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1 MALTER, R. Arthur Schopenhauer Tranzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens. Stuttgart-Bad Cannstatt: fromman- holzboog, 1991. Pp 353-369. Primeira Versão da Tradução e Revisão: Felipe Durante e Erik Petschelies II – A Destrutividade do Egoísmo (§78) [353] Do fato de que todo indivíduo corpóreo por natureza é egoísta mostra-se a destrutividade e a origem do sofrimento do egoísmo. 1 Se o egoísmo surgisse apenas de vez em quando, então permaneceria largamente limitado ao indivíduo egoísta singular. Seria para si mesmo desvantajoso e sofreria sozinho em sua isolada e monádica forma de existir. Mas Schopenhauer quer mostrar aqui que o egoísmo (em virtude da parcela de vontade contida nele) é, portanto, uma característica essencial do ser humano, que ele [egoísmo] serve a todos os indivíduos necessariamente e estabelece uma relação negativa de todos contra todos. O egoísmo interpretado a partir da metafísica da vontade é o fenômeno no qual o grau de objetivação “ser humano” geralmente se revela de forma mais clara no conflito visível da vontade consigo mesma. No âmbito da metafísica da vontade o egoísmo é abrangido, também, no programa de decifração da luta dominante em toda parte da luta do 1 Cf. W I (§61), 391ss.

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MALTER, R. Arthur Schopenhauer Tranzendentalphilosophie und Metaphysik

des Willens. Stuttgart-Bad Cannstatt: fromman-holzboog, 1991. Pp 353-369.

Primeira Versão da Tradução e Revisão: Felipe Durante e Erik Petschelies

II – A Destrutividade do Egoísmo (§78)

[353] Do fato de que todo indivíduo corpóreo por natureza é egoísta mostra-se a

destrutividade e a origem do sofrimento do egoísmo.1 Se o egoísmo surgisse apenas de

vez em quando, então permaneceria largamente limitado ao indivíduo egoísta singular.

Seria para si mesmo desvantajoso e sofreria sozinho em sua isolada e monádica forma

de existir. Mas Schopenhauer quer mostrar aqui que o egoísmo (em virtude da parcela

de vontade contida nele) é, portanto, uma característica essencial do ser humano, que ele

[egoísmo] serve a todos os indivíduos necessariamente e estabelece uma relação

negativa de todos contra todos. O egoísmo interpretado a partir da metafísica da vontade

é o fenômeno no qual o grau de objetivação “ser humano” geralmente se revela de

forma mais clara no conflito visível da vontade consigo mesma. No âmbito da

metafísica da vontade o egoísmo é abrangido, também, no programa de decifração da

luta dominante em toda parte da luta do individuo contra todos (também do domínio

extra-humano) como ponto de partida de toda luta:

[354] Recordemos do segundo livro que em toda natureza, em todos os graus de objetivação da vontade existe uma luta necessária entre os indivíduos de todas as espécies, e, justamente por isso, exprime através disso o conflito interno da vontade de vida contra si mesma. Nos mais altos graus de objetivação, como todas as outras [coisas], também aquele fenômeno se apresenta na mais elevada clareza e, então, deixa-se decifrar.2

Que o egoísmo em sua destrutividade do eu, ou seja, segue necessariamente

determinado através da vontade e do princípio de razão suficiente, acrescenta

Schopenhauer na regressão (basicamente exposta no parágrafo 3) das relações especiais

da vontade e do princípio de individuação no sujeito. Schopenhauer fala da

destrutividade do egoísmo sob dois pontos de vista:

(a) O indivíduo luta em todas as suas ações contra si mesmo, porque embora ele

esteja separado dos outros pelo princípio de individuação, em que, essencialmente, não

1 Cf. W I (§61), 391ss.2 W I, 391.

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se pode ver outra coisa do que a multiplicação de sua própria essência em todos os

outros indivíduos, mas a qual se encontra para si mesma apenas imediatamente a própria

individuação. Exatamente o conhecimento que (em outro contexto) conduzirá à negação

do eu (Entlichichung), não efetuando o indivíduo em seu fato-original – o

conhecimento, a saber, de que não existe diferença em essência entre ele e todos os

outros indivíduos. Todavia, o fato-original faz essa diferença total e a aproveita para

ensejo que isola na diferença todo ser experienciado dos seres para manter apenas sua

singularidade efetivo-própria (Singularität Eigentlich-Eigene); segue-se em seu

comportamento prático essa centralidade do ser em sua individuação que reivindica

aquilo que se necessita para si, mesmo que seja sob o preço da destruição do outro:

Nomeamos tempo e espaço, porque somente através deles e neles é possível a pluralidade do mesmo, de princípio de individuação. Eles são as formas essenciais do conhecimento natural, isto é, o conhecimento que brota da vontade. Assim, em toda a parte aparecerá a vontade mesma na pluralidade os indivíduos. Mas essa pluralidade não o atinge, a vontade como coisa-em-si, mas apenas o seus fenômenos: ela está em cada um, de modo completo, disposta de modo indivisível e enxerga ao redor de si de forma inumerada e repetida a imagem de sua própria essência. Mas ela mesma, quer dizer, é o efetivamente real, encontra imediatamente apenas em seu interior. Assim, todos querem tudo para si mesmos, querem possuir tudo, ao menos dominar, e o que resiste, querem aniquilar.3

(b) Resultado do primeiro ponto de vista da explicação da destrutividade do

egoísmo do transcendentalismo da autoconsciência (a descoberta do ser) e da metafísica

da objetivação (frequência da vontade em muitos indivíduos), dessa forma conduz

novamente ao segundo ponto de vista ao transcendentalismo da representação. [355] Do

seu fundamento Schopenhauer procede acerca do “egoísmo teórico” e o explica como

inexplicável, porque é dado como tendencioso para o ser de representação. Na

explanação da destrutividade do egoísmo, Schopenhauer insere a genuína tendência da

representação para uma visão de mundo solipsístico como meio de explicação e soma a

isso o ponto de vista da metafísica da vontade – como a doutrina de que a vontade de

vida está presente em todos os indivíduos qualitativamente de forma completa, e que

encontra em si mesma o mundo inteiro:

Para esta finalidade, no ser cognoscente, que o indivíduo é o portador do sujeito do conhecimento e esse é o portador do mundo, isto é, que toda natureza exterior a ele, assim também todo o restante dos indivíduos, existem apenas em sua representação, ele mesmo a ela existe sempre apenas como

3 W 1, 391.

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sua representação, assim apenas mediatamente e como conscientemente de seu próprio ser e existência; já que com a consciência do seu ser desaparece também necessariamente o mundo, isto é, seu ser e não ser serão idênticos e indistinguíveis. Cada indivíduo cognoscitivo é também em verdade e encontra-se como toda a vontade de vida, ou como em-si do mundo mesmo, e também como condição completa do mundo como representação, seguindo como um microcosmo que é apreciável igualmente do macrocosmo. A eterna e onipresente verídica natureza dá ao indivíduo, embora original e independente de toda reflexão, esse certo conhecimento simples e imediato.4

Os pontos de vista da explanação (a e b) tomados de diferentes formas de

reflexão esclarecem que o egoísmo constitui, assim, uma ação tanto teorética quanto

prática (“disposição” [Gesinnung]) do homem, que deriva da essência do homem. O

homem não é ocasionalmente egoísta (também quando, em geral, a ação egoísta se

mostra apenas ocasionalmente visível e não sempre de forma direta), mas

essencialmente [egoísta]. Por isso, é necessário demonstrar isso, porque da atribuição do

egoísmo à essência humana já esclarece que o egoísmo consiste enquanto o que o

homem quer, isto é, afirmar sua essência.

O ponto de vista “natural”, que é o ponto de vista do egoísmo agressivo-

destrutivo, tem de ser reconhecido em sua essencialidade, quando a reflexão

soteriológica deve avaliar de modo geral corretamente o poder do adversário. Por um

lado a diferença radical entre a patologia e soteriologia schopenhauerianas e todas as

doutrinas, vêem no egoísmo um fenômeno acidental não verdadeiramente referente à

essência humana; por outro lado, indica de forma mais impressionante o local especial e

específico do pensamento ético schopenhaueriano: a ética é a reflexão do egocentrismo

auto-referido e é nisso imediatamente destrutivo. O eu do homem, constituído

primariamente através do princípio “vontade” é substancialmente egoísta-destrutivo:[356] De ambas as determinações necessárias especificadas esclarece-se agora que todos no mundo infinito desaparecem e o indivíduo é reduzido ao nada, contudo, faz-se o ponto central do mundo; sua própria existência e bem-estar sobre a de todos os outros é considerada, sim, como ponto de vista natural, disposto a sacrificar todos os outros, disposto a aniquilar o mundo, ao seu redor para conservar um pouco mais o seu próprio ser, aquela gota no mar. Essa disposição é o egoísmo, que é essencial a toda coisa na natureza.5

Que o egoísmo destrutivo é essencial significa, referente à doutrina da

objetivação, que ele é o fenômeno “no qual o conflito interno da vontade consigo

mesma alcança terrível manifestação”.6 No egoísmo o conflito alcança terrível forma na

manifestação, porque aquela essência, a vontade, se objetiva a si mesma no grau de

4 W I, 391.5 W I, 392; Cf. Janaway, 219s.6 W I, 392; cf. Vo IV, 146.

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objetivação “homem” sob uma forma, do princípio de individuação (e, em virtude da

sua multiplicidade). Assim, todo indivíduo humano compreende a si mesmo enquanto

ele experiência-se qualitativamente como a essência toda sob aquela forma (ou seja,

como vontade e representação), desse modo como se não houvesse realmente quaisquer

outros indivíduos, que, assim, como ele são qualitativamente a essência toda; ele

compreende os outros indivíduos apenas como objetos de sua representação – sem

relação à essência. Quer dizer: todo indivíduo interessa-se em sua essência apenas por si

mesmo; até mesmo a própria morte ele isola individualmente:Mas é por ele por onde o conflito interno da vontade consigo mesma alcança terrível manifestação. Porque este egoísmo possui a sua permanência e essência naquela contradição do microcosmo e macrocosmo, ou nisso, que a objetivação da vontade tem a forma do princípio de individuação e por isso a vontade aparece em incontáveis indivíduos como a mesma essência e, na verdade, em cada um deles mesmos em ambos os lados (vontade e representação) completo e por inteiro. Então, enquanto a cada um é dado a si mesmo imediatamente como vontade toda e inteira representada, antes de tudo deram o seu restante apenas como sua representação; e assim a ele sua própria essência, cuja conservação de todos juntamente avança. Até a sua própria morte vê como o fim de todo o mundo, enquanto ele que vê o seu conhecido como uma coisa razoável indiferente, quando ele não esteve implicado pessoalmente ou de modo próximo.7

Schopenhauer considera a sociedade humana como o lugar no qual o

impedimento mútuo condicionado do egoísmo, o qual pode levar à destruição do outro,

se torna efetivo e, em que será – visto na totalidade da objetivação da vontade – a

própria luta da vontade dos indivíduos aparece mais claramente:

Na consciência elevada ao mais alto grau, a humana, o egoísmo também teve de alcançar o mais alto grau, [357] tal como o conhecimento, o sofrimento e a alegria, e através dele se sobressaí o condicionado conflito dos indivíduos da forma mais horrorosa. Nós vemos isso por toda parte diante dos olhos, no pequeno como no grande, vemos isso logo no lado espantoso, na vida dos grandes tiranos, dos malfeitores e nas guerras devastadoras de mundos; logo no lado risível, onde é o tema da comédia e sobressai especialmente em todo sentimento de superioridade e vaidade, os quais Rochefoucault compreendeu como nenhum outro e o apresentou em abstrato: nós vemos isso na história do mundo e na própria experiência. Mas de forma mais clara se sobressai na medida em que um monte de gente dispensa todas as leis e o ordenamento: o que se mostrou imediatamente, claramente, na guerra de todos contra todos, a qual Hobbes, no primeiro capítulo de Do Cidadão, descreveu de modo admirável. Mostra-se não apenas como cada um procura arrancar do outro o que ele mesmo quer ter; mas também frequentemente alguém até mesmo destrói toda sorte ou vida do outro em troca de seu bem-estar através de uma adição insignificante. Esta é a maior expressão do egoísmo, cujos fenômenos, nesse ponto de vista, apenas podem ser ultrapassados por aqueles da

7 W I, 392.

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verdadeira maldade que procura de forma totalmente desinteressada o dano e a dor do outro sem nenhuma vantagem pessoal.8

Para a temática soteriológica, na interpretação de Schopenhauer do aparente

antagonismo social universal, a essencialidade do egoísmo é o ponto mais importante. O

sofrimento pertence essencialmente à vida, de forma metafisicamente volitiva; o

egoísmo possui uma origem primária do querer, e, assim, ‘a luta de todos os

indivíduos’9 produzida por ele [egoísmo], a “Éris”,10 é a ‘principal fonte do

sofrimento’11 atracada na essência humana. Isso possui consideráveis consequências

para as ponderações, como o sofrimento social poderia ser capturado do mundo.

Quando Schopenhauer diz que na vontade repousa ‘um conflito originário próprio’12

‘apesar das precauções que se tomou contra isso’13 (Sperrung R. M) ‘uma inesgotável

fonte de sofrimento’14, assim alude às diligências, as quais tentam limitar o sofrimento

sem a supressão do egoísmo, isto é, primariamente da vontade, limitar – ele fala da

eliminação da injustiça em um fundamento egoísta, isto é, da função do direito e do

Estado no que diz respeito a conter a ‘guerra de todos contra todos’. Tão importante

para Schopenhauer, essa função que esclarece a fala das precauções que se tomou contra

o sofrimento: ele permanece na antecâmara (Vorheld) da dissolução do sofrimento,

porque elas mesmas servem o egoísmo, do qual brota o sofrimento.15

III – O Egoísmo como origem da Injustiça (§79)

A autoafirmação da vontade, a qual encontra a sua primária efetivação na

afirmação do “corpo” em todos os seus atos, não é entretanto necessariamente por si em

ato francamente agressiva, mas tendencialmente contém sempre o esforço de executar a

sua realização primária de tal maneira que ela nega a afirmação – que um corpo

individual apresenta – e impõe a própria afirmação sobre as expensas da autoafirmação

em outros indivíduos. Essa irrupção de cada autoafirmação da vontade pode se seguir de

diversas formas – como homicídio, dano / lesão / ferimento (Verletzung), escravidão;

em cada um desses casos o indivíduo auto-afirmado comporta-se em seus atos negando

a autoafirmação dos outros indivíduos e restringindo-os ou aniquilando-os 8 W I, 392.9 W I, 392s.10 W I, 393, Éris, deusa grega da discórdia [N.T.].11 W I, 393.12 W I, 393.13 W I, 393.14 W I, 393.15 Cf. nosso §57.

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completamente. Cada ato de negação da autoafirmação de uma outra vontade, isto é, de

um corpo alheio como finalidade da conservação ou aumento da própria afirmação é

injustiça:

Mas, enquanto a vontade se apresenta naquela autoafirmação do próprio corpo em inumeráveis indivíduos um ao lado do outro, ela vai, da faculdade do egoísmo peculiar de todos, muito facilmente de um indivíduo sobre essa afirmação para além, até a negação dela mesma, no fenômeno da vontade de outro indivíduo. A vontade do primeiro irrompe as fronteiras da afirmação da vontade de outrem, na medida em que o indivíduo ou destrói ou fere o corpo alheio ele mesmo, mas também quando ele compele as forças dos corpos alheios a servir a sua vontade, ao invés da vontade que aparece no próprio corpo alheio que aparece à vontade; então, quando ele priva – enquanto corpo alheio – as forças da vontade que aparece desse corpo e através disso multiplica a força que serve a sua vontade sobre a de seu próprio corpo, assim ele afirma para além da sua própria vontade sobre o seu próprio corpo por meio da negação da vontade que aparece em um corpo alheio.16

Se também não de forma reflexiva, mas ainda na duradoura forma emocional,

ambos os lados estão conscientes da injustiça resultante das relações de dois indivíduos

em situações respectivamente diferentes. Aquele, a quem sucede da injustiça, sente a

relação de injustiça na dor; aquele, que faz injustiça, sente “no remorso” a relação de

injustiça.17 Este dá a entender ao praticante de injustiça de modo vago, que ele [o

praticante da injustiça], que nega a vontade (corpo) do outro, nega a vontade, que é ela

mesma enquanto corpo. No olhar sobre a ainda discutida doutrina da “justiça eterna”

denomina-se assim: sobre o modo vago (emocional) anuncia-se no autor (mas também,

como o texto implicitamente sugere, na vítima) a consciência daquilo que de uma

modificada forma de conhecimento será reconhecida como a “justiça eterna”. [359] Dor

“espiritual” 18 e remorso anunciam de forma confusa e não avaliada o ponto a partir do

qual será visível a definitiva libertação: a identidade da vontade em todos os indivíduos

e o conflito da vontade consigo mesma:

Pois ambas as partes reconhecem a coisa, ainda que não como nós aqui em clara abstração, mas sim como sentimento, instantaneamente. Quem sofre injustiça sente a invasão na esfera da afirmação do seu próprio corpo, através da negação da própria vontade [afirmação] oriunda de um indivíduo alheio, como uma dor instantânea e espiritual, uma dor por inteira separada e diversa do sofrimento físico sentido através do ato, ou do aborrecimento através da perda. Ao praticante de injustiça, por outro lado, apresenta-se o conhecimento de que ele em-si é a mesma vontade que também aparece em cada corpo, e que em cada fenômeno se afirma com tal veemência, que ele, o

16 W I, 394; cf. Vo IV, 147ss.; Neidert, 13ss.; Schöndorf (1), 221s.; Würkner (1), 87ss.17 W I, 395; cf. Vo IV, 90s., 148, 20ss.18 W I, 394.

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praticante da injustiça, extrapola os limites do próprio corpo e de sua força até a negação dessa vontade no plano de outro fenômeno, segue-se, assim, que ele, considerado enquanto vontade em si, através do plano de sua veemência na luta conta si mesma, rasgando ela mesma a própria carne [dilacerando-se]; que ele ao ultrapassar as fronteiras do próprio corpo e de sua força torna-se precisamente a negação dessa vontade em outros fenômenos, assim ele, visto como vontade em si, precisamente briga consigo mesmo através da sua veemência dilacerando-se a si mesmo; – também a ele apresenta-se, digo eu, esse conhecimento imediato, não em abstrato, mas como um claro sentimento: e esse sentimento indica o remorso, ou, mais próximo para esse caso, o sentimento da injustiça cometida.19

Do conceito de injustiça à concepção schopenhaueriana do conceito de direito;

“Direito” é sob o fundamento de uma metafísica da vontade um conceito secundário:

O conceito de direito contém, a saber, apenas a negação da injustiça, e ele será subsumido toda ação a qual não transgrida além das fronteiras constituídas, isso é, não é a negação de uma vontade alheia, para a mais forte afirmação da própria [vontade].20

Decisivo para a concepção schopenhaueriana de justiça e injustiça21 é o fato de

que esses dois conceitos ainda não são jurídicos (como se poderia supor a partir do uso

de linguagem habitual), mas sim originariamente de modo puramente moral. A partir

deles [justiça e injustiça] pode-se classificar “o inteiro domínio das ações possíveis” 22

sobre o ponto de vista moral23. Justiça e injustiça dizem respeito então à qualidade ética

das ações, e é de se observar que este significado de justiça e da injustiça das ações (o

“significado puramente moral”) 24 diz respeito ao homem em geral, isto é, também fora

da sociedade institucionalizada [360] (o Estado). A qualidade ética das ações indica

quais significados da justiça e da injustiça tem

para os homens enquanto homens, não enquanto cidadãos do Estado, o qual, por conseguinte, também tenha permanecido no estado de natureza, sem toda lei positiva, o qual constitui o fundamento e o conteúdo de tudo que se assim designou-se direito natural, mas que seria melhor chamar de direito moral, pois sua validade não se estende ao sofrimento, à realidade exterior, mas apenas ao ato e ao autoconhecimento de sua vontade individual que brota da ação no homem, a qual se chama consciência moral, mas que se podem fazer

19 W I, 394 s.20 W I, 400 (Os graus da injustiça: canibalismo, homicídio, mutilação, escravidão, cf. W I, 395s).; para: violência, astúcia, mentira, quebra de contrato cf. W I, 398 s.; especificamente sobre a questão da propriedade cf. W I, 396ss.; para a forma da injustiça em seu conjunto cf. Vo IV, 149ss.21 Cf. A monografia padrão de Neidert, 10ss. e passim. Cf. adiante Copleston, 160ss.; Damm, 29ss. e passim; Hamlym (1), 138; Hasse (1), 341ss. ; Röhr, 82ss.; Würkner (3), 83ss. Para o texto principal W I (§62); Cf. Vo IV, 158s. 161ss.22 W I, 400.23 Cf. W I, 400, Z. 17-29.24 W I, 403.

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valer ou impedir no estado de natureza não em todo caso para fora, para outros indivíduos, de modo que a violência impere ao invés da justiça.25

Então, “determinações morais” 26 são a justiça e a injustiça nesse ponto em que elas vão

para o que segundo a concepção ética de Schopenhauer é o objeto da moral: que do

egoísmo destrutivo exprimiu-se uma ação injusta. Nele vem a vontade para o efeito, e

com ela ocupou-se a reflexão ética em primeira linha, pois a libertação do sofrimento é

idêntica à supressão do egoísmo destrutivo materializado no agir injusto. O sofrer

injustiça deriva indiretamente da vontade e faz parte por isso apenas na forma

secundária para ética em sentido estrito, o que todavia não significa, que o dito antes

sobre a origem da vontade do sofrimento agora não vale mais. O que muitas vezes

Schopenhauer pretende quando ele relaciona o agir injusto à ética e o sofrer injustiça à

própria reflexão ética exterior, é sua tese de que a supressão do sofrer injustiça é apenas

um possível desvio sobre a negação da vontade, mas não pode tornar-se válido em um

acesso diretamente. Entretanto, o sofrer injustiça já se deixa impedir no horizonte do

sujeito egoísta, então já antes da vontade mesma enquanto origem do sofrimento ser

suprimida. O impedimento do sofrer injustiça é o tema da doutrina do Estado

schopenhaueriana, enquanto que a supressão do agir injusto (através do “direito

moral”,27 o direito natural), é o tema da ética em sentido estrito, em sentido moral:

A pura doutrina do direito é então um capítulo da moral e relaciona-se diretamente apenas com o ato, não com o sofrer. Pois apenas aquele é manifestação da vontade, e esse isoladamente considera a moral. O sofrimento é mero acontecimento: apenas indiretamente a moral pode considerar também o sofrimento, a saber, apenas para demonstrar que o que apenas acontece sem sofrer injustiça, não é um ato injusto.28

IV. A supressão egoísta do egoísmo através da prevenção do sofrer injustiça: o

Estado (§80)

A doutrina do Estado não é parte da pura doutrina do direito, porque ela

concerne meramente à consequência externa daquilo que é tematizado na pura doutrina

do direito: seu objeto é a prevenção da consequência do agir injusto, isto é, o sofrer

injustiça, e assim surge a doutrina do Estado, como doutrina oriunda do direito positivo,

sobre o grau mais básico da reflexão da dissolução do sofrimento, pois ela ensina 25 W I, 403; Cf. Neidert, entre outras coisas 172.26 W I, 402.27 W I, 403.28 W I, 404; Cf. Vo IV, 161ss.; Neidert, 28s., 124ss.

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apenas uma aparente dissolução do sofrimento, porque ela tem apenas como objeto a

sobrevivência física do homem egoísta entre homens egoístas. O egoísmo é restringido

pelo Estado em torno da otimização de seu querer. A raiz do sofrer injustiça, portanto,

não é apenas tocada, ela é até mesmo nutrida e aumentada. Assim, não se admira que

Schopenhauer negue toda a capacidade do Estado e sua competência em melhorar os

homens. O Estado não é uma instituição corretiva, mas sim a instituição na qual o

egoísmo deve perder sua agressividade externa para poder se conservar (ainda que

apenas de maneira destrutivamente latente).

A prevenção do sofrer injustiça ocorre no Estado a partir do ato do qual o sofrer

injustiça provém. Isso não significa que ele, o Estado, no entanto, relaciona a prevenção

do sofrer injustiça com o agir injusto em sentido moral, com a disposição, ou seja, com

o “significado ético” da ação. As medidas que o Estado adota para eliminar o sofrer

injustiça, ao menos para restringi-lo, iniciam-se com resultado imediato do agir injusto.

As ações injustas são apenas o outro lado – no que diz respeito ao seu ‘caráter

constitutivo’ não tematizado –, a saber, o motivo, que está no olhar da reflexão

filosófica do Estado: ela se preocupa com os (injustos-) atos na consideração dos fatos,

que esses estão no nexo causal dos fenômenos, e é, por conseguinte, a consideração dos

motivos: através da consideração dos motivos Schopenhauer concebe o Estado, e

decisivo nesta concepção é que o Estado resulta da razão. Isso vale nos seguintes

termos:

Considerando-se os homens em vista do seu sofrer injustiça apenas da

perspectiva da metafísica da vontade, assim a sua existência está irrevogavelmente

dependente do egoísmo agressivo-destrutivo. A vontade pode ela mesma em sua

atividade sempre apenas afirmar – sem limitação do seu alcance, ainda com a tendência

do seu apetite também ser realizado sobre os custos dos danos ou perdas de outros. Caso

o egoísmo seja limitado com a finalidade de prevenir o sofrer injustiça, então ele precisa

além da vontade ainda um outro momento – um momento que não pode ser efetuado

pela prevenção inexecutável proveniente da vontade. Isso é para Schopenhauer a razão

sobretudo em seu valor prático. O uso prático da razão cria o Estado. 29

Dado o sofrer injustiça à razão, “um acontecimento” 30, que de um lado se

apresenta como um mero fato “na experiência exterior” 31, e por outro lado se mostra

29 Cf. Os textos principais da doutrina do Estado de Schopenhauer W I, 399ss.; W II, 682ss.; P II, 256ss.; Vo IV, 147ss. 164ff.; Neidert, 37ss. e passim; Damm, 133ss.; cf. HüBibl, Nr.1688-1713d.30 W I, 404.31 W I, 404.

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como fenômeno essencialmente transparente à representação racional. A razão

reconhece o que “se manifesta” 32, no fato “sofrer injustiça” “mais claro do que em

qualquer lugar”, a saber, “o fenômeno do conflito da vontade para vida contra si mesma,

resultado da pluralidade dos indivíduos e do egoísmo, os quais ambos são exigidos pelo

principium individuationis, o qual é a forma do mundo como representação para o

conhecimento do indivíduo. 33 Para o reconhecimento da origem do sofrer a razão é

capacitada através da faculdade (ao contrário da intuição) “a reconhecer abstratamente o

todo na ligação”. 34

Acerca de qual todo se trata aqui? A intuição está em posição apenas de abranger

o sofrer do homem particular, podendo possibilitar assim a compaixão, mas sendo

incapaz, em virtude da sua fixação sobre o particular, de abranger uma variedade de

indivíduos. Este é o todo do qual Schopenhauer fala – “a sociedade” na qual os

membros tem respectivamente um interesse egoísta. A razão reconhece, por um lado,

este interesse egoísta como origem comum do sofrimento, e por outro lado ela

reconhece a possibilidade de alcançar uma diminuição da injustiça ou mesmo a

supressão do sofrer injustiça através do equilíbrio criado entre o sofrer injustiça e o agir

injusto. Por outro lado isso significa que ela [a razão] exige do indivíduo que age a

parcial abdicação sobre seu modo de agir egoísta, isto é, a abdicação de tais atos, através

dos quais ele alcança seus interesses pelo preço de que outros sofram com isso. A

abdicação do egoísmo ocorre, no entanto, não por causa dos outros, mas sim apenas no

olhar para o próprio benefício, que, uma vez que todos são convidados à abdicação, é

um benefício de todos. Ambos – o reconhecimento da origem do sofrer e o

reconhecimento da possível eliminação do sofrer – são obra da razão:

A faculdade de razão, comum a todos os indivíduos e que lhes permite conhecer não somente o particular, como no caso dos animais, mas também o todo abstratamente e em sua conexão, ensinou-lhes logo a reconhecer a fonte daquele sofrimento e a pensar no meio de diminuí-lo ou, onde possível, suprimi-lo através [363] de um sacrifício comum, compensado todavia pela vantagem comum daí resultante. De fato, por mais agradável que seja ao egoísmo do indivíduo agir injustamente em casos específicos, há todavia um correlato necessário no sofrer injustiça por aquele outro, que foi objeto passivo de grande dor.35

32 W I, 404.33 W I, 404.34 W I, 404.35 W I, 404ss. [Trad. Jair Barboza].

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Entretanto, o mero reconhecimento da correlação entre agir injusto e sofrer

injustiça na convivência dos indivíduos ainda não ofereceria ensejo para modificação da

postura agressiva-egoísta, se a razão não capacitasse a sua habilidade de se abster

(“abstrair”) sobre o indivíduo fixado no modo de consideração, ela teria diante dos

olhos a desigual divisão da justiça e da injustiça nos indivíduos assim como a possível

reciprocidade de ambas situações: a razão vê, por um lado, que o agir injusto de um

indivíduo traz no sofrer injustiça mais prejuízo (dor) que benefício (prazer), por outro

lado, que todo indivíduo com potencial de agir injustamente é um sofredor de injustiça:

Ora, na medida em que a razão, ao sobrevoar o todo em pensamento, abandona o ponto de vista unilateral do indivíduo, ao qual pertence, e se despoja por momentos de um apego a ele, enxerga que o prazer do agir injusto num indivíduo é sempre superado pela dor relativamente maior ao sofrer injustiça de outrem, e assim descobre que, como tudo foi aqui deixado ao acaso, cada um teria a temer que o seu quinhão de prazer relacionado ao agir injusto ocasional seria muito mais módico que a dor relacionada à injustiça que viria a sofrer.36

O conhecimento racional da divisão desigual da dor e do prazer potencial em

todos os indivíduos conduz ao pensamento para atingir a diminuição do sofrer injustiça

o que resulta do equilíbrio do prazer e da dor através da restrição da ação egoísta que

produz a dor. A restrição das ações egoístas não garantem apenas a diminuição do sofrer

e a tranquila existência externa, ela garante também a existência individual, já que

egoísmo é essencialmente o corpo-individual na própria forma de auto conservação. A

razão leva os indivíduos, por conta desse conhecimento à exigência de um equilíbrio

entre sofrer injustiça e agir injustamente, a encontrar um “acordo comum”,37 que foi

tomado por Schopenhauer de Platão, Hobbes e Rousseau, à luz da tradição

contratualista:

A razão reconhece, a partir daí, que tanto para diminuir o sofrimento espalhado em toda parte quanto para reparti-lo da maneira mais equânime possível, o melhor e o único meio é poupar a todos a dor relacionada ao sofrer injustiça, fazendo-lhes renunciar ao [364] prazer obtido com a sua prática. – Esse meio, facilmente divisado e gradualmente aperfeiçoado pelo egoísmo, o qual, usando a faculdade de razão, procedeu metodicamente e abandonou o seu ponto de vista unilateral, é o contrato social ou a lei.38

A assim concebida doutrina do Estado como meio de prevenir o sofrer injustiça

permanece para a moral nesse ponto em uma relação invertida, quando a moral se ocupa

com o agir injusto (isto é, o caráter do homem); 39 Dessa forma, a doutrina do Estado

36 W I, 405.37 W I, 405.38 W I, 405 [Trad. Jair Barboza].39 Cf. W I, 406.

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concebida como meio de prevenir o sofrer injustiça, surge para moral, nesse ponto, em

uma relação invertida, como daquela mesma com o agir injusto (isto é, considera o

caráter dos homens). No entanto, assim como a moral indiretamente também concerne o

sofrer injustiça (posto que a moral quer extinguir o sofrer injustiça através da supressão

do agir injusto), assim também a doutrina do Estado tem de, para prevenir o sofrer

injustiça, basear-se no seu correlato, o agir injusto, sobre o “inimigo contra o qual

luta”.40 Deve-se acentuar que Schopenhauer com isso na doutrina do Estado apenas

classifica como objeto aquela injustiça a qual é causal para o sofrer injustiça, mas não o

agir injusto na sua mera correlação para com o sofrer injustiça. Assim, ele pode escrever

a frase que soa estranho à primeira vista, mas inteiramente harmoniosa com a sua

concepção de Estado: “... caso fosse possível pensar um agir injusto separado do sofrer

injustiça por outra parte, então, consequentemente, o Estado de modo algum poderia

proibi-lo”. 41

O interesse do Estado no agir injusto em vista de sua causalidade para o sofrer

injustiça está em um interesse completamente diferente do interesse que a moral

manifesta para o agir injusto. A particularidade da reflexão schopenhaueriana sobre o

Estado já abordada no início dessa seção consiste no fato de que ela se refere

exclusivamente à origem da causa do sofrer injustiça, isto é, ao motivo do ato. Portanto,

a razão será trazida em conexão imediata com o aspecto do motivo por Schopenhauer: a

razão apenas a partir da motivação pode criar por sua intenção um equilíbrio entre o

agir injusto e o sofrer injustiça e, dessa forma, ela cria um equilíbrio através do qual um

“registro o mais completo possível de contramotivos opostos a todas as ações criminais

presumíveis” 42 constitui – um “código penal”. 43

A respeito da concepção geral de Schopenhauer sobre a doutrina do Estado, isso

significa que a função segundo a razão e acompanhada da razão do Estado na

regulamentação da relação dos indivíduos entre si consiste em uma legislação

constituída por meio de um contrato, ao qual necessariamente a punição pertence:

Por sua vez, o único objetivo da lei é impedir o menosprezo dos direitos alheios, pois, para que cada um seja protegido do sofrer injustiça, unem-se todos em Estado, renunciando ao agir injusto e assumindo o fardo da manutenção dele.44

40 W I, 406.41 W I, 406. [trad. baseada na do prof. Jair Barboza].42 W I, 407. [trad. baseada na do prof. Jair Barboza].43 W I, 407.44 W I, 411;Cf. Vo IV 172ss.; para o conceito de punição Cf..Cattaneo, 95ss.; Diebitz, 211ss.; Hoerster, 101ss.; Klein, 345ss.; Neidert, 41ss.

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Até que ponto esta concepção de Estado – que restringe o egoísmo agressivo

destrutivo, posto que ela contrapõe motivos egoístas a contra-motivos mais fortes – se

distancia da moral, verifica-se na observação de Schopenhauer: “a doutrina do direito

em sentido verdadeiro, ou seja, a doutrina dos direitos que são lícitos de serem

defendidos” ,45 é “a moral às avessas”.46 Uma vez que “justiça e injustiça” são temas

originários da moral, a doutrina do Estado demonstra-se como uma espécie precursora

incompleta da mesma: isso é observado no ato secundariamente, a saber, o feito em

vista de sua origem do motivo e sua ação sobre o outro indivíduo que sofre. Isso é, de

fato, a forma da consideração exatamente oposta à moral, e assim, Schopenhauer pode a

partir da formação do significado filosófico do Estado (a partir da motivação vista)

expor os conceitos de justiça e injustiça: “O conceito de injustiça e sua negação, a

justiça, conceito originalmente moral torna-se jurídico pela mudança do ponto de

partida do lado ativo para o lado passivo, ou seja, por inversão”. 47

É possível avaliar o alcance dessa inversão de melhor forma pelo fato de que

Schopenhauer nega completamente, como já indicado, o significado moral do Estado e

expõe por meio da crítica à doutrina kantiana do direito “os mais estranhos erros” 48

dela, “o Estado é uma instituição para o fomento da moralidade e se originou do esforço

em promovê-la, sendo, portanto, orientado contra o egoísmo”; 49 isso é para

Schopenhauer sustentar um erro cardeal do “Teorema”, 50 “o Estado é a condição da

liberdade em sentido moral e, com isso, da moralidade”. 51 O Estado surge de acordo com

sua origem racional e seu rumo razoável, posto que ele tem em primeiro lugar “a

segurança pública” 52 (isto é, a garantia da existência corporal-individual) como

“finalidade principal”, 53 tem a serviço de todos os indivíduos o alcance ideal de seus

interesses egoístas:

O Estado, com dito, está tão pouco orientado contra o egoísmo em geral que, ao contrário, deve sua origem precisamente ao egoísmo, o qual, chegando a compreender a si mesmo e procedendo metodicamente, passa do ponto de vista unilateral ao ponto de vista universal e, dessa forma, por somatório, é o

45 W I, 407. [trad. baseada na do prof. Jair Barboza].46 W I, 407.47 W I, 407. [trad. baseada na do prof. Jair Barboza].48 W I, 407.49 W I, 407. [trad. baseada na do prof. Jair Barboza].50 W I, 407.51 W I, 408; Cf. Vo IV, 166s. [trad. baseada na do prof. Jair Barboza].52 W I, 412.53 W I, 412.

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egoísmo comum a todos. O Estado existe exclusivamente em função de servir a este egoísmo, tendo sido instituído sob a correta pressuposição de que a pura moralidade, isto é, a conduta justa a partir de fundamentos morais não é uma coisa que se deva esperar. Do contrário, ele mesmo seria supérfluo. Portanto, o Estado, intentando o bem-estar, não foi de modo algum instituído contra o egoísmo, mas pura e simplesmente contra as consequências desvantajosas dele, oriundas da pluralidade dos indivíduos egoístas, reciprocamente afetados e perturbados em seu bem-estar.54

A razão, a qual possibilita essa forma da existência egoísta, possui entretanto no todo da

explícita soteriologia schopenhaueriana um função totalmente subordinada, mas pela

qual, ela garante a existência humana em geral e contribui – muito indiretamente –, para

a supressão egoísta do egoísmo. A redução do Estado a uma “instituição de proteção” 55

oculta talvez excessivamente o ganho, o qual é trazido através da razão ao sujeito do

sofrer. Se a redenção tem de vir, pois, efetivamente do sofrimento, então ela não pode

vir nem pelo suicídio56 nem pela morte física violenta. A soteriologia schopenhaueriana

considera o acontecer da redenção num homem corporalmente existente: como o quarto

livro de “O Mundo como Vontade e Representação” expõe, é que o processo de

redenção consiste num fenômeno corpóreo do conflito da vontade, na ascese. 57 O

Estado garante, mesmo que de forma egoísta, a existência em geral. O mero findar do

fenômeno, a morte como fim temporal de um fenômeno individual, não altera em nada

o domínio da vontade. Sua supressão na negação livre pressupõe portanto, o que o

equilíbrio jurídico do sofrer – que ainda ocorre inteiramente no horizonte do Eu –

realiza: a sobrevivência do indivíduo em meio a egoístas tendenciosamente agressivos.

Assim, o equilíbrio do sofrimento garantido através do Estado é o primeiro ato humano

– em sentido literal: o primeiro ato em que o ser humano se revela refletindo sobre

outras objetivações da vontade que sofrem, os animais: o ato restringe o sofrer e

prepara, mesmo sem poder mais do que isso a supressão efetiva do sofrimento. A morte

redentora que a supressão efetiva do sofrimento traz estabelece antecipadamente que o

homem vive.

O primeiro ato humano é fornecido da faculdade da razão que transforma o

homem no homem no processo de objetivações. Se a razão não interferisse na vida dos

indivíduos, então o direito do mais forte regeria permanentemente, e um irrestrito

54 W I, 408; Cf. W I, 413, Z. 3 – 16; Cf.. para todos E II, 194: O Estado é “uma obra prima do egoísmo auto-compreensível, racional e somado de todos”; cf. Vo IV, 168f., 177; Copleston, 171 (“the creation of enlightened egoism” [a criação do egoísmo esclarecido]).55 W II, 682cf. E II, 193ff.; cf.. Damm, 136; Neidert 45f.56 Cf.. nosso §93.57 Cf.. nosso §96.

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egoísmo agressivo deixaria os homens constantemente à margem da extinção de sua

existência. Indicou-se sobre a “concepção mínima” schopenhaueriana do Estado. 58 De

fato, Schopenhauer não se engana do Estado ser a progressiva melhora moral dos

homens e muito menos a vinda do reino de Deus à Terra. Os indivíduos têm de ser

meramente protegidos de sua aniquilação e estrago dos seus iguais. O que parece assim

uma habitual teoria da idolatria do Estado como uma reconfortante minimização da

função do Estado, parece na visão da soteriologia schopenhaueriana como a base da

redenção. Isso soa paradoxal, mas corresponde à transição geral do fio condutor

schopenhaueriano de que a negação do eu só pode ser garantida se o eu permanece em

geral garantido. Apenas quem pensa a negação do eu de forma objetal, afirmará que o

fio condutor schopenhaueriano seria um paradoxo, posto que a negação do eu concebe o

Estado de forma minimamente soteriológica: a negação do eu é um processo do

conhecimento que passa-se no indivíduo existente. A negação do eu não vem pela

negação física – se fosse assim, então os loucos estariam certos, que Schopenhauer

incentivaria o suicídio coletivo ou individual.

Se fosse indiscutível que a doutrina do Estado é uma condição elementar da

soteriologia e nenhum paradoxo surgisse se o Eu como condição da negação do eu é

contido, assim se introduz um outro ponto – que será de significação decisiva para a

soteriologia – inegavelmente diante de uma dificuldade: a razão, que cria o Estado para

se prevenir o sofrimento, é – e nisso não consiste dúvida – um auxiliar da razão. Ela

auxilia a garantia do egoísmo. Todavia, alude-se na descrição schopenhaueriana dos

atos da razão, que conduzem à fundação do Estado, pelo menos um análogo de uma

razão libertada do auxílio da vontade e do princípio de razão suficiente. Ou seja, a fim

de salvar da luta da sobrevivência que se encontra nos indivíduos egoístas de sua

própria agressividade, a razão realiza uma mudança de estado, que a passagem da

determinação da vontade para libertação da vontade corresponde ao conhecimento. No

contexto da filosofia do estado do §62 da obra magna, expõe Schopenhauer, “que a toda

repensada razão” 59 marcha “ao ponto de vista unilateral do indivíduo, ao qual ela

pertence” 60 e faz-se “de uma lealdade ao mesmo... para perder o instante...” 61 Esse

desencadear [368] (que diretamente recorda o discurso do desprendimento na

58 Cf. Neidert, 148ff., 162ff.; para o debate do Estado mínimo cf.. Hopf (1), 390ss.; Hopf (2), 177ss.; Diebitz, 211ss.; Würkner (3), 91ss., 88, 96ss.59 W I, 405.60 W I, 405.61 W I, 405.

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contemplação estética) certamente não significa nesse contexto a divisão do sujeito

cognoscente racional da vontade, mais sim da figura da vontade em que esta se separa

de forma mais imediata e direta do indivíduo corporal cognoscente intuído do animal. A

razão abandona a existência animal, que também pertence aos homens, quando ela entra

em ação. Ainda que a existência dos homens na condição do egoísmo agressivo

destrutivo já seja em si maior que a da existência animal, ela permanece indiscernível

dela [existência animal] (em vista de seu comportamento prático) como a razão está

inteiramente submetida ao intelecto e conserva na aderência (Anhänglichkeit) a ele

também o vínculo estreito do sujeito cognoscente com a vontade. De acordo com a tese

da metafísica da vontade, que na intensificação da visibilidade da vontade o fenômeno

da vontade se distancia cada vez mais da peculiaridade da vontade e que este processo

atinge seu ponto mais alto na divergência entre o intelecto e a razão (pela servidão

permanente da razão à vontade), isso significa que o desencadeamento (se também

apenas momentâneo) da razão do entendimento do início do processo da libertação

ainda não articulado enquanto tal – e não apenas seu início arbitrário, senão seu único

início possível.

Uma vez que o desprendimento da razão do intelecto, cuja supremacia pensada

com o “ponto de vista unilateral dos indivíduos”, constitui o vir-a-ser-para-si

(Fürsichwerden) do homem, o início do processo de libertação poderia ser equiparado

com o começo do tornar-se humano do sujeito do conhecimento no ato de tornar-se

racional. A partir daí, fica claro por que os animais não podem se redimir. Como

demonstra a última passagem do quarto livro d’O Mundo como vontade e

representação, a verdadeira redenção pende sobre o uso da razão. Schopenhauer ensina

isso lá, mas ele não evidencia a parte soteriológica da razão, pelo contrário, acentua a

distância do santo para o abstrato.

De forma alguma ele acentua – na doutrina da supressão egoísta do egoísmo

através da razão – a função soteriológica da razão reivindicada de fato por ele. Ele não

admite explicitamente a realização primeira nem para o início nem para a conclusão da

sua colaboração – como a mais fraca de todas as objetivações da vontade e a faculdade

de abstração, defronte à intuição e que vive do esclarecimento cedido, poderia ser capaz

de enfraquecer a vontade toda-poderosa? Mas do mesmo modo pode-se perguntar a ele

justamente, senão precisamente a própria doutrina da objetivação explícita sucede de

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fato a sua fundação, ainda que não forneça a admitida anteposição da razão no processo

de libertação.