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(RE) NATURALIZANDO A ESCOLA PÚBLICA: (RE) PENSANDO OS ESPAÇOS DO COTIDIANO
Universidade de São Paulo – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.
Autor: Alexandra Maria Aguiar Leister
FAUUSP – [email protected]
RESUMO
A magnitude do contato direto com a natureza tem se mostrado fundamental para o desenvolvimento integral na infância. Visto que a criança passa grande parte de seu tempo na escola, os espaços livres de recreação e convívio assumem papel significativo no que diz respeito ao contato com elementos da natureza através de atividades pedagógicas ou livres. Este artigo discorre sobre as potencialidades dos espaços livres investigado através da ótica da pesquisa qualitativa. Entrevistas com diretores, coordenadores pedagógicos e professores de escolas públicas e oficinas de desenhos com crianças revelam o estado da arte do contato infantil com a natureza em escolas públicas de São Paulo e como a interdisciplinaridade é essencial para a qualificação dos espaços livres e fundamental para evitar o distanciamento infantil da natureza nos grandes centros urbanos.
Palavras-chave: Criança; natureza; escola pública; espaços livres; cidade
INTRODUÇÃO
A escola ganhou reconhecimento em diversos países, nos últimos anos, como lócus
significativo na reconciliação da criança com a natureza. No Brasil, caminhamos
lentamente na direção de fortalecer o vínculo infantil com o mundo natural, especialmente
na escola. É fato que no percurso da educação no Brasil, áreas livres e natureza não
necessariamente ocuparam, ou ocupam, posição relevante em projetos de escolas públicas.
Iniciativas como os Parques Infantis e Escola de Aplicação ao Ar Livre, mesmo não
priorizando o vínculo da criança com o mundo natural, demonstram que é possível
reinventar com êxito os tempos e espaços da escola e articular crianças e espaços livres com
natureza através da pedagogia.
A arquitetura escolar no Brasil foi desenvolvida priorizando o edifício na concepção
do espaço. Ainda hoje o prédio escolar ocupa papel de destaque, pois acima de tudo
representa um símbolo do êxito das gestões políticas. Com o decorrer dos anos, o edifício
tem se tornado cada vez mais introvertido, e a criança, especialmente a da periferia, que
vive em lugares de condições precárias, passa grande parte de seu tempo em escolas que
pouco diferem dos espaços de seu cotidiano.
Inúmeras escolas ao redor do globo defendem que o contato com a natureza no
ambiente escolar auxilia o desenvolvimento pessoal, social e emocional da criança
(FOREST SCHOOL, 2016). Logo, nos vimos compelidos a investigar como a escola
pública no Brasil vem lidando com esta temática em cidades de intenso adensamento
urbano e baixa qualidade de vida. Além disso, o Distúrbio de Déficit de Natureza (LOUV,
2008), nos mostra como a ausência do contato com a natureza pode afetar negativamente a
vida do homem, especialmente na infância.
Muitos adultos hoje tiveram o privilégio de uma infância regada a brincadeiras na
rua, em cidades mais “verdes”, com menos aprisionamento e mais liberdade, especialmente
em cidades como São Paulo. Mas crianças, hoje, são mais conectadas. De acordo com Louv
(2008), crianças entendem problemas ambientais – podem dissertar sobre a Floresta
Amazônica ou aquecimento global– mas suas experiências diretas na natureza estão
desaparecendo gradualmente. As crianças não conseguem contar sobre a última vez que
exploraram um bosque sozinhas, deitaram no chão ao ar livre para sentir o vento ou
observar as aves voando no céu.
Ademais, as conexões com elementos naturais nas escolas poderiam fortalecer uma
“imaginação poética do espaço”, colaborando na construção de ambientes mais
acolhedores. Se os espaços do cotidiano extrapolam a dimensão física e transformam-se em
referências do ser e estar, de acordo com Bachelard (2008), os espaços livres e a natureza
teriam grande potencial de transformar a maneira que as crianças enxergam a cidade.
Defendemos a hipótese de que se juntarmos uma visão de espaço com elementos da
natureza auxiliada por uma pedagogia que estimule a exploração e usufruto livre dessa
paisagem na escola pública, estaremos fortalecendo o desenvolvimento integral de crianças
e formando adultos mais conscientes de seu papel na sociedade, na vida e nos processos
naturais que nos sustentam na Terra.
Diante desses fatos, colocamos, primeiramente, neste artigo a questão do
desaparecimento das paisagens naturais na cidade e como o desenvolvimento e a tecnologia
estão alterando a maneira da criança se relacionar com o mundo natural.
Adiante, discutimos o conceito de natureza utilizado nesta pesquisa, objetivando o
olhar sensível da paisagem.
Depois, discutimos a relevância da instituição escolar paulistana e seus espaços
livres na malha urbana, refletimos sobre os caminhos trilhados pela pedagogia na tentativa
de reinventar os espaços e tempos da escola no Brasil.
Em seguida, apresentamos a metodologia da pesquisa qualitativa e apresentamos
sínteses e discussões dos resultados obtidos nas entrevistas e oficinas nas escolas.
Por fim, concluímos que seria injusto privar crianças da periferia do contato com
elementos da natureza nas escolas e retirar-lhes a capacidade de aprender a ver paisagens e
encontrar em suas delicadezas momentos de prazer em meio a difícil realidade em que
vivem. Pois a paisagem não apenas é direito constitucional como também poderia através
de sua exploração transformar o cotidiano da criança na cidade.
A NATUREZA NAS CIDADES
Os pesquisadores Moore e Cosco (2000), acreditam que experiências simples na
natureza como a que observaram de um garotinho de dez meses apenas em fraldas, que nota
um grilo em uma pedra no jardim, pode ser importante no desenvolvimento infantil. O
menino vai até o grilo e pausa por alguns minutos apenas observando o inseto. Tenta pegá-
lo. O grilo pula e aterrissa em um tronco de árvore. O pequenino segue até ele novamente e
observando-o curiosamente chega muito perto. O grilo pula novamente escondendo-se
(MOORE; COSCO, 2000).
No contato com essa nova criatura sua visão do mundo ganha mais uma dimensão.
Na próxima vez que ele se deparar com um fenômeno similar, seja no contato com um
besouro ou uma borboleta, seu primeiro passo será reativado pela sua experiência anterior.
Assim, no contato direto com fenômenos naturais ele vai construindo um entendimento dos
seus arredores e de como a natureza opera (MOORE; COSCO, 2000).
Experiências deste tipo estão desaparecendo das cidades. A presença da natureza,
seja nos quintais, praças, calçadas e ruas vai sendo apagada por padrões socioculturais e
processos capitalistas. Por um lado o desenvolvimento proporciona melhores condições de
vida mediante ao acesso a saneamento básico, transporte, oportunidades de emprego e
moradia, por outro, altera paisagens, ocasionando entre outras injustiças, escassez de áreas
verdes. Parques, praças e ruas arborizadas representam para a grande massa da população
uma experiência atípica. Espaços com natureza abundante tornam-se experiências para a
minoria, já habitante de regiões mais qualificadas.
No topo da complexidade espacial da cidade contemporânea está a tecnologia, que
apesar de proporcionar inúmeros benefícios é alusiva à diminuição do contato do homem
com o mundo natural. As transformações sociais trazidas pela inteligência artificial
permeiam todas as esferas do cotidiano, e diversas pesquisas relatam seus efeitos na
sociedade. Pergams e Zaradic (2007), constataram que nos últimos 50 anos, a diminuição
no número de visitas per capita a Parques Nacionais nos Estados Unidos estava relacionada
ao fenômeno da videofilia, cunhado como a “nova tendência humana de focar em
atividades sedentárias que envolvem a mídia eletrônica” (PERGAMS; ZARADIC, 2007,
p.387).
Os benefícios da cultura instantânea, da conexão e do acesso fácil a todo tipo de
informação são praticamente constitutivos da infância contemporânea. Quando aliados à
falta de oportunidades de viver ou visitar ambientes com elementos da natureza podem
interferir no desenvolvimento infantil.
Louv (2008), entende que as novas gerações vivenciam o mundo diferentemente de
sua geração, baby boomers, que presenciou um tipo de infância mais livre, na qual crianças
brincavam na natureza. Apesar das crianças hoje estarem mais conectadas com problemas
ambientais – podem, por exemplo, dissertar sobre problemas na Floresta Amazônica ou
aquecimento global– suas experiências diretas na natureza estão desaparecendo
gradualmente, pois não tem relatos sobre a última vez que exploraram um bosque sozinhas,
deitaram no chão ao ar livre para sentir o vento ou mesmo observar as aves voando no céu.
A conexão com a natureza traz inúmeros benefícios para a saúde física e emocional,
particularmente através da brincadeira em espaços ao ar livre como parques públicos,
escolas, playgrounds, terrenos baldios e ruas arborizadas (COSCO, 2007). Segundo Piaget
(1952), para as crianças a vida é movimento e estimulação sensorial, portanto, áreas livres
com presença de elementos da natureza podem oferecer experiências construtivas.
Os benefícios do contato com o mundo natural atingem o homem a nível celular
(LEE et al, 2014). A imersão de corpo e mente durante uma caminhada de quarenta
minutos em florestas japonesas está relacionada a diminuição dos níveis do hormônio
cortisol em comparação a caminhadas com o mesmo tempo dentro de um laboratório
(SELHUB; LOGAN, 2012, p.19).
Além disso, a conexão do homem com outras formas de vida e processos naturais é
um alicerce seguro no desenvolvimento de crianças mais conectadas com o mundo natural
em sua vida adulta (CHAWLA, 2009; SOBEL, 1996). “Não é apenas suficiente saber sobre
os riscos que o meio-ambiente enfrenta ou ter atitudes e valores a favor dele: agir é
fundamental” (CHAWLA,2009, p.6).
Indivíduos que possuem a capacidade de reconhecer padrões na natureza, assim
como identificar espécies, compreender sistemas naturais e artificiais, conhecido por
Inteligência Naturalista, são essenciais na sociedade. Em sua Teoria das Inteligências
Múltiplas, Howard Gardner (1994) explica que a expressão do papel adulto desse tipo de
inteligência é representada pelo naturalista, que exercem função importante em todas as
culturas.
Também encontramos reforços da importância da natureza para as crianças se
debruçarmos na hipótese da biofilia (WILSON, 1998), que defende que há no homem uma
tendência inata de focar na vida e nos processos naturais, uma ligação evocada de acordo
com as circunstâncias, seja por prazer ou sentimento de segurança, ou medo e até um misto
de fascinação e repulsa.
Se os processos da relação com o ambiente natural guiam nosso aprendizado sobre
plantas e animais e fazem parte de um processo cerebral complexo, de acordo com Edward
O. Wilson (1984), então se ansiamos por sociedades melhores não podemos exterminar a
natureza. Pois segundo Wilson (2006, p. 362), a natureza faz parte de cada um de nós,
assim como somos parte dela.
CONCEITO DE NATUREZA
A natureza ainda é um mistério para a humanidade. Sua história expõe um conceito
carregado de significados e dificilmente encontra definições congêneres, inclusive nos
dicionários, que mostram sentidos divergentes para a mesma palavra. A história expõe,
através da ciência, filosofia e das organizações sociais o desvelar de diferentes faces da
natureza e da sua relação com o homem. Seu significado, independente da época em que foi
estabelecido, está intimamente vinculado à atitude do homem perante ela. O pensamento
sobre a natureza é uma teoria carregada de ambiguidades, como por exemplo, o fato de
dependemos de seus recursos para sobreviver e ao mesmo tempo a destruirmos.
Empregamos facilmente a “natureza” nos diálogos cotidianos como um conjunto
dos seres vivos e fenômenos- água, terra, fogo, ar, vegetação, animais-, como a essência, ou
características que fazem algo pertencer a alguma espécie ou categoria, ou mesmo ao
destacar um temperamento e traços de um indivíduo.
Diante das questões colocadas nesta pesquisa, adotamos Natureza como o conjunto
dos elementos naturais presentes nas paisagens urbanas. O meio que propicia experiências
através dos seus detalhes, sons, cores e aromas. Preferimos um conceito que nos aproxime
da natureza poética de Humboldt: “por toda a parte a natureza fala com o homem numa só
voz que é familiar à sua alma” (p. 94).
Neste sentido, debruçamos também sobre um conceito que ultrapassa a natureza
matemática de Newton do século XVIII, e que encontra no conceito de paisagem de
Simmel (1913) o sentimento. Para Simmel (1913), o olhar sobre a paisagem está além da
observação circunstanciada da natureza, é um “estado psíquico e reside no reflexo afetivo
do espectador e não nas coisas exteriores desprovidas de consciência” (p. 25). É necessário
que tal conteúdo cative nossos espíritos, pois a Stimmung1 de uma paisagem é objetiva, é
ligada à paisagem, porém cada indivíduo tem uma visão específica que está conectada ao
afloramento de sua unidade formal.
O problema parece estar então na visão específica que cada indivíduo carrega e no
sentimento que as paisagens despertam, pois segundo Adriana Serrão, o momento de
contemplação da paisagem é o momento de “identificação de todo nosso ser, sem distinção
entre espírito e corpo [...]” (ASSUNTO apud SERRÃO, p.368). E como ressaltou Lima
(2004), “o problema reside não transformação da natureza pela cultura, mas no caráter e nas
formas dessa transformação” (p.11).
A NATUREZA, A CIDADE, A ESCOLA, A PEDAGOGIA
A realidade na rede pública de ensino tem sido insipiente às potencialidades dos
seus espaços livres e ainda resistente a mudanças. Há mais de vinte anos atrás, Mayumi
Lima (1988) que acreditava que o prédio da escola estabelece os limites e características do
atendimento era colocado no rol dos itens secundários dos programas educativos, descrevia
os obstáculos que ainda enfrentamos hoje. Mayumi Lima (1989) entendia a escola como:
[...] o único espaço que as cidades paulistas oferecem universalmente como possibilidade de reconquista dos espaços públicos e populares – domínio das atividades lúdicas (jogos e brinquedos) –, que as crianças e jovens perderam na cidade capitalista e industrial. A reconquista requer o rompimento da escola/ prisão/ fortaleza e sua transformação na escola/ praça/ parque, onde os fechamentos serão limitados aos níveis e ambientes que, pelos seus equipamentos, instalações ou materiais, deveriam ser preservados ou defendidos contra assaltos (p.101).
O espaço livre da escola pública é tratado como resíduo dos exíguos terrenos
disponíveis na periferia. Como disse Mayumi (1995), até mesmo nas escolas e creches, as
áreas livres para brincar, são tratadas como áreas abandonadas, simples terreno de chão
batido invadido pelo mato.
1 De acordo com Bartalini (2013, p. 15), a palavra Stimmung pode ser aproximadamente traduzida como “atmosfera” ou “estado da alma”.
Sincronicamente, a política de normas para construção de escolas públicas criadas
pelo órgão responsável pelas práticas educacionais em São Paulo (FDE), reflete a mesma
inércia em relação às áreas livres:
Restringir o plantio a gramados e árvores. Em casos especiais, como contenção de talude ou drenagem de solo, poderá ser indicada espécie vegetal que contribua para tais funções de forma específica. Adequar o projeto paisagístico ao meio ambiente físico local, fazendo quando possível o uso de espécies nativas. Locar as árvores próximas às divisas, sobre áreas de recuos obrigatórios. Evitar árvores com folhas pequenas próximas ao edifício evitando o entupimento de calhas. Palmáceas e outras espécies de folhas grandes são recomendáveis. Especificar árvores de forma que as raízes não comprometam a estabilidade de muros. Evitar que raízes e copas interfiram com as faixas de circulação. Especificar espécies que floresçam em diferentes épocas do ano (FDE, 2011, grifos nossos).
Esta perspectiva utilitária do espaço livre escolar está presente na visão de muitos
gestores de escolas públicas. Muitos acreditam que não são espaços fundamentais e “geram
muito mais problemas e dificuldades de gestão do que benefícios para a comunidade
escolar” (GONÇALVES; FLORES, 2011, p.27).
Centenas de escolas atualmente ainda são tratadas como objetos e construídas para
educar seres passíveis adequados ao mundo de acordo com as ideologias dos opressores.
Como colocado por Freire (2005), “os oprimidos, como objetos, como quase ‘coisas’, não
tem finalidades. As suas são as finalidades que lhes prescrevem os opressores” (p. 65).
Esses “objetos” funcionam de acordo com a descrição de Mayumi Lima (1989):
[...] as construções (das escolas) podiam se destinar tanto a crianças, a sacos de feijão ou a carros, pois são apenas áreas cobertas, com fechamento e piso. (Pois) os seres humanos perderam não apenas a sua capacidade única de dar sentido às coisas, mas também perderam o instinto primário de todos os animais adultos de buscar o ambiente mais favorável para o desenvolvimento dos seres jovens de sua espécie. (p.11)
Porém, na atual situação econômica, cultural e de adensamento que vivemos na
cidade os espaços livres das escolas públicas, ainda não vistos como ambientes
transformadores, possuem significância ímpar. São espaços que permeiam toda a malha
urbana, atendem milhares de crianças, jovens e adultos diariamente, e aos finais de semana,
recebem a comunidade local, ampliando oportunidades de lazer para populações mais
vulneráveis.
São constituintes do Sistema de Espaços Livres (SEL) urbanos e suas áreas verdes
um subsistema do SEL, como aponta Queiroga (2012, p.79). Assim como os espaços não
vegetados tem grande relevância cultural, a contribuição ambiental desses “nichos” verdes
na malha urbana é fundamental. Queiroga (2012) ressalta que os espaços livres sem
natureza na cidade são essenciais para atividades como feiras, festas populares,
manifestações políticas, valorização de paisagens e do patrimônio histórico e cultural.
Contudo, se os diferentes tipos de espaços livres na cidade assumem uma
pluralidade de papéis, questionamos a potencialidade dos espaços livres “verdes” das
escolas de transformar a “esfera da vida cotidiana” (QUEIROGA, 2012, p. 39). A esfera do
cotidiano corresponde, em termos espaciais, ao que Lefèbvre (2009, p.38-46, apud
QUEIROGA, 2012, p.40), em sua tríade espacial denominou “espaço percebido”: o espaço
da prática social, o espaço dos sentidos, da produção e da reprodução, do trabalho e do
lazer, definido, em suma, pela vida cotidiana (p.39-40).
Se considerarmos a desigualdade de distribuição espacial de áreas verdes no
contexto da cidade de São Paulo a escola poderia desabrochar como lócus criador de
oportunidades de contato com elementos naturais. A escola pode tornar-se, de acordo com
Pereira (2006, p. vii) como constituinte do sistema de espaços livres, protagonista no
fortalecimento da construção de espaços mais prazerosos na cidade. É necessário
considerarmos essas áreas como lócus na formação da compreensão e estudo do ambiente
urbano, como disse Pereira (2006), e então vencer o descompasso entre o ritmo da gestão
escolar, das políticas públicas, das práticas pedagógicas e das práticas arquitetônicas.
Os tempos da escola, que incorporam transformações culturais de sua época, não
caminham paralelamente aos seus espaços, que permanecem estagnados em concepções
arquitetônicas desalinhadas frente às necessidades pedagógicas para uma educação mais
integral. É preciso vencer o mito de que agrupar, alinhar, comparar e dar “migalhas” às
crianças, como dizia Freinet (2004), é suficiente para a educação dos pobres. Os
tradicionais conflitos que permeiam a escola pública e fortalecem práticas educativas
estagnadas estão desvalorizando seus espaços.
Porém, existe uma movimentação no campo pedagógico no sentido de harmonizar a
experiência educativa e adequá-la às complexidades do cotidiano. Tais reflexões estão
encabeçando uma mudança de paradigmas que a educação brasileira tanto carece.
Luta-se por uma escola que ultrapasse o espaço edificado, permeie o mundo e
humanize as pessoas (MOSÉ, 2015; FREIRE, 2015; GADOTTI; ALVES, 2015). Uma
escola liberta do modelo panóptico definido por Foucault (2014) como um padrão de
organização do espaço semelhante às prisões e que transforma escolas em espaços sem
vida.
Mosé (2015) entende que a escola tornou-se uma instituição isolada, sem conexão
com a sociedade e com ela própria, prejudicando o desenvolvimento cognitivo de seus
alunos que deveria ser refinado através de conexões cada vez mais amplas e complexas.
Logo, “prejudica também as relações humanas, a prática da justiça social, o exercício da
cidadania, implica diretamente o aumento do grau de angústia e solidão e impulsiona cada
vez mais ao consumo de produtos, de pessoas, de drogas lícitas e ilícitas” (p.51).
Ao fragmentarmos os espaços e os saberes reforçamos os moldes que oprimem e
vamos na contramão da pedagogia freiriana da libertação do homem pela busca da
consciência crítica. “Na medida em que as minorias, submetendo-se as maiorias a seu
domínio, as oprimem, dividi-las e mantê-las divididas são condição indispensável à
continuidade de seu poder” (FREIRE, 2015, p. 190). Quando Freire (2015) explica que no
mundo, o intercessor da aprendizagem, os homens partilham a educação, e ninguém educa
ninguém, a educação torna-se um ato em que simultaneamente os homens vão refletindo
sobre si e sobre o mundo. Neste sentido, os espaços mediatizam o aprendizado ao
despertarem a percepção e compreensão do mundo (FREIRE, 2015).
Rubem Alves (2015) defende que não existe uma relação da educação com o
ambiente, mas uma verbalização dos conceitos e problemas. A escola como portadora de
um projeto social mais amplo teria capacidade de transformar sua postura diante do mundo
e através de espaços mais qualificados incentivar a criança a enxergar, sentir e refletir. Para
isso precisamos reforçar as bases interdisciplinares para que o sistema integre escola,
cidade, sociedade, educação e natureza.
METODOLOGIA
Esta pesquisa utilizou o método qualitativo, reconhecido como sendo muito efetivo
em pesquisas do mundo empírico, pois é dinâmico e flexível (TAYLOR; BOGDAN, 1998).
Foram realizadas entrevistas com gestores e professores de escolas públicas, oficinas de
desenhos e maquete com alunos do ensino fundamental e observação participativa nas
escolas. Após as entrevistas, os dados foram lidos e relidos e analisados para que possíveis
temas, conceitos e teorias fossem identificados. Este método possibilitou a comparação
entre diferentes pedaços de dados e seu gradual refinamento, movendo-os para um nível de
concepção mais elevado (GLASSER, 1967).
O total de nove entrevistas, realizadas com profissionais das escolas do entorno do
Pinheirinho D'água Parque Educador, tiveram a participação de diretores, coordenadores
pedagógicos, professores e funcionários administrativos do parque. Duas oficinas foram
realizadas com uma classe do terceiro ano do ensino fundamental da EMEF Monteiro
Lobato.
SENTIDOS E SIGNIFICADOS
Vimos que os significados dos espaços livres para seus gestores recaem sobre a
qualidade dos espaços. E as práticas pedagógicas aliadas a visão do gestor definem a
relação das crianças com a natureza existente. Pudemos notar que o “controle” do espaço
escolar, enraizado no modelo panóptico, ainda está presente na escola pública.
Todos os entrevistados compartilham a ideia de que a exposição a elementos
naturais poderia contribuir para crianças mais sensíveis às questões do meio ambiente;
porém, são raras as escolas que possuem ações para libertar as crianças dos “espaços
enclausurados, pequenos e contido por grades”. Por motivos disciplinares, ou de
segurança, as crianças são contidas nos espaços internos durante todo o período, exceto
para aulas de educação física.
“(...) a escola precisa lutar um pouco com a disciplina do corpo”. (Diretor EMEF A2)
“(...) a hora do intervalo normalmente é no pátio fechado. Então são em torno de 200 alunos fechados ali. (...)Quando eles chegam na escola eles querem correr. Aí, o que você tem aqui? E você fecha o pátio! É difícil!” (Coordenadora EMEF A5)
A natureza é vista como “suja” e “perigosa” pelos educadores. Esta visão parece
refletir os padrões culturais crescentes na sociedade contemporânea de distanciamento da
natureza.
“As famílias não gostam muito desse trabalho não, sabe. Porque suja a roupa, suja a mão, porque a criança vai pegar germe. Você vê muito isso nas escolas, porque o pessoal tem medo, eu vejo aqui as professoras novas que chegam: -Ah, mas vai soltar as crianças? Pode subir no escorregador? Mas pode balançar? (...) e os pais reclamam: - mas o uniforme chega sujo!” (Diretora EMEI A6)
A natureza, descrita através de doces lembranças de infância pelos entrevistados,
não parece ser encarada como experiência para ser vivida na escola.
“Eu morro de medo que eles vão cair e se arrebentar. Mas eu fico pensando, corro esse risco ou não? Nós temos nos permitido correr esse risco. Sabe o que é, basicamente ver a cara deles (...); tem épocas que a gente não deixa subir. Hoje por exemplo, choveu, ontem choveu, então tem um pouquinho de barro, a gente não deixa ir lá porque vai empestear a escola, etc. Mas eles ficam, (...) porque eu não posso ir? Porque eu não posso subir? (...) porque, poxa, é aonde o cara se diverte, curte pacas. Em casa não tem, não vão para o sítio, não tem essa possibilidade, não vão para o parque, e isso tudo estoura na escola. Se você tivesse chegado aqui num dia que tivesse sol eu ia te mostrar os primeiros e segundos anos, as camisetas marrons. Porque eles sobem, rolam, e é um espaço desse tamanho. Os pais não entendem. Quando isso acontece vem aqui furiosos!” (Diretor EMEF A4)
Notamos em todas as escolas que muitas das representações artísticas como pinturas
nas paredes, nos pilares, no mobiliário, móbiles, desenhos, aquário com peixes e vasos de
plantas aludiam à natureza, e funcionam segundo disse um diretor para “humanizar” a
escola. Arriscamos dizer que estas manifestações são maneiras instintivas das crianças de
resgatar a falta de natureza em seu cotidiano, ou seja, um reflexo da tendência congênita de
nos afiliarmos com outras formas de vida segundo a hipótese biofílica.
Pudemos observar uma desigualdade espacial significativa entre escolas de
educação infantil e de ensino fundamental. Uma criança de EMEI, que brinca em espaços
livres com árvores, terra, areia e banhada pela luz
do sol, ao atingir cinco anos e meio ganha a uma nova rotina na EMEF, aprisionada dentro
de pátios fechados. Os espaços demonstram que esta “transição” deve ser difícil (fig. 1 e 2)
e todos os entrevistados confirmam que o período de mudança da educação infantil para o
fundamental é complexo e significativo na vida das crianças.
Apesar do abismo entre as rotinas de EMEIs e EMEFs, como explicaram os
educadores, poderíamos supor que a falta de usufruto dos espaços livres e do contato com a
natureza interfira negativamente na adaptação das crianças em sua nova fase escolar.
Mesmo apesar de ter sido endereçada na gestão Haddad, com o Currículo Integrador
da Infância que trata cuidadosamente da articulação EMEI – EMEF, arriscamos colocar que
esta problemática interdisciplinar recai também no campo da arquitetura e na oferta de
espaços livres e natureza. Notamos que a paisagem com elementos da natureza adjetiva as
Figura 1- Espaço para convivência/ brincar EMEI. Figura 2- Espaço para convivência/ recreio/ comemorações EMEF.
escolas, torna o ambiente escolar mais humanizado funcionando como um elemento
preceptor na vida das crianças, suavizando seu cotidiano.
Na percepção das crianças, o conceito de natureza parece estar ligado a experiências
em sala de aula ou relacionado a experiências afetivas. Muitos fizeram referências ao
“Ibirapuera” e “Amazônia” como lugares que representam Natureza. Notamos que as
crianças não têm contato direto com a natureza no seu cotidiano e poucos conseguiram
expor uma experiência neste sentido, vivida em suas casas ou em seu bairro. Porém, as
memórias na Natureza eram frequentemente associadas a paisagens naturais na presença
dos pais, irmãos ou família em momentos especiais, como um passeio no parque, uma
trilha, viagem para a praia, ou férias na terra natal.
Para poucos a natureza tinha significados mais profundos. Convidada a falar de um
lugar com natureza que gostava bastante, Giovana respondeu que era a floricultura.
Ah porque lá é bem colorido, tem um cheirinho bastante bom das flores perfumadas, lá é um pouco mais calmo, lá eu gosto de ficar só pra estudar um pouquinho no meio das plantas (...). (Aluna 3º ano ensino fundamental)
Que imagem de natureza estamos depositando em nossas crianças? A cidade parece
apagar memórias de natureza e as escolas, salvo algumas exceções, desempenham um papel
superficial nesse sentido. A natureza na escola parece ser invisível aos olhos da criança.
Nenhum dos alunos fez referências às áreas com árvores e vegetação na escola como seu
lugar preferido. Muitos preferem a quadra, a cantina, e as vezes até a sala de aula, como
explicou uma aluna.
Ah, porque ela é um pouco mais calma. Um pouco mais estudioso. Eu gosto...a gente pode ter um pouquinho de silêncio, a gente aprende várias coisas novas. Por isso que eu
Observamos que as crianças não têm acesso livre aos espaços com natureza, que
não estão preparados para recebê-las e são cercados por grades. Pudemos notar que os
elementos naturais na escola parecem realmente não fazer parte do imaginário do grupo
estudado. Porém, quando estimulamos o contato, pudemos verificar instantaneamente a
sinergia de todos os alunos com os elementos da natureza.
Meninos e meninas ficaram extasiados ao correr livremente e subir nas árvores,
pegar pedaços de galhos, folhas, observar texturas, entre outras atividades. Em
contrapartida, indagamos as crianças sobre o que mais gostaram no piquenique que haviam
feito nesse mesmo espaço semanas antes. Não tinham lembranças da natureza, apenas da
professora e do motivo do passeio – a salada de frutas.
Por um momento, conseguimos guiá-las para seguirem seus instintos e brincar
livremente e pudemos notar que elas precisam de orientação para usufruir da natureza.
Naquele tempo em que ficaram livres, que não tinham obrigações a cumprir e tinham
espaço e estímulos visuais se apropriaram da natureza.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Freinet (2004) dizia que o raio de sol era o segredo da Escola moderna. O momento
que nos encontramos tem transformado como as crianças percebem o mundo. Práticas
Ah, porque ela é um pouco mais calma. Um pouco mais estudioso. Eu gosto...a gente pode ter um pouquinho de silêncio, a gente aprende várias coisas novas. Por isso que eu
Figura 4- Desenho Rafaella. Lugar preferido da escola, a quadra
capitalistas nos direcionam para experiências artificializadas longe dos resquícios e
simplicidades das paisagens naturais.
Esta pesquisa revelou que o vínculo da criança com o mundo natural está
fragilizado e a escola pública não tem trabalhado no fortalecimento dessa conexão. Porém,
observamos que a escola tem enorme potencial para transformar seus espaços livres em
experiências para enriquecer o contato com a natureza, com a vida.
E finalmente, entendemos que toda a criança, na simplicidade de sua infância,
vivida no cotidiano cruel das periferias paulistanas, tem o direito de viver paisagens e
contemplar a natureza, imergir em seus cheiros, sons, cores e movimentos; perceber seus
prazeres, sentir-se parte dela. E que no futuro, a coleção de lembranças vividas nessas
paisagens a faça sorrir e que transformem e sustentem a vida no planeta.
Referências
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