidade na própria Constituição; no dever indeclinável de fundamentação coerente de todas as decisões; pela existência de controles técnicos de revisão (recursos e outras formas de impugnação); e, em certas circunstâncias, pela disponibilidade de diversas vias de apuração de responsabilidade funcional (processos disciplinares, ações penais e processos de impeachment).

Falamos, sim, do ainda presente déficit democrático relacionado com a dinâmica da gestão administrativa do Poder Judiciário, aspecto pouco visível, a julgar pelo silêncio em torno do tema, raramente quebrado.

Um olhar mais distante poderia até conceber, à luz do sistema de recrutamento dos magistrados, que uma baixa abertura de participação no governo dos tribunais fosse corolário das próprias características que cercam a carreira dos juízes e a escolha de seus dirigentes, as quais, em regra geral, combinam, em dosagens diferentes, merecimento e antiguidade, não necessariamente nessa ordem.

Contudo, sendo a jurisdição expressão do poder político, também o Poder Judiciário há de observar princípios constitucionais inerentes a toda a Administração Pública.

Até hoje, “a gerência dos recursos humanos e materiais do Judiciário prossegue, em regra, passando ao largo de qualquer preocupação democrática. Esta só tem sua face visível no modo de escolha dos membros da mesa diretora dos tribunais, periodicamente eleitos para mandatos bienais irrenováveis” (CHAVES, Luciano Athayde; SOUZA JUNIOR, Antonio Umberto. Uma nova gestão para o Poder Judiciário. Valor Econômico, 10.9.2009).

Mas, mesmo em relação a essa escolha dos dirigentes dos tribunais, pelas regras do jogo vigentes, a partir do próprio texto de nossa Constituição e, em

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especial, da Lei Orgânica da Magistratura, trata-se de eleição com reduzido universo de eleitores (desembargadores, nos tribunais estaduais e regionais, e ministros, nos tribunais superiores) e com uma ínfima porção de candidatos elegíveis, definida segundo a baliza única da antiguidade no posto.

Sem adentrar na hipótese, plenamente possível, de deliberarem os tribunais pela autonomia normativa constitucionalmente conferida, pela abertura dos processos de escolha de seus dirigentes, soa razoável ponderar que tal limitação da legitimidade democrática no processo de eleição para os cargos de direção pode ser, em alguma dimensão, compensada pela legitimação democrática no exercício do poder confiado a tais autoridades.

Para alcançar tal compensação, um método mais adequado consiste em assegurar maior participação do coletivo dos juízes em todos os matizes administrativos, imprimindo total transparência à atuação administrativa, financeira e orçamentária dos tribunais: a publicidade dos atos e operações realizados pelos tribunais permite que os contribuintes e usuários da Justiça saibam onde estão sendo aplicados os recursos humanos e materiais por eles financiados, facilita o controle pelas diversas instituições (conselhos, Ministério Público, tribunais de contas, sociedade civil organizada) e aproxima juízes e servidores da Administração.

O outro meio extremamente útil e eficaz consiste na criação de colegiados plurais de que participem magistrados de todos os níveis da carreira e servidores.

Também é importante a criação de mecanismos que permeiem e assimilem as sugestões e críticas de outros atores importantes para a Justiça, como advogados, jurisdicionados, universidades e outros segmentos interessados em um Judiciário mais rápido, sério e efetivo.

E não podemos desprezar a importância da autonomia administrativa e financeira assegurada pela Constituição aos tribunais brasileiros. Em muitos países, como já assinalei no início deste texto, em que essa autonomia não é assegurada ao Poder Judiciário, constitui agenda para os juízes a luta para conquistá-la. No Brasil, não raro se ouvem vozes contra essa autonomia, como se ela não fosse uma face da independência da atividade judicante.

A transparência e a participação na Administração Pública exalam do texto original da Constituição de 1988 e tiveram tal aroma reforçado nas sucessivas mudanças patrocinadas pelo Congresso Nacional. Somente para ilustrar, recorde-se a abolição das sessões administrativas secretas, decretada pela Emenda Constitucional no 45/ 2004.

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Nessa perspectiva democratizante há de ser valorizada, comemorada e levada muito a sério a determinação do Conselho Nacional de Justiça, órgão administrativo de cúpula do Judiciário (subsumido apenas ao controle do Supremo Tribunal Federal), no sentido de que os tribunais devam garantir “a participação efetiva de serventuários e de magistrados de primeiro e segundo graus, indicados pelas respectivas entidades de classe, na elaboração e na execução de suas propostas orçamentárias e planejamentos estratégicos” (Resolução CNJ no 70/2009, art. 2o, § 4o).

O poder normativo primário dos atos do Conselho Nacional de Justiça confere à regra o caráter de obrigatoriedade imediata. A novidade, em verdade, traduz “opinião consensual retirada dos vários encontros regionais de tribunais que aquele órgão promoveu em 2008” (CHAVES; SOUZA JUNIOR, 2009) na busca de um modelo ideal de planejamento estratégico no Poder Judiciário: em todas as reuniões, concluíram os participantes (dirigentes, magistrados, entidades de classe) que a audiência e o engajamento dos magistrados e servidores são requisitos imprescindíveis para o êxito da ideia de melhoria na qualidade de gerência e planejamento dos tribunais brasileiros.

Assim, doravante, tanto a programação quanto a execução dos orçamentos e dos planejamentos de médio e longo prazos dos tribunais deverão ser acompanhadas, no mínimo, por representantes dos magistrados e servidores formalmente integrados a instâncias deliberativas das cortes.

Além de aproximar os gestores dos tribunais de suas bases, a medida propicia o constante fluxo de informações acerca das necessidades dos órgãos que compõem cada corte de justiça e das eventuais dificuldades ou limitações da direção, abrindo espaço para o incremento do grau de eficiência e economicidade na gestão pública dos tribunais.

Outra determinação recente complementa esse verdadeiro “pacote” democratizante implantado pelo Conselho Nacional de Justiça: inspirado no dever de publicidade e na recém-aprovada Lei Complementar no 131/2009, que aperfeiçoou a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal.

O CNJ, por meio da Resolução no 79, tornou compulsória a exibição, em caráter permanente e em local de fácil acesso nos sítios dos tribunais na internet, de todos os dados relativos aos gastos e receitas do Judiciário, inclusive com a discriminação pormenorizada das rubricas dos pagamentos e os dados identificadores das pessoas e empresas que prestem serviço ou entreguem produtos nesse Poder.

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Não é preciso assinalar a importância da transparência como instrumento de apoio à participação de juízes, servidores e da sociedade em geral na gestão dos tribunais.

Esses são aspectos de um tormentoso, mas necessário, processo de transformação do Poder Judiciário, na direção de uma nova institucionalização, para usar uma expressão do Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, em encontro com associações de magistrados no Conselho Nacional de Justiça, em julho de 2009.

Porém, para que a perspectiva democratizante aberta pelo cenário normativo aqui desenhado efetivamente transforme a realidade de nossos tribunais, é essencial que se dê vida a tais comandos.

É buscando trilhar esse caminho que todos nós queremos, no tocante à gestão judiciária, que o Conselho de Representantes da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), que congrega os 24 presidentes das Associações Regionais de Magistrados (Amatras) em todo o Brasil, deliberou, no dia 1o de julho de 2009, apoio às medidas de fortalecimento, transparência e participação nos processos de administração das estruturas do Poder Judiciário.

Nesse propósito, a Anamatra vem implementando ações que vão ao encontro da Resolução no 70 do CNJ, entre elas:

a) a busca da pronta efetividade do disposto no art. 2o, § 4o, da Resolução n. 70/09, que garante a concreta e ampla participação de magistrados indicados por sua associação de classe no processo de elaboração do planejamento estratégico dos tribunais; bem como da elaboração e execução dos orçamentos dos órgãos do Poder Judiciário do Trabalho;

b) a estruturação de uma assessoria técnica especializada para se dedicar ao estudo do orçamento da Justiça do Trabalho, com a contratação de um especial-ista na área, que tem a importante missão de subsidiar de forma técnica o acom-panhamento do orçamento por parte das associações regionais e dos tribunais;

c) o oferecimento de novos cursos de planejamento e gestão orçamentária, de modo a qualificar a participação dos juízes de primeiro e segundo graus indicados pelas associações nos processos de planejamento e execução dos orçamentos.

Afora isso, a Anamatra está compilando e acompanhando o desenvolvimento desses processos de renovação administrativa, de cariz participativo, pretendendo entregar ao Conselho Nacional de Justiça relatórios periódicos dos avanços e eventuais bloqueios, tudo no escopo de tornar realidade as propostas contidas nas referidas resoluções.

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Eis o desafio que ora se descortina diante dos atores do Poder Judiciário. E ele somente será vencido na medida da vontade presente nessa busca por uma nova gestão do Judiciário.

6. Os conselhos superiores e o planejamento estratégico

A composição democrática e plural do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), respeitando também a vontade de seus representados, significaria um avanço na efetivação do planejamento estratégico para os tribunais.

À luz da gestão democrática e das definições do CNJ sobre a participação de diversos atores no planejamento estratégico, a Anamatra lança o debate, primeiramente, sobre o papel do CSJT como agente democratizador do Judiciário Trabalhista e como ator fundamental do planejamento estratégico da Justiça especializada.

Sob esse aspecto, e, em consonância com as definições da Resolução no 70 do CNJ, há de se analisar as consequências da ausência dos juízes de primeiro grau na formação do CSJT.

Ainda que se tenha assegurado assento e voz à Anamatra (Resolução CSJT n. 1/2005), aspecto que tem contribuído para uma maior interlocução entre o conjunto da magistratura do Trabalho e o Conselho, parece-me que a própria Constituição estampa a necessidade de simetria com a arquitetura da composição do CNJ, onde está presente a participação de todos os níveis da carreira da judicatura.

É dizer: se a Constituição deixou expressa que a composição do CNJ deveria ser assim, é razoável interpretar que a faculdade temporária de se regulamentar o funcionamento do CSJT também deveria observar semelhantes critérios.

Os aspectos negativos dessa composição foram detalhados em docu-mento encaminhado ainda em 2005, logo após a publicação da Resolução Administrativa no 1064/05, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), com a regulamentação do CSJT. No documento, a Anamatra criticou o sistema “excessivamente hierarquizado que implica na concentração do aparelha-mento dos serviços judiciários nas cúpulas administrativas, cujo acesso, na prática, não permite uma abertura democrática”.11

11 Princípios e Diretrizes da Anamatra para o CSJT, janeiro de 2005, disponível em www.anamatra.org.br.

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Por essa razão, a Anamatra já apresentou ao CSJT uma proposta de anteprojeto de lei de sua regulamentação legal, exigida constitucionalmente (art. 111-A, § 2o, inciso II, CF c/c art. 6o da Emenda n. 45/04), prevendo a participação de magistrados de todos os níveis em sua bancada, notadamente por entender ser essencial a representação de todas as instâncias da magistratura trabalhista na elaboração de políticas estratégicas e de planejamento dos tribunais.

Especialmente após a Emenda 45/2004, que alargou a competência da Justiça do Trabalho, houve mudanças no ambiente forense que precisam ser relatadas e pensadas por todos.

Não obstante a composição do CSJT, a Anamatra vem lançando o seu olhar também quanto à indicação dos representantes da Justiça do Trabalho no CNJ, prerrogativa conferida ao Tribunal Superior do Trabalho.

Para tanto, desde 2007 elabora lista tríplice com nomes de juízes de 1o e 2o graus, feita a partir de uma eleição entre seus mais de 3.500 associados. A lista, encaminhada ao TST, tem como objetivo sensibilizar o Tribunal quanto à importância da participação majoritária dos magistrados do Trabalho na escolha de seus representantes no CNJ.

Trata-se de preocupação que decorre de uma difícil constatação: somente os juízes não podem participar, de forma coletiva, dessas indicações, o que não sucede com o Ministério Público e com os representantes da Ordem dos Advogados, como bem sintetizou Cláudio Montesso, ex-presidente da Anamatra, em texto sobre o assunto, do qual extraio a seguinte passagem:

Curiosamente, no CNJ, somente a magistratura não escolhe seus representantes, o mesmo não ocorrendo com o Ministério Público, que decide, inclusive, os seus integrantes do correspondente conselho daquela instituição. Os advogados escolhem seus representantes por meio de votação dos membros do Conselho Federal da OAB. Os representantes do Senado e da Câmara, como representantes do parlamento, estão legitimados como representantes do povo. Mesmo os tribunais superiores escolhem seus representantes com o voto de seus pares. Mas à magistratura de todo o país tal direito é negado.Não se argumente que a escolha pelo conjunto da magistratura resultaria na representação de interesses meramente corporativos. Trata-se de um argumento preconceituoso. Afinal, não se imputa aos outros conselheiros, escolhidos pelos seus pares, a mesma pecha.

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Não se acusam os representantes do Ministério Público, da OAB e do Congresso de defender interesses de seus eleitores. Além do mais, as associações de magistrados têm mostrado, por sua atuação social e política, que é possível conciliar interesses de classe com os interesses do país. O mesmo se pode esperar de eventuais escolhidos (MONTESSO, Cláudio José. O CNJ e a democratização do Judiciário. Correio Braziliense. 14.4.2009).

Essa preocupação me parece procedente, pois uma escolha mais ampla e democrática dos membros dos conselhos poderia ser uma eficaz ferramenta de par-ticipação dos magistrados em torno dos temas de gestão e de planejamento, pois ha-veria um saudável debate prévio de ideias e de propostas, reforçando o engajamento de todos numa seara que hoje não tem despertado o interesse geral da categoria.

De mais a mais, num regime democrático, é de se supor que essa participação deve ter lugar em todas as instituições.

Trata-se, portanto, de uma crítica ao sistema de escolha, jamais em relação aos colegas indicados para as três composições do CNJ até aqui, os quais demonstraram e demonstram todas as qualidades para a função, e cujas contribuições estão a merecer todo nosso apoio.

7. A participação de magistrados na administração dos

tribunais: uma leitura do potencial contido no art. 9o da

resolução no 72 do Conselho Nacional de Justiça

Ainda dentro de todo esse contexto de uma tomada de posição em favor de uma gestão mais eficiente e participativa, como um dos elementos centrais de um planejamento estratégico para o Poder Judiciário, está o exame da ampliação dos atores dos tribunais dedicados à atividade administrativa.

Tradicionalmente, tem prevalecido entre nós a ideia de que a função judicante somente excepciona a atividade administrativa no que se refere aos magistrados eleitos para cargos de direção. Na maioria dos tribunais, isso significa dizer: presidente, vice-presidente e corregedor.

Contudo, pelas especificidades de atribuições, não podemos afirmar que o corregedor exerce propriamente atividades administrativas nos tribunais. Resta, assim, o presidente e o vice. Nossas tradições, porém, apontam para a conclusão de que a participação do vice-presidente não ultrapassa, em boa parte dos casos, as substituições legais, ainda que não se ignore a sinergia

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afirmada em alguns casos, em que, por vontade da mesa diretora, prevalece a atuação comum nos temas mais importantes pelos membros dirigentes.

Assim, é de diagnosticar que a função administrativa dos tribunais é tarefa afeta, basicamente, ao presidente do tribunal, com o apoio dos servidores ocupantes de cargos de direção.

Esse modelo, todavia, vem se mostrando cada dia mais ineficiente. É que planejar e executar projetos envolvendo a magistratura e o ofício judicante não é missão das mais fáceis. E mais: não costumam ter sucesso o diálogo e o engajamento os juízes.

Por outro lado, a forma de ser da atividade jurisdicional nem sempre permite que o corpo funcional de apoio à direção do tribunal consiga desenvolver adequadamente um trabalho de interlocução institucional entre a presidência e os demais juízes, especialmente os de primeiro grau, que são em maior número e, não raro, apresentam maiores pontos de tensão administrativa.

Certamente em função desse quadro, muitos tribunais passaram a experimentar um outro modelo, por meio do qual se convoca juízes de primeira instância para atuarem, em forma de auxílio, com o presidente do tribunal, colaborando com a instituição no planejamento e na execução dos projetos aprovados pelo órgão, além da atuação como interlocutores entre os diversos atores judicantes, máxime em razão do pouco tempo disponível da presidência para desempenhar essa tarefa.

Essas experiências se mostraram tão exitosas que hoje fazem parte do cotidiano de muitos tribunais, inclusive do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral.

O mesmo sucede com o próprio Conselho Nacional de Justiça, cuja função de secretário-geral é exercida, na forma do regimento interno, por um juiz-auxiliar da presidência do CNJ.12

Por isso, o CNJ adotou, na Resolução no 72/09, regulamentação sobre a matéria, com efeitos sobre todo o Poder Judiciário:

Art. 9o. A Presidência dos Tribunais, excepcionalmente e observados os critérios desta Resolução, poderá convocar, observados os critérios desta resolução, até dois (2) juízes para auxílio aos trabalhos da Presidência e até dois (2) para a Vice-presidência, respectivamente.

12 Aliás, é voz corrente na comunidade jurídica que essa função, exercida por um juiz, mostra-se um dos traços mais positivos da atuação do Conselho Nacional de Justiça.

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§ 1o. Nos Tribunais com mais de trezentos (300) juízes, a convocação de que trata o caput em número acima do limite estabelecido deverá ser justificada e submetida ao controle e referendo do Conselho Nacional de Justiça.

Não se diga que essa convocação implica prejuízo jurisdicional. Dentro de certas balizas, como apontadas pelo dispositivo acima, o auxílio pode melhorar, e muito, o desempenho administrativo da estrutura judiciária, trazendo ganhos gerais sobre a atividade jurisdicional.

Isso porque a melhoria das rotinas, dos fluxos de trabalho, dos sistemas informatizados, da distribuição dos servidores, do regime de plantão dos juízes, da distribuição dos feitos, dentre outros aspectos, é fator de racionalização geral da atividade do Poder Judiciário, com potencial para encurtar prazos e emprestar maior efetividade aos processos.

Não é por acaso que, em muitos lugares, a experiência de convocação teve como motivo principal agregar os conhecimentos de juízes em áreas de gestão de tecnologias da informação (TI) para viabilizar o desenvolvimento de ferramentas eletrônicas apropriadas para o uso dos magistrados, tarefa que simplesmente não poderia ser apenas confiada a técnicos, pois esses não conseguiriam harmonizar os recursos tecnológicos aos limites e exigências legais para o desenvolvimento de um processo judicial em espaço totalmente virtualizado.

Logo, creio que esse passo dado pela Resolução no 72 é digno de nota e rompe com diversos e vetustos paradigmas, realçando o caráter participativo do planejamento estratégico do Poder Judiciário.

A mesma Resolução estendeu a possibilidade de convocação também às corregedorias:

Art. 9o............................................................................................§ 2o. A Corregedoria-Geral junto aos Tribunais poderá solicitar a convocação de juízes de primeiro grau em auxílio aos seus trabalhos correicionais, sendo um (1) para cada cem (100) juízes efetivos em exercício no Estado ou região sob sua jurisdição, devendo ser expressamente justificada e submetida ao referendo do CNJ quando exceder de 6 juízes.

Essa convocação pode ser especialmente útil para permitir uma atuação da corregedoria mais próxima dos juízes, o que nem sempre é possível em razão das diversas atribuições apenas do corregedor.

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Ademais, pela própria natureza das atividades correicionais, algumas questões somente podem ser enfrentadas por juízes, em razão dos predicamentos que cercam a função. Logo, esse auxílio tem potencial capacidade de reduzir conflitos e tensões intrainstitucionais. Por outro lado, aproveitando-se da experiência presente dos juízes auxiliares, a padronização de alguns procedimentos pode ser realizada de forma mais ágil, porquanto eles podem atuar como interlocutores entre o corregedor e o corpo de magistrados, ajudando na construção de consensos e na efetiva implementação de práticas procedimentais mais eficazes.

O campo, enfim, é vasto para a construção de um Poder Judiciário que substituta a hierarquização que imobiliza, pela participação que dinamiza e melhora a prestação dos serviços jurisdicionais, tudo dentro do espírito de garantir ao cidadão uma justiça mais acessível, célere e substancialmente justa.

Nessa mesma quadra, vejo também a necessidade de se repensar o papel dos juízes-diretores de foro na Justiça do Trabalho. Em geral, essa função não é desempenhada com o potencial que poderia ter, notadamente dentro de um espírito de descentralização administrativa, que teria, dentre outros tantos aspectos positivos, o condão de preparar, progressivamente, o magistrado para o desempenho de outras funções administrativas dentro do próprio Tribunal, como a presidência mais adiante.

Na maioria dos tribunais que conheço, não é assegurado ao juiz-diretor de foro qualquer margem de autonomia orçamentária ou administrativa, sendo presente muita concentração de encargos na própria presidência do Tribunal ou na diretoria-geral e administrativa, essas últimas exercidas por servidores.

Há casos em que o diretor-geral do Tribunal recebe delegação da presidência para nomear servidores para funções comissionadas, conceder diárias e férias, etc., e o diretor do foro não pode desempenhar nenhuma dessas tarefas.

A meu juízo, cuida-se de uma inversão hierárquica que se atrita com a ideia de governo dos juízes.

O resultado dessa disfunção institucional é o afastamento e o descomprometimento dos juízes com as questões administrativas, implicando na existência de um ‘arquipélago de juízes’, no lugar de um continente integrado e participativo do corpo de magistrados.

É de se lembrar que só muito recentemente foi assegurado, de forma nacional, a indicação do diretor de secretaria pelo juiz titular de Vara. Como se poderia pensar em planejamento estratégico nessa época?

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Creio, portanto, que fortalecer o papel dos juízes-diretores de foro é um fator de desenvolvimento institucional, na medida em que descentraliza a administração, trazendo o administrador para mais próximo dos problemas. Além disso, como assinalei, é aspecto que pode contribuir para o aprimoramento de uma cultura administrativa no seio dos magistrados, que vão, ainda no primeiro grau, familiarizando-se com temas como orçamento público, licitações, regime jurídico dos servidores, etc.

8. Conclusão

As propostas até agora adotadas pela Justiça do Trabalho buscam a eficiência judiciária e não consideram adotar um caminho que possa reconhecer nas suas ações a possibilidade de transformação social, na esteira dos objetivos fundamentais da República.

Enquanto a marcha continuar, o rumo que tomamos não é importante, pois não refletimos a respeito dele.

Esse primeiro aspecto implica em buscar caminhos que levem à solução, não apenas dos processos judiciais, mas dos problemas neles encontrados. É dever da justiça exercer seu escopo pedagógico, lançando luzes nas situações “litigiogênicas”, isto é, geradoras de conflitos, de litígios judiciais.

Essa busca pressupõe o autoconhecimento da instituição e a constatação de que alguns dos seus principais atores estão alijados da tomada de decisões, como é o caso da maior porção dos juízes.

O modelo gerencial da administração dos tribunais é um simulacro do modelo da competência funcional no processo judiciário, mas não confere ao juiz de primeiro grau um papel decisório ou de gestão.

O governo dos juízes, previsto na Constituição brasileira, é fundamental na sustentação do projeto de mudanças.

Assim, o Judiciário que queremos deve ser aquele que saiba qual o caminho deve seguir: “Comece pelo começo, siga até chegar ao fim e então, pare” (Lewis Carroll).

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ST

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PLANEJANDO O JuDICIáRIO EM CIMA E EMBAIxO

Sônia Maria Amaral Fernandes RibeiroGraduada em Direito e Filosofia pela UFMA/MA

Mestre em Políticas Públicas pela uFMA/MAProfessora da Escola Superior da Magistratura do Maranhão – ESMAM

Ex-Presidente da Associação dos Magistrados Maranhenses – AMMAEx-Vice-Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB

Agraciada pelo Senado Federal com o prêmio “Mulher-Cidadã Bertha Lutz”

1. Introdução

Quando, no ano de 2003, o então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Nelson Jobim, divulgou os primeiros dados estatísticos sobre a Justiça brasileira, compilada naquilo que se denominou de “Justiça em Números”, foi possível ter-se uma ideia mais real dos quadros quantitativo e qualitativo dos diversos segmentos do Poder Judiciário.

Graças a esses números, e aos demais que os sucederam, foi possível confirmar algumas teses e refutar outras.

Falava-se muito que o Judiciário brasileiro tinha poucos juízes e demandas em excesso, mas a verdade é que, em alguns estados da federação, tínhamos números próximos a países de primeiro mundo; pensava-se que o número de recursos em demasia é que exclusivamente atrapalhava o funcionamento da justiça, porém comprovou-se que, de fato, poucos eram os processos que resultavam em insurgência; achava-se que muito se investia em aquisição de hardware, entretanto, ficou comprovado justamente o inverso, entre outras constatações.

Se, por um lado, os números apresentados desvendavam véus e apontavam outras verdades, por outro, estes por si só não produziriam mudanças. Era primordial analisá-los e entendê-los, para fazer as opções que melhorassem o sistema, promovendo a verdadeira Reforma do Judiciário.

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A proposta que os dados estatísticos encerravam exigia uma mudança de postura dos magistrados, o que passava obrigatoriamente pela adoção de novas atitudes gerenciais.

A competência gerencial que utilizávamos para gerir secretarias judiciais1, gabinetes, presidência e corregedoria dos tribunais, já não se mostravam suficientes. Tínhamos, como bem afirma o mestre e pesquisador NEWTON MEYER FLEURY2 (2005, p. 25), de “substituir a improvisação pela ciência, por meio do planejamento do método”.

Nesse caldo de discussões, portanto, é que surgem as primeiras propostas que dariam início ao que chamou o Professor Joaquim Falcão de “revolução silenciosa do Poder Judiciário”3, a ser desenvolvida em três frentes.

Em primeiro lugar, a própria produção estatística sobre o funcionamento do Judiciário brasileiro, promovida pelo Supremo Tribunal Federal – STF, que afastaria a discussão meramente ideológica e forjaria, pragmaticamente, o Poder Judiciário que a sociedade precisa.

Em segundo lugar, a formação dos juízes em conhecimentos outros, que não somente do direito, já que a estes é conferida a tarefa de administrar o aparelho judicial, mas não lhes são oferecidas nos bancos das faculdades disciplinas que os preparem para essa função.

Por fim, a reforma gerencial, que já estaria em curso pelo novo Judiciário, bem menos conservador, mas que por ser uma corrente minoritária precisa de estímulo e visibilidade. Com esse propósito é que foi instituído o Prêmio “Innovare”.

Nas duas últimas frentes, observe-se que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) tem firmado parcerias que possibilitam à magistratura brasileira avançar nessa revolução: a uma, na capacitação dos magistrados para as tarefas gerenciais; e a duas, na identificação e premiação das boas práticas já desenvolvidas por diversos magistrados e tribunais.

Para a segunda frente, foi firmada parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) para disponibilizar aos magistrados pós-graduação em administração judiciária. E, para alcançar o terceiro objetivo, foi lançado o Prêmio “Innovare”,

1 Cartórios judiciais.2 A reforma do Poder Judiciário no Estado do Rio de Janeiro. Org.: Fundação Getúlio Vargas. Editora FGV: Rio de Janeiro, 2005.3 Expressão utilizada no prefácio da obra A reforma silenciosa da Justiça.. Org.: Centro de Justiça e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006, p. 5.

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cuja organização tem a frente representantes da Associação dos Magistrados Brasileiros, da Fundação Getúlio Vargas, da Vale (antiga Companhia Vale do Rio Doce) e do Ministério da Justiça.

Entretanto, por uma questão de justiça, registre-se que antes mesmo da apresentação dos primeiros dados do “Justiça em Números”, alguns membros do Judiciário brasileiro, notadamente aqueles que participavam dos movimentos associativos, já sentiam a necessidade de mudar, pois identificavam, na proposta de Reforma do Judiciário e nas críticas constantes de morosidade do sistema, possíveis ameaças.

A consciência reinante era de que a mudança deveria ultrapassar a fórmula usualmente utilizada de criação de novas opções legislativas, viabilizadas na esfera externa (Congresso Nacional), para focar-se no âmbito interno (tribunais), mediante ações planejadas e estratégicas.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro é exemplo de ativismo pioneiro na busca de uma gestão mais adequada da estrutura judiciária, pois foi um dos primeiros a pensar e agir estrategicamente, a partir de 2001.

Em “A nova gestão do Poder Judiciário” 4 (2006, p. 22), artigo de autoria dos então desembargadores MARCUS FAVER e MIGUEL PACHÁ, estes informam quais os objetivos do planejamento estratégico do Judiciário fluminense, nos seguintes termos:

(...) adoção de medidas de nível gerencial e operacional do sistema de distribuição de Justiça, com o fim de dotá-lo de presteza e objetividade, sem prejuízo das garantias individuais; definição de prioridades estimulantes do funcionamento integrado das funções essenciais à Justiça; cooperação entre os órgãos gestores dessas funções; aplicação de medidas preventivas e corretivas de desvios na execução.

A mudança de paradigma em curso, além de imprescindível, é inafastável.A sociedade atual, fruto da Revolução Digital (sucessora da Revolução

Industrial), obriga a nós todos, magistrados, independente da instância ocupada, a dispor de capacidade e autonomias gerenciais, ter postura (quanto à cidadania e à responsabilidade social) compatível com os novos tempos, e adquirir estruturas organizacionais mais ágeis e informatizadas.

4 A reforma silenciosa da Justiça. Org.: Centro de Justiça e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006.

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No presente artigo, entende-se que essa “revolução silenciosa”, para ter êxito, deve contemplar todos os componentes da estrutura judicial – servidores e magistrados – como partícipes, respeitando, por óbvio, a competência de cada um.

Nesse sentido, a intenção é analisar as seguintes propostas estratégicas de planejamento: estratégia corporativa a ser apresentada pelos tribunais, enquanto instância de gestão macro; e estratégia funcional a ser desenvolvida pelos magistrados em suas unidades jurisdicionais (comarcas, gabinetes, varas e juizados).

Assim, tomando-se emprestado os argumentos de MINTZBERG (apud MAXIMIANO, 2004, p. 3795), pode-se afirmar que as estratégias de que aqui se trata são, ao mesmo tempo: a) “uma forma de pensar no futuro, integrada no processo decisório”; b) “um procedimento formalizado e articulador de resultados”; e c) “um programa de trabalho”.

2. Planejando estrategicamente o Judiciário em cima

A palavra “estratégia” é um legado grego, usado para designar “a arte dos generais”. Por esse motivo, na antiga Grécia chamava-se estrategos os comandantes supremos escolhidos para planejar e fazer guerras.

Com as mudanças societárias acontecidas no decorrer da história da humanidade e o surgimento das empresas mercantis, a concepção contida na palavra estratégia ultrapassou os campos das batalhas fratricidas e alcançou os campos da administração dos negócios.

De longa data, as empresas privadas adotam administrações estratégicas, voltadas à obtenção de resultados, em face da competitividade. Na grande maioria dos serviços públicos, porém, essa preocupação é recente.

Reputa-se a omissão do serviço público, na construção de planejamentos estratégicos, aos seguintes fatores:

a) preocupação quase que exclusiva da ciência da Administração com a gestão apenas das empresas privadas, o que gerou uma farta doutrina sobre o assunto, sendo insignificante em relação aos serviços públicos;

b) percepção equivocada dos agentes públicos, até em face da literatura disponível, de que o planejamento estratégico só tinha função definida para empresas privadas, pois versava sobre competitividade e geração de lucros; e

5 In MAXIMIANO, Antonio Cesar Amaru. Teoria Geral da Administração: da revolução urbana à revolução digital. Editora Atlas S/A: São Paulo, 2004.

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c) solidificação entre os agentes públicos de uma postura refratária às mudanças e pouco afeta à prestação de contas para com a sociedade.

Enfim, seja pela visão distorcida dos fins propostos pelo planejamento estratégico, seja pela passividade daqueles que ingressavam na carreira pública, que pouco ou quase nada precisavam fazer para se manter ou ascender a outros cargos, não foram realizados movimentos na busca de uma gestão mais qualificada.

Com a abertura política no nosso país e a promulgação da Carta Cidadã de 1988, esse cenário começou a mudar, pois o povo foi elevado, de fato e de direito, à condição suprema que confere fundamento e razão à existência dos poderes constituídos6 e, dentre outras coisas, dos serviços que estes prestam à sociedade.

Críticas foram formuladas e deficiências apontadas, inicialmente em relação aos poderes Executivo e Legislativo.

No que concerne ao Poder Judiciário, o desconforto foi sentido certo tempo depois, já que os direitos e garantias conferidos pela nova Constituição só começaram a gerar efeitos, e, portanto maior demanda junto ao Judiciário, somente a partir da edição das legislações ordinária e complementar (Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, Legislação Ambiental, entre outros diplomas), que concretizaram os preceitos constitucionais.

Antes, não havendo, pois, reclamações significativas quanto à dinâmica da prestação jurisdicional, o sistema não sentia a necessidade de mudanças gerenciais, a considerar que, naquele momento da nossa história, a preocupação maior e justificada da Justiça era preservar o máximo de direitos e garantias individuais e coletivas, já que o regime ditatorial suprimia-os.

Superado o momento de política ditatorial e ultrapassada a Revolução Industrial pela Digital, a democratização produziu novos ares e a sociedade, cada vez mais informatizada, tem gerado outras demandas, tanto qualitativas quanto quantitativas.

As relações familiares, empresariais, trabalhistas, dentre outras, não são mais iguais às de outrora. Não se discute mais, por exemplo, quem teve culpa ou não no fim do casamento, como forma de definir direitos patrimoniais e guarda dos filhos,

6 Art.1o, parágrafo único da CF/1988: Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

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assim como a própria família deixou de ser engessada na fórmula matrimonializada para alcançar todas as formas de constituição baseadas no afeto.

Em termos numéricos, da mesma forma, o padrão é outro: com a sociedade de consumo florescente, as demandas de massa são a tônica, exigindo a criação de mecanismos mais rápidos (como a Lei no 9.099/95) para oferecer decisões em tempo mais razoável; por motivos variados, a unidade familiar dissolve-se com maior rapidez; principalmente pela acentuação das desigualdades sociais, a criminalidade cresce assustadoramente; com o exercício mais frequente dos direitos conferidos pela cidadania, o Estado não mais pode ferir direitos dos cidadãos impunemente.

Por todos esses exemplos acima citados, e muitos outros existentes, que resultaram no crescimento contínuo da demanda afeta ao Judiciário, a solução tradicional de eventuais modificações legislativas não se mostra mais suficiente.

A opção, então, foi buscar aperfeiçoar a gestão administrativa, através de estratégias que nos possibilitassem cumprir com maior eficácia e eficiência a missão constitucional que nos foi conferida.

No contexto traçado, o planejamento estratégico, adaptado da administração privada para a pública, é de extrema importância, porquanto, em resumida análise, ao fomentar uma estrutura organizacional mais racional e com eleição de prioridades, permite que o Poder Judiciário cumpra sua missão, a partir de valores previamente estabelecidos e, consequentemente, que alcance seus objetivos.

E mais: só o fato dos tribunais contarem com quadros que, em regra, ultrapassam a casa de quatro mil pessoas (entre servidores e magistrados), somado ao volume de processos a serem julgados (linha de produção), já justificam, por si só, a opção por um planejamento estratégico.

Nesse tópico – “Planejando o Judiciário em cima” – o planejamento estratégico pensado é aquele que a ciência da Administração chama de “Estratégia corporativa”, posto que, no dizer de MAXIMIANO7, abrange “os objetivos e os interesses de todos os negócios das empresas que atuam em diversos ramos de negócios”.

Em outras palavras, a estratégia corporativa destina-se à organização como um todo, logo deve ser macro, a considerar a complexidade dos negócios de empresas que atuam em vários segmentos.

Esse tipo de estratégia permite que a corporação se veja como um todo, composto de partes que, para atingirem suas metas, devem traçar objetivos

7 Op.cit., p.383.

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estratégicos amplos e que contemplem a totalidade da organização em termos de perspectivas e resultados.

Nesses termos, todo tribunal é uma organização complexa, pois diversas são as unidades (ramos de negócios) – câmaras cíveis, criminais, reunidas, varas e juizados cíveis ou criminais, varas fazendárias, de família, etc. – assim como variados são os serviços prestados (produtos), em face das competências.

Contudo, ao mesmo tempo em que temos múltiplos ramos, temos uma só missão, qual seja: a distribuição da Justiça.

Por tudo isso, o planejamento estratégico que se passa a detalhar melhor é aquele cujos tribunais deverão tomar o comando de direção, posto que corporativo.

As principais qualidades no planejamento estratégico corporativo que se entendem como importantes e, por via de consequência, devem ser observadas são: participação, pacto, construção, continuidade, longevidade e adaptabilidade.

Apesar de nominar-se este capítulo de “Planejando o Judiciário em cima”, a expressão não traduz, de fato, toda sua extensão, tendo mais o interesse de causar impacto.

Se fosse tomado literalmente, a primeira característica indicada – participação – estaria tacitamente excluída, pois a impressão que o subtítulo passa, sem maior reflexão, é que o planejamento seria construído de cima para baixo, logo, somente com a participação das cúpulas dos tribunais.

Não se trata disso.Na verdade, o sentido correto é de que os tribunais precisam formular

planejamentos macros, que alcancem todo o sistema. Ou seja, os tribunais têm que definir posições macros da instituição, que irão refletir no todo e nas partes, ao passo que a participação dos que compõem as diversas instâncias deve ser plena nessa construção.

Dito isso, o planejamento estratégico é participativo se, na sua elaboração, além dos membros das cúpulas dos tribunais formadas pelos desembargadores, participam também os magistrados de primeiro grau e os servidores de todos os níveis.

No entanto, pela dimensão numérica dos tribunais, que alcança milhares de servidores e centenas de magistrados, por certo, quando se fala em participação também desses atores, não se pensa na universalidade desses. Pensar diferente, apesar de ideal, é metodologicamente inviável.

Na verdade, a participação efetiva e eficiente de servidores e magistrados no

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projeto de planejar só pode se dar em termos percentuais, portanto de forma representativa.

Em termos práticos, a participação pode se dar, sem perda de legitimidade da proposta, por meio da aplicação de formulários em um percentual de servidores de todos os setores da administração (diretorias, divisões, coordenações, secretarias judiciais, entre outros), e de entrevistas com um percentual de magistrados (de primeiro e segundo graus, e diversas competências e entrâncias), buscando-se identificar problemas e colher algumas sugestões com foco nos planos de ação.

Em segundo lugar, a participação pode também se concretizar com a realização de workshops, ocasião em que servidores e magistrados, escolhidos em número e forma representativos, utilizem técnicas do balenced scorecard8 e tracem, em grupo, a missão, a visão, os valores e os objetivos estratégicos da instituição.

Os dois grandes méritos de construir o planejamento estratégico corporativo com participação são: primeiro, a corresponsabilidade no sucesso da empreitada; e segundo, os diferentes e variados olhares lançados sobre os pontos fortes e fracos, ameaças e oportunidades da instituição.

A pactuação, por outro lado, é uma característica que decorre da participação e acontece quando os membros da instituição sentem-se responsáveis pelo êxito da proposta de planejamento, passando a empregar as estratégias pensadas.

Todo planejamento é idealizado na perspectiva futura, de sorte que haverá de estender-se por um longo período.

Com efeito, como a mesa diretora dos tribunais perdura por invariáveis dois anos (biênio de gestão), é imprescindível que esse processo de pactuação tenha a adesão principalmente dos desembargadores que assumirão a presidência e a corregedoria dos tribunais nos anos sucessivos à validação do documento.

O planejamento também há que ser contínuo, pois as necessidades e demandas de toda e qualquer empresa ou instituição mudam constantemente. O que ontem se mostrava premente, como, por exemplo, a aquisição de hardware, amanhã talvez não o seja mais. Por esse motivo, tanto no processo de acompanhamento da execução do planejado, quanto no “final” do ciclo (nunca

8 Metodologia desenvolvida pelos professores da Harvard Business School, Robert Kaplan e David Norton, que possibilita identificar pontos fortes e fracos da empresa e definir estratégias gerenciais para superação, com a utilização de indicadores de desempenho.

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do planejamento), há que se ficar atento aos indicadores e adaptações que se mostrem necessárias.

Administrar estrategicamente tem começo, mas não tem fim.Em hipótese alguma a instituição deve se valer de um planejamento pronto

e acabado de outra instituição, mesmo se esta tiver obtido resultados positivos. Portanto, todo planejamento deve ser construído desde a base.

No máximo, admite-se que sejam adotadas soluções já testadas e que demonstrem êxito, nos casos em que o problema é detectado logo quando da elaboração do planejamento. Assim, se um tribunal verificar a necessidade de implementar ferramentas informatizadas para melhorar a gestão do setor de recursos humanos, e um outro tribunal já as possui, o ideal é adquirir a solução desenvolvida, pois isso acelera o processo.

O planejamento deve ser também adaptável, o que reforça o argumento de que não pode ser copiado de um tribunal e utilizado por outro, já que as realidades vivenciadas nesse país continental são diferenciadas.

É óbvio que alguns tribunais dispõem de melhores condições orçamentárias e, por isso, terão condições de dispor de infraestrutura (pessoal, instalações físicas, etc.) mais adequadas aos propósitos perseguidos. Contudo, a não existência de condições ideais não inviabiliza o ato de planejar. Muito pelo contrário, dá-lhe fundamentação e justificativa. Afinal, o planejamento estratégico tem como tarefa primordial o melhor uso possível do tempo e dos recursos financeiros e humanos disponíveis.

Por fim, o administrador deve pensar em planejar estrategicamente para um período mínimo de cinco anos, apesar de ter-se ciência de que as gestões dos tribunais só têm a duração de dois anos, para cada mesa diretora.

Malgrado a inviabilidade de gestões mais longas que os dois anos, posto ser regra constitucional, é possível planejar com foco no lapso temporal ideal de cinco anos, se as lideranças estiverem cônscias de que planejar é pensar no futuro e que com ações de longo prazo é que se consegue mudar estruturas tão complexas como as nossas.

Com a edição da Resolução no 70 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, essa dificuldade de entendimento de alguns, que se preocupam em “realizar” o máximo em dois anos, sem se preocupar se os projetos terão continuidade, pode ser superada, a considerar que o uso do planejamento estratégico pelos tribunais sai do campo das possibilidades para o da obrigatoriedade.

Entretanto, mesmo diante da imposição do CNJ, a adesão a essa forma de

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administrar é, de fato, voluntária. Afinal, o ato de planejar estrategicamente exige envolvimento, e envolvimento exige sempre voluntarismo, nunca imposição.

3. Planejando estrategicamente o Judiciário embaixo

Como exposto no item anterior, o planejamento estratégico pelos tribunais tem se tornado, felizmente, uma realidade. E, pelo sucesso demonstrado, projeta-se vinda longa.

Porém, apesar da participação dos magistrados de primeiro e segundo graus no processo de planejamento macro e da tomada de consciência da sua importância para que tenhamos uma instituição mais eficiente e eficaz, as preocupações mais imediatas dos magistrados, notadamente do primeiro grau, persistem.

Para os magistrados, no dia a dia de uma Vara ou Juizado, a percepção é de que produz muito, mas suas decisões não se traduzem em ações. Ou seja, apesar de trabalhar diariamente em incontáveis processos, com produção de sentenças e despachos, o resultado final não é sentido, pois as partes continuam a bater à sua porta requerendo maior agilidade da secretaria judicial.

Não é raro constatar que a efetivação das decisões tomadas nos autos demora mais do que o desejado, pois os mandados respectivos ou encaminhamentos diversos não são cumpridos pelo servidor da secretaria, sob o argumento de que o tempo tem sido insuficiente para atender a demanda.

Isso nos torna eficientes, mas ineficazes, posto que nossas decisões demoram a causar os efeitos pretendidos. Não adianta determinar o despejo de um inquilino faltoso, se o mandado de despejo não chega ao destino; não adianta a parte oferecer sua contestação no prazo legal, se esta só é juntada aos autos bem depois e, em face disso, o processo é apresentado com atraso.

Por certo, o planejamento estratégico corporativo terá como perspectiva a melhoria dessas rotinas, posto que toda e qualquer missão do Poder Judiciário passa pela distribuição da Justiça. Logo, todos os planos de ação, por menos que pareça, terão como objetivo final perseguir esse propósito utilizando meios e tempo adequados.

Entretanto, pelo caráter de longevidade que as ações macros exigem para começar a produzir resultados na atividade fim travada nos gabinetes, varas e juizados, faz-se inadiável a adoção de medidas de planejamento funcional, concomitante ao planejamento corporativo.

Essa opção permite que o magistrado comece a usufruir das vantagens de administrar estrategicamente e, ainda, cooptá-lo ao “pensar estratégico”, pois

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passa a perceber, num curto espaço de tempo, as vantagens da proposta.No presente capítulo pretende-se apresentar uma sugestão que vai

ao encontro do acima exposto, idealizada pelo Núcleo de Planejamento Estratégico do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, que tem como objetivo orientar os magistrados na elaboração de planos de ação, utilizando ferramentas da ciência da Administração e experiências testadas e aprovadas pelos próprios magistrados estaduais, voltadas à racionalização e otimização das atividades desenvolvidas nas secretarias.

Trata-se do “Gestão de Secretarias Judiciais: Guia de Boas Práticas”, apresentado no XXV Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE, realizado entre os dias 27 e 29 de maio de 2009 na cidade de São Luis/MA, que tem as seguintes características: inclusivo, participativo, adaptável à realidade e que “ensina a pescar”.

Explica-se melhor.O referido Guia não apresenta um projeto acabado, de cima para baixo,

como apanágio a todos os problemas de gestão das secretarias, mas sim uma proposta que ensina, através de uma metodologia própria e ordenada, como traçar planos de ação para alcançar os resultados almejados.

É inclusivo, pois a obra não tem fim: a uma, em face da dinâmica social e, a duas, em razão de a cada dia sermos apresentados a novas “ameaças”. Por via de consequência, para cada nova “ameaça” temos que buscar novas “oportunidades” de superação, a fim de efetivamente melhorar a prestação jurisdicional.

É participativo, ainda, pois as boas práticas (pontos fortes) já apontadas ou a surgirem, podem e poderão ser aproveitadas para superação de nossas limitações (pontos fracos), como meios aptos a alcançar nossos objetivos.

E, por fim, é adaptável à realidade, pois não se pode desprezar os diversos “brasis” dentro do nosso Brasil.

Pelas experiências observadas pelo Núcleo de Planejamento Estratégico do TJMA, levadas a efeito por secretarias judiciais9, pelos brilhantes magistrados maranhenses Ferdinando Marco Gomes Serejo10 e Douglas de Melo Martins11, bem como pelas práticas selecionadas em certame12 realizado pela associação estadual (AMMA), é possível concluir que, mesmo em situações estruturais

9 9a Vara Cível e 1a Vara de Família da Comarca de São Luís.10 Comarcas de São Bernardo e Icatu.11 Titular da 1a Vara da Comarca de Pedreiras.12 “Prêmio AMMA: Melhores Práticas do Judiciário”.

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adversas, a Justiça consegue alcançar metas positivas, a partir de inovações e gestões mais qualificadas, mesmo que as condições estruturais não sejam as melhores.

O Guia apresenta regras e técnicas de administração, que observam metodologias e métodos próprios ao enfrentamento da questão posta.

Para melhor compreensão, de forma sucinta, pode-se diferenciar “método” e “metodologia”, afirmando que o primeiro é o caminho para alcançar determinado fim, enquanto que a segunda é a explicação detalhada da ação desenvolvida no método.

Como métodos gerais são sugeridos no Guia: que a escolha do gestor do projeto não incida sobre o secretário judicial (ou escrivão) e que o escolhido tenha iniciativa, espírito de equipe, organização, criatividade e, se possível, conhecimentos de administração ou práticas de gestão; que o gestor, nas entrevistas para diagnóstico prévio da secretaria, não interfira nas impressões emitidas pelos entrevistados; e que, nesse diagnóstico, sejam feitos registros fonográficos e fotográficos, objetivando, respectivamente, fidedignidade dos dados fornecidos pelos entrevistados e avaliação posterior do antes e depois da implantação dos planos de ação.

Metodologicamente, o processo de implantação de uma gestão planejada deve obedecer, passo a passo, quatro etapas: diagnóstico situacional, análise, planos de ação e acompanhamento, a seguir delineados.

3.1. DiagnósticoO diagnóstico visa levantar informações sobre a situação atual da secretaria

judicial, sob os aspectos: servidores, estrutura física, material, processos judiciais, organização dos processos, documentos, informática e sistemas, rotinas de trabalho e usuários. Essa análise gera dados para identificação do que deve ser melhorado e consequente definição dos planos de ação.

Quando se avalia o nível de satisfação dos nossos próprios servidores (colaboradores diretos), foca-se no “insumo” mais importante de qualquer organização, seja pública ou privada, a considerar que estes, quando bem orientados, valorizados, motivados e conscientes da importância das atividades que desenvolvem, representam a diferença entre o fracasso ou o sucesso.

A estrutura física, variável de comarca para comarca, de estado para estado, deve ser igualmente analisada, pois reflete na qualidade das atividades, na medida

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em que limita a capacidade de atendimento, restringe o acesso dos usuários e prejudica a imagem da instituição.

Os materiais utilizados nas secretarias, de consumo ou permanentes, devem ser avaliados nos quesitos quantidade, qualidade e armazenamento, já que assim pode-se pautar as compras pela administração central dos tribunais e utilizar com racionalidade os recursos postos.

Deve-se, ainda, identificar o quantitativo de processos judiciais na distribuição mensal, a considerar que qualquer plano de ação deverá contemplar metas a serem alcançadas em determinado período de tempo. Dessa forma, os períodos sofrerão variação ao sabor da dimensão do trabalho.

Na avaliação da organização dos arquivos de processos, devem ser levados em conta: o tempo gasto na localização dos autos e para realização dos procedimentos pela secretaria; o controle eficiente de carga e devolução; e a inexistência de autos não localizados nos escaninhos.

Como nas organizações de um modo geral, em face da mudança de tecnologia em tempos relativamente curtos13, existem computadores e periféricos (hardwares) que variam de marca, tamanho e qualidade, torna-se quase impossível uma padronização.

Nesse cenário, é necessário utilizar de forma diferenciada os equipamentos modernos e antigos, explorando-os de forma adequada para cada tarefa segundo suas capacidades. E mais: é necessário avaliar o nível de utilização dos servidores sobre os sistemas de software, para que se elimine o retrabalho, conseguindo otimizar o tempo.

Da mesma forma, objetivando a efetividade das decisões judiciais em um breve espaço de tempo, é fundamental avaliar a forma de elaboração dos documentos (ofícios, citações, intimações, etc.) e rotinas de trabalho, para saber se existe padronização ou não.

Por fim, de grande relevância é o levantamento da percepção e satisfação dos jurisdicionados (usuários: partes e advogados) em relação à prestação jurisdicional, para que, a partir dos dados obtidos, valorizem-se os pontos fortes detectados e implementem-se melhorias para afastar os pontos fracos.

No Guia, detalham-se os objetivos desejados no diagnóstico de cada aspecto e apresentam-se, em anexo, formulários específicos para facilitar a abordagem do gestor, quando das entrevistas.

13 A média é de que a cada seis meses há mudanças no padrão tecnológico.

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3.2. Análise do diagnósticoA análise do diagnóstico, elaborado com a aplicação dos formulários e

métodos propostos detalhadamente no Guia, será insuficiente se não conseguir extrair uma conclusão capaz de detalhar os problemas, visualizar possíveis soluções e estabelecer prioridades, objetivos específicos e metas.

Nessa etapa, os objetivos são: analisar os dados coletados na fase do diagnóstico, identificar as oportunidades de melhorias e propor alternativas para a solução dos pontos fracos identificados.

Para tanto, sugere-se realização de reunião com os servidores da secretaria para apresentação do diagnóstico e discussão, ocasião em que deve ser aplicada a técnica do brainstorming14.

3.3. Planos de açãoConsiste no planejamento/detalhamento das ações que serão implantadas,

com o objetivo de promover a melhoria da dinâmica organizacional da secretaria. Deve-se definir “o que” precisa ser feito, “quando” deverá ser realizado,

“quem” será responsável pela execução da ação planejada e os recursos necessári-os (“como”).

Para cada ação a ser desenvolvida, deverá ser elaborado um plano pela equipe e identificado o responsável15, a fim de que todos tomem ciência, sintam-se corresponsáveis, motivem-se, contribuam com o servidor responsável e, acima de tudo, saibam claramente que, apesar de ser uma decisão tomada em conjunto (etapa de análise), é imperativo da alta direção (magistrado).

No Guia, apresenta-se, nos anexos, um modelo e um exemplo de plano de ação, para que aqueles que nunca tenham tido contato com esse documento possam visualizar a sua forma de construção.

3.4. AcompanhamentoO acompanhamento deverá ser realizado através dos indicadores de

desempenho definidos nos planos de ação.O gestor deverá levantar periodicamente o andamento dos planos de

14 Técnica também denominada de “tempestade de ideias”, que consiste na reunião de pessoas, que são estimuladas a produzir, sem qualquer crítica ou censura, o maior número de ideias sobre um assunto ou problema.15 Os planos de ação podem ter responsáveis diferentes. Não confundir “responsável” com “gestor”, pois este rege todo o processo e o primeiro, um plano de ação definido.

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ação, observando os prazos estabelecidos para o alcance de cada meta, utilizando-se para tanto dos formulários de acompanhamento, apresentados nos anexos do Guia.

A metodologia a ser adotada na aplicação dos formulários de acompanhamento é a mesma da fase de diagnóstico, ou seja, o gestor do projeto realizará entrevistas e/ou aplicará questionários e, posteriormente, analisará os resultados junto com a equipe responsável.

Destaca-se que pode haver a necessidade de realização de ajustes de prazos, metas e outros, de acordo com o andamento dos trabalhos, o que será de competência do gestor do projeto (responsável).

3.5. Boas práticasEm termos de gestão judiciária, principalmente após a Associação dos

Magistrados Brasileiros – AMB e o Supremo Tribunal Federal – STF terem lançado luzes sobre a questão, muitas práticas louváveis foram introduzidas, seja pela realização anual do Prêmio “Innovare”, seja pela participação de muitos magistrados na pós-graduação, já mencionada, oferecida pela Fundação Getúlio Vargas – FGV.

Assim, é possível afirmar que muitas das ideias ali surgidas ajudaram a melhorar a prestação jurisdicional brasileira, promovendo, silenciosamente, uma revolução.

Contudo, pensa-se ser possível acelerar esse processo, ordenando as boas práticas e oferecendo-as para aplicação imediata, já que muito do que deve ser modificado já tem solução testada e aprovada.

Ressalte-se que, para otimização da gestão, é imprescindível focar primeiramente no diagnóstico dos problemas e subsequente construção dos planos de ação, pois só assim o magistrado poderá saber o que necessita melhorar e, portanto, lançar mão das propostas oferecidas como boas práticas.

Por tudo isso, é que no Guia apresentado pelo Núcleo de Poder Judiciário do TJMA trabalhou-se também na compilação de boas práticas levadas a efeito por magistrados e servidores do Judiciário maranhense, dentre as quais destacamos, a título de ilustração: sistema de rodízios entre os servidores na realização das atividades, metas de produtividade e acompanhamento das secretarias, reuniões periódicas, adequação do layout, relatório mensal de gastos, controle de cumprimento dos mandados, sistema aberto de marcação de audiência, entre outras.

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Enfim, após o magistrado identificar seus problemas e ordenar suas ações em um plano de ação, poderá lançar mão de soluções apresentadas que, por já terem sido testadas, podem ser prontamente utilizadas e solucionar a deficiência detectada e/ou melhorar os serviços prestados.

4. Considerações finais

No planejamento estratégico corporativo (em cima) ou no funcional (embaixo), é imprescindível, respectivamente, que haja motivação verdadeira da alta direção dos tribunais no propósito da mudança de paradigmas, para conseguir a adesão de todos ao processo e participação, e que o magistrado conduza diretamente o processo, exercendo sua liderança. Só assim o planejamento corporativo terá êxito e continuidade, independente da pessoa do gestor, bem como sucesso, no caso do planejamento funcional.

Com a edição da Resolução no 70 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, os defensores do planejamento estratégico corporativo no Poder Judiciário brasileiro ganharam um grande aliado. Todavia, essa disposição do CNJ deve ser utilizada com cautela e parcimônia por aqueles que estão à frente do processo de implantação de uma administração estratégica.

Nenhuma proposta de planejamento corporativo resiste à falta de compromisso da mesa diretora dos tribunais, pois é dela que emanarão as determinações às chefias, para que cumpram as deliberações do comitê gestor, objetivando a execução do planejado.

Portanto, só a deliberação normatizada pelo CNJ não será suficiente, se a vontade não for verdadeira. É necessário que o CNJ conquiste corações, para que os tribunais se sintam motivados a aderir à proposta.

Para essa conquista, recomenda-se que o processo de debate e discussão seja ampliado, para tornar-se mais participativo e, portanto, criar corresponsabilidades. Antes, contudo, os magistrados deverão manter contato com a matéria, a partir de palestras conceituais e motivacionais. Afinal, o ser humano precisa conhecer o “objeto”, para que este passe a fazer parte do “rol de desejos”. Sem conhecê-lo, o ser humano o rejeita por medo do desconhecido. Isso é natural.

Caso contrário, por conta de uma eventual rejeição “não declarada”, os planejamentos estratégicos construídos podem se transformar em peças de ficção, porque não conseguirão produzir as modificações reais desejadas. No máximo, alguns conseguirão atingir, a duras penas, as metas nacionais fixadas para dezembro de 2009, mas, de fato, todo o mais continuará “como dantes”.

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No que concerne ao planejamento estratégico funcional, o ponto de destaque é a liderança.

Querer dar uma dinâmica diferente aos trabalhos desenvolvidos pelos servidores nos gabinetes e secretarias judiciais exige que o magistrado lidere o processo de planejamento sem se valer de “atravessadores”.

Em outras palavras: o magistrado não pode delegar essa tarefa a outro servidor, pois sua participação é indispensável, enquanto líder da unidade de trabalho.

Como regra, os magistrados sabem descrever a rotina das secretarias, mas, quase que invariavelmente, não sabem com detalhes como se processa, não conhecem como funcionam de fato os sistemas de trabalho informatizados.

Outra regra, bastante comum, é que os magistrados, por mais bem relacionados com os servidores que sejam, não conhecem suas sugestões para melhoria das rotinas, e não têm conseguido avaliar a capacidade de produção de cada servidor, o que lhe possibilitaria aquilatar o nível de competência individualmente e concluir se numericamente o quadro de servidores é ou não suficiente.

Ora, se os magistrados não conseguem visualizar esses detalhes, como proceder no momento de cobrar resultados, já que para tanto é condição sine qua non conhecer as partes e o todo? Logo o magistrado-gestor deve se assenhorar desse conteúdo, participando diretamente de todo processo.

Ademais, se liderar, além de dirigir, é motivar, comunicar, guiar e inspirar pessoas, sua execução não prescinde do diálogo permanente e atento, a ser travado pelo líder com os liderados, num trabalho de aproximação, valorização e reconhecimento.

Nenhuma proposta de planejamento funcional resiste à falta de envolvimento dos liderados quanto à proposta de mudança, pois é deles que nascerão as soluções aos problemas apresentados; e nenhum envolvimento será conseguido se a liderança representada pelo magistrado não for exercida, já que não sentirão confiança na concretização das propostas feitas.

Referências BibliográficasBRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CódigoCivilde2002ivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 19 jul. 2009.A reforma do Poder Judiciário no Estado do Rio de Janeiro. Org.: Fundação Getúlio Vargas. Editora FGV: Rio de Janeiro, 2005.A reforma silenciosa da Justiça. Org.: Centro de Justiça e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006.MAXIMIANO, Antonio César Amaru. Teoria Geral da Administração: Da revolução urbana à revolução digital. Atlas S/A: São Paulo, 2004.

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PODER JuDICIáRIO: uMA NOVA CONSTRuçãO INSTITuCIONAL

Maria Tereza Aina SadekDoutora em Ciência Política pela Universidade de São PauloProfessora da universidade de São PauloDiretora de Pesquisas do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais

O sistema de justiça brasileiro vem se transformando. Traços novos têm imprimido mudanças na feição do Judiciário. A instituição judicial de hoje apresenta alterações que guardam distância de suas características do passado. Muitas dessas mudanças ainda não provocaram todos os seus efeitos e muitas vezes sequer têm sido percebidas por observadores menos atentos. Mas seus impactos já modificaram a instituição. São novos instrumentos, novos valores, novos órgãos, novas atuações. Todos esses fatores somados e combinados têm incutido na instituição elementos que a impelem na direção de uma nova construção institucional.

Reações às inovações têm sido abundantes, tanto por parte dos integrantes da instituição, quanto dos demais operadores do Direito, do Poder Executivo, de facções da classe política, de setores da mídia e da população. Essas manifestações, contudo, não têm tido força suficiente para paralisar o processo de mudanças. Ele tem se desenvolvido, ora em movimentos mais rápidos, ora em passos mais lentos, mas de toda forma deixando para trás a configuração que predominava no passado, aquela que poderia ser resumida na imagem de uma máquina pesada e imune a toda e qualquer alteração.

Dificilmente se encontrará outra instituição que tenha se transformado tanto e em tão pouco espaço de tempo. Isto não significa que os já clássicos e reiterados problemas tenham sido resolvidos. Mas, sim, que se assiste à quebra de padrões assentados no imobilismo e protegidos por uma armadura que

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impedia que críticas, reclamos e demandas por mudanças encontrassem eco e abrigo no interior da instituição. A gravidade e a longevidade dos problemas dificultam o reconhecimento de que o quadro vem se modificando. Igualmente problemático é assimilar inovações, especialmente porque elas têm provocado efeitos, tanto na esfera pública como na privada.

Este artigo tem por intenção caracterizar o Judiciário brasileiro, acentuando fases distintas no processo de mudança. A inicial começa com a Constituição de 1988, que modificou a engenharia institucional do País. As seguintes decorrem do processo de consolidação da democracia no País e da Emenda Constitucional n.45, que determinou a reforma do Judiciário.

1. O Judiciário como Poder de Estado

O Judiciário em democracias presidencialistas é um poder de Estado. A base de seu desenho institucional é a tripartição do poder. Trata-se não apenas de separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, mas das possibilidades de controle mútuo e de atuação em uma mesma arena política.

Tocqueville captou com argúcia o caráter específico deste tipo de arranjo institucional ao enfatizar a singularidade dos juízes e do Judiciário nos Estados Unidos da América. Após sua viagem àquele país , o político e também analista constatou que o juiz norte-americano, em contraste com o europeu, especialmente o francês, revestia-se de imenso poder político. Escreveu ele: “a causa reside num só fato: os americanos reconheceram nos juízes o direito de fundamentar seus veredictos na Constituição mais do que nas leis. Em outras palavras, permitiram-lhes não aplicar leis que lhes pareçam inconstitucionais”.

Com efeito, o modelo democrático presidencialista funda-se na construção do Judiciário como uma instituição com atributos de poder. O âmago deste poder é a possibilidade de exercer o controle da constitucionalidade das leis e dos atos normativos emanados dos demais poderes. Trata-se, certamente, de uma virtualidade intrínseca ao modelo. Como tal, pode ou não ser inteiramente concretizada; pode levar um tempo maior ou menor para se desenvolver e se manifestar; pode encontrar resistências maiores ou menores.

Nos Estados Unidos da América, por exemplo, um claro ponto de inflexão na construção do Judiciário como instituição com poder real e não apenas formal ocorreu durante a presidência de Marshall na Corte Suprema. Ou seja, a força política do Poder Judiciário e em decorrência dos magistrados não nasceu imediatamente após a promulgação do texto constitucional em 1787.

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Mas o primeiro grande passo nesta direção deu-se anos depois, em 1803, no caso Marbury versus Madison. Desde então, o processo se desencadeou, podendo-se sustentar que a Suprema Corte passou de fato a controlar a constitucionalidade das leis, fossem elas federais ou estaduais. A partir do final da Guerra da Secessão (1861-63) a participação de juízes na arena pública – uma possibilidade – converteu-se, cada vez mais, em um fenômeno concreto. Para ilustrar, bastaria recordar a atuação da Suprema Corte em alguns dos eventos mais marcantes da história política e social norte-americana: seu apoio à segregação racial, negando a cidadania para os negros na primeira metade do século XIX; sua intervenção em 1905 invalidando leis sociais que objetivavam limitar a jornada de trabalho; sua oposição ao New Deal do Presidente Roosevelt; sua decisão favorável à pílula anticoncepcional e ao aborto.

Esse fenômeno não se restringiu aos Estados Unidos. Todos os países que se inspiraram no mesmo modelo institucional, de alguma forma importaram também na possibilidade de participação do Judiciário e de seus integrantes na arena pública. Tais parâmetros têm validade, ainda que do ponto de vista da prática, na maior parte das vezes, se tratasse mais de uma virtualidade latente do que de um fato real, manifesto.

Assim, apesar de os países da América Latina terem adotado o presidencialismo, a instabilidade política, quase crônica, de um lado, e a acentuada força do Executivo, de outro, dificultaram durante um longo período o desenvolvimento das potencialidades de protagonismo judicial implícitas no sistema presidencialista. Para o argumento aqui exposto, todavia, tais circunstâncias são menos importantes do que o destaque na faculdade de atuação política de magistrados como um componente intrínseco do modelo institucional democrático-presidencialista.

Muitas vezes se contesta esta proeminência do Judiciário e dos juízes recorrendo-se a Montesquieu. Segundo esta interpretação o magistrado teria por paradigma não apenas a imparcialidade e a neutralidade, mas, sobretudo, a distância da vida política. A rigor, o juiz alheio ao dia a dia, que só se pronuncia nos autos, ou “boca da lei”, qualidades tão centrais na tese de Montesquieu, era um argumento a favor da separação das funções de governo e da importância do império da lei. Ademais, correspondia a uma realidade que pouco se assemelha ao mundo da contemporaneidade. Tratava-se, no século XVIII, de propugnar pela liberdade e de combater o despotismo, um regime sem leis e sem regras, no qual “cada um tem medo de todos os demais”, como caracterizava o pensador

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francês. A república, dizia ele, fosse ela democrática ou aristocrática, qualificava-se pelo respeito às leis. Nesse regime, além do executivo e do legislativo, argumentava Montesquieu, há um terceiro poder, distinto dos demais, o poder de julgar. O poder judicial sendo essencialmente o intérprete das leis deveria ter pouca iniciativa e expressão. Não é caracterizado como o poder de pessoas, mas o poder das leis. O modelo ideal de juiz é o de um ser anódino porque aplicador da lei, livre de qualquer vontade ou do risco de discricionariedade. Desta forma, o objetivo central é a construção do Estado de Direito, no qual a justiça e os juízes não poderiam estar comprometidos nem com o poder político nem com os poderes privados. O compromisso deveria ser e só poderia ser com a Lei. A Lei igual para todos. A luta básica era, pois, para a efetivação dos direitos individuais civis, garantidores da liberdade. A condição para a liberdade estaria no respeito à Lei, na prevalência da Lei sobre o arbítrio. Daí a necessidade de um juiz afastado dos interesses e das forças sociais. Apenas personalizando “a boca fria da lei”, ele poderia ser o aplicador imparcial e neutro da Lei.

O império da Lei no continente europeu não implicou necessariamente na criação de um regime republicano. O combate central era contra o “despotismo”, contra o poder arbitrário, contra o poder concentrado em uma única pessoa, contra o poder sem limites. Daí o empenho na direção da constituição de uma democracia parlamentar, fosse ela monárquica ou republicana. O Parlamento transforma-se na expressão da soberania popular. Na construção deste modelo, há a separação das funções executiva, legislativa e judicial. Mas o poder de fato está no Parlamento. Nele se consubstancia a vontade popular e dele nasce o governo, o Executivo. O Judiciário, a despeito de representar um serviço público fundamental, de atuar segundo a “letra fria da lei”, não é um poder de Estado, não tem a atribuição de controlar a constitucionalidade de leis e atos normativos do Executivo ou do Legislativo.

A gradativa ampliação dos direitos, ou a ampliação da cidadania, implicou em ganhos no processo de democratização das sociedades e em alterações no perfil e no escopo de atuação das instituições. O Estado liberal clássico cedeu espaço para o Estado interventor, para o poder público responsável pela concretização dos direitos sociais. Essa mudança afetou não apenas o Executivo e o Legislativo, mas também o Judiciário.

Tais alterações ocorreram tanto nas democracias presidencialistas como nas parlamentaristas. Nestas, ainda que o Judiciário não seja um poder de Estado, o processo de protagonismo judicial também vem se dando. Apenas para

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exemplificar, conviria recordar que até mesmo na Inglaterra, o país que mais relutou em admitir a interferência judicial, a participação de juízes na agenda pública nos últimos anos tem sido expressiva. Nas democracias presidencialistas o fenômeno tem ocorrido com muito maior intensidade e extensão. Em tese, nesses sistemas a margem de atuação do Judiciário é mais ampla e flexível. E este papel tem, de fato, sido desempenhado pela maior parte dos Judiciários.

2. Brasil: A Constituição de 1988 e o Judiciário como Poder de

Estado

A Constituição de 1988 representa o ponto culminante do processo de redemocratização do País. O texto constitucional consagrou o modelo democrático-presidencialista, atribuindo, pois, ao Judiciário a configuração de um poder de Estado. Ademais, a Lei Maior reconheceu uma ampla gama de direitos: direitos civis, políticos e sociais, direitos individuais e supraindividuais. A confluência desses dois aspectos – a constituição do Judiciário como poder de Estado e a consagração dos direitos – projetou o Poder Judiciário para o centro da vida política e social.

Ressalte-se que a Constituição de 1988 concedeu ao Poder Judiciário a prerrogativa de controle da constitucionalidade das leis e atos normativos e competência legal para obrigar o Poder Executivo a implementar políticas públicas sempre que este for omisso no campo dos chamados “direitos sociais”. Em outras palavras, há no texto legal a imposição de claros limites à discricionariedade dos chefes do executivo, a quem cabe a responsabilidade pela oferta e gestão de bens como educação e saúde, por exemplo. Magistrados, segundo este modelo, são concebidos como corresponsáveis por políticas públicas, e têm o dever de se pronunciar sobre temas de interesse geral.

Com a Constituição de 1988 as fronteiras entre o juiz, o Direito e a política se modificaram. Não são mais barreiras intransponíveis, mas espaços que, com frequência, se interpenetram. A interconexão interferiu na configuração da instituição e do magistrado e exigiu a construção de uma nova identidade.

Essa nova feição do Judiciário não se restringe aos traços definidores da instituição e de seus integrantes. Ela também tem se revelado nos aspectos passíveis de apreensão a partir de uma perspectiva quantitativa: no número de magistrados; no número de processos; no número de decisões. Com efeito, após a Constituição de 1988 todos esses números tornaram-se superlativos, cresceram de forma exponencial, tornando visíveis mudanças de grande magnitude.

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3. A Emenda 45: novos parâmetros

Em 8 de dezembro de 2004 foi aprovada a Emenda Constitucional n. 45, após longa e por vezes conflituosa tramitação. Idas e vindas, diferentes propostas e relatórios antagônicos, somados à longevidade do que se convencionou chamar de crise do Judiciário, levavam ao ceticismo, à descrença de algo que viria a ser concretizado na direção de alterar o sistema de justiça. Daí o inequívoco valor simbólico da reforma.

Para além do aspecto simbólico, o conjunto de modificações aprovado desenhou um novo quadro institucional, não apenas para o poder Judiciário, mas também para as demais instituições do sistema de justiça. Houve alterações formais tanto nos parâmetros das instituições, como na prestação jurisdicional.

Entre as medidas voltadas para as instituições destacam-se a criação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público; a instituição de medidas que preveem que as decisões administrativas dos tribunais serão públicas, consentindo o acompanhamento das deliberações por parte de qualquer cidadão; alteração no procedimento de escolha dos membros dos órgãos especiais (metade pelos desembargadores mais antigos e metade por desembargadores eleitos por seus pares); exigência de um mínimo de três anos de atividades jurídicas prévias aos candidatos a postos no Judiciário e no Ministério Público; imposição de quarentena para os integrantes dessas instituições após seu afastamento das funções, seja por aposentadoria ou por outro tipo de desligamento; adoção de critérios objetivos para substituir os de natureza subjetiva no sistema de promoções de magistrados, vedando a promoção de juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal; extinção dos Tribunais de Alçada; ampliação das competências da Justiça do Trabalho; exigência de distribuição imediata dos processos.

No que diz respeito à prestação jurisdicional, algumas medidas devem ser destacadas. Em primeiro lugar a inclusão, como direito fundamental dos cidadãos, da celeridade processual. Este princípio se operacionaliza na instituição da súmula vinculante e da repercussão geral do recurso extraordinário. A EC 45 também conferiu à Defensoria Pública autonomia, a capacidade para elaborar sua própria proposta orçamentária, a possibilidade de estabelecer diretrizes de atuação mais condizentes com o atendimento da demanda social, sem a interferência dos demais órgãos da Administração Pública.

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Além desses aspectos, a Emenda Constitucional 45 abriu espaço para a efetivação de alterações como a súmula vinculante, o sistema de repercussão geral, a lei dos recursos repetitivos, o critério da transcendência. Esses expedientes têm potencial de modificar o perfil dos tribunais, de atuar sobre o volume de processos e de aumentar o controle das cortes sobre sua agenda.

4. O quadro legal e o protagonismo judicial

Nos últimos anos, tornou-se incontestável a presença do Judiciário e das demais instituições do sistema de Justiça na arena política. É constante a participação de ministros dos tribunais superiores, de juízes, assim como do Procurador Geral da República, de procuradores e promotores, nos principais eventos que têm marcado a história do País.

Tal presença, como salientamos, encontra seu principal fundamento na Constituição de 1988. A essa base, entretanto, devem ser acrescidos e combinados outros aspectos que dão ensejo ao protagonismo desses atores políticos judiciais. Entre eles saliente-se o grau de institucionalização do Judiciário e do Ministério Público, características pessoais dos integrantes dessas instituições, a força relativa das demais instituições, especialmente o Legislativo e o Executivo.

A pauta de temas que tem passado por apreciação judicial tem sido das mais expressivas. Muitas das questões que alteraram a vida política, social, cultural e econômica do País nos últimos tempos tiveram a chancela do Judiciário. Foi dessa forma que foi liberada a pesquisa com células-tronco; que foi proibido o cigarro em avião; que foi proibido o nepotismo nos três poderes; que se tornou gratuita a distribuição do coquetel contra o vírus da Aids; que se regulamentou o direito de greve dos servidores públicos; que se regulou a demarcação de reservas indígenas; que os partidos políticos tornaram-se detentores dos mandatos de seus eleitos. Enfim, a lista de feitos do protagonismo judicial é extensa e é ampliada constantemente.

Esse protagonismo, como não poderia deixar de ser, provoca debates, reações, censuras e aplausos. Parlamentares não têm poupado críticas ao ativismo judicial. No ano de 2008, por exemplo, foram vários os momentos marcados pelo enfrentamento entre as duas instituições. Para recordar, vale uma lista com algumas dessas situações. A súmula contra o nepotismo provocou reações de deputados e senadores que empregavam parentes. Assistiu-se a várias manobras para adiar o cumprimento da súmula. Senadores

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e deputados federais também se antepuseram à resolução do Tribunal Superior Eleitoral sobre a fidelidade partidária. Talvez, nenhuma das questões tenha suscitado tanto desconforto quanto a decisão sobre o que ficou conhecido como “lista suja”.

As decisões judiciais não ficaram, pois, sem respostas por parte do Legislativo. Caracterizou-se a atuação do Judiciário como de intromissão em assuntos políticos, próprios do Legislativo. A ofensiva apareceu não apenas em críticas públicas, mas também em propostas. A proposta de mandato para os ministros do Supremo Tribunal Federal e o estabelecimento de prazos para a Justiça Eleitoral julgar processos contra políticos estão entre essas investidas.

O Executivo igualmente tem reagido. O ministro da Justiça, Tarso Genro, por exemplo, sistematicamente tem expressado críticas ao que denomina “judicialização” da política. Assim, afirmou que a inércia do Legislativo está abrindo espaço cada vez maior para a regulação do Judiciário, e que isto ameaça o equilíbrio entre os poderes. Segundo ele, “há hoje no Brasil uma radicalização da estatização da política em função dos poderes que o Judiciário tem avocado para si. E essa é a mais complexa e difícil questão de ser resolvida. Por uma questão muito simples: quando o Poder Judiciário resolve, não tem instância para recorrer. Podemos estar perante um fenômeno novo no processo político brasileiro: uma hiperconcentração de poder e legitimidade no Judiciário e um esvaziamento dos demais poderes, que pode ser absolutamente problemático”. Para concluir chegou inclusive a alertar para o perigo do que comparou à “instauração de um jacobinismo do Poder Judiciário atípico”.

A despeito da procedência maior ou menor dos argumentos e contraargumentos, o fato inconteste é que o Judiciário tem crescido como poder, ocupado espaços na arena pública, se constituído em um protagonista central. Ademais, deve ser sublinhado que o confronto entre as instituições não é só de valores. Neste embate estão em jogo tanto as forças relativas de cada uma delas e de seus integrantes, como também a distribuição de poder no interior de cada uma delas, a manutenção de privilégios e a efetivação de projetos políticos.

5. Novas linhas da atuação

Do ponto de vista formal, desde os anos 1980 ampliou-se consideravelmente o âmbito de atuação do Poder Judiciário e de todas as demais instituições do sistema de justiça. Na prática, contudo, nem todas as instituições responderam da mesma forma ou com o mesmo ímpeto. Mesmo quando se considera uma única

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instituição, é notável a diferença não só entre os ramos, os órgãos, nas distintas unidades da federação e regiões, mas também nas sucessivas presidências.

Um indicador visível do alargamento no âmbito de atuação do Poder Judiciário é o rol de temas que passaram a ser apreciados. Nos últimos anos, meio ambiente, ecologia e questões ligadas à natureza, por exemplo, ganharam um peso maior na pauta do STF, dos demais tribunais e varas. A inovação aparece não só no crescimento proporcional desses assuntos, mas também na forma como ministros e juízes tomam suas decisões. Muitas vezes, não se limitam ao exame da jurisprudência e a estudos, mas vão até as áreas envolvidas nas disputas e solicitam laudos para órgãos especializados.

A lista de temas além de extensa envolve questões sensíveis e polêmicas, tais como habeas corpus; uso de algemas; registro de candidatos a cargo eletivos; nepotismo; lei seca; lei de imprensa; cotas nas universidades; “mensalão”; interrupção de gravidez de feto anencéfalo; união homoafetiva; transposição do Rio São Francisco; poder de investigação do Ministério Público; escuta telefônica etc.. O processo de tomada de decisões expõe e confronta princípios como, por exemplo, prevalência do estado ou do cidadão; de coletividades ou de indivíduos; do fisco ou do contribuinte; do direito formal ou do garantismo; dos direitos dos índios ou da soberania nacional, entre outros.

O embate, todavia, não se restringe aos princípios. Instituições, grupos, corporações, interesses, imiscuem-se em categorias filosóficas, jurídicas e sociológicas. Assim, apresentam-se em lados opostos Igrejas versus cientistas; entidades médicas em desacordo com entidades religiosas; setores do Judiciário e elite da advocacia em confronto com juízes de primeiro grau, integrantes do Ministério Público, membros da Polícia; índios, organizações não governamentais, Ministério Público e governo federal contra fazendeiros, deputados e governo estadual; etc.

A relevância das questões e sua potencialidade de gerar impactos na esfera pública, na sobrevivência de corporações e na área privada canalizam a atenção para as decisões judiciais e especialmente para o seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal. Quaisquer que sejam as decisões, inclusive a deliberação de adiar uma decisão ou sua prontidão, como também o receio de que possa vir a atuar, têm potencial de produzir efeitos notáveis. Não por acaso o espaço na mídia tem sido significativo. Tal fenômeno não se circunscreve ao STF. Magistrados em geral converteram-se em manchetes, recebendo destaque em todos os veículos de comunicação.

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Esse quadro marcado pela presença do Judiciário na arena pública não é novo. A novidade está na ampliação das linhas de atuação, em sua robustez, em sua profusão de cores e contrastes. A constitucionalização de ampla gama de direitos e de uma diversidade de temas, como salientamos, deu ensejo a uma atuação abrangente e vigorosa por parte do Judiciário e especialmente de sua Corte Suprema.

Ao desenho institucional, ou às determinações da Constituição de 1988, às novas linhas de atuação devem ser acrescentadas variáveis relacionadas às características de seus integrantes para explicar a presença do Poder Judiciário e seu peso na correlação de forças na arena pública. O perfil de seus magistrados faz diferença. Em outras palavras, a par dos fortes incentivos para uma atuação política de destaque propiciada pelos parâmetros institucionais, traços individuais contam. Ou seja, a atuação real do STF, por exemplo, reflete de forma inequívoca se o grupo é mais ou menos homogêneo, do ponto de vista doutrinário e ideológico; se predominam comportamentos mais ou menos reservados, atitudes mais ou menos agressivas, mais ou menos sensíveis a problemas sociais; se há liderança interna; enfim, a forma como se manifestam atributos individuais e sua interação no grupo.

O desempenho do Supremo nas diferentes presidências é um exemplo do significado das características individuais, de como elas impõem peculiaridades, de como podem acelerar ou retardar processos de construção institucional. Diferenças em estilo implicam, naturalmente, diferenças nas reações tanto internas como externas. Quanto maior a exposição, maiores os riscos, mais contundentes as objeções. Sob a liderança do Ministro Gilmar Mendes a visibilidade da instituição foi ampliada, além de ter sido injetado um maior dinamismo e um alargamento na pauta de atuações do CNJ.

As ações empreendidas pelo CNJ têm provocado impactos não apenas no interior do próprio Judiciário, mas também em outras instituições e na sociedade. Bastaria mencionar a proibição do nepotismo. No que diz respeito ao Judiciário, várias medidas vêm alterando a instituição. Entre elas, as resoluções relativas à proibição de nepotismo; à fixação do teto salarial; à questão das férias; à obrigatoriedade de envio de dados e à uniformização na sistematização das informações; à determinação de que os tribunais sigam um plano plurianual, estabelecendo cronograma de gastos por períodos de cinco anos; à obrigação de que os juízes enviem trimestralmente relatório com dados das prisões temporárias.

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Do ponto de vista da transparência e do conhecimento da instituição, o salto de qualidade tem sido notável. Hoje, as informações além de apresentarem um maior grau de fidedignidade, são mais abrangentes e permitem diagnósticos. Sabe-se, com base em dados, não apenas o volume de processos entrados e julgados, mas onde estão os gargalos, quais os principais litigantes, quais as matérias e, mais importante, os efeitos de alterações introduzidas nos sistema processual e na estrutura do Judiciário.

Ademais, o CNJ implementou uma nova linha de atuação no início de 2009. Com o objetivo de equacionar os problemas mais graves do sistema prisional, decidiu promover mutirões carcerários e inspeções nos tribunais estaduais e varas. Segundo se pode aferir dos relatórios apresentados trata-se de uma ação que tem revelado quadros absolutamente dramáticos e constrangedores.

Dramáticos ao desvendar descumprimentos da lei, que ferem a dignidade das pessoas e os direitos humanos mais básicos, como por exemplo, presídios superlotados, com presos amontoados e sem triagem por tipo de delito; indivíduos presos que já cumpriram pena; presos provisórios por mais de 4, 5 anos; presos sem processo; doentes sem assistência médica; container transformado em celas, sem água e sanitário, etc..

A burla da lei se estende ao campo processual e administrativo. Constataram-se casos de policiais que diziam aos juízes quais presos deveriam permanecer encarcerados, independentemente de condenação ou denúncia do Ministério Público. Revelou-se que policiais requisitados pelo Tribunal de Justiça faziam segurança na residência dos desembargadores e, em alguns casos, auxiliavam em tarefas domésticas. Também se encontrou indícios de que magistrados fraudavam a distribuição de processos para favorecer empresários. Foi verificada a existência de processos parados, casos de nepotismo, pagamento de salário para funcionários fantasmas.

Um outro aspecto igualmente significativo da atuação do CNJ é sua contribuição para um melhor gerenciamento de varas e tribunais. Como reconheceu explicitamente o então Ministro Corregedor Nacional, Gilson Dipp, em entrevista ao jornal o Estado de S.Paulo, em 6/6/2009: “A má gestão é um acontecimento recorrente no Judiciário, má gestão no sentido de má aplicação das verbas públicas, de concentração de cargos de confiança em demasia, principalmente localizados nos tribunais”.

Este aspecto certamente interfere na qualidade da prestação jurisdicional, respondendo em boa medida pela morosidade no processo de tomada de

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decisões. Como se sabe, a gestão orçamentária é um componente fundamental do desempenho de qualquer organização. Com o Judiciário não haveria motivos para ser diferente. Mesmo consentindo que desvios e improbidades não constituam a regra, uma gestão adequada pode contribuir positivamente para o seu desempenho. A gravidade da situação é reconhecida por ampla maioria dos juízes. Pesquisa neste sentido foi feita pela Associação dos Magistrados Brasileiros. Segundo resultados da investigação, praticamente a totalidade dos juízes ouvidos (99%) não sabia dizer o valor do orçamento destinado à unidade em que atua. Os dirigentes da AMB reconhecem que não há como uma Vara funcionar de forma rápida e eficiente se o próprio juiz que a administra não consegue distribuir de forma correta seus recursos, já que desconhece o montante de dinheiro repassado. O Desembargador Mozart Valadares, então presidente da AMB admite: “Precisamos discutir a gestão orçamentária para melhorar a aplicação desses recursos em benefício da sociedade”. Esta pesquisa mostrou ainda deficiências na estrutura das unidades judiciárias. A maioria não conta com profissionais qualificados, equipamentos e tecnologia para dar agilidade ao andamento no volume de processos. A desproporção entre o número de processos em tramitação e o número de computadores e profissionais é acentuada. De acordo com os dados, a situação é mais crítica nas regiões Norte e Nordeste.

Racionalizar e alterar procedimentos internos são iniciativas capazes de produzir efeitos extremamente positivos no desempenho do Judiciário. Uma investigação sobre este aspecto foi desenvolvida pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais e pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, com o apoio institucional da Secretaria de Reforma do Judiciário, em 2007. O trabalho mostra como a burocracia judicial e, mais diretamente, os cartórios judiciais, interferem no tempo de tramitação dos processos. As conclusões do estudo são claras a este respeito. São elas: “os cartórios judiciais produzem grande impacto na morosidade do processo e no acesso à justiça; paradoxalmente, o cartório é “invisível” como ator do sistema de justiça; a organização e o funcionamento dos cartórios judiciais são precários”. Ou seja, foi constatado que a estrutura organizacional das varas e cartórios representa uma variável importante no desempenho do Judiciário, afetando diretamente os tempos desde o início até o final (isto é, da petição inicial até a execução), tanto no rito sumário como no ordinário. Nos locais em que o relacionamento pessoal, o ambiente de trabalho, a organização e a

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distribuição de tarefas são avaliados como negativos, o tempo dos processos judiciais é consideravelmente maior. Em contrapartida, quando há iniciativas para inovar a gestão e o funcionamento do cartório, verificou-se uma menor morosidade, um incremento significativo no desempenho.

Acentue-se que estes aspectos entraram muito recentemente na pauta de preocupações de magistrados. A rigor, nem os cursos de Direito, nem as Escolas de Magistratura costumavam reservar espaços em sua grade de disciplinas para questões relacionadas à gestão administrativa e financeira. Apesar desta deficiência no ensino, exigia-se do juiz “algo” muito além de sua formação como bacharel, ou seja, que ele também fosse um administrador. Esta expectativa até poderia ser razoável quando a complexidade era menor e o número de processos acentuadamente inferior. Certamente deixou de ser com a progressiva complexidade e com a extraordinária multiplicação na demanda pelos serviços do Judiciário. O volume crescente de processos, contudo, não foi acompanhado de alterações na infraestrutura física e de pessoal, nem na mesma dimensão nem tampouco seguiu as inovações tecnológicas que marcaram os últimos anos. Essa situação era, ou melhor ainda é, agravada pela quase absoluta ausência de critérios objetivos e de transparência para a distribuição dos recursos materiais e de pessoal.

Esse quadro, reconhecidamente anômalo, vem sendo alterado. Alguns passos já foram dados. O mais importante entre eles é, sem dúvida, a possibilidade de se elaborar diagnósticos com base em informações. Tornou-se factível, por exemplo, saber onde é maior a carência de magistrados, de profissionais qualificados, de equipamentos, etc.. E com base nestes dados eleger prioridades, suprir necessidades e elaborar planos de gestão.

Neste sentido, não haveria como deixar de valorizar as iniciativas que contribuem para um retrato mais realista do Judiciário. O significado destas ações se reflete em políticas de gestão, de melhor aproveitamento dos recursos, de valorização de aspectos inovadores e de rejeição a práticas que ferem a moralidade, a probidade ou que comprometam a celeridade, a imparcialidade, o acesso à justiça. A base desse conjunto de iniciativas é a coragem de desvendar mazelas, de aplicar punições, de contrariar interesses.

As inspeções do CNJ têm descoberto situações de certo modo sabidas pelos operadores do Direito e também pela população em geral, mas jamais explicitadas em toda a sua dimensão e especialmente por um órgão do próprio Judiciário. Os relatórios permitem conhecer o que se passa em tribunais, varas,

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presídios, secretarias, cartórios. Os problemas são relatados e, em função do diagnóstico, são propostas recomendações. Do ponto de vista da cidadania trata-se de uma verdadeira revolução. Um desvendar com alto potencial de provocar modificações a curto, a médio e a longo prazo.

Por outro lado, no planejamento estratégico, foram estabelecidas metas, como prazo para envio de dados e identificação e julgamento de todos os processos distribuídos até 2005.

Os dados sistematizados e o desempenho do CNJ permitem afirmar que sua atuação tem sido relevante, alterando aspectos até então intocáveis. Ao comprovar desvios, chegou a aplicar punições, até mesmo a determinar aposentadoria compulsória – pena disciplinar máxima prevista pela legislação. No que se refere às práticas de desrespeito à lei, tornou-se evidente a ineficiência ou na melhor das hipóteses a limitação das corregedorias, mesmo porque, quando ativas, são muito mais voltadas para o primeiro grau. O trabalho do CNJ permitiu constatar que muitas irregularidades persistiam, tais como nepotismo, paralisia de processos, corrupção, desperdício de dinheiro do contribuinte. Na maioria desses casos, quando chegou a haver punição, a força do corporativismo superou a do interesse público. Não raras vezes, o tipo de punição era incompatível com a gravidade da irregularidade.

6. Considerações finais

Os últimos anos presenciaram uma transformação espetacular no posicionamento do Judiciário na agenda pública, na participação de magistrados e associações representativas nos debates, na liderança de experiências inovadoras e também na quantidade e na qualidade dos dados permitindo um retrato mais acurado da instituição. Independentemente de juízos de valor, o que se sublinha é que o Judiciário de hoje não é o Judiciário de anos passados.

As mudanças são apreciáveis e podem ser percebidas dos mais variados ângulos.Com efeito, do ponto de vista demográfico, o número de juízes

cresceu enormemente e essa ampliação provocou efeitos na composição da magistratura: diferenças na estrutura demográfica e na morfologia sociológica. Além dos aspectos quantitativos, demográficos e sociológicos, que por si só já significariam uma extraordinária transformação, há também mudanças comportamentais e políticas igualmente sem precedentes. Como as pesquisas realizadas pela AMB indicam, já não se pode falar que os juízes compõem

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um grupo homogêneo e menos ainda que defendam posições de louvor à instituição e ao seu desempenho, responsabilizando apenas a legislação ou a falta de recursos materiais e humanos pelas deficiências na distribuição de justiça no País. São crescentes os percentuais de magistrados, em todas as instâncias, que sustentam avaliações críticas tanto em relação ao desempenho do Judiciário como ao seu próprio, e às outras instituições.

O modelo de juiz estritamente “boca da lei” parece pertencer a tempos pretéritos ou, na melhor das hipóteses, está confinado a um número muito reduzido de magistrados, estando em vias de extinção. Gilmar Mendes, quando presidente do STF, referindo-se à questão da fidelidade partidária, encarregou-se de pronunciar seu epitáfio: “o STF não se posiciona apenas em relação à letra fria da lei (...) era uma mudança de partido a toda hora, na diplomação, antes da posse, de forma exagerada, para não falarmos do fenômeno do mensalão, que poderia supor uma mudança remunerada. É nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal faz a revisão da jurisprudência. Não é uma leitura literal pura do texto constitucional. É um diálogo sério com a sociedade e com a realidade”. (Folha de S.Paulo, 4/11/2008)

Nada indica que o protagonismo judicial seja um fenômeno passageiro ou que venha a perder fôlego nos próximos anos. As falas de ministros, desembargadores e juízes, como também os dados quantitativos confirmam impulsos na direção da tendência de um desempenho pró-ativo do Judiciário.

De um outro ângulo, verifica-se que a chamada “judicialização dos conflitos” tem revelado possuir uma face acentuadamente dilemática. Bastaria citar as decisões judiciais que envolvem a questão do direito à saúde, por exemplo. O incontestável direito à universalização dos serviços públicos de saúde, quando reclamado no Judiciário, tem provocado questionamentos, contrapondo: políticas coletivas e casos individuais; recursos públicos finitos versus direito à vida; decisão majoritária sobre alocação de recursos e decisão judicial; privilégio concedido a alguns jurisdicionados versus igualdade ou saúde de outros. Nesse tipo de questão acaba-se, muitas vezes, obtendo-se o oposto do que se pretende. Isto é, ao invés de garantia da igualdade, é gerada uma situação de privilégio para aqueles que possuem acesso qualificado à justiça. Além disso, a alteração na distribuição de recursos resultante da decisão judicial fere a que foi definida majoritariamente, transformando demandas individuais em empecilhos para a concretização de políticas sociais, que são, em princípio, de âmbito coletivo. É claro que não existe solução ótima

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e menos ainda fácil. O problema é grave e vem se acentuando. Mas, vem crescendo, conjuntamente, a consciência de que as respostas não se encontram nos parâmetros tradicionais.

No âmbito das inovações processuais, seus efeitos têm se tornado cada vez mais significativos, tanto do ponto de vista quantitativo (número de processos) como em suas potencialidades de alterar o perfil dos tribunais superiores. A queda no volume de processos no STF, por exemplo, sinaliza a tendência da cúpula do Judiciário de se transformar efetivamente em Corte Constitucional, diminuindo seu papel de última instância recursal. Ademais, a pauta do STF reforça a assertiva sobre a progressiva importância da dimensão referente à presença pública do Judiciário. A lista de temas é polêmica e quaisquer que sejam as decisões que venham a ser tomadas certamente provocarão impactos econômicos, sociais e políticos. Além desses efeitos, não se pode descartar a potencialidade de conflitos institucionais, particularmente com o Executivo e o Legislativo.

Contribuindo para este novo posicionamento do Judiciário na vida pública, a maior entidade representativa dos juízes – AMB – converteu-se em ator político relevante, tendo participado ativamente de todos os embates que de alguma forma dizem respeito ao sistema de justiça e à vida coletiva. Iniciativas e comportamentos marcados pela defesa de interesses corporativos já não ocupam todo o espaço de atuação da associação. Ao contrário, o modelo tradicional tem convivido e até tem sido subordinado por interferências públicas de natureza republicana, como, por exemplo, as campanhas lideradas pela AMB, em apoio às decisões do CNJ de combate ao nepotismo e à impunidade, ou a campanha por eleições limpas e contra a corrupção.

Práticas inovadoras empreendidas em varas e tribunais devem igualmente ser somadas ao conjunto de mudanças dos últimos tempos. O Prêmio Innovare tem contemplado experiências criativas e eficazes, com potencialidade de serem aplicadas em outras varas ou tribunais. Essas práticas demonstram como muitas das soluções não dependem de mudanças legislativas, mas daquilo que Victor Nunes Leal caracterizou como vontade política.

Atentar para a série de mudanças em curso não significa que a crise de distribuição de justiça tenha sido resolvida. Ao contrário, o que se salienta é que alguns passos vêm sendo dados. Contudo, a dimensão superlativa do problema impõe a urgência de mais e novas soluções. Soluções que

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transcendam o voluntarismo e a insistência em expedientes já testados e que se mostraram de baixa eficiência.

A experiência e os dados ensinam que não se trata, por exemplo, de aumentar a carga de trabalho de magistrados. Os juízes brasileiros têm hoje um volume de trabalho muitas vezes superior ao de seus colegas em outros países. Seria absolutamente irreal acreditar que haveria condições de acrescê-lo ainda mais. Ou que esforços isolados, individuais, teriam condições de sanar o problema. Além disso, é sabido que “o mais do mesmo” é apenas um paliativo, que não impediria que o problema voltasse a tomar, a médio e a longo prazo, se não a mesma dimensão, uma ainda maior.

Ademais, parece claro que não se pode esperar por condições mais favoráveis para enfrentar o problema. Por um lado, nada indica que mudanças legislativas, que alterem códigos, constituam prioridade para o Parlamento ou que venham a ser aprovadas a curto ou a médio prazo. Por outro, dificilmente se terá um acréscimo no aporte de recursos financeiros, físicos e de pessoal compatíveis com as necessidades. Face a esses constrangimentos, não se pode aguardar, nem trabalhar nos padrões anteriores, anacrônicos face ao volume de demandas. É imperioso que se busque saídas, mesmo reconhecendo que se está longe do ideal.

A estratégia de atuação deve levar em conta diferentes ângulos do problema. Uma saída já prevista legalmente, mas ainda muito pouco utilizada, diz respeito às ações coletivas. Estas deveriam receber muito mais atenção e receptividade, porque extrapolam problemas individuais. Outro expediente a ser considerado com maior tenacidade refere-se aos procedimentos conciliatórios. Os ganhos advindos de um maior estímulo à conciliação, tanto pré-processual como durante o processo, expressam-se não apenas nas possibilidades mais efetivas de pacificação, mas também no tempo e no índice de congestionamento de varas e tribunais. É necessário igualmente avanços na geração de novos sistemas de gestão, aí incluídos o plano administrativo nos cartórios e serventias judiciárias. A informatização, ferramenta importante, deve ser estendida para a gestão e o processamento das ações. A otimização dos recursos tem relação direta com a melhoria na prestação jurisdicional, com uma justiça mais rápida e eficiente.

Sem respostas incisivas, o colapso do sistema é certo. Igualmente seguros são os efeitos corrosivos de tal desenlace, para a democracia e para a convivência pacífica.

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PROPOSTA ORçAMENTáRIA DO PODER JuDICIáRIO

Luis Felipe SalomãoMinistro do Superior Tribunal de Justiça

“Os juristas saudosistas reverenciam uma antiga ideia: a de que o direito se autopurifica. Tal imagem concebe duas formas ou estágios do mesmo sistema jurídico: a forma mais nobre latente na menos nobre, o direito contemporâneo, impuro, que gradualmente se transforma na sua própria ambição mais pura, a

duras penas, sem dúvida, tanto com deslizes quanto com ganhos, nunca atingindo a pureza final, mas aprimorando-se sempre em relação à geração anterior.”

(Ronald Dworkin)

1. Introdução

O texto pretende examinar o tema relacionado à participação da magistratura na elaboração e execução do orçamento do Poder Judiciário, destacando os aspectos político e técnico da questão central.

Com efeito, após uma rápida análise histórica, tanto em relação ao orçamento público como ao próprio desenvolvimento da matéria no que tange ao Judiciário, propõe-se uma apreciação de direito comparado, para, logo em seguida, alcançarem-se algumas conclusões quanto à necessidade de “transparência” e “participação” no tema referente à elaboração da proposta orçamentária.

A propósito, vem a calhar a narrativa contida na simbólica obra-prima de Ibsen.

Em “Um inimigo do povo”, apesar de escrito em 1922, a obra do consagrado dramaturgo norueguês é de impressionante atualidade. O personagem que domina o enredo e prende a atenção do leitor é o Dr. Tomas Stockmann. Ele ajudou a fundar um balneário que se transformou em sensação para turistas, trazendo prosperidade ao lugarejo onde vivia. De repente, descobre-se que as

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águas da estação, porque mal captadas, eram perigosas, daí que cada morador pretendeu elevadas indenizações decorrentes do sistema de canalização. Quando o Dr. Tomas avisa que irá denunciar a situação, há uma trama que estabelece solidariedade entre o Prefeito da Cidade (irmão do Dr. Stockmann), a imprensa e os acionistas. Eles desejavam impor os custos aos contribuintes e fazer com que todos identificassem no Dr. Stockmann o “inimigo do povo”.

A trama de Ibsen serve como fio condutor ao tema aqui tratado.O conflito entre o interesse “público X privado”, entre a “verdade X

mentira”, é sintetizado pelo gênio do dramaturgo: “E quando formos homens livres e distintos, que é o que faremos então? Vocês escorraçarão os lobos para além das montanhas”.

2. Síntese histórica brevíssima sobre o orçamento público e sua

finalidade atual

A história do orçamento público remonta à Inglaterra (1217), quando o Rei João, na Carta Magna, expressou que “nenhum tributo ao auxílio será instituído no reino, senão pelo seu Conselho Comum”.

Em duas palavras, está aí o germe do “planejamento/controle”. A pressão por regras claras e transparentes quanto a receitas e despesas

públicas permeou as lutas da sociedade nas Revoluções Francesa e Americana (século XVII) e também na Inconfidência Mineira do Brasil (século XVIII).

Mas foi só a partir do final do século XIX que os orçamentos públicos passaram a ter a feição atual, com o princípio da anualidade, sua votação antes do início do exercício, inclusão de todas as previsões financeiras e a não-vinculação da receita às despesas específicas.

A partir da metade do século XX, foi estabelecida uma significativa diferença entre as práticas orçamentárias norte-americana e europeia. Os EUA conferem amplos poderes ao Legislativo nessa matéria, enquanto os europeus prestigiam o Executivo (Cabinet) – e, em ocorrendo qualquer desconfiança, há a troca do governo no regime parlamentarista.

No Brasil, a Constituição Imperial de 1824, estabelecia que o Ministro da Fazenda era o responsável pela elaboração e encaminhamento à Assembleia Geral dos Orçamentos e de todas as “despesas” e “receitas públicas”.

A Constituição de 1891, que se seguiu à proclamação da República, transferiu ao Congresso a atribuição da elaboração orçamentária, englobando os Poderes da Nova República.

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Com a Constituição outorgada de 1934, no entanto, perde espaço o Parlamento e volta a reinar absoluto o Executivo – que elaborava e decretava o orçamento.

Diante da redemocratização – Constituição de 1946 –, houve nova alteração: o Executivo elaborava proposta orçamentária, que depois era discutida e votada nas duas Casas do Congresso.

Durante o período de ditadura, é desnecessário qualquer outro comentário sobre o tratamento do tema.

Contudo, com o advento da Constituição de 1988, a matéria passou a ser apreciada com ênfase e de maneira detalhada1. O Congresso volta a ter papel destacado.

3. O planejamento como decisão política

A decisão de planejar, coordenar as ações e controlar despesas e investimentos públicos é essencialmente política.

Vale dizer, depende de coragem e determinação do administrador público, pois significa imprimir qualidade ao gasto das receitas, de sorte a que sua conformação atenda, essencialmente, aos anseios sociais. O planejamento e controle implicam amarras, sadias, ao administrador.

Nosso país não tem uma tradição de planejamento da atividade pública, tampouco uma vivência grande na elaboração de orçamentos públicos.

A partir de 19402, ocorrem as primeiras tentativas de controle e planos de metas na administração brasileira3. Sobretudo o “Plano de Metas” (1956/61) pode ser considerado a grande e pioneira experiência de planejamento público no Brasil.

Até esse momento (em torno de 1961), havia no País uma forte atuação de movimentos sociais que impulsionavam o planejamento das políticas públicas. No entanto, a partir de 1970, em plena ditadura, com o fim do “milagre econômico”, surge a crise fiscal que dele decorre e, com esse malogro, a escassez de recursos públicos transforma-se na tônica do momento4.

O que se denominou “crise da administração pública” tinha suas raízes profundas5 na:

1 Artigos 165 a 169 da CF/88. 2 “O planejamento no Brasil – Observações sobre o plano de metas”, Ministro Celso Lafer, 1987.3 Relatório Simonsen: Diagnóstico da Comissão Mista Brasil-EUA (1951); Plano Saute (1948).4 Foi para buscar o equilíbrio fiscal que o Brasil recorreu a organismos multilaterais de financiamento, como o BID e Banco Mundial.5 “Transparência e controle social como paradigmas para gestão pública no Estado Moderno”, Milton Coelho Neto (RT, 2002).

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a) baixa capacidade e pouca experiência dos órgãos públicos em planejamento, com consequências na elaboração do deficiente orçamento público;

b) deficiência e falta de controle na política de recursos humanos (pouca motivação dos servidores);

c) ausência de recursos tecnológicos adequados.Para superar essa situação de defasagem, que se perdura desde então,

afigura-se necessária uma severa reforma do Estado, que já vem sendo aplicada em países desenvolvidos. A partir daí, espera-se uma guinada nas políticas públicas que visem a transformações econômicas e sociais.

A par do indispensável planejamento, conjugado com procedimentos de ordenamento e controle da despesa pública, a estratégia para a saída da crise, a permitir melhor gerenciamento das contas públicas, passa por algumas receitas básicas.

Não só os países em desenvolvimento, mas também as superpotências, deparam com a “ferrugem” da máquina estatal.

Nos Estados Unidos, entre 1993 e 1996, foi implantado o programa “Reinventando o Governo: funcionar melhor e custar menos”. Parte-se de um modelo de gestão com três características básicas: clareza na definição de objetivos; indicadores de desempenho definidos; sistema de responsabilidade partilhada.

Nos processos de modernização da administração pública, em quase todos os países que tiveram sucesso, não foi possível a empreitada sem que houvesse interação com a sociedade. Em outras palavras, é fundamental que haja transparência e responsabilidade compartilhada, com medidas tais como:

a) publicidade de Governo (publicação de orçamentos, balanços, de maneira clara e transparente);

b) prestação de contas das ações públicas;c) participação da sociedade na elaboração da proposta pública de orçamento.A intenção do legislador brasileiro de rumar nessa trilha é patente (artigos

9o, § 4o, 32, § 4o, 45, 48, 49 e 67 da Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar 101/2000 e artigos 2o, II, XIII, 4o, III, “f ” e § 3o, 40 e 44 do Estatuto da Cidade – Lei 10.257/2001).

A responsabilidade compartilhada, ademais, não deve ser vista como evento isolado ou descontínuo: a participação popular é processo dialético de avaliação e inovação.

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O controle social da administração pública, por certo, não exclui os demais controles, antes os estimula a atuar6.

4. Brevíssimo histórico sobre as formas administrativas do

Judiciário e a evolução quanto à elaboração do seu orçamento

Dos tempos em que os juízes eram os sacerdotes, passando pela fase que das sentenças surgiam as leis (dos quais o Código de Hamurabi, exposto no Museu do Louvre, é ainda um exemplo), a imbricação entre religião e direito, o formalismo do direito arcaico, o direito grego e depois o romano, saltando pela idade média (o direito feudal), até os dias atuais do direito contemporâneo, a administração da Justiça passou por enormes transformações. Notadamente, quando o poder deixa de ser exercido pelos monarcas e passa a existir a ideia de nação e Estado.

Os três grandes sistemas jurídicos modernos, como se sabe, são: o da civil law (sistema continental ou romano/germânico), em contrapartida ao sistema da common law (preponderância para os precedentes) e o sistema soviético (regime socialista).

As fórmulas, portanto, de administração da Justiça são especialmente variáveis de acordo com o sistema jurídico adotado pelo país e ainda levando em conta, sobretudo, a forma de Estado e de Governo.

Partindo para o exame histórico da situação peculiar do Brasil, é necessária a leitura da obra primorosa do magistrado gaúcho Lenine Nequete7, que conta um pouco da trajetória acerca do funcionamento do Poder Judiciário no nosso país.

Lembra o Ministro Carlos Mário da Silva Velloso (STF), na apresentação do trabalho do historiador e magistrado, que a trajetória do Judiciário brasileiro, desde o Brasil-Colônia, foi longa e penosa. Ele afirma:

(...) essa trajetória sempre foi ascendente. É dizer, a Justiça brasileira, a partir do descobrimento, a partir, mais exatamente, de 1530, quando Martins Afonso de Souza foi investido, pelo Rei de Portugal, de poderes de jurisdição administrativa e judiciária, até os nossos dias, é uma história de sucessos, de conquistas, com a ampliação – o que, aliás, é a tônica do constitucionalismo contemporâneo – das atribuições do Judiciário brasileiro.

6 J. Habernas fala em tornar mais real a democracia formal.7 O Poder Judiciário no Brasil, quatro volumes, STF, 2000.

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Nesse caminho da Justiça brasileira, há uma nota interessante que merece ser assinalada e que diz respeito diretamente ao tema aqui tratado. Ela está indelevelmente marcada no regimento que criou a Relação do Rio de Janeiro (alvará de 13 de outubro de 1751):

Art. 104. Haverá um cofre de duas chaves, em que se receba todo o dinheiro, que sou servido aplicar para as despesas da Relação; e deste se fará receita ao Tesoureiro das mesmas despesas, que será o Guarda-Mor, enquanto eu não mandar o contrário; e das ditas chaves terá uma o Juiz, que o Governador nomear, e outra o sobredito Tesoureiro, que de três em três anos dará conta, tomando-lha o Contador, que o mesmo Governador nomear, e armando-lha o Escrivão desta receita, que será o Escrivão mais antigo das apelações e agravos.

Tanto quanto no Brasil-Colônia, passando pelo Império, até chegar à proclamação da República, a atividade judicial era apêndice da função administrativa, sem qualquer autonomia – especialmente no que tange à ausência total de orçamento próprio: é que existia o Poder Moderador (na verdade, poder único), que apagava a existência dos Poderes Legislativo e Judiciário.

Mas foi desenganadamente a partir da República que a magistratura foi sendo reconhecida, desde o primeiro momento, como integrante de um dos Poderes do Estado e, paulatinamente, ganhando independência e consolidando garantias (não dos juízes, mas dos jurisdicionados).

Desde a Constituição de 1891 até a atual de 1988, procurou-se preservar a intangibilidade do Poder Judiciário.

Mas em tempo algum houve regras tão claras quanto à transparência e ao engajamento da magistratura no funcionamento da máquina judiciária como atualmente existe.

No tocante à transparência dos atos judiciais e administrativos e também à garantia de autonomia administrativa e financeira, vale mencionar os artigos 93, IX e X, e 99 da Constituição/888.

8 “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

IX. todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela Emenda Constitucional no 45, de 2004)

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Cumpre lembrar, por oportuno, o Princípio Kantiano de transparência, que faz suspeitar como injusto tudo aquilo que não possa, de algum modo, tornar-se público9.

Por outro lado, há ainda tribunais que criaram ouvidorias, que, quando atuantes, conferem transparência e servem de canal de contato entre o cidadão-jurisdicionado e a administração judiciária.

No tocante à autonomia administrativa e financeira, nesse mesmo passo, há também muito ainda por fazer.

À falta de um percentual fixo das receitas líquidas do Estado, que deveria ser estabelecido no texto constitucional, o que ocorre é que a grande maioria dos tribunais necessita da famosa “suplementação de verba”, uma porta escancarada para a “troca de favores” e condescendências administrativas mediante práticas intoleráveis e incompatíveis com a ética que deve nortear o administrador público.

Para ilustrar a questão, eis os números do orçamento de 2009 em âmbito federal:– Poder Executivo: R$1.548.391.426.868,00 (97,59%);– Poder Judiciário: R$30.734.402.593,00 (1,94%);– Poder Legislativo: R$7.559.144.527,00 (0,48%).E a Lei da Responsabilidade Fiscal ainda estabelece o índice de 6%

para o limite de gastos com pessoal do Judiciário (art. 20, II, “b”, da Lei Complementar 101/2002)10.

X. as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros; (Redação dada pela Emenda Constitucional no 45, de 2004)

Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira.§ 1o - Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias.§ 2o - O encaminhamento da proposta, ouvidos os outros tribunais interessados, compete:I - no âmbito da União, aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com a aprovação dos respectivos tribunais;II - no âmbito dos Estados e no do Distrito Federal e Territórios, aos Presidentes dos Tribunais de Justiça, com a aprovação dos respectivos tribunais.§ 3o Se os órgãos referidos no § 2o não encaminharem as respectivas propostas orçamentárias dentro do prazo estabelecido na lei de diretrizes orçamentárias, o Poder Executivo considerará, para fins de consolidação da proposta orçamentária anual, os valores aprovados na lei orçamentária vigente, ajustados de acordo com os limites estipulados na forma do § 1o deste artigo. (Incluído pela Emenda Constitucional no 45, de 2004)§ 4o Se as propostas orçamentárias de que trata este artigo forem encaminhadas em desacordo com os limites estipulados na forma do § 1o, o Poder Executivo procederá aos ajustes necessários para fins de consolidação da proposta orçamentária anual. (Incluído pela Emenda Constitucional no 45, de 2004)§ 5o Durante a execução orçamentária do exercício, não poderá haver a realização de despesas ou a assunção de obrigações que extrapolem os limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, exceto se previamente autorizadas, mediante a abertura de créditos suplementares ou especiais. (Incluído pela Emenda Constitucional no 45, de 2004)9 Kant, “Zum Ewigen Frieden”, Volume: XI, Werkausgabe, Frankfurt Aum Main, 1988, p. 250.10 A propósito da origem da LRF como imposição do FMI e sua inspiração na legislação semelhante do

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A Suprema Corte já teve a oportunidade de ressaltar a importância da autonomia financeira do Poder Judiciário ao apreciar a Questão de Ordem no Agravo Regimental no Mandado de Segurança 21.291-8/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, quando deixou consignado:

O autogoverno da Magistratura tem, na autonomia do Poder Judiciário, o seu fundamento essencial, que se revela verdadeira pedra angular, suporte imprescindível à asseguração da independência político-institucional dos Juízos e dos Tribunais.O legislador constituinte, dando consequência à sua clara opção política – verdadeira decisão fundamental concernente à independência da Magistratura – instituiu, no art. 168 de nossa Carta Política, uma típica garantia instrumental, assecuratória da autonomia financeira do Poder Judiciário. A norma inscrita no art. 168 da Constituição reveste-se de caráter tutelar, concebida que foi para impedir o Executivo de causar, em desfavor do Judiciário, do Legislativo e do Ministério Público, um estado de subordinação financeira que comprometesse, pela gestão arbitrária do orçamento – ou, até mesmo, pela injusta recusa de liberar os recursos nele consignados –, a própria independência político-jurídica daquelas Instituições.

Em termos de direito comparado, buscando análise apenas em dois paradigmas (norte-americano e europeu), assevere-se que, nos EUA, tanto a elaboração como a destinação do orçamento do Judiciário tem ampla participação popular. Inclusive, em alguns estados, o custeio dos tribunais é proveniente de uma combinação de recursos públicos e privados.

Em relação à Europa, houve uma proposta da Associação Europeia de Magistrados para a Democracia e as Liberdades (MEDEL) para o “Estatuto Europeu da Magistratura”, estando assim redigidos os artigos 3.2, 3.3 e 3.4:

3.2. Na sua composição, metade, pelo menos, do Conselho deve ser constituída por magistrados eleitos pelos seus pares segundo a regra da representação proporcional. O Conselho incluirá, ainda, personalidades designadas pelo parlamento. Todos os seus membros devem ser nomeados por tempo determinado.

Estado Unitário da Nova Zelândia, vale conferir “Aspectos Constitucionais da LRF”, Jessé Torres, Revista da EMERJ, v. 4, no 15, 2001, p. 63.

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3.3. O parlamento vota o orçamento da Justiça sob proposta do Conselho Superior da Magistratura e do Governo.O Conselho deve dispor de orçamento próprio para executar as suas atribuições.3.4. As reuniões do Conselho devem ser públicas, salvo nos casos referidos no ponto 8.2., § 2o, que podem ser à porta fechada.As actas, decisões, relatórios, pareceres e recomendações, bem como o orçamento e as contas devem ser publicados. As decisões relativas ao recrutamento, à colocação e à disciplina dos magistrados devem ser fundamentadas e passíveis de recurso contencioso para um Tribunal Supremo.Anualmente, o Conselho deve apresentar ao Parlamento o relatório da sua actividade e do estado de justiça.

5. A posição de Dalmo Dallari

Convém transcrever trecho da obra “O Poder dos Juízes”11, em que Dalmo Dallari bem analisa a questão:

É necessária a mudança de atitude do Judiciário no relacionamento com os demais ramos do governo, saindo da acomodação em que tem vivido até hoje, para que possa promover seu próprio aperfeiçoamento. Embora definido na Constituição como um dos Poderes da República, desde 1891, o Judiciário tem sido submisso ao Executivo, acomodando-se numa posição secundária, em troca de cortesias ou de vantagens para os seus dirigentes. Inúmeras vezes a acomodação do Poder Judiciário tem sido assegurada graças à concessão de edifícios suntuosos para os tribunais, outras vezes pela tolerância quanto a vícios administrativos, que até agora permanecem fora de qualquer controle.A maior evidência da acomodação está no orçamento, tanto no plano federal quanto no estadual. O Judiciário elabora sua proposta orçamentária, prevendo o aumento do número de juízes, a ampliação e modernização de seu equipamento material e outras coisas que ajudariam a melhorar seu desempenho. Essa proposta sofre cortes substanciais no Executivo, que prepara o projeto geral de lei orçamentária, e, às vezes, também no Legislativo, que emenda

11 O Poder dos Juízes, Editora Saraiva, 3 ed. 2007, p. 145-146.

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e vota o projeto. E o Judiciário aceita passivamente esses cortes, como se não fosse um dos Poderes do mesmo nível dos demais.Existe aí um paradoxo, pois a elaboração de uma proposta orçamentária prevendo inovações importantes autoriza a suposição de que os órgãos dirigentes dos tribunais estão conscientes de seu atraso e querem a modernização. Entretanto, a passividade com que recebem os cortes orçamentários dá a impressão de que ficam felizes por terem a possibilidade de transferir a responsabilidade, mantendo as coisas como estão e alegando que a culpa é dos outros Poderes, que lhes negam os recursos.A alegação de que o Poder Judiciário é um Poder desarmado e sem a possibilidade de impor sua vontade é absolutamente inaceitável. Com efeito, basta lembrar que foi o lobby do Judiciário que impediu a criação de um Tribunal Constitucional no Brasil, como também bloqueou todas as propostas de criação de um órgão de controle das atividades administrativas dos tribunais. Quanto a este ponto, a resistência só foi superada em 2004, com a aprovação da Emenda Constitucional n. 45. Assim, portanto, é fundamental que o Judiciário deixe de alegar que “o inferno são os outros” e passe a agir como um Poder.Reconhecendo publicamente suas deficiências e dando publicidade às suas propostas de modernização, o Judiciário terá a seu lado a opinião pública. Desse modo ele estará agindo na condição que lhe é assegurada pela Constituição, ou seja, como um dos Poderes da República. E, sendo reconhecido e respeitado como tal, o Judiciário passará a ter a força necessária para defender com eficiência sua própria melhoria.

6. A elaboração da proposta orçamentária do Poder

Judiciário com a participação dos juízes

O ciclo orçamentário desdobra-se em quatro etapas:a) elaboração das propostas;b) aprovação das mesmas propostas, agora consolidadas e convertidas em lei;c) execução;d) controle (durante e após o exercício).No Rio de Janeiro, em 2002 e 2003, houve a solicitação da Associação dos

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Magistrados do Estado do Rio de Janeiro – AMAERJ para que os magistrados pudessem participar da proposta orçamentária e da elaboração do plano bienal.

Em 2008, o empenho em ouvir os magistrados no que diz respeito à elaboração do orçamento do Poder Judiciário também se verificou em outros Estados da Federação, como, por exemplo, em Pernambuco e Espírito Santo12.

Apesar dessas louváveis iniciativas, a realidade nacional é, infelizmente, bem diversa.

Na “1a Pesquisa sobre Condições de Trabalho dos Juízes”, realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB no ínício de 2009, constatou-se que 99% dos juízes desconhecem o percentual do orçamento repassado às respectivas varas, circunstância a impedir a solução dos diversos problemas enfrentados pelos magistrados e a melhoria na entrega da prestação jurisdicional13.

A falta de transparência na discussão do orçamento prejudica não somente os juízes de primeira instância – que lidam mais diretamente com as dificuldades vividas no dia a dia para prestar adequadamente a jurisdição, tendo em vista o grande número de processos e a escassez de pessoal, de estrutura física adequada e de equipamentos –, mas principalmente os jurisdicionados.

A proposta é uma só: melhores condições de trabalho para um atendimento adequado ao cidadão, usuário do sistema judicial.

No entanto, não se olvida aqui o fato geral, aplicável ao Judiciário, de que “quando algum governante decide abrir espaço para a cidadania participar das decisões públicas, a burocracia como grupo faz tudo para coagir uma real participação. Daí a necessidade de atuar com muita sabedoria política para assegurar a preservação dos mecanismos que institucionalizam a participação”14.

7. Conclusão

Em tempos atuais de globalização econômica, o mercado passa a ser colocado como instância máxima de regulação social.

O fenômeno denominado de “novo capitalismo” desconhece fronteiras jurídicas entre as nações e permite o trânsito de capitais sem qualquer controle governamental.

12 http://www.tjpe.gov.br/noticias_ascomSY/ver_noticia.asp?id=5405&argumento=magistradoshttp://www.tj.es.gov.br/cfmx/portal/Novo/noticias.cfm?Cd=57713 Boletim AMB Informa, Edição 114, de 15 de fevereiro a 15 de março de 2009.14 Enrique Saraiva, Cadernos de Estudos da EPAB/FGV, dezembro/98.

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A transnacionalização dos mercados, no dizer do professor José Eduardo Faria, coloca o Judiciário em uma encruzilhada, um Poder em busca de uma identidade funcional.

Em relação ao orçamento do Poder Judiciário, em regra, verifica-se um quadro bastante complexo, a demonstrar que não houve preparo adequado para resolver os grandes problemas de estrutura do Poder.

A transparência administrativa é exigência dos nossos tempos.O momento, ademais, é de participação. A magistratura quer estar engajada e atuante, contribuindo para identificar

os pontos em que haja possibilidade de melhorar a sua atividade-fim.A participação ordenada, transparente e qualificada de magistrados na

elaboração da proposta orçamentária de certo lhe conferirá maior teor de aptidão para responder aos reptos do novo século, em matéria de eficiência no desempenho da jurisdição, afastando a concentração de poderes e superando a compartimentação que caracterizam a cultura administrativa da elaboração orçamentária. Será mais um encargo, dentre tantos outros que integram o cotidiano do juiz. Mas, afinal, esta é a responsabilidade do Judiciário, a que decerto corresponderão a vocação e o compromisso a que a toga nos conclama.

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A FuNçãO DE CONTROLE COMO FuNDAMENTO DO ESTADO DEMOCRáTICO DE DIREITO

Lucas Rocha FurtadoMestre em Direito Público pela uNB e Doutorando em Direito pela universidade de Salamanca/EspanhaProcurador-Geral do Ministério Publico junto ao Tribunal de Contas da uniãoProfessor da unb

O que se pretende com as reflexões contidas neste estudo é destacar, em primeiro lugar, a importância da função de controle para o Estado Democrático de Direito e o papel do princípio da eficiência como resultado da evolução desse controle. Num segundo momento, são feitas considerações acerca da “jurisdição de contas” e a autonomia financeira do Judiciário, bem como é analisada a extensão da revisão judicial das decisões do Tribunal de Contas da União. Na parte final do estudo, aborda-se o controle externo judicial sobre os atos do Poder Executivo e como esse controle deve ser exercido quando a questão objeto de revisão judicial estiver pendente de decisão no âmbito administrativo.

1. A função de controle do Estado e Democracia

A necessidade de que toda e qualquer atividade desenvolvida pelo Estado esteja sujeita a diferentes níveis ou mecanismos de controle se faz presente desde que se concebeu o Estado de Direito. Nos estudos de Montesquieu sobre a separação (ou distribuição) dos poderes ou funções do Estado, a importância e a necessidade de controle resultam evidentes. De fato, é perfeitamente correto afirmar que a essência da teoria da separação dos Poderes se sustenta na ideia de que nenhum Poder do Estado deve assumir atribuições que não possam ser, de algum modo, controladas por outro Poder.

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Alice Gonzáles Borges, referindo-se a Montesquieu, anota que nos idos do século XVIII o ilustre pensador sentenciava: “temos a experiência eterna de que todo homem que tem em mãos o poder é sempre levado a abusar dele, e assim irá seguindo, até que encontre algum limite. E, quem o diria, até a própria virtude precisa de limites”1

Após a Segunda Guerra, com a transição do Estado Liberal para o Estado Social, o poder público assume definitivamente o papel de promotor e garantidor do desenvolvimento econômico e social. É fato que para assegurar a concretização dos direitos sociais o Estado teve que ampliar suas estruturas administrativas necessárias ao desempenho das atividades públicas. A evolução das tarefas executivas do Estado, decorrente das novas e crescentes demandas da sociedade, resultou, de modo paralelo, na necessidade de serem desenvolvidas novas e diferentes formas para o controle dessas atividades.

Controle político, controle judicial, controle administrativo, controle de mérito, de legalidade, de resultados etc., enfim, diversos modelos e sistemas têm sido utilizados pelas democracias modernas para o acompanhamento e a fiscalização da atividade administrativa do Estado.

Não só as formas de controle se diversificaram, mas também a sua qualidade. Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o novo quadro político para as democracias modernas que se apresenta no segundo pós-guerra despertou uma “renovada consciência cidadã e, com ela, reclamos de legitimidade, que ficaram abafados por quase um século” 2.

Sob essa perspectiva, continua o autor, as demandas passam “... a ter uma ancoragem mais profunda na ética, crescendo as exigências, não apenas de probidade como, inovadoramente, de qualidade na gestão da coisa pública, enriquecendo os conceitos correspondentes de controle de gestão financeiro-orçamentária”.3(grifado no original)

Nesse contexto de novas exigências no qual se insere a gestão pública também são colocados novos desafios à função de controle, a qual deve dispor de mecanismos adequados de fiscalização a fim de conferir legitimidade democrática à administração das finanças do Estado.

1 BORGES, Alice Gonzales. “O controle jurisdicional da administração pública”. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 192, p. 49-60, abr./jun. 1993, p.512 “O Parlamento e a Sociedade como Destinatários do Trabalho dos Tribunais de Contas”, in: SOUZA, Alfredo José de et al. O novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 110.3 Idem.

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As mudanças são necessárias, como alerta Diogo de Figueiredo Moreira Neto, porque a administração pública não mais se submete apenas “... ao tradicional crivo de legalidade, em que se demandava apenas a qualidade de eficácia, mas, ainda em acréscimo, aos da licitude e da legitimidade, justificando-se, respectivamente, perante as demandas, pela eficiência e pela moralidade administrativas, que despontam como novos princípios constitucionais”.4 (grifado no original)

Destaca-se, por exemplo, a observância ao princípio da eficiência na gestão de recursos públicos (CF, art. 37, caput). É importante ressaltar que este princípio representa um dever haurido do texto constitucional e não mera opção que possa deixar de ser adotada pela Administração. O administrador não pode optar por ser ineficiente. Se determinada solução se apresenta como ineficiente, ou seja, se a relação custo-benefício da decisão for desvantajosa quando comparada a alternativas igualmente lícitas, não possui o administrador qualquer liberdade ou poder para adotá-la.

Não é correto afirmar que o dever de eficiência circunscreve-se ao campo de discricionariedade da Administração, razão por que se for demonstrado que a adoção de determinada solução fere o princípio da eficiência, ela não deve ser considerada inoportuna ou inconveniente, mas sim ilegítima.

Assim, se os resultados da gestão pública, à luz de um patamar aceitável de eficiência, forem absurdos, não há que se falar em mera conveniência administrativa. O administrador se sujeita ao dever de eficiência imposto pelo art. 37 da Constituição Federal e caso ocorra violação grosseira desse dever, os atos praticados devem ser anulados, e quem o praticou, caso não apresente razões plausíveis que justifiquem a gestão calamitosa, deve ser punido.

Não resta dúvida de que a fraude, a malversação, o desvio ou a prática de atos ilegais e ilegítimos merecem a reprovação da sociedade e a severa punição por parte dos órgãos de controle. Idêntica reprovação não tem sido verificada, até o momento, especialmente nos meios jurídicos, nas situações em que o gestor não é eficiente. Do ponto de vista prático, todavia, se a creche não foi construída, se o hospital não foi reformado ou se seus equipamentos não funcionam, se a estrada está esburacada, se a campanha de vacinação infantil não alcançou seus objetivos porque o gestor desviou os recursos públicos ou porque adotou soluções absurdamente ineficientes ou ineficazes, o resultado é

4 Idem, p. 111.

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o mesmo. A população sofre as mesmas consequências em qualquer das duas situações, quer ocorra fraude, quer se verifique ineficiência.

Advirta-se, no entanto, que não se trata de buscar mecanismos de punição para o gestor público que não tenha adotada a solução mais eficiente. Claro está que nem sempre é possível indicar a solução ótima para cada caso. Trata-se, a rigor, de defender a tese de que o aludido princípio impõe ao administrador público o dever constitucional de evitar soluções absurdamente contrárias à racionalidade administrativa e que a sua inobservância importa em nulidade do ato.

Em Estados modernos, dos quais se esperam resultados que justifiquem e legitimem a sua própria existência, é imprescindível que se proceda ao controle da eficiência como aspecto do controle de legitimidade, a ser desempenhado pelo Poder Judiciário em parceria com os tribunais de Contas.

2. O controle externo parlamentar

Esclareça-se, desde logo, que a menção ao “controle externo” refere-se ao critério de classificação doutrinário que leva em consideração o órgão responsável pelo exercício do controle. Se o controle sobre determinado ato é feito pela mesma unidade administrativa ou pelo mesmo Poder que praticou o ato, ter-se-á o controle interno. O controle externo, por sua vez, é feito por Poder ou unidade administrativa (órgão ou entidade) distintos daquele de onde o ato ou atividade foram emanados. Se o Poder Legislativo, por exemplo, é chamado a atuar em relação à determinada atividade ou a certo ato praticado no âmbito do Poder Executivo ou do Poder Judiciário ter-se-á hipótese de controle externo.

Interessa ao presente estudo, neste momento, analisar o controle financeiro da Administração Pública exercido pelo Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União5, conforme previsto nos artigos 70 e 71 da Constituição Federal.

Feitas essas breves considerações acerca do controle externo Parlamentar,

5 O titular do controle externo da atividade financeira do Estado é o Congresso Nacional, de acordo com o disposto no art. 70 da CF. Neste dispositivo, quando é dito que esse controle será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União não se pode extrair daí que exista subordinação do TCU em relação ao Congresso Nacional. É que o termo “auxílio” está ali previsto para indicar o caminho para o exercício do controle externo. Vale dizer, portanto, que somente por intermédio do TCU pode o Congresso Nacional exercer as atribuições indicadas na Constituição Federal (art. 71) relacionadas ao exercício do controle financeiro da atividade administrativa do Estado. Controle externo é atividade eminentemente jurídica, e não política. Esta é a razão pela qual os mecanismos para o exercício do controle financeiro são conferidos ao TCU, órgão dotado de autonomia administrativa, financeira e funcional, e não ao Congresso Nacional.

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cabe, então, cotejá-lo com um dos princípios que igualmente marcam o Estado Democrático de Direito: a independência e autonomia do Poder Judiciário6.

Conforme leciona Clèmerson Merlin Clève, citado por José Maurício Conti7, “a independência do Judiciário é assegurada seja em virtude da (i) autonomia institucional, seja, ainda, em virtude da (ii) autonomia funcional concedida à magistratura”.

O referido autor esclarece que8:A autonomia institucional, por sua vez, desdobra-se nos princípios do autogoverno, da auto-administração, da inicialidade legislativa e da auto-administração financeira; já a autonomia funcional, nas garantias da Magistratura de Vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, bem como nas vedações a que estão sujeitos os Juízes.

Claro está que a fiscalização a cargo do Tribunal de Contas da União, nos termos das competências que lhe foram asseguradas pela Constituição (auditorias, inspeções, atos sujeitos a registro, julgamento de contas etc.) coaduna-se perfeitamente com o postulado da independência Judiciário, até porque a atuação do TCU não se presta ao controle da função jurisdicional do Estado9. Cabe a este órgão de controle externo cuidar da gestão financeira, orçamentária, patrimonial, contábil e operacional do poder público.

O Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, ao discorrer sobre o vínculo do controle externo com o princípio republicano, faz as seguintes ponderações:

6 Afirma José Maurício Conti que, no Brasil, “a autonomia financeira do Poder Judiciário exige compatibilidade entre as receitas que lhe são destinadas e as necessárias para cumprir adequadamente as atribuições que a Constituição lhe destina. Pressupõe ainda a capacidade para elaborar sua proposta orçamentária nos termos do art. 99 da CF, bem como a observância dos valores que lhe foram destinados no orçamento, sem a possibilidade de redução durante sua execução. Os recursos que cabem ao Poder Judiciário devem ser entregues tempestivamente, na forma do art. 168 da CF, devendo ter liberdade para administrá-los, observadas as disposições constitucionais”. A Autonomia Financeira do Poder Judiciário, São Paulo: MP Ed., 2006, p. 145.7 Idem.8 Idem, p. 92.9 Fredie Diddier Jr., ao tratar da impossibilidade de controle externo da atividade jurisdicional, afirma que essa função estatal “tem por característica marcante produzir a última decisão sobre a situação concreta deduzida em juízo: aplica-se o Direito a essa situação, sem que se possa submeter essa decisão ao controle de nenhum outro poder. A jurisdição somente é controlada pela própria jurisdição. A jurisdição, como se sabe, controla a função legislativa (controle de constitucionalidade e preenchimento de lacunas) e a função administrativa (controle dos atos administrativos), mas não é controlada por nenhum dos outros poderes. À jurisdição cabe dar a última palavra, a solução final ao problema apresentado” (in Curso de Direito Processual Civil, volume 1, 11a Ed., JusPODIVM, São Paulo: 2009, p.75/76).

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Tão elevado prestígio conferido ao controle externo e a quem dele mais se ocupa, funcionalmente, é reflexo direto do princípio republicano. Pois, numa República, impõe-se responsabilidade jurídica pessoal a todo aquele que tenha por competência (e consequente dever) cuidar de tudo que é de todos, assim do prisma da decisão como do prisma da gestão. E tal responsabilidade implica o compromisso da melhor decisão e da melhor administração possíveis. Donde a exposição de todos eles (os que decidem sobre a “res publica” e os que a gerenciam) à comprovação do estrito cumprimento dos princípios constitucionais e preceitos legais que lhes sejam especificamente exigidos. A começar, naturalmente, pela prestação de contas das sobreditas gestões orçamentária, financeira, patrimonial, contábil e operacional.10

O Tribunal de Contas da União, no exercício de suas competências constitucionais exclusivas, desempenha função típica do Poder Legislativo de controle externo, dispondo de autonomia funcional, insusceptível, pois, de ser obstada por qualquer outra forma de controle.

Certo é que a possibilidade de que todos os atos praticados pelo Estado possam ser controlados, seja por meio de mecanismos internos, seja por meio de órgãos ou de instrumentos externos, constitui corolário do princípio democrático. É descabido, portanto, aos administradores públicos, de todos os Poderes da República, considerarem ameaça ou invasão ao seu âmbito de atuação o fato de os seus atos serem objeto de questionamento na esfera administrativa ou fora dela (mediante controle externo) sob a ótica da sua conformação ao Direito.

Questão recorrente quando se analisa as competências do Poder Judiciário e dos Tribunais de Contas refere-se ao alcance da revisão judicial das decisões proferidas por estes últimos. Para este mister, é preciso compreender a natureza das deliberações das Cortes de Contas e a acepção do termo jurisdição.

Tradicionalmente, dizia-se que o administrador atua no limites da lei para realizar o interesse público, ao passo que o papel precípuo do juiz seria o de aplicar o Direito ao caso concreto. Não há necessidade de exame muito aprofundado para se perceber que essas afirmações não se sustentam. Acaso ao juiz é dado – em seu processo de aplicação do Direito – agir fora deste, além dos

10 “O Regime Constitucional dos Tribunais de Contas”, in: SOUZA, Alfredo José de et al. O novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2005.

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limites da norma jurídica em exame? Ou, ao contrário, no processo conduzido pelo juiz de aplicação do Direito pode ele ferir o interesse público? Em relação ao administrador, ao contrário, há como defender que ele adota soluções para casos concretos sem aplicar o Direito? Tanto o juiz quanto o administrador público atuam nos limites do Direito e com vistas à realização do interesse público.

No caso do TCU, suas decisões muito mais se aproximam dos atos judiciais do que dos tradicionais atos administrativos. Prova disso é que a Constituição assegurou aos seus ministros as garantias e prerrogativas próprias dos magistrados (CF, art. 73, § 3o). Ademais, ao proferir suas decisões, o TCU o faz no âmbito da sua jurisdição de controle (O Tribunal de Contas da União (...) tem sede no Distrito Federal, quadro próprio e jurisdição em todo o território nacional – CF, art. 73, caput).

A esse respeito, Cretella Júnior11 afirma que “o emprego do verbo ‘julgar’ e dos substantivos ‘julgamento’ e ‘jurisdição’, em dispositivos constitucionais, induziu, primeiro, os membros dos tribunais de Contas – ministros e conselheiros – ao erro, imaginando que os vocábulos tinham sido empregados com o mesmo sentido que têm na nomenclatura técnica do direito processual”. Fala ainda o autor que “os constituintes cometem erro e que o cientista do direito (...) vai buscar, nos cultores dos vários ramos do direito, a acepção correta dos vocábulos”.

Antes de qualquer consideração acerca da opinião do autor, cumpre-nos examinar alguns conceitos de jurisdição.

Cândido Dinamarco12 afirma que “jurisdição é atividade pública e exclusiva com a qual o Estado substitui a atividade das pessoas interessadas e propicia a pacificação de pessoas ou grupos em conflito mediante a atuação da vontade do direito em casos concretos”. Galeno Lacerda, citado por Athos Gusmão Carneiro13, define o instituto como “a atividade pela qual o Estado, com eficácia vinculativa plena, elimina a lide, declarando e/ou realizando o direito concreto”. Se formos buscar conceito comum ou vulgar de jurisdição, podemos utilizar a fórmula apresentada no Dicionário Aurélio14: “Poder atribuído a uma autoridade para fazer cumprir determinada categoria de leis e punir quem as infrinja em determinada área”.

11 Natureza das Decisões do Tribunal de Contas. RDA. N. 166, out./dez. 1986, p. 9 apud Benjamin Zymler, p. 429.12 Fundamentos do Processo Civil Moderno, Vol. I, São Paulo: Malheiros, 4. ed. 2001, p. 115.13 In Jurisdição e Competência, 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.14 In Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2. ed. Revista e Ampliada, Ed. Nova Fronteira.

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Em todos os conceitos de jurisdição é possível identificar alguns elementos comuns. O primeiro reside no fato de que se trata de atividade estatal; o segundo, de que se trata de atividade por meio da qual se aplica o direito ao caso concreto. O conceito apresentado por Galeno Lacerda acrescenta, além desses dois elementos, outra característica à jurisdição, a coisa julgada.

Ao se examinar os dois primeiros elementos (de que se trata de atividade estatal com vista à aplicação do direito a situações concretas), não resta dúvida de que o conceito de jurisdição alcança a atividade desenvolvida pelo TCU. O único elemento do conceito que não se mostra aplicável à atividade desenvolvida pelo TCU diz respeito à imutabilidade das suas decisões. Este elemento, relacionado à coisa julgada, é, no entanto, acidental e somente parte da doutrina o adota.

Consoante preconiza Fredie Didier Jr.15, a coisa julgada é “situação jurídica que diz respeito exclusivamente às decisões jurisdicionais”. Segundo afirma, mesmo no campo da jurisdição propriamente dita, a coisa julgada não é qualidade ou efeito imprescindível: “é uma opção política do Estado; nada impede que o legislador, em certas hipóteses, retire de certas decisões a aptidão de ficar submetida à coisa julgada; ao fazer isso, não lhes tiraria a ‘jurisdicionalidade’. A coisa julgada é situação posterior à decisão, não podendo dela ser sua característica ou elemento de existência”.

Vê-se, portanto, que o conceito de jurisdição não se mostra tão estranho à atividade dos Tribunais de Contas quanto poderia supor quem, de forma desavisada, lesse as palavras de Cretella Junior acerca do tema.

As palavras do referido autor refletem a visão que imperava entre os ‘cientistas’ do direito processual – e que ainda impera em alguns círculos jurídicos – que negavam, a partir de premissas totalmente equivocadas, a existência do processo administrativo. Esta visão, mais do que qualquer outra coisa, reflete o desconhecimento acerca do moderno Direito administrativo e das distinções entre o exercício das atividades judicial e administrativa. De acordo com essa visão equivocada do Direito administrativo, a atividade administrativa se desenvolvia por meio de atos administrativos isolados e desordenados. Atualmente, a atividade administrativa é exercida como decorrência de decisões produzidas em processos administrativos, sujeitos ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa. O ato administrativo

15 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, PODIVM, 11. ed., São Paulo: 2009, p. 76.

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continua a ser meio básico para o Estado exercer sua função executiva. Esta função se torna mais democrática, mais transparente e legítima quando o ato administrativo passa ser considerado o resultado do processo administrativo e não fenômeno isolado.

O TCU exerce jurisdição administrativa e, no desempenho dessa tarefa, julga as contas dos gestores públicos.

Não se reconhece às decisões do TCU – é evidente – natureza judicial em razão de dois aspectos básicos: 1. Não integram os tribunais de Contas o Poder Judiciário; e 2. As decisões proferidas pelos tribunais de Contas se regem por normas de Direito administrativo e constitucional, não pelo Direito processual.

A possibilidade de o TCU agir de ofício – na instauração e na condução de processos – constitui particularidade estranha ao processo judicial, e impede qualquer tentativa de enquadramento das decisões dos tribunais de Contas como decisões judiciais. Razões decorrentes do ordenamento jurídico vigente, e não do voluntarismo jurídico de alguns, impedem que se confira autoridade de coisa julgada judicial às decisões do TCU. Esta circunstância não impede que se reconheça (1) que o TCU exerce jurisdição, (2) que o TCU julga contas e (3) que as decisões do TCU se pautam pelo processo administrativo.

Deve-se reconhecer, ademais, que a estatura constitucional das decisões proferidas pelas cortes de Contas – cuja natureza executiva decorre de dispositivo constitucional expresso (CF, art. 71, § 3o) – impossibilita a equiparação destas decisões, especialmente daquelas que julgam contas, a meros atos administrativos.

Ainda que sujeitas ao controle judicial, as decisões dos tribunais de Contas justificam a adoção de controle judicial menos invasivo, devendo o Poder Judiciário promover a sua anulação somente em casos de aplicação absurda do Direito ou por falhas formais do processo, de que seria exemplo a não observância do contraditório ou da ampla defesa. Admitir que matérias de fato ou de direito examinadas por tribunais de Contas possam ser completamente reexaminadas, em todos os seus aspectos, pelo Poder Judiciário, além de importar em absoluta quebra de racionalidade do sistema – afinal qual a utilidade desses tribunais se tudo o que eles decidissem pudesse ser revisto pelo Poder Judiciário? –, transferiria para o Judiciário a competência para julgar contas, competência exclusiva dos tribunais de Contas.

A constatação de que as decisões proferidas pelos tribunais de Contas, não

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obstante sua natureza administrativa16, encontram-se em patamar jurídico mais elevado que os demais atos administrativos foi feita pelo STF no julgamento do MS 24.544/DF17. Nesta ocasião, o STF reconheceu executoriedade18 à decisão do TCU, em razão das particularidades presentes no processo conduzido no âmbito do Tribunal ‘de colorido quase jurisdicional’ – na expressão de Sepúlveda Pertence (MS-23550/DF) –, executoriedade não reconhecida à Administração Pública.

Se a Constituição institui órgão de controle externo a quem incumbe a função de fiscalizar a Administração Pública, atribuindo-lhe, inclusive, poderes sancionatórios, é evidente que as decisões deste órgão não estão no mesmo nível dos atos administrativos ordinários. O TCU deve ter a palavra final sobre a Administração Pública, com a ressalva de que a questão sempre poderá se submetida ao Poder Judiciário. A revisão judicial, todavia, deve circunscrever-se aos casos de afronta ao devido processo legal ou quando a decisão do TCU for absurdamente contrária ao direito. Nestas hipóteses, a decisão judicial deve tão-somente anular aquela proferida pelo Tribunal de Contas, devendo o processo ser restituído a este último para nova manifestação.

3. Controle externo judicial

Dentre os diferentes mecanismos de controle previstos em nosso texto constitucional, o controle judicial ganha importância especial. A Constituição Federal de 1988 (art. 5o, XXXV), ao dispor em seu capítulo sobre os direitos e garantias fundamentais, afirma que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direitos, elevando o controle ou tutela judicial à categoria de princípio básico do Estado moderno.

O que se espera do Estado moderno e democrático é racionalidade e equilíbrio no exercício de todas as suas funções. Nos momentos em que o sistema democrático fraqueja – situação que não raro se verifica em países da

16 A natureza administrativa da atuação do TCU não lhe faculta a possibilidade de descumprir decisão proferida em instância judicial e amparada pelo manto da coisa julgada. No Julgamento do MS no 23.758/DF (Informativo STF no 302), o eg. STF firmou o entendimento de que se a decisão judicial baseara-se em premissas errôneas, deve ser ela desconstituída por meio de ação rescisória, e não mediante deliberação do TCU (conforme artigo publicado no citado Informativo STF no 302).17 No julgamento deste Mandado de Segurança, o STF considerou legítima determinação feita pelo TCU a fim de que a Câmara dos Deputados promovesse desconto em contracheque de servidor, mesmo contra a vontade deste, prerrogativa que o STF negou aos órgãos da Administração Pública.18 A executoriedade, no caso, tratava de saber se poderia ser promovido o desconto em folha de débito apontado pelo TCU e atribuído ao servidor público.

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nossa América Latina –, a atividade judiciária deve ser exercida de forma mais invasiva em relação à atividade administrativa. Nestas ocasiões, que devem ser consideradas exceção, o Poder Judiciário passa a ser a única barreira ou instância capaz de assegurar à população o exercício dos seus direitos fundamentais básicos. Daí porque nestas ocasiões se justifica que o Poder Judiciário assuma postura mais rigorosa no exercício da sua função de controlar a atividade do Poder Executivo, porque este carece de qualquer legitimidade democrática.

Em períodos de normalidade democrática, como o que felizmente vivemos, em que se reconhece legitimidade no exercício de todas as funções do Estado, deve ser buscado novo equilíbrio para os mecanismos de controle recíprocos existentes entre os Poderes e não se justifica a exacerbação ou o excesso de interferência de um Poder em relação aos demais.

Com o objetivo de testar o raciocínio desenvolvido pode ser apresentado julgado do Superior Tribunal de Justiça (RESP 218270/RS; 1a Turma; DJU de 18.10.99) em que se reitera a tese corrente de que não há necessidade de esgotamento da via administrativa para a propositura da ação judicial. Neste julgado foi afirmado que o reconhecimento do pedido do interessado em recurso administrativo provocou a perda do objeto da ação judicial proposta – o que é evidente –, e, ademais, condenou a União – que ao decidir o recurso administrativo reconheceu o direito do interessado – a pagar honorários ao advogado do particular19.

É patente a falta de racionalidade deste julgado que reflete o entendimento vigente no Brasil. Se no caso em exame existe a possibilidade de a própria Administração Pública reconhecer o direito do indivíduo que aguarda decisão

19 A ementa do acórdão mencionado apresenta a seguinte redação: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – RECURSO ADMINISTRATIVO – RECONHECI-MENTO DO PEDIDO – PERDA DO OBJETO DA AÇÃO JUDICIAL – HONORÁRIOS ADVO-CATÍCIOS.O ingresso em juízo prescinde de prévio esgotamento da via administrativa. Reconhecido o pedido na esfera administrativa, a ação a ele referente perde o objeto, sendo a União responsável pela verba honorária.Recurso improvido. (RESP 218270/RS, PRIMEIRA TURMA, DJU de 11.10.1999)Em igual sentido: RMS – CONSTITUCIONAL – ADMINISTRATIVO – PROCESSUAL CIVIL – PRELIMINAR – CA-RÊNCIA DO DIREITO DE AÇÃO QUANTO AO SEGUNDO IMPETRANTE – ESGOTAMENTO DAS VIAS ADMINISTRATIVAS – DESNECESSIDADE – GRATIFICAÇÃO DE REPRESENTA-ÇÃO – EXTENSÃO AOS INATIVOS – NATUREZA PRO LABORE FACIENDO – INEXISTÊNCIA DE LINEARIDADE E GENERALIDADEI - Após a proclamação da Constituição Federal de 1988, o exaurimento da via administrativa é mera fa-culdade da parte interessada, não consubstanciando condição sine qua non para impetrar-se mandado de segurança. (ROMS 4289/MS; QUINTA TURMA, DJU de 4.6.2001).

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de recurso pendente na instância administrativa, com efeito suspensivo, qual o interesse do particular de agir na via judicial? Onde está o direito subjetivo violado ou ameaçado de lesão? Não há, com a devida vênia, sequer lide que justifique a propositura de ação judicial. Isto resta demonstrado de forma cabal quando a ação judicial “perde seu objeto” face ao reconhecimento do direito do particular pela própria Administração Pública que lhe deu provimento no recurso administrativo.

A rigor, a ação judicial aqui referida não perdeu seu objeto; ela nunca teve objeto. O julgado proferido pelo eg. STJ põe em risco o equilíbrio entre os Poderes e suscita inúmeras questões acerca do controle judicial sobre a atividade administrativa do Estado.

A fim de que os particulares possam suscitar o controle judicial sobre a atuação da Administração Pública, deve-se buscar, inicialmente, o objeto da proteção, o bem jurídico a ser amparado pelo Judiciário. A que bem jurídico se refere a Constituição quando estabelece que lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito? Igualmente relevante a regra disposta no art. 6o do Código de Processo Civil quando afirma que ninguém poderá pleitear em nome próprio direito alheio, ressalvadas as hipóteses previstas em lei. Ora, se os indivíduos somente podem acessar o Poder Judiciário para pleitear direitos próprios, é necessário que este direito tenha-se concretizado, que ele esteja materializado, ou esteja sendo ameaçado, a fim de ser legitimada a propositura de ações judiciais.

É ponto pacífico que o direito a que se refere a Constituição Federal e o Código de Processo Civil é o direito subjetivo, entendido como aquele que surge da aplicação da norma positivada a situações concretas gerando para determinado indivíduo a legitimidade de exigir, pela via judicial, inclusive, que outrem seja obrigado a fazer ou deixar de fazer algo.

O direito subjetivo, instituto desenvolvido originariamente no âmbito do Direito Civil, surge a partir do momento em que o ordenamento jurídico reconhece a determinado indivíduo o poder de fazer valer sua vontade contra terceiro, impondo-lhe obrigações e podendo utilizar-se da tutela judicial para tal mister. Na relação Administração Pública – administrado, o direito subjetivo pode aperfeiçoar-se tanto em favor de um quanto do outro.

A tutela judicial referida pelo texto constitucional (art. 5o, XXXV) compreende, todavia, tão-somente os direitos que preencham os requisitos necessários à sua caracterização como direitos subjetivos, individuais ou coletivos. Essa conclusão

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decorre do fato de que, não obstante tenha havido por parte da Constituição Federal a preocupação com a proteção dos direitos coletivos, difusos ou não, a forma como é feita esta proteção depende de lei – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (CF, art. 5o, XXXII). Ou seja, o princípio da inafastabilidade da apreciação judicial, previsto no art. 5o, XXXV, da Constituição Federal, legitima o particular a acessar o Judiciário para a defesa de direitos subjetivos e não para a impugnação de atos ilegais ou ilegítimos. Para esta tarefa, a Constituição Federal prevê arsenal específico de instrumentos jurídicos (ação popular, ação civil pública, ação de improbidade, habeas corpus etc.).

Com efeito, o objeto básico merecedor de proteção pelo princípio do controle judicial é o direito individual subjetivo. Este é o bem jurídico tutelado pelo princípio da inafastabilidade da apreciação judicial. Não que os demais direitos ou interesses não sejam objeto de proteção jurídica, ou que sua violação não possa reclamar a necessária interferência judicial. A proteção desses outros direitos ou interesses, todavia, bem como o controle a ser realizado sobre eles pelo Poder Judiciário, deve-se realizar na forma definida pela própria Constituição Federal ou pela lei. A inafastabilidade da apreciação judicial, como princípio básico do Estado Democrático de Direito, visa proteger, de forma especial, os direitos subjetivos dos cidadãos lesados ou ameaçados de lesão.

Desse modo, a possibilidade de acesso ao Poder Judiciário deve ser franqueada aos particulares sempre que decisão, ou omissão, administrativa ferir ou puser em risco (ameaça de lesão) direitos subjetivos, e é inconstitucional qualquer regra que estabeleça limitações ou impedimentos ao livre acesso ao Poder Judiciário.

Assim, se a Administração Pública não observa as regras procedimentais, ou se extrapola o tempo razoável para a produção de uma manifestação conclusiva, seria legítimo arguir-se a violação de direito subjetivo e estaria o particular legitimado à propositura da ação judicial destinada a coibir o ilícito, inclusive por meio de medidas judiciais cautelares.

Fixadas essas premissas, se a eventual lesão, ou a ameaça de lesão, de direito decorrer de ato proferido em processo administrativo, enquanto houver a possibilidade de discussão no âmbito deste processo, deve ser tida como invasiva, e, portanto, ilegítima a interferência judicial. Sempre, e enquanto a lesão, ou a ameaça de lesão, a direito puder ser questionada na esfera administrativa, e enquanto esse questionamento fizer sustar referida lesão, bem como sua ameaça, a interferência judicial irá ferir a autonomia do Poder Executivo, e, em

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consequência, a harmonia entre os Poderes. Se decisão proferida em processo administrativo for contrária ao interesse de particular, que entende ser titular de direito subjetivo, e couber recurso com efeito suspensivo contra esta decisão, não há que se falar em violação de direito subjetivo.

A tese que aqui se defende não busca implantar, no Brasil, o sistema francês do contencioso administrativo. Neste, as matérias decididas pela instância administrativa não podem ser controladas ou revistas pela instância judicial. Não é esta a ideia. Busca-se, ao contrário, definir o momento em que a interferência administrativa importa em violação de direito subjetivo individual ou coletivo e, somente então, legitimar a necessária e pronta atuação judicial.

A fixação do momento em que se legitima a atuação judicial não atenta contra a autonomia do Poder Judiciário, ou sequer impede o exercício do necessário controle judicial sobre a Administração Pública. Ao contrário, definido esse limite temporal, a interferência judicial poderá ocorrer de forma mais equilibrada e racional.

Admitida, ao contrário, a possibilidade de o Poder Judiciário interferir na instância administrativa, a qualquer momento, independentemente de violação ou ameaça de lesão a direito subjetivo, ou ainda no curso de processo administrativo que observe o devido processo legal, compromete a capacidade do próprio Judiciário de atender, a tempo e a contento, a sociedade.

O livre acesso ao Judiciário deve ser igualmente examinado sob a ótica do interesse de agir, da preclusão de direitos e da própria racionalidade da atuação do Estado.

Acerca do interesse de agir, Antônio Carlos Cintra, Ada Grinover e Cândido Dinamarco20 tecem a seguintes considerações:

Essa condição da ação assenta-se na premissa de que, tendo embora o Estado o interesse no exercício da jurisdição, não lhe convém acionar o aparato judiciário sem que dessa atividade se possa extrair algum resultado útil. É preciso, pois, sob esse prisma, que, em cada caso concreto, a prestação jurisdicional solicitada seja necessária e adequada. Repousa a necessidade da tutela jurisdicional na impossibilidade de obter a satisfação do alegado direito sem a intercessão do Estado – ou porque a parte contrária se nega a satisfazê-lo (...).

20 Teoria Geral do Processo, 11. ed. Editora Malheiros. São Paulo. 1995. P. 258.

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Visto que o ordenamento jurídico-administrativo põe à disposição do particular meios hábeis para fazer sustar as interferências estatais que afetem seus interesses, na hipótese de tratar de processo administrativo sancionador ou restritivo de direito, ou de exigir que se conclua o processo como requisito ao reconhecimento do direito do particular, no caso dos processos ampliativos de direito, não é razoável arguir-se a imediata interferência judicial como caminho necessário à satisfação dos interesses juridicamente tutelados dos particulares.

Se a atuação do particular perante a própria Administração for suficiente para afastar a ameaça de lesão a direito – no caso de processos restritivos de direitos ou punitivos – ou de viabilizar o reconhecimento desse direito – na eventualidade do processo ampliativo de direito – não há que se falar em interesse de agir em juízo.

Não é estranha ao ordenamento jurídico pátrio a hipótese de carência de ação para demanda judicial quando em relação à decisão impugnada existe recurso administrativo com efeito suspensivo. Trata-se aqui da redação do artigo 5o, inciso I, da Lei do Mandado de Segurança (Lei 1.533/51).

Não obstante a previsão legal expressa para a via mandamental, não há razão para que o mesmo raciocínio deixe de ser aplicado às ações judiciais em geral, pois que, como já foi dito, enquanto a pretensão do particular estiver sob a apreciação da Administração Pública em processo administrativo, sob efeito suspensivo, não decorrerá violação (ou ameaça de violação) a direito subjetivo, razão pela qual o interessado não estará legitimado, por flagrante ausência de interesse de agir, a se socorrer das vias judiciais.

Neste caso, a ausência de interesse de agir não se verifica apenas na via estreita do mandado de segurança, visto que a concessão de efeito suspensivo a recurso administrativo impede a exequibilidade e operatividade do ato questionado, afastando-se, dessa maneira, a utilidade do provimento jurisdicional.

Questão distinta consiste em saber se o particular está obrigado a esgotar a instância administrativa sob pena de, em não o fazendo, ocorrer preclusão do direito.

Veja-se o exemplo de cidadão regularmente intimado de decisão proferida pela Administração tributária que lhe impôs o pagamento de determinado tributo. É certo que este cidadão dispõe de instrumentos legais que o permitem impugnar administrativamente, com efeito suspensivo, o lançamento tributário que, em seu sentir, fira a legislação. Desse modo, se o cidadão se vale da faculdade de peticionar na instância administrativa (direito expressamente reconhecido pela Constituição Federal que em seu art. 5o, XXXIV, ‘a’, que

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dispõe que são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder), a lesão ou a própria ameaça de lesão ao seu direito por parte do poder público deixa de existir.

A dúvida consiste em saber se ocorreria preclusão caso o particular optasse por não promover a impugnação pela via administrativa (ou mesmo tivesse que esgotá-la) e preferisse se socorrer diretamente da instância judicial.

Toma-se como exemplo a Lei das Licitações e Contratos (Lei no 8.666/93). Em seu art. 42, § 1o, é fixado o prazo de cinco dias úteis anteriores à data final para apresentação de propostas para que os licitantes possam impugnar cláusulas do edital, sob pena de se operar decadência. No ponto, a não utilização da prerrogativa de impugnar o edital no âmbito administrativo impediria o exame da matéria na via judicial?

No STJ, a questão não é totalmente pacífica. A tese majoritária é no sentido de que a não impugnação do edital perante a própria Administração Pública não impede o particular de se socorrer da via judicial21, tese que se afigura acertada.

A exigência de esgotamento da via administrativa como condição para a propositura de ações judiciais implica violação ao princípio do controle judicial da Administração Pública.

21 A esse respeito, ver a decisão do STJ no MS 5655/DF; PRIMEIRA SEÇÃO; DJU de 31.8.1998:Ementa : DIREITO ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. CLÁUSULA EDITALÍCIA REDIGIDA SEM A DEVIDA CLAREZA. INTERPRETAÇÃO PELO JUDICIÁRIO, INDEPENDENTEMENTE DE IMPUGNAÇÃO PELOS PARTICIPANTES. POSSIBILIDADE.No procedimento licitatório, as cláusulas editalícias hão de ser redigidas com a mais lídima clareza e precisão, de modo a evitar perplexidades e possibilitar a observância pelo universo de participantes.A caducidade do direito à impugnação (ou do pedido de esclarecimentos) de qualquer norma do Edital opera, apenas, perante a Administração, eis que, o sistema de jurisdição única consignado na Constituição da República impede que se subtraia da apreciação do Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito. Até mesmo após abertos os envelopes (e ultrapassada a primeira fase), ainda é possível aos licitantes propor as medidas judiciais adequadas à satisfação do direito pretensamente lesado pela Administração.Consoante o magistério dos doutrinadores, a inscrição (da empresa proponente) no cadastro de contribuintes destina-se a permitir a imediata apuração de sua situação frente ao Fisco.Decorre, daí, que se o concorrente não está sujeito à tributação estadual e municipal, em face das atividades que exerce, o registro cadastral constitui exigência que extrapola o objetivo da legislação de regência.A cláusula do Edital que, “in casu”, se afirma descumprida (5.5.1), entremeada da expressão “se for o caso”, só pode ser interpretada no sentido de que, a prova da inscrição cadastral (perante as fazendas estadual e municipal) somente se faz necessária se o proponente for destas (Fazendas) contribuintes, porquanto a lei somente admite a previsão de exigência se ela for qualificável, em juízo lógico, como indispensável à consecução do fim.“In hiphotesi”, a impetrante, ao apresentar, com a sua proposta, certidões negativas de “débitos” para com as Fazendas estadual e municipal ofereceu prova bastante “a permitir o conhecimento de sua situação frente aos Fiscos”, ficando cumprida a cláusula editalícia, ainda que legal se considerasse a exigência. Mandado de segurança concedido. Decisão unânime.

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Ainda em relação à Lei de Licitações e Contratos, cita-se o exemplo de licitante desclassificado pela comissão de licitação. A própria lei, em seu art. 109, admite recurso com efeito suspensivo, o que equivale a dizer que, enquanto este recurso não for decidido, o processo licitatório não terá seguimento. É certo que se o recurso contra o ato de desclassificação for mantido, o licitante terá todo o interesse de propor a necessária ação judicial. Todavia, se o licitante não se utilizou dos instrumentos que o próprio processo administrativo lhe pôs à disposição, não parece correto afirmar que se verificou a preclusão da faculdade do licitante de questionar a invalidação da decisão administrativa na via judicial.

Definir que somente quando a atuação da Administração ferir ou ameaçar direito subjetivo estará o particular legitimado a propor ação judicial contra ato da Administração Pública não restringe ou limita a atividade de controle exercida pelo Poder Judiciário em relação ao Poder Executivo. Evita-se, ao contrário, a banalização na propositura de ações precipitadas e, muitas vezes, desnecessárias, haja vista, não raro, o provimento final por parte da Administração Pública ser favorável ao particular.

A exacerbação na utilização da via judicial tem criado sérias dificuldades ao bom funcionamento do Poder Judiciário no Brasil. É necessário fixar critérios que definam a intensidade e, sobretudo, o momento em que será exercida a tutela judicial da atividade administrativa. O estudo do direito subjetivo constitui o primeiro e mais importante critério legitimador da intervenção judicial sobre a atividade estatal de administrar.

O Estado é uno, e suas funções devem ser desempenhadas de modo harmônico. A defesa da tese da reserva da administração, que decorre diretamente da separação de poderes e cuja validade pressupõe a normalidade democrática, impõe maior respeito à atividade administrativa do Estado e a fixação de limites às interferências judiciais sobre a atividade administrativa. A adoção dessa tese tornará o sistema brasileiro de controle judicial da atividade administrativa mais racional e mais efetivo.

4. Conclusão

É dever de todos os que administram recursos públicos sujeitarem-se aos mecanismos de fiscalização previstos na Constituição Federal, sem que disso decorra interferência indevida entre poderes da República. Ao contrário, faz parte do próprio sistema de freios e contrapesos. O exercício de potestades

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públicas sem o corresponde controle somente é possível em regimes ditatoriais e é incompatível com o princípio do Estado Democrático de Direito.

A sujeição de todas as atividades desenvolvidas pela Administração Pública a controle, nela incluída a atividade administrativa do Judiciário, constitui garantia básica dos cidadãos, além de ser consequência direta e necessária da adoção da teoria da separação dos poderes. O controle é instrumento para a melhoria dos serviços prestados pelo Estado, razão por que a sujeição dos agentes públicos a diferentes mecanismos de controle contribui para a melhoria das tarefas por eles desenvolvidas.

A revisão judicial das deliberações do TCU está circunscrita a questões que digam respeito à não-observância do devido processo legal ou à orientação manifestamente contrária ao Direito. Nestas hipóteses, caberá ao Judiciário a anulação da decisão hostilizada, não havendo espaço para o Poder Judiciário substituir-se ao TCU em relação às competências que a Constituição Federal lhe atribuiu com exclusividade.

O esgotamento da via administrativa não é condição necessária ao acesso ao Poder Judiciário. Todavia, enquanto a existência de processo administrativo fizer sustar violação (ou ameaça) de direito subjetivo do particular, pela interposição de recurso administrativo com efeito suspensivo, não se deve admitir o acesso judicial, diante da ausência de interesse de agir daquele que questiona ato da Administração.

Essa conclusão, é importante que se diga, não afasta a possibilidade de o Poder Judiciário intervir nas decisões administrativas, mas apenas define o momento em que a intervenção judicial na atividade administrativa se torna legítima.

Referências BibliográficasBORGES, Alice Gonzales. “O controle jurisdicional da administração pública”. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 192, p. 49-60, abr./jun. 1993.CARNEIRO. Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.CONTI, José Maurício. A Autonomia Financeira do Poder Judiciário, São Paulo: MP Ed., 2006.COSTA, Luiz Bernardo Dias. Tribunal de Contas: evolução e principais atribuições no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Fórum, 2006.CRETELLA JÚNIOR, José. Dicionário de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1980.DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, JusPodivm, 11. ed. 2009.DINAMARCO, Cândido. Fundamentos do Processo Civil Moderno, Vol. I, São Paulo: Malheiros, 4. ed. 2001.SOUZA, Alfredo José de et al. O novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2005.ZYMLER, Benjamim. Direito administrativo e controle. Belo Horizonte: Fórum, 2005.

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A RESPONSABILIDADE DO JuIz NA CONDuçãO RACIONAL DO PROCESSO

José Renato NaliniDesembargador do TJSPDoutor e Mestre pela uSPAutor de A Rebelião da TogaDocente universitárioPresidente da Academia Paulista de Letras

I. O sujeito juiz numa sociedade fragmentada

A cidadania continua à espera de uma resposta do Judiciário, ao persistente e intensificado reclamo por uma prestação jurisdicional mais célere e eficiente. Embora a eficiência pudesse englobar também a celeridade, é importante enfatizar os dois atributos. Só com a conjugação de ambos a justiça atenderá aos fins para os quais preordenada. Não que haja consenso a respeito da viabilidade nessa conciliação. A cultura tradicional sempre contrapôs a presteza à segurança. Como se uma decisão em prazo razoável não pudesse consistir em resposta segura. Com a segurança possível a um mister humano e falível.

Insistir em segurança jurídica parece rigor excessivo numa era em que a regra é a insegurança. As ameaças contra o planeta deixaram de ser mera potencialidade nefasta. Converteram-se em risco concreto de se inviabilizar continuidade da vida. Para compreender o mundo de hoje é preciso um novo paradigma. É a proposta de muitos pensadores, dentre os quais Alain Touraine, que enxerga o quadro angustiante de uma decomposição da sociedade e o recrudescimento da violência de mil faces. Sua visão é pessimista: “Já não cremos mais no progresso; estamos angustiados pela decomposição das cidades

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e das zonas rurais, pela violência social como também pelas guerras santas”1.O fenômeno da globalização ou da mundialização tornou inviável o

reerguimento da organização social. Cumpre invocar a responsabilidade individual.

“É num apelo cada vez mais radical e apaixonado ao indivíduo, e não mais à sociedade, que procuramos a força capaz de resistir a todas as violências. É neste universo individualista, muito diversificado, que muitos procuram e encontram um “sentido” que não encontramos mais nas instituições sociais e políticas – e que é o único em condições de produzir exigências e esperanças capazes de suscitar uma outra concepção da vida política”2.

A falência da representação, a crise de credibilidade do Estado, a instantaneidade nas comunicações, tudo levou ao ressurgimento do individualismo. Se há uma face cruel nesse fenômeno – a exacerbação do “eu”, o narcisismo, o consumismo irrefreável – existe um contraponto positivo. O indivíduo-juiz pode ser um fator de renovação da Justiça. Aquilo que é mais difícil aos tribunais, colegiados afeiçoados a parâmetros burocratizados e formalistas, hierarquizados na estrutura, avessos à criatividade, não é missão impossível para a pessoa do julgador.

O juiz é um indivíduo. E “o indivíduo enquanto moderno escapa, portanto, aos determinismos sociais, na medida em que é um sujeito autocriador”3. O indivíduo social é rotulado pela posição que a sociedade lhe reservou. O indivíduo moderno experimenta e afirma sua liberdade e pode repelir as pressões. Tem consciência de poder eleger entre o bem e o mal. No momento em que a fragmentação da sociedade impacta o convívio e o mercado procura apoderar-se da conduta de todos, o ser pensante se vê impulsionado a buscar no interior de si mesmo sua unidade como sujeito. Um ser capaz de adquirir e de exprimir uma consciência de si mesmo autofundada. Uma consciência apta a identificar o papel da Justiça numa sociedade desigual, complexa e reivindicante. Isto é o que se propõe ao juiz brasileiro. Apenas isso, empresa viável para quem dispuser de boa vontade. Não se pretende que o juiz se autoproclame um demiurgo ou um herói. “O sujeito não é um sinônimo do eu. O

1 TOURAINE, Alain, Um novo paradigma. Para compreender o mundo de hoje, Petrópolis, Vozes, 2006, p.23.2 TOURAINE, Alain, op.cit., idem, p.25. 3 TOURAINE, Alain, op.cit., idem, p.103.

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eu é o conjunto mutante e sempre fragmentado com o qual nos identificamos, embora conscientes de que ele não tem nenhuma unidade duradoura”4. A persona juiz encontra no individualismo centrado numa consciência ética todas as ferramentas para converter a missão humana de produzir justiça em uma atuação efetiva e eficiente. Por isso, eficaz.

2. De que racionalidade se fala?

O Direito sempre alentou a pretensão de ser Ciência, equiparada às Ciências Naturais ou Exatas.

A ciência moderna é fruto de uma mentalidade que vem de longe. Tal mentalidade tem a ver com o século XVII, que introduziu na cultura ocidental o mito da razão que funda a confiança no progresso indefinido do homem e na possibilidade de sua autoliberação. A este esforço se une ainda a certeza de que não existem outros valores absolutos alternativos à razão mesma5.

O ser humano se vangloria de ser o único, na escala animal, provido de razão. A racionalidade está no centro do pensamento ocidental desde a época pré-socrática. Ela pressupõe a autonomia da vontade e a liberdade de escolha. “Como conceber a criatividade humana ou como pensar a ética num mundo determinista? Esta questão traduz uma tensão profunda no interior de nossa tradição, que se pretende, ao mesmo tempo, promotora de um saber objetivo e afirmação do ideal humanista de responsabilidade e de liberdade”6. Se as ciências conduzissem a uma concepção determinista da natureza, enquanto o ideal democrático se baseia na liberdade, o homem estaria numa encruzilhada melancólica. Isso impõe a busca “de uma nova racionalidade que não mais identifica ciência e certeza, probabilidade e ignorância”7. E pensar que Descartes foi movido pelo desafio de alcançar a certeza. Viveu ele uma era trágica, o “século XVII, um século de instabilidade política e de guerras de religião. Era em nome de dogmas, de certezas religiosas, que os católicos e os protestantes se matavam uns aos outros. Descartes pôs-se em busca de um outro tipo de certeza, uma certeza que todos os humanos, independentemente

4 TOURAINE, Alain, op.cit., idem, p.114.5 TEIXEIRA, Evilazio Borges, Aventura Pós-Moderna e sua Sombra, São Paulo, Paulus, 2005, p.15.6 PRIGOGINE, Ilyia, O Fim das Certezas. Tempo, Caos e as Leis da Natureza, São Paulo, Editora UNESP, 1996, p.14.7 PRIGOGINE, Ilya, op.cit., idem, ibidem.

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de sua religião, pudessem compartilhar. Foi isso que o levou a fazer de seu famoso cogito o ponto de partida de sua filosofia e a exigir que a ciência fosse fundada nas matemáticas, o único caminho garantido para a certeza”8.

A ciência perdeu sua arrogância ao se constatar a impossibilidade de se chegar à certeza definitiva. Hoje, “as ciências participam da construção da sociedade de amanhã, com todas as suas contradições e suas incertezas. Elas não podem renunciar à esperança, elas que, nos termos de Peter Scott, exprimem da maneira mais direta que ‘o mundo, o nosso mundo, trabalha sem cessar para estender as fronteiras do que pode ser conhecido e do que pode ser fonte de valor, para transcender o que é dado, para imaginar um mundo novo e melhor”9.

Mundo novo e melhor que o juiz tem condições de ajudar a edificar na categoria de artífice qualificado de porções – ainda que homeopáticas – do que se convencionou chamar justo concreto.

Mas não conte ele com a contribuição efetiva da racionalidade. Não que ela deixe de ser relevante para quem se proponha a fazer justiça. Inegável que as múltiplas e conflitantes concepções de justiça só poderiam aspirar algum consenso, houvesse concordância a respeito dos diversos padrões de racionalidade.

“Aparentemente, para saber o que é a justiça devemos primeiramente aprender o que a racionalidade exige de nós na prática. Entretanto, alguém que tente descobrir isso imediatamente encontra o fato de que as discussões sobre a natureza da racionalidade em geral e sobre a racionalidade prática em particular são aparentemente tão múltiplas, diversas e difíceis de tratar e de tão difícil solução quanto as discussões sobre a justiça”10.

Se nem se sabe exatamente o que seja a racionalidade, como se ancorar nela para

resolver os problemas postos à apreciação da Justiça? Não se alcança um acordo sobre o tema. “Discordâncias fundamentais sobre o caráter da racionalidade são necessariamente difíceis de resolver. Pois já ao proceder inicialmente de uma maneira, e não de outra, ao abordar uma questão em disputa, aqueles que assim procedem terão suposto que estes procedimentos particulares são o que é racional

8 PRIGOGINE, Ilya. op.cit., idem, p.195.9 PRIGOGINE, Ilya. op.cit., idem, p.196, a citar SCOTT, Peter, Knowledge, Culture and the Modern University, Congres ter gelegenheid van her 75 de lustrum van de Rijksuniversiteit Groningen, 184. 10 MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade?, São Paulo, Loyola, 1991, p.12.

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seguir”11. Um dos signos da contemporaneidade é habitar ela uma cultura na qual a regra é a inaptidão de se alcançar conclusões comuns e racionalmente justificáveis sobre a natureza da justiça e da racionalidade prática. Inaptidão que convive com a apaixonada defesa de “convicções rivais e conflitantes não embasadas na justificação racional”12.

Compreende-se, contudo, a ênfase no discurso da racionalidade. Pode-se falar numa racionalidade no sentido corrente em economia. Ser racional é classificar de maneira coerente os fins últimos, deliberar de forma guiada por princípios como adotar os meios mais eficazes para atingir os próprios fins, escolher a alternativa mais propícia à promoção de tais fins e organizar as atividades de modo que a maioria desses fins venha a ser atendida.

Antes de insistir na racionalidade, portanto, é mais conveniente se ater ao que significa Justiça. Aqui também se poderia optar por inúmeras formulações. Mas “o que quer que o termo Justiça nomeie, é certo que nomeia uma virtude; e, independentemente do mais que o bom raciocínio prático possa exigir, é certo que requer certas virtudes daqueles que o exibem”13.

Esta a chave para uma proposta de aperfeiçoamento da jurisdição a partir das virtudes do indivíduo mais qualificado a implementá-lo. É de virtude que se necessita, não de racionalidade, ao menos como ela nos foi legada pela tradição cartesiana14. Ante a sedutora consistência das argumentações conflitantes, o que se logra atingir é uma inconclusividade que abandona o sujeito às suas preferências pré-racionais. Pré-racionais são as reais influências a que está submetido o julgador ao apreciar uma pretensão. Os fatores emocionais da decisão judicial merecem análise cada vez mais atenta15. Diante de uma lei ambígua e produzida para responder a uma questão pontual, de um volume absurdo de demandas e da convivência de inúmeras e antagônicas posições igualmente defensáveis quanto a um único tema, é de ser repensada a responsabilidade do juiz. O seu compromisso de conduzir o processo racionalmente só poderá resultar de uma consciência ética suficientemente alavancada por sólida formação. Esse o ponto a merecer atenção e investimento.

11 MACINTYRE, Alasdair. op.cit., idem, p.14.12 MACINTYRE, Alasdair. op.cit., idem, p.16.13 MACINGYRE, Alasdair. op.cit., idem, p.35.14 Consultar NALINI, José Renato, A Rebelião da Toga, 2. ed., Campinas, Millennium, 2008, p.147 – O Juiz e o irracionalismo na Ciência do Direito.15 Consultar PRADO, Lídia Reis de Almeida, O Juiz e a Emoção. Aspectos da Lógica da Decisão Judicial, 2. ed., Campinas, Millennium, 2003.

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3. Fazer justiça hoje

O que significa fazer justiça na contemporaneidade? O papel da Justiça, como equipamento estatal encarregado de solucionar conflitos, é considerado imprescindível. Hoje ela atua sob as circunstâncias desta era. “As circunstâncias da justiça refletem as condições históricas sob as quais as sociedades democráticas contemporâneas existem. Isso inclui o que poderíamos chamar de circunstâncias objetivas de escassez moderada de bens e a necessidade de cooperação social para que todos tenham um padrão de vida decente”16. No moderno Estado Democrático a cidadania afirma doutrinas abrangentes distintas ou até irreconciliáveis. Isso é o que Rawls chama de pluralismo razoável17.

Ainda que se não obtenha consenso generalizado sobre a maior parte dos temas, o que não é próprio da sociedade humana, esta é levada a admitir concordância sobre alguns parâmetros. Dentre eles, aqueles fornecidos por um pacto fundante que além de limitar o poder, estabelecer as competências, enunciar direitos e garantias fundamentais, explicita princípios gerais sobre a convivência.

A Constituição contempla a missão de o Estado fazer justiça e impõe a ele a proveja de alguns requisitos. Consagra a separação e a harmonia entre poderes, a inafastabilidade do controle jurisdicional e obriga o equipamento estatal encarregado de dirimir controvérsias a submeter-se ao princípio da eficiência. O que significa eficiência?

Além da capacidade de obter resultados, eficiência remete à aptidão de se conseguir o máximo de proveito com o menor dispêndio de tempo, energia, dinheiro e meios. Eficiência é qualidade exigível a toda Administração Pública, inclusive o Poder Judiciário.

Quanto a este, enfatiza-se a questão da celeridade. Ante a inafastável constatação de que a morosidade do Judiciário é um dos vícios que ninguém ousa negar, cuidou o constituinte de atacá-lo de forma expressiva. A preocupação com a demora no trâmite está presente na nova Carta e foi reforçada com a Emenda Constitucional 45/200418. Chegou o constituinte derivado a inserir um novo direito fundamental à já alentada enunciação do artigo 5o, agora destinado a assegurar a todos, no âmbito judicial e administrativo, “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”19.

16 RAWLS, John, Justiça como equidade. Uma reformulação, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p.118. 17 RAWLS, John, op.cit., idem, ibidem.18 Sobre as causas da lentidão, examinar NALINI, José Renato. A Rebelião da Toga, citada, onde o tema é desenvolvido com maior amplitude.19 Inciso LXXVIII do artigo 5o da Constituição da República, introduzido pela Emenda Constitucional 45/2004.

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A nacionalidade espera que seus juízes saibam interpretar a insistência em uma justiça rápida como um chamado à criatividade para a adoção de estratégias de aceleração na outorga da resposta judicial. Essa a racionalidade com que os magistrados têm de se preocupar ao aceitar o desafio de fazer a justiça contemporânea.

4. Ponto de partida

Para posicionar-se ante as expectativas do destinatário de sua função, encarada para efeito de eficiência mais como serviço público do que na clássica acepção de expressão de soberania estatal, o juiz deverá desarmar-se de alguns preconceitos.

Haverá de encarar a profunda transformação da sociedade e observar como foi que outras instituições reagiram a ela para subsistir. O que era o universo das comu-nicações há algumas décadas? E o das instituições financeiras? E a arte do comércio?

Houve necessidade de readaptação de todos esses setores. Tiveram de se adequar aos novos instrumentos em pleno voo. Sobreviveram. Transformados, mutilados, mas muito mais fortes.

Essa fase de mutações já cessou? Vive-se uma era de estabilidade? Ninguém se ilude: “vive-se, neste instante, uma das mais radicais metamorfoses tecnológicas da história: a acarretada pelos avanços fulminantes em informática e telecomunicações, dois domínios, diga-se de passagem, essenciais para permitir a expansão da capacidade humana de gerir sistemas complexos”20. Em vez de assustar, este tsunami é instigante. Desperta o profissional que foi treinado a exercitar a inércia a um comportamento proativo.

Inspirar-se em outras experiências não é demasia. Ao contrário, pode ser aprendizado. O primeiro preconceito a ser vencido, portanto, é o da autossuficiência. Natural que o ser humano chamado a ser juiz e recrutado para servir ao Judiciário pela porta larga, mas árdua, do concurso público, venha a se sentir uma criatura especial. Ultrapassou um certame severo, enfrentou uma barreira de obstáculos que exigiu estudos, concentração, memorização de um acervo enciclopédico de informações. Toda a legislação, a doutrina e a jurisprudência era lícito presumir que ele dominasse.

A aprovação, a nomeação e a posse podem ser seguidas por uma tendência à elevação da autoestima. A partir do exercício, o juiz passa a produzir jurisprudência e poderia acreditar-se dispensado de estudar. Ao contrário,

20 RICUPERO, Rubens, O Brasil e o Dilema da Globalização, São Paulo, Editora Senac, 2001, p.98/99.

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precisa imbuir-se de humildade que o leve a aprender mais a cada dia. Um só dia em que nada se aprenda é um dia perdido. Quem não mergulha num projeto consistente de educação contínua não está apenas parado. Está a regredir em movimento uniformemente acelerado. A ciência não descansa e o conhecimento é o moto contínuo imprescindível ao crescimento pessoal. Não é apenas o saber. É o saber aplicado: o que extrair do conhecimento novo para aperfeiçoar o exercício de sua função? Como se pode fazer melhor aquilo que já se faz bem? Como fazer mais com menos? Os desafios não cessam e o juiz precisa ter mente irrequieta para nunca estar satisfeito com a sua performance.

A insatisfação deve gerar o compromisso de busca permanente por novas práticas com a finalidade de otimizar seu desempenho. Audácia, coragem e ousadia para adotar estratégias com transparência, equidade no tratamento de todos os parceiros21 e reavaliação periódica para alterar ou corrigir rumos se for necessário.

Uma outra postura relevante é estar aberto à interação. Saber ouvir a voz do povo, mas também outras vozes. O Judiciário não é uma ilha sem comunicação com o continente das misérias. Misérias materiais mas, principalmente, misérias morais. Ele é um repositório de aflições, uma enorme UTI social para onde convergem as falhas de caráter, as promessas descumpridas, os acordos quebrados, os contratos não honrados.

Por que se critica a Justiça brasileira? É sempre destituído de razão aquele que a acusa de lentidão, de hermetismo, de refém da burocracia, de anacronismo e patente ineficiência?

Em lugar da cultura do brio ferido, convém exercitar um modelo novo de contraditório. Por que não se colocar o criticado no lugar do crítico e tentar enxergar sua motivação, entender suas razões? O mea culpa, quando necessário, não é heresia para um juiz empenhado em expurgar a sua instituição de qualquer mácula ou pecadilho.

Há uma generalizada prevenção da magistratura quanto ao papel da mídia. Ela procura refletir a opinião pública ou de alguns setores relevantes quando noticia o insólito. Seria ingênuo acreditar que a imprensa se propusesse a desempenhar a função de defensora do Judiciário. O seu papel é explorar as

21 Em lugar de fazer referência às partes, advogados, Ministério Público, servidores, peritos, testemunhas, mídia, autoridades de outros poderes, todas as pessoas com as quais o juiz se relaciona em sua missão, utilizo-me da expressão parceiros, como análoga ao verbete “stakeholders”, de uso corrente na linguagem empresarial. Na verdade, se justiça é virtude, há um contingente imenso de indivíduos e instituições interessados em concretizá-la. Por isso podem ser chamados parceiros.

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mazelas da sociedade. Ela vive disso e para isso. Mas não se recusa a uma divulgação discreta das boas práticas. Estas podem se multiplicar se o juiz se compenetrar de sua capacidade pessoal de fazer a diferença.

O empresariado foi um setor sob a alça de mira das transformações. Não tem por si o Erário. Subordina-se a uma outra competência. Se não prospera, perece. No Brasil desigual, complexo e composto de muitas ilhas antropológicas22, enfrentou e continua a enfrentar o que Jorge Queiroz chama de armadilhas. Dentre elas, indica:

I) desrespeito aos princípios gerais da interdependência da humanidade; II) inobservância do equilíbrio entre racionalidade econômica e responsabilidade social; III) corrupção; IV) ganância sem limites; V) crimes político-empresariais-financeiros; VI) impunidade; VII) lenta e antiquada legislação processual; VIII) ditadura fiscal – irracionalidade e voracidade arrecadatória dos governantes de todas as esferas; IX) excesso de burocracia; X) transferência nefasta de riquezas do setor produtivo para o improdutivo; XI) legislação por conveniência – medidas provisórias; XII) promoção de necessidades induzidas; do consumismo exacerbado de produtos supérfluos; XIII) miopia e ineficácia gerencial; XIV) ambiente judicial ineficiente para atuar com empresas em crise23.

De forma ainda mais incisiva, o funcionamento do Judiciário brasileiro é cotejado com o de outros Estados-nação:

“Estudos comparados evidenciam que é melhor possuir tribunais bons e leis ruins, do que leis boas e tribunais ruins, sendo poucos os países com ambos de boa qualidade. No Brasil não estamos no melhor dos mundos, pois temos tribunais na sua maioria ineficientes

22 Mercê de sua colonização, de sua dimensão, do cadinho etnológico e de outras causas, o Brasil parece um arquipélago antropológico formado por ilhas pré-históricas, antigas, pré-medievais, medievais, modernas e pós-modernas. Todas flutuando no mesmo mar de incertezas e partilhando de um só tempo e um só espaço. Esse o ambiente que o juiz vai enfrentar ao exercer a jurisdição. 23 QUEIROZ, Jorge, Turnaround Corporativo – Navegando em períodos de turbulência, Florianópolis, IBGT-IBRADD, 2004, p. 36. Interessante observar que a própria noção de turnaround pode servir de reflexão para os juízes proativos. “A expressão turnaround, que em português significa ‘mudar o curso ou direção’ ou ‘reverter a crise’, é uma terminologia muito utilizada no meio empresarial público e privado para fazer referência às ações preditivas, preventivas ou corretivas tomadas por uma empresa ou seus ‘stakeholders’ para lograr obter uma correção de rumo e melhoria de performance ou por uma empresa em crise ou insolvente, tanto na esfera não judicial como na judicial’ (op.cit., p.77). Nada impede que o juiz brasileiro promova o turnaround de sua Vara, de sua unidade judicial, de seu Juizado, de sua turma julgadora, enfim, do espaço que lhe foi destinado a atuar. Como? Isso dependerá de sua criatividade e ousadia.

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e leis com eficácia aquém do necessário para criar um ambiente institucional que proporcione eficiência e segurança jurídica a todos os interessados na recuperação de empresas”24.

Mas da mesma depreciação se extrai a alternativa: é melhor ter tribunais bons. Proposta que deve inspirar o juiz a suprir, com sua proficiência, a inadequação do quadro normativo que lhe é oferecido como ferramenta de trabalho.

Se o juiz estiver com os olhos abertos, mente descontaminada de preconceitos, provido de vontade de converter sua atuação em nicho de eficiência, encontrará fórmulas de operar a mudança de paradigma25 sem a qual o Judiciário continuará imerso em crise. Essa postura não é mais do que imergir na ética judicial, hoje reforçada com a edição de um Código de Ética da Magistratura Nacional, cuja observância é objeto de explícita exortação do Conselho Nacional de Justiça26.

5. Propostas concretas

Propõe-se, a seguir, um conjunto de singelas indicações para um protagonismo transformador do juiz brasileiro, rumo à condução adequada do processo. Mera enunciação desprovida de pretensão de exaurimento das inúmeras possibilidades de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional com o intuito de atender ao princípio da eficiência. Reafirma o autor a sua condição de diletante apenas convicto de que o juiz é o ator principal dessa revolução silenciosa27 que é a mudança no dia a dia do foro.

Incita-se o entusiasta a acrescentar possibilidades de um trato conseqüente ao processo, pois infinitas as vias abertas a quem queira partilhar da gigantesca obra de edificação de uma nova doutrina judicial processual.

24 QUEIROZ, Jorge. op.cit., idem, p.38.25 Mudança de paradigma é expressão criada pelo historiador e filósofo Thomas Kuhn em 1962. JOSÉ EDUARDO CAMPOS DE OLIVEIRA FARIA observa que um paradigma está em crise quando não mais consegue fornecer orientações, diretrizes e normas capazes de nortear o trabalho científico. Sem condições de fornecer soluções, os paradigmas vigentes revelam-se como fonte de problemas e incongruências e transformam o universo que lhes corresponde em sistema de erros (FARIA, José Eduardo. A crise do direito numa sociedade em mudança, Brasília, Editora da UNB, 1988, p.13).26 Código de Ética da Magistratura Nacional, aprovado na 68a Sessão Ordinária do Conselho nacional de Justiça, do dia 6 de agosto de 2008, nos autos do Processo no 200820000007337.27 O Prêmio Innovare – O Judiciário do Século XXI, tem contemplado as boas práticas resultantes de um protagonismo individual e coletivo dos integrantes da Magistratura. A coletânea editada em 2006 pelo Centro de Justiça e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2006, sob o título “A Reforma Silenciosa da Justiça” é uma fonte categorizada de consulta para inspirar os juízes investidos dessa intenção de participar de um projeto que não exclui, mas necessita da atuação de muitos agentes.

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5.1 Garimpar o ordenamentoDe tanto criticar o processo, na sua tendência de se converter em finalidade

e abandonar o relevante papel de instrumento da Justiça, pode-se olvidar que o alcance da lei está condicionado ao intérprete. Nem tudo na codificação é burocrático, formalista e procrastinador. O Código de Processo Civil oferece condições para uma utilização afinada com o princípio da eficiência. Basta garimpar a lei e se encontrarão dispositivos de otimização.

Um dos mais importantes é o artigo 244, já considerado a mais bela regra do atual Direito Processual: “Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade”28. Preceito que deveria servir para fechar a fábrica de nulidades que assola a processualística nacional. A receita é o aproveitamento máximo dos atos processuais, só rechaçados se evidenciado, de forma inconteste, o prejuízo que influencie o direito material e se reflita na decisão da causa29. Reflexo dessa norma encontra-se também na fungibilidade recursal ou das ações possessórias30. É a consagração de que o conteúdo vale mais do que a forma, algo que a cultura mais conservadora custa a assimilar.

Mas há outros preceitos moralizadores que podem contribuir para com práticas saudáveis no processo. A litigância de má-fé e a protelação, por exemplo, são coibíveis se houver um zeloso condutor do processo31.

O artigo 262 do CPC precisa estar insculpido na consciência do juiz que se resigna com as demandas paralisadas e desconsidera a regra saudável do impulso oficial. Incumbe ao juiz fazer com que o processo não perca a sua conotação com movimento rumo a um objetivo. Processo tem início subordinado à iniciativa da parte, mas a sua continuidade depende apenas do juiz. Assim é que incumbe ao magistrado determinar a realização de atos urgentes, a fim de evitar dano irreparável32 e conhecer de ofício, em qualquer tempo e grau de jurisdição, de algumas das causas de extinção do processo33.

A faculdade de antecipar a tutela é providência especificamente destinada a

28 STJ-RT. 683/183, in Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. THEOTÔNIO NEGRÃO e JOSÉ ROBERTO FERREIRA GOUVÊA, 41. ed, São Paulo, Saraiva, 2009, p.369.29 STJ, RSTJ 119/621, in CPC citado, idem, ibidem. 30 Artigos 496 e 920 do CPC.31 Artigos 16 a 18, 35, 538 parágrafo único, 599, inciso II, 600 e 601, 740 parágrafo único, 746, § 3o do CPC, entre outros. 32 Artigo 266 do CPC.33 Artigo 267, § 3o, do CPC.

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conferir celeridade ao processo34. Assim como a observância dos prazos – que é dever legal do juiz brasileiro 35– e a obrigação de decidir de plano, ou seja, imediatamente, a impugnação ao valor da causa ou a controvérsia sobre a natureza da demanda36. O dever de conciliar37a todo tempo está no CPC e é tão relevante, que a ele se conferirá particular atenção.

Uma previsão de grande alcance no intuito de acelerar a prestação jurisdicional está no artigo 285-A do CPC. Se a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada. Preceito análogo está no artigo 557 do mesmo Codex, destinado ao relator no julgamento colegiado e que está a clamar por mais intensa implementação.

Também com o objetivo de conferir maior presteza ao trâmite processual, o CPC tem norma cogente para que o juiz conheça diretamente do pedido quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência ou quando ocorrer a revelia38.

Outro preceito que confere poder acrescido ao juiz está no artigo 335 do CPC, que lhe faculta aplicar as regras de experiência comum, propiciadas pela observação do que normalmente acontece e ainda as regras de experiência técnica. É uma evidência cristalina de que o magistrado não precisa ser formalista, mas um solucionador de problemas. As questões concretas submetidas ao juiz não precisam, necessariamente, ser revestidas com a blindagem técnico-jurídica, se puderem ser enfrentadas com o senso comum. O juiz tem de ser um décideur, alguém que resolva uma questão aflitiva. Não um técnico burocrata e insensível às angústias sofridas pelo seu semelhante.

Sua liberdade intelectual está presente em todo o ordenamento. O princípio da livre apreciação da prova ou da sadia crítica é garantido legal, doutrinária e jurisprudencialmente39.

Com a finalidade de mais adequada realização do justo concreto, o Código de Processo propicia ao juiz a salutar iniciativa da inspeção

34 Artigo 273 do CPC.35 Artigo 35, inciso II, da LOMAN – Lei Complementar Federal no 35, de 14.3.1979.36 Artigo 277, § 4o, do CPC.37 Artigos 125, inciso IV, 277, § 1o, 331, caput, 447 a 449, Lei dos Juizados Especiais 22 a 26, etc. 38 Artigo 330 do CPC.39 Artigos 386, 420, parágrafo único, 427 e 437 do CPC.

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judicial40. Quanta vez o olhar atento do julgador é fundamental para proferir a melhor decisão.

Ao exercer o poder de polícia em audiência, o julgador deve zelar para que ela seja – de fato – a oportunidade de se atingir a verdade objetiva e coibir práticas írritas à deontologia profissional. Para abreviar a apreciação e precisar os lindes da causa, imperativo que o juiz se utilize do preceito do artigo 451 do CPC. Não é mera recomendação, mas determinação do legislador que delimita a discussão e racionaliza a duração instrutória41.

O legislador permite ao juiz decidir de forma concisa, de maneira a evitar desnecessário excesso palavrório, uma das causas de disfunção da justiça42. A efetividade do julgamento impõe ao julgador a determinação de providências que assegurem o resultado prático da pretensão procedente43.

Um dos motivos de longevidade das demandas é o recurso oficial, que sujeita ao duplo grau de jurisdição sentenças proferidas contra o Poder Público. Mas as exceções abertas à regra nem sempre são observadas pelo juiz. Se merecerem redobrada atenção, muitas as decisões que se subtrairão ao comando de remessa e a prestação jurisdicional poderá ganhar presteza44.

A uniformização de jurisprudência é um instituto pouco utilizado e poderia reduzir a reiteração de recursos45. Assim como a elaboração de súmulas nos tribunais locais46. Ao juiz de primeiro grau incumbe também verificar se o apelo é admissível, à luz do efeito obstativo do recebimento da apelação ou da súmula impeditiva de recursos47.

O polêmico agravo pode ser decidido rapidamente se o relator elaborar o voto e o submeter à primeira sessão de julgamento, pois obviará a necessidade de ser processado. Mas surtirá efeitos desde logo se lhe for concedida a

40 Artigo 440 e ss do CPC.41 O artigo 451 dispõe: Ao iniciar a instrução, o juiz, ouvidas as partes, fixará os pontos controvertidos sobre que incidirá a prova. Embora se afirme que o dispositivo foi implicitamente revogado pela Lei 8.952/94, que deu nova redação ao artigo 331 e seus parágrafos do CPC (RT. 744/222, JTJ. 195/203), existe acórdão declarando que a fixação dos pontos controvertidos pode ser feita no início da instrução, especialmente porque, se realizada por ocasião do saneamento, “pode gerar discussão sobre prejulgamento e também sobre cerceamento do direito de produzir prova” (Lex-JTA 162/25), in CPC e legislação processual civil em vigor, cit., p. 549.42 Artigo 459 do CPC. 43 Artigo 461 e seus parágrafos do CPC.44 Artigo 475, §§ 2o e 3o, do CPC.45 Artigo 476 e seguintes do CPC.46 Artigo 479 do CPC.47 Artigo 518, § 1o – O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do STJ ou do STF.

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antecipação de tutelas ou a suspensividade. De qualquer forma, pode também ser convertido à forma retida48.

O poder cautelar geral do juiz confere a ele uma dilatada competência e maior responsabilidade49, assim como embargar obra nova50. E todos os processos se submeterão à prioridade estabelecida para os maiores de sessenta e cinco anos, escancarado reconhecimento de que o Judiciário é lento51. Se a Justiça não se tornar o serviço ágil, efetiva e eficaz, em síntese, eficiente, não é improvável que outras leis venham a conceder prioridades para viúvas, para menores, para os enfermos e outros que não podem se subordinar ao ritmo dos serviços judiciais.

Percorreu-se de forma superficial o estatuto de regência do processo, apenas para exemplificar que são muitos os preceitos propiciadores de uma justiça mais eficiente. Cada julgador poderá encontrar muitos outros comandos ou mesmo recados do constituinte, se imergir com afinco no estudo dos princípios processuais contidos na Carta Política52.

Cabe afirmar que o legislador não pode ser acusado de privar o julgador de instrumental apto a aprimorar a justiça. Nem recentemente, diante das várias leis que modernizam o processo, nem no século passado. Foi na primeira metade do século XX que uma forma canhestra de legislar – um decreto-lei – forneceu ao juiz brasileiro duas balizas mágicas para construir soluções justas: os artigos 4o e 5o da Lei de Introdução ao Código Civil. Válidas até hoje, elas permitem superar muitos dos entraves postos por um exacerbado apego ao formalismo estiolante e estéril53.

O processo é muito importante, pois permite corrigir injustiças. Mas, para-doxalmente, um desproporcionado apego às suas regras conduz a uma rematada injustiça. Plenos de razão os Romanos quando reconheciam – summum ius, sum-

48 Artigo 527 do CPC.49 Artigos 798, 799, 804 e 889, parágrafo único, do CPC.50 Artigo 937 do CPC.51 Artigo 1211-A do CPC, acrescido pela Lei 10.173, de 9.1.2001 e considerada compatível com a Constituição da República. 52 Consultar, por exemplo, a obra de OLIVEIRA NETO, Olavo e LOPES, Maria Elizabeth de Castro, organizadores, Princípios Processuais Civis na Constituição, Rio de Janeiro, Campus Jurídico, 2008, onde se adverte: “O estilo tradicional de ensino a partir do exame da legislação deve ceder passo à investigação científica, que exige pleno conhecimento da principiologia jurídica”. Exatamente para detectar os sinais emitidos pela Nação, com vistas a uma Justiça realmente eficiente. 53 Sobre o Decreto-Lei no 4.657, de 4.9.1942 e como ele pode servir ao juiz do Século XXI na incessante busca por uma justiça melhor, consultar NALINI, José Renato. Comentários ao novo Código Civil – Livro Complementar. Das Disposições Finais e Transitórias. Dos Princípios Regedores do Novo Código Civil. Lei de Introdução. Artigos 2.028 a 2.046. Volume XXII, coleção coordenada pelo Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Rio de Janeiro, Forense, 2007, p.215 e seguintes.

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ma injuria – legado tão obscurecido em nossos tempos. Decidir apenas proces-sualmente uma demanda, sem adentrar ao conflito que resta agravado por não ter sido enfrentado, é contribuir para semear a descrença na justiça humana e para aprofundar o fosso que separa o Estado-juiz da comunidade à qual deve servir.

Não se deve perder de vista que processo é ferramenta, não mais do que isso. E ferramenta serve para muitas finalidades. Boas e péssimas. Depende de quem se utiliza dela.

5.2. Valer-se da tecnologiaÉ preciso ratificar a sensação generalizada de que as tecnologias impactaram

todas as atividades54? A transformação do mundo nas duas últimas décadas é manifesta. Para os ainda resistentes à utilização da cibercultura,55 é sensato apenas reconhecer dois fatos. Em primeiro lugar, que o crescimento do ciberespaço resulta de um movimento internacional de jovens ávidos para experimentar, coletivamente, formas de comunicação diferentes daquelas que as mídias clássicas nos propõem. Em segundo lugar, que estamos vivendo a abertura de um novo espaço de comunicação, e cabe apenas a nós explorar as potencialidades mais positivas deste espaço nos planos econômico, político, cultural e humano56.

A revolução tecnológica é irreversível. A partir da instantaneidade da comunicação – uma só das faces imediatamente apreensíveis do fenômeno – a sociedade já não admite outros ritmos. Até ontem, o computador não existia. Hoje, quando o sistema cai, desestrutura-se a nossa rotina.

Não é apropriado colocar a tecnologia, a sociedade e a cultura em compartimentos estanques. A tecnologia é produto de uma sociedade e de uma cultura. “As técnicas carregam consigo projetos, esquemas imaginários, implicações sociais e culturais bastante variados”57. Por trás delas estão as idéias,

54 PIERRE LÉVY critica o uso da metáfora impacto. Indaga ele: “A tecnologia seria algo comparável a um projétil (pedra, obus, míssil?) e a cultura ou a sociedade a um alvo vivo... Esta metáfora bélica é criticável em vários sentidos”... A ele parece “que não somente as técnicas são imaginadas, fabricadas e reinterpretadas durante seu uso pelos homens, como também é o próprio uso intensivo de ferramentas que constitui a humanidade enquanto tal (junto com a linguagem e as instituições sociais complexas). (LÉVY, Pierre, Cibercultura, São Paulo, Editora 34, 2ª reimpressão 2005, p.21). 55 Cibercultura é o conjunto de técnicas – materiais e intelectuais – de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço. Ciberespaço – ou “rede” – é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. (LÉVY, Pierre. op.cit., idem, p. 17). 56 LÉVY, Pierre. op.cit., idem, p. 11.57 LÉVY, Pierre. op.cit., idem, p. 23.

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os projetos, as utopias, os interesses, as estratégias de poder. Tudo aquilo que impele o ser humano a conviver.

A técnica não determina a sociedade, mas a condiciona. “Dizer que a técnica condiciona significa dizer que abre algumas possibilidades, que algumas opções culturais ou sociais não poderiam ser pensadas a sério sem sua presença. Mas muitas possibilidades são abertas, e nem todas serão aproveitadas”58.

É o que ocorre com a cibercultura no Judiciário. Formar bancos de dados, fazer distribuição eletrônica, facilitar o acompanhamento virtual do fluxo e trâmite dos processos ainda é pouco. A conexão direta, ou on line, tem de ir além. Já se recebem petições pela internet. Já se trocam votos, nos tribunais, pela intranet. Funciona o Juizado Virtual59 no âmbito da Justiça Federal60. Inicia-se a experiência dos Foros Virtuais em algumas unidades da Federação61. Os Diários da Justiça passaram a ter circulação eletrônica. A comunicação por rede entre os tribunais é uma realidade. Há leilões virtuais, bloqueios de contas, penhora on line62, investiu-se no Infojus e aperfeiçoaram-se os sites do Judiciário. A certificação digital63 permitiu mais consistente confiabilidade ao sistema e há assinaturas eletrônicas ou digitalizadas das autoridades judiciárias64.

Isso ainda é muito pouco. Por isso já me referi à utopia da Justiça Virtual65. A atividade-meio foi alavancada, mas a atividade-fim pode ser mais vitaminada pela tecnologia.

Se existe possibilidade de petição virtual, por que não pode haver despacho virtual ou mesmo sentença virtual? Por que a sessão de julgamento colegiada,

58 LÉVY, Pierre. op.cit., idem, p. 25.59 O Juizado Eletrônico se tornou possível com o advento da Lei 10.259/01.60 O verbete virtual tem pelo menos três sentidos: o técnico, ligado à informática, o corrente e o filosófico. Aqui, é utilizado no primeiro sentido. Para melhor compreensão, recomenda-se a leitura de “O que é o virtual”, de PIERRE LÉVY, São Paulo, Editora 34, 1997. Desde logo se advirta o virtual é real. 61 O Foro Regional de Nossa Senhora do Ó, em São Paulo, é virtual. Os recursos tirados das decisões ali proferidas são convertidos em papel para julgamento convencional junto ao Tribunal de Justiça. 62 O sistema é denominado Bacen-Jud – Sistema de Atendimento das Solicitações do Poder Judiciário ao Banco Central. Por ele, mediante senha pessoal, o juiz bloqueia diretamente a conta corrente do devedor. 63 A MP 2.200/01 instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras.64 O recurso da assinatura digital – aplicado pela Magistratura para despachos interlocutórios e decisões – autentica a origem e autoria do documento, protege o conteúdo das informações por terceiros não autorizados, garantindo a integridade dos dados. Uma vez que o procedimento vincula a assinatura ao conteúdo do texto, resguarda a privacidade e segurança. (FERREIRA, Ana Amélia Menna Barreto de Castro. Judiciário Real Time, in E-Dicas, cit., p. 213.65 NALINI, José Renato, A utopia da Justiça Virtual, in E-Dicas. O direito na sociedade da informação, organização VALLE, Regina Ribeiro do São Paulo, Usina do Livro, 2005, p. 51/66.

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que é mera ratificação do que já se decidiu até mesmo pela intranet, não pode ser substituída pelo acórdão virtual?

Dir-se-á que em algumas causas é possível a sustentação oral. Para estas, haveria uma sessão especial, em intervalos maiores do que a obrigatória realização semanal de um encontro dispendioso, formalístico e – na realidade – meramente homologatório do que já se encontra decidido66.

No crime, a videoconferência é a única alternativa para uma delinquência cada vez mais organizada e audaciosa. O País não pode arcar com o custo das remoções dispendiosas de infratores perigosos, que exigem aparato incompatível com a prioridade a ser concedida a outras necessidades a serem satisfeitas.

Existe uma potencialidade imensa na proliferação de usos da tecnologia eletrônica – entre outras tecnologias – para conferir ao Judiciário performance compatível com as urgências e expectativas sociais. Cumpre também às Escolas da Magistratura habilitarem os profissionais ao manejo do equipamento e a adquirirem desenvoltura com os programas. Além de os tribunais assumirem o compromisso de exigir tal formação específica aos candidatos a concurso de ingresso à Magistratura. Só assim a carreira se impregnará dessa cibercultura, tão fundamental para o upgrade67 de seu desempenho. A propósito, a função correicional torna-se muito mais efetiva e mais prática, ao se servir da informática. O êxito dessa incursão parece depender mais da diplomacia com que os órgãos correicionais conseguirem obter as informações necessárias diretamente das fontes, do que atribuir mais encargos aos aturdidos magistrados68.

66 Todo profissional jurídico experiente sabe que nos colegiados o relator elabora seu voto e o remete para análise do revisor. O convívio facilita um entrosamento que resultará em acordo ou divergência. A estabilidade das turmas julgadoras sela o resultado. Em sua maioria por votação unânime – acordo dos três julgadores – outras vezes com um voto vencido. Assim é que funciona e raramente a sustentação oral gera modificação do julgamento. Os “pedidos de vista” do terceiro juiz refletem mais um gesto de polidez, em respeito ao advogado que sustentou, do que a probabilidade de modificação da orientação da Turma. Isso é o que justifica a possibilidade de apreciação de centenas de recursos em uma única sessão. As divergências já foram examinadas anteriormente. A sessão se restringe a uma teatralização do julgamento que, suprimida – ao menos para a enorme maioria dos feitos – aceleraria a outorga da prestação jurisdicional. 67 O verbete já consta do Dicionário Houaiss: atualização dos componentes do hardware ou do software de um computador. Etimologicamente significa aclive, subida, melhoria, aperfeiçoamento. Nesse sentido, integrou-se ao linguajar corrente, para exprimir progresso, ascensão, elevação. 68 Louvável o acompanhamento da produtividade dos magistrados por parte do Conselho Nacional de Justiça. Mais producente, ouso humildemente opinar, seria a sua obtenção mediante aferição do sistema de distribuição cotejado com o da produção registrada no sistema, em lugar de se cometer ao juiz essa obrigação acessória. O magistrado só deveria ser acionado em caso de necessidade de esclarecimento, pois

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A vertente ora explorada é a de gestão racional do processo, subtema do assunto desta publicação: gestão democrática do Poder Judiciário. A discussão sob tal enfoque ainda não se tornou frequente no Brasil. Mas na Europa, uma sociedade informatizada e mediatizada reclama transparência maior de sua Justiça. Vertente que Boaventura Santos considera “a mais polêmica, porque as suas dimensões técnicas são sobredeterminadas pelas suas dimensões políticas. Isto é, ao questionarem a abdicação moderna dos tribunais em serem fontes de informação e de comunicação socialmente relevantes, as novas tecnologias e os novos interesses da comunicação social suscitam a questão da legitimação social e política dos tribunais”69.

A urgência, no Brasil, é atender ao comando fundante de se conferir eficiência à Justiça. Sua legitimidade ainda não ocupa o discurso atual. Sem esse passo, a deslegitimação virá mais rapidamente e derivada de uma constatação singela: Justiça que não funciona é descartável. Não compensa o que nela se investe. Por isso as novas tecnologias da comunicação e da informação devem ser consideradas em seu enorme potencial de transformação do sistema judicial. Notadamente, para o que interessa nestas reflexões, para alavancar a administração e gestão da justiça. Aqui, vislumbra-se “efeito positivo na celeridade e eficácia dos processos judiciais. Podem, por exemplo, substituir tarefas rotineiras, permitir um controlo mais eficaz da tramitação dos processos, melhorar a gestão dos recursos humanos, das secretarias judiciais e das agendas judiciais, permitir o envio de peças processuais em suporte digital, facilitar o acesso às fontes de direito e, por essa via, ajudar os operadores judiciais a conhecer e a interpretar o sistema jurídico, para muitos operadores judiciais, cada vez mais complexos”70.

Servem para muito mais. Neste ponto, a cultura brasileira de ponta é mais ousada do que a matriz, pois é fruto de um cadinho de influências que o velho continente já superou ou desconhece.

Em síntese, a revolução virtual ou digital da cibercultura está em pleno curso. Indaga Stefano Rodatá: “Estamos a caminhar para a vivência de uma democracia como se sonhava na velha Atenas ou para o mundo prefigurado

desacostumado a enfrentar encargo burocrático, poderá comprometer a sua atividade fim para bem atender a mais uma exigência da atividade meio. Os ajustes se farão à medida em que se aferirem os resultados dessa providência que é necessária e relevante.69 SANTOS, Boaventura de Sousa. Os tribunais e as novas tecnologias de comunicação e de informação, in Sociologias, Porto Alegre, ano 7, no 13, jan/jun 2005, p.85.70 SANTOS, Boaventura de Sousa, op.cit., idem, p.90.

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em Orwell?”71. Ou Hobbes teria razão ao enxergar a guerra de todos contra todos, independentemente do instrumental posto à disposição da humanidade? É Boaventura Sousa Santos, ora a colaborar com o Observatório da Justiça Brasileira, quem responde: “A resposta é tão fácil de dar como difícil de executar: depende de nós”72.

5.3. Aprender com as disfunçõesAté o presente, a Magistratura tem se preocupado com a formação técnico-

jurídica de seus membros. Os concursos públicos de provas e títulos replicam o modelo do ensino coimbrão. Compartimentalização de disciplinas, ênfase na ciência jurídica a partir do quadro normativo, discutido pela doutrina, interpretado pela jurisprudência.

A escola de Direito não ensina a pensar. Dispensa à Filosofia tratamento idêntico ao das demais disciplinas. Um semestre ou dois de aulas prelecionais. O mesmo faz com a Ética, a matéria-prima de que se ressente em primeiro lugar este Brasil continental. Ambas deveriam ser preocupação permanente e objeto de uma visão transversal, presentes em todas as disciplinas e na estratégia de aprendizado explorada pela Universidade.

Do universo de profissionais lançados ao pseudomercado de trabalho73 é que se recrutam os juízes. Estes não aprendem a trabalhar na função judicial. Os cursos de iniciação funcional primam por revisar tudo aquilo que já foi repisado mais de uma vez. O sistema ainda prevalente de seleção obriga o candidato a decorar uma enciclopédia de conhecimento jurídico. Depois do bacharelado, ele se vê obrigado a permanecer tempo razoável num curso de preparação mantido por docentes com experiência e que detectaram a previsibilidade do processo seletivo. Fazem uma imersão do candidato no acervo de informações que deve memorizar e o treino é a capacidade mnemônica do futuro juiz.

Ninguém o ensina a sentenciar. Nem a ouvir testemunhas. Falar em

71 RODATÁ, Stefano, Para uma cidadania eletrônica: A democracia e as novas tecnologias de comunicação, in CARDOSO, Gustavo; CARAÇA, João; MONTE-PEGADO, Tiago (coord). Lisboa, Presidência da República – Debates – Os cidadãos e a sociedade de informação, p. 121, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2000, apud SANTOS, Boaventura de Sousa. op.cit., idem, p.89.72 SANTOS, Boaventura de Sousa. op.cit., idem, ibidem.73 O Brasil tem mais de um milhão de advogados e alguns milhões de bacharéis. Dentre estes, muitos não conseguiram ainda ultrapassar a barreira do Exame da OAB, vestibular às avessas adotado pela autarquia profissional para credenciar ao exercício da advocacia apenas os que passarem por esse teste de suficiência.

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psicologia, ética, administração de pessoal, utilização de novas tecnologias ou consequencialismo seria herético. A mudança de rumos imposta pela Enfam é objeto de resistência em inúmeros tribunais. Por isso não é raro que o aprovado, considerado habilitado ao exercício da Magistratura, venha a se mostrar um profissional inapto.

Incapacidade para o trabalho que se traduzirá em dificuldades muito frequentes na crônica das corregedorias. Produção incompatível com as necessidades. Fobia por decidir. Trato difícil com colegas, partes ou com quaisquer pessoas. Compreensível quando se exige dessa criatura o cultivo de memória extraordinária e uma sofisticação de conhecimento técnico anormal para a sua faixa etária. Alguma atipicidade como ser humano haverá de desenvolver nesse processo árduo para lograr aprovação num concurso público.

As corregedorias também não prodigalizam oferta de recuperação destinada aos juízes inaptos. A regra é a apuração das infrações, a aplicação da sanção e a abertura de sindicâncias e processo que, em escala previsível, chegarão à remoção compulsória ou à disponibilidade.

No discurso ainda existe menção à função orientadora. Na prática, ela é quase inexistente. Enquanto não se altera a cultura correicional para que ela seja antes a formadora de um perfil profissional adequado, o juiz que enfrenta óbices ao bom desempenho pode extrair lições mediante análise do que tem acontecido com seus colegas em situação análoga.

Uma das finalidades da sanção é fornecer paradigmas de conduta aos demais, não sancionados, mas potencialmente sujeitos a tanto. Não é diferente o intuito da penalidade aplicada ao juiz improdutivo ou que evidencie disfunção no seu desempenho. Uma pesquisa sobre quais as condutas que geraram sindicâncias, processos administrativos, arquivamentos e punições decerto servirá de roteiro para o juiz cauteloso pautar o seu exercício. Não é demasia, na mesma linha, acompanhar a mídia em sua crescente campanha de patrulha do juiz e do Judiciário, para aferir se essa crítica de fato reveste procedência e se as eventuais falhas no funcionamento da Justiça podem ser corrigidas no plano pessoal ou institucional.

5.4. Exercer criatividadeA circunstância de a justiça existir desde que o homem passou a viver em

sociedade – e que, portanto, tudo nela já se encontra cristalizado – não deve desestimular o juiz de procurar novos caminhos de melhoria. A blindagem

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que reveste a função, da qual se costuma nutrir uma previsível expectativa de comportamento não precisa inibir uma linha pro-ativa. Ao contrário. O molde milenar clama por um redesenho institucional e operativo. Até para o conservador, a possibilidade de se fazer melhor o que já se faz bem deve ser um projeto sedutor.

Pioneirismo e entusiasmo são ingredientes em alta para a reforma permanente da justiça. Uma Constituição que completa 21 anos e uma primeira etapa de reformulações por Emenda que atinge seu primeiro lustro74 não encerram o capítulo do aperfeiçoamento do Judiciário. É próprio das instituições humanas se desgastarem com o passar dos dias. Nada em relação a elas é definitivo ou carece de revisão. A urgência é mais devassada ao se comparar o que ocorreu com outras atividades. Basta examinar o que eram as comunicações, as instituições financeiras, o comércio e os transportes há algumas décadas e o que são hoje. Seria a Justiça a única dentre as tarefas humanas insuscetível de transformação?

Nada é assim no Universo e a Justiça não poderia ser exceção.O discurso do anacronismo prega a intocabilidade da tradição e uma

paralisação muito diferente do equilíbrio. “O equilíbrio não é a meta nem o destino dos sistemas vivos simplesmente porque, na qualidade de sistemas abertos, eles são parceiros do seu ambiente. Esses sistemas são qualificados como ‘abertos’ porque têm a capacidade de importar continuamente energia do ambiente e exportar entropia”75. A Justiça é constantemente acusada de entropia, o que a converte num sistema fechado. Mas não precisa ser assim. Isso ocorreu na ciência e os estudiosos descobriram que os sistemas são capazes de trocar energia. Por isso é “que a deterioração não é inevitável. Os distúrbios podem criar desequilíbrio, mas este pode levar ao crescimento”76.

Nesse sentido, o Judiciário brasileiro pode neste momento assumir-se como um sistema auto-organizador. Ele foi um espaço hermético até há pouco. Não admitia a sua abertura ao restante do mundo. Era uma organização tradicional típica e seu comportamento era “lutar contra o ambiente, considerando-o fonte de rupturas e de mudanças”77. Mantinha-se isolado das transformações

74 Emenda Constitucional no 45, de 8.12.2004.75 WHEATLEY, Margaret J., Liderança e a Nova Ciência. Descobrindo Ordem num Mundo Caótico, São Paulo, Cultrix, 2006, p.95. Entropia é a medida inversa da capacidade de mudança de um sistema. Quanto maior for a entropia, tanto menor será a capacidade de mudança do sistema. 76 WHEATLEY, Margaret J., op.cit., idem, p. 97.77 WHEATLEY, Margaret J., op.cit., idem, p. 99.

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sociais, com o intuito de preservar sua preciosa estabilidade. Por força de uma série de fatores – abertura democrática, emergência de uma sociedade cada vez mais reivindicativa, nova composição do STF, criação do CNJ – muda a sua fisionomia para um sistema auto-organizador. Tende a se tornar mais forte, à medida em que se abre para saudável e instigante interação.

O que caracteriza um sistema auto-organizador? A viabilidade e a flexibilidade de um sistema auto-organizador advêm de sua grande capacidade de adaptar-se à necessidade, de criar as estruturas adequadas ao momento. Nem a forma nem a função determinam isoladamente como o sistema se organiza. Em vez disso, elas são estruturas em processo, reorganizando-se em diferentes formas para manter a sua identidade. O sistema pode permanecer em sua forma presente ou evoluir para uma nova ordem, dependendo do que lhe é exigido. Ele não fica preso a nenhuma estrutura particular, sendo em vez disso capaz de se organizar em qualquer forma que ele considere mais adequada à sua situação presente78.

O vigor da auto-organização permite ao Judiciário se tornar mais ágil e eficaz. Necessidades prementes obrigam a revisão de padrões. Até o pétreo Judiciário se vê a renunciar às estruturas permanentes, com eliminação da “rigidez – tanto física como psicológica – para dar suporte aos processos fluidos por meio dos quais são criadas equipes temporárias para tratar de necessidades específicas e em constante mudança. Elas reduziram as funções a categorias mínimas dotadas de simplicidade; derrubaram paredes e criaram locais de trabalho nos quais pessoas, ideias e informações circulam livremente”79.

Quando é que o Judiciário deixaria a segurança da doutrina essencialmente jurídica para se interessar por administração, organização e método, gestão de pessoas, liderança e outros assuntos? Acordou de vez para o inadiável encontro com o contemporâneo. Sob pena de perecer e se ver substituído por alternativas mais eficientes de resolução de problemas ou de se acomodar na sua preservação

78 WHEATLEY, Margaret J., op.cit., idem, ibidem. Acrescente-se que a conformação do Poder Judiciário no Brasil, com duas justiças comuns e três especiais, dezenas de tribunais e dimensão continental, com graus marcantes de distinção cultural, propicia a constatação de que o fenômeno também varia de acordo com esse quadro. A coordenação exercida pelo CNJ é um saudável indício de padronização mínima ou de adoção de núcleos comuns que transforme o arquipélago de ilhas isoladas numa verdadeira nação judiciária.79 WHEATLEY, Margaret J., op.cit., idem, p.99/100, com recomendação para consultar PETZINGER, Thomas, The New Pioneers: The Men and Women Who Are Transforming the Workplace and the Marketplace, Nova York, Simon and Schuster, 1999.

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como instância meramente simbólica e destituída de relevância social. Os organismos que não se renovam entram em declínio, perecem e desaparecem.

A renovação se faz por abertura de mentes e embora seja válido se servir da experiência em outros setores, mediante contratação de técnicos em gestão, mal não faria se os concursos públicos para ingresso mirassem outros alvos80. Não é a falta de conhecimento técnico o defeito imputado ao Judiciário. As falhas são outras, desvinculadas do aspecto erudição. O juiz encarregado da renovação da Justiça revestirá outros atributos, não necessariamente a qualidade de memorizar direito. Melhor servirá à instituição e ao povo se provido de um temperamento ajustado à carreira81.

Longe de afirmar que para ser juiz alguém deva se ajustar a um estereótipo. Exatamente o inverso: “todos os temperamentos e tipos são importantes, pois é a diversidade que garante a democracia e sustenta a evolução humana. E, como disse Norberto Bobbio, um dos pensadores mais importantes do século XX, ‘a igualdade entre as pessoas somente será possível se a diversidade for reconhecida e respeitada’”82.Uma seleção baseada no objetivo de eleger as melhores características num quadro aberto de possibilidades é a mais consentânea com um Estado de Direito de índole democrática no qual o pluralismo é um valor explicitado no pacto fundamental.

Até há pouco os tribunais se preocupavam com a escolha dos mais cultos. Assim considerados os que provassem capacidade de amealhar um acervo imenso de informações pertinentes e de reproduzi-las quando inquiridos por uma banca examinadora. Agora é chegado o momento de procurar primeiro o ser humano e depois o conhecimento jurídico.

As atitudes pessoais pesam muito mais no desempenho do juiz do que sua familiaridade com o direito. Aferir conhecimento jurídico não permite detectar

80 A ENFAM já sinalizou essa direção, notadamente com a edição de suas Resoluções nos 1 e 2, ambas de 16.3.2009, que estabelecem o Plano de Trabalho e as diretrizes para os conteúdos programáticos mínimos dos cursos de formação para ingresso na magistratura e de aperfeiçoamento.81 Temperamento é uma predisposição inata da mente, ou seja, um conjunto de inclinações naturais, relacionadas sobretudo com os processos mentais de percepção (visão de mundo) e de análise e tomada de decisão, em que inteligências, interesses (aspirações) e valores são determinantes para apontar a direção (CALEGARI, Maria da Luz e GEMIGNANI, Orlando H. Temperamento e Carreira-Desvendando o Enigma do Sucesso, São Paulo, Summus, 2006, p. 20/21. 82 CALEGARI & GEMIGNANI, cit., idem, p. 25. A partir de estudos levados a efeito em todo o mundo, os autores adotaram o resultado das pesquisas levadas a efeito por David Keirsey e Stephen Montgomery para chegar a 16 tipos psicológicos: inspetor, protetor, conselheiro, mente brilhante, crafter, composer, healer, engenheiro, promoter, performer, champion, inventor, supervisor, provedor, professor e marechal de campo (consultar obra citada, p. 31 e ss).

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se o futuro juiz será otimista ou pessimista, flexível ou rígido, valente ou covarde, entusiasta ou deprimido, generoso ou invejoso, humilde ou arrogante, audaz ou tímido, sincero ou falso, leal ou desleal, tenaz ou inconstante, modesto ou vaidoso. Enfim, se terá compromisso com a missão de realizar o justo ou se se comportará como um burocrata desalentado e medíocre83.

Além da inteligência linguística, para poder se comunicar de forma proficiente, o juiz precisa ser dotado de inteligência interpessoal, para que o seu relacionamento não seja prejudicado e comprometa a atuação jurisdicional. Pesquisas levadas a efeito por psicólogos em outras plagas constataram que a Magistratura tende a ser refúgio de muitas personalidades inseguras, que se abrigam na armadura de uma carreira previsível e fechada, que se não vê obrigada a interagir. Não é disso que o Brasil necessita. Fazer justiça não dispensa o envolvimento emocional com a injustiça. A indignação com a ordem injusta, a determinação da vontade para corrigir o que estiver a seu alcance.

Criatividade é algo que não tem receita, nem fórmula preconcebida. É mais uma disposição de espírito de quem queira resolver problemas sem ater-se ao convencional. É a vontade de acertar que requer boa dose de ousadia e coragem. Coragem até para retroceder, na estratégia do erro & acerto que não fornece garantia de absoluto êxito.

Nem sempre o juiz precisa estar sozinho para essa aventura. Pode recorrer tanto à experiência de outros setores, como de outros juízes, mas também não lhe é recusado servir-se da parceria84. O empresariado, a Universidade, a mídia, a Igreja, as ONGs e outras entidades podem contribuir para fornecer paradigmas novos à Justiça. Nenhuma contribuição pode ser descartada quando o objetivo é reduzir a carga imensa de infelicidade que sobrecarrega a espécie pensante em sua efêmera caminhada pelo planeta.

5.5. Assumir as alternativas à JurisdiçãoA rigor, incluir numa análise da responsabilidade do juiz pela condução

racional do processo uma palavra sobre as alternativas à jurisdição seria um

83 Menção empírica a algumas qualidades, baseada em GÓMEZ, Emiliano, Liderança Ética – Um Desafio do Nosso Tempo, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2005, p. 87.84 Não se restrinja o tema às Parcerias Público-Privadas, objeto da Lei 11.079/04 e objeto de um alentado estudo de FERREIRA, Luiz Tarcísio Teixeira, Parcerias Público-Privadas-Aspectos Constitucionais, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2006. Parceria, aqui, é a modalidade de trabalho em cooperação com outros órgãos e entidades, o que não constitui novidade para o Judiciário, que tem parceiros longevos em sua História. Cite-se, como exemplo, os Anexos de Execução Fiscal, mantidos pelos erários interessados, as universidades, com seus juizados de Conciliação e estágios, a Igreja com o trabalho em relação aos menores e carentes.

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despropósito. Afinal, fala-se em processo e as alternativas prescindem dele. Ao menos indiretamente, porém, a abordagem tem reflexos no processo. Se

as alternativas à justiça convencional prosperarem – como parece ocorrer – a avalanche de processos que não retrocede85 poderia encontrar um limite.

O juiz efetivamente preocupado com a missão de pacificar não é um arrogante que superdimensiona a relevância da jurisdição. Esta é uma das formas de harmonizar. Não a única, nem a mais ética. O direito é instrumento, não finalidade. Afinal, “a que título, em virtude de que, em nome de que, a ciência do direito – sem dúvida a mais conjuntural de todas as ciências – teria de assumir o domínio de um discurso de verdade?”86. O direito posto não é uma poção mágica, nem arma infalível para tudo resolver. Muitas e seguidas vezes ele é bem substituído pelo bom senso, pela intuição, pelo conhecimento da alma humana, por um feeling que só o longo exercício na atividade de compor controvérsias pode gerar em alguns – não todos – dos profissionais da área. Se a lei resolvesse tudo, Jean Cruet não teria a menor razão quando escreveu “A vida do direito e a inutilidade das leis”, cuja epígrafe é eloquente: Sempre se viu a sociedade modificar a lei; nunca se viu a lei modificar a sociedade.

Por isso é que o juiz deste início turbulento de novo século e novo milênio é mais um árbitro do que um agente que exprime a soberania estatal. “Quer exerça a sua função numa jurisdição internacional, num tribunal constitucional ou num tribunal ordinário, o juiz tornou-se o árbitro de todos os conflitos de leis que os legisladores não puderam ou não quiseram resolver”87.

Nessa arbitragem de questões que angustiam o ser humano, o juiz sensível pode exercer um protagonismo de insuspeitado relevo. A par de oferecer uma resposta mais pronta e prática, menos dispendiosa e mais eficaz, ele recompõe o moral de uma comunidade debilitada pela inaptidão para o diálogo. A opção por judicializar todos os conflitos, inclusive questiúnculas que não poderiam ser submetidas à complexidade de um equipamento sofisticado e oneroso como o Judiciário, torna a sociedade um aglomerado pueril e tutelado. Incapaz de exercer sua autonomia. Ao mesmo tempo, trivializa a jurisdição. Ela serve para tudo. Talvez venha a servir para nada.

85 A exceção é o resultado que o STF obteve com os julgamentos temáticos e a resolução virtual das repercussões gerais, experiência levada a efeito pelo descortino do Ministro GILMAR FERREIRA MENDES e que deveria ser adotado por todos os tribunais brasileiros. 86 RIGAUX, François. A Lei dos Juízes, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p.9.87 RIGAUX, François. op.cit., idem, p.299.

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O uso de todas as alternativas conhecidas de resolução de conflitos, a latere do Judiciário, tem efeitos benéficos ainda não adequadamente analisados. Soluciona a questão, poupa dispêndio financeiro e temporal, restabelece a crença na solução pacífica das controvérsias, desafoga o Judiciário, reservando-o para as grandes questões, devolve à sociedade a sua condição de órgão formado por pessoas autônomas, aptas ao diálogo, suficientemente adultas para chegar a um ponto ótimo na administração de seus problemas.

Mais ainda, as alternativas de resolução de controvérsias são estratégias eticamente superiores ao processo. Este é heterônomo à vontade dos envolvidos. É a dicção do direito pelo Estado onipotente, que detém o monopólio da força e que exercita a sua soberania mediante a decisão judicial. Nas soluções alternativas cada parte é chamada a manifestar o seu ponto de vista, exercita um contraditório veraz, pois cada qual tem condições de se colocar no lugar do outro. Transige por vontade própria e legitima o ajuste alcançado, que é compreensível, não necessita de uma decodificação como ocorre com a sentença. Restabelece o pressuposto de que sempre existe espaço para o acordo. Fortalece os laços de convivência mediante singular exercício da autonomia.

Por isso é que conciliação, mediação, negociação, transação, arbitragem, rent a judge, sejam quais forem as alternativas, devem ser incentivadas pelo juiz. E a criatividade operaria na direção de encontro de outras fórmulas ainda não implementadas, sempre na convicção de que os problemas são inevitáveis, mas a sua remoção para a continuidade da existência não é impossível.

6. Não se conclua: há muito a percorrer

A proposta de se contemplar a responsabilidade do juiz brasileiro quanto à condução racional do processo é insuscetível de se ultimar. É uma endless task88, algo que perdura e atravessará gerações. Inúmeros enfoques, múltiplas possibilidades de abordagem do papel a ser desempenhado pelo condutor do processo e de sua aptidão para torná-lo mais eficiente.

Todos são chamados a atuar nesse projeto coletivo. Primeiro os juízes, artífices de um obrar que justifica a sua existência. Mas também todas as demais individualidades interessadas em aperfeiçoar um sistema que atinge a todos. A Justiça não é propriedade de juízes, nem de outros profissionais do direito. Ela existe para todos. Admite a participação de todos na sua preservação em permanente reforma. Não pode prescindir dessa participação.

88 Tarefa infindável, expressão correntia na doutrina norte-americana.

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Esse atuar coletivo na superação de fronteiras é fenômeno típico à pós-modernidade. O saber pós-moderno “é um tipo de saber que, após ter refutado as explicações rígidas e as justificações de conjunto, insiste sobre a livre atividade da mente humana, a qual baseando-se sobre uma racionalidade de curto raio, procede de movimento em movimento, mirando legitimações fluidas, parciais, relativas, locais, reversíveis e diferenciadas”89.

O pressuposto de uma gestão democrática do Judiciário legitima esse exercício individual de busca de um cinzelamento na técnica de distribuir justiça. Ninguém está excluído desse desafio. Obviamente, entidades como as associações de classe, as escolas da Magistratura, os tribunais, a Universidade, as instituições culturais, os grupos de pesquisa, o empresariado, a mídia, a Igreja, os demais poderes, os partidos políticos, terão muito a oferecer no projeto de um processo consonante com o estágio já atingido em outros setores da atividade humana.

Muito já se produziu em termos de sugestões de modernização do processo. Delimitar a fluidez dos conceitos processo e procedimento é missão de que os processualistas ainda não se desincumbiram por completo ou a contento. A padronização e uniformização de rotinas pode contribuir, assim como a redução dos fluxos, para um trâmite menos kafkiano das ações.

Reduzir o suporte papel é fundamental, seja para economizar recursos naturais, seja para poupar a Justiça do armazenamento dos autos90. Não é menos importante um treino do profissional do direito – não apenas o juiz – para ser mais módico na produção de peças processuais. A facilidade no uso da informática tornou viável reproduzir longas citações doutrinárias, ampliar

89 FORNERO, G, Postmoderno e filosofia, in ABBAGNANO, N, Storia della filosofia, X, La Filosofia contemporânea 4, Torino, 1996, p.240.90 Enquanto o ser humano aceita ser cremado ou tornar ao pó no sepultamento tradicional, a forma física do processo judicial não pode ser destruída. Tem vocação de perenidade, mercê de entendimento conjunto do Parlamento e do próprio Poder Judiciário. Assim é que o artigo 1.215 do CPC, que dispunha sobre a incineração de processos findos, teve sua vigência suspensa pela Lei 6.246, de 7.10.75. O Provimento CSM 556/97, de 14.2.1997, do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo regulamentou a destruição física de autos de processo arquivados há mais de 5 anos em primeira instância. Mas em medida liminar na ADIn 1.919, ajuizada pelo Procurador Geral da República, o Pleno do STF, em sessão de 2.12.1998 suspendeu, até final decisão da ADIn, a eficácia do Provimento. Posteriormente, ao julgar recurso ordinário impetrado pela Associação dos Advogados de São Paulo – AASP, o STJ declarou a nulidade do Provimento 556/97 (STJ, 2a Turma, RSTJ 158/159). Seria interessante verificar o custo do arquivamento de autos findos em todo o Brasil, a iniciar-se em São Paulo, e ponderar o que se deixa de fazer em termos de investimentos para que a Justiça funcione, ao se destinar verba pública para guardar papel velho. Enfatize-se que a falta de coragem para enfrentar o tema de certa maneira tornou-se inócua diante da deterioração natural e atuação dos fatores climáticos, insetos, infortúnios (incêndios, inundações, etc.) que destruíram em São Paulo boa parte desses arquivos.

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a pesquisa na rede e replicar acórdãos em seu inteiro teor. Isso fez com que as petições se tornassem cada vez mais longas e prolixas. Com reflexo nas decisões.

A sofisticação dos temas nem sempre é real. Questões singelas ganham outra dimensão no linguajar técnico arrevezado e nem sempre inteligível. A repercussão dessa tendência acontece também nos colegiados, inclusive nas sessões plenárias hoje disponibilizadas pela TV ou por redes de intranet. Temas superados, mesmo irrelevantes, motivam longas manifestações dos ainda iludidos pelas gloríolas desse espaço reservado e tão pouco atraente para quem não milita na área.

Imputa-se à linguagem da informática haver sacrificado o vernáculo. Mas há de se reconhecer que nem tudo é nefasto nesse idioma da cibercultura. Seria vantajoso para a Justiça uma parte ao menos dessa contaminação idiomática também viesse a acometer o universo processual, para economizar em palavras, mas prodigalizar a outorga da prestação jurisdicional, mediante uma tão ansiada aceleração.

Não há território vedado a essa cruzada. Ao liderar o processo, o juiz também não poderá prescindir do funcionalismo. Este servidor pode sugerir reformas viáveis, pois experiente nas práticas ainda sob domínio da burocracia. Interessante seria que o juiz motivasse o quadro funcional a atingir índices ótimos de produtividade, premiasse as melhores ideias, favorecesse a emulação mediante propostas criativas como banco de sugestões, saudável competição e incremento da consciência ética. O funcionário pode render muito mais se estiver convencido de que seu desempenho é relevante, está a fazer justiça, não encarregado de tarefa típica da papelocracia.

Enfim, Justiça é assunto de todos. Serve a todos, interessa a todos. Interagir com a comunidade é impositivo para quem queira edificá-la com padrões denunciadores de um estágio civilizatório retumbantemente proclamado no discurso. Infelizmente, nem sempre detectado na realidade e na rotina de quem optou por fazê-la seu ideal existencial.

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DEMOCRATIzAR O ACESSO à JuSTIçA: uMA CONTRIBuIçãO BASEADA EM POLíTICAS PúBLICAS

Rogerio FavretoSecretário de Reforma do Judiciário do Ministério da JustiçaSecretário-Geral Adjunto da Conferência dos Ministros da Justiça dos Países Ibero-americanosEspecialista em Direito Político – uNISINOS e mestrando em Direito de Estado – PuC RSProcurador de carreira do Município de Porto Alegre e Procurador-Geral no período de 1997 a 2004Assessor Especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República (2005) Consultor Jurídico do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome(2006)

Marcelo SgarbossaCoordenador Geral de Democratização do Acesso à Justiça da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da JustiçaMestre em Análise de Políticas Públicas pela università di TorinoEx-Coordenador Executivo do Instituto de Acesso à Justiça – IAJDiretor do Laboratório de Políticas Públicas e Sociais – LAPPuS

Nota introdutória

O presente texto traduz um pouco da concepção e do trabalho desenvolvido na Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ) do Ministério da Justiça, em especial algumas ações e políticas públicas voltadas à universalização do acesso à Justiça.

A Secretaria de Reforma do Judiciário foi criada em abril de 2003, pelo Decreto no 4.685 do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, como órgão de caráter nacional do Ministério da Justiça, com o propósito inicial de impulsionar a aprovação da Reforma do Judiciário, levada a efeito com a Emenda Constitucional no 45, de 2004.

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É o órgão nacional incumbido da articulação entre o Executivo, Judiciário, Legislativo, Ministério Público, Defensoria Pública, Ordem dos Advogados do Brasil, entidades da sociedade civil e organismos internacionais na elaboração e pactuação de propostas de reforma normativa, no plano constitucional e infraconstitucional, voltadas à modernização e administração do Sistema de Justiça. Tem a função estratégica de contribuir para o aperfeiçoamento das instituições de Justiça, com acesso universal e democrático de todos os cidadãos, associado a uma prestação jurisdicional mais rápida e eficiente.

A Secretaria, que reflete uma prioridade do Governo Federal, promove, coordena e sistematiza propostas para o aperfeiçoamento da gestão da Justiça, com o objetivo de torná-la mais célere e acessível à população.

Atualmente, além de dar continuidade e prioridade às reformas normativas processuais ou de direito material, a Secretaria passou a atuar diretamente na execução de políticas públicas para promover a democratização do acesso à Justiça no Brasil e efetivação de direitos, por meio de parcerias com os órgãos e entidades integrantes do Sistema de Justiça.

Nessa ótica do papel e políticas desenvolvidas pela Secretaria de reforma do judiciário é que se direciona este artigo, no sentido de atender à solicitação da AMB – Associação de Magistrados do Brasil e aos organizadores desta obra preparada para o seu congresso nacional, qual seja, aquele de fornecer sugestões práticas ao aperfeiçoamento do Poder Judiciário, com respostas concretas1 tendo em vista que, salvo melhor juízo, as políticas públicas que estão sendo executadas pela Secretaria de Reforma do Judiciário têm sido orientadas justamente no sentido de oferecer ações para a melhoria do Sistema de Justiça no Brasil.

Assim, ao invés de uma reflexão teórica sobre o tema do acesso à justiça, o texto que segue procura aportar subsídios ao debate com enfoque especial nas próprias ações da Secretaria de Reforma do Judiciário.

Por fim, vale sempre lembrar e convidar àqueles que desejarem buscar uma leitu-ra e discussão teórica mais completa e aprofundada sobre o direito fundamental ao acesso à justiça, a obra de Mauro Cappeletti e Bryant Garth2 que se tornou referência

1 Desde já nossos cumprimentos à acertada iniciativa da Associação dos Magistrados Brasileiros de editar a presente obra, visando apresentar propostas concretas e sugestões práticas de circunstância(s) para o aperfeiçoamento do Poder Judiciário. Parece-nos justamente que o momento histórico e os entraves pelo qual o Sistema de Justiça atravessa exigem esforço e cooperação no sentido de encontrar saídas e alternativas para os limites já conhecidos por todos.2 CAPPELLETI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris, 1988.

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na pesquisa e reflexão do tema aqui tratado e que, mesmo considerando ter sido escrita na década de setenta, demonstra-se uma leitura atual e indispensável.

Fica, portanto, do ponto de vista teórico, registrado os limites do texto que segue, mas indicamos desde já o caminho para o leitor que deseja aprofundar-se no tema, esperando que o enfoque na experiência prática possa colaborar com o conjunto da obra e, em consequência, para a sociedade.

1. Democratização e acesso à Justiça: reflexões sobre a

amplitude de significados

A partir de 2007, no segundo ciclo de gestão do Ministério da Justiça, a Secretaria de Reforma do Judiciário definiu a Democratização do Acesso à Justiça como foco central de sua ação. Tal decisão é fruto do acúmulo daqueles que, desde a sua criação, empenharam-se de corpo e alma em contribuir, do ponto de vista do Poder Executivo Federal, para o aprimoramento do Sistema de Justiça a fim de respeitar e garantir os direitos fundamentais.

Assim, entendemos importante ressaltar e inserir na prática, do dia a dia, e no discurso a própria expressão “Democratização do Acesso à Justiça” diante da força e dos compromissos que a própria expressão remete e obriga o Estado e a sociedade a ações promocionais para a concretização deste direito.

Bem de ver que a expressão não é unívoca e remete a inúmeras conexões e significados que precisam, ainda que minimamente, de um pouco de atenção.

À guisa de contextualização, cabe destacar que nossos tribunais – como de resto também todas as instituições públicas – já não são mais os mesmos. Nos últimos anos, a democratização de todos os espaços públicos estatais – e não estatais – tem se tornado uma realidade, felizmente, sem volta. É possível perceber também esta realidade no campo privado: não é raro encontrar trabalhadores da iniciativa privada reclamando mais poder de decisão e participação dentro de suas empresas em que a marca principal é a existência de um dono.

Esse sentimento e vontade de participar dos rumos e das decisões que lhe afe-tam3, seja em que âmbito for – familiar, profissional, associativo, etc – é o refluxo dos anos em que a ditadura militar no Brasil calou sua voz e, portanto, sua ação.

3 Assim como os parlamentos do século XVIII se legitimaram no princípio de que não poderia haver impostos sem que houvesse a aprovação dos representantes do povo (no taxation without representation) também nos estados democráticos, cada vez mais, os cidadãos não reconhecem legitimidade em decisões públicas que lhes afetem diretamente sem que, de alguma forma, não tenham passado por sua aprovação. Esse é, de alguma forma, o resumo da crise de legitimidade enfrentada pelo sistema político no Brasil e em muitos outros países.

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Diante desse contexto, entendemos necessário, ainda que brevemente, discorrer um pouco sobre a questão semântica que envolve democratizar quando temos em mente o acesso à justiça.

Considerando os limites e as finalidades desta contribuição, nos conten-tamos aqui em entender que democratizar significa que as instituições públicas devem franquear o acesso ao povo em todos os sentidos (acesso à informação, às decisões, ao serviço, ao bom atendimento, etc).

A expressão acesso à justiça, por sua vez, também não é unívoca e comporta no mínimo duas ordens de compreensões. A primeira delas, diz respeito ao acesso ao judiciário. Ou seja, de forma singela e objetiva, é garantir e promover o direito fundamental à ação judicial. Tal situação, por si só, já envolve uma série de garantias no processo e fora dele.

Para a supracitada compreensão, vale notar que o Judiciário precisa ser tomado aqui no sentido mais amplo de Sistema de Justiça tendo em vista a necessidade de se entender sempre a instituição judiciária de forma dinâmica: o Judiciário em relação como os demais órgãos e atores da cena judicial, a fim de se evitar a existência de mais uma instituição total, fechada em si mesma, autorreferencial.

Assim, acesso ao Sistema de Justiça também significa que o cidadão tem, dentre outros, o direito ao bom e adequado atendimento por seu advogado particular ou pela assistência jurídica gratuita da Defensoria Pública; o mesmo vale para o atendimento pelos servidores nos cartórios judiciais, para os juízes e promotores, oficiais de justiça e demais servidores do Judiciário.

A segunda ordem de compreensão, que a expressão acesso à justiça remete é aquela de acesso aos direitos. Acessar a Justiça, neste caso, está ligado à ideia de garantir e promover direitos e garantias fundamentais através de políticas públicas em todo o sistema de justiça. Assim, exemplificativamente, quando a Secretaria de Reforma do Judiciário apoia ou promove um evento há, nesse tipo de iniciativa, um potencial para levar informação e, consequentemente, empoderar4 pessoas para o exercício e reivindicação dos próprios direitos.

Seja como for, para uma leitura constitucionalmente adequada da expressão democratizar o acesso à justiça¸ o que importa é tomá-la no seu sentido amplo, integral, dinâmico, garantidor e promotor de um direito fundamental e indispensável num estado democrático, social e republicano.

4 Há quem atribuía a autoria do termo empoderamento – do inglês empowerment – a Paulo Freire. Como faz Leila de Castro Valoura em http://www.paulofreire.org/twiki/pub/Crpf/CrpfAcervo000120/Paulo_Freire_e_o_conceito_de_empoderamento.pdf

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2. Ações públicas afirmativas: concretização de direitos

fundamentais

O “II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais Acessível, Ágil e Efetivo”, firmado pelos Presidentes dos três poderes em 13 de abril de 20095, por proposição do Ministério da Justiça, incorporou desde os seus considerandos o compromisso de “fortalecer a proteção aos direitos humanos”, conferindo prioridade às proposições legislativas sobre temas relacionados “à concretização dos direitos fundamentais, à democratização do acesso à Justiça, inclusive mediante fortalecimento das Defensorias Públicas”, arrolando um conjunto de matérias prioritárias e voltadas à prevenção e reparação das eventuais violações aos direitos dos cidadãos, bem como à responsabilização administrativa e penal dos agentes e servidores públicos causadores dos danos6.

Em complementação às reformas normativas, a Secretaria de Reforma do Judiciário executa ações de efetivação de direitos, por meio do PRONASCI – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, objetivando estruturar as instituições e qualificar o atendimento direto ao cidadão, na defesa e promoção dos seus direitos sociais e fundamentais.

Exemplo típico da necessidade de ações cooperadas entre os três Poderes é o cumprimento das diretrizes e direitos de proteção e prevenção à violência contra a mulher, previstos na Lei Maria da Penha, uma vez que não basta a aprovação de legislação avançada se não houver a implantação dos instrumentos de efetividade e a sua correta aplicação.

A Lei no 11.340, de 7 de agosto de 2006, nasceu da luta de milhares de mulheres e homens inconformados com a violência de gênero, que viola direitos fundamentais e humanos. Leva o nome Maria da Penha em homenagem à saga de uma mulher que, por duas vezes, foi vítima de tentativa de homicídio por parte de seu ex-marido, mas que lutou para reparar as agressões sofridas. O agressor restou condenado, nove anos depois.

A edição da referida Lei cumpre importante ciclo de afirmação dos direitos humanos, em atendimento às recomendações da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e da Convenção de Belém do Pará, ratificadas pelo Estado brasileiro e voltadas à prevenção, punição e erradicação da violência doméstica.

5 Publicado no DOU de 26 de maio de 2009.6 Vide objetivos estratégicos e item I do Anexo do II Pacto de Reforma da Justiça, firmado em 13 de abril de 2009 pelos presidentes dos três poderes e publicado no DOU de 26 de maio de 2009.

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A Constituição Federal determina a criação de mecanismos para coibir esse tipo de crime no âmbito das relações familiares, em favor dos preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana e da igualdade. A nova Lei consagra um novo microssistema jurídico de democratização do acesso à justiça e abordagem sistêmica do problema, através de políticas públicas afirmativas de prevenção em detrimento do tradicional tratamento como crime de menor potencial ofensivo.

Sua aprovação significou um avanço na configuração de novos proce-dimentos democráticos de acesso à Justiça: deu transparência ao fenômeno da violência doméstica e, ainda, provocou um forte debate sobre o tema na sociedade, nas universidades e no próprio meio jurídico. A lei consagrou a proteção da mulher da violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Segundo o Ministro da Justiça, Tarso Genro7:

A lei agora dialoga com os eixos de prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, no sentido de garantir uma vida livre de violência. É extremamente inovadora, ao prever a criação de Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Tais juizados têm competência para resolver os conflitos pela aplicação de medidas penais e cíveis. Por meio da adoção das medidas protetivas de urgência, no mesmo processo a mulher pode obter a condenação criminal do seu agressor e o seu afastamento do lar, bem como fixar pensão alimentícia, a guarda dos filhos e a separação. Se for necessário, o agressor poderá ser preso, já que não se considera mais a violência contra a mulher como delito de menor potencial ofensivo, como algo fora da intervenção do Estado. Agora realmente o Estado tem que ‘meter a colher em briga de marido e mulher’.Tratando-se de um microssistema protetivo que alterou normas de di-versos diplomas legais, por sua importância e especificidade, exige da sociedade atenção especial e dos operadores do direito dedicação e sensi-bilidade agudas, para se apropriarem integralmente das novas disposições.

Considerando esta realidade e os compromissos normativos e políticos da Lei Maria da Penha, o Ministério da Justiça, dentro do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania do Ministério da Justiça –, designou a

7 GENRO, Tarso. “Erradicar a violência contra a mulher”, artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, em 9 de março de 2008.

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Secretaria de Reforma do Judiciário para a ação de sensibilizar as instituições do Sistema de Justiça, a fim de conferir efeito real no cotidiano. Assim, foi instituída a ação de “Efetivação da Lei Maria da Penha8”. Referida ação prevê, dentre outras medidas, o apoio financeiro e institucional aos tribunais de Justiça dos estados para criação de juizados ou varas especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, bem como promotorias especializadas e núcleos da Defensoria Pública para atendimento da mulher.

Essa ação, encampada pela Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, em parceria com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e o Conselho Nacional de Justiça, possibilitou significativa ampliação desses Juizados e as demais estruturas conexas do Ministério Público e da Defensoria Pública9. Conforme defendido em artigo jornalístico:

“(...) a criação desses Juizados representa um largo passo na direção da simplificação dos procedimentos judiciais e da democratização do acesso à justiça, por meio de políticas públicas afirmativas de prevenção e mediação dos conflitos, em detrimento do tradicional tratamento como crime de menor potencial ofensivo. Com a criação dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher um novo formato de processo é construído. A Lei estabelece a tramitação conjunta dos feitos criminais e civis em um só Juízo. Esta nova modalidade permite uma abordagem sistêmica do problema, com maior celeridade e segurança jurídica nas decisões de justiça.

8 A ação denominada Efetivação da Lei Maria da Penha consiste, em síntese, no apoio, com recursos e a experiência acumulada pela Secretaria e Reforma do Judiciário, aos Tribunais de Justiça, as Promotorias de Justiça e a Defensoria Pública para o fortalecimento e/ou criação de varas e núcleos especializados no enfrentamento à violência doméstica; capacitação dos operadores do direito, agentes de segurança e demais profissionais envolvidos em políticas de gênero; apoio no fortalecimento de Centros de Referência, Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, Casas-Abrigo e a criação de banco de dados unificados para diagnosticar a implementação da lei e possibilitar a parametrização dos procedimentos.9 Ao total, no ano de 2008, a Secretaria de Reforma do Judiciário formalizou o repasse de recursos da ordem de R$ 17 milhões, contemplando onze Tribunais de Justiça dos Estados, com o objetivo de criar e fortalecer 22 Juizados (AC, AL, BA, DF, ES, MG, PE, PI, RJ, RS e SP). O Investimento contemplou ainda a estruturação de 26 Núcleos Especializados de Atendimento à Mulher na Defensoria Pública (AC, AL, AM, BA, CE, DF, ES, MG, PA, PE, PI, RJ, RO, RN, RS, SP, SE e TO) e 14 Núcleos e Promotorias Especializados de Combate à Violência Doméstica e familiar contra a Mulher no Ministério Público (BA, CE, ES, GO, MG, PE, RS e RO) para vigilância e cumprimento da Lei Maria da Penha. Esses investimentos beneficiarão, até o final do ano de 2009, de forma direta, 788.199 pessoas, dentre mulheres em situação de violência doméstica e seus dependentes. Para o ano de 2009 estão previstos investimentos da ordem de 10,5 milhões de reais, contemplando mais 10 Juizados, 8 Promotorias/Núcleos e 7 Núcleos de Defesa da Mulher. Existem recursos orçamentários do PRONASCI até 2001.

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Também a atuação do Magistrado titular desses novos juizados é reno-vada em face da especialidade temática e unificação de competências, bem como pela introdução de equipe de atendimento multidisciplinar, inovações que permitem a criação de um ambiente acolhedor e hu-manitário, para a vítima e crianças envolvidas no conflito familiar 10.

Desse modo, para que a lei produza resultados reais, é fundamental o desenvolvimento de ações afirmativas e políticas públicas de indução e incentivo à estruturação dos órgãos responsáveis por sua aplicação, em especial: a criação, em todos os estados, dos juizados especializados, com atendimento multidisciplinar; o fortalecimento das delegacias de polícia; a instituição de núcleos especializados nas Defensorias e no Ministério Público; mas, principalmente, a capacitação de especificados operadores do Direito.

3. Acesso e saída da Justiça: um falso paradoxo

Diante das altas taxas de congestionamento11 e da consequente morosidade na tramitação das ações judiciais, é constante a preocupação com as políticas que ampliem ainda mais a possibilidade do ajuizamento de novas demandas por parte dos cidadãos. Ou seja, ainda que sem eco na sociedade brasileira, há uma espécie de retórica dos efeitos perversos que se posiciona contrário às políticas que ampliem o acesso da população ao Judiciário.

Mas tal posicionamento, contrário à ampliação do acesso à justiça, não aparece de forma clara no debate público. A retórica da intransigência12, neste caso, se concretiza no direcionamento da agenda do acesso à Justiça para as pautas meramente coorporativas ou na força de grupos de interesse.

Tal atuação, pouco republicana, muitas vezes consegue sucesso, o que resulta em colocar o Sistema de Justiça ao seu serviço, desviando as instituições de seus compromissos constitucionais. O referido sistema está inserido num contexto maior e que bem resume Boaventura de Sousa Santos13:

10 FAVRETO, Rogerio. “Efetivação da Lei Maria da Penha”, artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, em 17 de agosto de 2008.11 A expressão “taxa de congestionamento” é expressão que ganhou notoriedade desde o momento em que o Conselho Nacional de Justiça passou a divulgar através do Justiça em Números a quantidade de demandas em tramitação no Judiciário de cada estado da federação.12 Este é o título da obra de Albert Hischman, para aqueles que não toleram as mudanças e os avanços. HIRSCHMAN, Albert. A retórica da intransigência: perversidade, futilidade e ameaça. São Paulo, Companhia das Letras. 1992.13 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2007. p. 22.

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(...) os tribunais não foram feitos para julgar para cima, isto é, para julgar os poderosos. Eles foram feitos para julgar os de baixo. As classes populares, durante muito tempo, só tiveram contato com o sistema judicial pela via repressiva.

E, com essa classificação – julgar para baixo ou para cima –, se explica os motivos das altas taxas de congestionamento rapidamente alcançadas nos últimos anos: começou-se a julgar para os de baixo, que estão na base da pirâmide e, portanto, em maior número no Brasil.

Então, há que se considerar como positivo o aumento da procura por parte dos cidadãos, sinal que a cidadania chegou a mais pessoas no Brasil.

Mas para sair desse limite que o Sistema de Justiça enfrenta, é necessário pensar através de outras categorias que não aquelas pelas quais o próprio sistema encontrou suas atuais deficiências. É dizer, em síntese e em regra geral, que a abertura de novos concursos públicos, e a consequente ampliação da estrutura das instituições não será suficiente para tornar o Judiciário mais ágil e efetivo.

Não é possível, portanto, resolver este paradoxo acesso-saída, que é verdadeiro, se continuarmos insistindo que é tão somente no Poder Judiciário, e através do processo judicial, que se resolvem as diferenças na sociedade.

Por conseguinte, o paradoxo acesso-saída é falso, pois baseado num sistema que deve ser invocado pelo cidadão como a última – e não a primeira – forma de resolução de conflito.

4. Universalização do acesso à Justiça pela priorização das

ações coletivas

No plano processual, devemos tratar que a universalização do acesso à Justiça passa pela instituição de um Sistema Único Coletivo que priorize e discipline a ação coletiva para tutela de interesse ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, objetivando a racionalização e priorização do processo e julgamento dos conflitos de massa. Essa diretriz é amplamente defendida pelos especialistas, conforme sustenta o Professor Luiz Manoel Gomes, ao comentar o art. 16 do Código Modelo de Processos Coletivos, que confere prioridade de processamento, uma vez que “la dimensión Del dano, por incidir sobre toda uma colectividad, deja claro que lãs acciones colectivas deben tener prioridad em la tramitación”14.

14 GOMES, Luiz Manoel. Comentários al art, 16, em Gidi, y Ferrer Mac-Gregor (coords.), Código Modelo

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Essa demanda, não só dialoga com a ampliação do acesso, como também atende a agilidade da prestação jurisdicional (tratamento concentrado e uniforme em única demanda) e efetividade dos direitos, pela busca da proteção no plano coletivo e de forma mais qualificada.

A assinatura deste II Pacto de Reforma da Justiça propiciou o envio de importante projeto de lei que institui um novo sistema de ações coletivas, através de uma nova regulação da Lei da Ação Civil Pública, voltado à priorização da ação coletiva para tutela de interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, em detrimento da atual cultura de judicialização dos conflitos de massa15.

A fragilidade da atual regulação é apontada em diagnóstico publicado pela Secretaria de Reforma do Judiciário, conforme estudo realizado pelo CEBEPEJ – Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, nas considerações do Professor Kazuo Watanabe sobre a tutela coletiva no Brasil16:

Apesar do expressivo número de ações civis públicas ajuizadas com o objetivo de questionar a legalidade das tarifas em questão, a existência de tais ações coletivas não se mostrou capaz de impedir o ajuizamento concomitante de milhares de ações individuais promovidas por consumidores isolados com objetivo idêntico àquele perseguido nos processos coletivos, tendo ocorrido, em virtude do ajuizamento dessas milhares de ações individuais, sérios prejuízos para a administração de alguns Juizados Especiais Cíveis da Capital de São Paulo.

Este projeto de lei foi fruto de intenso debate produzido por uma Comissão de juristas integrada por representantes de todos os órgãos da Justiça e segmentos representativos das carreiras jurídicas, como o Conselho Nacional de Justiça, entidades da magistratura, o Ministério Público Federal e Estadual, a OAB, a Defensoria Pública, o Instituto Brasileiro de Direito Processual e da academia científica17.

de Procesos Colectivos. Um diálogo Iberoamericano. Comentários artículo por artículo, México, Porrúa-UNAM, 2008, p. 217.15 O PL no 5.139/09 tramita na CCJ da Câmara dos Deputados, sob relatoria do Deputado Federal Antonio Carlos Biscaia.16 WATANABE, Kazuo. Tutela Judicial dos Interesses Metaindividuais – Ações Coletivas. Ministério da Justiça – Secretaria de Reforma do Judiciário. Brasília, setembro de 2007, p. 12.17 A Comissão de Juristas foi designada pela Portaria no 2.481/2008 do Ministério da Justiça, com a finalidade de apresentar uma proposta de readequação e modernização da tutela coletiva, com a seguinte composição: Rogerio Favreto, Secretário de Reforma do Poder Judiciário, que a preside, Luiz Manoel

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Trata-se, no entanto, de um novo marco na regulação dos procedimentos de prevenção e recomposição dos direitos difusos e coletivos, oferecendo não só maior segurança jurídica e efetividade à tutela coletiva, mas ampliação do acesso à Justiça. Dentre as inúmeras inovações e avanços do projeto, no plano da universalização e democratização do acesso à Justiça, destacam-se:

a) ampliação dos direitos coletivos tuteláveis pela Ação Civil Pública: meio ambiente, saúde, educação, previdência e assistência social, trabalho, desporto, segurança pública, transportes coletivos, assistência jurídica integral, serviços públicos, dentre outros;

b) aumento do rol de legitimados para proposição das ações coletivas, como a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados do Brasil e os Partidos Políticos, que passam a atuar na defesa dos direitos coletivos;

c) tratamento especial para permitir a suspensão dos processos individuais, concentrando e priorizando a tramitação da ação coletiva, com mais agilidade e profundidade na sua avaliação e, evitando a proliferação de demandas e a divergência entre julgamentos;

d) a produção das provas é de quem estiver mais próximo dos fatos e capacidade de produzi-las, objetivando maior efetividade;

e) democratização na aplicação do resultado das ações, como reparação de danos ambientais, aos consumidores, etc, com participação dos interessados na decisão da destinação dos valores, inclusive por meio de audiências públicas, possibilitando re-sultado mais efetivo para populações ou locais atingidos por danos coletivos.

Os avanços consubstanciados na proposta terão reflexo amplo e imediato na forma de tutelar os direitos coletivos no Brasil, o que representa um passo importante rumo ao acesso à justiça e à efetividade da tutela coletiva. Aposta-se que a alteração normativa possa contribuir na mudança da cultura da individualizada da judicialização dos conflitos, em especial nos temas de massa, merecendo a priorização administrativa e judicial do uso das ações coletivas.

Gomes Junior, relator, Ada Pellegrini Grinover, Alexandre Lipp João, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, André da Silva Ordacgy, Anízio Pires Gavião Filho, Antonio Augusto de Aras, Antonio Carlos Oliveira Gidi, Athos Gusmão Carneiro, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida, Elton Venturi, Fernando da Fonseca Gajardoni, Gregório Assagra de Almeida, Haman de Moraes e Córdova, João Ricardo dos Santos Costa, José Adonis Callou de Araújo Sá, José Augusto Garcia de Souza, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Luiz Rodrigues Wambier, Petronio Calmon Filho, Ricardo de Barros Leonel, Ricardo Pippi Schmidt e Sergio Cruz Arenhart. A referida comissão debateu por mais de 6 meses e apresentou uma proposta ao Ministro da Justiça, Tarso Genro, que a encaminhou à Casa Civil, oportunidade que os órgãos do Governo da área jurídica deram continuidade ao debate e efetuaram algumas modificações.

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5. A fundamentalidade da Defensoria Pública e a contribuição da

Secretaria de Reforma do Judiciário no avanço da instituição

Não há como falar em acesso à Justiça deixando de lado a instituição que, por excelência e previsão constitucional, está no centro da garantia e promoção deste direito fundamental.

Qualificada pelo legislador constituinte de 1988 como uma das instituições que exercem função essencial, a Defensoria Pública é, ao nosso sentir, a instituição republicana do Sistema de Justiça que mais tem ganhado notoriedade e importância nos últimos anos e a Secretaria de Reforma do Judiciário tem sido verdadeira cúmplice nesse processo.

Com efeito, as articulações para a aprovação da Emenda Constitucional n. 45, de 2004, para o qual a própria Secretaria de Reforma do Judiciário no Ministério da Justiça foi criada, resultaram em obrigar aos Estados da Federação na instituição e estruturação da Defensoria Pública com reconhecimento da autonomia funcional e administrativa, bem como a iniciativa em propor seu orçamento.

A Secretaria de Reforma do Judiciário também esteve presente em inúmeros eventos e iniciativas, tudo visando fortalecer a instituição. Destaque especial para a elaboração dos Diagnósticos da Defensoria Pública. O primeiro – realizado em 2004 – demonstrou a fragilidade institucional e indicou a necessidade de “somar esforços para fortalecer essa instituição tão importante para a consolidação da democracia brasileira” 18.

O segundo estudo – produzido em 2006 – justamente para medir o impacto depois da aprovação da Emenda n. 45 já apontou uma inflexão na consolidação da instituição. Trata-se de um estudo bastante completo e detalhado, que visa conhecer a realidade da instituição. É também, como disse o então Secretário de Reforma do Judiciário, Pierpaolo Cruz Bottini19:

(...) mais que um simples diagnóstico. É um documento que retrata a consagração de um modelo de acesso à Justiça democrático, transparente, participativo. Que aponta uma opção política por um serviço público de qualidade que ainda padece de estrutura precária, mas ganha força e legitimidade a cada dia.

18 Márcio Thomas Bastos, Ministro de Estado da Justiça, na apresentação do “Estudo Diagnóstico da Defensoria Pública do Brasil”, realizado e publicado pelo Ministério da Justiça, dezembro de 2004.19 II Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil. República Federativa do Brasil. Ministério da Justiça. Secretaria de Reforma do Judiciário. 2006, p. 9.

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Atualmente, está em andamento o terceiro diagnóstico, esperando demonstrar a sua consolidação como instituição essencial à Justiça e à efetivação do princípio constitucional da assistência jurídica gratuita à população, bem como as suas limitações e carências estruturais, a fim de orientar os investimentos e as políticas públicas dos governos.

O diagnóstico em execução foi discutido e formatada sua composição de forma democrática por uma Comissão designada pelo Ministro da Justiça Tarso Genro, contemplando representantes dos órgãos estaduais, via CONDEGE – Conselho de Defensores Gerais dos Estados, da Defensoria Pública da União e entidades nacionais representativas das carreiras de defensores públicos: ANADEP – Associação Nacional de Defensores Públicos e ANADPU – Associação Nacional de defensores Públicos da União20.

O conteúdo do III Diagnóstico21, além da formulação coletiva e representativa da citada comissão, contará com o envio de cinco mil questionários para os defensores públicos de todo país, a fim de emitirem sua avaliação pessoal sobre a instituição, atuação concreta na assistência jurídica e outras atividades do seu mister. Ao mesmo tempo, servirá para colher o perfil sócio-profissional dos membros da instituição, bem como suas expectativas e visão da qualidade do trabalho e integração social.

No plano da estrutura dos órgãos, as informações serão colhidas junto aos Defensores-Gerais dos Estados e ao Defensor-geral da União, em formulário apropriado, contemplando, dentre outros dados: forma e tempo de criação; organização administrativa; extensão e/ou limites da autonomia; quadro funcional; orçamento; quantidade de demandas e ações judiciais; perfil das ações e resultados; etc.

20 Portaria no 1428/2008, publicada no DOU de 8 de agosto de 2008. A Comissão é integrada por ROGERIO FAVRETO, Secretário de Reforma do Judiciário, Presidente; LEONARDO LOREA MATTA, representando a Defensoria Pública da União; RENATO E VITTO, representando o Conselho Nacional dos Defensores Públicos-Gerais (CONDEGE); FERNANDO CALMON, representando a Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP); HAMAN TABOSA DE MORAES E CÓRDOBA, representando a Associação Nacional dos Defensores Públicos da União (ANDPU); e JUAREZ PINHEIRO, Coordenador-Geral de Modernização e Administração da Justiça da SRJ/Ministério da Justiça. A secretaria-executiva dos trabalhos está sob responsabilidade do Assessor da Secretaria de Reforma do Judiciário, EDUARDO MACHADO DIAS.21 O III Diagnóstico está em fase de execução, com previsão de conclusão para o mês de novembro de 2009. Com recursos do Ministério da Justiça, via PNUD – Programa das Nações Unidas (BRA 05/036), foi contrata a empresa por seleção INBRAPE – Instituto Brasileiro de estudos e Pesquisas Sócioeconômicos, em processo de seleção pública.

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Assim, a partir do momento em que a instituição consegue enxergar-se, passa a ter instrumentos para lutar por melhores condições de trabalho perante seus gover-nos estaduais e a própria União. Subsidiar o debate público em relação à defensoria talvez tenha sido a grande contribuição que os diagnósticos podem oferecer no forta-lecimento da instituição e na consequente democratização do acesso à justiça.

Para colaborar no fortalecimento da Defensoria Pública, a Secretaria de Refor-ma do Judiciário vem realizando intenso debate e articulação com os próprios atores do processo, gerando várias parcerias e projetos de enfoque especializado.

Exemplo dessa atuação conjunta é a implementação de uma política pública voltada à melhoria do sistema carcerário, com enfoque para a melhoria da segurança pública e garantia dos direitos humanos. Trata-se da ação “Assistência Jurídica Integral aos Presos e Familiares”, que busca garantir a plena observância dos critérios e tempos de progressão dos regimes de pena, atenção especial aos presos provisórios, fiscalização das condições dos presídios, respeito dos direitos humanos dos apenados e priorização das penas alternativas.

O seu enfoque principal é a democratização do acesso à Justiça, conferindo aos presos tratamento digno e respeito aos seus direitos. A assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública busca garantir a plena observância aos critérios de progressão de regime, com atenção especial para os casos em que o preso já cumpriu sua pena e deveria ter retomado ao convívio social.

Por meio do apoio da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, as Defensorias Públicas têm recebido recursos para estruturação, especialmente voltados à ampliação de recursos humanos, aquisição de equipamentos e sistemas de informação, a fim de qualificar o trabalho dos defensores públicos no atendimento às pessoas privadas de liberdade e seus familiares.

Assim, a defensoria pública tem recebido a cooperação do Ministério da Justiça na área de execução penal, para o fortalecimento da assistência jurídica e integral aos presos e familiares. Somente em 2008, por meio do PRONASCI, a Secretaria de Reforma do Judiciário do nosso Ministério aportou 14 milhões de reais para a defensoria pública dos Estados, permitindo a criação e fortalecimento de 19 (dezenove) núcleos especializados no atendimento dos presos, presas e familiares, e, também estruturação de 2 (dois) núcleos da Defensoria Pública da União22.

22 Ao todo, os investimentos no ano de 2008, contemplaram a Defensoria Pública de 17 Estados (AC, AL, BA, CE, DF, ES, MA, PA, PE, PI, RJ, RO, RN, RS, SP, SE e TO) e a Defensoria Pública da União.

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Para o de 2009 serão contemplados mais cinco estados, com investimentos pre-vistos de mais 4 milhões de reais. Os investimentos do Ministério da Justiça, via PRONASCI, beneficiarão, até o início do ano de 2011, de forma direta, mais de 310 mil pessoas, dentre homens e mulheres em situação de prisão e seus familiares.

Outro destaque deste importante eixo é a ação articulada entre o Ministério da Justiça, a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, o Departamento Penitenciário Nacional e as Defensorias para a concepção de mutirão de assistência jurídica específica para mulheres encarceradas.

No plano mais urgente e enfrentamento à crise carcerária, foi criada a Força Nacional da Defensoria Pública em execução Penal, que contará com um “banco” de defensores voluntários e especializados no atendimento criminal e penitenciário, para fazerem frente a demandas excepcionais, nos Estados que não implantaram a Defensoria23 ou estão com estrutura deficitária, bem como apoiar os mutirões carcerários coordenados pelo Conselho Nacional de Justiça. Trata-se de uma cooperação solidária entre os órgãos das defensorias, sob coordenação do Conselho dos Defensores-Gerais dos Estados – CONDEGE, mediante parceria com a Secretaria de Reforma do Judiciário que viabilizará o suporte logístico no deslocamento das equipes da Força Nacional24 e integrará uma coordenação executiva do projeto, juntamente com o referido Conselho, o Departamento Penitenciário Nacional e a Defensoria Pública da União.

Essa Força Nacional da Defensoria Pública em Execução Penal visa garantir a assistência jurídica aos presos nos estabelecimentos prisionais em situação crítica e de forma emergencial, permitindo a normalização pelo posterior e contínuo atendimento regular da supramencionada Defensoria. Será um “pólo da liberdade”, como afirmou o Ministro de Estado da Justiça Tarso Genro em seu discurso na cerimônia de assinatura do referido acordo de cooperação.

É oportuno registrar que o fortalecimento da Defensoria Pública precisa acompanhar o momento histórico que vivemos, em se tratando de acesso à justiça. Não se deseja uma instituição que se fortaleça para reproduzir um sistema esgotado baseado na judicialização da vida e da sociedade. Há que se buscar meios alternativos para resolução de conflitos. Exemplos destes novos caminhos, pretendemos apontar agora.

23 Os Estados de Santa Catarina e Paraná não possuem Defensoria Pública no molde constitucional e Goiás já instituiu formalmente.24 Acordo de Cooperação firmado em 12 de agosto de 2009 entre o Ministério da Justiça (Secretaria de Reforma do Judiciário, DEPEN e DPU) e o CONDEGE, a ser gestado nos termos da Portaria no 2.689/09, instituída pelo Ministro da Justiça Tarso Genro e publicada no DOU de 14-8-09.

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6. Políticas públicas em curso para democratizar o acesso à Justiça:

a mediação como meio alternativo para resolução de conflitos25

A recente experiência na história do Sistema de Justiça brasileiro através da implementação dos juizados especiais cíveis e criminais a partir de 1999 serve de aprendizado para as futuras políticas públicas.

Com efeito, os denominados juizados de pequenas causas26 fizeram com que o acesso à jurisdição fosse ampliado para a população, resultando num aumento exponencial e progressivo das demandas sociais levadas a juízo, garantindo mais acesso e, por outro lado, gerando morosidade e altos níveis de ineficiência e ineficácia pelo grande congestionamento processual. Os juizados especiais federais, desde sua criação, tiveram uma explosão de ações decorrentes da grande demanda que estava reprimida na própria Administração Pública. Por exemplo, no ano de 2008, ingressaram mais de um milhão e duzentos mil novos processos27. Trata-se do paradoxo do sucesso.

Assim, se por um lado a enorme quantidade de demandas que aportaram aos juizados especiais demonstraram a alta conflitividade dos brasileiros e brasileiras; por outro, sinalizaram claramente a necessidade da criação de outros espaços públicos – até mesmo não estatais – de promoção de paz social que não reproduzam o processo e a judicialização dos conflitos.

Esses novos espaços precisam estar ligados a uma nova cultura de paz, baseada em relações de confiança e que exigirá um novo perfil de profissionais, muito distante daqueles profissionais do Direito que desde a sua formação são treinados para o conflito do processo, reproduzindo uma lógica árida e autorreferencial baseada na figura do ganhador-perdedor, do autor e do réu.

Em regra, essa cultura da guerra tem se refletido nas práticas dos tribunais e foros judiciais, alcançando todos os níveis e especialidades de jurisdição, reproduzindo, assim, o caos societário que deveriam solver.

É claro, que também a sociedade tem transferido demasiadamente seus problemas de relacionamento afetivo, sexual, negocial, patrimonial etc, para que

25 As linhas que seguem partem da apresentação das experiências brasileiras feita pelo Ministro da Justiça Tarso Genro e pelo Secretário da Reforma do Judiciário, Rogerio Favreto, sobre “resolução alternativa de litígios” apresentada na XI CONFERÊNCIA DOS MINISTROS DA JUSTIÇA DOS PAÍSES DA LINGUA OFICIAL PORTUGUESA – CPLP, realizado na Guiné Bissau, em 11 e 12 de fevereiro de 2008. A temática da Conferência foi “As diferentes Experiências de Resolução Alternativa de Litígios no seio da CPLP”. Registramos, também, nosso agradecimento ao colega Marcelo Vieira de Campos pelas contribuições no texto originário.26 Denominação inicial que foi alterada na sequência para juizados especiais, a fim de afastar eventual conotação pejorativa de que sua competência seria para demandas de segundo nível.27 Fonte – site do Conselho Nacional de Justiça: www.cnj.jus.br.

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o Judiciário os resolva, concebendo a jurisdição como serviço público que está à disposição de ânimos beligerantes sejam eles quais forem, renunciando ao dever/direito de também ela contribuir no processo de ordem e harmonia social. Mas tal constatação, que envolve a cultura de um povo e suas diferenças sociais históricas, são tão profundas e complexas que reconhecemos aqui nosso limite em abordá-las.

De qualquer forma, cabe ao Estado o papel de indutor de uma nova cultura, baseada na paz e nos direitos humanos. No plano da desjudicialização dos conflitos, registramos a contribuição da Lei no 11.441/07, que pela “nova regra o divórcio, a separação, o inventário e a partilha poderão ser realizados por meio de escritura pública, desde que exista acordo entre as partes e não envolvam interesses de incapazes”28. Trata-se, não só da simplificação e celeridade na resolução dos conflitos, mas do acesso mais fácil à população pela utilização da grande rede de serviços das serventias extrajudiciais.

De parte do Ministério da Justiça, a Secretaria de Reforma do Judiciário tem incentivado muito a cultura da paz e da mediação desde que as faculdades de Direito para os futuros profissionais sejam formados e preparados com técnicas de mediação e direitos humanos, tanto para sua melhor preparação à contemporaneidade do ofício profissional da advocacia, magistratura, carreira do Ministério Público e da Defensoria Pública, como na contribuição da desjudicialização e pacificação de conflitos na própria sociedade.

Trata-se do projeto PACIFICAR, lançado em 200829 pela Secretaria de Reforma do Judiciário, que tem como escopo principal implantar, fortalecer e divulgar a mediação, composição e outros meios alternativos de solução de conflitos, no âmbito das faculdades de Direito, como instrumentos à ampliação do acesso e maior efetividade da Justiça. O público-alvo são os estudantes de Direito, via financiamento aos núcleos de práticas jurídicas das faculdades. No plano da sua estrutura física, recursos humanos e a capacitação teórica e, principalmente, prática em técnicas de mediação extrajudicial e conciliação judicial. A contrapartida social é o desenvolvimento de trabalhos e incursões junto às comunidades mais carentes, em complementação à

28 FAVRETO, Rogerio. “Lei no 11.441/07: um passo adiante na democratização do acesso à Justiça”. Apresentação da Cartilha sobre Inventários, Partilhas, Separações e Divórcios. Ministério da Justiça – Secretaria de Reforma do Judiciário, Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal e Seção São Paulo e ANOREG – Associação de Notários e Registradores do Brasil, 2007.29 O projeto PACIFICAR que integra o PRONASCI – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, foi instituído pela Portaria no 1.587/08, do Ministro da Justiça, e a primeira seleção de projetos ocorreu por meio do Edital de Convocação Pública no 16/08, publicado no DOU de 9 de setembro de 2008.

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tradicional e importante contribuição realizada de assistência jurídica gratuita promovida pelos Centros Acadêmicos de Direito30.

Necessário anotar que esse projeto foi debatido com a Comissão de Ensino Ju-rídico da Ordem dos Advogados do Brasil e o Ministério da Educação, tendo este último já editado nova portaria que confere destaque no Sistema Nacional de Aval-iação da Educação Superior – SINAES, para os cursos de graduação em Direito que contemplarem nos núcleos de prática jurídica, “atividades de arbitragem, conciliação e mediação”31, como uma política indutora do fortalecimento da mediação.

Ao lado do aperfeiçoamento normativo, a redução da cultura da litigio-sidade é essencial para que a Justiça se ocupe da forma mais adequada das questões estruturais e fundamentais da sociedade contemporânea, bem como melhor se prepare para a mediação e conciliação de litígios.

Para tanto, a Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério de Justiça, por meio do PRONASCI, articulou o fortalecimento da mediação e conciliação como uma política pública nacional, a qual está sendo executada em parceria com as escolas de aperfeiçoamento das diferentes carreiras jurídicas. A ação foi incluída no programa permanente da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura, tanto para o conteúdo dos concursos públicos, como na formação continuada dos magistrados32. Também foi instituída, pelo Ministro da Justiça, uma Comissão especial para monitorar esses cursos de capacitação em técnicas de mediação e composição de conflitos, objetivando avaliar os resultados e orientar os eventuais ajustes na condução do seu conteúdo e direcionamento dos investimentos33.

Seguindo diretriz da Reforma do Judiciário (art. 93, inciso IV, da CF, introduzido pela EC no 45/2004), a capacitação continuada dos magistrados é

30 O projeto Pacificar encontra-se em sua segunda edição. No ano de 2009, foi reeditado em novo chamamento público (DOU de 17 de abril de 2009) que recebeu mais 12 projetos de faculdades de Direitos. Em 2008, foram repassados recursos da ordem de R$ 1.500.000,00 para 17 projetos em estados diversos (CE, DF, ES, MG, PB, PE, RJ, RN, RS, SC, SP). Entre os proponentes encontram-se universidades federais, defensorias públicas, OSCIPs e órgãos estaduais e municipais.31 Item 3.3.2 da Portaria no 840/2008, publicada no DOU de 7 de agosto de 2008.32 O projeto piloto foi desenvolvido em parceria com o TRF da 4ª Região que promoveu pela Emagis três cursos, distribuídos nos Estados do RS, SC e PR. Com o sucesso dessa cooperação, passamos a realização de cursos de multiplicadores, já tendo sido realizados dois para juízes federais e estaduais, de forma separada, através de convênio da Secretaria de Reforma do Judiciário e a ENFAM/STJ.33 Comissão especial nomeada pela Portaria no 2.688, publicada no DOU de 13/8/09 e composta pelos juízes ANDRÉ GOMMA DE AZEVEDO e ROBERTO PORTUGAL BACELLAR, representando a magistratura estadual; Desembargador NEFI CORDEIRO, da Justiça Federal; ROGERIO FAVRETO e MARCELO VIEIRA DE CAMPOS, pelo Ministério da Justiça e MARCOS ROSAS DEGAUT PONTES, pela ENFAM.

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orientada pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados. O enfoque do fortalecimento da conciliação integra conteúdo programático do curso de formação para ingresso na carreira34, bem como o aperfeiçoamento regular está sendo operado por meio das escolas oficiais dos tribunais de Justiça Estadual e Federal, através de cursos de capacitação para composição e mediação de conflitos35. Da mesma forma, o Ministério da Justiça firmou parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil, através da sua Escola Nacional e realizou o primeiro curso para multiplicadores36, atendendo às escolas superiores de advocacia das seccionais da entidade e preparando a reprodução regional, já que os advogados capacitados servem como gestores dos futuros cursos locais.

Importante sinalar que essa ação está associada ao esforço que o Conselho Nacional de Justiça tem feito com os mutirões da conciliação, realizados desde 2007 e que, na sua última edição de dezembro de 2008, permitiu a realização de 307.884 audiências, importando em 130.424 acordos judiciais, envolvendo a movimentação econômica de 974 milhões de reais. O índice de conciliação alcançou o percentual de 42%37. Essa edição contou com o apoio expresso do Ministério da Justiça, onde a Secretaria de Reforma do Judiciário foi responsável, dentre outras ações institucionais, pela edição de mais de 260 mil materiais de divulgação e cartilhas informativas distribuídas na semana de conciliação e por meio do projeto “Conciliar é legal” do CNJ.

Esta política de fortalecimento da mediação e conciliação judicial entende que os modelos tradicionais de acesso à justiça encontram-se significativamente esgotados em termos de dar respostas satisfatórias e eficazes ao universo cada vez mais complexo e maior dos conflitos sociais que se criam em nossa sociedade, trabalhando para constituir um novo paradigma cultural, não centrado na lógica do conflito, oriunda da cultura forjada pelo bacharelismo dos cursos de Direito, uma vez que “o profissional da guerra em que se constitui o bacharel de direito, com base formativa altamente dogmática e positivista, tem se projetado diretamente para o tecido social, fazendo com que as relações

34 Inciso VIII do art. 6o da Resolução no 1, de 17 de setembro de 2007.35 Em complementação aos cursos para multiplicadores, já foram firmados convênios com os tribunais de Justiça do RS, SC, RJ e TO, importando em dois milhões de reais investidos pelo Ministério da Justiça.36 O Termo de Cooperação foi firmado pelo Secretário da Reforma do Judiciário, Rogerio Favreto e o Presidente do Conselho Federal da OAB, Dr. César Britto, durante a XX Conferência Nacional dos Advogados, realizada de 11 a 15 de novembro de 2008 em Natal/RN. O primeiro curso de multiplicadores para advogados das 27 seccionais da OAB e suas respectivas escolas superiores de Advocacia, foi realizado no período de 19 a 21 a agosto de 2009, na sede da entidade nacional, em Brasília/DF.37 Fonte CNJ: www.conciliar.cnj.gov.br. Notícia veiculada em 16 de dezembro de 2008.

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intersubjetivas e interinstitucionais se judicializem em proporções agudas, com uma perspectiva desmesurada. Poderia, em vez disso, trabalhar com a solução pacífica e negociada – portanto mais preventiva que curativa – dos problemas que surgem em qualquer comunidade de interesses múltiplos e diversos.”38

Como o problema é de aculturação à composição de conflitos, não depen-dendo tão-somente do Estado-juiz, mas de todos os agentes envolvidos numa relação jurisdicional, faz-se necessário um processo de reeducação dos sujeitos de direito. É com tal perspectiva que o projeto de fortalecimento da mediação quer propor a estruturação de um processo de formação da paz e composição de interesses, propiciando mais prevenção, controle e repressão à criminalidade.

Registrada as ações voltadas aos operadores do direito, merece destaque outra fundamentação técnica e investimento do Governo Federal, direcionada à própria comunidade e sua cidadania. Trata-se do projeto denominado de Justiça Comunitária, que passamos a discorrer como uma forma de atender ao objetivo da presente obra, ou seja, apresentar soluções concretas para os limites encontrados pelo Sistema de Justiça brasileiro.

7. A Justiça Comunitária: uma experiência concreta de meio

alternativo de resolução de conflitos39

Paralelamente à experiência dos juizados especiais, existe um conjunto de iniciativas inovadoras da Justiça brasileira voltadas à aproximação do Poder Judiciário com a comunidade. São as iniciativas de Justiça na Praça e os Juizados Volantes ou Itinerantes, onde o próprio Poder Judiciário desloca sua estrutura e agentes para locais mais populares ou de difícil acesso, propiciando maior efetividade e resolutividade na prestação jurisdicional.

Nesse plano, cabe especial distinção o projeto Justiça Comunitária, iniciado em 2002 pela Juíza Gláucia Falssarelli Foley e, na sequência, acolhido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que concentrou inicialmente sua atuação em duas cidades satélites de Brasília (Ceilândia e Taguatinga)40. Foi através dessa experiência bem sucedida no Distrito Federal que o PRONASCI incorporou-a como uma de suas ações, passando a fazer parte de uma política

38 FAVRETO, Rogerio. Artigo “Novo paradigma à pacificação dos conflitos”, jornal Folha de São Paulo – Tendências/Debates, 3 de dezembro de 2007.39 A ação é coordenada pelo colega Eduardo Machado Dias, integrando ainda à unidade responsável os servidores Marcelo Carambula e William Gonçalves de Siqueira. 40 O projeto foi premiado como a melhor prática da categoria “Tribunal”, da 2. ed. o do Prêmio INNOVARE, realizado em 2005, promovido por várias instituições da Justiça.

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pública permanente, seja no plano de investimentos, seja na indução e apoio institucional à sua replicação.

A Justiça Comunitária funciona por intermédio dos agentes comunitários, que são selecionados dentre os moradores dos bairros. Os mediadores comu-nitários são os responsáveis pela composição dos conflitos da comunidade, no próprio bairro, prestando informações às pessoas que buscam orientação, encaminhando-as aos órgãos públicos competentes e atuando como agentes multiplicadores do projeto da Justiça Comunitária. Toda a organização e o funcionamento do projeto constam de publicação especial editada e distribuída aos parceiros do projeto e aos próprios agentes comunitários em mediação41.

Estes agentes proporcionam para a comunidade assistência individual e coletiva desempenhando as atividades de: (i) orientação jurídica; (ii) animação de redes sociais e (iii) mediação comunitária.

A primeira atividade – orientação jurídica – tem por objetivo democratizar o acesso às informações dos direitos dos cidadãos, decodificando a complexa linguagem legal. Para tanto, os agentes de mediação comunitária produzem, em comunhão com os membros de uma equipe interdisciplinar, materiais didáticos e artísticos, tais como: cartilhas, filmes, peças teatrais, musicais, cordéis, dentre outros42.

A segunda ação – animação de redes sociais – refere-se à transformação do conflito, por vezes, aparentemente individual, em oportunidade de mobilização popular e criação de redes solidárias entre pessoas que, apesar de partilharem problemas comuns, não se organizam, até porque não se comunicam.

Por sua vez, a mediação comunitária é uma importante ferramenta para a promoção do empoderamento e da emancipação social. Por meio dessa técnica, as partes envolvidas no conflito têm a oportunidade de refletir sobre o contexto de seus problemas, de compreender as diferentes perspectivas e, ainda, de construir em comunhão uma solução que possa garantir, para o futuro, a pacificação social. Outra função é a triagem dos conflitos, para serem encaminhados aos órgãos competentes.

O projeto Justiça Comunitária constitui-se como uma alternativa eficaz à morosidade e à inacessibilidade do processo judicial oficial, servindo também

41 Justiça Comunitária. Manual de Capacitação em Técnicas de Mediação. Republica Federativa do Brasil. Ministério da Justiça. Secretaria de Reforma do Judiciário. 2009. 42 Cartilha “O que é Justiça Comunitária”, editada pela Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, 2008, a qual é distribuída para divulgar o projeto e informar à população sobre os serviços disponibilizados.

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como um instrumento de resgate do estatuto do cidadão da comunidade, a fim de restaurar a sua capacidade emancipatória, por meio da autogestão de seus conflitos.

Quando operada na esfera comunitária, a mediação potencializa a sua dimensão emancipatória, na medida em que trata de autodeterminação, de participação nas decisões políticas, reelaborando, assim, o papel do conflito e desenhando um futuro sob novos paradigmas.

Muito embora a experiência tenha sido concebida por iniciativa de um agente público e adotada por um ente estatal, o modelo desenvolvido é paraestatal, porque, além de contar com membros da comunidade como seus principais operadores, é exatamente na esfera comunitária, onde a vida acontece, que se estabelece o locus preferencial de atuação da mediação comunitária. Em síntese, é a Justiça realizada pela, para e na comunidade.

Toda sua atuação exige a implantação de espaços físicos nas próprias comu-nidades para que o núcleo de Justiça Comunitária possa funcionar adequada-mente, é necessário que possua uma estrutura física mínima, com espaços para o atendimento ao público, para o trabalho das equipes multidisciplinares43 e reali-zação das mediações, bem como locais para pôr em prática as oficinas, os cursos, as dinâmicas de grupo e as atividades culturais. Essa infraestrutura física e de recursos humanos é financiada com recursos conveniados pelo Ministério da Justiça44.

Para a implementação da ação, os agentes de mediação comunitária devem ser credenciados e selecionados na própria comunidade que implantará o Núcleo de Justiça Comunitária, justamente para que haja uma sintonia entre os anseios, necessidades e valores locais com as ações a serem desenvolvidas e a escolha dos candidatos.

43 Os núcleos de JUSTIÇA COMUNITÁRIA, apoiados pelo Ministério da Justiça, têm como estrutura a constituição de uma equipe composta por psicólogo, assistente social e assessor jurídico para funcionarem na retaguarda dos agentes comunitários de mediação, tanto no plano da orientação técnica, como das medidas de inclusão dos atendidos em programas sociais governamentais e ou comunitários, visando a efetiva pacificação dos conflitos e recuperação da vulnerabilidade social.44 No ano de 2008, foram financiados 11 núcleos, com investimento de mais de 2,6 milhões de reais do orçamento da Secretaria de Reforma do Judiciário, mediante convênios com os seguintes parceiros: Tribunal de Justiça do Acre, (Rio Branco, Capixaba e Epitaciolândia); Defensoria Pública do Ceará (Tancredo Neves e João XXIIII) e Ministério Público do Ceará, Fortaleza (Pirambu e Grande Messejana), Tribunal de Justiça do Distrito Federal e territórios (Taguatinga e Ceilândia); Prefeitura Municipal de Vitória/ES (São Pedro); Instituto Desembargador Alceu Conceição Machado, Curitiba/PR (Sítio Cercado); Ministério Público de Pernambuco, Recife (Casa Amarela); Instituto Cultural São Francisco, Porto Alegre – RS (Lomba do Pinheiro). Para o ano de 2009, a previsão é de que sejam implementados mais 30 núcleos de Justiça Comunitária, nos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Maranhão, Piauí, Sergipe e Tocantins, totalizando investimentos da ordem de R$ 9.000.000,00. Considerando o biênio 2008/2009, serão 41 núcleos implementados, com o total de 11,6 milhões de reais investidos pelo Governo do Presidente Lula.

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Como perfil recomendado dos agentes, deve ser exigida a idade mínima de 18 anos, que saibam ler e escrever, capacidade comunicativa, comprometimento, liderança e boas referências judiciais e sociais. O processo de seleção deverá ser realizado em etapas, como a divulgação, o recrutamento, o cadastramento, reuniões de esclarecimentos, inscrições dos interessados, triagem, análise da vida pregressa, entrevista e, por fim, a escolha dos candidatos.

Os candidatos selecionados, então, passam por uma capacitação realizada por especialistas, quando recebem noções básicas de Direito, técnicas de mediação, animação de redes sociais, terapia comunitária, direitos humanos, cultura cidadã, entre outras disciplinas. Após o adestramento, os agentes de mediação comunitária ficam aptos a facilitar a resolução de conflitos locais, contando com o apoio técnico de profissionais da área jurídica, assistência social e psicológica, passando por constantes cursos de atualização e aperfeiçoamento.

O trabalho dos agentes de mediação comunitária é exercido de forma voluntária, recebendo apenas ressarcimento de despesas de alimentação e deslocamento. Contudo, um desafio pendente é a capacidade de manter os agentes mobilizados e vinculados ao programa, garantindo sustentabilidade e valorização dos investimentos públicos. A alternativa em discussão no Ministério da Justiça é a concessão de uma bolsa em formação continuada, na esteira de outros programas do Pronasci45.

Por fim, há que se esclarecer que a mediação comunitária como um instrumento alternativo de resolução de conflitos não pretende afirmar-se em substituição ao sistema judicial oficial, mas em sua complementaridade. Por isso, cabe destacar a sua vocação de promover a paz e coesão social nas esferas da comunidade, onde os conflitos havidos, em geral, não são levados ao Poder Judiciário. De regra, a atividade da Justiça formal é absorvida por demandas de grandes corporações ou do próprio Estado, ficando as comunidades economicamente vulneráveis no devido acesso à jurisdição.

A Justiça Comunitária constitui importante instrumento de realização da Justiça, apto a integrar um projeto emancipatório que redimensione o direito, articulando-o sob uma nova relação entre ética e justiça. Nessa direção afirma o Ministro da Justiça, Tarso Genro46:

45 A Lei no 11.530/07 prevê a concessão de bolsas para os participantes dos programas PROTEJO – Proteção de Jovens em Território Vulnerável, Reservista Cidadão e Mulheres da paz, na ordem de R$ 190,00.46 GENRO, Tarso. Entrevista ao Jornal do Comércio de Porto Alegre (Jornal da Lei – Dia do Advogado), veiculada em 11 de agosto de 2009, pp. 4 e 5.

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A Justiça Comunitária aparece como uma das mais importantes ferramentas para a emancipação social. A criação de Núcleos de Justiça Comunitária é uma das ações do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) que o Presidente Lula sancionou como lei e o Ministério da Justiça implementa. Os núcleos estão sob responsabilidade da Secretaria de Reforma do Judiciário, que capacita lideranças da comunidade para resolução de seus próprios conflitos, contribuindo para a pacificação social.

8. Uma breve conclusão para o início de um novo paradigma

A conclusão aqui não traz nenhuma mensagem especial, mas tem o objetivo de aceitar o desafio feito pelos organizadores da obra: apresentar uma proposta concreta para enfrentar os desafios que o sistema de justiça atravessa.

O Ministério da Justiça, através da articulação da Secretaria de Reforma do Judiciário, está desenvolvendo esforços e agregando iniciativas dos órgãos que compõem o Sistema de Justiça (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia) e da própria sociedade civil para consolidar um “Programa Nacional de Democratização do Acesso à Justiça”, onde a resolução alternativa de litígios assume relevância, em especial com a difusão das atuais experiências e constituição de novos meios de solução de conflitos, onde a comunidade também tenha um papel protagonista, voltado a uma efetiva pacificação social.

Nesta direção, partindo do fato de que o conflito é um fenômeno natural nas relações de quaisquer seres vivos47 as instituições do sistema de justiça já estão dando os primeiros passos. É preciso, porém, cada vez mais avançar e caminharmos juntos na busca da universalização e democratização do acesso à Justiça, complementada pela geração de portas de saída da Justiça formal e a produção de meios alternativos de resolução de conflitos, rumo a uma maior pacificação social.

Referências BibliográficasAZEVEDO. André Gomma de (Org). Manual de Mediação Judicial. Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Brasília/DF, 2009.BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Reforma do Judiciário. Estudo – Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil. Brasília/DF, 2004.

47 AZEVEDO, André Gomma de (org). Manual de Mediação Judicial. Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Brasília/DF, 2009, p. 29.

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O CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO E O CENáRIO

POLíTICO, SOCIAL E ECONôMICO QuE ENVOLVE

A ESPECIALIzAçãO DE VARAS CRIMINAIS

Fausto Martin De SanctisJuiz federal titular da 6a Vara Federal Criminal Especializada em

Crimes Financeiros e em Lavagem de Dinheiro em São Paulo/SP

O tema afigura-se extremamente instigante e desafiador na medida em que se apresenta vasto, complexo e que demandaria longa e exaustiva investigação criminológica deste que constitui delito bastante em voga nos dias atuais: lavagem de valores.

Apesar de possuirmos, ainda, doutrina tímida, contudo respeitável, muitas questões fáticas colocam em xeque posicionamentos e métodos investigativos ortodoxos, que não mais possuem a eficácia reclamada, quer no tempo esperado, quer na forma de apuração da verdade.

O conceito “lavagem de valores”, dada sua dinâmica e explosividade, veio abruptamente integrar o rol de crimes graves de forma a revolucionar toda uma construção dogmática, permitindo-me afirmar, nos mesmos moldes com o que ocorreu quando da contribuição de Edwin Sutherland ao conceituar o white-collar crime, que ele provocou e provoca, também neste campo da criminalidade moderna (econômico-financeiro), uma verdadeira reviravolta.

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Ao mesmo tempo em que o conceito se impôs com grande velocidade, já se tinha a noção que a prática delituosa havia evoluído para a adoção de complexos comportamentos visando ludibriar a administração da Justiça, numa atividade marginal, entretanto indispensável, ao crime subjacente e à sua não descoberta, tendo os juízes, a despeito de não possuir nenhum tipo de formação ou reciclagem para acompanhar as mudanças desses tempos atuais, tentado suprir a lacuna com iniciativas particulares, voltados, quando o tempo assim o permite, a participar de cursos isolados de pequena duração e de pouca consistência metodológica.

Mas, não se concebe adequação e atualização apenas de juízes da linha de frente da Justiça (de 1a instância) sem o engajamento daqueles que integram as instâncias superiores.

Vladimir Passos de Freitas certa feita considerou que a necessidade de cursos de reciclagem deve ser admitida e permitida a todos os magistrados, sem que se invoque prejuízos ao excessivo volume de feitos até porque possibilita tornar mais factível e segura a tarefa de julgar, não se podendo, todavia, sem critérios adequados, realizar-se seminários que acarretem pouco rendimento cultural.

Os juízes aplicam a lei a homens concretos e reais e não a seres abstratos. No seu papel de intérprete e distribuidor da Justiça, devem ter a permanente preocupação de bem dimensionar as desigualdades sociais, adotando código próprio de valores.

Para tanto, devem bem visualizar o iter criminis com todas as suas vicissitudes para que procedam uma apreciação (na medida da desigualdade) e propiciem interpretação correta e justa.

O crime de lavagem enquadra-se na classificação de delito de perigo.Os delitos de perigo são aqueles crimes que se contentam com a

probabilidade de dano, significando que, independentemente da efetiva lesão ao bem jurídico, basta, para a consumação, a criação de risco de possível prejuízo a ele.

Fala-se, ainda, em crimes de perigo abstrato e crimes de perigo concreto. Have-ria perigo abstrato, “quando a lei o considera como resultante de certas ações, ba-seada em regras ditadas pela experiência ou pela lição dos fatos”, e se vislumbraria perigo concreto, “... quando necessitar de ser investigado e provado, caso por caso”.1

Ao contrário dos delitos de dano, para cuja consumação se faz indispensável a consequente lesão do bem jurídico, os delitos de perigo contentam-se com a

1 Nesse sentido, Magalhães Noronha (in Direito Penal. São Paulo: Saraiva, vol. 1, 1984, p.118-9).

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criação deste ao bem jurídico, sendo certo que o elemento subjetivo é que fará com que se capitule num ou noutro delito. Não pode o autor, em momento algum, desejar ou assumir o risco de dano, pois sua vontade deve se restringir apenas à criação da situação de perigo.

A nota distintiva dos crimes de perigo, segundo observação de Cristina Mendez Rodriguez2, é precisamente a ausência de um resultado material de lesão a um bem jurídico, encontrando-se neste tipo de delito todos aqueles que não constituam as infrações de resultado.

A justificativa para a existência dessa modalidade delituosa reside na constatação de que em muitos casos o resultado de um delito apresenta-se de difícil quantificação, de molde a tornar-se problemática a aferição da causalidade. Opta-se, então, pela constatação de condutas em momento distinto da efetiva lesão ao bem jurídico. Nesse passo, Paz de la Cuesta Aguado enfatiza a dificuldade da demonstração do nexo causal, o que acarreta problemas de prova da existência de um resultado independente da conduta.3

As reformas de alguns sistemas penais, na esteira da tendência de conferir eficácia ao direito criminal, vêm estabelecendo delitos de perigo, na tentativa de melhor instrumentalizá-lo; diante, portanto, das dificuldades de prova do nexo causal entre a conduta e o resultado, ao legislador incumbirá de antemão, no caso dos tipos de perigo abstrato, estabelecer a probabilidade da lesão que decorre da simples realização de um crime. Nesta hipótese o que se observa não é a definição do perigo, mas a de uma ação perigosa que se consuma com a prática desta, já que dentro dela se apresenta ínsita a noção de perigo.

A vantagem da definição desse tipo de crime é a de proporcionar maior facilidade ao Ministério Público na produção da prova, mas com a desvantagem de dificultar sensivelmente a defesa, já que sua prova se restringiria à comprovação da não realização da conduta ilícita.

O perigo, segundo Nelson Hungria, “não pode ser uma abstrata possibilidade ou uma eventualidade anormal ou incomum. (...) Se tivéssemos obrigados a prevenir a infinita variedade dos possíveis acontecimentos lesivos, teríamos de evitar as ações ou omissões mais comezinhas da vida humana”.4 Por isso não se pode deixar de possibilitar à defesa a possibilidade de arrestar a presunção juris tantum de perigo da conduta realizada.

2 Cf. Los delictos de peligro y sus técnicas de tipificación. Madrid, 1993, p.132.3 Vide Causalidad de los delictos contra el medio ambiente. Valência: Tirant lo Blanch, 1995, p.16.4 In Comentários ao Código Penal, arts. 1 a 27. Rio de Janeiro: Forense, 4. ed., 1958 vol. I, p.196.

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Ao juiz bastará a tarefa de verificar a conformidade formal da ação com o tipo penal.

No que tange aos crimes de perigo concreto, a comprovação da probabilidade de dano ao bem jurídico é tarefa do órgão acusatório, uma vez que o perigo constitui um elemento do tipo, de molde que não tem suscitado maiores discussões.

Entendo, todavia, que a solução dos crimes de perigo abstrato, como colocada, se ressente de maior legitimidade, na medida em que tolhe sensivelmente a tarefa da defesa, com enormes prejuízos ao acusado, numa tarefa exclusivamente reguladora de condutas perigosas.

A solução que parece melhor justificada é aquela que permite à defesa refutar a suposição jurídica, ou seja, a contraprova da perigosidade do ato realizado. É somente neste sentido que se pode compreender o delito de perigo abstrato, sob pena de ofensa ao preceito segundo o qual se impossibilita a punição de alguém por sua periculosidade e não pela execução de conduta supostamente perigosa. Somente nesse diapasão cabe falar em crime de perigo abstrato-concreto, já que a tarefa de apurar a perigosidade de uma conduta passa a ser do juiz, uma vez provocado pela defesa, desejosa de afastar a presunção legal. Verifica-se, com isto, que apenas dessa forma poderá ser constatado se o perigo efetivamente qualifica a conduta.

Logo, diante disto, a tarefa do legislador não pode ser, com base na experiência geral, de simples eleição de condutas perigosas, mas de verificar a relevância causal de uma ação ou omissão em face do bem jurídico que se deseja tutelar. Deve-se lembrar, também, que mesmo a verificação do perigo pode acarretar sérias dificuldades, mormente nos bens jurídicos coletivos ou transindividuais. Pela própria natureza destes bens, torna-se demasiadamente complicado estabelecer seu conteúdo e seu limite, de molde a não se poder afastar do legislador, ou mesmo, do juiz o recurso aos crimes de perigo abstrato.

O bem jurídico, ou seja, o “... estado social desejável que o direito quer resguardar”5, transmudou-se da ótica individual para a coletiva ou difusa, diante da evolução da sociedade, cujos valores expressam a complexidade da vida social e econômica. Se tempos atrás se tutelavam bens de natureza individual, como a vida, a liberdade, o patrimônio, hoje propugna-se a proteção de valores de caráter universal, como o meio ambiente, o consumidor, a ordem econômica

5 In Hans Welzel, Derecho Penal Alemán. Santiago/Chile: Jurídica, 1976, p.15.

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etc. Apenas para exemplificar, impõe-se citar as palavras de Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade com relação à criminalidade econômica:

“...pelos danos materiais e morais que provoca, pela sua capacidade de adaptação e sobrevivência às mutações sociais e políticas, pela sua aptidão para criar defesas frustrando as formas de luta que lhe são dirigidas, a criminalidade econômica é uma ameaça séria a minar os alicerces de qualquer sociedade organizada. Daí que a invenção de formas eficazes de luta seja hoje preocupação das instâncias governativas, judiciais, policiais, etc., de todos os países.”6

Por tais razões, os crimes de perigo abstrato têm se revelado figuras tradicionalmente incorporadas em todos os sistemas de codificação penal, sobrevivendo à evolução da ciência criminal.

Conclui-se, portanto, que se constitui num indiferente penal relegar ao juiz ou ao legislador decidir se a conduta em questão é potencionalmente capaz de provocar uma lesão. Magalhães Noronha já dizia que a diferença entre os tipos (de perigo abstrato e de perigo concreto) depende de um juízo que pode se dar previamente ou a posteriori.7 Nesse sentido, temos também a opinião de Gallas.8 Todavia, não se pode deixar, nos tipos de perigo abstrato, de oportunizar à defesa a possibilidade de arrostar a presunção legal do risco, como forma de prestigiar e facilitar sua ação, atentando-se sempre ao aspecto da relevância causal da conduta praticada em face do bem jurídico tutelado. Com isto, vislumbra-se devidamente justificado e legitimado o crime de perigo abstrato, sem amarrar o legislador na sua árdua tarefa de seleção de definição de condutas com base em bens jurídicos cada vez mais difusos, vagos e abstratos.

Conhecendo os fatos na sua magnitude, detendo a capacidade técnica de bem interpretá-los, tem-se, pois, a condição de fazer face à criminalidade organizada que, para se perpetuar, tem realizado seus voos tortuosos em todas as direções.

A investigação e o processamento dos feitos envolvendo a lavagem de valores geram volumes e mais volumes de papéis que devem merecer atenção redobrada. Verdadeiros casos artesanais que exigem, a um, uma correta manipulação, a dois, criteriosa classificação, a três, condições de interpretação

6 Vide “Problemática geral das infrações contra a economia nacional”. Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários. Coimbra: Coimbra editora, vol.I, 1998, p.319-20.7 Cf. Comentários ao Código Penal, arts. 1 a 27, vol. I, p.196.8 Apud Cristina Mendez Rodriguez (in Los delictos de peligro y sus técnicas de tipificación, p.201).

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e, finalmente, exata compreensão e dimensão da dificuldade inerente ao delito sob apreciação que, necessariamente, demanda tempo. Doutra parte, requer-se agilidade, isto é, verdadeira resposta às angústias que o passar dos anos provoca na comunidade, bem ainda produção correspondente ao volume (“magistratura de massa”), apesar de os pormenores exigirem verificação passo a passo. A máxima “tudo vale para atingir a produção” somente possui sentido se significar trabalho, seriedade, honestidade e condições adequadas.

Encontra-se hoje o juiz mergulhado neste cenário, numa angústia que se eleva à medida que a tomada de decisões exige rapidez acentuada em decisões de relevância ponderando valores já consagrados, agora revisitados, sempre na busca de dar eficácia a um futuro processo com a obtenção da prova no tempo e condições devidos, emergindo primeiro momento de apreensão.

Qual seria, então, o cenário político, social e econômico que envolveria a lavagem e a estrutura de seu combate?

Na primeira hipótese, não se pode deixar de nos remeter ao conceito de bem jurídico, caracterizado, segundo Claus Roxin, como sendo pressuposto inafastável “de um convívio pacífico entre os homens, fundado na liberdade e na igualdade”, enquanto que a subsidiariedade, tão propalada no direito penal significa, também nas palavras do ilustre professor alemão, “a preferência a medidas sócio-políticas menos gravosas”.9

Não se trata de estabelecimento de norma penal simbólica, previsivelmente ineficaz, mas de reconhecimento da imprescindibilidade da intervenção estatal manifestada na proteção de um bem jurídico autêntico, não se satisfazendo, o legislador, com a tipificação criminal do tipo antecedente. Evita-se, assim, que se perpetue o dano jurídico primário, com a ilusão das autoridades incumbidas da repressão e prevenção, legitimado pela evidente ressonância social. Não cabe, pois, alegar-se abstração impalpável porquanto já se verifica na consciência dos cidadãos o repúdio a tal prática, o que afastaria valer-se apenas das pretensões indenizatórias (direito civil) ou de caráter público (direito administrativo).

A complexidade de identificação do bem jurídico do delito de lavagem de valores, pode ser melhor esclarecida, como bem revela Jorge Alexandre Fernandes Godinho10, dos preâmbulos legais (uma vez que não se faz possível

9 Cf. “Que comportamentos pode o Estado proibir sob ameaça de pena? Sobre a legitimação das proibições penais”. Texto traduzido por Luís Greco, entregue no seminário de Direito Penal econômico, ocorrido em Porto Alegre, de 18 a 20 de março de 2004, p.02.10 In GODINHO, Jorge Alexandre Fernandes. Do crime de “branqueamento” de capitais: introdução e tipicidade. Coimbra: Almedina Ed., 2001. p. 123-124.

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concluir da análise sistemática legal, porquanto compreendido normalmente em leis extravagantes), bem como dos textos de direito internacional. Referido autor cita, por exemplo, o preâmbulo da Convenção ONU de Viena contra o tráfico ilícito de entorpecentes (1988), que deixa claro que as condutas provenientes da criminalidade organizada “...minam as bases de uma economia lícita e ameaçam a estabilidade, a segurança e a soberania dos Estados”, além de “invadir, contaminar e corromper as estruturas do Estado, as atividades comerciais e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis”.

Por outro lado, não se pode desprezar a sua característica intrínseca principal, a da autonomia, o que faz não confundi-lo com aquele definido para os crimes antecedentes. O estudo do bem jurídico assume relevância vital, uma vez que refletirá diretamente em outras questões também importantes como a possível incriminação das pessoas jurídicas, a autoria do crime (concurso de crime precedente e lavagem de valores), a ligação com o delito anterior, em havendo prescrição deste último, e no que tange à dosimetria da pena.

A importância da criação das varas especializadas em lavagem de valores (porque não dizer, também dos delitos financeiros) resta evidente já que demonstra o reconhecimento da dificuldade em desvendar verdadeira engenharia financeira de ocultação de graves delitos, a menos que se busque de alguma forma a familiarização de operações financeiras jamais aprofundadas na graduação, revelando-se imperiosa a necessidade de atualização diante da criatividade que sempre envolve a sua prática. Imprescindível a aproximação das autoridades encarregadas à repressão de tais ilícitos, possibilitando a aquisição de um know-how que capacita todos (delegados, procuradores, servidores e magistrados federais) a enfrentar esse tipo de criminalidade.

Como impacto político da implementação das varas especializadas, tem-se o de motivar as instâncias formais de poder (Polícia, Ministério Público Federal, Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF e outras) para o combate desses delitos, havendo, por exemplo, um remanejamento de membros interessados na sua repressão, além de uma maior atenção e cooperação de todos. Deve-se ter em mente que a coordenação das instituições acaba contribuindo para um crescente número de servidores com conhecimento na área, viabilizando o solucionamento da maior dificuldade que temos no esclarecimento do delito de lavagem: a vinculação de valores ilícitos com o crime antecedente (problema de campo). Evita-se, com a especialização, investigações paralelas, quando não conflitantes, diante da falta

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de coordenação. Sabe-se a quem e onde requerer (não somente com relação ao Judiciário) já que antes da especialização tudo era diferente e difuso.

O panorama social alterou-se porquanto já existe na consciência de todos a necessidade da repressão ao delito de lavagem. As operações da Polícia Federal desencadeadas recentemente demonstram que a lavagem tem servido à criminalidade organizada em graves delitos e as pessoas já estão cientes disto, inclusive da importância em bem arquitetar o seu combate.

Tais fatos acarretam ao magistrado um primeiro grau de dificuldade que é o de tomar conhecimento dos volumosos feitos que são encaminhados à Justiça. Há exarcebado volume de papéis e documentos a serem, em tempo razoável, autuados, numerados, para posterior encaminhamento à deliberação judicial. Aumentou, e muito, o atendimento pessoal aos delegados, procuradores da República, advogados, o que tem demandado um elevado dispêndio de tempo do magistrado. Os feitos, na sua maioria, são necessariamente sigilosos para a demonstração de todas as fases da lavagem de valores, havendo, constantemente, requerimentos formulados por advogados ansiosos pela obtenção de acesso, o que tem gerado alguma discussão. Os magistrados têm sido reiteradamente instados a proferir decisões com certa urgência. Tudo isto sem contar as audiências complexas as quais os juízes são obrigados a presidir.

No que tange ao cenário econômico, urge esclarecer que a especialização visa propiciar a obtenção de bens adquiridos ilicitamente, de forma que eles não circulem no mercado, que deve funcionar de forma transparente, preservando-se os investidores. Por vezes, pode-se vislumbrar a afetação da livre concorrência, que apesar de já possuir a proteção dos delitos econômicos, resta sensivelmente abalada com o fluxo de capitais ilícitos investidos em empresas para dar aparência de licitude (fase de integração ou integration). Neste ponto, assume demasiada relevância o concurso do Ministério da Justiça, do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), na tentativa de rastrear, congelar e reaver os valores obtidos com a prática das infrações antecedentes.

Por tudo isso, reclama-se uma estruturação das varas especializadas proporcio-nalmente às exigências de resposta adequada às tais atividades delituosas. Sem isso, certamente um forte sentimento de tratamento discriminado continuará a se perpetuar no seio da nossa sociedade, com descrédito total das instâncias de controle.

A ideia de discriminação da Justiça Penal pressupõe, porém, um tratamento desigual e injustificado de situações semelhantes. As especificidades inerentes ao delito de lavagem denotam, por si só, o quão é difícil, em tempo relativamente

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razoável, a sua revelação, apuração, processamento e julgamento, distinguindo-se, portanto, do restante da criminalidade. Entretanto, o sentimento de subjetivismo e arbítrio das decisões criminais, já corrente e existente entre nós, dificilmente restaria arredado se o Estado não adequar e equacionar tais dificuldades, sob pena de deslegitimação da persecução penal, com riscos enormes à segurança institucional dado o descrédito reinante.

A Justiça Penal corre sério risco caso não sejam minoradas, ou, de preferência, debeladas, as desigualdades que historicamente subsistem no seu funcionamento (os agentes que concluíram o ensino superior, os empregados, aqueles que não têm antecedentes, beneficiam-se de um tratamento privilegiado ao longo de todo o processo, mais, especialmente, na sua fase inicial, o que se reflete no número de casos proporcionalmente menor).11

Ora, tais cenários (político, social e econômico) exigem estruturação compatível com as expectativas geradas com a criação das varas especializadas, levando-se em conta que frequentemente lhes é exigida apreciação de número elevado de pedidos de quebra de sigilo (fiscal e bancário), interceptações telefônicas, sequestros, buscas e apreensões, circunstância que tem demandado constante e imediata atuação do magistrado em casos extremamente delicados que não poderiam merecer leitura apressada apesar da urgência requerida. De relevo anotar que, por serem os feitos em sua grande maioria sigilosos, faz-se necessário que os defensores despachem cada caso pessoalmente com os magistrados para verificação da possibilidade, ou não, de acesso aos autos. Tais situações, devidamente cotejadas com os direitos e prerrogativas dos advogados, têm ensejado frequentes interrupções que impedem o desenvolvimento das atividades judiciais.

Lado outro, o processamento de feitos pela Secretaria, diante do seu volume e complexidade, tornou-se mais difícil, também pelo fato de requerer análise pormenorizada, exigindo-se verificação de todo o processamento para sanear eventuais irregularidades, o que permite afastar feitos que não se vinculam à matéria objeto de especialização.

11 Apesar da enorme visibilidade alcançada pela Declaração dos Direitos do Homem de 1789, onde se podia ler que “les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits”, a primeira previsão jurídica da igualdade deu-se no Virginia Bill of Rights, de 1776, de Madison, referindo-se aí que “all men are by nature equally free and independent and have certain inherent rights”. Tais formulações foram concebidas de forma abstrata. Mesmo durante o período medieval, havia a existência de reflexões sobre a importância da igualdade, nomeadamente na obra de São Tomás de Aquino e, de modo geral, em todo o repensar da filosofia aristotélica, onde se identificava a justiça com o tratamento igualitário (igualdade e justiça são sinônimos). Ser justo é ser igual, ser injusto é ser desigual. Não bastou a consagração do preceito da igualdade, na sua vertente formal, que sofreu, então, o mais duro reverso, com a consagração da dimensão relativa da igualdade.

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Importa, ainda, citar, que o quadro de servidores originalmente previsto para as varas criminais comuns, por sua vez, não tem se mostrado suficiente para o enfrentamento da realidade acima aduzida, havendo, ainda, necessidade de apropriado espaço físico, especificamente para armazenar documentos sigilosos, uma vez que os feitos, frequentemente volumosos, fazem com que as salas destinadas ao seu acondicionamento não se apresentem adequadas.

Assim, a situação das varas especializadas é peculiar e revela a existência de particulares obstáculos que inibem a pronta prestação jurisdicional, devendo se normalizar com a criação criteriosa de mais varas (sempre que estatisticamente se justificar), reflexão detalhada quanto à questão de sua competência, ampliação do número de servidores e lotação de seus juízes.

A Recomendação no 30 do Groupe d’Action Financière sur le Blanchiment des Capitaux (GAFI) ou Financial Action Task Force on Money Laudering (FATF) deixa evidente que “os países devem dotar as suas autoridades competentes, envolvidas no combate à Lavagem de Capitais e ao financiamento do terrorismo, com os recursos financeiros, humanos e técnicos adequados”, não tendo sentido a concepção de todo um sistema de prevenção e repressão sem as condições necessárias para um funcionamento eficaz.

Todas essas assertivas valem tanto para a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e as Cortes Superiores, que devem possuir meio e condições efetivas de investigação, apuração e processamento, evitando-se a prescrição da ação penal.

Assim, para que a especialização não constitua uma tentativa frustrada de repressão e prevenção da criminalidade econômico-financeira, não se mostra suficiente a sua implantação, sem que se sejam supridas as necessidades daí decorrentes, sob pena de deslegitimação da iniciativa, pautada em válidos e sólidos argumentos, que forneceram consistência às já coordenadas ações estatais.

Com as varas especializadas, espera-se uma melhoria da segurança pública uma vez que proporcionariam a inviabilização financeira de organizações criminosas e a consequente desmotivação para a prática de crime antecedente. Agrega-se, pois, sentimento de que a lei vale para todos e afigura-se adequada para o combate da criminalidade (traz a ideia da utilidade e legitimação dos diplomas normativos).

Por sua vez, propiciam o resgate da credibilidade dos poderes nacionais, com reforço das instituições democráticas que lastreiam o Estado de Direito.

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Com o adequado funcionamento de tais varas, pode-se vislumbrar a melhoria e o desenvolvimento da sociedade, com benefícios sociais e econômicos, porquanto geraria forte sensação na resolução eficaz dos conflitos nacionais. Claro que as chances de sanções por parte do Grupo de Ação Financeira Internacional sobre Lavagem de Dinheiro (GAFI/FATF) se reduziriam à medida que se atende às suas Recomendações.

Paz social constitui, pois, o objetivo final, inclusive pelo fato de se reter recursos destinados ao financiamento do terrorismo, havendo o imperioso combate deste que é considerado uma ameaça mundial.

Importante, por fim, mencionar que o primeiro passo foi bem dado. Caberá, aos tribunais, levar em conta a realidade da vivência de uma Vara especializada para que o preceito embasador de sua criação não signifique resposta vã ou tímida de superação das dificuldades políticas, econômicas e sociais da prática da criminalidade econômica, comprometendo a esperança num direito, o criminal, como instrumento de solucionamento e apaziguamento dos conflitos sociais.

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O PRINCíPIO DA ORALIDADE COMO COMPONENTE RACIONAL DE GESTãO DEMOCRáTICA DO PROCESSO PENAL

Leonardo Augusto Marinho MarquesDoutor em Ciências Penais pela UFMGProfessor da Graduação e do Mestrado da PuCMinasAdvogado

1. Introdução

O tema oralidade não pode ser tratado, nem na teoria nem na realidade prática do processo, como se fosse uma grande descoberta da sociedade moderna, simplesmente porque já se encontram registros dele na Antiguidade, notadamente no processo penal acusatório grego e romano (no período republicano), assim como na Idade Média, já que a Inglaterra conservou a forma acusatória, distanciando-se do modelo romano-canônico que prevaleceu na Europa continental.1

No mesmo sentido, não se deve conceber a oralidade como prevalência da palavra falada sobre a forma escrita, durante a realização dos atos processuais. Este tópico transpõe a fronteira da linguagem e definitivamente não pode ser reduzido à maneira pela qual os sujeitos se expressam no processo.

Finalmente, acredita-se que não seria também correto inseri-lo no capítulo destinado à eficiência do Poder Judiciário, apontando-o como verdadeira solução para a prestação jurisdicional no prazo razoável, na crença de que, por meio da oralidade, seria possível abandonar o formalismo excessivo, burocrático e cartorial que marca a tradição jurídica romano-luso-brasileira.

1 Cf. PRADO (2006:88) e COUTINHO (2001:37).

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Sem dúvida, o princípio demonstra toda a sua importância quando compreendido no ideal de democratização da Justiça Criminal, que tem origem no início do século XIX, no movimento de superação do método inquisitivo, que tomou conta da Europa continental, por influência direta do pensamento iluminista.

Este movimento entrou novamente em evidência no século XX, quando se identificou o retrocesso proporcionado pelo Código de Instrução Criminal Francês de 1808, que instituiu o abominável sistema misto e influenciou a legislação de diversos países na Europa continental e na América Latina.

No século XXI, pode-se afirmar que a associação entre o princípio da oralidade e a gestão do Poder Judiciário encontra lugar seguro no projeto do constitucionalismo democrático, no qual a promoção dos direitos fundamentais e a inclusão dos afetados constituem referências obrigatórias para a legitimação das decisões judiciais.

Antes porém de explicar melhor essa associação, necessário se faz compreender adequadamente por que o método inquisitório e a forma escrita promoveram a concentração de poder, monopolizando a informação, para, em seguida, perceber de que maneira o método acusatório e a oralidade proporcionam a descentralização, contribuindo para o processo de democratização do Poder Judiciário.

2. O método inquisitório e a contribuição da escrita para a

concentração de poder. A inteligência do monopólio da informação

Por ora, prefere-se a expressão método inquisitório à expressão sistema inquisitório por entender que o termo sistema pode sugerir a existência de um modelo rígido de normas jurídicas, ordenadas lógica e racionalmente, do qual seria sempre possível extrair uma orientação prévia, ou na melhor linguagem penal, uma política criminal específica, que orientaria o desenvolvimento do processo, em um primeiro momento, mas que, posteriormente, encaminharia soluções pré-formatadas aos problemas concretos, seguindo a tradição do pensamento positivista.2

A opção pelo vocábulo método se justifica por diferentes motivos. A realidade demonstra que, em nenhuma época, existiu um sistema processual universal, que estivesse presente simultaneamente em culturas diversas, e que reunisse todas as características específicas de um determinado método (inquisitório ou acusatório), conformando um modelo padrão.

2 Cf. GALUPPO (2001:55-57).

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Também é verdade que a expressão sistema inquisitório, recorrentemente utilizada na atualidade, remete ao período da Inquisição, porque foi nessa época que o método inquisitório obteve seu mais elevado grau de racionalidade (aproximando-se efetivamente da ideia de sistema), e justamente porque, em razão desse alto grau de racionalidade, conseguiu eternizar-se no presente, camuflando-se em diversos Códigos de Processo Penal, dentre os quais o nosso de 1941, por meio do dissimulado sistema misto de processo, introduzido pelo Código Napoleônico de 1808.

Não podendo, portanto, correr o risco de promover uma simplificação histórica, desconsiderando, por exemplo, que as raízes do modelo inquisitório encontram-se fincadas na Roma Imperial, ou que o mais comum é encontrar, em cada período da História, estruturas normativas (acusatórias ou inquisitórias) não absolutamente coincidentes3, recomenda-se, novamente, o termo método, que desvinculado da imagem de uma estrutura normativa padrão, pode perfeitamente concentrar-se no plano da idealidade, apresentando-se como fruto do esforço teórico, centrado na análise histórica de diversos modelos existentes:

Deve ficar claro, portanto, que assim como existem modelos ou sistemas no presente, também existem sistemas históricos; porém, nem um nem outro nos dão uma visão completa do sistema processual: são apenas pontos de partida, fios condutores que permitem orientar-nos na compreensão do Direito processual penal, tanto no presente quanto em sua evolução histórica. Esta é sua maior virtude e também seu limite (BINDER, 2003:31-33)

Como último argumento, a opção pelo vocábulo método também se justifica em homenagem à moderna hermenêutica, que rejeita as soluções pré-existentes, extraídas de um modelo absoluto, sempre prontas para serem aplicadas ao caso concreto. Invertendo completamente essa lógica, a moderna interpretação jurídica parte do caso concreto, devidamente problematizado, para encontrar na imensidão do Direito a decisão adequada.

A diferença pode parecer sutil, mas se evidencia quando se compreende que o pluralismo, nota fundamental da sociedade atual, não se exaure no processo legislativo, devendo também se estender aos diversos momentos de interpretação

3 Cf. PRADO (2006:7) e PRADO (2006:53)

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e aplicação do Direito (decisionismo). Na sociedade plural, as diferenças devem ser sopesadas pelo intérprete para se ter uma decisão adequada.

No pensamento jurídico pós-positivista, não se elimina necessariamente o termo sistema. Mas, para a sua exata compreensão, exige-se que o intérprete reali ze uma reconstrução dialógica retrospectiva do ordenamento jurídico, em vez de uma construção monológica prospectiva.4 Consequentemente, para se pensar em sistema processual, seria necessário uma interpretação jurídica dinâmica e não estática, que encontrasse na Constituição a base de um modelo sustentável.

Por extrapolar os limites deste artigo a tentativa de (re)construção do sistema constitucional acusatório brasileiro5, que por exclusão permitisse delinear o sistema inquisitório, novamente torna-se conveniente substituir a expressão sistema por método, guardando coerência terminológica.

Esclarecida a opção, cumpre informar que, grosso modo, o método inquisitório instrumentaliza a gestão centralizada de poder, monopolizando toda informação considerada importante, para impedir qualquer forma de contestação. A concentração de poder encontra base sólida na promessa de uma segurança ilusória, que sempre seduz a população.

Não por acaso, no Império Romano, o método inquisitório substituiu o acusatório justamente quando se detectou o aumento de criminalidade. Nesse momento, “a fonte da soberania” se deslocou “da cidadania para o Imperador” (PRADO, 2006:76), a acusação privada perdeu espaço para a iniciativa acusatória de ofício, o magistrado ampliou suas atribuições e a estrutura processual abandonou a forma oral e pública, para melhor se adequar ao aparato estatal, adotando a escrita e o segredo.6

Na Idade Média, quando atingiu o mais alto grau de racionalidade, o método inquisitório apareceu associado à formação dos estados nacionais e ao surgimento das monarquias absolutistas, reforçando a unidade de poder7, e também à intolerância com a diferença religiosa, com o poder econômico e como conhecimento científico, fatores de contestação dos valores religiosos impostos pela Igreja Católica8.

4 (GALUPPO, 2001:57-58).5 Recomenda-se a leitura de PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 6 Cf. PRADO (2006:77)7 Cf. BINDER (2003:31) e PAIM (2000:106)8 Cf. COUTINHO (2001:24-25), LOPES (2005: 163-164) e PAIM (2000:102-140).

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Destaque-se que também contribuíram para a adoção do método inquisitório o aumento da criminalidade e o desejo de instituir uma justiça imparcial e mais racional. Contestavam-se os privilégios que os nobres usufruíam no julgamento e a irracionalidade da ordálias do Direito germânico.

No século XIX, com a queda da Bastilha e a crítica iluminista à brutalidade da justiça eclesiástica, a tendência parecia ser o sepultamento do método inquisitório, com a total reformulação da Ordenação Criminal de 1670. Até porque, tendo o Direito inglês como referência, apostava-se que os franceses introduziriam a democracia processual e todas as suas implicações: “efetivação plena do contraditório, em um processo de partes, que cubra toda a persecução penal” (COUTINHO, 2001:31), verdadeira antítese da concentração de poder.

A Lei de setembro de 1791 deixou mesmo essa impressão, porque descentralizou a estrutura judicial e assegurou o julgamento público e oral com a introdução dos três júris9. Ocorre que, contrariando a previsão, veio o grande golpe que deu sobrevida ao método inquisitório nos dois últimos séculos. De repente, a reação autoritária começou a se impor sobre o ímpeto reformista.

Sobre o ponto, são interessantes as observações de RIBEIRO (2009:8), que explica, com ênfase no pensamento de Alexis de Tocqueville, porque a revolução francesa não conseguiu romper com o modelo concentrado do antigo regime, contra o qual supostamente se voltou:

O grande problema que Tocqueville vê no processo revolucionário (que ele não aplaude nem condena) é que a monarquia absoluta não dera lugar para os cidadãos treinarem o manejo da coisa pública. Já na Inglaterra, júris e parlamentares treinaram os cidadãos para decidir em matéria política e judiciária, isso desde os séculos 12 e 13.(....) Como a teoria francesa quer fundar a sociedade desde o zero (veja-se “O Contrato Social” de Rousseau), a revolução tenta varrer o passado. Daí, o risco do terror. Para ele, a revolução completa um trabalho de centralização administrativa, iniciado pelo Antigo Regime; teria sido preciso tanto sangue e guerra para chegar a um resultado que o governo anterior produziria.

Com efeito, na esteira da reação autoritária, surgiu o Código Brumário de 1795, que resgatou a antiga técnica inquisitiva de formação antecipada de

9 Júri de paz encarregado de realizar a investigação, o júri de acusação competente para promover o juízo de admissibilidade e o júri de julgamento para apreciar o mérito

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culpa e reintroduziu a fase instrutória preliminar secreta e escrita, que passa a ser presidida pelo diretor do júri de acusação. No novo Código, a oralidade ficaria restrita ao julgamento.

Estava plantada a semente do sistema misto que floresceria na década seguinte com o Código de 1808. Antes, porém, em 1801, o movimento de centralização do poder ganhou novo fôlego, porque o diretor do júri de acusação se transformou em juiz de instrução e teve seus poderes ampliados, podendo decidir também sobre a prisão preventiva. 10

MAIER (2004:348) explica que:las reformas que siguieron a la Revolucion Francesa habían logrado uma gran seguridad para los ciudadanos, cambio de descuidar de la eficacia da persecución penal pública. Ya esta altura de los acontecimientos podemos observar que la prédica inquisitiva de tantos siglos había acostumbrado a juristas y cuidadanos comunes a que el Estado tomara a su cargo la persecición directa de quienes violabam garcemente el alhora llamado “pacto social”. La organización de la persecución penal pública, según el prncipio inquisitivo, era entonces, uma necesidad reclamada.

Observe que o discurso da concentração de poder – como condição essencial para se garantir segurança à população – tornava-se cada vez mais forte, muito em razão da crescente criminalidade. Inexplicavelmente, o discurso da centralização ia se desprendendo da crítica iluminista ao poder ilimitado do soberano e ao arbítrio judicial da Inquisição.

Dentro da realidade diagnosticada, fica perceptível a cisão conceitual entre a esfera pública (ordem política) e a esfera individual (liberdade), que projetar-se-á na relação entre Estado e sociedade civil. A preocupação liberal com o poder absoluto do rei se acomodou diante da proposta de separação de poderes e do controle negativo-limitador imposto ao Poder Executivo, entendido como suficiente para assegurar o espaço amplo de liberdade individual, inexistente no antigo regime.

Em síntese, a fórmula tripartida de poder e o reconhecimento dos direitos pré-políticos, que mais tarde, sob a égide do Estado de Direito, transformar-se-iam nas garantias individuais, esgotaram o ideal de contenção do poder do pensamento iluminista.

10 Cf. COUTINHO (2001:37-38 ), CORDERO (2000:34-52) e MAIER (2004: 342-351).

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Entretanto, a cisão entre esfera pública e esfera privada revelaria tempos depois o grande contrassenso. Voltando-se a atenção apenas para o ambiente das relações privadas, o poder público se organizou livremente, inclinando-se para a concentração. Os liberais se esqueceram de que a centralização é uma premissa antidemocrática e o exercício de poder depende de condicionantes de legitimação, que vão além do controle negativo promovido pelas garantias individuais e pela divisão de funções.11

Foi nesse ambiente que Napoleão Bonaparte, voz influente no Conselho de Estado francês, desferiu o grande golpe contra o pensamento iluminista e os valores da liberdade e da dignidade. Investindo contra o debate oral, público, contraditório e contínuo, tentou acabar com o julgamento por jurados.

Apesar de não conseguir extingui-lo, seu esforço não foi em vão, tendo resultado na eliminação do júri de acusação. Ao final de um debate intenso e prolongado, restou consagrada, no Código de 1808, a proposta do sistema misto, que dividiu o processo penal em duas fases: a instrução inquisitória e o julgamento acusatório.12

Sobre a nova forma de organização judiciária, CORDERO (2000:57) tece o seguinte comentário:

Eliminada em la década de 1790 a 1800, la Ordenanza Criminal francesa apareció reencarnada en el Código, al cual se remontan los sistemas continentales de los siglos XIX y XX; y ya su nombre resuena como emblema: “Codigo de Instrucción criminal”. En la nomenclatura finisecular, “instrucción” significaba inclusive “debate ante los jurados”, pero com referencia a las nuevas instituciones, designa los actos realizados por el juez instructor. El proceso resulta dividido en dos: instrución, en el nuevo sentido, y debate o juicio, en el cual, sobrevive el jurado, cuyos defensores, satisfechos, dejaron manos libres a los reaccionarios em la otra mitad: distribuición desigual, si se considera el peso efectivo de las dos fases.

O modelo misto reintroduziu, na primeira fase, o método inquisitório de

investigação secreta, assegurando o controle da prova nas mãos do Estado. Para tanto, resgatou a figura emblemática do Juiz Inquisidor, tão contestada pelo Iluminismo13, disfarçada inteligentemente na imagem do “moderno” Juiz Instrutor.

11 Cf. PEREIRA (2008) e OLIVEIRA (2008)12 Cf. COUTINHO (2001:37-38 ), CORDERO (2000:52-59) e MAIER (2004: 352-361)13 Cf. FERRAJOLI (2006: 529-532)

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Pela lógica, formada a culpa secreta e antecipadamente, o processo penal se converte em um julgamento público, repleto de garantias, do que restou escrito nas atas. A questão é que o exercício tardio das garantias processuais não atenua o problema da prova produzida, antecipadamente, em segredo. Em termos concretos, nenhuma garantia retira das sombras o mecanismo de formação sigilosa da culpa. No final, a instrução inquisitória continua anulando o direito de defesa.

Em linhas gerais, nota-se que os modelos inquisitivos se valeram da coerção, expressão máxima do poder central, para afirmar o discurso de segurança, sobrepondo a defesa social aos valores da liberdade e da dignidade humana. Registre-se, apenas, que em sentido oposto, os modelos acusatórios estabeleceram suas bases no respeito às garantias individuais, procurando sempre impor limites ao exercício de poder.

O método inquisitório, independente da época, encontrou no processo penal o principal instrumento de controle social e, por meio da coerção penal, declarou guerra aos criminosos, aos inimigos do regime vigente, aos hereges, às bruxas, aos cientistas, aos filósofos e à burguesia mercantil, condenando cada qual pelo respectivo crime (stricto sensu) ou pecado14. Seus adeptos sempre levantaram a bandeira da segurança pública para justificar o abuso.

Ocorre que, independente dos diferentes momentos históricos, os ritos da Inquisição se destacam, porque ocuparam papel fundamental na depuração da racionalidade do método inquisitório. A procissão, os sermões, a leitura pública da sentença, a confissão e o suplício compunham o ritual que transformavam a barbárie em “propaganda do triunfo contra a heresia”15, que àquela altura já se confundia com a própria criminalidade.

A propaganda do triunfo deu origem ao mito de que a verdade real poderia ser alcançada por meio de uma investigação eficiente. Importante entender que, no método inquisitório, a apuração secreta da verdade constitui o eixo central do procedimento penal, e vai substituir o debate oral, público e contínuo perante os jurados, que caracterizava a forma acusatória.16 É na investigação sigilosa que o inquisidor assume, com toda a liberdade, a gestão da prova.

A eficiência do método inquisitório no combate à criminalidade se confirma sempre, quando se apresenta ao público a confissão do réu, prova inequívoca de que a verdade fora encontrada e de que a investigação é infalível. Diante dos re-

14 Heresia, sortilégio, feitiçaria, adivinhação, encantamento, blasfêmia, lucro ou usura. 15 A expressão é de PAIM (2000:113). Cf. também PAIM (2000:140-144.)16 MAIER (2004:292) e MAIER (2004:448)

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sultados apresentados pela Inquisição, a população tinha a falsa sensação de que a força realmente proporcionava segurança e, assim, o ciclo vicioso se fechava.

A inteligência do método inquisitório deixou sua mensagem gravada para as futuras gerações de déspotas: para se ter um poder central forte, não basta valer-se do processo penal, é preciso ter pleno domínio sobre ele.

De acordo com a racionalidade inquisitória, o procedimento penal17 “ideal” deve romper com o processo de partes e se converter em uma investigação sigilosa. Deve-se extinguir o órgão (independente) de acusação; reduzir o acusado (e sua condição humana) a mero objeto apuração; concentrar na pessoa do juiz as funções de acusar, defender e julgar, sob o argumento de que o juiz é um órgão imparcial, suprapartes, a quem somente interessa a verdade absoluta.

Naturalmente, em um processo sem partes, o juiz, detentor da iniciativa acusatória, deve agir sempre de ofício e conduzir a investigação em segredo, respaldado na inexistência do contraditório e do direito de defesa. Abre-se espaço para mencionar que o objeto de investigação não é reconhecido como sujeito de direitos. Nessa perspectiva de gestão centralizada de poder, o juiz detém o controle absoluto sobre a produção da prova, sendo-lhe possível, por meio do raciocínio dedutivo, comprovar qualquer hipótese que se lhe apresente.18

Selecionando as informações que lhe pareçam relevantes, em um procedimento marcado pelo segredo, o senhor da prova tem o poder de decidir antecipadamente e de ditar o rumo da investigação. Exige-se apenas que ele construa uma versão razoável, ou seja, uma versão sustentável dentro de uma realidade empírica.19 No final, resta a garantia de que sua versão é incontestável, porque ele encontra-se imunizado pelos dogmas da infalibilidade e da neutralidade20. Ser superior, ele não precisa das partes e nem das provas para enunciar a resposta, apenas da confissão.

Nesse quadro perverso, a escrita surge como elemento determinante, porquanto permite materializar o resultado da investigação secreta. A observação é bastante lógica: o protocolo escrito conserva o segredo, pois o que não está nas atas não está no mundo.21 É preciso entender que o protocolo escrito promove a

17 Não se utiliza nesse momento, conscientemente, a expressão “processo penal”, porque processo é um conceito imanente à democracia constitucional.18 Desconsidera-se, simplesmente, a incompatibilidade entre a lógica dedutiva e o raciocínio problemático exigido pelo Direito para se construir uma decisão adequada. Por óbvio, a confissão extraída dos tormentos legitima as deduções. 19 Cf. COUTINHO (2001:24-32)20 Sobre o dogma da infalibilidade e da neutralidade do Juiz, cf. LOPES (2005:155-177)21 Cf. MAIER (2004:448)

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descontinuidade entre a instrução secreta e o julgamento, mantendo o julgador distante das testemunhas e demais provas, do debate e até mesmo do acusado.

E o que é pior, a nova forma de organização judiciária transformou a escrita em importante fator de controle social, ao empregar um vocabulário inacessível à população:

O mesmo poder de dominação que a Justiça Eclesiástica exercia por meio da Inquisição, em um mundo de poucos letrados e multidões de analfabetos, passou a ser exercido pelos órgãos do Estado, que manejavam (manejam) a linguagem técnica do Direito (e ainda mais técnica dos autos) para impor o poder do Estado ao ditar decisões penais (PRADO, 2006:157)

A conclusão inevitável é de que a escrita foi utilizada como fator de conservação de um poder concentrado e isento de qualquer controle. Pretende-se, justamente, agora, demonstrar que a oralidade, enquanto componente democrático, permite fazer o caminho inverso, promovendo a descentralização de poder e o controle das decisões judiciais, tão essenciais à afirmação da democracia.

3. O método acusatório e a importância da oralidade na

descentralização da gestão da informação e na legitimação

das decisões judiciais

Conceitualmente, o termo oralidade é bastante rico, razão pela qual se chamou a atenção, anteriormente, para a inconveniência de reduzi-lo à prevalência da palavra falada sobre a forma escrita, durante a realização dos atos processuais, limitando-o à maneira pela qual os sujeitos se expressam.

Na teoria processual penal, muitos autores sustentam não haver condições de se realizar um julgamento público, senão por meio da forma oral.22 Afinal, a oralidade transpõe a barreira do protocolo escrito, tratado como único meio de transmissão do conhecimento no método inquisitório, revelando que existem, no mundo, informações distintas daquelas que constam nas atas.

Abrindo o horizonte do processo, para além do que está escriturado, suprimem-se os graves efeitos proporcionados pela investigação secreta, em

22 Cf. BINDER (2003:62), BOVINO (2005:78), DEU (2008: 99), FERRAJOLI (2006:567), JAUCHEN (2008:36), ROXIN (2003:115), (2003:393-394) e MAIER (2004:647).

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especial a separação entre juiz instrutor e juiz julgador e a crença de que o documento escrito é suficiente para fundamentar a condenação23.

A oralidade deve ser compreendida como princípio estruturante do processo penal acusatório, porque expressa fundamentalmente a fórmula democrática de construção das decisões judiciais. Para ROXIN (2000:115) e (2000:394), por exemplo, o fundamento de uma sentença somente pode conter que fora exposto oralmente. JAUCHEN (2008:36) enfatiza que a sentença somente pode sustentar o que fora regularmente incorporado no debate oral.24

Essa fórmula exige a efetiva participação das partes na elaboração do provimento e transforma o processo penal em um abrangente ambiente argumentativo. Nele, o resultado final não surge como obra exclusiva da inteligência, do conhecimento técnico e da sensibilidade do juiz, qualidades sempre relevantes quando se profere a decisão judicial.

É preciso compreender que, no processo norteado pela oralidade, a decisão é fruto de um grande debate, no qual os argumentos das partes são incorporados na sentença e constituem a base do raciocínio problemático que permite encontrar, na complexidade do Direito, a resposta adequada ao caso concreto.

Concretamente, o raciocínio problemático, característico do método acusatório, impede que: (a) a atividade jurisdicional se oriente e se limite pelo raciocínio dedutivo; (b) o raciocínio do juiz seja o único raciocínio válido para fundamentar a sentença; (c) o raciocínio do juiz se desenvolva unilateralmente em torno das hipóteses que lhe pareçam as mais prováveis.

Cumpre esclarecer que a importância da oralidade não está associada a uma eventual desconfiança na capacidade técnica ou na imparcialidade do Juízo em decidir os casos penais, que historicamente lhe foram confiados. O papel reservado ao Poder Judiciário, no Estado Democrático de Direito, não está sendo colocado em dúvida e nem será diminuído com a adoção da forma oral.

A questão se concentra na consciência de que a sociedade moderna se caracteriza pela pluralidade25, e que, nela, convivem harmonicamente visões distintas do mundo. Essa consciência se contrapõe àquele ideal comunitarista de que a sociedade deve construir um projeto único, homogêneo, capaz de promover o bem comum.

23 ROXIN (2003:394) e MAIER (2004:650).24 Cf. também BOVINO (2005:79). 25 Cf. GALUPPO (2001:51)

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Ora, a civilização moderna já percebeu que o preço de uma suposta homogeneidade é a renúncia à multiplicidade de valores religiosos, morais e culturais que se manifesta com ampla liberdade nas modernas democracias constitucionais. No final, observa-se que o projeto único justificou a afirmação dos valores de uma minoria e a negação dos múltiplos valores da grande maioria.

Adquirindo-se essa consciência, verifica-se que a diversidade, que se faz presente nas relações cotidianas, também marca presença no mundo jurídico, gerando dúvidas no campo interpretativo e, consequentemente, no modo de aplicação do Direito. Por conseguinte, na atividade jurisdicional, a construção do Direito não pode resultar de uma compreensão individualizada do Juiz sobre o caso concreto. A problematização do raciocínio é imprescindível para se dar conta da complexidade das questões atuais.

Sob a égide do constitucionalismo democrático, a decisão judicial precisa ser desenvolvida a partir dos argumentos trazidos pelas partes. É por meio da análise dos pontos de vista contrários, que se problematiza o raciocínio jurídico, compreende-se a infinitude do Direito e enxergam-se as inúmeras possibilidades que ele proporciona na atualidade.

É nesse sentido, que se defende que a decisão final, embora sempre reste soberana no Direito, somente será democrática e repercutirá com legitimidade, se proferida após a manifestação das partes. Contra o unilateralismo decisionista do método inquisitório, propõe-se a decisão construída democraticamente, tendo como referência a ampla argumentação dos possíveis afetados.

Posições semelhantes são adotadas pelos Desembargadores Geraldo Prado26 e Aroldo Plínio Gonçalves27:

A ênfase na oralidade como componente democrática do processo penal e elemento constitutivo do sistema acusatório tem a ver com o reconhecimento do que os métodos de aplicação do direito, ou melhor, de interpretação das regras jurídicas e de sua efetiva aplicação aos casos concretos, não abrangem toda a atividade intelectual do juiz quando sentencia (PRADO, 2006:155)

Hoje a instrumentalidade técnica do processo requer mais do que a garantia de participação das partes. Requer que essa participação se dê em contraditório, com igualdade de oportunidades, e que dela

26 Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. 27 Tribunal Regional do Trabalho, em Minas Gerais.

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resulte essa consequência cujo alcance necessita ser apreendida em toda sua extensão, que é a participação dos destinatários da sentença em sua própria formação. “Entre uma decisão ‘justa’, tomada autoritariamente, e uma decisão ‘justa’, construída democraticamente, não pode deixar de haver diferença, quando se crê que a dignidade humana se realiza através da liberdade.” GONÇALVES (1992:174)

Contudo, para se compreender o princípio da oralidade como componente racional de gestão democrática do processo penal, necessário se faz visualizar todas as suas implicações.

Inicialmente, depreende-se da oralidade a concentração das fases do procedimento, que é extremamente importante para se obter a continuidade entre a produção das provas, as alegações das partes e o provimento jurisdicional. Com a concentração de fases, evita-se aquela cisão indesejada entre a instrução secreta e o julgamento posterior das atas, adotada pelo método inquisitório.

Permite-se, assim, que toda informação relevante seja, inicialmente, debatida pelas partes e, em seguida, incluída no julgamento. Enfim, a continuidade assegura a gestão descentralizada da informação, na medida em que permite aos destinatários do provimento introduzir dados relevantes nos processos; aos possíveis interessados, conhecê-los e impugná-los; ao juiz se integrar ao debate, formando seu convencimento da forma mais abrangente possível.

A oralidade proporciona também a imediação, que é o contato direto e permanente entre as partes e o juiz em todas as fases do processo. A presença física desses sujeitos processuais, bem como o diálogo entre eles, é indispensável, quando se pretende que o debate, em contraditório, seja incorporado ao julgamento. As impressões necessárias à formação do convencimento devem resultar da proximidade com o fato, com os argumentos e com as provas.

Somente assim, impede-se que a decisão final contenha ingredientes de surpresa, provenientes de elementos que não passaram pelo crivo do contraditório, e não geraram igual oportunidade de conhecimento e de impugnação para todos os envolvidos.

Destaque-se ainda que a oralidade exige que a sentença se fundamente exclusivamente na prova judicializada28. Consequentemente, proíbe-se que o julgador valore as informações preliminares coletadas na fase de investigação. Entende-se que os dados informativos sobre autoria e materialidade servem

28 Cf. BOVINO (2005:78), JAUCHEN (2008:40), LOPES(261-266)

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apenas para justificar a abertura do processo penal, e não podem jamais se incorporar ao debate, sem minimizar a importância da prova produzida em juízo. O risco que se corre é o de anular a defesa e o contraditório no processo.

Certo de que o método acusatório não admite a formação antecipada da culpa, conclui-se que o direito de ser julgado com base na prova judicializada não depende de nenhuma construção teórica mais elaborada.

Há de se advertir que, devidamente compreendida, a oralidade não elimina necessariamente a escrita, lançando aleatoriamente palavras que se perdem ao vento. Desde que respeitado o julgamento público, contínuo e contraditório, desde que toda informação relevante seja debatida antes de ser incorporada à decisão, nada impede que os atos mais importantes sejam registrados em uma ata (denúncia, resultado das provas, alegações, sentença e recursos), assim como nada obsta que a gravação e outro recursos tecnológicos aliem a rapidez à segurança, potencializando ainda mais a oralidade.

Em tempo, deve-se elogiar a reforma procedimental empreendida em 2008, que deu um importante passo para a superação do método inquisitório, ao concentrar as fases do procedimento na audiência de instrução e julgamen-to, privilegiando o debate oral, a imediação, a continuidade, o contraditório e a prova judicializada.

É bem verdade que ela manteve a gestão da prova nas mãos do Juiz, preservando-lhe os poderes instrutórios. Mas, sem dúvida, o primeiro passo já foi dado e nos serve de alento.

Voltando os olhos para o passado, não podemos nos esquecer de que as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, o Código Criminal do Império de 1832, e as reformas legislativas promovidas em 1841 e 1871 consagraram o método inquisitório, e o atual Código de Processo Penal, de 1941, não fugiu desta realidade ao adotar o sistema misto.

Inevitavelmente, há de se ter consciência de que a luta contra o método inquisitório será difícil, pois representa para nós, brasileiros, a superação da nossa própria tradição.

4. Conclusão

Por conclusão, tem-se que a oralidade democratiza a gestão da informação no processo penal, ao selar o destino da investigação secreta e desmitificar a escrita como único meio de transmissão do conhecimento, desvelando, por fim, a trágica separação entre instrução e julgamento.

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O julgamento oral e contínuo permite que as partes introduzam infor-mações relevantes no debate em contraditório. Esse debate, fundamental para a problematização do raciocínio jurídico, cria condições para que o juiz pense as múltiplas possibilidades do Direito, e busque, com mais segurança, a resposta adequada ao caso concreto.

O importante é que o provimento jurisdicional se referencie na argumentação das partes. Em detrimento de uma decisão soberana e unilateral, a oralidade possibilita a construção de uma decisão igualmente soberana, mas democrática, porque resultante da análise dos pontos de vista contrários.

Por conseguinte, a compreensão unitária do Juiz sobre um determinado caso cede lugar a uma visão compartilhada, plural e abrangente, que se aproxima bem mais da intrincada realidade da sociedade moderna.

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AS SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA – ASPECTOS RELEVANTES

Nelson Sá Gomes RamalhoAdvogado

A criação de empresas, com a participação acionária do Estado, para o desenvolvimento de funções na economia, se intensificou no século passado (século XX), após a Primeira Grande Guerra Mundial.

O denominado Estado liberal encontrava-se ideologicamente em declínio, sobrevindo o Estado Social, ocorrendo consequentemente o incremento das atividades estatais, não mais se restringindo àquelas atividades típicas do Poder Público, contudo alargando-se a noção originária de serviço público, passando o Estado a desenvolver, outrossim, atividade industrial e comercial.

Esta modificação alterou ainda a postura do Poder Público no que toca ao processo econômico, passando o Estado a não apenas fixar e resguardar as normas (lato senso) do livre mercado, evoluindo para a figura do Estado Empresário, isto é, o Estado atuando efetivamente como verdadeiro agente econômico.

Para lograr êxito nestas novas atividades, incompatível com o modelo de organização tipicamente burocrática da Administração Pública, foi utilizada a empresa estatal em larga escala.

Daí surgiu a necessidade de se criar uma legislação específica para as empresas com esta natureza (de sociedades de economia mista), tendo se verificado, igualmente, a imprescindibilidade de, apesar de dar maior liberdade de atuação, esta espécie de sociedade precisar observar, em razão da participação

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direta do Poder Público, regras claras que preservassem os princípios basilares do Estado, ou seja, a transparência, moralidade e impessoalidade.

Assim, quando o Estado decidiu por atuar no mercado, por questões estratégicas ou mesmo como única solução para incentivar o início ou desenvolvimento de determinadas atividades, para a qual não havia interesse da iniciativa privada em investir, verificou-se desde logo a imprescindibilidade de ser elaborada normatização específica, de modo a permitir maior agilidade do Estado empresário.

Sem tencionarmos adentrar em debate de cunho ideológico, há os que esposam também a tese de que deve o Estado ter, outrossim, outras formas de renda do que tão somente o imposto recolhido direta ou indiretamente dos cidadãos. Assim, em se tratando de uma empresa de economia mista lucrativa, eficiente, por que, perguntam estes, o Estado pode não ter na mesma uma fonte de recursos?

Retornando à seara originária, temos que restou claro a importância da existência de legislação específica para reger as sociedades de economia mista e, para tanto, ter-se clareza quanto à natureza jurídica e fática das mesmas.

Constatou-se, desde logo, que a legislação que regia o Estado nas suas atividades típicas (esfera administrativa), era incompatível para que o Estado empresário desenvolvesse suas novas atribuições.

Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles discorre com precisão:A sociedade de economia mista no Brasil ainda não recebeu a devida regulamentação legal. A Constituição da República a ela se refere apenas para estabelecer que, quando for utilizada para explorar atividade econômica, deve operar sob as mesmas normas aplicáveis às empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias (art. 173, § 1o),... (omissis)... Permanecem ao lado do Estado, mas guardando sempre sua personalidade de Direito Privado. (Direito Administrativo Brasileiro, Hely Lopes Meirelles, 17a Edição, 1990, Malheiros Editores, p. 331).

Temos por certo que se faz imprescindível certa liberdade de atuação para que o Estado logre êxito para executar atividades no mundo da indústria e da mercancia.

Tão somente liberto das amarras inerentes à burocracia da administração direta, pode o Estado desempenhar o papel de empresário, o que, aliás, não ocorre apenas no Brasil.

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Vislumbrou o legislador, com rara clarividência, a imprescindibilidade de despir o Estado, enquanto Governo, da burocracia existente, dando-lhe maior agilidade para atingir a produtividade.

Neste ponto, vale chamar a atenção para o fato de que a previsão contida na Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, no sentido de que “a Lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;” (Art. 173, inciso II, da Constituição Federal), até hoje não se concretizou.

Constitui-se em ledo equívoco acreditar que um Estado empresarial, com pesada estrutura burocrática, tal como a existente na administração direta, que desenvolve atividades de mero expediente, gere um maior controle das empresas.

O engessamento da estrutura gerencial das empresas de economia mista, precipuamente daquelas que desenvolvam atividade empresarial em regime de concorrência, as levaria certamente à situação que geraria a indispensabilidade de repasse de recursos do Governo para mantê-las, vez que deixariam de cumprir seu objetivo de produzir e gerar progresso e dividendos, uma vez que, com as amarras administrativas, restariam impedidas de competir, de terem a agilidade indispensável para atuar no mundo dos negócios.

Tem sido esquecido em nosso país, que a finalidade da existência das sociedades de economia mista é na verdade dar condições ao Estado para atuar como empresário, principalmente naquelas atividades onde se faz indispensável sua presença, seja pelo aspecto econômico, político, social e/ou estratégico.

Criou-se sistema de fiscalização que acaba, em razão do modelo adotado, gerando danos em razão de efeitos colaterais, impedindo-se o desenvolvimento tecnológico e econômico destas empresas que, indubitavelmente, constituem-se em força motriz a impulsionar o progresso do Brasil.

Em momento algum está a se defender o fim da fiscalização, porém a alteração de como ela é realizada.

Verifica-se que o controle das sociedades de economia mista, quando exercido com racionalidade, sem comprometimento emocional ou moral, mostra-se eficaz.

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A União, na qualidade de acionista controladora, deve proceder como o majoritário na empresa privada: defender suas posições e interesses na assembleia de acionistas.

Por outro lado, devem os órgãos de controle externos procurar especializar seus integrantes no mister do trabalho no campo da indústria e do comércio, para terem eficiência na fundamental função de fiscalizar.

Deve-se exigir qualidade e resultados, tendo o Estado para tanto poder de eleger e destituir, nas assembleias de acionistas, a Diretoria da Companhia por ele controlada, que melhor se adeque a estes parâmetros.

Como, entrementes, pretender que uma economia mista possa atuar competitivamente no mercado, se a mesma encontra-se defesa até mesmo de estabelecer por conta própria níveis salariais compatíveis com esse mercado e com os resultados da empresa, de forma a poder evitar a perda de técnicos altamente gabaritados?

Para um controle mais efetivo deve-se deixar de lado o hábito de se monitorar cada ato de gestão e de se exigir relatórios e mais relatórios ao administrador, obrigando-se as empresas a terem custos extraordinários, com a criação inclusive de áreas somente para atender as muitas requisições frequentemente solicitadas.

Afigura-nos que o caminho sadio é criar no administrador a obrigatoriedade de praticar o exercício da criatividade, da inteligência e obrigá-lo a assumir responsabilidades.

O que propomos, em apertada síntese, é que se deixe de tutelar estas empresas, sem se exercer a indispensável fiscalização, de forma a se preservar os princípios constitucionais da moralidade e da transparência. Ao se tutelar alguém, impede-se que haja crescimento, pois o tutelado não mais se preocupa em criar, ousar e se preocupar com os resultados: passa a aguardar pacientemente pelo próximo comando.

Campo fértil, no entanto, para que estas iniciativas frutifiquem, somente adubado com alguma liberdade de ação.

Acreditamos que a solução é a celebração dos denominados contratos de gestão, a serem celebrados entre as sociedades de economia mista e o acionista controlador. Tal iniciativa já foi implementada no passado, tendo sido assinado contratos de gestão, contudo não se materializou no campo pragmático.

Com a ausência de certo grau de autonomia para agir, podem ser gerados prejuízos ao Tesouro, que para suprir estas empresas tem de destinar-lhes

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recursos, invertendo-se, desta forma, a ordem natural das coisas: que seria a empresa gerando dividendos para seu acionista controlador.

A matéria, ora em tela, encontra-se dissecada com raro brilhantismo no Parecer no JCF- 18/93, de 27 de Janeiro de 1993, da lavra do Dr. José de Castro Ferreira, verbis:

É que, se o regime jurídico das sociedades de economia mista, por exemplo, é o das sociedades anônimas, o Poder Público não poderá adotar formas de interferência na administração dessas empresas que venham a ser incompatíveis com os procedimentos de uma sociedade anônima. Da mesma forma, não será lícito nem conveniente adotar normas referentes a seus empregados, que se conflitem com as disposições da legislação trabalhista, societária, tributária, civil, entre outras, pois significaria esvaziar de sentido o excerto constitucional que subordina estas empresas ao regime jurídico aplicável às empresas privadas. Demais disso, o poder do Estado, nessas empresas, é o poder do acionista controlador e não o poder de governo... (omissis) As sociedades de economia mista e as empresas públicas, assim como as demais entidades que explorem atividade econômica, são regidas por lei, mas não geridas por lei (o negrito consta do original).Obviamente, isso não significa obstar o Estado de baixar legislação aplicável às empresas do setor público. A Lei das Sociedades Anônimas já encerra tal previsão ao dizer que as sociedades de economia mista se regerão pela lei das sociedades anônimas privadas, sem prejuízo das disposições de leis federais (Lei no 6.404/76, art. 235). O que queremos dizer é que se mostra incabível além de inadequada a intervenção do Estado na organização e funcionamento das sociedades de economia mista mediante a promulgação de leis que não tenham a característica de norma geral endereçadas a todas as empresas, mas se destinem à área de deliberação própria do acionista e até a atacar o varejo das atribuições gerenciais dos conselhos de administração (o realce é reprodução do original).

No regime capitalista, quando o Estado atua no domínio econômico não produz, como consequência, a estatização da economia, mas sim a sua assimilação como ente privado, desvestido do ius imperii

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e em igualdade de condições com os demais agentes econômicos, privados. A transmutação ocorre nesse sentido e não no oposto.Isto é o que explica a vetusta regra isonômica, repetida na atual Carta em seu art. 173, 1o. (Parecer JFC – 18/93, da Consultoria Geral da República).

No mesmo sentido manifestou-se o Tribunal Superior do Trabalho, em mais de uma oportunidade:

Essas empresas, que competem no plano econômico, têm que ter um tratamento diferenciado dentro do serviço público, uma vez que não é possível que venham a ser atreladas aos rígidos preceitos da administração direta ou das entidades fundacionais especificamente mencionadas. (TST, PLENO, Proc. DC 07/89, julgado em 4/5/94; Rel. Min. Orlando Teixeira da Costa).O Banco do Brasil é notoriamente sociedade de economia mista... (sic) Com efeito, tratando-se de sociedade de economia mista, ainda que possa ser visto como integrante da Administração Pública Indireta, o Banco, porque explora evidente, manifesta, incontroversa e iniludível atividade econômica, sujeitando-se à concorrência e no mercado a captação de dinheiro, e na realização de contratos de natureza financeira, não pode deixar de se submeter ao regime jurídico próprio das empresas privadas, “inclusive quanto às obrigações trabalhistas”, como ressalta, com zelo pleonástico o texto constitucional. (TST, PLENO, Proc. DC 16/89; Rel. Min. Almir Pazzianotto).

Sobre a imprescindibilidade de se conceder maior autonomia às empresas de sociedade de economia mista, abrangidas pelo disposto no art. 173, da Carta Maior, discorreu com raro acerto o Ministro Adhemar Paladini Ghisi, do Tribunal de Contas da União, que vem igualmente a robustecer a tese neste esposada, verbis:

(...) Não temos dúvida, neste Tribunal, da necessidade de se dar aos órgãos da administração indireta no Brasil, principalmente àqueles referidos na Constituição no Art. 173, uma maior flexibilidade. Essa liberdade permitirá uma maior agilidade nesse sistema competitivo a que estão submetidas as empresas em geral, principalmente as

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públicas. É preciso que essa possibilidade esteja prevista na Carta Magna, que hoje não consagra essa liberdade de ação...(Sessão Plenária de 2 de fevereiro de 1994, publicada no DOU de 17/2/94).

Assim, até que se promulgue lei, prevista na Constituição Federal, para regulamentar a atividade das economias mistas, deve-se cuidar de modo a que não se venha a manietar a atuação deste importante braço do Estado, no desenvolvimento do País, procurando-se fiscalizá-las sem tutelar, bem como proferir decisões equilibradas, isto é, fora do binômio público/privado, eis que não se encontram estas sociedades em nenhuma das duas espécies.