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Vanda Machado Nascimento: 15/04/1942, São Filipe P/1 – Pra começar queria que você contasse, assim, falasse seu nome completo, a cidade e a data de nascimento. R – Então, eu sou Vanda Machado, eu gosto muito de ser Vanda Machado, e resolvi omitir o último nome que é Silva mas eu gosto de Vanda Machado, é o nome do meu pai. Eu nasci em São Felipe há 65 anos atrás. Em 15 de abril de 1942, sou ariana, filha de Oxum e Ogum, sou a primeira de cinco filhas, matriarca, meus pais morreram aos 35 anos cada um e daí em diante me tornei a matriarca, assim, criando a mim mesma primeiro, né, já que também era menina e criava minhas irmãs, então, isso é o início de tudo. P/1 – E você nasceu em Salvador? R – Não, nasci em São Felipe, é uma cidade que fica no Recôncavo do Sul, cidade fumageira, é uma cidade pequena, às vezes eu gosto de lá, às vezes não gosto, mas é significativo para mim pensar em São Felipe. Ah, lá eu tive uma infância pequena, que a minha infância durou pouco e, nessa infância pequena foi muito importante a presença do meu pai, meu pai continua sendo meu ídolo, ele era músico, ele fazia teatro, ele cantava, ele dançava, ele esculpia, pintava e as melhores lembranças da infância são as que estão relacionadas a meu pai: as festas do lugar, a festa de São Felipe, as procissões, o tempo que eu passava no Engenho, né. Eu tive uns padrinhos muito queridos e durante as férias eu ia para o Engenho e, é uma lembrança muito querida, né, de Nicolau Barbosa e Iaiá Pinheiro, eles eram donos de uma fazenda linda, de engenho de açúcar, casa de farinha. As lembranças estão cheias de banho de fonte, caminho para fonte, do leite cru bebido de manhã cedo, às vezes, de má vontade e, do carinho do meu padrinho, do cheiro da farinha, do cheiro do rio, do cheiro da mata, do cheiro de mato queimado, cheiro de crianças negras, que é minha oportunidade de encontrar. Isso porque perto de mim só tinha minhas quatro irmãs mesmo e as crianças de lá no engenho eram maravilhosas, né, brincar no rio era minha fascinação, então, a minha infância está ligada a esses brinquedos, meus padrinhos, meu pai, minha mãe, um pouco da minha avó, mas nem tanto, minha avó não gostava muito da gente porque ela preferia os netos que eram loirinhos e a gente ela não gostava muito não. Então eu não tenho uma ausência na minha vida da avó, acho que por isso eu procuro ser tão avó, né, tão próxima, tão brincante com os meus netinhos que são dois.

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  Vanda MachadoNascimento: 15/04/1942, São Filipe

P/1 – Pra começar queria que você contasse, assim, falasse seu nome completo, a cidade e a data de nascimento.

R – Então, eu sou Vanda Machado, eu gosto muito de ser Vanda Machado, e resolvi omitir o último nome que é Silva mas eu gosto de Vanda Machado, é o nome do meu pai. Eu nasci em São Felipe há 65 anos atrás. Em 15 de abril de 1942, sou ariana, filha de Oxum e Ogum, sou a primeira de cinco filhas, matriarca, meus pais morreram aos 35 anos cada um e daí em diante me tornei a matriarca, assim, criando a mim mesma primeiro, né, já que também era menina e criava minhas irmãs, então, isso é o início de tudo.

P/1 – E você nasceu em Salvador?

R – Não, nasci em São Felipe, é uma cidade que fica no Recôncavo do Sul, cidade fumageira, é uma cidade pequena, às vezes eu gosto de lá, às vezes não gosto, mas é significativo para mim pensar em São Felipe. Ah, lá eu tive uma infância pequena, que a minha infância durou pouco e, nessa infância pequena foi muito importante a presença do meu pai, meu pai continua sendo meu ídolo, ele era músico, ele fazia teatro, ele cantava, ele dançava, ele esculpia, pintava e as melhores lembranças da infância são as que estão relacionadas a meu pai: as festas do lugar, a festa de São Felipe, as procissões, o tempo que eu passava no Engenho, né. Eu tive uns padrinhos muito queridos e durante as férias eu ia para o Engenho e, é uma lembrança muito querida, né, de Nicolau Barbosa e Iaiá Pinheiro, eles eram donos de uma fazenda linda, de engenho de açúcar, casa de farinha. As lembranças estão cheias de banho de fonte, caminho para fonte, do leite cru bebido de manhã cedo, às vezes, de má vontade e, do carinho do meu padrinho, do cheiro da farinha, do cheiro do rio, do cheiro da mata, do cheiro de mato queimado, cheiro de crianças negras, que é minha oportunidade de encontrar. Isso porque perto de mim só tinha minhas quatro irmãs mesmo e as crianças de lá no engenho eram maravilhosas, né, brincar no rio era minha fascinação, então, a minha infância está ligada a esses brinquedos, meus padrinhos, meu pai, minha mãe, um pouco da minha avó, mas nem tanto, minha avó não gostava muito da gente porque ela preferia os netos que eram loirinhos e a gente ela não gostava muito não. Então eu não tenho uma ausência na minha vida da avó, acho que por isso eu procuro ser tão avó, né, tão próxima, tão brincante com os meus netinhos que são dois.

P/1 – Qual era a origem de seus pais?

R – Desculpa?

P/1 – A origem de seus pais?

R – Meus pais? A origem do lugar?

P/1 – Do lugar, como eles eram, assim?

R – Assim, meu pai ele não viveu toda vida em São Felipe, ele chegou lá, se encantou pela minha mãe, foi difícil casar com a minha mãe porque meu pai era negro e minha mãe era de uma família branca, e, branco pobre ele também dá mais restrição de que o branco rico, porque é como se fosse o único bem possuído, seja a cor da pele. Pois ele casou com a minha mãe e a minha mãe contava uma coisa muito interessante, né, que quando eles ficavam sozinhos, aí ele abriu uma

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mala e mostrou pra ela cinco cédulas de 20, devia ser 20 mil réis, na época, né, e mostrou, e era um bom dinheiro que ele tinha, na época, né, e minha mãe era filha de um..., meu avô eu sei que era serrador, avó tinha muito ciúmes dele, né, e eles viveram legal, meu pai com minha mãe, mas também por pouco tempo, né, quando eu tinha oito anos, aí meu pai faleceu e mais adiante quando eu tinha 15, acho 15 ou 16 aí minha mãe também faleceu, então a vivência com eles foi muito pouca.

P/1 – E esses, esses seus padrinhos, eles você passava férias no engenho, como que era lá?

R – A festa começava na hora que a minha madrinha dizia que eu estava indo pra lá, é, eu era tão pequena que ia às vezes, não era bem na garupa, era no cabeçote, minha madrinha montava cavalo e eu ia sentadinha assim na frente dela. Então tinha o burro com dois caçuá que são duas cestas, de um lado, e de outro. Então enchia de coisas para contrabalançar com o meu pesinho que ia do outro lado.

P/1 – E o rio, como é que ele era em São Felipe?

R – O rio era uma coisa legal, assim, bom, tinha o rio que a gente tomava banho, a fonte que a gente tomava banho, embora tivesse um banheiro na casa. A casa da fazenda era uma casa bacana, mas era uma fazenda típica, na época morriam muitas mulheres de parto e na medida que as mulheres iam morrendo de parto a minha madrinha levava os filhos pra casa dela. Então, tinha um monte de crianças, muitas crianças. No final da tarde, essa hora assim, talvez um pouco mais cedo, nós saíamos como uma procissão pra tomar banho na fonte, mas o rio mesmo que eu gostava era o Rio Copioba, que era o rio que se lavava roupa. Então, a água, a água para mim é uma fascinação, né, sempre foi lá uma das coisas assim que me enchia de prazer era ficar dentro da água por um dia quase inteiro, né?

P/1 – No rio?

R – No rio.

P/1 – E você ficava com as outras crianças que moravam por lá?

R – Ficava com as outras, com as crianças que moravam lá no Engenho, bom, nessa época não tinha a menor idéia que eu era filha de Oxum e que a água era meu elemento essencial, que a água é minha essência, que me dá forma, que me dá flexibilidade, que me dá jeito de caminhar, o que me dá leveza. Mas a água ela se encontra em todos os estados, então, a água tanto pode ser um lado, um córrego mansinho, como pode ser também uma grande cachoeira, uma ruidosa cachoeira e eu me identifico com todas essas formas da água.

P/1 - A casa da farinha, o Engenho, assim, as lembranças que você brincava lá, descreve como que era.

R – É interessante a casa de engenho, a casa de farinha, essas lembranças elas foram me acompanhando e me dando caminho, é, muito cedo eu pensava como etnógrafo, sem ser etnógrafo, sem ter a menor idéia que existia esse tipo caminhando pelo mundo, né. Então eu sempre caminhava e fazia anotações sobre lugares, com poesia, mas eu sempre falava de lugares, né, eu sempre falava de lugares. Aí mais adiante, quando eu terminei o curso que naquele tempo era ginasial, eu pensava várias coisas, né, eu pensava em ser advogada, que eu tinha um sonho, eu queria ser diplomata. Imagina? Gostava de ser diplomata, achava que era um caminho, eu sabia pouca coisa mas eu sabia da existência da ONU. Depois eu disse: “Não, não é isso não, acho que vou ser enfermeira, enfermeira.” Disse: “Não, eu preciso viajar pelo mundo, acho que eu preciso ser professora de Inglês.” Comecei vários cursos e parei no caminho, comecei várias vezes, hoje eu tenho Inglês horrível. Aí finalmente eu disse: “Não, acho que não é nada disso, eu

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quero ser historiadora.” Escuta, quando eu pensei em ser historiadora eu pensava exatamente no engenho, no rio, quer dizer, eu tinha uma história e uma Geografia já marcada dentro de mim que eu precisava saber o que significava. Enquanto eu não sabia nada, eu não sabia, sentia mas não sabia o que era, ainda não sabia nada sobre essa pluralidade étnica, mas eu tinha uma idéia de alguma coisa que eu precisava saber. E aí eu resolvi ser, fazer um curso de História, mas foi péssimo, péssimo, péssimo. Quando eu terminei o curso de História eu disse: “Meu Deus do céu, acho que eu vou entrar na universidade outra vez, fazer uma outra coisa, porque assim eu não caminho.” E enfim, as informações que me deram como aprendizagem pra vida, como aprendizagem que me serviria, que me serviria como educadora, como pessoa, nada disso eu tinha aprendido. Daí eu comecei a pensar que é necessário um outro tipo de educação, fazer diferente. Aí nessa época, com toda essa influência toda, toda essa paisagem, que eu tinha na minha cabeça, pensava e servia pra pensar, fazer a educação de outro jeito. E aí eu criei uma escola, eu criei uma escola e as imagens começavam, continuavam me acompanhando, elas não eram imagens do passado, né, na verdade eu sempre tive essa idéia que existe um único tempo, que é o tempo presente, presente do presente, presente do passado e presente do futuro, né. Então pensando nesses tempos eu inventei uma escola, eu criei uma escola. Esse colégio tem dois motivos, né, um dos motivos é que eu precisava trabalhar com as minhas cinco irmãs, que eu já era matriarca nessa época, com menos de 20 anos. E aí eu precisava de alguma coisa que pudesse trabalhar eu e minhas irmãs, então eu criei uma escola onde nós mesmas fizemos as mesas e as cadeiras, né, aliás, não era mesa, era assim, uma tábua cumpridona, aí com uma tábua aqui, uma tábua aqui, né, pra dar apoio pra ficar em pé. Então essa estrutura era mais altinha onde a criança escreveria e a outra era mais baixinha, onde a criança sentaria. Então, o meu cunhado e ajudou a serrar, né, e a gente mesmo que fez, e depois nós pintamos tudo de azul, e onde era a escola, era no fundo da casa, e as mães confiaram e matricularam as crianças, muitas crianças. Foram tantas crianças que depois eu tive que construir uma casa, construir uma sala maior do lado, depois eu construí uma casa, uma casa que era uma escola mesmo. Aí começou a se realizar o meu sonho com as imagens da fazenda da minha madrinha, com a possibilidade de pensar uma história de vida. E aí, eu morava num lugar que era num subúrbio, e nesse subúrbio havia um grande engenho que exportava açúcar pro mundo. Então, tinha o engenho, tinha uma casa grande e tinha uma senzala, e as crianças iam lá visitar essa reminiscência. Era aonde eu tinha escola, um lugar que se chamava Freguesia do Ó, aonde tinha Missões Jesuíticas ali perto. Havia uma grande Igreja e por pouco a cidade de Salvador não teria começado nesse lugar, não teria sido efetivado. Então o Brasil não é um Brasil nem branco, nem negro, nem índio, então o Brasil é um Brasil que é branco, que é negro e que é índio. Ali eu comecei a fazer trabalho que se chamava Raízes Culturais. Na época chegaram umas freiras suíças e eu fui ajudar as freiras suíças a aprender a língua portuguesa. Elas me ensinaram francês e eu ensinava, português pra elas. Foi ótimo porque eu consegui passar no vestibular com nota dez em francês, mas depois desaprendi tudo. Hoje mal sei dizer “Bon Jour.“ Mas deu pra me virar em Paris, não passar fome, coisa assim, mas nada significativo. Então essas freiras faziam parte do Centro Comunitário, aonde eu era catequista, cursilhista, aonde eu fazia todos os movimentos religiosos. E eu disse: “Como é que eu vou pensar raízes culturais, raízes negras?” Ah, mas eu encontrei uma solução, eu chamei o meu amigo que ele hoje é um Babalorixá, é um pai-de-santo mas tem um irmão que é padre, Padre Clóvis. Uma pessoa muito conhecida no Movimento Negro. Aí ele disse que ia ser legal porque eu iria estar próxima da religião, da matriz cultural africana, mas também iria estar perto da religião católica. Uma vez que eu estaria trabalhando com um irmão de padre e aí eu vou poder ficar perto também da Igreja. Aí, bom, você pode imaginar, na verdade eu que tinha sido criada por um pai que ia à missa todos os domingos, que tocava na missa e de repente eu estava pensando em conhecer cultura africana, cultura negra! Como que isso ia se arrumar na minha cabeça, trabalhando com as freiras suíças, né? De início foi bastante caótico, mas hoje é completamente arrumado na minha cabeça, né, hoje eu não tenho mais problemas. Mas a escola, na realidade era a possibilidade de eu fazer uma espécie de educação onde o Brasil começasse a ver uma maneira cirandada. Então a minha paixão pela educação vem desse sentido, desse trabalho que tem mais de 40 anos, né, que eu comecei, de pensar um Brasil plural. Então, essa é hoje a minha razão, de trabalhar, de pensar. A minha vida, a história da

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minha vida, ela se confunde com a história de pensar numa educação plural no Brasil.

P/2 – Como você teve o contato, assim, como que foi se relacionando bem com a cultura africana e a pedagogia?

R – Assim, bom, aí esse primeiro contato, lá quando eu tinha escola lá em Paripe, no subúrbio de Salvador. Então eu criei esse contato de levar as crianças e mostrar que aqui viveram índios, mas tem a casa grande onde viveram aqui os senhores, aqui onde viveram nossos ancestrais. E eu comecei a pensar ancestralidade, afinal, o que significa ancestralidade? Aliás isso eu fiquei sabendo há pouco tempo, quando nós criamos uma criança. Pra você o que é um ancestral? Eu disse: “Ancestral? Eu acho que é avô do avô, do avô, do avô, do avô do meu avô.” Eu podia ter pensado isso antes, eu tive tanta dificuldade de pensar ancestralidade, esse outro jeito, eu precisei encontrar. Talvez o primeiro livro que eu li nesse sentido, foi o livro do Abdias Nascimento, né, o livro do Abdias e depois eu fui encontrando outras possibilidades, outros, outros estudiosos e fui criando também um caminho. Quando eu estava fazendo os créditos de um mestrado e eu tinha um projeto com uma professora e cada vez mais eu queria sair daquilo que ela queria fazer. Ela dizia assim: “Não, mas isso aí você não sabe, mas isso aí você não sabe, e cada vez ela me dizia isso, eu pensava: “Meu Deus do céu, como que eu estou fazendo o mestrado e que tanta coisa que eu não sei e não vou aprender, como que é isso?” Aí um dia ela me perguntou pelo projeto, eu disse: “Eu perdi, eu não tenho mais o projeto, é, eu não quis dizer para ela que eu tinha rasgado, que estava com raiva dela, dela me dizer tanto que eu não sabia. Talvez uma semana, duas talvez, e eu fui convidada pra participar de um evento em Nova Iorque. E aí eu ia falar exatamente de cultura afro-brasileira, mas na relação com as artes, foi um trabalho que veio evoluindo há 21 anos atrás. E hoje é o trabalho que eu vou mostrar aqui, que eu falo dessa influência negra, nas artes, nas ciências, no Brasil. E aí quando eu estava lá encontrei uma senhora, uma mãe-de-santo, e aí eu estava com uma amiga, com a Marcélia, ela disse: “Por que você não fala com a Estela, vai fazer a tua dissertação estudando a crianças de lá da escola, que existe no terreiro de candomblé?” Digo: “Mas como que eu vou fazer isso? Ela nem me conhece, eu nem a conheço direito e como que eu vou chegar pra ela e falar uma coisa desta?” E ela me encorajou, eu falei com a mãe-de-santo e ela disse: “Bom, quando chegar no Brasil, quando chegar em Salvador você aparece no terreiro e aí a gente conversa com Xangô. Aí disse: “Nossa! Chegar em Salvador, conversar com Xangô, que história essa?” Aí passaram os dias, aí eu cheguei lá e disse: “Estela, a senhora se lembra? Nós estivemos em Nova Iorque, nós tínhamos participado de uma mesma mesa...” E completamente sem jeito e ela disse: “Tá bom, vamos conversar com o Xangô.” “Como que é conversar com o Xangô?” Aí quando eu cheguei lá era uma sala, bem bonita, tinha uns panos e uma mesinha redonda e aí ela começou a jogar búzios. Aí eu pensava: “ah, meu Deus, como que esse punhado de conchinhas vai resolver a minha vida acadêmica agora?” Aí eu fiquei olhando, eu nunca tinha entrado num terreiro, nunca tinha visto ninguém jogar búzios. Aí ela jogou e fez: “Ah, mas o caminho é aberto.” Eu disse “O que é caminho aberto?” Porque toda a linguagem religiosa de matriz africana, é um outro código, né, o que significa está com o caminho aberto?” Ela disse assim: “Você pode fazer o seu trabalho aqui, com quem você vai trabalhar? Quando que você quer começar?” E, sabe, eu confesso que fiquei um tanto sem jeito, primeiro que eu acho que eu nem acreditava, que ela me aceitasse para fazer esse trabalho lá no terreiro mas ela aceitou! E eu fiz uma, fiz uma dissertação de mestrado que, aí por dez anos ninguém compreendeu, por dez anos ficou lá na Academia e até que um dia encontrei um antigo professor, o professor Felipe e ele perguntou: “Onde está sua dissertação?” Eu disse: “Bom, tem cópias lá na biblioteca, cópias lá na USP, tem cópias na minha casa.” , “Olha, segunda-feira você procure Gustavo lá na editora e deixe lá. Diga a ele que eu mandei, ele era Reitor na época, poucos dias depois eu recebi um parecer lindíssimo, sem assinatura obviamente, né, a gente não fica sabendo quem é que fez o parecer. E o livro foi editado, tem 21 anos de editado, é um dos livros mais vendidos, ele está completamente atual, levando em consideração a lei 10.639 que obriga o ensino de história e cultura africana, né, e afro-brasileira na escola. Então está completamente atualizado. Daí eu fiquei um tempo, saí do mestrado um pouco triste, quer dizer, nesse intervalo até a edição do livro, esses dez anos eu resolvi ser florista. Então abri uma floricultura e aí eu resolvi ser florista, eu sai muito,

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saí muito triste do mestrado, me sentido impotente: “Fazer o que com isso Meu Deus? Quem vai acreditar, quem vai acreditar nessa possibilidade de fazer isso?” E realmente eu tive a maior nota, fui indicada para edição, mas era alguma coisa que não tinha ressonância, não tinha com quem conversar e que acreditasse naquela história como uma boa coisa. Aí depois, quando passou é, é, quando passados dez anos, aí eu voltei novamente pra mesma escola, a escola Eugênia Anna dos Santos, a escola que existe no terreiro de Candomblé, né, voltei pra mesma escola e aí eu criei um projeto cujo nome significa caminho de alegria. E aí apresentei à Prefeitura Municipal e a Prefeitura Municipal apoiou e começou a achar que era uma coisa muito boa pra fazer e aí continuei com o apoio da Irmã Estela, né, do povo da comunidade. E aí de repente a escola passou a ser escola de referência nacional e aí eu fui, dando um salto para o futuro. Enfim, começou a florir de verdade, mas não a floricultura, mas a idéia de novamente eu pensar numa educação diferente daquela que eu tive, pensar numa educação que eu acolhesse as crianças e tal. Depois que a minha mãe morreu ninguém tocava na gente, ninguém tocava em mim e nas minhas irmãs, ninguém tocava, isso é uma coisa que me fez uma falta imensa. E eu tinha que pensar, eu achava que era como se eu buscasse uma espécie de cura pro isolamento que eu tive... Então eu ficava na porta e recebia todas as crianças e trocava o nome das crianças: “Oi, tudo bem? Oi, como vai? Ah, mas seu cabelo está legal, quem penteou?” E aí como eu tenho cabelos trançados e as crianças começaram a trançar o cabelo, né, trançar o cabelo e ficar com o cabelo bonito, e os meninos também faziam uns cortes masculinos, interessantes. Eu tenho várias fotografias, eles são muito bonitas e arrumadas, as crianças de lá, do Engenho, então eu pensei: “Eu preciso pensar numa pedagogia de acolhimento, de tocar, de brincar. Aí meu marido, meu marido era ator, ator de teatro, e aí ele começou a gostar... Pensei que o teatro iria o tom nesse trabalho que pensei em fazer. E era bacana, o teatro na escola não faz somente representar peças, mas com o teatro eu respeito a presença do outro, eu respeito a distância do outro por uma marca, eu respeito a fala do outro, o olho do outro, o jeito do outro, tudo converge para acolhimento e pro jeito de se mostrar bonito pro mundo.

P/1 – Esses aprendizados que você teve, assim, você acha que você aprendeu com quem, assim, mais quando era novo, foi pensando e tal, marido, os amigos?

R - Imagine o tanto que eu estou aprendendo nesse momento, que eu estou te vendo, que você está na minha frente, que você está me perguntando, que está me olhando. Enquanto você me olha eu aprendo muito, eu aprendo por exemplo que eu sou importante para você, então, isso me dá uma dimensão da pessoa, então eu aprendi com os meus, meus estudantes - eu não chamo eles de alunos -, aluno é o que não tem luz, eu chamo muitas vezes de luz, minhas luzes. Então eu aprendi muito e aprendi a lição, uma coisa linda que eu aprendi, eu era bem pequeninha, acho que devia ter uns seis anos, estava nesse rio lá na fazenda da minha madrinha e pegou fogo lá no canil, eu não sei se tocaram fogo, eu não sei, só sei que apareceu um fogo. E aí eu estava feliz lá em baixo lá no rio, dentro da fonte vendo o fogo, aquela coisa, quente, bonita, foi uma coisa bonita, e aí eu vi que minha madrinha estava aflita, afinal de contas eu era a criançinha que não podia ter forças suficientes para caminhar. Aí de repente veio a Marcília, Marcília é uma senhora negra, forte, um pouco parecida com a Lúcia, e Marcília tinha sempre um pano, Marcília estava sempre lá na cozinha fazendo coisas gostosas e aí vem Marcília correndo, correndo, correndo, me toma nos braços e me leva correndo, ladeira acima. E eu senti o coração de Marcília batendo junto do meu, coração ofegante de Marcília, meio corpudinha fazendo aquela força subindo! Então essa é uma coisa tão bonita, Marcília, tentou cuidar de mim atravessando aquele fogo, hoje eu não sei se o fogo era grande ou se era pequeno, se podia causar um prejuízo para mim, o que podia acontecer. Mas aí o que eu tenho é o abraço de Marcília, o cuidado de Marcília, pra que eu não me machucasse, chegasse lá em cima e me livrasse do fogo. Então eu aprendi muito. Quando eu morei no subúrbio as pessoas eram muito pobres, máquina de lavar nem pensar, então as pessoas lavavam na porta e assim, tinha um grande varal que era uma cerca, aliás era uma cerca, não era um varal, aí havia um acordo tático: daqui até aqui é da Dona Benedita, daqui até aqui é de fulano, de cada um. E aí de repente chovia e chovia e o que acontecia, minha tia não pegava só a roupa dela, as duas outras vizinhas não estavam, ela pegava tudo e às vezes misturava, era

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uma confusão, era melhor a confusão de separar as roupas de cada um do que deixar a roupa molhada. Então eu aprendi muito de solidariedade. Minha tia paria muito, e eu morava na casa dela pois quando meu pai faleceu ele tinha um sonho que eu estudasse, né, eu tinha que ser uma pessoa estudiosa. E aí ficou certo de que quando eu terminasse a escola primária eu ia pra lá estudar, então eu fiquei lá na casa dessa minha tia. É interessante como as pessoas pobres são solidárias, como elas, paradoxalmente aos que não tem, tem muito para dar, seja o que for. Então minha tia paria e eu cuidava da minha tia, inclusive lavando as roupas de parto que era em casa, fazendo a comida que era típico cozinhar uma galinha todo dia, lavava roupa, passava roupa, fazia tudo isso. Meu tio me ajudava, mas o que era bacana era que de manhã, eu era magrinha, magrinha e as pessoas tinham pena, né, de ver como eu tinha que fazer tanto trabalho...

P/1 – Voltando só um pouquinho, assim, de quando você era mais nova, né, você falou que muito cedo você virou matriarca, né? De que tem muitas irmãs, como foi isso no começo?

R – É, no começo foi difícil mas nem tanto, nem tanto porque a escola que eu inventei lá o fundo da cozinha, no fundo do quintal, primeiro ela resolveu o problema que nós todas passamos a ter um trabalho. Então, nós éramos duas professoras no início e as outras foram se formando também professoras, professora, professora e aí quando construiu um prédio mesmo para escola todas já éramos professoras, empregamos mais duas ou três parentes também. Isso nos ajudou a ficar mais juntas, mais solidárias, eu acho que, na verdade eu acho que a minha vida foi salva pela solidariedade, pela história que eu estava te contando das mulheres que não tinham o que oferecer quando a outra mulher paria e como não havia água encanada, cada uma tinha um tonel do lado de casa e as mulheres, as mulheres iam chegando com latas de água que pegavam numa fonte e colocavam no tonel: “Olha, está aqui que eu trouxe.” Daí chegava mais outra, despejava outra lata de água, outra lata de água e aí o tonel ficava cheinho até em cima e a gente tinha água pra trabalhar o dia todo, para limpar as coisas o dia todo, era um presente preciosíssimo. E toda vida eu pensei que o mundo não existiria sem solidariedade, veja bem, essa idéia que eu persegui toda vida pensando: “Como levar esse pessoal lá, como levar isso pra educação?” Isso foi evoluindo, evoluindo, evoluindo até minha tese de doutorado, minha tese de doutorado na realidade auto-biográfica e eu falo de inúmeros momentos que as pessoas foram solidárias comigo. Acho que em seis meses não daria para contar essa história, mas a gente tem que sintetizar. Além do povo do subúrbio, aonde eu morei, depois eu aprendi muito isso com a lição do terreiro. Então eu pensava que uma educação tem que ser feita com acolhimento, a possibilidade de formar sujeitos autônomos, solidários e coletivos, sim, mas não necessariamente nessa ordem, mas de um jeito caótico, que essas possibilidades elas pudessem estar, fazendo e desfazendo, fazendo e se desfazendo, e criando sujeitos. Na realidade foi uma caminhada heurística, eu fui vivendo e aprendendo a fazer educação, aliás, continuo aprendendo a fazer educação, mas essa é a forma que eu penso. Então eu aprendi sobre acolhimento também muito do que vi. Se alguém chega doente no terreiro tudo pára e se acolhe aquela pessoa, se alguém vai fazer uma hora da iniciação, a iniciação é feita em grupo que se chama barco, porque nesse grupo tem pessoas que podem mais, que podem menos, que podem coisa nenhuma ou que podem muito e que só juntos, isso se realiza porque tudo é coletivo. O que se precisa é muito coletivo e o cuidado também é coletivo, todos os mais velhos como numa revivência de família ancestral africana, todos mais velhos são como pais, todas as mais velhas são como mães e cuidamos dessa pessoa que está feita ou iniciada como falam os antropólogos, com cuidado absoluto. Então esse acolhimento eu aprendi também, esse jeito de ser coletivo, de se fazer coletivo, não há nenhuma possibilidade de individualidade no fazer os deveres, tudo é feito de uma maneira coletiva. Tem coisas que somente eu posso fazer como filha de Oxum, tem coisas que hipoteticamente você, só você pode fazer como filha de Ogum, então vai ser sempre necessário que eu esteja junto em você para fazer coisas que são coletivas. A necessidade de ser autônomo, de pensar por você mesmo, né, pensar por si mesmo e pensar com o outro é uma situação que parece difícil de acontecer, pensar por você mesmo e pensar com o outro, fazer por você mesmo aquilo que você tem que fazer e fazer com o outro. Essa foi a lição maior que eu aprendi, a lição do jeito de agregar-se, estar junto, eu juntei a minha experiência de historiadora, minha experiência que eu fui vivendo e olhando em

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diversos lugares. Por exemplo, na feira, na feira você não sai da feira sem tudo que você quiser, se a pessoa que tem uma barraca que do lado não tiver ele vai aqui do lado, vai pega, ele ajuda você e ajuda aquele outro que ele vai vender também. Então é, é muito importante para mim que eu esteja atenta a tudo e a todos os movimentos que estão, que passam por mim, bom, claro que tem coisa que foge, isso sempre é possível, mas na medida que eu estou atenta, eu aprendo com esse movimento ou com estes movimentos, com estas ações dos outros. Eu aprendo como fazer melhor aquilo que eu faço, deixar de fazer aquilo que não é para fazer. E vou aprendendo, me formando, me reformulando, é, todo tempo sempre nesse sentido, então juntar a história com a vivência seria, por exemplo, pensar nesse sentido agregador do povo negro, que no navio negreiro quando um era completamente diferente do outro na sua etnia, às vezes até inimigo, se eles brigavam muito por conta dos limites e de repente eles se olham e passam a ser malunos. Malunos é uma palavra que significa companheiros e aí eles foram se juntando no navio, na senzala, nos terreiros, nas associações, nas irmandades, né, Irmandades de São Benedito, Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, Irmandade de Santo Antônio de Categeró, então, as irmandades negras foram se juntando pra fazer as grandes igrejas, enchendo de obras de arte, de ouro, né, como tem na Bahia. Mas pelo jeito de estar junto, né, nos quilombos e hoje nos blocos afro, nas escolas de samba, o povo quilombola ensinou a liberdade no Brasil, ensinou pra gente o que é ser livre, ensinou pra gente o que é estar junto, sair de uma situação difícil e criar um jeito livre de viver. Então toda a minha experiência de vida, minha experiência de ouvir história, de contar história, de vivenciar histórias, de ver pessoas saírem de situações de solidão, entrar na situação de solidariedade, de estar junto, de crescer junto, tudo de bom, isso.

P/1 – E quando foi que você começou a ir no terreiro?

R – Ah, o terreiro. Eu era católica, praticante, de nascimento, né? Aquela história do meu pai de me levar pra missa, dos bailes pastoris. Eu era bem pequena quando no natal meu pai me ensinou a cantar na noite de natal. E depois eu fui cursilhista, fiz encontros de casais com Cristo, curso de Igreja, todos os movimentos da Igreja eu fiz. Aí meu primeiro marido morreu, que também era cursilhista comigo, também era encontrista. Aí eu percebi uma coisa, quando ele morreu, eu tinha, acho que 40 anos, né, parecia que tinha ainda menos, eu percebi que todas as mulheres os maridos morriam e elas continuavam no encontro de casais mas eu notei que as pessoas não estavam querendo que eu ficasse. Um dia eu estava conversando com uma pessoa aí ouvi a filha chamando: “Meu pai, meu pai, vem atender o telefone.” Eu disse: “Ai, não tem telefone chamando. Acho que está feio eu estar conversando com ele aqui, eu sou viúva.” Aí eu vi que aquele lugar passou a ser o não-lugar pra mim, um lugar que não me acolhia. Bom, coincidentemente eu fiz essa viagem pra Nova Iorque, coincidentemente eu conheci Estela, coincidentemente eu tinha, pode ser coincidentemente ou sincronicidade. Então eu não estava bem com a minha orientadora do mestrado, e aí eu conheci o Carlos Petrovich. A gente começou ajudando minha mãe, primeiro ele foi escolhido como Ogam de Ogum, ele era homem de Ogum, e aí ele foi iniciado e eu fiquei lá ajudando, fazia coisas, ganhei o direito de lavar pratos, que no terreiro você ganha o direito de lavar pratos, não é assim fácil não, você ganha o direito de varrer a casa. Então você vai ganhando o direito de por a mesa, de ficar mais perto da mãe de santo, das pessoas mais velhas, as pessoas começam a te ensinar as coisas sem você perguntar, porque se você perguntar você não aprende, quer dizer, não vai dito pra você, é só uma questão de atenção, você fica atenta pra ver como é que as coisas acontecem, como que são feitas. Aí finalmente a mãe me chamou e disse que eu precisava de ser iniciada, e aí eu fui, eu já tinha cinco anos que estava pra lá por causa das várias coisas, e aí eu fui iniciada, e é isso, sou filha de Oxum.

P/1 – E a tradição oral, assim, como que você começou a se envolver, o que você acha das tradições orais?

R – Olha, tradição oral pra mim foi uma coisa que eu vivi toda a vida sem saber o que era. Então eu acho que tudo isso que eu faço era como se eu tivesse vivido todo o tempo embaixo da água. Então minha casa ficava em frente da feira lá em São Felipe. Em frente da feira tinha uns senhores

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que se reuniam, tinha umas senhoras que vendiam panelas, eles ficavam juntos. E lá pra estrada eles começavam a cantar uma coisa que eles diziam que eram tirandas, cantar tirandas é assim, alguém começa a cantar um verso, é como repentista, mas é sempre mexendo com o outro, bolindo com o outro, não tem instrumento nenhum, ele vai só cantando, canta e ri muito. Cantava alguma coisa que bolia com algum acontecimento engraçado e começava a rir, um ria muito do outro. E eu achava muito interessante aquilo, e eu ficava na janela e ficava vendo aquelas pessoas brincarem com a sua própria voz, com seu próprio canto, né? Tinha uma senhora, Eulina, que era linda, Eulina era tão negra, tão negra, tão negra que a gente passava a mão assim no braço de Eulina, né, e era macio o braço de Eulina, e Eulina contava histórias pra gente, geralmente era histórias de assombração! E a gente gostava, adorava ouvir as histórias de assombração, mesmo que depois todo mundo ficava morrendo de medo, muito medo das histórias de assombração. Então ouvir histórias, ouvir cantigas, brincar de roda, então isso foi toda a vida, e no terreiro a gente não tinha muitos livros escritos. Hoje tem muita coisa escrita, muitos livros, até porque a civilização letrada entrou pros terreiros, os antropólogos, eles, muitas vezes eles inventam coisas que botam na boca dos pais-de-santo e parece que foram os pais e mães que falaram. Mas não é, muitas vezes é pura invenção, interpretação, o que é horrível, né, eles vão interpretando o que eles vêem lá e terminam dando interpretações, muitas vezes inadequadas. Mas o que a gente aprende mesmo é junto com o outro, senta duas, três pessoas trabalhando junto. Eu sou muito mais nova que as duas outras pessoas, e as duas outras vão conversando porque é como se elas fossem atualizando o aprendizado. Quando eu entrei já não era assim uma menina, já tinha uns 45 anos, por aí, então as pessoas esqueciam que eu era tão nova e iam falando coisas, então cabia à mim me manter o mais discreta possível, não se abala, não se diz uma palavra, não se interfere na fala dos mais velhos. E esse não interferir na fala dos mais velhos, que é uma herança ancestral, e o mais novo ele escuta a fala do mais velho até o fim e de cabeça baixa muitas vezes. E não é um sinal de subserviência, é um jeito de aprender, aprender de fato. Então, às vezes o africano ele não leva um pedaço de papel pra escola, né, e fica lá sentado, sentado, sentado, ele escuta, ele tem uma possibilidade de aprender incrível. Então a tradição oral pra mim, primeiro que eu sou auditiva, o que eu vejo, se você amanhã passar por mim e colocar um chapéu, é, com todo o aspecto que você tem diferenciado. Eu posso não te reconhecer, eu não sou nada visual, mas o que eu escuto, aí fica. Quer dizer, eu sempre fui uma pessoa movida à audição, e à sinestesia. O que eu toco e o que eu escuto. Então essa é mais alguma coisa que eu pensei de fazer uma educação diferente nas escolas, levando em consideração a fala, mas não a fala interminável, mas você falar pra pessoa, dizer coisas à pessoa, de vez em quando criar a oportunidade de falar com cada criança ou cada professor que eu estou formando, que eu estou contribuindo pra formação dele. É o falar, o tocar, o olhar, o escutar, como possibilidade educativa, como possibilidade de se fazer uma outra educação que é diferente de dizer: “Olha, leia da página 22 à página 25 e amanhã nós conversamos a respeito.” É, isso não é um jeito de fazer educação, é completamente impessoal: “Marque com uma cruzinha a figura que está à direita.” Quando você pode caminhar com a criança e dizer: “O que está à sua direita, o que está à sua esquerda, é, mova-se pra direita, mova-se...” É um outro jeito, a gente aprende com o movimento do mundo e não com letras, letrinhas.

P/1 – Tem umas coisas na tradição oral, que não são passadas pros outros. Isso existe mesmo, como que acontece?

R – Olha, educação tem que ser vivenciada. O tradicionalista africano, ele pensa educação como iniciação, quer dizer, não a iniciação do jeito ocidental que a gente pensa, mas uma educação iniciática. Seria o que você vai aprender vai te servir pra vida, se eu for te falar de vegetal e falar de uma maneira, o que está no livro é uma coisa, mas falar de vegetal como: “Hoje pela manhã nós tomamos um suco verde, o que é que contém, quais são as ervas que estão naquele suco e pra que é que serve?” É, uma pessoa no terreiro ela não te daria a receita: “Olha, tem tais ervas e ela serve pra isso.” Você teria um tempo pra ir convivendo e escutando, já que a iniciação é iniciática. Tem uma história muito interessante que fala de um estranho que chegou na aldeia e disse: “Eu quero saber sobre circuncisão.” E o Mestre perguntou, mandou perguntar: “Pergunte a

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ele se ele quer ser circuncisado.” Ele respondeu: “Não.” “Então mande ele entrar.” Ele entrou e tudo foi feito de um jeito que ele não percebeu o que é que foi feito. Então, a educação no candomblé é iniciática, lá você tem realmente uma iniciação de coisas que te servem pra vida. Mas a televisão mostra todo dia, como filhos do Satanás, como filhos do Diabo, afaste tudo isso e pense em um lugar que foi feito, que foi formado, que foi estruturado pensando na família que ficou do outro lado do Atlântico. Os que chegaram aqui vieram isolados e veio de lá o que tinha de melhor porque a peça que foi mais cara no mundo, nada foi mais caro no mundo do que um negro ou uma negra pra ser escravizada. Então vieram os melhores, primeiro vieram reis, rainhas, princesas, porque desestruturava o lugar. Depois deles, todos podiam vir, então artesãos, ourives, o que tinha de melhor, é o que veio pra aqui. Quando essa gente chega aqui completamente isolada vai aparecendo alguns líderes tipo uma Iáiá. Iá significa mãe na língua quicongo, Iaiá como a gente canta hoje né: “Cadê sua Iaiá, cadê sua mamãe?” Então essa pessoa vai agregando outros como família, como filhos, outros mais velhos vão se agregando como pais, outras mais velhas como mães. E aí vai se formando a família que está na senzala, essa família que um dia resolve fugir toda pro Quilombo e lá novamente se forma outra família. E a gente sabe de histórias, por exemplo, de Palmares, que na hora da guerra, que durava 20 minutos, escondia todos as mulheres, todas as crianças, todos os velhos, quer dizer, o sentido de procriar, o sentido de crescer, o sentido de ensinar, ficavam guardados, escondidos. E eram os homens brigavam, os que morriam, morriam, os que não morriam ficavam. E aí chegavam outros quilombolas, e quando chegava outros quilombolas eles eram redistribuídos e aí ia criando novas famílias. Então essa é a lição básica de onde surgiu essa religião. E porque surgiu essa religião, e porque os ensinamentos são iniciáticos, é porque os ensinamentos eles tem que servir pra vida. No momento que eu sou feita e a mãe diz assim: “Você é uma filha de Oxum.” E ela começa a me contar histórias de Oxum, e eu começo a ver: “A minha essência é água.” Se a minha essência é água eu me pareço com a água, como que eu me pareço com a água? Eu me pareço com a água em todos os estados que a água está na natureza. Eu sou uma água pessoa ou uma pessoa água, alguém que pode ser tranquilo, barulhento, que corre sem parar ou que pode ser também parado como num lago, que pode sair derrubando tudo com um tsunami, né? Então isso me faz ter uma autonomia, um jeito de pensar, e pensar assim: “Bom, eu não posso ser tão durona, a minha essência é água, e água é antes de tudo flexibilidade, ela pode tomar formas diferentes.” Foi isso que Yung aprendeu e colocou na psicologia moderna, foi isso que Edgard Mohamed aprendeu e hoje declara que ele aprendeu com esse povo que pensa a educação de um jeito tradicional. Então esses ensinamentos eles são passados no momento que você precisa, se você chega e não vai ser iniciado, como o sujeito que não queria ser circunsisado, você só precisa saber o que você é naquele momento. Naquele momento você é o que? Um visitante. Como é que a gente trata uma visita? Senta na sala. Você não leva pro quarto, pra cozinha, não, uma visita, você é uma visita, você fica ali. Agora, na medida em que você, em até um ano já sabe alguma coisa, com três anos você sabe mais alguma coisa, quando você faz sete anos e você tem todas as suas obrigações rituais prontas, então você pode se tornar também um pai ou uma mãe. Então você já precisa ter o domínio, um domínio razoável porque a gente aprende, aprende, aprende, aprende a vida inteira do que é essa religião, né, mas tudo é passado no momento exato que você precisa, e é por isso que você aprende. Então se hoje sua necessidade é um banho de folha, então eu só vou dizer pra você que você precisa desse banho e quais são as folhas que você vai tirar e macerar. Se amanhã você precisa de alguma coisa a mais então eu vou te ensinar essa alguma coisa a mais. É na medida que você precisa. Na escola a criança não aprende muito porque a gente ensina demais. Então você quer que a criança aprenda história, Geografia, ciência, matemática, língua portuguesa, tudo num dia só, você quer que a criança fique quatro horas sentada na sua frente quando você sabe uma criança ela não tem mais que 15 minutos de atenção absoluta por alguma coisa, se for de fato interessante. Você quer que ela passe quatro horas? Então é melhor fazer como no terreiro: “Você agora só precisa disso. Eu só te dou isso.” E você vai aprender para sempre aquilo, é muito melhor do que eu te ensinar um montão de coisa, entrar por aqui e sair por aqui.

P/1 – Com certeza. E o que você acha que é importante de uma tradição oral, assim sabe, de uma

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visão de mundo mesmo? Por que é que a gente tem que conservar, incentivar ela, respeitá-la, tentar agregar mais valor?

R – É, me parece que o importante da tradição oral é antes de tudo o encontro, é você olhar pro outro, é você falar pro outro, é você considerar a presença do outro, a essência do outro, o olho do outro. No momento que você me escuta eu me sinto uma pessoa importante no mundo, eu posso não estar falando verdades absolutas, com certeza não, mas há uma consideração por mim, então essa consideração que eu preciso ter por cada pessoa que passa por mim, né, responder olhando pra pessoa. Quem conta a história, ele não olha pro lado, ele não se distrai, ele conta pra você, você é importante, ele juntou o melhor do seu saber pra dar pra você, ele juntou o melhor do seu acúmulo, tanto do seu patrimônio intelectual como do seu patrimônio espiritual pra dar pra você naquele momento. Então, esse é o encontro. Olha de quanto longe eu vim, São Felipe, olha de quanto longe veio a tua ancestralidade, né, imagina, coreana, e de repente a gente está aqui diante do outro, uma diante da outra, se amando, se respeitando, se entregando, a gente está entregando o melhor que a gente tem um do outro, a atenção, do outro. É, isso levado pra educação, imagine que eu vou entrar na minha sala de aula pensando nas minhas crianças ou nos educadores que eu formo como as pessoas mais importantes do mundo, é pra elas que eu devo dar todo o meu acúmulo, né, tudo, o melhor que eu juntei em toda minha andança pra aquelas pessoas. E vai que essas crianças recebam com um presente, né, essa, esse tempo todo que eu andei, que eu estudei, que eu pensei, tudo que eu escrevi, tudo que eu li. Então tudo isso eu juntei pra cada pessoa que eu estou encontrando, porque eu encontrei também tantas outras, que me deram, que qualificaram a minha presença. Educação precisa ser algo muito não só pensado mas sentido, né, sentido. É, eu, eu agora faço um trabalho no Baixo Sul e pra chegar lá eu tenho que atravessar o mar, e às vezes o motorista que vai comigo ele fala: “A senhora vai descer?” Eu digo: “Não, eu fico aqui.” E eu fico pensando como que eu estou me sentindo, como que eu me sinto, e se eu tiver triste digo: “Não, mas eu tenho que dar um jeito nessa tristeza.” Então eu me pergunto como que eu me sinto, se eu estou cansada, mas essas pessoas esperam o melhor de mim, né, como que eu me sinto, se estou insegura, mas se eu estou insegura talvez eu não deva falar disso que está me causando essa insegurança, mas falar de alguma coisa que me faça absolutamente segura com aquelas pessoas, né, e eu vou me perguntando: “Como eu me sinto? Como eu me sinto? Como eu me sinto?” “Como estou me sentindo?” Mas é, sempre pensando de um jeito de reunir, porque não é a toa que eu estou viva, com 65 anos. Imagina quantas vezes eu escapei de morrer. Escapei de morrer no navio negreiro, escapei de morrer no quilombo, escapei de morrer vivendo numa comunidade pobre de subúrbio com mínimas condições de saúde, de saneamento básico, né, quantas vezes eu já escapei de morrer, mas eu estou viva! É, mas eu estou viva e com um bocado de coisas que eu consegui ganhar de outras pessoas, né, que foram me ensinando às vezes tão despretensiosamente, né? É isso, eu acho, eu acho que eu ainda não sei direito como fazer da minha vida um ato de educar, mas estou tentando, estou tentando.

P/1 – E como foi que você começou a conhecer a Ação Griô, na verdade, a sua vida, a sua luta, tudo que você já fez está sempre muito ligado à educação, à transmissão de conhecimento, oralidade, cultura. Mas e a Ação Griô, como é que você foi chegando perto disso, ou ela foi chegando perto de você?

R – Ah menina, foi, eu acho que é dessas sincronicidades. Ah, uma vez uma pessoa chegou na minha casa, uma minha amiga, uma artista plástica e falou da Ação Griô, que é uma amiga de Lilian Pacheco. Aí falou de mim e do __marido_________ com Lilian, e disse que nós trabalhávamos com cultura africana, com histórias da cultura africana. E falou que nós trabalhamos aprendendo mitos africanos com os mais velhos, histórias mitológicas e que a gente estava trabalhando princípios e valores com crianças. Aí Lilian me convidou, era no princípiozinho ainda, não tinha Ação Griô, tinha Grãos de Luz e Griô; E eu me lembro que uma vez, eu disse: “Mas Lilian, você podia expandir esse trabalho pra Chapada Diamantina.” Ela falou: “Não, não, não, nem pensar, na Chapada não. Olha, deixa isso aqui em Lençóis que enquanto estiver aqui está muito bom.” Então o Carlos Petrovich se encantou por ancestralidade mas ele deve estar

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dando belas gargalhadas de ver Lilian correndo o Brasil todo, pensando a Ação Griô nacional, né? Então, hoje eu sou completamente encantada com o sonho de Lilian, e cada vez eu fico mais feliz e a esperança também não é esperança de esperar toda vida, mas de pensar. E eu acredito que a Ação Griô vai fazer de fato nascer uma política pública importante pro Brasil, vai nascer uma política pública aonde nós vamos nos ver num Brasil cirandado, nós todos vamos nos olhar, e vamos nos respeitar no jeito de ser de cada um, e vamos respeitar nossa criança no jeito de ser, e vamos não ensinar pra essa criança, mas nós vamos fazer vivências educativas. Nós somos o penúltimo país na educação, o estado da Bahia é o último, então é porque está tudo errado. E pra mudar há de ser talvez uma grande cirurgia na educação. A educação na Bahia, não sei se em outras partes do Brasil, enviou um grupo de educadoras para Israel pra aprender educação pra fazer no Brasil, e eu vejo aqui a força de pessoas, do lugar, da terra que fala do mesmo jeito que a criança, e eu vejo a criança como ela fala, como ela se comunica, como nós vimos hoje, quer dizer, é um jeito de ser natural, um jeito de ser que brota dessa terra. E eu vi no Rio de Janeiro um jeito de ser que brota da terra, que brota do Jongo, né? E eu vi em cada lugar que a gente está indo um jeito de educar, de estar no mundo, que significa e que não pode ser trocado por um jeito de ser ditado por Brasília: “Tem livros que são adotados pelo MEC, recomendado pelo MEC para o Nordeste.” Um absurdo, um absurdo. Pra escolher o livro pro Nordeste tinha que ir a professora nordestina pra lá, um grupo de professoras que fossem de cada uma dessas regiões e aí sim, e aí a gente iria escolher o que é que serve pra nossa criança. Uma criança antes de saber do Rio Tocantins, do Rio Amazonas, do Rio Paraná, ele tem que saber o Rio São Francisco, a problemática do São Francisco, o que isso significa na Geografia, na História, nos costumes, na tradição oral, é, na vivência política, social, econômica desse lugar, ou de todo lugar que o Rio São Francisco. E acho que precisa fazer uma educação menos racional e mais poética. Eu fico contente quando eu trabalho com os trovadores, os repentistas, os cordelistas. Se a criança tem um jeito de ouvir, de ler o tempo todo o que é o cordel porque não pode se ensinar História, Geografia, Ciência, Matemática a partir do cordel, a partir dos repentes, a partir da linguagem do lugar? Por que tem que ser a partir de uma linguagem que ela não domina, que ela nem sabe. Uma vez foi feito um Projeto chamado “Gestar”, na minha escola do terreiro, onde falava em Alphaville, onde falava na matemática que tinha que trocar uma patinete por uma Barbie, mas a criança não sabia o que era patinete nem o que era Barbie, é, falava em quarteirões, mas lá não temos quarteirões, as crianças moram nas invasões. Quarteirões? Que nem eu falo da vizinha, da rua da vizinha, é, no máximo falar em transversal, mas quarteirões, o que é quarteirão? Então a gente está ensinando pras crianças com uma linguagem inadequada, uma linguagem que não é apropriada, um conhecimento também não apropriado, um conhecimento inadequado, um conhecimento que não caminha nem pra que ele aprenda nem pra que ele seja, né? Tem um poema do Léopold Sédar Senghor que eu não me lembro todo mas tem uma coisa que ele disse assim “O negro não assimila, o negro se assimila.”, Então ele fala que o Descartes fala: “Penso, logo existo.” Mas o negro pode dizer: “Eu danço, canto, encontro, eu sou.” E antes da gente existir, né, precisa ser porque o ser é ser um pro outro, é estar no encontro, né, é olhar no olho do outro, a gente falando o outro escutando. Mas o outro tem que fazer uma leitura total, né, uma leitura total do corpo, do jeito como você está, né, do jeito que você está. Eu penso que educar é conhecer. Aliás a palavra conhecer parece que a significação semântica, é nascer junto. No terreiro a gente nasce junto, a gente não se conhece e de repente cinco pessoas nascem junto, né, naquele lugar. Então nascer junto é, não tem que ser necessariamente no terreiro, nós hoje nascemos juntos, eu nunca vi vocês, mas eu, com certeza eu jamais vou esquecer de vocês, né, pelo tempo que a gente está junto, com essa reciprocidade, de atenção que a gente está tendo, né? Então é, educar, educar não é isso que a gente está fazendo, não é isso. Acho que a gente não precisa de grandes escolas, acho que a gente precisa de uma escola que fosse do bairro, que a pessoa abrisse a porta e todo mundo fosse entrando e, como quem entra pra uma casa todo dia, e que todo mundo se conhecesse. Lá na Eugênia Ana é assim, lá no terreiro, entrasse na sala, saísse, conversasse também, é, desse palpite nas coisas que estão acontecendo, né, sem perder de vista a necessidade formativa, né, a necessidade também do aprendizado, mas que não seja uma instrução, seria um aprender pra vida, né? Porque o aprender pro vestibular não está dando certo, a gente continua sendo um país deseducado. Então não é isso, não é instrução que a gente está

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precisando, eu não sei como fazer mas eu acho que tem tanta gente pensando em outras coisas, em outro jeito que, com certeza, né? Eu olhava hoje o Griô, o velho Griô dançando, cantando, e olhava a postura do Guitinho, e onde o Griô ia o Guitinho ia também tocando o pandeiro, e ele ia e voltava, e eles estavam juntos, não era uma coreografia, não era uma coisa ensaiada, né, mas um não tirava o olho do outro, quando não era o olho assim, mas era o jeito, um estava atento pro corpo do outro, pra onde o corpo do outro tava indo. E a gente está deixando a criança da gente ir pra todo lado, e a gente não olha ela, a gente não acompanha ela com o olhar, mas um olhar de amparo. A criança está precisando de ser amparada, e ela está saindo por aí afora e a gente não sabe pra onde, se a gente não ampara. Aí de repente ele recebe outras formas de amparo, que às vezes é somente dando arma pra ele, que é um poder incomensurável, mas é que a gente não deu o poder de ele ser um sujeito da sua própria existência, né, da sua vida.

P/1 – E a relação da Ação Griô com o ponto de cultura agora. O que você acha?

R – Ai como é bom. Ás vezes nós ficamos angustiadas, né, hoje depois do almoço eu fiquei um tempo ali sentada com a Lúcia, eu disse: “Lúcia, fica calma porque eu também estou angustiada.” Porque se a gente não tivesse angustiada, a gente achasse que está tudo bem, com certeza a gente não estaria fazendo grande coisa, né, mas essa angústia é um jeito positivo de estar no mundo, de querer acertar e a gente não, as certezas não existem, tudo é muito incerto. Então o que é certo para mim não é certo para Lúcia, não é certo para outra. Enfim, a gente está na gangorra, mas o equilíbrio da gangorra é essa, está desequilibrada, né, e eu acho que é isso que está fazendo a vida, que está dando sentido. Essa caminhada, esse encontro, e a essa celebração que nós fazemos também, a gente celebra, a gente está sempre celebrando o jeito de estar começando. Não é alguma coisa que a gente está celebrando porque a gente já sabe, já finalizou, a gente está celebrando as possibilidades, né? Então isso, isso a gente acredita, mas acredita como caminho, sempre como caminho, né, sempre como caminho, sempre, acredita sempre, é, no caminho do desconhecido, né, então esse desconhecido é que é instigante, excitante pra gente. A dúvida, né, a dúvida. E aí eu disse, terminei dizendo pra ela: “Olha, só tem um jeito, juntar as nossas dúvidas já que ninguém tem certeza mesmo vamos juntar as nossas dúvidas, e quem sabe é daí que a gente pode ir encontrando caminhos.” Com certeza esse caminho a gente vai fazer com passos muito lentos mesmo, é um andar na corda bamba mesmo. Juntando todos esses saberes, você está atenta, né, é caminhar, é caminhar. Então o sentido de estar com os pontos de cultura é isso, é juntar os saberes e as dúvidas porque todos temos, todos temos. Você pode conversar com todas essas pessoas, todas têm alguma coisa, todas estão buscando, né, buscando.

P/1 – É, já estamos chegando ao fim, mas eu queria fazer mais duas perguntinhas. Uma é como você se sente sendo assessora pedagógica de uma região, com tantos Pontos, que tem uma diversidade cultural grande, quais são alguns desafios que você enfrenta e já enfrentou neste tempo de trabalho junto com os Pontos de Cultura. E a outra eu queria saber quais são os seus sonhos e as suas vontades de agora pra frente?

R – Os desafios são todos. Porque veja bem, a Ação Griô não é uma ação isolada, é uma ação que ela só se efetiva com a anuência, com aquiescência, com o acolhimento da escola, com o acolhimento do instituído. Essa é uma questão delicada, quando o instituinte, né, invade o instituído. Na verdade a gente está pedindo licença, a gente não está invadindo, seria uma figura exagerada, né, a gente está pedindo licença, com a lição do velho Griô, né, pedindo licença, pedindo a benção pra entrar. Mas a voz instituinte é preciso que ela tenha um equilíbrio pra não ser tragada pelo instituído, porque o instituído é o poder, é a lei, né? E a lei está lá. Enquanto a gente faz um diário, que é um diário afetivo das coisas que nós estamos fazendo, o que a gente pretende garantir, o que a gente pretende na caminhada, a caminhada, o caminho. Para a gente, o símbolo da sandália da Ação Griô é muito importante, né? Mas, é, lá esta a marca da mão quase dizendo: “Pare por aí.” Porque nós temos a lei, nós temos a secretaria, as secretarias nós temos os boletins a serem preenchidos, nós temos as notas, nós temos as provas, e essas provas são

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muito importantes lá pro instituído porque é o que vai valorizar a educação e essa valorização significa verbas, então precisamos de números, precisamos de números positivos. Então isso é uma questão que envolve um cuidado muito grande da gente, né, como chegar nesse instituído sem ser uma coisa pesada. Como chegar com leveza, como chegar com delicadeza, como chegar com cuidado, como chegar acolhendo pra ser acolhido. Então essa dificuldade existe. É, tem uma frase que a gente ouve que é incrível: “Olha, nós já estamos fazendo isso há muito tempo.” Então quando você ouve essa frase significa que não é um sinal verde, é um sinal amarelo, cuidado, cuidado porque qualquer desequilíbrio o sinal vermelho aparece, né? Então, nós já fazemos isso, e aí nós já fazemos o quê? No meu caso com a educação para as relações etnico-raciais, nós já vestimos crianças de orixás, nós fazemos isso na noite do folclore, as mãe-de-santo vêm pra aqui ensinam as danças, as danças que são noites folclóricas. E aí a gente morre de medo porque é um grande absurdo, isso não é pra ser feito. A história africana não é isso, na história africana a religião é um detalhe importante mas não é pra ser feito desse jeito. O Estado é laico, se a gente faz desse jeito, a gente está também indo de encontro a católicos, a evangélicos, então não é isso que se quer. É preciso consciência histórica, é preciso saber de ancestralidade, é preciso pensar em convivência religiosa, é preciso re-significar os ritos da escola, né, viver as manifestações culturais como a chave que abre a memória, né, e a história de um povo. Então essa é outra coisa. Essa é uma coisa importante, né? E os meus sonhos? Todos os sonhos. Eu sonho com uma escola que seja diferente da escola que eu tive, eu sonho com a escola que acolha a criança, do jeito que ela é. Uma escola que as escolhas pessoais da professora não implique na educação dessas crianças, que as suas escolhas afetivas, que as suas escolhas religiosas, não implique em nenhum desastre pra criança, né, que a criança seja uma criança, né, como uma flor que brota na frente da gente que precisa ser regada, cuidada, ajeitada, que seja mostrando sempre pra ela que existe o lado do sol, pra que ela brilhe, que ela não tenha nenhum lado escondido, que ela seja vista por inteira, que ela seja mostrada nas suas diversas faces, nos diversos jeitos que ela está no mundo. Que ela não seja uma criança da fotografia, que tem o pai, a mãe e o filho, que ela não seja uma criança fotográfica mas uma criança que está no mundo que às vezes ela muda de pai, ela muda de mãe, ela muda de família, ela muda de religião, ela muda de jeito de ser no mundo e que a gente tem que está sempre amparando, amparando, amparando essas pessoas, esses jovens, essas crianças. Meu sonho é que isso não seja só responsabilidade da gente, educador, mas uma responsabilidade do poder público, das políticas públicas. Uma professora pra trabalhar dois turnos ela tem que deixar o filho dela em casa. Uma empregada doméstica ganha um salário mínimo, a professora ganha pouco mais que um salário mínimo. Como que ela vai ter paz pra trabalhar? Como que ela vai ter paz pra cuidar do filho do outro se o filho dela não está sendo cuidado? Como é que ela vai ensinar, como que ela vai cuidar dessa criança que está na escola se a perspectiva do filho dela acaba ali? Ela tem quase consciência que o filho dela não vai passar no vestibular nunca. Algumas exceções, mas a grande maioria não. Então, é, eu tenho a esperança de esperar num futuro próximo, é, que a escola pública seja o lugar, aí sim, aí eu como uma professora do ensino fundamental eu posso fazer bem feito porque eu sei que a minha criança, o meu filho também dali por diante vai ter um primeiro grau, um segundo grau, um terceiro grau, é, bonito, vitorioso. Então é preciso que essa professora que está aqui na ponta ela tenha essa esperança. É imprescindível que ela tenha essa esperança. Então o poder público vai ter que garantir à professora do ensino fundamental que o filho dela também vai ter. Acho que essa é uma grande questão. Acho que talvez o professor ainda nem tenha pensado nisso. Se não pensou graças a Deus, porque assim ele vai, ele não pensa nesse desastre, né, que está sendo a perspectiva da educação se a gente não marcha pra uma virada mesmo, né, pra uma virada mesmo. É uma revolução amorosa, irresponsável, irresponsável. Eu sinto que isso tem que entrar na cabeça de quem dirige esse país porque senão o país vai ficar inviável, seja pra quem for. Se essa juventude que está aí não se formar, formar, criar uma forma cidadã, o que é que vai ser de todo mundo? Porque a marginalidade atinge a todos. A marginalidade atinge a todos, não somente quem está na marginalidade, a gente começa a se trancar, a ter medo de tudo e de todos, né? Então não é esse pequeno grupo que detêm todo o poder, toda a riqueza desse país, que vai dar o equilíbrio pra esse país que está por aí precisando ser educado. É, naturalmente que a educação precisa se pensar uma educação com saúde, com cultura, com meios econômicos, né, e não é

Page 14:  · Web viewengenho, no rio, quer dizer, eu tinha uma história e uma Geografia já marcada dentro de mim que eu precisava saber o que significava. Enquanto eu não sabia nada, eu

com uma bolsa aqui, com uma bolsa ali, não é com um pró-jovem aqui, um pró-jovem ali que a gente vai resolver. Formar esse país é uma missão de todos. E a gente está vendo uma coisa significativa. Olha quem está na Ação Griô, olha quem está educando. Gente, isso é uma coisa significativa demais. Isso é o país dizendo “Se vocês não estão sabendo educar meus filhos somos nós mesmo que vamos fazer essa educação, somos nós mesmo que vamos cantar, dançar, brincar e pensar nesses sujeitos como solidários, como coletivos, né, como gente que pode pensar com autonomia, como gente que está disposto a caminhar, né, caminhar até rasgar as sandálias mas caminhar pra encontrar uma coisa que a gente não sabe o que é mas deve ser um lugar que não tenha tanta fome e tanto medo. Eu acho que a gente tem dois inimigos nesse momento que a gente precisa se libertar: da fome, e que inclua essa forma de saber, né, essa fome de viver, junto, essa fome de ser livre. A gente precisa se libertar dessa fome. Essa fome ela não vai sumir com uma sacola, né, essa fome ela precisa de muito mais, precisa de coragem e precisa da gente pensar nessa imensidão de gente que a gente encontra pela rua, não é só nas escolas, né, que está pela rua, que não está vivendo, que não tem esperança, né, que não tem esperança. A gente precisa se livrar do medo e da fome.

P/1 – Pelo Museu da Pessoa eu queria agradecer muito, muito mesmo, e agradecer muito mais ainda e obrigada.

R – Eu agradeço também.

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