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0 BANQUE TE SOREN KIERKEGAARD

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0 BANQUE TESOREN KIERKEGAARD

Título da obra no original: STADIER PAA LIVETS VEI

SOREN KIERKEGAARD

0 BANQUETE

qL~(I.N VINO VER1TAS)TRADUÇÃO DE ÁL V ARO RIBEIRO3.- EDIÇÃO

GUIMARÃES EDITORES

APRESENTAÇÁOS&rm Kierkegwrd é nome já suficientemente conhecido entre os leitores mais ilustrados, não só porque aparece escrito em iornais, revistas e

livros que ~nam a cultura do nosso tempo, m.as também porque algumas obras daquele fiffisofo se encontram tradu~ eM POrtuguêS e,

foram editadas em Portugal. A Arte de Amar, ou Diário do Sedutor, foi traduzida m 1911 por Mdr&o Ale~ o publicada pela rAvraria ~ sica Editom, de Lásboa, para a qual trabalhou também Fernando Pessoa. Mais tarde, em 1936,0 Des~o Humano foi traduzido por Adolfo Casais Monteiro para a colecçdo «~ofia e Reli~», dirígida por Leonardo Coimbra para aoo-

lher as obras dos sem discípulos, e editada pela Livraria ~res Martins, do Porto. Durante a segunda guerra mundial, quando a filosofia a~ voltou a ser objecto de críticas, controvérsias e

polémicas, desenvolveu-se e divulgou-se o existencialismo que, nas suas expressões universitárias e também extra-uníversitárias, conseguiu ter representação entrenós. Depoisa Encíclica Humani Generis (1950) contribuiu também para

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despertar ~r interesse pelos debates em torno da ortodoxia e da keterodoxia da filosofia existencial. A obra de Kierkegaard tem sido, assim, estudada pelos intelectuais portugueses e tende a ser cada vez mais bem acolkida pelo grande público, a ser lida com curiosidade, interesse e paixão.

Soren Kierkegaard é um escritor que faz pensar. Fazer pensar, é, aliás, o intento primacial do escritor e o sinal verídico do seu êxito. Se por vezes alguns leitores, e algumas leitoras, dizem procurar livros amenos que libertem de preocu, paç6es intelectuais, manifestando assim preferência; pelas obras erróneamente designadas de artifÍc@o ou de ficção, tais leitoras e tais leitores desse ~o confessam que o seu pensamento tende mais para a passividade do sonho, do devaneio, da fantasia do que para a actividade intelectiva, mas esquecem que imaginar também é pensar. A ~ de que o leitor de boa ou má literatura requer obras que o façam pensar, imaginando ou concebendo, está exactamente na facilidade em que se aborrece não só dos livros já 1~ mas também de encontrar semelhanças e repetições nas obras de, fabulação.

Se a leitura não fizesse pomar, não sería um

prazer nem ser= um meio de cu2tura. É claro que cada leitor prefere pensor no que lhe é agradável, no que lhe praz,,no que lhe interessa, sem,

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muitas vezes atender a que assim se ~e de um

mundo para outro mundo, sem oiboervar que nessa evasão -vai transformando a sua delicada perwwlidade. A alteração, digamos, o aperfeiçoamento do gosto literário, que o leitor regista no seu caderno memorial, é um dos facthres mais importantes, de educação e de evolução.

Ocorre imediatamente a quem ~e a já muitas vezes repetida comparação entre a conversa com os livros e a conversa com as pessoas amigw e amadas, oomparação que leva à adunação:- no íntimo só queremos conversar com quem, ou com o que, essencialmente nos fale de amar.

Ora é a pensar no amor que nos convida e-&ta obra do filósofo dinamarquês.

0 pmblema do amor apresent~ singularmente a cada ente humano, com a nudez estruturat que nenhum enunciado reveste ou disfarço &uficientemente; não pode ser evitado, não pode ser resolvido por procuração. Há, porém, outro estádio, ou outra imtdncia a oonM~. Quando pareça resolvido negativamente, pela renúncia ou pela sublimação, quando pareça resolvido positivamente na escala móvel que vai da estrita normai~ moral até à imoral~ viciosa, o pr<>blema do)amor reaparece a exigir mais perfeitos termos de satisfação, sossego e tranquilidade. 0 problema do amor inquieta, perturba, atomenta durante a vida inteira o ser humano que com tal

10 PREFÃCIO

dor “ pagando o preço do seu ideal de perfeiç50. Ninguém se encontra ~feito com a solução prdtioa por que optou, e aqueles que sinceramente se @dizem felizes com as consequên~ da soluçt@o qw adoptaram, não fazem mais do que procla- ~r o vencimento do problema erótico pela vitóna de uma virtude superior.

o problema do amor nos seus limites naturais é in~oeptíwl de uma solução estável. T~e a ser rek~do com a moral e com a religião, pelo que interessa a toda a gente. Assim, aqueles que menos se ocupam já com a sua própria vida erótica são o& que mais se preocupam com o que o amor é, ou deve ser, na vída dos outrots.

A série de ~~, expM~M e vícissitudes por que passa o homem que ama, ou que ndo ama, altera, contradiz e desmente a doutrina adoptada na adolescência ou na mocidade. Esta inst«bilidade mental será tanto maior quanto mais o home-m viver em cur~de pela literatura e pe” ww sucedâneos, mais ou menos espectacuZares. Cada um de nós está assim a ser permanentemente convi~ a repensar o problema do amor, que ndo é um problema dos livros, própi,io só de interessados ou especialistas m Testritos domínios da cultura, porque é um “blema humano, no sig%ifi~ universal da Palavra, porque é, enfim, um Problema fil~fico.

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Hd até pen~es para os ~ o problema do amor, no estrito sentido das reacções do homem com a mulher, será aquele pelo qual se

determina a autenticidade dos ~emas filosóficos e o valor das obras de filosofia. Quem pertencera esta escola, corrente, ou tendência terá de se dedicar a estudos dificí~ para conseguir chegar ao âmago dos sistemas de filwofia, Raros são os escritores que «4m pensam, muitos não atribuem alta dignidade a este problema de antropologia, e quase todos o abstra,&m das suas obras esp~tivas.

Eliminar o problema do amor, nãb o mewzonar em livros que pareoem de estrutura d~ca e de finalidade educativa, parece-nos omíssão contraproducente no plano da cultura &u~ e

na fase, actual da civilização. A falta de medita- ção corajosa sobre um problema a que ninguém se pode recusar terá por consequência a admissdo de noções erróneas que se difundem por simplismo ilusório ou por auto-sofismação. Os preconc,eitos, ou falsos conceitos, e os prejuízos, ou falsos juizos, que estruturam, a opinião das pessoas consideradas bem pemantes, se fossem submetidos a um momento de eluc~ão, mereceriam a imediata. repulsa do pensador envergonhado. B indispensável um esforço intelectual da categoria do heroi8mo, para manter sempre presente a mais elevada doutrina do amor.

12 PREFÃC]DO

Temos de tolerar, --na roti)m da vida quotidiana, em que maior é o número das horas de desatenção, à mais alta verdade, - a doutrina fdcil, medíocre e baixa que, por correr entre o migo, não suscita controvérsia nem discussão. A doutrina entre nÔs vigente é a doutrina naturalista, segundo a qual as relações do homem com a mulher, que englobamos no termo,,de amor, se explicam pelo instinto de reprodução nas espécies biológicas. Doutrina naturalista, dizemos, aceitável para os que não lobrigam a distinção entre Natureza decaída e Natureza redimida. Apresen, ta-se a ideia de imtinto com palavras de, condescendência o indulgência, apresentarse a ideia de reprodução e^ um bem parra a família e para outras colectividades mais amplas, completando-se a biologia coma demografia. A extrair desta doutrina, a que falta a ideia de g&nese, todas as consequ~as lícitas, chegaríamos a admitir o que se encontra descrito em certas utopias imaginadas e raciocinadas, mas que repugna à consciência e ao inconsciente da maioria das pessoas cultas. Escusama@ de tramformar a alusclo compreensível em descrições de realista crueza.

Alarmam-se os moraZistas que, por engenho, inventam o manto propício para cobrir os aspectos desgostantes das relações animais, e, sem que analisem os motivos profundos dos ritos etnográficas, parecem querer fundamentar e legiti-

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mar a, moraZ em fixos ou ínfixos preconceitos ~is. Assim se estabelece na consciência do moralista a duplicidade, - aliás tão frequente, -

de consentir que os instintos se satisfaçam a Ocultas e de respeítar as conveniências morais. Nada impede, p~m, o ~em de oonfessar a amigos e a cionhecidos o que deveria ficar Para sempre em segredo, e na in~fid~ de»wntir a professada moral.

Faz~ passar o problema do amor por estas d~ instâncias, a Ciência e a Moral, dão-se por contentes muitas possoas que deveriam pensar em tem~ de maior elevação. Infelizmente, porém, nos nossos ambientes de mediana cultura é mais conhecida a Metafisica do Amor do Schopenhauer do que o Sentido do Amor de Soloviev, mais estimado o De l'Amour de Stend” do que os Estádiossobre el Amor de Ortega y Gasset, apenas porque domina ainda entre nós o preconcoito calvinista de que o pessimismo Moral cOincide com a máwima lucidez ínteZeetual.

Há, certamente, alguma.9 almas mp~es às ~ repugna esta doutrina medíocre e que pressentem, se é que não sentem, a luz difusa do remota verdade. Ê-lhes difícil c~ber e exprimir a doutrina por que anseiam, doutrina a opor à banalidade. No entanto, fácil lhos seria Ver que a doutrina vulgar, de deficiente ci&wi« e de deficiente moral, tem sido sempre desmentida

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pela arte, pela filosofia e pela religião, ~ quais o a~ humano, além de, ser apresentado em ra, dwçtw de, beleza, assume uma significação real e trameendento.

NJo nos deteremos a relembrar a excelsa. doutrina do Banquete de Matão, porque, supomos que e14 d~ estar na mente de quem quiwr compreender o Banquete de Kierkegaard. Ninguém que vá ler a obra do filósof o grego se encontrará habilitado a apreoiar e avaliar alusões tão sugestivM e signíficativw, como as que diwmre&peito a Aristófanes. Quere~ apenas notar que nas duas obras o a~ é tema de discurso de vários oradores, artifício feliz para Tw seja gradativamente e8tudado como problema ant~ló~ oa~gico e teoló~. As semelhanças não anuZam as d4ferenças que ~tem, entre uma obra de f~fw mediterrânea e uma obra de fiZosofia nórdica.

Também não nos cumpre resumir a obra de Soren Kierkegaard, nem analisá-la para facUitar a intel~1o do leitor es~ecido. Preferimos elogid-1a e maltecê-la, explicando a sua actuali- dade e mostrando o seu valor a quem quiser pensar o problema do a~ em termos de ftl~ fia actual.

É evidente que, na obra de Kierkegoard, se aprofundam os conceitos de sedução e *w»gamia, entre os qu« j,,@ parece situada a ética das

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relações do homem para com a mulher. A &edu@ ção é segredo, a monogamia é ínstituição ética@ A sedução não é actividade, nem é excl"tumente masculina. A mulher sabe que pernumec~ imóvel, 8ilenciosa e vestida pode seduzir tanto ou mais do que demudando-se, tagarelando ou,dançando. Seduçdo é atracção, e nesta ~a se diz um conceito que a ci~ ndo esolare-ce.0 problema daseduçdo obsediava Kie-rkegaard, e dentro do problema da sedução o donjuanismo. Todos conhecem a 1~ de D. Juan que alwg tem dado motivo a várias obras literdrias e qu-atingiu a mais subtil expressão artística na ópera mu~l de Mozart. P~m pessoas, porém, e~

traram por aprqfundamento, a causa ou a motivação fundamental do movimento que impele D. Júan T~rio, pela série infinUa das wduç6esOra este problema não pode ~r de ser enunciado e resolvido por quem se considere uma pessoa culta. Claro estd que o momento moral da sedução é o do abandono, ou desamparo, da mulher pe74o homem; até esse num~o não hd que formular juizos moram, tudo é lioito, porque decorre sem drama no fflano estético, no plano da promessa ainda não renegada. A vileza moral do,homei% quando existe, revela-se wo momento da inconfid~a o da ingrat~.

Kierkegaard, não só meditou, no segredo da seduçdo mas procurou realizar a experi~

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moral em termos oonvenientes, limitados e dignos-R sabido que o episódio do rompimento do noivado com Regina Olsen explica muitos passos obscuro& da obra do escritor, e representa na biografia de Kierkegaard uma dem’ ao cujos motivo,s ainda nCw foram bem esclarecidos. Só aos teólogos, - e Kierkegaard foi, a seu modo, um teólogo -, é lícito o celibato. A renúncia ao amor, em todos os outros casos, pagase com sofrimentos confessados ou inconfessados. Digno de Idstinia é só aquele- que, dotado como os de~ de ~4a1 (aptidão para amar, alcança a velhice sem jamais ter encontrado a mulher que talvez quisesse acompanhá-lo na incerta viagem da vido-

A doutrina de que o celibato é imítação do estado angélico não tem consisténcia ffimófica pois dificilmente se defende perante a antropologia, a cosmologia e a teologia. Seria ~uno lembrar um c»nhec%do Afórismo de Pascal. Más a -instituição cristã do matnmônw, que é um

sacramento, parece resolver de ~neira mais rea-

lista,,e portanto mais verdadeira, o problema do amor huniano. É nisso que a obra de Kierkegaard nos faz p~ar. ,fá a designação de matrimónio nos r~mora a doutrina (tão dignamente presenmda pela Igreja Católica, conforme foi expresso pek Comissão Bíblica em 30 de J~o de 1909), do formatio primae mulieris ex primo homine, dou-

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trina que contém a chave do segredo da atracção e da sedução, o qual ndo pode ser e"l~ pelo naturcaismo. Matrimónio é preferível a casamento. Aliás, na língua portuguesa, casamento significa muito mais a mudança de resídènc4@, a junção de pessoas e bens, porque «quem casa quer o~». 0 casamento exprime maliciosan~te, para muita gente, mais uma situaçõo de facto do que uma situação de direito. Se o oasamento fosse apenas um rito, como vulgarmeInte julga quem inclina a reli~ para o plano da moral, justificar-se-ia fflenamente a degenerescência do registo matiAal em “fano regi,?to civil. Mas se o matrímó»@o é, mais do que um rito, um

sacramento, te~ de admitir que ele é de graça que opera no mundo sobrenatural. A vida conju, gal pode, pois, aparecer como condição indispensável para que o homem e a mulher coope~ na re~ão, segundo o que foi ~to por lei8 dívinas. Todo o mistério do amor Lestá acima ~ t~ biolõgwas e sociológicas com que o& educadores mal ínformados nutrem o 1~ simismo dos adolescentes.

Tem o matrimónio fim sobrenaturais, mas se os não tivesse, conformo pensam os ~, entes, estaria ~ amm, ordenado para ~liar a

evolução da humanidade, isto é, para ir tramformando os homem infe~es em homem supe~ res. Se este fim, que é o fim da família, nem

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wmpre é atingido reulmente, outro “bkma, o

da frustraçdo do casamento, tem de ser resolvido à parte. Tal era o que preocupava as gerações retratadas numa literatura que vai po~ a pouco, perdendo a sua melhor significaçdo.

Reférino-nos à literatura romântica, ndo só Porque ela se demorava a descrever em verso e

em prosa os impedimentos à uni4o dos amantes, mas ainda porque atribuía ao drama antropológico uma sígnificação que ~ontrava equivalência na cosmologia e na teologia. o romantismo nao é já entendido, e o desente"mento resulta de ter sido esquecida a razCw da mocied%tle tradicional. Esta 3abia perfeitamente que a vida conjugal é difícil, porque exige a u~ nos três p do cmn"to humano: no espírito, na alma e no oorpo. A comun~ de culto re@igioso é tão importante com a comunhão de afectos e de sentimentos para qw o conjunto ndo se dissolva por inf luências previsíveis e impr~veis- A fidelidade conjugal, contra~ por mil ~unidades e por mil circunstâncias, só pode ser garantida por uma fé religiosa. Esta verdade, expressa em outros termoo, demo~ que o ~rcio é o

fim natural do casamento.

A d~&wia da Steratura romântica corresponde ao,desinteresse pelo problema do amor, o

que é ~ente na literatura actual em que o problema da morte lenta ou VW,~a, do assassínio

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individual ou colectivo, aparece como princip& ingrediente da fabulação. 0 que se observa no livro é ainda mais evidente no espectáculo teatral e no cinematográfico. Assim chegamos, sem

obrigação de passar por difíceis nomenclaturas técnicas, aos assuntos que constituem a temática específica da filosofia existencial, filo-sofia de crise para os homens eos povos que deixaram de ver no amor infinito o, primeiro atributo de Deus.

Eis as razões que nos levaram a considerar0 Banquetc,e, também, os outros livros que oompõem a série intitulada Estádios na via da vida, como a melhor introduçao, ao estudo da obra de Soren Kierkegaard e da reacção que, o existencialismo exerceu, exerce e exercerá no desenvolvimento da filosofia portuguesa.

A.

ESTÃDIOS NA VIA DA VIDAEstudos diversos

Reunidas, mand~ imprimir e edit~

por

lULÁRIO, encademador

ADVERTÊNCIA DO EDITORLectori benevolo!

Em tudo tem que haver probidade, mas especialmente no reino da verdade e neste mundo dos livros. Eis, pois, a história verídica desta obra; não vá um professor catedrático ou um

senhor de mais alto coturno sentir-se ofendido a quando vir que o encadernador ignorante se

fastou do seu mister -para ocupar-se de literatura; não perca o livro com as criticas severas daqueles que se recusaxiam até a ~neç&r a leitura, apenas porque a obra foi apresentada por um encadernador.

Há vários anos já, um literato das ntinhas relações entregou-me uma importante quantidade de livros para encadernax, item, várias resmas de papel almaço de brochar in-quarto. Estávamos no fim do -ano, quando há mais trabalho paxa fazer; mas o senhor Literatissinio, como homem condescendente e benévolo que sempre era, não me deu pressa; os livros ;dele ficaxam pois, seja dito para minha vergonha, mais de três meses em minha casa. Mas há viver e morrer,

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ou, como diz o alemão: «hoje rosado, amanhã falecido» (1); ou como diz o pastor: «a morte não conhece condições nem idades»; ou ainda, como costumava dizer a minha falecida mulher: «todos temos que passar pela morte, mas o

Senhor sabe muito melhor do que nós qual é o

momento favorávelpara essa graça». Sim, acontece pois que até os melhores têm que deixar este mundo. 0 senhor Literatíssimo faleceu entrementes; e os herdeiros, que viviam no estrangeiro, receberam os liwos dele por ofício do tribunal enca-rregado da execução testamentária, tribunal que se encarregou também de me pagar os trabaffios encomendados.

Como honrado axtesão o cidadão, cumpridor que dá a cada qual o que é seu, nunca duvidei de ter devolvido ao senhor Literatíssimo tudo quanto lhe pertencia, quando, num belo dia, descub,ro num canto um, amontoado de manuscritos. Interroguei-me,,em, vão, sobre quem os teria deixado;aJi ficar, e para que fim, se parabrochar ou para encadernar; em suma, fiz a mim próprio todas as perguntaB que nas mesmas. circunstâncias se apresentam a um encadernadúr; ainda hoje não tenho a ceirteza de não me ter enganado. Finalmente, a minha falecida mulher, que então era viva, e que com rara fidelidade me prestava auxílio e socorro a@té nos assuntos

(1) Heute rot, morgen todt.

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do meu mister, teve uma ideia luminosa; lembrou-se de que os manuseritos deveriam ter vindo naquele grande cesto em que o senhor Literatíssimo me mandaxa os seus livros. Adoptei esta opinião; mas como tinha, passado muito tempo sem que ninguém viesse pedir o amon-

toado de manuscritos, pensei que, naturalmente, os papéis não e= de grande valor. Brochei as fôlhas, para nã o ao ver arrastar e correr pela loja, como dizia a minha falecida mulher; dei-lhe uma capa de paipel colorido, e guardei os cadernos numa estante.

Duranteos longos serões de Inverno, quando não tinha mais que fazer, pegava de vez em

quando no livro e lia para me distrair. Não posso dizer que encontrasse muito agrado na leitura, porque pouco entendia do que ali estaíva escrito, mas tinha assim um estímulo para devaneio e especulação. Como grande número de páginas estavam escritas por mão hábil na caligrafia, mandavapor vezes os meus filhos copiaremum ou outro trecho, paira assim os habituar a manejarem a pena, a reproduzirem as letras bem lançadase imitarem os floreados das maiúsculas. Ás vezes também os obrigava a ler em voz alta, sim, para os exercitar de manuscritos, o que não se faz nas escolas, embora pareça incrível; ainda por muito tempo não cuidaríamos disso, se o senhor Paleographus Maximus, ilustre escritor, como se diz nos jornais, não tivesse pro-

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curado remediw o mal, demonstrando-me a verdade destas palavras que a minha falecida mulher tinha o costume de dizer: «a leitura dos manuscritos é indispensável em todas as circunstâncias; nunca a deveriam pôr de parte na

e.scola». Não vale a pena saber escrever quando se não é capaz de ler o que se escreveu, ou, como lá diz o Henrique na comédia: «Sou muito capaz de escrever alemão, mas deciftá-lo é que não posso».

No Verão passado, o meu filho mais v~ completou dez anos; pensfei então em que seria bom dar-lhe um ensino mais metódico. Uma pes, soa importante recomendou-me um seminarista, estudante de filosofia, qw-- não me era int&ramente desminhecido, pois já por várias vezes o escutara, para minha edificação, no ofício de vésperas celebrado na Igreja do Nossoi Salvador. -Não tinha ainda feito os seus exames, e havia renunciado inteiramente à teologia quando descobriu que era um espírito livre e poético (são os seus próprios termos); apesar de tudo tinha já profundos conhecimentos, proferia belos ser-

mões, e, sobretudo, era dotado de uma voz magnífica, quando subia ao púlpito@ Chegámos a um acordo; e estaibelecemos que ele daxia duas horas de lição por dia ao meu filho, sobre as disciplinas mais importantes, em troca do almoço.

Grande felicidade entrouna minha pobre casa quando o estudante de filosofia passou a ser

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preceptor do meu filho; Hans fez logo grandes progressos, é verdade; mas o que de mais valioso fiquei a dever ao nosso bom seminarista foi o que passo imeditamente a contar. Certo dia observava ele o livro brochado com capa de cor que eu utilizara para a instrução dos meus filhos; examina-a de relance, e pede-me o favor de lho emprestar. Respondi-lhe muito sinceramente: «Pode ficar com ele; já não preciso desse alfarrábio, agora que o meu filho tem quem lhe ensine a escrever». Mas o seminarista teve, verifico-o agora, a ~bridade de recusar a oferta. Levou o livTo a título dee@npréstimo. Três dias depois (lembro-me como se fosse hoje, -estávamos a 5 de Janeiro, no princípio do ano) veio ter comigo porque me queria falar. Julguei logo que me vinha pedir algum dinheiro, mas não era nada disso. Entregou-me o livro famoso. E começou a dizer: <Meu caro senhor Hilário. Ignorais certamente que dom magnífico foi o da Providênela à vossa oficina de encadernador: este livrodo qual, na vossa indiferença, vos querícia desembaraçar. Vale quanto pesa, em ouro, mas para valer precisa de cair em boas mãos. A imprimir livros desta natureza é que se contribui para o

adiantamento das boaa e proveitosas doutrinas que convém divulgax por entre os filhos dos homens deste tempo, em que a fé se torna tão rara entre o povo, tão rara como o dinhe!xc. lJais ainda. V09, senhor Hilário, que haveis sem-

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pre tido o desejo de ser útil aos vossos semelhantes, para além dos limites do vosso mister de encadernador, vás que asPirais a honrar a

memória da vossa falecida mulher por meio de qualquer acção muito mais relevante; vós, a

quem -coube por sorte a possibilidade de cum, prirdes e~ votos, podereis além dissoganhar uma quantia considerável com a publicação deste livro». Fiquei profundamente comovido, e mais ainda quando ele levantou a voz para continuar assim: «Nada desejo paxa mim, ou quase nada, peloque diz respeito a este negócio; mas ao pensar no grande capital que vos @espera, tomo sómente a liberdade de vos pedir dez moedas a pronto pagamento, e um copo de vinho ao almoço,nos domingos e dias santificados».

Fez-se o que obom. do seminaxista, candidato à Hoeinciatura, em filosofia, -me aconselhou; tão certo estava eu de adquirir grande capital como ele de receber as dez moedas; paguei-lhas com tanto mior alegria quanto mais ele me adventiu de que eu ia publicar não só um livro, mas vários e de diversos autores, o que enalteceria o meu mérito. Era convicção do meu sábio ainigo a de que os manuscritos pertenciam a uma confraria, ou companhia, ou associação cujo chefe seria talvez o literato depositário. Quanto a mim não tenho opinião certa sobre tal pormenor.

Que um encadernador faça de autor: eis o que não pode deixar de causar senão prevista

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indignação num mundo tão cheio de preconceitos como é o literário; nada mais seria preciso, para atirar com o 1ivro para o monte do rebotalho.

Mas que um encadexnador tome conta de um

original, o entregue à imprensa e por fim publique um livro; que um encadernador «deseje ser

útil aos seus semelhantes, para além dos limites do seu mister», isso é que nãopode escandalizar nem formalizax o leitor equânime.

É, pois, com estes sentimentos que recomendo muito respeitosammte o livro, o encadernador

e o negócio,

Copenhague, janeiro de 1845.

Com toda a niinha consideração

HILÁRIO, encadernador

0 BANQUETE(IN VINO VE1UTAS)

Recordaçõ,o escrita por

WILLIAM AFHAM

Solche Werkei @sind Spiegel; wenn

ein Affé Mno@n guckt, kann kein A~el h~ sehew.LICHTENBERG

Tais -obras são como espelhos; se

um macaco olhar para dentro delas, nunca poderá ver um apóstolo.

ANTELóQUIODeliciosa ocupação é deixar amadurecer um

segredo, prazer inebriante é saboreá-lo a sós; mas quantas vezes esse prazer nos entristece, nos atira para o devaneio, e nos deixa cair a alma em mal-estar! Com efeito, quem julgar que um segredo é um simples objecto de circulação, que pode fàcihnente mudar de possuidor, muito se engana; aqui é que é caso para dizer « daquele que come vem o que se come»; mas quem pensar que este prazer tem por única dificuldade o dever de não trair, também se engana, porque não sabe que o segredo traz consigo a responsabilidade de não o esquecer. Mais importuno é, todavia, recordar-se apenas de me-

tade, e fazer da alma um traficante de mercadorias avariadas. Por deferência para com outra pessoa, o esquecimento será então como a cortina de seda que se corre diante do segredo; a recordação ~à como a vestal que passa atrás da cortina do esquecimento; isto no caso de não se tratar de uma verdadeira recordação, porque, no caso contrário, nem sequer houve esquecimento.

36 KIEREEGAARD

Não basta que a recordação seja fiel; é preciso também que ela resulte de um concurso feliz de condições. Tal como o vinho deve conservar o perfume rescendente da vida, dentro do vaso em que se encontra fechado. Não é em qualquer tempo que se esmagam as uvas, porque nesta operação a temperatura é um dos mais importantes factores; assim também o vivido não se presta sempreao trabalho da recor-

dação; não se presta sempre, nem em todas as circunstâncias,

Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira alguma idênticos. A gente pode muito bem lembrar-se de um jevento, rememorá-lo com todos os pormenores, sem por isso dele ter a recordação. A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que se apresente para con- ~ar a recordação.. Esta distinção torna-se manifesta ao exame das diversas idades da vida.0 velho perde a memória, que geralmente é de todas as faculdades a primeira a desaparecer. No entanto, o velho tem algo de poeta; a imagmação popular vê no velho um profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a

sua melhor força, a consolação que o sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de poeta. Ao invés, o moço possui a memória em alto grau, usa dela com facilidade, mas falta-lhe o mínimo dom de se recordar. Em vez de dizer: «aprendido

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na mocidade, conservado na velhice», poderíamos propor: <memória na mocidade, recordação na velhice». Os óculos dos velhos são graduados para ver -ao perto; mas o moço que tem de usar óculos, usa-os para ver ao longe, porque lhe falta o poder da recordação, que tem por efeito afaotar, distanciar. A feliz recordaçã o do velho é, como a feliz facilidade do moço, um gracioso dom da natureza, da natureza que protege com seus cuidados maternais as duas idades da vida que mais precisam de socorro, se bem que, em certo sentido, sejam também as mais favorecidas. Mas é por isso também que a recordação, tal como a memória, muitas vezes não passa de portadora dos dados mais acidentais.

Apesar de se distinguirem por grande diferença, a recordação e a memória são por vezes tomadas uma pela outra. A recordação é efectivamente idealidade, mas, como tal, implica uma

responsabilidade muito maior do que a memória., que é indiferente ao ideal. A recordação tem por fim evitax as soluções de continuidade na vida humana e dar ao homem a certeza de que a sua passagem pela terra se efectua unio tenore, num só traço, num sopro, e pode exprimir-se na unidade. Assim se liberta ela da necessidade em que a língua se encontra de repassiar incessantemente pelas mesmas tagarelices, para reproduzir aquelas de que a vida se encontra repleta. A condição da imortalidade do homem

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é, que a vida dele decorra ~ te~. Curioso é ter sido Jacobi o único pensador, que eu saiba, que fale do terror que o homem possa sentir ao

julgar-se imortal. Talvez que o filósofo tivesse os nervos fracos. Um homem forte, que ganhe calo nas mãos à custa de se apoiar na cátedra ou de bater no púlpito, seja professor da faculdade ou pregador da igreja, não sofre tão grande terror ao apresentar as provas da imortalidade; e, no entanto, ele conhece a fundo a questã o, pois em latim se diz que «tem a pele calejada» de quem aprofundou o assunto em que é versado. Mas, logo que não se confunda a memória com recordação, já esta ideia deixa de ser assim terrível. Em primeiro lugax, porque se é cora@ joso, viril, robusto; em segundo lugar, porque já não se pensa nessa ideia. Não faltam, certamente, pessoas que tenham escrito as suas memórias, nas quaiz o leitor não encontrará vestígio de recordação, e, no entanto, esses homens apresentam as lembranças para com elas garantirem a imortalidade. A recordação é, por assim dizer, uma letra comercial que o homem saca sobre a eternidade, a qual tem a caridade de conceder o máximo crédito e de considerar solventes todos os homens; não é por culpa dela, porém, que o homem se toma ridículo - quando se lembra e por conseguinte esquece, em vez de se recordar; pois lembrar-se é também esquecer-se. Mae, por outro lado, amemória permite

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também que o homem use de grandes liberdades para com a vida. A gente presta-se sem escrápulo às metamorfoses mais divertidas; até mesmo na idade em que a gente anda corcovada, há quem jogue a cabra-cega, há quem faça apostas na lotaria da vida, há quem possa ser sabe o diabo o quê, apesar do número incrível das mutações já sofridas. Num belo dia a morte chega-e, de repente, o homem torna-se imortal. Então, após uma vida vivida de tal maneira, não deveria a gente ficar com a certeza de ter adquirido um rico lote de recordações para a

eternidade? Certamente que sim, se o grande livro da recordação não fosse mais do que o

canhenho doo borrões onde se encontram os gatafunhos que registam as primeiras impressões de um negócio. A contabilidade da recordação é, porém, muito curiosa. Tem alguns capítulos que dão motivo a difíceis problemas, muito mais dificeis do que as regras da sociedade. Seja um

homem a falar desde a manhã até à noite nas assembleias gerais, e a falar incessantemente das necessidades do seu tempo; sem se repetir, à maneira enfadonha de Catão, mas sempre interessante e mordente, ele progride com a sua época e nunca diz a mesma coisa; item, em sociedade, devorado pela vontade de falar, ora deixa que a sua eloquência transborde, ora conserva,a dentro da justa medida; sempre recebido com uma salva de palmas; com o seu nome

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publicado pelo menos uma vez por smana no jornal, ei-lo que até mesmo à noite se torna útil-útil à sua mulher, entenda-se-, continuando a falar como que em sonhos a respeito das necessidades do seu tempo, como se estivesse ainda diante da assembleia geral. Seja também em comparação outro homem, dos que se concentram antes de falar, que vá ao extremo de se resignar ao silêncio total. Suponhamos agora que ambos vivem o mesmo número de anos; pergunta-se por fim: qual dos dois obteve mais matérias para recordação? Seja ainda um

homem que persiga uma ideia,, uma só, e que se lhe dedique inteiramente, com exclusão de tudo o mais; e um outrq, escritor especializado em sete ordens de ciências, «súbitamente interrompido a meio de um importante trabalho (é um jornalista que fala) no momento em que se aprontava para proceder à refundição da arte veterinária»; estes dois homens vivem o mesmo tempo, pergunta-se por fim: qual dos dois obteve mais maté ria para recordação?

A bem dizer, ninguém se pode recordar senão do essencial; pois, como já foi dito, a recordação do velho está submetida às circunstâncias; e o mesmo se diz das analogias com a sua recordação. 0 essencial não é sómente condicionado por ele próprio, mas também pela sua relação com aquilo a que diz respeito. Depois de se ter rompido com uma ideia, não se pode agir

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essencialmente, e nada se pode empreender de essencial; neste caso, o arrependimento é a única forma nova de idealidade possível. Aliás, nada há de essencial no que fazemos, apesar de todas as aparências. Coisa essencial é certamente escolher esposa; mas quem alguma vez viveu uma vida de fantoche, não pode com seriedade e com solenidade bater no peito, no alto da cabeça ou no fundo das costas; sim, para tal homem, esse acto não pode deixar de ser uma farsa. E ainda que o casamento de um homem como esse fosse coisa de interesse para todo o povo, ainda que fosw anunciado com a música dos carrilhões e abençoado pelo Papa, para o próprio noivo tal acto não seria um acto essencial, mas essencialmente uma farsa, Os ruídos exteriores nada acrescentam ao caso, tal como para o empregado que proclama os números premiados durante a extracção da lotaria, o essencial não está na cerimónia da guarnição policial. A acção essencial não consiste em bater essencialmente o tambor.-Mas coisa de que uma pessoa se recorde é coisa de que ela não se

pode esquecer; nada há que seja indiferente para a recordação, enquanto a lembrança pode ser indiferente à memória. Atira-se com a reminiscência para longe, mas eis que logo ela regressa, como o martelo do deus Thor; e não regressa tal e qual, mas com um desejo de recordaçâo; assim como o pombo correio, por mais

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que o vendam, nunca chega a ser propriedade do comprador; regressa sempre, batendo as asas, ao seu primeiro pombal. Mas a recordação, além disso, acalentou o seu objecto às escondidas, afastada e ignorada dos olhos profanos; porque os pássaros não voltam a chocar os ovos que mão estranha alguma vez tocou.

A memória pertence ao imediato e é emorrida pelo imediato, enquanto a recordação só o é pela reflexão. Por isso é que recordar é também uma arte. Em vez de me lembrar, concordando com Temístocles, prefiro esquecer; mas recordar e esquecer não são contrários. A arte da recordação não é fácil, visto que a recordação pode diferenciar-se no próprio momento em que se elabora, ao passo que a memória conhece sómente uma flutuação entre a exactidão e o erro de cada lembrança. Que é, por exemplo, a nostalgia? Unia lembrança recordada. Simplesmente, a dor-da-terra resulta da distância. A arte consistiria em sentir a mesma dor, permanecendo na terra, o que exige a virtualidade da ilusão. Não é tão difícil viver numa ilusão, entre as brumas cinzentas de um nevoeiro perpétuo e libertar-se da ilusão pela reflexão na ilusão e deixar que esta actue com todo o poderio na consciência que nem por isso se deixa enganar. Não é tão difícil evocar aos nossos

olhos o passado como exorcizar da nossa frente o imediato para dar lugar à recordação. @2 nisso

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que residem, própriamente, a arte da recordação e a reflexão à segunda potência.

Para captar uma recordação é preciso saber opor sentimentos, situações, ambientes. Uma situação erótica - situação cujo encanto de vida campestre, longe da sociedade, esgotaria o interesse -, presta-se por vezes muito melhor à arte da recordação no teatro, onde o meio e o ruido fazem surgir o contraste. Todavia a oposição directa nem sempre é a melhor. Se não fosse indecoroso tomar o homem como um meio em vez de um fim., talvez que em certos casos se

-obtivesse a oposição favorável à recordação de uma situação erótica, procurando uma nova história de amor, com a única intenção de a recordar. - A oposição pode ser objecto de extrema reflexão; a relação que a reflexão estabelece entre a memória e a recordação atinge o máximo de intensidade quando se usa da primeira contra a segunda. Dois homens podem negar-se a ir ver um lugar que lhes lembre um acontecimento, alegando para isso razões contrárias. Um não tem a minima suspeita deste fenómeno a que damos o nome de recordação; teme apenas o que a memória lhe possa lembrar. «Longe da vista, longe do coração», assim pensa ele; quer dizer, não ver equivale a esquecer. Outro recusa-se a ver, precisamente porque prefere recordar. Recorre à memória apenas para se libertar das recordações importunas. Pode-se

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ter a inteligência da recordação sem compreender tudo isto; possui-se, e então seguramente, a idealidade, mas tem-se falta de experiência no

uso dos co~ evangelica admrszw c~0~~tim. Considerax-se-á talvez paradoxal o conselho, e recear-se-á suportar a dor pn. meira, que é sempre preferível, como se fosse a primeira desgraça. Mas a lembrança refresca, e assim -a memória enriquece a alma com uma soma de pormenores que dissipam a recordação. Examinemos, por exemplo, o remorso: é a recordação de uma culpa. Do ponto de vista psicológico, creio realmente que a polícia endurece a criminoso porque lhe toma mais difícil o arrependimento. Ã força de ouvir e de repetir o seu o~imIum vitae, ele adquire uma tal, virtuosidade em dizer de cor o seu passado que a idealidade da recordação desaparece completamente; ora, para se arrepender realmente, é indispensável uma grande idealidade, grande e

imediata; porque a natureza também pode vir auxiliar o homem, e o arrependimento tardio, de tão pouca importância para a memória, é muitas vezes o mais opressivo e o mais profundo. - A faculdade de se recordar é também a condição de toda a actividade criadora. Quando quiser deixar de produzir, bastará que a pessoa se lembre perfeitamente da coisa que queria dar à luz sob a influência da recordação; a actividade criatriz será então impossível, ou causará

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tanto sofrimento e tanto desgosto que mais valerá a pena renunciar sem demora a qualquer veleidade de criação.

Não existe, a bem dizer, recordação comum. Há apenas uma espécie de pseudo comunidade à qual, se recorre quando se pretende captar uma recordação. 0 melhor processo de o suscitar consiste por vezes no seguinte: imaginar que nos confiamos -a outra pessoa, apenas para esconder atrás deste abandono fictício um novo acto de reflexão pelo qual a recordação se manifeste. A memória, pelo contrário, admite muito bem o concurso de uma assistência recíproca. Os festins, os aniversários, as promessas de amor, as «leinbranças» preciosas, são então de grande oportunidade e exercem função seme- ,@ à das dobras nas páginas de um livro, as quais servem para nos lembrar onde interrompemos a leitura, e por consequência nos

vão dando a certeza de lermos bem a obra inteira. Elaborar a recordação é trabalho que cumpre a, cada qual fazer por si só. Tal neces-

sidade está longe de ser uma maldição. Cada recordação vale tanto como um segredo, já que a consciência que dela se tem é intransmissível. Ainda que muitas pessoas estejam interessadas no mesmo acontecimento que motiva a recordação no homem que dele toma consciência, este é todavia o único a ter conhecimento da sua

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recordação cujo carácter público é apenas aparente, puramente ilusório.

0 que estou a expor também me produz a

recordação de pensamentos e de meditações que muitas vezes e de várias maneiras preocuparam a minha alma. Se os transcrevo para o papel ao correr da pena é porque me sinto agora apto a retomar um acontecimento vivido para dele extrair uma recordação, e apto também a desenhar novamente factos que, há já alguns anos, estão completamente encorporados na memória e parcialmente ligados com a recordação. A lembrança deles recai sobre um domínio restrito; o trabalho da memória fica assim facilitado; em compen~<>, tive muita dificuldade em deslindar a recordação, porque as circunstâncias assumiram a meus olhos uma importância muito maior do que aos olhos dos convidados. Esses senhores haveriam sem dúvida de sorrir se me vissem ligar tão grande iniportância a tão pouca coisa; «que disparate!», diriam, ou «que estranha fantasia!» Que a memória tem nesta narrativa um papel secundário, é o que verifico na impressão que por vezes sinto de não ter vivido todas as circunstâncias, na dúvida se não teria sido eu quem inteiramente as forjou.

Sei muito bem que tão cedo não mais esquecerei este banquete de que participei sem ter sido participante; apesar disso, não posso decidir-me a relatá-lo sem antes me assegurar, por

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um consciencioso exame de memória, do que foi verdadeiramente nwmo~ para mim. Tentei favorecer a inteligência erótica da recordação; nada fiz, porém, a favor da memória. A -sitwção da recordação resulta da oposição, e, há já algum tempo, me esforcei por inserir a reminiscência num ambiente que forme contraste. A iluminação esplêndida da sala em que se realizou o banquete, os jorros 4e luz com seus jogos inebriantes, tudo isso produzia um

efeito fantástico; ora, a recordação requer uma oposição liberta desta influência. A exaltação dos convidados, os rumores da festa, o jovial estalido do vaporoso «chanipagne» prestam-se muito mais à recordação no silêncio de um retiro escondido, tal como o delírio espiritual dos conversadores muito animados favorece a recordaçâo quando ao está nitim abrigo Plácido. Qualquer tentativa de ajudar a recordação com o

imediato haveria necessàriamente de abortar e, portanto, de me infligir o desgosto que toda a gente sente quando reconhece uma macaqueação. Escolhi portanto o ambiente, tendo em conta a oposição. Procurei a solidão da floresta, mas

em tempo que não era próprio para excitar a

fantasia. A tranquilidade da noite não seria favorável, porque também ela está debaixo dos poderes do fantástico. Encontrei a paz da natureza no momento em que ela está menos agitada, depois do meio-dia, Se ainda assim, pode apare-

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cer o fantástico, é porque ele surge no estado de longínquo pressentimento da alma; nada há que mais bem disponha às delícias da paz e do repouso do que a atmosfera sem brilho às horas em que acaba um lindo dia. E tal como um convalescente gosta de ser acariciado por esta frescura lenificante, como um espírito exausto até ao sofrimento gosta de encontrar esse alívio, também eu, impelido por um motivo oposto, ali fui buscar o prazer inverso.

Na floresta de Gribs, há um lugar a que chamam o Canto dos Oito Caminhos; ninguém o

encontra se não o procurar convenientemente, porque não figura indicação dele em nenhum dos mapas conhecidos. Até a próprio nome parece uma contradição; pois como é que do encontro de oito caminhos pode resultar um canto; como é quea estrada real se pode conciliar com

o retiro, e a senda espezinhada com o esconderijo? Se o solitário foge da trivialidade, da que deve o nome ao encontro de tr& vias, como não há-de ele fugir do que resulta de uma dupla encruzilhada? Tal é, positivamente, o facto: há oito caminhos, e todavia neles reina a solidão; longe do -mundo, escondido, dissimulado, o homem encontra-se ali muito perto de uma clausura denominada Sebe da Desgraça. A contradição tem sempre por consequência a solidão. Os Oito Caminhos e a circulação intensa que

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eles representam são uma pura possibilidade, -

para o pensamento; porque ninguém por ali passa, a não ser o insecto que atravessa a senda, lente festinam; ninguém os frequenta, -senão aquele viajante de passos lépidos e de olhar circunspecto, que não deseja encontrar-se com

qualquer animal; aquele fugitivo que, dentro do matagal, não percebe o desejo do viajante que vai em demanda de alguma mensagem; fugitivo que só a bala mortífera é capaz de atingir; e

se é muito compreensível que o veado passasse a ser um animal tranquilo, já não se compreende que ele tivesse sido tão inquieto; ninguém passa pelos Oito Caminhos, a não ser o vento, do qual não sabemos de onde vem nem para onde vai. Nem o passeante atraído pelo apelo sedutor dos lugares impenetráveis que o cativaram, nem o homem que é induzido pela senda estreita a entrar no próprio coração da floresta, se encontram tão solitários como quem vai ter aos Oito Caminhos, pelos quais ninguém passa. Oito Caminhos e nenhum viandante! 0 mundo parece extinto, e o sobrevivente afoga-se na perplexidade quando pensa que já não há ninguém para o enterrar; dir-se-la que toda a humanidade se escoou por estes oito caminhos, deixando por esquecimento sobreviver um homem! Se é verdadeira a frase do poeta: bem t,ixit qw4 bene 1~, eu vivi bem, porque o meu esconderijo era bom, era muito bem es-

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colhido. Mas também é certo o seguinte: que o

mundo, e tudo quanto ele encerra, nunca nos

aparece tão belo como quando avistado de um

mirante que propositadamente escolhemos para a observação. Certo é ainda também que tudo quanto o mundo diz, e tudo quanto nos convém ouvir, ganha a melodia dos sons mais belos e mais encantadores quando é por nós escutado dentro de um recanto secreto. Tais os motivos que frequentemente me levavam a procurar aquele retiro. Havia já muito tempo que eu a

conhecia; já não precisava de esperar pela noite para conseguir o desejado silêncio, porque na-

quele recanto sempre reinam a paz e a beleza; mais belo do que nunca me parece ele àquela hora em que o sol de Outono inclina para o

horizonte, num azul enlanguescido; o calor passou, e tudo que vive respira ao sopro da brisa que brinca através da floresta, enquanto vai semeando pelos prados um frémito de deliciosa volúpia; o sol vai sonhando com a frescura das vagas em que irá banhar-se; o mundo regressa ao seu recolhimento, e agradece os benefí cios dos esplendores do dia; a terra e o céu parecem exprimir ternas despedidas naqueles lugares em que a floresta soturna vai dominando a verdura dos prados.

Espírito amigável que resides nestas paragens, abençoado sejas, guardião fiel do meu

retiro calmo; abençoado sejas pelos momentos

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em que permitiste que, para me entregar às recordações, ocupasse o teu retiro secreto, retiro que me parece meu! Vejo a paz que se estende como uma sombra, que se forma como o silêncio à voz imediata do mágico. Haverá embriaguez que valha a de quem sabe gozar o silêncio? Em vão levará o bebedor a taça aos lábios, num gesto rápido: não conseguirá exaltar-se com a prontidão da embriaguez do silêncio, porque esta aumenta a cada instante! 0 licor capitoso que a taça oferece não é mais do que uma gota no oceano do silêncio infinito em que -afogo a minha sede! Que miséria também a dessa efervescência de todos os vinhos famosos do mundo, comparada com a opulência do incessante fermento que o silêncio contém para sempre renovar! Nada há, porém, que tão fàeilmente se desfaça como a embriaguez do silêncio; uma palavra basta para acabar com o encanto! Nenhum desgosto se compara a este, nem o do ébrio que por súbito despertador seja arrancado ao seu sono profundo. Quando o silêncio cessa, o pensador não sabe o que há-de dizer, fica perturbado com a confusa sonoridade das sílabas, começa a titubear na incerteza de quem não consegue compor uma frase, interdito como uma mulher surpreendida, tão desarmado que no mesmo instante não pode sequer recorrer às mentiras consolidadas na linguagem comum!

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Bendito sejas, espírito amigo, que me livraste da surpresa do importuno, que me livraste da im pertinência que não tem desculpa! - Quantas vezes não meditei eu já neste pensamento! Na tumultuosa vida de sociedade, é possível pecar por ignorância, mas esse pecado tem desculpa; não assim para aqueles que pecam con-

tra a solidão pacifica, porque esta é sagrada. Tudo quanto perturbar a solidão ficará marcado com o sinal da culpa, e o casto comércio do silêncio, uma vez ofendido, nunca mais perdoará. 0 solitário não aceita quaisquer desculpas, tem mesmo o pudor de não as ouvir. Sinto remorsos das poucas vezes que perturbei o ere-

mita; quando tal me aconteceu, fiquei envergonhado com o meu crime, e sofri como sofre quem tem a alma transida deintensa, dor! Por mais que o remorso queira medir a profundi- @ade da culpa, jamais o conseguirá, porque ela e indizível como o silêncio. Só quem procura a solidão por motivos pouco dignos é que pode tirar algum proveito da surpresa,-tais os amantes que se refugiam na solidãc@ sem que por Isso alcancem o digno fim do amor. Então é que o importuno pode servir a Eros e aos amantes com o seu aparecimento de surpresa, ainda que os dois solitários não compreendam a aparição. Quando tais amantes aproximam os ros-

tos um do outro, para se esconderem num res-

sentimento contra o importuno que lhes deu

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aso a que se aproximassem, então a culpa de quem perturba o silêncio já é susceptivel de discussão. Tratando-se, porém, de amantes dignos de procurarem a solidão, ninguém há que não se sinta oprimido ao surpreendê-los; ninguém deixará de sé amaldiçoar a si próprio, porque merece então o anátema que era outrora proferido contra todos os bichos que se aproximavam do Sinal! Quem será d%tituido destes sentimentos? Quem, ao ver sem ser visto, não desejaria ser a ave que se balouça voluptuosamente num

ramo de árvore, por cima das cabeças dos amantes, ave cujo -cantar melodioso é de bom preságio e de bom convite ao amor? Quem não desejaria ser como a avezinha que esvoaça e saltita por entre o arvoredo para seduzir os olhares dos amantes? Quem não desejaria ser, semelhante à natureza solitária, favorável ao Eros semelhante ao eco de quem diz que está só. semelhante ao ruido longinquo que desaparece para não deixar dúvida aos amantes de que se encontram enfim sós? Este é, de todos os votos, o melhor, porque começamos a ficar sós, quando ouvimos que os outros se afastam. Na ópera Don J~ a cena em que a solidão parece mais caxacteristica é a de Zerlina. 2 que esta não se encontra só, separada das outras; não, ela começa a estar só, percebem-se os últimos ecos do coro; os ruidos vão morrendo ao longe, a solidão aparece no som e na realidade.

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Vós, Oito Caminhos, apenas afastastes de mim todos os homens, apenas entregastes a minha alma aos meus próprios pensamentos.

A ti, amável floresta, agora digo adeus; hora da tarde, hora que só poucos podem entender; tu não usurpas os bens de ninguém, nem te jactas de ser um simbolo, como a alva, o crepúsculo e a noite; tu que, nada exigindo, humildemente te contentas de ser quem és, e vives feliz no téu sorriso campestre. 0 trabalho da recordação traz sempre consigo a sua bêngâo, e ainda a possibilidade de vir a renascer em nova recordação, que, por sua vez, cativará ainda mais. Quem alguma vez compreendeu o

que é a recordação, nunca mais deixará de ser

cativo cativado; a posse de uma recordação enriquece muito mais do que a posse do mundo inteiro; e tal como a mulher que está no seu

estado interessante, aquele que se recorda encontra-se também em circunstâncias merecedoras de bêngão.

COLóQUIOA reuni&o para o banquete efectuou-se num dos últimos dias do mês de Julho, por volta das dez horas da noite. Esqueci já o dia e o ano; é que estes pormenores interessam apenas à memória e não à recordação, cujo objecto é únicamente o sentimento e o seu reino. Os vinhos generosos melhoram muito com passarem pela linha. pela evaporação das partículas aquocas; assim também a recordação se purifica ao perder as partículas de memória, sem que por isso se desvaneça em fumo, como também não acontece aos vinhos generosos. -Estavam presentes cinco homens: Johannes, por alcunha o

Sedutor, Vítor Eremita, Constantino Constantius, e mais dois, cujos nomes, a bem dizer, não esqueci, (o que aliás não seria inconveniente) porque os não cheguei a ouvir distintamente. Dir-se-la até que esses homens não tinham nomes próprios, porque foram quase sempre designados por epítetoe. Um, a quem chamavam « o mancebo», esbelto, elegante, assaz moreno, não devia ter mais do que vinte e poucos anos. Era de semblante aprazivel, não tanto pela sua

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expressão pensativa como pelo aspecto de franqueza amável em que se reflectia a pureza de uma alma que estava em completa harmonia com a doçura vegetativa, quase feminina, e com a transparência de todo o seu ser. Mas a beleza física logo ficava esquecida quando se prestava atenção à impressão seguinte; ou pelo menos ficava in ~nte, para deixam lugar ta que se contemplasse um ente humano que, formado apenas pelo pensamento, ou, para me servir de uma expressão ainda mais terna, nutrido apenas pelo leite do pensamento, parmanecia estranho e ignorante do mundo, sem inquietação e

sem entusiasmo. Tal como um sonâmbulo, tinha dentro de si a lei que imprimia à sua conduta; a amável benevolência da sua fisionomia não procurava a réplica de outra pessoa; exprimia simplesmente o intimo da sua alma. Quanto ao outro, todos o tratavam por <alfaiate», porque o

era de profissão. Seria impossível apresentar retrato nítido de um homem como este; trajava pelo último figurino, bem penteado e bem frisado, sempre perfumado, rescendendo a Ãgw de Co~, no seu porte não deixava de vincar uma certa segurança; mas, súbitamente, eis que as suas maneiras adquiriam a flexibilidade própria do dançarino cerimonioso; dir-se-ia que de vez em quando procurava quebrar e requebrar a sua varonilidade. Sempre, até mesmo quando proferia frases impertinentes, a sua voz

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conservava um tanto ou quanto daquela amabilidade postiça de caixeiro experimentado; tal disfarce que lhe era, com certeza, extremamente desagradável, servia contudo para lhe apaziguar o frenesim. Agora que estou a pensar nele, compreendo-o muito melhor do que quando o vi descer da carruagem: confesso que nessa ocasião não pude deixar de rir. Apesar de tudo, há nesse homem um resto de contradição. Enfeitiçou-se a si próprio; pelo poder mágico da sua vontade, conseguiu vestir a pele de unia personagem quase de farsa sem se identificar inteiramente com ela; é o que se vê quando a, reflexão o surpreende, de tempos a tempos.

Agora, que rememoro tudo, parece-me quase absurdo que cinco homens tão diferentes hajam podido organizar um banquete. Talvez que nada se tivesse feito, se Constantino não interviesse. Falara-se disso uma vez no café, onde todos se encontravam por vezes numa saleta que lhes era reservada, mas logo que se tratou de designar a pessoa que desse andamento à proposta, reconheceram que seria melhor desistir. Convieram em que o mancebo era inexperiente, e

o alfaiate disse que não tinha tempo. Vitor Eremita, valha a verdade, não se eximiu com o pretexto de que era recém-casado ou que tinha de experimentar uma junta de bois; mas, se bem que estivesse disposto a comparecer, a título muito excepcional, declinou a honra do encargo

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e acrescentou que «avisaria com antecedência». Johannes encontrou a frase apropriada. Na opinião dele, quem seria capaz de preparar o banquete seria a toalha que vai para cima da mesa

e serve os manjares à simples voz de comando: «toalha, estende-te!». Admitia ele que nem sempre parece indicado fruir à pressa as belezas de uma rapariga, mas quanto a um banquete, de que em geral se prevê o desgosto, mais do que o gosto, seria melhor não demorar a realização. No entanto, se estavam a falar a sério. punha por condição que o banquete fosse imprevisto e de improviso. Depois de concordarem com esta cláusula, resolveram escolher um local completamente diverso dos que já conheciam e

decidiram não deixar ficar vestígios da festa; conviria até adquirir a certeza de que todos os sinais seriam destruidos antes de os convivas se levantarem da mesa. Nenhum indício deveria subsistir. Nem sequer o que fica de um vestido que se transforma em chapéu, esclareceu o alfaiate. - Nada, insistiu Johannes, porque não há coisa mais desagradável do que uns destroços a lembrar o que a gente já amou. Não há nada que tanto nos repugne como saber que algures existe um ambiente onde possa imediatamente surgir uma importuna realidade.

A conversa ia-se tomando cada vez mais animada, quando de súbito Vitor Eremita se levantou. Adiantou-se para o meio da sala, fez um

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gesto imperativo com a mão, moveu o braço como quem vai servindo vinho a uma roda de taças, e disse: «Meus caros amigos, ergo esta taça, cujo perfume inebria já os meus sentidos, e cujo fogo refrescante já está a inflamar o meu sangue, para vos saudar e para vos oferecer a

minha hospitalidade. Sede benvindos a este palácio, porque, - e disso estou convencido, - todos vós já estais certamente saciados com as

palavras que dissemos a respeito do banquete. Nosso Senhor satisfaz o estômago antes de sa-

tisfazer a vista, a imaginação faz o contrário». Dito isto afundou a mão na algibeira, tirou a cigarreira, abriu-a, e pôs-se a fumar. Constantino Constantius protestou contra a facilidade de transformar o projectado banquete num episódio de completa ilusão. Vítor respondeu que não acreditava na realização da idealizaçÃo, mas, ainda que acreditasse, considerava um erro o

ter-se falado no assunto antes da hora oportuna. Tudo quanto é bom acontece sem demora, ex-

plicou ele; porque a instantaneidade é a mais divina de todas as categorias. 0 instantâneo tem as honras da locução latina ex t~o, porque é o ponto de que parte o divino na vida; o que não acontece no instante é morosamente engenhado pelo espirito maligno. Ele, Vítor, não estava animado com o intento de discutir; se os outros quisessem falar e proceder de modo diferente, não seria ele o desmancha prazeres;

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mas se pretendessem que ele desenvolvesse o

seu pensamento, pediria então que lhe concedessem a liberdade de discorrer, isto é, que não o interrompessem para começo de discussões enfadonhas.

Todos consentiram de bom grado e, mais ainda, o convidaram que começasse imediatamente a falar. Então ele explicou-se nos termos seguintes:

«Um banquete é já de si um empreendimento muito ingrato; por mais que a gente empenhe o melhor do talento e do gosto na sua preparação, há ainda outra coisa com que convém contar: o Uito. Claro está que não entendo por êxito aquele resultado que tem em vista a dona da casa ou a hospedeira ao preparar os manjares; não, senhores; trata-se de outra coisa de que ninguém pode antecipadamente dar a certeza: o concerto feliz dos sentimentos, vibrando de unissono com as minimas circunstâncias de festim, essas harpas eólias, essa música interior que ninguém pode encomendar a qualquer orquestra da cidade. Por isso é que é perigoso tomar esta iniciativa; se faltar essa harmonia, repito, se faltar essa harmonia, logo no primeiro instante, o banquete pode ser indefinidamente prolongado que não chegará a ter êkito. 0 que de ordinário se observa nos banquet,es é o encontro de convivas ou de confrades que ali se reúnem por um hábito vazio de

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qualquer idealidade; a miséria intelectual de tais reuniões não salta à vista, porque delas desaparece o espírito crítico. Ora é esse espectáculo que devemos evitar. Sustento, antes de mais. que as mulheres nunca deveriam ser admitidas a tomar parte num banquete. In Parent”, digo «as mulheres», porque nunca me prouve dizer <as senhoras»; não gosto da palavra «senhora». As mulheres não devem tomar parte nas festividades masculinas, a não ser que tenham os seus lugares marcados entre as coristas e as dançarinas, como era costume na Grécia. Quanto ao banquete própriamente dito, ao comer e ao beber, isso não é próprio das mu-

lheres, pela simples razão de que elas nunca se

podem satisfazer completamente, a não ser no caso de extrema indecência. A presença da mu-

lher reduz o prazer da mesa a uma simples bagatela, a um passatempo feminino, em que é preciso estar com muita atenção aos dedos. Um jantarinho assim, especialmente quando improvisado em «pique-nique», e de preferência fora das horas das refeições sólidas, poderá talvez oferecer algum encanto, mas, nesse em% tudo será devido às graças do belo sexo. 0 jantar inglês, de que a mulher se retira quando chega o

momento de beber a valer, é um absurdo, mas tem qualquer sentido; é sempre preciso encher as medidas, e a maneira de uma pessoa se sentar à mesa, de pegar na faca e no garfo, está

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sempre em perfeita relação com o rito de todo o repasto. É por isso que um banquete político me parece um equivoco inestético. Nele, o festim se reduz a coisa pouca, mas também os discursos perdem muito do seu alcance ao serem proferidos entre os copos (1). Se estivermos de acordo nestes dois pontos, para que o nosso banquete tenha êxito, o número dos convivas ficará justamente limitado por esta regra tão bela: «nem superior ao das Musas, nem inferior ao das Graças». Exijo em segundo lugar a superabundância de tudo quanto é possível imaginar para garantir o êxito de um banquete. Se tudo não for possível, seja aonienos dada a possibilidade ao instante; que a possibilidade que paira em cima da mesa, tenta e seduz muito mais do que a realidade visível. Quanto a contentar-se a gente com palitos ou, como os Holandeses, com um torrão de açúcar para sugar de vez em quando: isso nunca. As minhas exigências são difíceis de satisfazer, bem sei; mas o festim própriamente dito deve ser preparado de tal maneira que provoque e estimule aquele desejo inexprimível que todo o comensal, digno desse nome, acalenta no seu corpo. Exijo que a fecundidade da terra esteja ao nosso serviço, que tudo surja no próprio instante do desejo. Quero mais vinho do que Mefistáfeles <>bteve ao abrir um

(1) Inter pocula.

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buraco na madeira da mesa, como se viu no Fa~ de Goethe. Preciso de unia iluminação muito mais sumptuosa do que a dos relâmpagos que abalam a montanha e dançam num oceano de chamas. Peço també m o supremo excitante dos sentidos, quero incensos cujos eflúvios refrescantes se dissolvem no ar com muito maior magnificência cio que nos contos das Mil e uma ~e8. Fxijo uma frescura voluptuosa em que os desejos se inflamem e que ao aflorá-los, também os acalme. Quero o jorrar constante de uma fonte e o agradável ruído da queda de água. Mecenas não podia adormecer senão com tão suave murmúrio; eu não posso comer sem escutar essa música. Espero que me compreendam: posso muito bem passar sem tudo isso quando me alimento de peixe frito e bebo um copo de água; não assim durante um banquete em que hei-de saborear o vinho. Quero copeiros, escolhidos pela sua beleza, parapoder imaginar que me sentei à mesa dos deuses; quero um concerto em que a gradação da surdina ao estrondo vá acompanhando os meus es-

tados de alma. Isto é o que eu desejo para mim; mas para vós, meus caros amigos, tenho pretensões incríveis. Infelizmente, tantas exigências são tantos obstáculos; por isso não vejo neste banquete mais do que um pium &-s~um; e a tal respeito estou muito longe de pensar numa

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repetição, porque não acredito sequer que ele se

realize pela primeira vez».

Constantino Constantius não interveio no colóquio, não concorreu para fazer abortar o projecto. Sem ele, tudo teria ficado em palavras. Mas esse homem chegara já na vida a uma conclusão muito diferente, e pensava que a ideia se presta à realização sempre que as mãos dos homens são forçados a isso. Decorreu algum tempo; o banquete e as discussões de tal propósito cairam. no esquecimento; e um belo dia, quando menos esperavam, todos os companheiros receberam cartões de convite para o banquete que havia de se realizar ao entardecer. Escolhera para lema da reunião esta frase latina: In ~ ~tw, -indicando assim que não bastaria conversax porque era preciso também dizer a verdade. Haveria que falar, mas sómente in vino; nenhuma verdade ~ia profeirida senão tal como fosse inspirada pelo vinho; porque o

vinho é uma garantia da verdade, e a verdade é um elogio do vinho. - 0 local da reunião fora escolhido numa região arborizada, a algumas milhas de Copenhague. 0 salão do banquete, armado de novo, não seria fàcíhnente reconhecivel; estava separado, por um corredor, de uma saleta onde se instalaria a orquestra. As janelas ficariam abertas, mas as persianas e as cortinas protegeriam o interior. Nos termos

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dos convites expedidos por Cônstantino, o encontro deveria ser ao declinar do dia, à hora propícia para a concentração do espírito. Se o propósito de ir para um banquete por momen-

tos excita a imaginação, o respeito que a natureza circundante nos inspira é tão poderoso que logo trata a exaltação. Constantino apenas tinha o receio de que tal influência não chegasse a exercer-se; porque, se não há faculdade como a imaginação para atribuir beleza a todas as coisas, também não há pior do que ela para estragar tudo, quando soa a hora da realidade que a afronta para nossa desilusão. Mas um passeio de carruagem, num belo en-

tardecer de Estio, não exalta a imaginação; pelo contrário, deprime-a. Sem que a veja e

sem que a ouça, porque a imagina, a alma inconscientemente anseia pela tranquilidade do lar ao aproximar-se a noite; é ver os trabalhadores e os serventes que regressam dos campos; é ouvir os carros que chiam na pressa de guardarem as colheitas; é interpretar do mesmo modo os gemidos e os mugidos que chegam dos prados. Assim é que o entardecer de Estio desperta o sentido do idílico, a calma tranquiliza o espírito enervado; torna mais grave a

imaginação vadia e demora-a na atracção para a terra como se ela fosse oriunda da terra; en- sina a alma insaciável a contentar-se com pouco; devolve ao homem a serenidade, porque ao

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anoitecer, o tempo cessa e a eternidade perdura.-A boa hora chegaram, pois, os convidados, que Constantino esperava, porque mais cedo se dera ao caminho. Vítor Eremita, que passava o Verão naquelas redondezas, viajou a

cavalo e os outros de carruagem. Mal se tinham apeado quando viram entrar pelo portão uma

diligência; era um grupo de quatro operários alegres, a brigada dos demolidores. Ficaram logo instalados e prontos a destruir tudo, assim que recebessem ordem; tal como no teatro, mas

por motivos contrários, os bombeiros estão sempre prontos a extinguir o incêndio ao primeiro alarme.

Quando se é criança, e há quem o seja por muito tempo, é-se dotado de imaginação suficiente para estar, durante uma hora ou mai.% fechado num quarto escuro, à espera de um

grande acontecimento, e sempre, com a alma alerta; quando se está adulto, a imaginação não hesita em tornar insipida, antes de a ver, a própria árvore de Natal.

As portas abriram-se de par em par; a luz faiscante, a inesperada frescura, os incensos inebriantes, a visão de uma sala armada e adornada com perfeito gosto, tudo causou de entrada um instante de violenta surpresa; nesse momento estavam já os convidados a ouvir o bailado da ópera Don J,^ Transfiguraram-se

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os rostos; e como se tivessem sido tomados de veneração pelo espírito invisível que os cerca-

va, os convidados detiveram-se por um instante, para exprimirem a admiração.

Quem, de entre os homens que alguma vez

conheceram um instante feliz, fruiu e gozou sem

sentir que sàbitamente poderia acontecer qualquer coisa, ou um nada, muito capaz de perturbar a sua felicidade? Quem foi o portador da lucerna encantada, que não teve receio de ver

desvanecer-se-lhe a volúpia, ao pensar na violência do desejo? Quem teve alguma vez entre os dedos um talismã significativo que não visse logo a mão ganhar a flexibilidade precisa para o largar imediatamente? -Assim estavam eles, uns junto dos outros. Só Vítor é que permanecia um pouco à parte, ensimesmado; a alma estremecia e o corpo tremia; mas depressa se

restabeleceu, e saudou o áugure com estas palavras:

«Oh, música invisível e solene! Oh, acordes sedutores que outrora me fostes arrancar à solidão monacal de uma juventude tranquila! Vós que me decepcionastes, vós que me mergulhastes numa saudade, vós que me fazieis sofrer uma

recordação, em que parece, - é horrível! - que Elvira só quis ser seduzida, mas não o foi! Mozart -Imortal, tu a quem devo tudo... Não, não posso dizer isso. Só quando for muito velho,

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se algum dia o chegar a ser, só quando tiver mais dez anos do que agora, se porventura lá chegar, só quando tiver os cabelos grisalhos, se atingir essa idade, só quando morrer, pois sei bem que isso é inevitável, direi então: Mozart imortal, tu a quem devo tudo. Vou deixar que a admiração, sentimento, principio e objecto único da minha alma, pese inteiramente sobre mim, para me esmagar, como tantas vezes quis. Porque eu pus já todos -os meus negócios em

ordem, pensei já na minha bem-amada, confessei já o meu amor, compreendi que te devo tudo, tudo. Mas eis que já não te pertenço, nem a ti nem ao mundo, estou agora todo entregue ao grave pensamento da morte!»

Neste momento, a orquestra comec <ava a tocar o convite, em que o prazer, redobrando de alegria, se dirige para os céu,% e cobre os gritos de dor de Elvira; e Johannes, já com uma voz

um tanto ou quanto teatral, começou: Ma Za liberta. Et ~tas, acrescentou o mancebo. Mas sobretudo @n iÁno, disse Con~tino para oa interromper, quando se dispunha a dizer aos convivas que fossem ocupando os seus lugaxes.

Ah, como é fácil organizar um banquete; e

no entanto, Constantino deu a sua palavra de honra de que nunca mais se arriscaria a tal! Ah, como é fácil admirar, e todavia Vítor afirmou que nunca mais deixaria falar a sua admi-

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ração, porque uma desfeita é muito mais terrível do que um ferimento de guerra! Ah, como

é fácil desejar quando se tem na mão a varinha mágica, e todavia desejar é por vezes mais cruel do que morrer de miséria!

s i M P õ s i oTodos tomaram o seu lugar à mesa. De repente, a feliz sociedade navegava já num oceano

ilimitado de delícias. Cada qual se entregam inteiramente à expectativa e ao apetite do banquete; cada qual deixava que a sua alma vogasse por sobre as ondas de prazeres inesgotáveis. 0 condutor perito logo se revela no momento da partida; às suas ordens obedecem as garbosas parelhas que ele vai guiando altivo; o corcel bem treinado conhece-se logo à primeira vista, quando por movimento de firme decisão, começa a corrida; se um ou outro dos convidados ainda não estava em forma, Constantino já se mostrava anfitrião muito digno de tal nome.

0 festim começou. A conversa em breve deixou de entretecer amáveis grinaldas em redor dos hóspedes e de encadear palavras lisonjeiras; a conversa era agora a respeito dos regalos, das iguarias, e dos vinhos; de vez em quando parecia encaminhada para assunto mais sério, mas

logo tornava a cair em várias futilidades. As ideias jorravam em magnífico, se bem que efémero, tumulto: ou então apareciam com tal fragilidade que, mal afloradas, logo tornavam a fechar-se em botão. «As trufas estão óptimas!»

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exclamava um dos convivas, 0 anfitrião replicava: «É excelente, este vinho Château Margaux!» A orquestra ouvia-se ao longe, mas depois os acordes aproximavam-se cada vez mais para encherem o salão de melodias. Imóveis, perfilados, em sentido, pewmaneciam os valetes até chegar o momento de servir novo prato ou de ,encher os copos com outra marca de vinho; depois voltavam a perfilar-se. Havia então uns momentos de silêncio; mas o génio da música depressa restituía a animação aos convivas bem dispostos. 0 Eremita aventava então uma hipótese audaciosa; discursava, os outros ouviam, esqueciam-se de comer, e a música parecia que sublinhava e comentava as palavras dele, como

acontece na ópera. depois dos gritos dos salteadores. Havia também períodos em que todos comiam em silêncio entrecortado pelo tinir crístalino dos,copos e pelos ruídos dos pratos; eram, porém, curtosesses períodos: os primeiros acordes da música tinham o condão de ressuscitar

-a conversa. - Assim decorreu o banquete.

Ali! Quão pobre é a nossa língua, em comparação com tal concerto de ruidos, cheios e vazios de sentido ao mesmo tempo, que é unia batalha ou que é um banquete! Se a arte teatral não tem o poder de reproduzir esse conjunto, muito menos a literatura o poderá desenhar na sequência das suas frases. A língua parece rica na ocasião em que se encontra ao ser-

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viço do desejo; mas é tão indigente quando pretende descrever a realidade!...

Constantino, que parecia estar em toda a parte, só uma vez perdeu esse dom de ubiquidade, e foi então que deram pela sua falta. Logo no princípio do festim, pediu aos seus amigos que cantassem alguma daquelas velhas trovas dos tempos em que *tanto os homens como as mulheres compareciam nos banquetes». A proposta não deu resultado, teve um efeito meramente paródico, indubitàvelmente desfalcado, porque, quando parecia enveredar-se por melhor caminho, o alfaiate trauteou: «Quando for a lua de mel, falderi, falderi, falderá ... ». Servidos os primeiros dois ou três pratos, declarou Constantíno o seu voto de que o banquete terminasse com um discurso de cada participante. Mas, para evitar o vago e o desultório, que são pechas da má eloquência, postulava duas condições. Haveria que esperar pelo fim do banquete, pois ninguém deveria pedir a palavra enquanto não tivesse bebido o suficiente para se sentir debaixo da -influência do vinho, isto é, antes de se observar naquele estado de loquacidade em que a gente diz multas coisas que não seria capaz de dizer em jejum. Ninguém deveria interromper o orador, para que a sequência das palavrase a das ideias não fossem perturbadas senão pelas pausas naturais ou pelos soluços de

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circunstância. Antes de discursar, cada qual deveria declarar solenemente que já se encontrava no estado requerido. Não se fixava a quantidade indispensável de vinho, porque a capacidade de absorção varia de pessoa para pessoa. Mas Johannes protestou. É que ele não era ca-

paz de se embriagar; nunca se tinha embriagado; chegando a certo ponto, quanto mais bebia, mais lhe parecia estar em jejum. Vitor Eremita observou também que a reflexão, exercendo-sea determinar o ponto de embriaguez, impedia o bebedor de lá chegar. Para ficar bêbedo, é -indispensável que a embriaguez apareça de ma-

neira imediata. Estas objecções deram pretexto a discussões acerca dos efeitos do vinho na, cons- ,ciência; pretendia-se que, nas pessoas capazes de muito bem dominarem a sua reflexão, o absorver muito vinho poderia ser de efeito contrário ao es-perado: em vez de um ímpeto ardente, um evidente sangue-frio. Depois tratou-se de escolher o tema dos discursos, e Constantino propÔs o

amor. 0 tema seria, pois, o homem e a mulher. nas suas condições reciprocas; mas dos discursos deveriam ser excluídas as anedotas graciosas ou maliciosas, salvo, evidentemente, no caso de serem indispensáveis para fundamentar ou exem-

plificar a teoria.

Todas as condiçções foram aceites. As justas pretensões de um anfitrião no que diz respeito aos seus convidados foram conseguidas; todos

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comeram, beberam, ficaram ébrios’ e, como se diz em hebraico, todos se regalaram.

Chegou, enfim, o momento da sobremesa. Se, até então, Vitor não vira satisfeita a sua exigência de ouvir o murmúrio de uma fonte, (o que, felizmente para ele, esqueceu logo a seguir à conversa preliminar) foi-lhe em compensaçao dado o prazer de ouvir os estalidos típicos do «champagne» ao encher das taças. Soaram as doze badaladas da meia-noite. Constantino pediu silêncio e, erguendo a taça, saudou o mancebo com estas palavras: «Quod felix sít austumque! » (11). Quer dizer em primeiro lugar.

0 mancebo levantou-se; jurou que estava já sob o império do vinho, o que era, aliás, muito visível; o sangue palpitava-lhe nas fontes, e o rosto já não estava tão belo como muito antes do banquete. 0 mancebo falou assim:

«Se é verdade o que diz o poeta, então, meus amigos, não há mal pior do que um amor infeliz. E se para estabelecer essa verdade fosse indispensável apresentar provas, nada mais seria preciso do que ouvir as falas dos amantes. Tal amor, dizem eles, é como a morte, a morte certa e terrível. Assim proclamam pela primeira vez, no que acreditam durante quinze dias; à segunda vez, dizem que é a morte; à terceira

(1) Que vos seja feliz e propícia.

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vez repetem as mesmas palavras; e finalmente, como um dia morrem, morrem de amor infeliz. Não há dúvida, com efeito, de que morrem de amor; não há dúvida de que oamor tem de fazer três tentativas para lhes arrancar a vida, como o dentista para extrair um molar. Se é verdade o que diz o poeta, se o amor -Infeliz é a morte fatal, - ah! quão feliz me devo eu considerar neste momento, eu que nunca amei, eu que espero morrer de morte natural,, e não, graças a Deus, de amor infeliz! Quem sabe, porém, se não será esta, precisamente a maior infelicidade? Quem me assegura então de que não sou infeliz? Talvez,-e digo talvez porque falo do amor como o cego fala das cores, - que o amor deva a sua importância à sua felicidade, o que também se exprime com o dizer que o fim do amor equivale à morte do amante. Concebo o amor como uma experiência inteiramente intelectual, em que a vida e a morte entram em intima relação. Mas se o amor é redutivel a uma experiência de pensamento, então os amantes, que real-mente se apaixonarem, parecer-nos-ão, ridículos. Por outro lado, se o amor é uma experiência da realidade, tudo quanto os amantes disserem terá que ser necessàriamente confirmado no real. Ora, chegados a este caminho, dizei-me: parece-vos que tal é o caso, parece-vos que assim seja, apesar de tudo quanto se tem dito? Eu, por mim, vejo nisso

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uma das contradições em que o amor encerra o homem; ignoro o que acontece aos iniciados, mas para mim, repito, o amor envolve o homem na teia elas contradições mais singulares. Nenhumas relações entre pessoas, nenhuma relação inter-individual exigea idealidade, o que só acontece no amor; e no entanto, observando bem., dir-se-ia que tal idealidade nunca se encontra. Isto é já razão suficiente para que uma pessoa se ponha de sobreaviso contra ele; receio, efectivamente, que ele me obrigue, a mim também, a falar em vão de uma felicidade ou de uma infelicidade que realmente nunca experimentei... Tenho, porém, de me explicar porque me convidaram a desenvolver o tema do amor, se bem que para isso me julgue incompetente; falo num circulo de -amigos que me agrada tanto como um

banquete grego; em outras ocasiões, o amor não me dá cuidados, por que não desejo perturbar a felicidade de qualquer outra pessoa, mas apenas viver contente com os meus próprios pensamentos. Sim, talvez que as minhas ideias pareçam, aos olhos dos iniciados, nugas tão inconsistentes como as telas das aranhas; talvez que a

minha ignorância resulte de eu nunca ter aprendido. nem desejado aprender, como é que se

chega a amar. É verdade que eu nunca tive a imprudência de provocar com os meus olhares a atenção de uma mulher; preferi sempre baixar os olhos, recusar-me à impressão de ter visto a

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significação daquele poder, - daquele poder à mercê do qual não me queria abandonar. »

Constantino interrompeu-o para o advertir de que a sua declaração, a sua confidência de nunca ter tido uma aventura sentimental, lhe tirava o direito de falar. 0 mancebo ripostou. Disse que noutra oportunidade qualquer, teria muito gosto em obedecer à ordem de se calar, pois, muitas vezes sentia profundamente o enfado de discorrer; mas, naquelas circunstâncias, julgava que lhe cumpria defender o direito que lhe fora conferido. Não será, dizia ele, também uma história de amor a história de quem nunca amou? Aliás, se a experiência é condição indispensável para quem fale do seu caso singular, a inexperiência autoriza-o justamente a falar do Eros; os pensamentos que tem estado a exprimir valem para todo o sexo, valem para toda a humanidade, quando apresentados em termos gerais. Concederam-Ihe então o direito de prosseguir, e

ele retomou o fio do ~urso.

«Já que o meu direito foi contestado, disse o mancebo, -Invocarei esta dúvida para me subtrair aos vossos sarcasmos. Que engraçado! Entre os

nossos camponeses não é homem quem não, gosta de fumar cachimbo; entre a gente masculifia não é fiomem quem nunca experimentou o amor! Enfim, se vos apraz escarnecer de mim, seja feita a vossa vontade; mas para mim o

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essencial é e continua a ser a ideia. Terá o amor, entre todas as coisas do mundo, o privilégio de não se poder falar nele antes de o conhecer? Nesse caso, que me aconteceria, se eu, amante, só muito tarde tivesse conhecimento dessa particularidade? Eis porque julgo bom reflectir prèviamente no amor. Certamente que os amantes dizem também que já nisso tinham pensado. mas vá lá saber-se! É que eles partem do pressuposto de que amar faz parte da essência do homem, mas isso não é reflectir sobre o amor, isso é admiti-lo por hipótese, enquanto se não encontra a confirmação.

«Sempre que me aplico a pensar no amor, não alcanço mais do que contradição. Parece-me às vezes que algo me escapa; o quê, isso é que não sei dizer; mas a reflexão é capaz de me mostrar imediatamente as contradições. É por isso que o meu conceito do Eros implica a maior contradição cómica, além do mais. Uma coisa não vai sem a outra: o cómico depende sempre da categoria da contradição. Não me cumpre agora desenvolver esse tema; o meu propósito é apenas o de mostrar que o amor é cómico. Entendo, pois, por amor a relação que há entre o

homem e -a mulher dentro das respectivas con-

dições. Não viso o ErGs grego, do qual Platão escreveu aliás um excelente elogio; mas também por isso na obra desse filósofo não apa-

rece a preocupação de amar as mulheres, ou

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apenas se fala desse amor muito acidentalmente, já que ele é tido por imperfeito em comparação do amor dedicado aos adolescentes. 0 que eu digo, a propósito da relação do homem com

a mulher, é que o amor é cómico, cómico aos olhos de terceira pessoa, e mais não digo. Se é essa a razão pela qual os amantes sempre detestam a terceira pessoa, ignoro; ora, não posso amar porque a minha reflexão intervém sempre como terceira pessoa, dentro de mim próprio. Ninguém se pode admirar de que assim seja, porque vivemos numa época em que toda a gente já duvidou de todas as coisas; não faço mais do que submeter o amor à dúvida radical; mas, por outro lado, acho singular que se

tenha posto em dúvida todas as coisas, e que se tenha reconquistado a certeza, sem que palavra haja sido ditaa respeito de dificuldades em que o meu pensamento se tem visto embaraçado. Tão grande embaraço tem sido o meu, que por vezes desejei ardentemente ser libertado pelo socorro daquele que, coisa notável, foi o primeiro a submeter tais dificuldades ao exercício da reflexão. Esse homem não teve o privilégio de conhecer e esgotar a dúvida total enquanto dormia, como também não teve o de encontrar e fornecer a explicação de todas as coisas, repito, a dormir. Estou a chamar pela vossa atenção benévola, meus caros amigos! Se sois verdadeiramente amantes, não vos deixeis adormecer

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,com as minhas palavras, nem façais esforços para me interromper, com o pretexto de que não precisais para nada das minhas explicações. Desviai, se quiserdes, os vossos olhos, mas tende a paciência de me ouvir até ao fim, já que quisestes que eu começasse.

«Antes de mais, devo dizer-vos o que me parece cómico: isto é, que todos os homens amem, e queiram amar, quando até agora não foi possivel elucidar em que consiste o amável, o verdadeiro objecto do amor. Deixo de parte a palavra «amar». que por si nada explica; para bem tratar este assunto, a primeira questão é a de saber o que é a coisa amada. Não há outra resposta possível, senão esta: quem ama, ama o

amável. Com efeito, se professarmos com Platão -a doutrina de que devemos amar o bem, então teremos percorrido, com um só passo gigantesco, todo o domínio da erótica. Condescenderemos então em dizer que quem ama eleve amar o belo? Nesse ewo, perguntarei, se amar uma bela paisagem ou uma pintura magnífica é que é verdadeiramente amar; mas obterei logo a resposta de que a erótica não cabe como espécie num género cuja expressão seria a do amor, porque a erótica constitui já de per si uma completa especialidade. Vou dar um exemplo. Se um amante, para exprimir bem todo o amor que o domina, fosse dizer: «amo, as belas paisagens, amo um belo dançarino e um belo cavalo, amo

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a minha Lalage, enfim, amo tudo quanto é belo», Lalage mesmo que fosse bela, mesmo que não tivesse outras razões de se queixar, não gostaria com certeza do elogio do amante; mas imaginai também que ela era feia -era feia e era amada! Se eu aplicar à erótica a distinção de Aristófanes, que dizia terem os deuses dividido o ente humano em duas partes, como as patruças, para explicar a razão por que os dois fragmentos procuram reunir-se, volto a cair numa dificuldade que não posso esclarecer; no entanto, posso invocar o meu autor, que vai mais além, já que não há razão que detenha o pensamento, posso admitir que os deuses, para melhor divertimento, poderiam ter dividido em três partes o ente humano. Shn, para maior gáudio dos deuses. Não é verdadeira a minha tese de que o

amor torna o homem ridiculo, senão aos olhos dos semelhantes, pelo menos aos olhos dos deuses? Admitamos, porém, que a erótica tenha por objecto do seu poderio a mútua relação dos elementos masculino e feminino. Que acontecerá então? Se o amante disser à sua Lalage: «amo-

-te porque és mulher; poderia amar muito bem outra mulher qualquer, por exemplo a feia Zoé», logo a bela Lalage se sentirá ofendida. Que é então o amável? É o que eu pergunto, mas a

fatalidade quis que nunca pessoa alguma tivesse respondido satisfatóriamente a esta questão. Cada amante está convencido de que o sabe, pelo

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menos no que lhe diz respeito, sem que possa explicar-se muito bem; e quando a gente escuta as conversas de alguns dos seus pares, percebe que nem sequer há dois que estejam plenamente de acordo, se bem que estejam todos a falar do mesmo. Não vou agora deter-me nessas explicações de rematada tolice que vos deixam, afinal de contas, a saber o mesmo que dantes. Não ligo importância alguma aos dislates dos que acabam por indicar os delicados pèzinhos da bem-amada ou os soberbos bigodes de um janota por verdadeiro objecto do amor; desprezo o descritivo, ainda que o amante se exprima em estilo elevado, enumere primeiro diversas particularidades. acrescente a seguir toda a

«amabilidade» do ente amado, e, para remate, faça alusão a «um não sei quê de inexprimivel». Será essa uma maneira de falar que deve ser

do especial agrado de Lalage; não me agrada, porém, a mim, porque não compreendo nem unia palavra; pelo contrário, em tudo isso descubro uma dupla contradição: a primeira é a de concluir pelo inex-plicáve4 a segunda é a de chegar a uma c~lusãó; melhor seria ter começado por postular o inexplicável, e conservá-lo firmemente; ao menos evitam-se as suspeitas. Tomar o inexplicável por ponto de partida, não é acto que prove impotência de razão, porque dá pelo menos uma explicação negativa; mas

começar de outro modo, para ter de acabar no

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inexplicável, isso é que é dar de si próprio uma

grande prova de incapacidade.

«Temos, pois, que ao amor corresponde o

,amável, e que este é inexplicável. Concebe-se a

coisa, mas dela não se pode dar razão; assim também é que de maneira incompreensível o

amor se apodera da sua presa. Se, de tempos a tempos, os homens caíssem por terra e mor-

ressem súbitamente, ou entrassem em convulsões violentas -mas inexplicáveis, quem é que não sofreria a angústia? No entanto, é assim que o amor intervém na vida, com a diferença de que ninguém receia por isso, visto que os

amantes encaram tal acontecimento como se esperassem a suprema felicidade. Ninguém receia por isso, toda a gente ri afinal’porque o trágico e o cómico estão em perpétua correspondência. Conversais hoje com um homem; parece-vos que ele se encontra em estado normal; mas amanhã ouvi-lo-eis, falar uma linguagem metafórica, vê-lo-eis exprimir-se com gestos muito singulares: é sabido, está apaixonado. Se o amor tivesse por expressão equivalente «amar qualquer pessoa, a primeira que se encontra», compreender-se-ia a impossibilidade de apresentar melhor definição; mas já que a fórmula é muito diferente, «amar uma só pessoa, a única no mundo», parece que tal acto de diferenciação deve provir de motivos profundos. Sim, deve necessàriamente implicar uma dialéctica de razões, e quem

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não as quisesse ouvir ou não as quisesse expor, ganharia mais em desculpar-se com a inoportuna extensão do discurso do que em alegar a falência total de explicações. Ora a verdade é que o amante não pode explicar nada, não sabe explicar nada. Viu centenas de mulheres; deixou talvez passar muitos anos sem experimentar o -amor; e um dia, de repente, vê a &w mulher, a única, a Catarina. Isto é ridículo. Sim, é cómico que tão grande força que há-de transformar e embelezar uma vida inteira - o amor -

nem sequer seja como o grão de mostarda donde deverá surgir uma grande árvore, que seja menos do que isso, que, em últinia. análàse, se reduza a um quase nada. Sim, é cómico que do amor

não se possa apresentar um só critério prévio, por exemplo a idade em que se produz este fenómeno, que da escolha da única mulher no mundo não se possa dar a mínima razão, que se haja escrito que «Adão não elegeu Eva, porque não teve possibilidade de a distinguir entre as mulheres». Não será igualmente cómica a explicação apresentada pelos -amantes? Ou melhor, essa explicação não servirá para -acentuar ainda mais o aspecto cómico? Os amantes dizem que o amor

os cega, e depois de dizerem isso é que tentam iluminar o fenômeno. Se um homem entrasse numa câmara escura para Ir lá buscar um

objecto qualquer, e se respondesse «não vale -a

pena, a coisa não tem importância», a quem lhe

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~esse que procuraria melhor se leviasse consigo uma luz, eu compreenderia muito bem a

atitude desse homem. Mas se esse mesmo homem me chamasse à parte para em grande mistério me confiar que ia buscar uma coisa importantissima, e que por isso mesmo tinha de a procurar às cegas-como poderia a minha pobre cabeça de mortal seguir a subtileza de tão desconcertante linguagem! Evidentemente que não lhe riria na cara, para não o ofender; mas, assim que ele voltasse as costas, não poderia mais conter a vontade de rir. Já espero que ninguém se ria comigo do amor, se bem que ele seja muito cómico. Receio cair no mesmo embaraço que o judeu da anedota: «mas então não consegui fazer rir as pessoas ?» - perguntou ele, depois de ter escrito o livro. No entanto não,me esqueci, como ele, dos condimentos picantes. Se me entrego à hilaridade, estou muito longe de querer ofender alguém. Desprezo, porém. esses loucos, persuadidos de que o amor deles está tão completamente justificíado que podem de bom grado mofar dos outros aman-

tes; pois, uma vez que a -amor se furta a toda e qualquer explicação, todos os amantes se tornam igualmente ridículos. Vejo a mesma estultícia e ia mesma soberba no homem que passeia o seu olhar arrogante num circulo de donzelas para ver se encontra a pérola digna da sua eleição, como vejo também a mesma estultícia e a

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mesma soberba na mulher ainda nova que meneia a cabeça com desdém; ambos estão completamente entregues a pensamentos finitos que dependem de uma hipótese inexplicável. Não; o que me preocupa é o amor como tal; é o amor que eu acho ridículo; e é essa a razão porque sou tímido, receio tornar-me ridículo, pelo menos perante os olhares dos 4euses que assim fizeram o homem. Se o amor é ridiculo, tanto faz que eu me apaixone por uma princesa como por uma camareira; se o amor não é ridículo, nenhum mal haverá em íamar mulher de baixa condição, porque o amável é o inexplicável. Eis a razão porque evito o amor; mas nisto mesmo vejo uma prova de comicidade; o

meu receio assume, efectivamente, carácter trágico, carácter tanto mais acentuIado quanto mais se ilumina o aspecto cómico. Quando um muro

está para demolição, há sempre um cartaz que me avisa, e eu passo de largo; quando uma porta é pinta& de novo há um sinal que disso nos adverte, e eu evito de lhe pôr as mãos; quando um cocheiro vai apara atropelar alguém, grita imediatamente «atenção!»; quando grassa uma epidemia de cólera, há sempre uma sentinela diante dos lugares contagiosos, ete.; quero dizer que há sempre maneira de dar a advertência contra a ameaç a de um perigo; quem proceder em conformidade com os avisos poderá certamente evitá-lo. Eu, se receio que o amor me

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torne ridiculo, assim penso porque o considero como um perigo; que hei-de eu fazer para o evitar?, ou para me subtrair à influência de uma mulher que se interesse por mim? Estou longe de me julgar um Adónis, predilecto das adolescentes ~a ref~, porque não entendo palavra destes assuntos); e que os deuses me preservem de tal! Mas já que ignoro em que consiste o amável, também não posso saber o comportamento a seguir para evitar esse perigo. Mas, além disso, como o contrário de um Adónis também pode ser amável, e como o inexplicáveI é o amável, encontro-me na mesma situação que aquele homem de que nos fala João-Paulo: com um pé no ar lê um cartaz: «atenção às ratoeiras», e não sabe se há-de levantar o outro pé, ou se há-de continuar a andar. Estou decidido a não me deixar apaixonar por mulher alguma en-

quanto não estudar a fundo a noção do amor; se nunca o conseguir, terei pelo menos ganho este resultado, o de ter visto que ele é cómico; por isso me recuso a amar. Infelizmente, porém, o perigo não está afastado,, visto que ignoro em que é que posso ser excitado por ele, ou qual é a minha amabilidade que pode interessar a

uma mulher; é isto, não posso saber com certeza se evitei ou não o perigo. Eis o lado trágico do amor, e em certo sentido profundamente trágico, se bem que ninguém faça caso dele ou não se preocupe com a amarga contradição que

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um pensador descobre ao verificar que há algo cujo poderio se exerce por toda a parte, se bem que seja inconcebível, ameaçando talvez até surpreender de improviso quem se esforça em vão por analisá-lo. Mas o trá gico desta situação tem a sua razão profunda no cómico que já revelei. É possível que se voltem contra mim todos os meus argumentos, e, sem ver o cómico onde eu

o descubro, o vão apontar ali onde descubro o trágico; mas isso mesmo prova, até certo ponto, que estou no caminho <Ia verdade; e a razão pela qual posso vir a ser uma vítima trágica ou cómica, se alguma vez o chegar a ser, fica pelo menos manifesta: essa razão está na von-

tade de submeter à reflexão todas as minhas acções, e está também na recusa a deixar-me lograr pela ilusão de que reflicto, sobre a vida, quando, a respeito de uma decisão de tão magna Ímportâncía, apenas digo de mim para mim: «resigna-te».

«0 homem é um composto de corpo e alma; todas as pessoas de ciência e todas as pessoas de bem estão de acordo neste ponto. Se fizermos, pois, residir a potência virtual do amor na

relação mútua dos elementos masculinos e feiníninos, volta o cómico a revelar-se numa estranha subversão em que se vê o que a alma tem de mais sublime exprimir-se no sensível mais grosseiro. Estou a pensar em todas essas mfinicas, extremamente curiosw, do amor, nesses

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sinais misteriosos, enfim,1 nessa linguagem de sociedade secreta que provém do inexplicável primordial. A contradição em que o amor encerra o homem é tal que o símbolo não significa nada, ou, o que vem a dar exactamente na mesma, tal que ninguém pode dele ministrar qualquer explicação. Duas almas interessadas uma pela outra dão-se mútua garantia de que se hão-de amar para sempre; depois abraçam-se e selam solenemente com um beijo esse pacto eterno. Pergunto a qualquer homem capaz de reflexão se isso pode ser. Tais são as perpétuas alternativas do amor. A mais alta espiritualidade exprime-se pelo seu extremo oposto, e é o sensível que pretende caracterizar a nobreza da alma. Suponhamos agora que eu estava interessado, interessado no amor, é claro: seria para mim muito interessante que a minha bem-amada quisesse pertencer-me por toda a eternidade. Será muito compreensível, se falarmos aqui da erótica no sentido grego, quer dizer, do amor das almas belas. Assim que a minha bem-amada me desse a certeza, eu acreditaria, ou, se me ficasse qualquer dúvida, faria o possível por me convencer. Mas que acontece de facto? Se eu

estivesse interessado, faria como os outros, procuraria outra certeza além da fé na minha bem-amada, quando, evidentemente, nenhuma outra prova me parece adequada. Quando um papagaio no seu poleiro se meneia todo envaidecido para

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dizer a frase «Ai, Mariana!», como no teatro, toda a gente ri, e eu também. Talvez que os

espectadores julguem que neste caso o cómico reside na relação de Mariana com o papagaio, que não pode ter amor algum por ela; mas

supondo que havia amor: não seria ridiculo? Parece-me que tanto num caso como no outro.0 cómico provém então de que oamor se tornou comensurável, e por isso tem de ser comensurável com esta expressão. Pouco importa que se ascenda à origem do mundo para justificar os usos e os costumes; o cómico terá força de eternidade sempre que assente numa contradição, e nós estamos sem dúvida na presença de uma contradição. Um fantoche nada tem de especificamente cómico; não há contradição nos movimentos descontinuos que executa, porque bem sabemos que são produzidos pelos arran-

ques de um cordel. Mas estar um fantoche ao serviço de algo inexplicável, eis o que é o cómico, e a contradiçã o provém de que não se vê razão suficiente para que ele sofra puxões ora para a direita, ora para a esquerda. Sempre que não posso compreender o que faço, recuso-me a continuar; quando não posso compreender o poder à discrição do qual me sinto entregue, recuso-me a continuar à sua mercê. E se o amor é uma lei misteriosa que concilia os -contrários, quem me garante que dentro dele não possa súbitamente surgir a confusão? No entanto, pouco

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me importo com isso. Ouvi muitas vezes dizer que certos amantes acham ridículas as maneiras de outros amantes. Não vejo que tenha sentido algum esse modo de troçar, porque, se a

lei do amor for uma lei natural, terá que ser igual para todos os amantes, e se for uma lei do domínio da liberdade, será então indispensável que os trocistas conheçam as razões do seu procedimento, que estejam em condições de tudo explicar, o que efectivamente lhes é vedado. Compreendo muito melhor do que a maior parte da gente a razão por que um amante se pode rir de outro: o outro é sempre divertido, o

mesmo é que não é. Se é ridículo beijar uma

mulher feia, também é ridículo dar um beijo a uma beleza. A presunção de que amando de uma certa maneira se tem o direito de rir do vizinho que tem outra maneira de amar, não vale mais do que a arrogância de certo meio social. Tal soberba não põe ninguém ao abrigo do cómico universal, porque todos os homens se encontram na impossibilidade de explicar a praxe a que se submetem, a qual pretende ter um alcance universal, pretende significar que os amantes querem pertencer um ao outro por toda a eternidade, e, o que mais divertido é, pretende também convencê-los de que hão-de cumprir fielmente o juramento. Que um homem rico, muito bem sentado na sua poltrona, acene com a cabeça, ou volte a cara para a direita e

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para a esquerda, ou bata fortemente com um pé no chão, e que, uma vez perguntado pela razão de tais actos, me responda: cnão sei; apeteceu-me de repente; foi um movimento involuntário», compreendo isso muito bem. Mas se ele me res-

pondesse o que costumam responder os amantes, quando lhes pedem que expliquem os seus gestos e as suas atitudes, se me dissesse que em tais actos consistia a sua maior felicidade, como é que eu poderia impedir-me de ver o

ridículo de tal explicação-tal como o exemplo que há pouco dei; e bem que diferente, é certo-, enquanto tal homem não se resolvesse a pôr termo à minha hilaridade, confessando que esses gestos não tinham significaçã o alguma. Num repente, com efeito, a contradição, que é a

base do cómico, desaparece; porque não há nada ridículo em que uma coisa destituída de sentido seja reconhecida como tal, mas é grotesco atribuir-lhe um alcance universal. Em relação ao involuntário, a contradição reaparece: não é pos- sível admitir o involuntário num ente racional e livre. Suponhamos agora que ao Papa, no mo-

mento de coroar Napoleão, lhe dava vontade de tossir ou que uns noivos no momento solene da bênção nupeial, começavam a espirrar: o

cómico surgiria instântaneamente. Quanto mais a circunstância sublinhar o carácter livre do ente racional, tanto mais o involuntário se presta ao riso. 0 mesmo acontece no domínio da eró-

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tica, com respeito a essas gesticulações certamente cómicas, quando se pretende resolver a

contradição que elas denunciam atribuindo-lhes uma significação absoluta. É sabido que as crianças possuem em alto grau o sentido agudo do cómico; podemo-nos reportar ao que elas dizem a tal respeito. Em geral, costumam rir dos aman-

tes; e se conseguirmos que elas nos narrem

o que viram, não poderemos, com certeza, impedir-nos de rir. Talvez o nosso riso resulte de elas omitirem a malícia da situação. É curioso. Quando o judeu assám escrevia, ninguém tinha vontade de rir; aqui, dá-se o -contrário; porque falta o espírito de malícia, toda a gente se entrega à hilaridade; mas já que ninguém pode dizer onde está o picante, é certo e necessário que esteja ausente. Os amantes não se explicam, e os panegiristas do amor também não; não pensam senão em dizer, como está prescrito na lei real, coisas amáveis e cheias de agrado. Mas o pensador, esse, procede ao exame das categorias, e aquele que medita sobre o amor deverá igualmente analisar as categorias que ele suporte. Todavia, em relação ao amor julgam-se dispensados desta investigação, e por isso continuamos com falta de uma do gênero pastoral; pois, se numa pastoral um poeta se esforça por descrever o amor tal-qual é, a sua tentativa fica inteiramente adulterada pela intervenção de uma

personagem de contrabando, graças à qual os

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amantes aprendem a arte de amar. -No domínio da erótica, encontrei pois o cómico que se descobre nas inversões pelas quais o mais nobre elemento de uma esfera não encontra a sua expressão na mesma esfera, mas no contrário absoluto de outra esfera. É cómico ver o sublime impulso do amor (esta vontade de duas pessoas mútuamente se pertencerem para a eternidade) acabar sempre como o xarope na despensa; mas ainda mais cómico é que esta conclusão queira dizer a suprema expressão do amor.

«Onde houver contradição, sempre o cómico poderá aparecer; tal é o princípio que me serve de fio condutor. Se não vos apraz continuar a

ouvir-me, meus caros amigos, escutai pelo me-

nos, ainda que me vireis a cara; eu próprio estou a falar como se tivesse um véu diante dos olhos, porque, quando me encontro na presença de enigmas, e só de enigmas, já nada posso distinguir, ou antes, perco todo o d[iscernimento. Que é, verdadeiramente, uma consequêncía? Se ela não estiver relacionada, de uma ou outra maneira, com a antecedência, será ridícula ao pretender passar pelo que não é. Imagina! um

homem que quer tomar banho; cai na banheira e mergulha na água; já atordoado levanta-se, julga que está agarrado à corda na praia, engana-se, dá um puxão e logo o duche incide sobre ele de maneira necessária e n,*gorosa; a consequência está perfeitamente justificada pela

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antecedê"ia. 0 cómico reside no engano; em cair o duche depois de puxar pelo cordão, não há nada ridículo; pelo contrário, ridículo seria que tal não acontecesse, como (para verificar a

exa,etidão da minha tese sobre a contradição) se este amador de banhos, reunindo os seus espiritos e preparando-se a suportar valentemente o arrepio do duche, puxasse enèrgicamente, puxasse-e sobre ele não caísse pinga de água. Passemos agora para o nosso tema, para o amor. Os amantes querem pertencer um ao outro, e para toda a eternidade. Exprimem-se de ma-

neira assaz curiosa quando se abraçam num instante de profunda intimidade para gozarem assim do máximo prazer e da mais alta fel!cidade que o amor lhes pode dar. Mas o prazer é egoísta. Não há dúvida que do prazer dos amantes não se pode dizer que seja egoísta, porque é recíproco; mas o prazer que ambos sentem na união é absolutamente egoísta, se

for verdade que nesse abraço já se confundem num só e mesmo ser. Mas estão enganados; porque, no mesmo instante, a espécie triunfa sobre os indivíduos; domina-os, rebaixa-os ao seu serviço, Julgo isto muito mais ridículo do que a

situação considerada cómica por Aristófanes. Porque o cómico desta bipartição reside em ser contraditória, o que Aristófanes não salientou suficientemente. Quem vê um homem, crê ver um ser inteiro e independente, um indivíduo, o

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que toda a gente admite até que observe que, apoderado pelo amor, ele não passa de unia me-

tade que corre à procura da outra metade. Nada há que seja cómico na metade de uma maçã; cómico seria tomar por maçã inteira a metade de uma maçã; não há contradição no primeiro casa, há apenas no segundo. Se tomarmos a sério o dito de que a mulher é a metade do ser humano, a mulher não nos parecerá cómica na

estranha situação do amor. 0 homem., pelo contrário, que goza de consideração social porque é um ser completo, torna-se cómico quando de repente se deita a correr em busca da mulher e prova assim que não deixara de ser apenas metade do ser humano. Quanto mais reflectirmas tanto mais nos parecerá divertida a situação; porque se o homem é realmente um todo, na situação de amante deixa de o ser, ou então forma com a mulher muito mais do que uma unidade. Não estranhemos pois que os deuses se divirtam, e que principalmente se divirtam à custa do homem. Quando os amantes, como dois pombinhos, voam pelos céus em núpcias deliciosas, podemos acreditar que eles querem unir-se, ser uma só unidade, já que dizem querer viver um para o outro pelos tempos sem fim. Mas -é curioso-, em lugar de viverem um para o outro, vivem, sem que disso suspeitem, apenas para a espécie. - Que é uma consequência? Se, quando surge, não a podemos relacionar com

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a antecedência, parece-nos então uma facécia, e as pessoas a quem tal acontece tornam-se muito ridículas_ Quando duas metades, que estavam separadas, finalmente se juntam, parece que nisso encontram satisfação e motivo de repouso; assim não 6, porém, no amor, do qual resulta a agitação para uma vida nova. Compreender-&-,ia, que do encontro resultasse para os amantes uma vida nova; não se compreende tão bem que resulte urna vida nova para outro ser. E, no entanto, esta resultante é uma consequência muito mais lata do que a antecedência; mas a explicação que se costuma apresentar exige necessàriamente que o encontro final dos amantes marque a impossibilidade de qualquer consequência ulterior. Haverá outro prazer que ofereça analogia com estecaso? Não há. A satisfação do prazer significa sempre um relaxe, e ainda que lhe sobrevenha uma trWitía mos@trando o cómico implícito em todo o prazer, tal tristeza será uma simples consequência, mas nenhuma tristeza prova tão fortemente um

cómico precedente como a tristeza que aparece no fim do amor. Em compensação, muito diferente é a consequência inaudita de que falo, aquela que ninguém sabe de onde procede, nem se é real, mas que, quando se produz, é apresentada a título de consequência.

«Quem será capaz de conceber e conciliar tudo isto? No entanto o que aos olhos cios ini-

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elados constitui o supremo prazer do amor é ao mesmo tempo coisa mais importante; tão importante que os amantes passam a ter nomes diferentes, nomes que resultam dessa consequênela que recebe assim - coisa curiosa!-, a virtude de retroacção! 0 amante agora chama-se pai, a amante chama-se mãe, e não há agora para eles nomes mais belos! Mas há também outro ser para o qual esses nomes são ainda mais belos. Na verdade, que há de mais belo do quea piedade filial? A mim parece-me o mais belo de todos os sentimentos, com a vantagem, que é para mim uma felicidade, de neste caso compreender a respectiva noção. Os homens ensinam que convém que os filhos amem os pais. Isso compreendo eu muito bem: nisso não vejo contradição alguma; também eu próprio me sinto ligado pelos Iaços ternos de piedade filial. Creio que o maior beneficio de que estamos gozando é devido à vida que outro homem nos deu; creio que não há cálculo algum que possa avaliar o montante da dívida e, muito menos, que possa pagá-la; concordo com Cicero em que nunca o filho tem razão contra o pai; é a piedade que me ensina a abster-me de penetrar no íntimo segredo de meu pai, e que me obriga a espreitá-lo para o deixar intacto. Com certeza, sinto-me feliz por ser o maior devedor de um homem; mas inversamente, antes de me resolver a fazer

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de outro homem o meu maior devedor, quero ser perfeitamente claro para comigo mesmo; porque, para mim, não há comparação possível entre o facto de ser assim devedor e o de se tornar por sua vez credor de um ser que nunca poderá, por toda a eternidade, pagar essa divida. A piedade não permite que o filho pense naquilo em que o amor obriga o pai a pensar. Eis que reaparece a contradição. Se o fi-lho é um ente eterno, como o pai, que significa então ser pai? Tenho que sorrir de mim próprio ao pensar-me na categoria de pai, tenho que me comover profundamente ao pensar-me na categoria de filho, na relação com meu pai. Compreendo muito bem a bela frase de Platão, segundo a qual o animal dá origem a outro animal da mesma espécie, uma planta a uma planta semelhante, e assim também o homem; mas, dessa feita, nada fica explicado, o pensamento não fica satisfeito, mas pelo contrário, um sentimento obscuro começa a despertar. n que a procriação não pode afectar um ente eterno. Quando, pois, o pai considera o filho no seu ente eternal, e isto é o que está em questão, ele tem que sorrir de si próprio, pois reconhece que de maneira nenhuma pode conter essa plenitude de beleza e de riqueza espiritual que provoca a piedade e justifica o contentamento do filho que procriou. Além disso, se considerar o filho segundo a sua natureza sensível, deverá sorrir também, porque o termo

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de paternidade ultrapassa em muito o significado do valor desta relação. Enfim, se pudéssemos admitir que o pai exerce uma influência sobre o filho, no sentido de que o seu ser seja um dado de que o ser do filho não se pode libertar, a contradição reaparece por outro lado; porque este pensamento é terrível, porque então não haverá na terra nada que seja mais para temer do que a paternidade. Não há comparação sequer entre o acto de abater um homem com um golpe mortal e o acto de chamar à vida um novo ser; é que o primeiro tem apenas o efeito de apressar o tempo, o segundo decide de um destino para toda a eternidade. A contradiçã o presta-se ao riso e às lágrimas, como no teatro. Será, pois, a paternidade uma ficção embora em sentido diferente do que diz a personagem Madelon, à personagem Jerónimo na peça Eram~ Mont~ ou será uma realidade, e nesse caso, uma terrível verdade? Será o maior benefício altruísta ou o supremo gozo egoísta? Será um efeito acidental e contingente, ou será a missão suprema e necessária?

«Estais agora a ver, meus caros amigos, as razões por que renunciei ao amor. As minhas razões são tudo para mim; o meu pensamento é tudo para mim. Se o amor é o mais delicioso de todos os prazeres, recuso-o; recuso-o sem

pretender com isso ofender ou desdenhar alguém. Se o amor é a condição do maior benefício, perco

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* oportunidade de bem fazer, mas salvaguardo * meu pensamento. Não é que eu esteja cego para a beleza, não é que eu esteja surdo para as

harmonias e as melodias. Não. 0 meu coração não é insensível ao cantar dos poetas que gosto de ler, a minha alma não é destituída de melancolia e não deixa de sonhar com as belas imagens do amor..A verdade é que não quero ser infiel ao meu pensamento, pois, se o fosse, que lucraria com isso? Quanto a mim, não sinto felicidade quando não sinto o meu pensamento livre; nem quando tivesse de interromper os

meus pensamentos para me ligar a uma mulher, para gozar as maiores delícias; porque a !dela é para mim o meu ser eterno, e, por isso, mais preciosa ainda do que um pai ou de que uma mãe, mais preciosa ainda do que uma esposa. Bem vejo que se algo deve ser sagrado, é o

amor; que se a infidelidade é algures infame é no amor; que se alguma traição é ignóbil, é no amor; mas a minha alma é pura, nunca olhei mulher alguma que a cobiçasse; nunca

andei como borboleta em inconstantes voos até que, cego ou empurrado pela vertigem, fosse cair na mais decisiva das situações. Se eu soubesse em que é que consiste o amável, saberia também com exactidão se estarei ou não isento de culpa por ter induzido alguém em tentação; mas como ignoro o que é o amável, posso apenas ter a convicção de que conscientemente,

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nunca tal fiz nem quis fazer. Suponde agora que eu tivesse capitulado, que me tivesse resolvído a rir ou que sucumbisse de medo, o que talvez fosse possível. Sim, eu não sou capaz de encontrar a via estreita pela qual os amantes tão fàeilmente seguem como se fosse larga, imperturbáveis em todas as vicissitudes como se tivessem estudado e aprofundado, no nosso tempo que examinou já, sem dúvida, todos estes problemas, e, portanto, compreende também este meu pensamento: nCw tem wntWo agir segundo o imediato, para ter sentido é indispensável passar pela meditação, por conseguinte é preciso esgotar todos os modos possíveis de pensamento antes de passar aos actos. Mas, que dizia eu? Suponde que eu tivesse sucumbido. Não teria eu então, irremediàvelmente, -ofendido a minha bem amada com o meu riso, ou não teria eu, pela minha retirada, causado para sempre o desespero dela? Quanto à mulher, vejo bem que ela não pode chegar a tão alto grau de reflexão; aquela que julgasse cómico o amor (usurpando assim o privilégio dos deuses e dos homens; porque é ela, mulher, por natureza a tentação que os incita a tornarem-se ridículos) trairia por isso inquietadores conhecimentos prévios, e seria portanto a pessoa menos apta para me compreender; aquela que concebesse o meu receio teria por isso perdido a amabilidade que era o seu encanto, sem que por

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isso ficasse apta para compreender; de um ou de outro modo, a mulher seria aniquilada, o que eu não sou nem serei enquanto tiver o meu pensamento para a minha salvação.

«Não há agora ninguém que ria do meu discurso? Quando comecei por dizer que ia falar do cómico no amor, esperáveis talvez rir, propensos que sois para a galhofa, como eu também, que aprecio o bom humor; no entanto, nenhum de vós se deixou cair na hilaridade.0 efeito das minhas palavras não foi aquele por que esperáveis; mas isso mesmo é que é a prova de que èstive a falar do cómico. Se não há entre vós quem seja capaz de rir do meu discurso, haja ao menos quem ria de mim. Ride, meus caros amigos, que com isso não me dareis surpresa; também eu não compreendi nunca as afirmações que muitas vezes vos tinha ouvido fazer a respeito do amor: é que vós sois, ao que parece, o que eu não sou; vós sois uns iniciados! ... »

0 mancebo sentou-se. Estava quase tão belo como antes do banquete; olhava em frente, sem atender aos convivas. Johannes Sedutor quis apre*ntar ianediatamente m suas obj~es; mas logo foi interrompido por Constantino que o pôs de aviso contra as discussões e decretou que, entretanto, ainda era ocasião de ouvir discursos. Nestas condições, Johannes disge que

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desejava então falar em último lugar, o que deu motivo a nova discussão, agora para estabelecer a ordem dos discursos. Constantino interveio mais uma vez, propôs-se discorrer a seguir, pedindo em troca que lhe reconhecessem competência para presidir e estabelecer a ordem dos discursos.

Constantino falou assim:

«I-@á tempo para calar e há tempo para falar. Parece que chegou agora o momento de ser breve, porque o nosso moço amigo conversou muito e de muito singular mane@ra. A sua t>@q comioa obriga-nos a coanhater ancipiti ~lio. Foi tão equivoco o discurso, que o próprio orador se encontra perplexo, ali sentado na sua cadeira, como homem indeciso que a si próprio se pergunta se deve rir ou chorar, se deve interessar-se pelo amor. Eu, se tivesse sabido o que ele ia dizer, se tivesse sido avisado de que ele exige tanto conhecimento prévio sobre a essência do amor, não lhe teria deixado abrir a boca; mas agora é tarde. Convido-vos, pois, meus caros amigos, a que estejais «contentes e alegres, como é próprio destas ocasiões.», porque tal é o meu maior desejo. Se tanto não for possível, peço-vos que pelo menos esqueçais os discursos logo que terminem, bebendo-os de um trago como para esquecer convém.

«Vou já entrar no assunto. É da mulher que

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vos quero falar. Também eu examinei, perscrutei e penetrei a sua categoria; também eu procurei e encontrei, porque fiz um descobrimento sem igual, que vos passo a dizer, Ninguém chegará a compreender a mulher se não a julgar na categoria de facécia. Compete ao homem ser e actuar absolutamente, exprimir o absoluto; a mulher está na zona do relativo. Entre dois seres tão diferentes, não há que esperar verdadeira inter-acção. Tal desproporção é que constitui exactamente a facécia, que entrou no mundo com a mulher. l@ evidente, porém, que o homem terá de saber permanecer no absoluto, senão, tudo se altera, quero dizer, tudo cai no que há de mais banal e de mais comum: um par muito bem equilibrado, onde o homem e a mulher não estão por inteiro, onde são dum metades de um casal.

«A facécia não pertence à ordem da estética; é uma categoria moral abortada. Actua sobre o

pensamento como sobre o ouvinte actuaria o discurso de um homem que começasse em tom solene, dissesse duas ou três frases entre virgulas, pigarreasse mais ou menos reticente, e por fim se calasse. Assim é a mulher. Aplica-se-lhe a categoria moral, fecha-se os olhos, pensa-se nas exigências morais do absoluto, pensa-se no

ser humano, abrem-se os olhos, fixa-se o olhar sobre a donzela pudica, observa-se se ela corresponde às exigências; tem-se um instante de

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ansiedade, e díz-se por fim: «Que facécia! Isto que eu pensava não era mais do que uma facécia!» A facécia consiste, efectivamente, em aplicar uma categoria que não convém, e a julgar a mulher por essa categoria. Com a mulher, o

sério nunca pode ser a sério, o que é própriamente a facécia; isto porque se pretendêssemos que a mulher tomasse o sério a sério, teriamos uma sensaboria. Se colocardes a mulher debaixo da máquina pneumática para evaporá-la, procedereis mal e a operação nunca será divertida; mas se lhe insuflardes ar suficiente para que ela adquira proporções sobrenaturais, até atingir a idealidade toda de que uma donzela de dezasseis anos se imagine capaz, então haveis de ter o prólogo de uma representação altamente recreativa. Não há rapaz que tenha metade da como diz o nosso alfaiate, «vem tudo a dar na

idealidade imaginária de uma rapariga, mas, mesma», porque a idealidade da mulher é totalmente ilusão.

«A mulher causar-nos-á um mal irreparável se não a encararmos por este prisma; mas graças à minha teoria, ela será para nós inofensiva e agradável. Não há nada mais terrivel para o homem do que cair no fantasiar destruidor da verdadeira idealidade. Cada qual pode arre-

pender-se de ter sido um impostor, de ter falado muito sem pensar a sério numa só palavra do que disse; mas fazer castelos no ar, acreditar

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no que se está a fingir, e depois reconhecer a estupidez, isso seria caso para um homem se enjoax até do seu próprio remorso. A mulher não seria capaz de fazer isso. A Natureza deu-lhe o privilégio de passar por metamorfoses em

menos de vinte e quatro horas, graças ao aranzel mais inocente e mais desculpável; porque, na sinceridade da sua alma, está muito longe de querer enganar quem quer que seja; é que ela pensa tudo quanto diz, mas com a mesma adorável boa fé diz o contrário, porque está sempre pronta a morrer até por novas opiniões.0 homem que se entregue ao amor, porque o considere assunto sério, poderá gabar-se de ter realizado um bom seguro, se por acaso lhe for dado um bom contrato para assinar; pois, com matéria tão inflamável como é a mulher, há sempre sério risco para a empresa seguradora. Mas que faz o nosso homem? Identifica-se com ela; e se, em dia de festa, como aquele em que se queímam foguetes, ela se inflamar um pouco mais, arrisca-se ele a ser envolvido também por ela numa grande explosão. Ou pelo menos experimentará a iminência do perigo, se tiver a sorte de evitar a conflagração. A tudo esse homem se arrisca, tudo pode com a sua temeridade perder; porque o absoluto s,6 tem um contrário absoluto: o fantástico absoluto. Não vá ele então procurar refúgio no convivio com pessoas corrompidas, porque não está perdido moralmente, longe

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disso; foi apenas reconduzido in absurdum, foi repelido para a felicidade do aranzel; transformou-se num bufão. Na relação de homem para homem tal caso nunca pode acontecer. Se eu vir um homem dissolver o seu carácter entre fumaças de estultícia talvez o despreze; se o vir recorrer a matreira sagacidade para me enganar, aplico-lhe simplesmente a categoria moral, julgo-o, e o perigo torna-se insignificante; se

ele me perseguir a ponto de me fazer perder a paciência, não há que ver, disparo-lhe uni tiro nos miolos... Quem será capaz de desafiar uma

mulher para duelo? Toda a gente vê que isso seria uma facécia, um disparate como o de Xerxes que mandou fustigar o mar. Quando Otelo mata a Desdémona, supondo mesmo que ela estava realmente culpada, não obtém do seu acto qualquer vantagem apreciável; procede como um

bufão, torna-se ainda mais ridiculo, porque, esganando-a, não faz mais do que mostrar-se condescendente com uma consequência do que, desde o principio, o prepara para o ridiculo; em compensação, Elvira poderá parecer-nos inteiramente patética quando se apodera do punhal para se vingar. Se Shakespeare concebeu Otelo como um herói trágico (sem contar com a catástrofe lamentável, que a inocência de Desdémona representa) tal inconsequência explica-se únicamente, e também se justifica plenamente, pela razão de que Otelo não pertencia à raça branca.

110 KIERKEGAARI)

É assim mesmo, meus caros amigos. Só um

homem de cor, um homem que não nos parece totalmente um ser racional, um homem que é capaz de ficar verde quando acossado pela cólera, como

todos sabem que é de facto verificado em fisiologia, só um homem desses, repito, seria capaz de levar as coisas para o trágico quando verificasse que a mulher o enganava. Reparai em que ia regra é sempre a mulher dispor do path4w da tragédia no caso de ser enganada pelo homem. Um homem capaz de ficar vermelho como um

peru poderá ser talvez personagem de tragédia, não aquele a quem é exigida a serenidade que resulta da cultura espiritual. Esse ou saberá escapar aos perigos do ciúme, ou então, se for vítima deste inferior sentimento, dará em personagem de comédia logo que pretenda vingar-se com um punhal. É pena que Shakespeare não nos tivesse dado um drama em que se visse a ironia castigar as justas pretensões do marido contra a mulher infiel; porque não é dado a

quem descobre o cómico desta situação o poder expô-la de forma dramática, admitindo já que ela seja répresentável. Imagina!, senhores, Sócrates a surpreender -e digo surpreender, porque seria contrário ao pensamento socrático preo- cupar-se com a fidelidade da mulher, e mais ainda andar a vigiá-la - imaginai Sócrates, a

s~ender Xantipia in fk~ti: estamos já a ver tão delicado sorriso, aquele sorriso, que

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transformava o mais feio cidadão de Atenas no mais simpático dos homens, dilatar-se pela primeira vez num riso verdadeiramente homérico. Por outro lado, não compreendo que Aristófanes, o qual tantas vezes nos quis mostrar um Sócrates grotesco, não se tivesse lembrado de o pôr em cena a correr e a gritar: «onde está ela, que a mato», -ela, a infiel Xantipa. Que Sócrates tenha ou não sido marido enganado, eis o que pouco importa para o caso; fazer investigações a respeito da possível infidelidade de Xantipa seria tempo perdido; tanto como pentear macacos, ou atirar pedras à lua. Enganado ou não pela mulher, Sócrates continua a ser do mesmo modo herói intelectual; mas se ele sofresse do vicio de ciúme, e se quisesse matar a mulher, então Xantipa exerceria sobre ele um

ascendente e uma tirania tais que deixariam a esquecer na história o tribunal de Atenas e a pena de morte: a mulher abusaria do poder de tornar ridículo o filósofo. 0 marido enganado é, portanto, cómico na situação em que se encontra perante a mulher; mas pode parecer trágico nas suas relações com os outros homens. Estamos num ponto próximo da concepção que o

espanhol forma da sua honra. Todavia, na situação de marido enganado, o trágico consiste essencialmente na impossibilidade de uma reparação, e no peso do seu sofrimento, o que, na verdade, forma um conjunto terrível. Matar a mulher,

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torturá-la ou desprezá-la por vingança, tudo isso não faz mais do que tornar ridiculo o pobre do marido, porque a mulher representa simplesmente o sexo fraco. Eis o tema que incessantemente regre~ para estabelecer em tudo a confusão. Se a mulher realizar grandes feitos, será muito mais admirada do que o homem, porque ninguém os espera do seu natural procedimento. Se a mulher for enganada, terá a seu

favor todo o ~os; mas com o homem, o mais que pode é haver um pouco de compaixão; na

frente dele, diz-se uma ou outra palavra de simpatia, mas nas costas todos riem ou sorriem.

«Eis porque muito sagazmente procede quem oportunamente considera a mulher na categoria de facécia. 0 divertimento é sem par. Começamos por lhe atribuir um valor superlativo para nos situarmos na relação mais cautelosa do comparativo. Evitaremos levar a conversa para a contradição, onde a mulher domina por se sentir à vontade; e diremos sempre que sim a tudo quanto ela quiser. Vamos dando-lhe cada vez mais lastro; como ela não tem medida e não se sabe limitar, depressa chega aos máximos efeitos. Nunca se deve duvidar das palavras dela; pelo contrário, convém sempre fazer fé pelo que ela diz. Uma admiração inexprimível deve estar sempre nos no~ olhos inebriados de felicidade, e todo o nosso procedimento deve ser o de um adorador que sempre anda à

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roda do seu ídolo: ajoelhamos, damos às nossas feições um aspecto languescente, erguemos os nossos olhos para ela, ficamos pasmados, voltamos a respirar. Obedecemos-lhe como se fôssemos escravos, Mas eis agora o melhor. Que a mulheir seja capaz de falar, quero dizer verba facere, todos nós sabemos, e não precisamos de prova. Infelizmente, ela não goza de reflexão suficiente que a ponha ao abrigo da contradição que surge a curto prazo, digamos quando muito, ao fim de oito dias, pelo que o homem tem de intervir para lhe prestar auxílio lógico, para a restabelecer na ordem do pensamento, pelo que o homem tem de a contradizer. Acontece, pouco depois, que a confusão bate em cheio. Se não houver a preocupação da conformidade nos dizeres, a confusão talvez passe despercebida, porque a mulher é um ser tão pronto para falar como para esquecer o que falou. Mas quando o adorador persevera por todos os modos e até ao fim na obediência, a confusão manifesta-se. A mulher, quanto mais bem dotada for, mais aptidões tiver, tanto maior imaginação haverá de ter; quanto maior for a sua imaginação maior será a sua extravagância em cada instante, e tanto maior será a contradição no instante seguinte. Não se observa muitas vezes este divertimento na@ vida quotidiana, porque tal obediência cega aos impulsos variáveis da mulher é situação pouco frequente. Tal obediência pode

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ser a de um pastor lânguido, mas esse não tem a faculdade de descobrir o aspecto mais divertido da situação. A idealidade de uma -ingénua que viva no instante e na imaginação não se

encontra na realidade, nem entre os homens, nem entre os deuses; mas nem por isso deixa de ser mais divertido acreditar, ou simular acreditar, na idealidade de uma rapariga, e proceder de modo a que ela cada vez mais se excite nessa direcção.

«Disse que tal divertimento é sem par. Disse porque o sei, eu que, por vezes, não pude dormir durante noites inteiraa, enquanto pensava em assistir a novas confusões provocadas pela minha bem-amada, graças ao meu zelo de servi-Ia humildemente; porque nunca o jogador do loto chegará a ver tantas combinações singulares e imprevistas como o amante apaixonado por este jogo. Uma coisa é certa: a mulher é dotada de extraordinária faculdade de se perder e de se encontrar na insensatez com aquela amabilidade, com aquele à-vontade, com aquela segurança que convém ao sexo fraco. Quem é amante leal, procura descobrir todas as graças da amada. Ora, quem descobrir esta aptidão genial da mulher não deixará que ela permaneça no estado de possibilidade, pelo contrário, exercitá-la-á até à virtuosidade. Não necessito de me alargar sobre este assunto; não sairei das generalidades; creio que todos me compreendem

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bem. Tal como há homens que se divertem a equilibrar um lápis na ponta do nariz, ou a correr

com um copo na palma da mão, sem entornar o conteúdo, ou a dançar sobre um estrado onde estão ovos, enfim, a fazer exercicios tão recreativos como lucrativos, assim também, e não de outro modo, o amante encontra na companhia da amada o divertimento mais valioso e o estudo mais interessante. Do ponto de vista da erótica, o amante procede com inteira fé; ele não se contenta com acreditar em que ela lhe é fiel, porque dessa fase do jogo em breve se cansa, mas acredita também, sem a minima dúvida, em todas essas explosões de um romantismo sagrado em que ela poderia sucumbir, se não tivesse havido o cuidado de instalar uma válvula de escape pela qual os suspiros, fumos, árias, se

vão libertando para envolver o amante numa atmosfera de felicidade. Ninguém o iguala na sua admiração por Julieta, com a diferença porém de que ninguém ousa tocar num só cabelo do Romeu. Do ponto de vista intelectual, tem toda a confiança nela; e se lhe calha encontrar uma escritora, então, é só o tempo de contar um, dois, três, e logo encontra na sua frente uma mulher que sofre por dar à luz da publicidade um romance, é arrebatado pelo entu-siasmo, põe a mão sobre a testa, e fica extasiado com as produções da sua mulherzinha. Tal é o

divertimento sem par. Não compreendo que

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Sócrates não tenha escolhido este caminho em vez de andar à bulha com a sua Xantipa; mas

talvez compreenda, estou já a ver; é que ele queria exercitar-se como o cavaleiro que por mais bem adestrado que esteja o cavalo, irrita-O de vez em quando, para ter nova ocasião de o dominar.

«Vou precisar um pouco mais o meu pensamento para esclarecer um caso particular, muito interessante. Fala-se muito da fidelidade femi-

ma, mas raras vezes se diz o que convém. Do ponto de vista estritamente estético, ela paira como um fantasma por sobre o espirito do poeta, que vemos atravessar a cena em demanda da sua amada, que é também um fantasma preso à espera do amante, - porque quando ele aparece e ela o reconhece, pronto, a estética já não tem mais que fazer. A infidelidade da mulher, que podemos relacionar imediatamente com a

fidelidade precedente, parece relevar essencialmente da -ordem moral, visto já que o ciúme toca sempre os aspectos de paixão trágica. Há três casos em que o exame é favorável à mulher: dois mostram a fidelidade, e um a infidelidade. A fidelidade feminina será enorme, excederá tudo quanto a gente possa pensar, enquanto a mulher não tiver a certeza de ser verdadeiramente amada: será muito grande, ainda que nos

pareça incompreensivel, quando o amante lhe

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perdoar; no terceiro caso temos a infidelidade. Desde que sejamos dotados de suficiente espirito, e de suficiente liberdade de espírito para pensar, será fácil, depois do que eu disse, justi- ficar a categoria da facécia. 0 nosso mancebo que, a princípio, me desconcertou um pouco, parecia enveredar por esse caminho, mas teve receio de enfrentar e vencer a dificuldade. Mas a dificuldade não é, afinal, tão difícil como parece. Decidamo-nos a relacionar o amor infeliz com a morte, tenhamos seriedade suficiente para manter no espírito este pensamento de relação, e se assim estivermos bem preparados, poderemos ver nitidamente a facécia. A declaração de amor é naturalmente um discurso feminino ou de homem efeminado. Isto salta aos olhos, é evidente, porque esse discurso é uma dessas explosões de sentimento absoluto que, declamadas com grande firmeza no instante, sempre arrancam aplausos vibrantes; se bem que tal discurso seja questão de vida ou de morte, é todavia, como o alimento, destinado a fruição imediata; se bem que toda a vida esteja em

jogo, de maneira nenhuma interessa ao moribundo; a declaração de amor poderá conseguir, quando muito, que o ouvinte corra a salvar quem está a desfalecer. 0 homem que se propõe fazer tal discurso, não está a divertir-se consigo próprio porque sente-se já tão miserável, e desprezivel que nada lhe dá vontade de rir. A mulher,

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pelo contrário, é genial, e amável pela sua genialidade; é graciosa. e agradável em tudo quanto diz, desde a primeira à última palavra. É por isso que a mulher morre com o amor, ou morre de amor; ela própria o diz, e ninguém duvida,. Nisto reside a sua paixão; porque a mulher é um ser humano, e portanto homem, neste aspecto: pelo menos para dizer o que nenhum homem é capaz de fazer. Coloquei-a a par do homem, eao dizer isto apliquei-lhe a categoria moral. Fazei vós o mesmo, meus caros amigos, e compreendei então Aristóteles. ]@ que ele observa, e muito justamente, que a mulher não tem aptidão para a tragédia. É evidente que ela não pode faltar ao teatro, que tem lugar no divertimento sério e patético, se não na peça em cinco actos, pelo menos na meia hora dramática das futilidades. Sim, a mulher morre de amor. Mas impedi-la-á isso que volte a amar? Por que não, se houver quem a ressuscite? Depois, será já outra criatura, um ser inteiramente diferente, um ser com novidade e mocidade, que ama pela primeira vez. Isso nada tem de extraordinário! õ morte, quão grande é, afinal, o teu poder. Nem o vomitório mais violento, nem o laxante mais eficaz, purgariam tão radicalmente como a morte de amor. - A confusão é magnifica, desde que se lhe preste bastante atenção para não a esquecer. Uma das figuras mais divertidas que poderemos encontrar du-

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rante a vida é um morto. Depara-se-nos por vezes no caminho; mas é curioso que raramente aparece em cena. Um homem em recente letargia oferece já um fundo de particularidade cómica; mas um morto autêntico, um verdadeiro morto, ultrapassa tudo quanto possamos razoávelmente exigir de suplemento cómico. Preste-se-lhe boa atenção; eu próprio tive o cuidado de o fazer quando um dia passeava em companhia de um amigo. Passou por nós um casal. Percebi no -semblante do meu amigo que ele conhecia aquelas pessoas, e fiz-lhe a pergunta, a que respondeu: «Sim, conheço-os muito bem. Principalmente a ela, que é a minha falecida mulher».

«Que diz? A sua falecida mulher?» «Sim, a

mulher que morreu nos meus primeiros amo-

res. 3@ uma história muito engraçada. Estou a

,morrer, dizia-me ela; e no mesmo instante, como

era justo, falecia; se assim não fosse teria chegado a ficar viúvo. Mas já era tarde para a

hora do casamento; ela estava morta, e morta ficou. Eu é que vou errando, como diz o poeta, ando a procurar em vão o túmulo da minha amada, não o encontro no cemitério, não sei onde verter uma lágrima». 0 homem que isto me dizia, era ele próprio um morto, porque se encontrava desamparado no mundo, era um morto, por muito que se consolasse de ver que a sua amada chegara a um estádio avançado

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da vida, se não por merecimento de outro, pelo menos em companhia de outro. Pensava eu: bom é que as donzelas não sejam enterradas todas as vezes que morrem, pois, se até agora os pais se queixam de que os rapazes lhes gastam muito mais dinheiro do que as raparigas, estas, com tantos funerais, poderiam ser-lhes muito mais díspendios.as. Uma simples infidelidade não oferece, ao que penso, tão divertido espectáculo como o de ver a mulher interessar-se por outro e ao mesmo tempo dizer ao marido: «não posso; é superior às minhas forças; tenho medo de mim própria; salva-me tu». Mas que ela morra de desgosto por não poder suportar que o amado se afaste porque tem de fazer viagem às Antilhas; que se conforme com a partida e que, quando ele regressar, esteja não só com muito boa saúde, mas além disso ligada para sempre a outro: -eis o que me parece ser realmente um destino singular para um amante. Não vejo, pois, razão para nos admirarmos de que um

homem deprimido pela morte da amada se console a trautear, a cantar e até a gritar aquele velho estribilho nosso: «A morte vem; e ainda bem. Bom para mim, bom para ti. Quem ama

nunca mais esquece a data feliz da separação!»

«Perdoai-me, amigos. Falei de mais. Vamos beber. Bebãmos pelo amor e pela mulher. n que ela é bela, graciosa, encantadora; isto é inevitável para quem a considere e julgue pelas cate-

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gorias estéticas. Mas temos de ir para além disso; é ü que vos aconselho, como outros o aconselharam já. Temos de observá-la dentro do campo moral; retomai o vosso juizo nessa categoria e tereis a facécia nada mais. Até Platão e Aristóteles admitiram que a mulher é uma forma imperfeita, e, portanto, uma grandeza irracional, que talvez em vida futura e melhor possa elevar-se à condição do homem; mas. aqui na terra, meus caros amigos, é preciso ver que as coisas são como são. Que estou a dizer? Estou a caluniar? Não, de modo nenhum. Não tardará que tudo isto seja evidente, porque a própria mulher já não se contenta em viver na ordem da estética; quer passar para a ordem moral, quer ser emancipada, como ela diz, ou quer ser capaz de ser homem, como nós dizemos. Ah! Bebei, meus e-aros amigos, que a facécia já passa das medidas».

Constantino deu por terminado o seu discurso, e convidou imediatamente Vítor Eremita a falar. Eis o que disse este conviva:

«Todos vós sabeis que Platão deu graças aos

deuses por ter recebido quatro beneficios, o

último dos quais foi ter sido contemporâneo de Sócrates. Os três primeiros haviam já sido objecto de gratidão por parte de um filósofo antecedente; concluo, pois, que eram dignos de

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agradecimento. Quisera eu também exprimir aos

deuses a minha gratidão, mas, infelizmente, não posso agradecer o que não me foi concedido. Assim, limitar-me-ei a concentrar a minha alma para agradecer o único favor que me foi concedido: o de ter nascido homem, e não mulher.

«A condição natural da mulher é muito singular. 32 um ser feito de elementos tão complexos, que um só p."ed_@cado não o pode exprimir; e quando os predicados se acumulam, vemos que eles se contradizem de tal forma que com tal contradição só a mulher se pode harmonizar e, o que mais é, se pode sentir feliz. De a mulher na realidade exercer uma função inferior à do homem, não vejo que para ela resulte infelicidade; muito menos ainda de que possa adquirir consciência dessa situação, porque tal ciência é-1.he muito suportável. Não; a infelicidade da mulher resulta do absurdo a que o romantismo reduziu a vida. Com efeito, para os românticos, num instante a mulher é tudo, e no instante seguinte a mulher é nada; assim, nunca se sabe ao certo qual é a verdadeira significação da mulher na vida humana. A infelicidade da mulher está em não poder conhecer a sua situação e o seu valor, exactamente porque é mulher. Quanto a mim, se fosse mulher, desejaria viver no Oriente, na condição de escrava; porque a

condição pura e simples de escravatura é pelo

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menos alguma coisa, não é o tudo, não é o caos, não é o nada.

«Ainda que a vida não apresentasse à mulher estes contrários, as honras que lhe são atribuídas, e que segundo a opinião pública, lhe são devidas, justamente por ser mulher, seriam já, @3uficientes para a advertirem e para a convencerem de quão absurda é a situação feminina.0 privilégio que os homens concedem às mulheres é a galantaria. Convém ao homem dar provas de galantaria para com a mulher, e esta arte consiste muito simplesmente em enquadrar nas categorias da imaginação a pessoa em relação à qual se formulam os galanteios. Prestar as mesmas atenções a um homem seria ofendê-lo pela lisonja, porque o homem não está dependente, ou se estiver não deveria estar, de tais categorias. Pelo contrário, as mínimas deferências são devidas como tributo ao belo sexo, são-lhe devidas como a homenagem que por excelência lhe compete. As mínimas deferências... Ah! Ah! Ah! Se a galantaria fosse mera praxe de cavalaria, se só os cavaleiros se mostrassem galantes, a coisa não se prestava a demoradas reflexões. Mas tal não é o caso. No fundo, todo o homem é galante, ainda que inconscientemente, ainda que contra vontade. Ou, por outras palavras: foi a própria natureza que prendeu o belo sexo com mais esta graça. Aliás a mulher aceita espontâneamente, e sem contrariedade, tais

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homenagens. Isto é mais uma infelicidade; porque se só uma procedesse assim, ou se só algumas procedessem assim, poderíamos encontrar para o problema outra solução. Assim, temos de nos encontrar outra vez perante a ironia própria da vida. Se a galantaria correspondesse à verdade, deveria então ser reciproca; nesse cas<>, dar-se-ia como que a permuta de valoração entre a força e a beleza, entre o poder e a astúcia. Não é, porém, assim. A galantaria é essencialmente o privilégio da mulher, e a irreflexão com que a mulher a aceita explica-se pela atenção da natureza para com o mais fraco, mitigando-lhe o infortúnio com dar-lhe uma compensação, ou mais do que uma compensação, o infinito da ilusão. Mas esta ilusão é que é a fatalidade própria da vida da mulher. São frequentes os casos em que a natureza toma cuidado do enfermo, consola-o e embala-o na ilusão de que é belo. Tudo quanto a natureza faz é bem feito, e o infortunado possui assim muito mais do que em pretensão razoável pudesse desejar. Todavia, que irrisão mais cruel poderia haver do que esta vantagem totalmente ilusória, que irrisão, mais cruel do que escapar à miserável condição da escravatura para ser enganado por uma quimera! A mulher está bem longe de não participar das vantagens concedidas ao enfermo, mas, por outro lado, não pode nunca sair da

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ilusão com que a vida a agraciou para sua consolação.

«Se considerarmos, na sua totalidade, a existência da mulher, para discernirmos os momentos decisivos, veremos que esta existência nos dá em cada caso particular uma impressão absolutamente fantástica. No decurso da sua vida, a mulher tem momentos decisivos muito diferentes dos do homem, porque são para ela ocasiões de completo transtorno. Os dramas românticos de Tieck mostram por vezes uma personagem que, outrora rei da Mesopotâmia, é agora merceeiro em Copenhague. Tal é o fantástico de toda a existência feminina. Se a mulher se chamar Juliana, a sua vida poderá resumir-se assim: <Outrora imperatriz dos vastos dominios do amor, e rainha titular da patetice em

todo o esplendor; hoje, esposa do grave senhor Fulano de Tal, com loja aberta a uma esquina desta cidade» .

«Na infância, a menina é menos considerada do que o menino. Quando rapariga, poucos anos depois, ninguém sabe bem o que virá a ser; enfim, no período decisivo da adolescência para a mocidade, sobe ao trono da sua ilusória soberania. 0 homem aproxima-se e adora-a; é um pretendente. Digo que adora, porque é na verdade o que ele faz, entre suspiros imprecativos; o pretendente nunca é um intrujão dominado por manhas e artimanhas. Até mesmo o

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carrasco, quando põe de lado os sanguinários utensilios do seu mister, para ir pedir a noiva em casamento, flecte o joelho, ainda que pense logo depois em execuções domésticas, tão naturais aos seus olhos, que não procura sequer desculpá-las invocando a raridade dos suplicios públicos. 0 homem culto procede do mesmo

modo; cal de joelhos, adora, enfim, vê a amada debaixo das mais belas categorias da imaginação; depois esquece bem depressa esta atitude; ao tomá-la ele já sabia, aliás, que sacrificava a uma ilusão. Se eu fosse mulher, antes queria ser vendida pelo meu pai a quem mais desse, como se faz no Oriente, porque o comércio tem pelo menos um sentido real. Ser mulher é já uma infelicidade; mas infelicidade maior é não ver essa infelicidade.

«Observai quea mulher se de alguma coisa se queixa, não é de ser adorada: - é, pelo con-

trário, de deixar de o ser. Se eu fosse mulher, acima de tudo exigiria que ninguém me fizesse a corte, dispensaria muito bem os galanteios; contentar-me-ia com pertencer ao sexo fraco, aceitaria a verdade da minha situação, e teria o brio de repeli-r as mentiras dos homens. A mulher não pensa assim, pouco se importa com

a verdade. Juliana sente-se feliz no sétimo céu, e a esposa do senhor Fulano de Tal, com loja aberta na esquina da cidade, vive resignada, se

não contente, com a sua sorte.

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«Agradeço, pois, aos deuses o ter nascido homem, e não mulher. Com isto, porém, não deixo de pensar nas vantagens que perdi. Desde as canções do botequim até aos versos de tragédia, a poesia é uma apoteose da mulher, para maior infelicidade dela e do seu adorador, porque, se este não tiver cuidado, quando estiver no melhor do seu culto, sentirá que o rosto lhe emagrece. 0 homem deve à mulher tudo quanto fez de belo, de insigne, de espantoso, porque da mulher recebeu o entusiasmo; ela é o ser que exalta. Quantos moços im.berbes, toe-adores de flauta, não celebraram já o tema? E quantas pastoras ingénuas não o ouviram também? Confesso a verdade quando digo que a minha alma está isenta de inveja e cheia de gratidão para com Deus; antes quero ser homem pobre de qualidades, mas homem, do que mulher-grandeza imensurável, que encontra a sua felicidade na ilusão. Vale mais ser uma realidade, que ao menos possui uma significação precisa, do que ser uma abstracção precisa, do que ser uma

abstracção susceptível de todas as interpretações. É, pois, bem verdade: graças à mulher é que a idealidade aparece na vida; que seria do homem, sem ela? Muitos chegaram a ser gênios, her6is, e outros santos, graças à s mulheres que amaram; mas nenhum homem chegou a ser gênio por graça da mulher com quem casou; por essa, quando muito, consegue o marido ser

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conselheiro de Estado; nenhum homem chegou a ser herói pela mulher que conquistou, porque essa apenas conseguiu que ele chegasse a general; nenhum homem chegou a ser poeta inspirado pela companheira de seus dias, porque essa

apenas conseguiu que ele fosse pai; nenhum homem chegou a ser santo pela mulher que lhe foi destinada, porque esse viveu e morreu celibatário. Os homens que chegaram a ser gênios, heróis, poetas e santos cumpriram a sua missão inspirados pelas mulheres que nunca chegaram a ser deles. Se a idealidade da mulher fosse positivamente, e não negativamente, um factor de entusiasmo, inspiratriz seria a mulher à qual o homem, casando, se unisse para toda a vida. A realidade fala-nos, porém, outra linguagem. Quero dizer que a mulher desperta, sim, o homem para a idealidade, mas só o torna criador na relação negativa que mantém com ele. Compreendidas assim as coisas, poderá efectivamente dizer-se que a mulher é inspiradora, mas a afirmaçã o directa não passa de um paralogismo em que só a mulher casada pode acreditar. Quem ouviu alguma vez dizer que uma mulher casada tivesse conseguido fazer do marido um poeta? A mulher inspira o homem, sim, mas durante o tempo que for vivendo até a possuir. Tal é a

verdade que está escondida na ilusão da poesia e da mulher. Que o homem não possua a mulher, isso é o que pode ser entendido de várias manei-

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rãs. Ou está ainda na luta para a conquistar, e assim se disse que a donzela entusiasmou o amante a ponto de fazer dele um cavaleiro, mas nunca se ouviu dizer que um homem se tornaffie valente por influência da mulher com quem casou. Ou está convencido de que nunca lhe será possível casar com ela, e assim se diz que a donzela entusiasmou e despertou a idealidade do amante que se manifestou capaz de cultivar os dons espirituais de que porventura era portador. Mas uma esposa, uma dona de casa, tem tantas coisas prosaicas com que se preocupar, que nunca desperta no marido a idealidade. Há ainda outro caso, em que o homem não possui a mulher porque persegue um ideal. Assim vai ele passando de amor para amor, o que é uma

espécie de ser infeliz no amor; a idealidade da alma do amante está então no ardor da procura e da perseguiçã o, e não nos amores fragmentários que não valem a soma das aventuras particulares.

A mais nobre idealidade que uma mulher pode suscitar no homem consiste própríamente em lhe despertar a consciência da imortalidade.0 nervo desta prova é o que poderíamos chamar a necessidade da réplica. Diz-se de uma

peça que não pode acabar sem que tal ou tal personagem receba uma réplica; assim a idealidade pretende que a vida não pode acabar na

morte, e exige uma réplica, Esta prova é mui-

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tas vezes administrada de maneira positiva nos

jornais. Eu acho isso completamente normal, porque, a ter de ser dada nos jornais, tem de o

ser positivamente. A senhora Dona Fulana de Tal viveu um certo número de anos; na noite de 24 para 25, quis a Providência que, etc. 0 senhor Fulano de Tal, nessa ocasião, sofre um violento ataque de reminiscências do tempo em

que fez a corte à sua falecida mulher, ou, para me exprimir com maior exactidão: nada mais o consolará do que o regresso a esse tempo. Entretanto, vai-se preparando para voltar a esse

tempo feliz procurando outra mulher, pois, na verdade, um segundo casamento, se bem que esteja longe de ter a poesia do primeiro, é con-

tudo uma boa imitação. Eis a prova positiva. 0 senhor Fulano não se contenta com exigir uma

réplica; não, exige também uma, repetição. P, sabido que o chumbo toma por vezes o brilho da prata, mas por pouco tempo. Isto é trágico para o vil metal, que tem sempre de se contentar com o que na realidade é. Com a senhor Fulano de Tal, o caso é diferente. A idealidade é, com justa razão, o próprio do homem; se me rio, pois, do senhor Fulano de Tal, não é porque, comparando-o com o metal, vil, pense que só em raras ocasiõ es ele terá o brilho da prata; pelo contrário, é porque o falso brilho, ou prestígio, é a denúncia visível de que se transformou em metal vil. :É assim que o espírito bur-

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guês se cobre de ridículo quando, endomingado de idealidade, nos dá um bom pretexto de dizer com Holberg: «por que não vestiram com um roupão novo esta vaca parturiente?» Retomemos, agora, o fio do discurso. Se a mulher desperta no homem a idealidade, e consequentemente, a consciência da imortalidade, sempre procede -assim, mas sempre negativamente. 0 homem que, graças à mulher que não possui, deu em gênio, herói, poeta ou santo, esse homem conseguiu com isso a imortalidade. Se a faculdade de suscitar a idealidade estivesse positivamente na mulher, seria a esposa, e só a esposa, quem despertaria no homem a consciência da imortalidade. A vida mostra-nos exactamente o contrário. Para que a mulher desempenhe realmente aquele papel, é indispensável que morra

antes de a peça acabar. No caso, porém, do senhor Fulano de Tal, ela deixou adormecida a idealidade. Se, pela sua morte, conseguir despertar a idealidade no marido, cumprirá então todas as grandes coisas que lhe atribui a poesia, mas, reparem bem, o que ela de positivo fez a tal respeito é letra morta. Todavia, o papel da mulher torna-se cada vez mais duvidoso quanto mais ela persiste no desígnio de atribuir à sua

acção um sentido positivo. Quanto mais a prova for neste sentido, tanto menos positiva será, porque se dá entã o a saudade, cuja substância deve ser considerada como essencialmente esgotada,

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visto que o vivido já foi vivido. A prova chega ao mais alto grau positivo quando a saudade se encontra ligada a determinado evento da vida conjugal, já passado, morto e enterrado, como daquela vez em que os dois andavam a passear entre as sombras do parque... A gente também pode ter saudade de um velho par de pantufas, confortáveis como nenhumas outras; mas esta saudade não vale de prova da imortalidade da alma. Quanto mais negativamente for dada a

prova tanto melhor será, porque o negativo é muito mais forte do que o positivo; o negativo é infinito e, por conseguinte, dissolve o positivo.

«A significação que a mulher para nós assume é inteiramente negativa; o seu papel positivo nem de longe se lhe compara; pode dizer-se que é até mesmo funesto. Tal é a verdade que a

natureza lhe escondeu. A Natureza compensou, porém, a mulher dotando-a de um poder de imaginação que ultrapassa de muito tudo quanto possa sair de um cérebro masculino, e com uma solicitude tal que a língua e tudo o mais contribuem para reforçar esta poderosa faculdade. Até mesmo, quando a gente vê na mulher o con-

trário de uma inspiratriz, quando a gente vê na mulher uma causa de perdição, seja porque com

ela tivesse entrado o pecado no mundo, seja porque na infidelidade dela esteja a causa de toda a desolação, não deixamos de lhe dar testemunho

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de galantaria com a nossa maneira de pc-nsar. lP, que assim julgamos a mulher capaz de se tornar infinitamente mais culpada ou culpável do que o homem, e se tal dissermos fazemos-lhe uma estranha declaração. Ah! ah! ah! A verdade é muito diferente. Há uma interpretação secreta que a mulher não compreende; porque, no instante imediato, toda a gente concorda com a

doutrina jurídica pela qual o homem é que é responsável pelos actos da sua mulher. A mulher é assim condenada como nunca homem algum o

foi, porque este é apenas julgado de facto; não que o juizo que sobre ele recai seja mais suave, porque a sua vida não seria então ilusão total, mas acausa é que fica anulada, e deixa-se ao público, quer dizer, à vida, o cuidado de regular as custas. Num instante, tem ela que se servir de toda a astúcia imaginável; no instante seguinte, a gente ri-se de quem ela enganou, o que é uma

contradição; até mesmo sobre a mulher de Putifar pairam ainda algumas dúvidas, já que ela quis parecer ser seduzida. Assim é que a

mulher dispõe de uma possibilidade inacreditável de enganar, possibilidade tão grande que nenhum homem a poderia ter; mas a sua rea-

lidade está em proporção com a sua possibilidade, e o que de mais terrível existe na condição da mulher é a magia da ilusão em que ela vive feliz.

«Que Platão agradeça aos deuses por ter sido

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contemporâneo de Sócrates, invejo-o; que o faça por ter nascido grego, invejo-o também; mas quando dá graç as a Deus de ter nascido homem e não mulher, estou de alma ecoração, com ele. Se eu tivesse nascido mulher, e pudesse então compreender o que compreendo agora, que terrível seria isw para mim; se eu tivesse nascido mulher e se me visse por conseguinte incapaz de compreender a minha sorte, isso então é que seria muito mais terrível para mim!

«Sendo as coisas como são, segue-se que o homem está sempre fora de qualquer relação positiva com a mulher. Há entre a mulher e o homem esse hiato que faz a felicidade dela, porque o ignora, e que faz o tormento mortal dele, quando o descobre.

«A acção negativa da mulher pode levar o homem ao infinito; eis o que é preciso sempre repetir e repetir em honra da mulher, sem restrições; porque esta acção não provém essencialmente da natureza particular de cada mulher, isto é, do seu encanto, ou da duração do seu encanto. Esta influência vem de que a mulher aparece no momento oportuno, ou no momento em que a idealidade latente se descobre no ser do homem. Nã o é um momento, é um instante; por isso faz bem a mulher em desaparecer imediatamente. Porque, se o homem mantiver com ela uma relação positiva, entregar-se-á ao finito, não ao infinito, muito mais do que antes do

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encontro. 0 maior serviço que a mulher pode prestar ao homem é aparecer aos olhos dele no instante oportuno; mas isso não depende dela, é complacência que pertence só ao destino; à falta disso, o melhor que ela lhe pode fazer é ser-lhe infiel, e quanto mais depressa melhor. A primeira idealidade ajudará o homem a chegar a uma idealidade de potência na qual encontrará sempre um socorro absoluto; quanto à segunda, é idealidade que se paga com o preço dos maiores sofrimentos, sem dúvida, mas que compensa o homem com a máxima felicidade; certamente que ninguém deseja tal infelicidade antes de ela chegar a acontecer., mas exactamente por isso é que o acontecimento deve ser motivo de gratidão para a mulher; e como, do ponto de vista humano, nunca há perigo de ser grato em demasia, tudo se equilibra e fica na ordem. Infeliz homem, -coitado-, será aquele a quem a mulher permaneça sempre fiel! <Dou, pois, graças aos deuses de ter nascido homem e não mulher; em segundo lugar dou-lhes graças por me terem livrado da mulher que me jurasse fidelidade perpétua, de me terem livrado de estar constantemente a pensar nisso.

«Que singular invenção foi essa do casamento! Isto é tanto mais curioso porquanto o

.casamento tem de ser um acto imediato. No entanto, nenhuma deliberação é tão decisiva; por-

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que na vida o homem não conhecerá tirania mais ciumenta do que a do casamento. Um acto tão decisivo deve ser executado imediatamente. E todavia o casamento não é coisa simples; na sua complexidade oferece o maior equivoco possivel. A carne da tartaruga tem o gosto de todas as carnes; do mesmo modo, o casamento tem o gosto de tudo quanto há, e, como a tartaruga, anda muito devagar. Uma ligação amorosa é simples; mas o casamento! Será algo de pagão, de cristão, de divino, de mundano, de burguês, ou um pouco de tudo? Exprimirá a inexplicável erótica, as afiníd~ electi~ de almas que se admiram? Será dever, associação, convençã o, hábito, costume moral, praxe etnográfica, ou um

pouco de tudo isso? Exigirá que se encomende a música à banda municipal ou ao coro da paróquia, ou a ambos? Quem fará os discursos, e quem lavrará os registos com o nome dos noivos e das testemunhas? Será o sacerdote ou o funcionário? As cerimónias celebram-se com o expediente das pessoas apressadas ou com a demorada liturgia das solenidades? Como tudo isto é complexo! No entanto, cada marido imagina que ao contrair matrimónio escolhe um elemento simples desta complexidade, ou um tre- ,cho desta composição; e que o leva para embelezar e dignificar a sua vida conjugal! Meus caros amigos: Não é verdade que a melhor prenda de casamento que poderiamos dar aos

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noivos, seria o aviso, a advertência contra tantas faltas de atenção? Para exprimir uma ideia simples é por vezes indispensável gastar muitos esforços;,mas submeter o pensamento a esta complexidade para o reduzir à unidade; exprimir este conjunto de maneira tal que cada elemento tenha a sua representação exacta sem que nenhum seja omitido; isso é, na verdade, tão grande façanha que quem a realizar poderá ser tido por um homem superior. Ora é precisamente este o caso do marido; e ele realiza a façanha, não há dúvida; não diz ele que a exe-

cuta imediatamente? Se o @caaamento se realiza assim tão depressa, isso só pode ser em

obediência a uma imediatidade superior, que penetra através de toda a reflexão. Mas a respeito disto é que ninguém diz palavra. Nem vale a pena falar com um marido a tal respeito. Quando pela primeira vez se -comete uma inépcia, tem de se sofrer para sempre as consequências. A tolice foi ter-se deixado levar no embrulho, e o castigo é ver que já é tarde para remediar o

mal. Ás vezei5 os maridos têm sorte, tomam um ar patético, julgam ter cumprido algo de extraordinário com esse acto do,casamento; outras vezes ficam tristes e pensativos; e: outras vezesainda, fazendo da necessidade virtude, celebram o elogio do Himeneu; mas uma sintese que reúna os

nwmb,ra disjécta da concepção mais heterogénea

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que se possa ter da vida, isso é o que eu espero há muitos anos em vão.

«Apresentar-se como marido digno desse nome, é fazer troça; apresentar-se como sedutor, também é fazer troça; ver na mulher um estimulo de experiências para divertimento próprio é ainda e sempre fazer troça. Os três métodos implicam deferência do homem para com o sexo fraco, e os dois últimos tantas concessões, senão mais, do que o casamento. 0 sedutor pretende representar muito bem o seu papel enganando a mulher, mas o facto de enganar, de querer enganar, de se dar ao trabalho de enganar, é prova da dependênclia em que o homem se encontra em relação à mulher; e o mesmo direi quanto ao psicólogo, amador de aventuras sentimentais.

«Atitude positiva para com a mulher! Se tomarmos isso a sério, se pensarmos bem nisso, teremos de reflectir tanto que a própria reflexão nos inibirá de estabelecermos relação positiva ou negativa com a mulher. Ser um marido exemplar, mas às escondidas ir seduzindo -as mocinhas inexperientes, apresentar-se como um sedutor que encobre a fogosidade sentimental do romantismo, são situações reais e significativas; mas também aqui a contradição existe, porque a concessão do primeiro grau vem a

ser afastada no segundo. 0 homem só encontrará a sua verdadeira idealidade numa redu-

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plicação. Toda a existência imediata tem de ser aniquilada, e esta aniquilação tem de ser cons-

tantemente assegurada por uma falsa expressão. A mulher não é capaz de conceber esta reduplicação que faz do homem um ser que lhe es-

capa. Se ela pudesse encontrar o seu ser nesta reduplicação, já não seria possível pensar qualquer relação erótica com ela, e, como a sua natureza é manifesta, a relação erótica é perturbada de facto pela natureza do homem, que tira constantemente a sua vida do aniquilamento do elemento em que a mulher mantém a sua.

«Estarei a aconselhar o celibato, já que por alguma razão me chamo Eremita? De maneira nenhuma. Deixemo-nos de celas e de claustros. Este viver solitário ou solteiro não é mais do que uma expressão do imediato aos olhos do espírito que se recusa a este gênero de expressão. Pouco importa que o dinheiro seja de ouro, de prata ou de papel; compreenderá o meu pensamento sómente quem nunca se servir de dinheiro falso. Aquele para quem a expressão imediata não passa de uma falsidade, esse, e só esse, estará mais seguro do que se for viver para a cela; será sempre um eremita, ainda que ande de noite e de dia com as outras pessoas nos transportes públicos».

Terminado o discurso de Vítor, logo o alfaiate se levantou de repente, e, na sua precipitação,

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entornou uma garrafa que tinha diante de si. Começou assim:

<Falais muito bem, meus caros amigos; falais muito bem. Quanto mais vos ouço falar, mais vos compreendo, quanto mais vos compreendo mais me persuado de que sois uns conjurados. Saúdo-vos, pois. Saúdo-vos como conjurados que sois, o que de longe se compreende.

«Falais, muito bem. Mas que sabeis vós do que falais? De que vale a vossa magra teoria que dizeis fundada na vossa experiência? De que vale a vossa experiência de pacotilha que ostentais como grande teoria? Vós sois afinal uns fiéis a partir do instante em que vos enle-ais nas malhas do amor.

«Ao,contrário de vós, eu conheço a mulher; conheço a mulher pelo seu lado fraco; quer dizer que a conheç o. No meu estudo, não em-

contro temor nem terror, porque não recuo perante meio algum de me assegurar do que com-

preendi; porque sou um frenético; é preciso ser frenético para compreender a mulher; quem não é frenético acaba por o ser se quíser compreender a mulher. 0 salteador tem o seu retiro perto das grandes estradas do tráfego, o corsário tem a sua caverna junto das ondas que bramem; eu tenho os meus armazéns no meio da multidão buliçosa e sei que ele exerce sobre a mulher uma

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sedução irresistivel como o monte de Vénus a

exerce sobre o homem. No salão de modas é que a gente aprende a conhecer a mulher, de maneira completa e prática, sem precisar de recorrer às vossas teorias de oradores fluentes. Se a moda tivesse apenas por fim preparar a mulher paxa, na ardência do desejo, despir os véus que lhe envolvem o pudor, a moda teria já utilidade: mas a moda tem uma função muito diferente. A moda não serve de cortina que cobre e descobre a nua voluptuosidade, que devassa a lubricidade e a luxúria; a moda é uma hipócrita exposição da indecência, autorizada porque re%peita as conveniências. Na Prússia pagã, a rapariga núbil usava um guizo cujo tilintar servia de sinal para os homens; assim também a moda que dá nos olhos equivale à campainha que fala sempre aos ouvidos, não digo dos vulgares devassos, mas dos apreciadores de requintes que vão perseguindo as mulheres. Irá quem julgue que -a felicidade é feminina; sim, a felicidade é como a moda, é mutante e inconsciente; mas a felicidade é de sinal positivo, porque ao

menos é generosa e dadivosa; por isso, a felicidade não é mulher. A moda é que é mulher, porque a moda é a inconstância na insignificância, sequência e consequência que vai da extravagância até à folia. Vale mais uma hora de observação, na minha loja de modas, do que dias, meses e anos de estudo em outros lugares,

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para quem deseje conhecer a mulher. Digo na minha loja de modas, porque é a única que vale a pena frequentar nesta capital; não porque eu faça concorrência desleal aos meus colegas de profissão; mas porque ninguém teve a audácia de rivalizar comigo., que me dediquei totalmente e que totalmente me sacrifico para ser o sumo sacerdote no culto desse ídolo. Não há alta roda, não há ambiente mundano, onde o meu nome não passe de lábios para lábios; não há reunião de sociedade burguesa onde o meu nome, uma vez proferido, como o do soberano, não excite respeito e admiração; não há vestido desenhado e executado na minha casa, que, por mais extravagante que pareça, não faça ondas de admiração quando entra numa sala; não há mulher elegante e distinta que se atreva a passar diante da minha loja sem que imediatamente ceda à tentação de entrar; não há rapariga da média burguesia que não olhe para as montras da minha loja sem pensar e suspirar: «Ah, se eu

tivesse dinheiro!» Também, se ela entrasse não sofreria grande decepção; é que eu não engano ninguém; forneço a baixos preços os vestidos mais finos e mais sumptuosos, e faço até muitos abatimentos, porque não me move apenas a ambição financeira; aliás, ao fim de cada ano, obtenho lucros avultados. Sim, eu quero ganhar, quero; seria capaz de perder todo o meu dinheiro neste jogo, de o gastar todo na -compra

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dos órgãos da moda, para ganhar a partida. Sinto unia volúpia sem igual a manipular os tecidos magníficos, a desenhar o corte, a encaminhar as tesouras pelas linhas directoras da elegância, enfim, a imaginar um vestido capaz de sugerir a folia da última moda, para o vender pelo preço mais barato que puder.

«Julgais talvez que a mulher deseja estar na moda apenas de vez em quando, no começo das estações, ou nos dias solenes? Enganais-vos. A mulher quer sempre estar na moda, constantemente; não pensa em outra coisa. A mulher é muito espirituosa, mas emprega tão mal o seu espírito como o filho pródigo emprega o dinheiro. A mulher é muito reflexiva, é dotada de incrível dose de reflexão; nada há, por mais sagrado que lhe pareça, que não reduza imediatamente às dimensões do mero enfeite de que a moda é a expressão por excelência; e não devemos estranhar que ela assim pense, porque a moda é para ela sagrada. Também não há nada, por mais fútil que pareça, que a mulher não saiba reduzir a simples atavio de que a

moda é a expr~o mais frívola; e no vestuário dela não há nada, nem um pormenor sequer, laço ou botão que seja, que ela não re-

lacione com a mod& A mulher veste-se à moda para atrair a atenção das outras mulheres, e sabe ver, num lance de olhos, se está ou não a ser observada e admirada. Até mesmo para

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ir ao meu salão, onde vai tratar de modas, não deixa de se vestir à moda. 0 passeio, o desporto e a praia exigem trajos especiais; há também um modo especial de trajar para ir à loja de modas, pelo qual se distinguem as mulheres modernas. 0 vestido para esta oportunidade não ‘tem a indecência do roupão em que a mulher gosta de ser surpreendida de manhã; no pijama ou no penteador a mulher concilia, de modo ex-

citante, a garridice com o pudor. Mas o trajo de rigor para ir ter com o alfaiate é propositadamente devasso, fácil de despir, fino e leve; é assim exactamente porque não excita nem confunde os que trabalham na minha profissão; diante da mulher que aparece vestida desse modo, o alfaiate encontra-se numa situação muito diferente da do cavaleiro galanteador. A mulher usa então da sua garridice a mostrar-se a um homem ao qual, pelo mister que exerce, é ve-

dado pretender qualquer favor ou gratidão da delicada senhora. Contenta-se ele com gozar subtilmente do que ela lhe vai confiando com profusão como que sem reparar ou sem imaginar se-

quer que até mesmo diante do alfaiate representa o seu papel de querendeira. 0 cómico reside agora no natural esquecimento da dignidade feminina perante a mais alta preocupação da vida mundana, e a senhora da alta roda logo o revelaria num sorriso de compaixão ou de desprezo para com o alfaiate que se atrevesse a proferir

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a primeira frase do sedutor. Quando um visitante a surpreende vestida com um roupão, logo a mulher se recata por um reflexo de pudor; no gabinete de provas da loja de modas, já ela se despe com extrema desenvoltura, porque -a sua feminilidade não cai perante os olhos de um homem, mas apenas na fmnte de um costureiro. A cmnb~ declina gravemente e deixa ver um pouco de nudez; se eu interpretar mal o que isso significa e o que a freguesa deseja, lá se vai a minha reputação pela água abaixo. Tenho que respeitar a mulher, deixando-lhe fazer o que muito bem quiser. Vejo-a que aperta a cinta, bamboleia as ancas, estremece as nádegas, mira-se e remira-se no espelho, repara no meu olhar de admiração, murmura uma frase, dá um pulinho, estende vagarosamente a perna, e deixa-se afundar na poltrona. Eu apresento-lhe logo um frasco de sais, ou num gesto de adoração refresco-a com perfume, ela afasta-me com mão negligente, perde o lenço e, sem mais, deixa cair o braço, indolentemente; inelino-nie com todo o respeito, levanto o lenço caldo, entrego-lho, recebo de prémio um aceno simpático e um olhar protector. 2 assim que se porta uma senhora da moda na minha loja de alfaiataria. Diógenes viu uma mulher rezar em posição um

tanto ou quanto inconveniente; ignoro se foi perturbá-la para lhe perguntar se não sabia que os deuses podiam ver-lhe as costas; o que sei

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é que se dissesse de joelhos a Sua Excelência: ,cas pregas do seu vestido já não estão na moda», mortificá-la-ia muito mais do que se lhe demonstrasse que ofendera os deuses. Ai da simples mulher de limpeza, ai da serviçal mais modesta, que não compreenda tudo isto. Pro dÁi immorta”, que vale uma mulher quando não está na

moda? Per deos ob~m, que vale uma mulher quando segue a moda?

«Quereis saber se é verdade? Fazei a expe- ,riência. Quando a amada, ébria de felicidade, se atira ao pescoço do amante, e num abraço lhe diz com voz melíflua: «Sou tua para sempre!» responde~lhe ele: «Querida amiguinha, o teu penteado está muito fora de moda! » Os homens estão longe de pensar nestes assuntos, masaquele que tiver esta ciência e se resolver a aplicá-la será o sedutor mais perigoso que possa haver no pais. Ignoro o que sejam as horas de felicidade que o

amante frui em companhia da amada, antes do casamento; mas também ele ignora as horas de voluptuosidade que ela conhece na minha loja de modas. Sem a minha.autorização e sem a minha sanção, um casamento é um acto nulo, se não for mero negócio de grande vulgaridade. Imaginai os noivos no instante em que vão já a caminho do altar; a noiva progride de consciência tranquila e feliz, porque o seu vestido foi submetido a vá rias provas na minha casa, onde o com-

prou. Más eu procipito-me e digo: «Que pena,

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minha senhora! A sua coroa de flores de laranjeira não está bem, Se pudesse ainda ajeitá-la ... »

A,cerimónia é logo suspensa, se não adiada. Os homens ignoram a arte da alta -costura, e ignoram também os privilégios do alfaiate. Para limitar a reflexão da mulher é indispensável uma grande dose de reflexão no homem; mas de tal reflexão só será capaz o homem que se dedique inteiramente a isso e que para isso possua aptidão. Feliz, pois, o homem que for capaz de conservara sua independência perante a mu-

lher; saiba ele que a mulher não lhe pertence, como não pertence a outro homem qualquer; a mulher está dominada por esse fantasma que surgiu do monstruoso comércio da reflexão femini na consigo própria: a moda. A mulher deveria ser obrigada a jurar pela moda, para que os

seus juramentos pudessem ser tidos por verdadeiros; porque a moda é objecto constante dos seus pensamentos, e tema que está sempre em re-

lação com todos os outros assuntos de que se ocupe.

«Da minha loja de modas saiu e espalhou-se na alta rodaa boa notícia de que a moda impõe o uso de um certo modelo de chapéu para ir à igreja, e que este modelo difere um pouco conforme a devoção for de manhã ou de tarde. Quando os sinos tocam, a equipagem pára diante da minha porta. Sua Excelência desce, porque é notório que ninguém confecciona cha-

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péus como os que vendo na minha loja; apresso-me a ir de encontro a Sua Excelência e faço várias reverências; acompanho-a ao gabinete de provas, vou dando-lhe a escolher e experimentar vários chapéus, vou-os ajustando de elegante maneira, o que ela deixa fazer com a máxima tolerância. Foi, enfim, escolhido um; mais uma prova na frente do espelho; a freguesa está contente; rápido, como mensageiro dos deuses, adianto-me, abro a porta do gabinete, inclino-me, vou até à porta do estabelecimento, ponho a mão sobre o peito como um escravo oriental e, animado pela distinção do cumprimento que recebo, tenho a ousadia de lhe atirar de longe um beijo pelo qual significo a minha fervorosa admiração. A senhora vai já subir para a carruagem quando repara que deixa esquecido no gabinete o livro de orações. Vou buscá-lo e depois entrego-lho pela janela do carro. Aproveito o momento paxa lhe lembrar que não deixe de inclinar o chapéu um

poucochinho à direita, e de alterar o penteado se for conveniente. M-Ia que segue para a igreja; mas já vai edificada.

«Julgais talvez que só as mulheres ricas e as que frequentam a alta sociedade prestam assim as suas homenagens à moda? Enganai-vos! A moda tem o seu culto até mesmo entre as minhas modestas costureiras; eu não fujo a despesas para que elas se apresentem bem vestidas, porque os dogmas da moda devem ser prega-

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dos à custa do exemplo dado por quem trabalha no meu salão. As minhas operárias formam inn coro de sem!-loucas ao qual presido, como sumo sacerdote, dando um exemplo brilhante; procedo com tal prodigalidade na intenção de tornar todas as mulheres ridiculas por via da moda. Sempre que um sedutor me vem dizer que não há virtude feminina que não se venda, - a questão é de preço, -não dou crédito às palavras dele; mas em compensação creio que todas as mulheres acabam por ser fanatizadas por esta auto-reflexão da moda, por esta contagiosa folia que perverte muito mais o sexo feminino do que todos os astuciosos processos do sedutor. Fiz muitas vezes a experiência. Quando pessoalmente não logro êxito, sirvo-me de outras escravas da moda que pertencem ao mesmo meio social, para obter vitória; porque, se há quem excite os ratos a exterminarem-se uns aos outros, eu ensino as fanáticas da moda a morderem-se umas às outras, como a tarântula. 0 jogo é, porém, mais sério, quando o homem aparece de permeio.

«Não s& se sirvo a Deus se ao Diabo, mas tenho razão, quero ter razão, quero tê-la en-

quanto possuir dinheiro, quero tê-la até que o

sangue jorre dos meus dedos. Costumam os fisiologistas desenhar o corpo da mulher com a deformação que resulta de uso nefasto do espartilho, e, ao lado, para comparação, desenham a imagem normal da formosura feminina. 0 físio-

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logista tem razão; mas de que lhe vale ter razão, se contra ele está a realidade: todas as mulheres usam espartilho. Imagina!, na sua miserável enfermidade, a excentricidade desta doença que é

a moda, analisai esta reflexão traiçoeira que a consome, pinta! este pudor feminino ainda mais inconsciente de si próprio do que tudo o mais; faze! tudo isso como deve ser: - tereis julgado a mulher e, efectivamente, tereis lavrado uma

sentença terrível. Se alguma vez eu descobrir uma rapariga cuja modéstia humilde não tenha sido ainda corrompida pela indecente frequentação da sociedade feminina, farei o possível por que ela caia. Atrai-la-ei às minhas redes, e, depois, de presa, levá-la-ei ao lugar do sacrifício, quero dizer, à minha loja de modas. Na atitude mais desdenhosa que possa tomar a minha soberba desenvoltura, dispo-a; ela fica esmagada de terror; mas um riso que se ouve na sala ao lado, onde trabalham as minhas costureiras embuçadas, aniquila-a de vez. Quando ela parecer mais louca do que uma internada em hospital de alienados, ou ainda mais extravagante, a ponto de nem sequer ser admitida no hospital, então poderá sair da minha casa; está encantada; porque está encantada, nenhum homem, nenhum deus, conseguirá agora atemorizá-la; é que ela agora... está na moda.

«Compreendeis-me, agora? Compreendeis porque é que vos chamo conjurados, mas ainda

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não iniciados? Compreendeis agora a minha concepção da mulher? Nesta vida, tudo é questão de moda: o temor de Deus, o amor, as crinolinas, os brincos nas orelhas e no nariz. Quero, pois, com todas as minhas forças, correr em auxílio do nobre gênio cujo intento é o de rir do mais ridículo de todos os animais. Se a mulher tudo reduziu e referiu à moda, quero eu prostituí-Ia graças à moda, como ela merece; não tenho tréguas, eu, alfaiate; a minha alma ferve só de pensar na minha tarefa; quero que a mulher acabe por se mostrar de brincos na ponta do nariz. Não procureis, pois, objecto digno da vossa paixão; renunciai ao amor como quem foge da vizinhança mais perigosa; a vossa aman-

te acabaria por querer passear convosco, para es-

trear os brincos novos no nariz.»

Depois, coube a vez a Johannes o Sedutor, que falou assim:

«Honrados companheiros, acaso estareis a sofrer os tormentos de Satanás? Falais como bebeis; os vossos olhos estão vermelhos, não por causa do vinho, mas por causa das lágrimas. Um amante infeliz goza uma situação muito triste na vida, e assim, meus amigos, quase me dais também vontade de chorar. Hinc Mãe l~imm. Quanto a mim, porém, sinto-me um amante feliz, e todo o meu desejo é continuar a ser feliz. Será

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i~ talvez uma das concessões que Vitor teme tanto? E porque não? Eu confesso a minha concessão. Tirar a rolha a esta garrafa de «champagne» é também uma concessão, e agora que já ~u a bebeal-co~. Agarrafa já está vazia; acabou-se a concessão. 0 mesmo com as raparigas. Quando um amante infeliz paga por preço exagerado um simples beijo, isso prova, a meus olhos, sómente que ele não sabe pegar nem largar. Eu nunca pago caro de mais um beijo; deixo esse prejuizo às beldades femininas. Que significa um beijo? Quanto a mim é um argumentium ad homkwni, - certamente de todos o mais belo, mais agradável, mais persuasivo, mais decisivo; e vista que todas, as mulheres, pelo menos uma vez na vida, recorrem ingènuamente a ~ argumento, porque é que eu não me deixaria convencer? 0 nosso mancebo quer submeter o

beijo à sua reflexão. Ele que compre um «beijo de pastelaria.» e entregue-se à meditação. Eu não medito, eu quero gozar. Deixemo-nos de conve~. Lá está a velha canção que nos diz: «os lábios entendem-se directamente, e o beijo mal se vê» (1). Meter a reflexão desta circunstância é impertinência e insensatez. Quem,aos vinte anos, não sabe que há um imperativo categórico: ~!, é uma pewoa ridicula. Quem não

(’) Es ist kaum zu schen, es ist nur fur L@ppen, die genau sich versteben.

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cumpre esse dever, é um puritano ou um doente. Vós não estais nesse caso; vós sois amantes infelizes, e a prova é que quereis reformar a mulher. Que os deuses nos protejam dos reformadores! A mulher agrada-me tal qual é, absolutamente tal como é. Até mesmo a facécia, que é a categoria de Constantino, implica um desejo s@-, creto. Eu, porém, pratico o galanteio. Porque não? A galantaria não custa nada, com ela não se perde e muito se pode ganhar; a galantaria é a condição indispensável do prazer erótico.,n o código secreto, entre o homem e a mulher, da volúpia sensual. ]@ em suma, tal e qual como o amor: uma linguagem, porque é feita de sons, -uma

linguagem natural de desejos encobertos que incessantemente se alternam nas reciprocas funções. Compreendo perfeitamente que um amante infeliz esteja tão falhado de galantaria que queira converter o seu débito em papel de crédito para a eternidade. Compreendo e não admito, porque, para mim, a mulher tem um valor inexcedível. É o que eu digo a cada uma delas, e digo a verdade, uma verdade da qual só eu é que não sou vitima. Não vejo que, na

minha tabela de preços, a mulher perdida tenha menos valor do que o homem. Não que eu me dedique a colher flores murchas, porque deixo esse cuidado aos homens casados que enganam as esposas nos dias de Carnaval. Que Eduardo, por exemplo, m entregue ao cuidado de reflectir,

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volte a interessar-se novamente por Cordélia, ou abafe na sua alma o fogo da paixão, isso é lá com ele; não tenho que me imiscuir nos assuntos que não me dizem respeito. 0 que eu pensava da mulher era exactamente o que lhe dizia no

momento oportuno; e foi ela, na verdade, quem me convenceu, sim, que me convenceu, de que a nrinha galantaria era sincera e adequada. Conw_4,o. C~si. Se nova Cordélia me aparecer na vida, repetirei com ela a façanha. Mas vós estais conjurados pela infelicidade no amor; estais mais enganados do que raparigas ingénuas; e estais assim, apesar das vossas disposições propícias. 0 sal da vida é a decisão, a decisão a servir o desejo. 0 nosso mancebo nunca se decidirá. Vitor é um sonhador. Constantino pagou caro o que sabe. 0 alfaiate é um frenético. Qual o vosso valor? Todos junto-s, deixarícis escapar por entre os dedos a rapariga menos astuciosa. Quem tiver bastante fantasia para idealizar, bastante gosto para alcançar o solene concerto do prazer, bastante razão para romper, e romper absolutamente como na morte, bastante frenesi para querer gozar ainda; esse será o favorito das mulheres e dos deuses.

«Que importância tem, para o caso, um discurso? Eu não quero fazer proselitismo. Não seria, aliás, esta a ocasião, como não seria este o lugar. Gosto do vinho e da abundância dos festins; são coisas óptimas, sem dúvida; mas é

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ao lado de uma rapariga bonita que eu me sinto bem. Apresento ao Constantino os meus agradecimentos pelo banquete, pelo vinho e pela magnificência dos manjares; quanto a<xs discursos, com franqueza, direi que deixaram muito a desejar. Visto isso, e para que esta nossa festa não acabe mal, vou falar em louvor da mulher.

«Meus caros amigos: Para falar dignamente da divindade, é preciso estar entusiasmado, inspirado pelo sopro ou espírito divino, e dele receber o que se vai comunicar. Análogo acontece quando se fala da mulher. A mulher não é mera ideia que surgisse do cérebro do homem, sonho em pleno dia, fantasia intelectual, tema para discussão pro et C~71a. Não; o que se sabe a respeito da mulher foi a mulher que o ensinou; por isso quem mais sabe da mulher équem teve mais amantes que o instruíssem. Ã primeira vez é-se um aprendiz; à segunda, já -se está mais seguro da sua pessoa, como

quem, nas discussões dos doutores, aproveita as amabilidades do primeiro adversário para as

voltar contra o seguinte. Apesar destas concessões, nada fica perdido. Porque, se o beijo é um jogo e o abraço uma façanha que acabam como tudo tem de acabar, na escola das mulheres nunca se chega a dar todo o programa, nem a doutrina se resume numa proposição matemática, sempre idêntica, através das variações

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literárias dos métodos de demonstração. n que tais métodos são bons para as matemáticas e para os fantasmas, não para o amor e para a

mulher. A verdade é que o sexo fraco, longe de ser inferior, é pelo contrário, o mais perfeito. Darei todavia ao meu discurso a forma de um mito, e, defendendo o partido da mulher que ofendeste de tão injusto modo, dar-me-ei por feliz se as minhas palavras representarem o pensamento das vossas almas quando chegardes a ver a aparição da volúpia, que fugirá de vós, tal como os frutos se afastam de Tântalo, porque ofendeste a mulher. É que não há outro modo de ofender a mulher, senão o vosso, se bem que ela esteja acima de todas as injúrias, se bem que o castigo vingue quem teve audácia tão impiedosa. Não quero melindrar ninguém. Mas as

vossas ideias são meras invenções, calúnias próprias de homens casados, não as minhas, porque eu honro a mulher muito mais do que um marido seria capaz de a venerar.

«No princípio havia só um sexo; dizem os gregos que era o sexo masculino. Dotado de faculdades magníficas, era uma criatura admirável em que se reviam os deuses; os dons eram tão grandes que aconteceu aos deuses o mesmo que por vezes acontece aos poetas que gastaram todas as forças na criação de uma obra: tiveram inveja do homem. 0 pior é que tiveram receio dele; temeram que ele não estivesse dis-

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posto a aceitar de bom grado o jugo divino; tiveram medo, embora sem razão para isso, que o homem chegasse a abalar o céu. Haviam feito surgir uma força nova que lhes parecia estar a ser indomável. A inquietação e a perplexidade dominavam então no concílio dos deuses. Mostraram-se primeiro de uma generosidade pródiga ao criarem o homem; mas agora tinham de recorrer aos meios mais violentos para legítima defesa. Os deuses pensavam que o seu poderio estava em perigo, e que não podiam voltar atrás, como um poeta que renegue a sua obra. 0 homem já não podia ser dominado pela força, porque se o pudesse ser, os deuses teriam resolvido Meilmente o problema; e era isso precisamente o que lhes causava desespero. Era preciso cativá-lo pela fraqueza, por um poder mais fraco e mais forte do que ele, capaz de o

subjugar. Que ~r espantoso e que podtr. contraditório não havia de ser! A necessidade também ensina os deuses a transcenderem os limites do engenho. Pensaram, meditaram, en-

contraram. A nova potência foi a mulher, maravilha da criação, que aos próprios olhos dos deus% era superior ao homem; e os deuses, ingénuos e contentes, mútuamente se felicitaram pela nova invenção. Que mais poderei eu

dizer em louvor da mulher? A mulher foi tida por capaz de fazer o que parecia impossível aos

deuses; além disso, a verdade é que desempe-

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nhou admiràvelmente o seu papel; que maxavilha não deve ser a mulher para conseguir os seus fins! Tal foi a astúcia dos deuses. A encantadora foi formada e dotada de uma natureza enganadora; mal encantou o homem, logo se transformou, enleando-o entre todas as dificuldades do mundo finito; era isso mesmo o que os deuses queriam. Que seria possível imaginar de mais fino, de mais atraente, de mais arrebatante, do que este subterfúgio dos deuses que querem salvaguardax um império, do que este processo para seduzir o homem? Tal é a rea-

lidade; a mulher é a sedução mais poderosa do céu e da terra. Comparado com ela, o homem é um ente muito imperfeito.

« A astúcia dos deuses veio a dar resultado. Nem sempre, porém, com êxito igual. Em todos os

fempos surgiram homens que estiveram atentos à fraude. Uns ficaram isolados; outros observavam a graciosidade da mulher, e, mais do que os primeiros, viram de perto a armadilha. A ~ chamo eu erótícw, e conto-me no número deles; os homens chamam-lhes sedutores, e as mulheres não lhes dão classificação especial, porque, para elas, representam o inefável. Os eróticos são os homens felizes. Vivem com maior magnificência do que os deuses, porque se alimentam de um manjar muito mais delicioso do que a ambrosia, e bebem um licor mais inebriante do que o néctar; nutrem-se do que

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é divino, porque vão comendo o astucioso pensamento dos deuses que os queriam seduzir; gozam o delicioso sabor da Nca, e entre prazeres inigualáveis. vão levando uma vida de felicidade, sem que passem além da isca, sem que nunca mordam no anzol. Os outros homens correm para o engodo, e devoram tudo, à maneira do aldeão que come salada de pepinos, e ficam presos pela boca. Só o erótico é dotado de delicadeza para fruir o gosto da isca e atribuir-lhe um valor infinito. A mulher distingue-o e estima-o; entre ambos se firma um entendimento secreto. Mas o erótico sabe que lhe cumpre guardar o

segredo, se não quiser sofrer, mais cedo ou maisi tarde, a vingança terrível dos deuses.

«Que nada se pode imaginar de mais maravilhoso, de mais encantador, de mais sedutor do que a mulher, os deuses o afirmaram e da afirmação nos deram garantia. 0 próprio embaraço que os obrigou a dobrar de engenho é mais uma prova de que eles jogaram tudo quando removeram o céu e a terra para formar a mulher.

Deixemos o mito. A !deia do homem responde à sua realidade. Podemos imaginar um

só homem, e por essa imagem, representarmo-nos -a humanidade. A ideia de mulher é, pelo contrário, uma noção geral que na realidade não coincide com nenhuma espécie, com nenhum in-

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divíduo. A mulher nem sequer é um ente da mesma condição que o homem; será talvez uma parte deste, mas é mais perfeita do que ele. Admitamos que os deuses hajam extraido uma paxte do homem, enquanto ele dormia um sono profundo; ou admitamos ainda que o dividiram, e que a mulher seja a sua metade; num caso como noutro, foi sempre o homem quem ficou dividido. A mulher não está, portanto, em relação de igualdade com o homem perfeito; a relação de igualdade só aparece depois da divisão. A mu-

lher é um engano, mas só para o homem tal como se encontra nesta segunda fase; a mulher é um engano só para o homem que se deixa enganar. A mulher é o finito; mas no primeiro momento da sua existência, é o finito elevado à potência de um infinito enganador, -a infinita ilusão humana e divina. Nesta ilusão não há mentira; mas se o homem der um passo em falso, fica imediatamente enleado. Ela é o finito, portanto o

multiplicável, portanto um ente colectivo: não há mulher, há mulheres. Mas isto é o que só o erótico parece capaz de compreender; por isso é ele capaz de amar muitas mulheres sem se deixar iludir; por isso ele não vai além da vo- lúpia com que os deuses astuciosos o queriam enganar. A ideia de mulher não se encerra, pois, numa fórmula qualquer; é um infinito de coisas finitas. Quem quiser pensar essa ideia, fazê-la passar por todas as categorias lógicas, ver-s,-,á

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na situação de quem,mergulha os seus olhares profundos num oceano de fantasmagorias em

perpétua formação, ou na situação de quem se

perde a contemplar as ondas sobre a espuma das quais aparecem as sereias para se rirem constantemente do ingénuo. A ideia da mulher, para o pensador, não é mais do que uma oficina com a categoria do possível, e para o erótico, a categoria do possível é uma fonte inesgotável de fantasia. ,«Vou agora dizer-vos como é que os deuses fizeram a mulher: um ser fluido, subtil, etéreo como as exalações de uma noite de Verão, mas

que se reveste de formas tão consistentes e palpáveis como a de um fruto amadurecido; leve como a andorinha, consegue transportar o peso do imenso desejo do mundo; na sua levitação

vence a gravidade, porque todo o segredo das JEorças, que a animam se encontra no centro invisível da relação negativa, que ela tem consigo própria; altiva na sua estatura de desenho firme, consegue dar nas vistas pela natural ondulação da beleza; perfeita, pela frescura, parece todavia que acabou de sair da gênese do mundo; de uma pureza celestial como a neve recentemente caída, e ao mesmo tempo calma e calmante, na coloração suave da epiderme; alegre como a palavra graciosa que faz esquecer os

cuidados, consolativa como a plena realização do desejo que ela tão bem apazigua como ex-

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cita. 0 homem, ao vê-la pela primeira vez, deve ter sido tomado de inexcedivel espanto: - espanto de ver a sua própria imagem, ou uma

imagem semelhante, ou uma imagem que lhe era familiar; espanto por ver a sua própria imagem reflectida no espelho da perfeição; espanto de ver o que nunca havia esperado de ver, aquilo de que talvez tivesse tido já um vago pressentimento; espanto de ver um elemento indíspens@,vel na sua vida, mas que lhe era, porém, dado como um enigma para a sua vida. P, precisamente esta contradição no espanto que vai despertar no homem o impulso erótico.0 espanto incita o homem a aproximar-se cada vez mais, a querer ver cada vez melhor, a olhar, a admirar, a contemplar; não lhe é dado, porém, familiarizar-se completamente com esta visão, não lhe é dado deixax de desejá-la, nunca poderá conseguir 4proximar-se dela quanto quer.

«Quando os deuses conseguiram imaginar a

essência desta forma, recearam não poder dar-lhe a existência. Depois de o conseguirem, por fim, recearam muito mais a própria mulher. Ela estava de tal maneira formosa, que não se atreveram a elogiá-la, com receio de que a inconfidência pusesse em perigo o plano da astúcia. Resolveram então coroar a obra. Concluíram a formosura, mas deixaram a mulher na ignorância da sua inocência, para que ela não soubesse a que fim a destinavam; para maior precaução,

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envolveram a figura atraente da mulher no mistério impenetrável do pudor. Ficava assim apta para o combate, ficava assim assegurada a vitória. A mulher era por natureza atraente; niais atraente se tornou com ser esquiva, evasiva, fugidia, porque todos os obstáculos servem para excitar o frenesi do homem. Os deuses rejubilavam, estavam radiantes de alegria. Não há no

mundo isca tão atraente como a mulher, nenhuma isca teni maior poder do que a inocência, nenhuma tentação é mais fascinante do que o pudor, nenhum engodo iguala o da mulher. Virgem, a mulher tudo ignora; no entanto, já no seu

pudor oculta um pressentimento da sua natureza; ela adivinha que está separada do homem, se-

parada pelo pudor, que é uma barreira mais poderosa do que a espada que foi posta entre Aladino e GuInar. 0 erótico, porém, procede como

Pyrane nas Metamorf0303 de Ovídio: admira e

contempla o mistério do pudor e pouco a pouco vai vendo confusamente que para além da ve-

dação, se configura na distância toda a volúpia do prazer.

«Tal é a tentação que a mulher representa. Os homens, não sabendo o que de melhor poderiam sacrificar aos deuses, oferendaram-lhes o mais delicioso de todos os manjares; assim a

mulher é fruto proibido para que se olha com avidez; os deuses ainda não descobriram termo de comparação com a delicia da inulher. Veino-

164 KIERKEGAARI)

-Ia perto de nós, muito próxima, na nossa presença; e no entanto, como está distante, infinitamente distante, separada de nós pelo pudor. É como se estivesse dentro de um esconderijo, que nós ignoramos, até que ela nos diga por onde é a entrada. Como é que tal acontece? Nem ela sabe como se denuncia; a vida encarrega-se de quebrar o segredo. Tal como a

criança que joga às escondidas e, sem dizer palavra, espreita com a cabeça fora do esconderijo, a imprudência da mulher é inexplicável, porque inconsciente; a mulher é sempre enigmática, tanto quando baixa pudicamente os

olhos como quando dardeja um olhar especial que não pode ser explicado por pensamentos e, muito menos, por palavras. E, no entanto, se há «olhares que são como punhaladas», como

poderemos explicá-los, se a linguagem deles nos é incompreensível? A mulher apresenta-se-nos quase sempre tranquila como a paz das horas da tarde, quando já nenhuma folha treme, tranquila como a consciência ingénua, ignorante e inocente; respira tranquilamente sem

que separe no ritmo da inspiração e da expiração; o sangue feircula com toda a regularidade, sem que pelas pulsações se conheça o alvoroço do coração; e no entanto o bomem. erótico, se souber auscultar como lhe convém, há-de perceber os ruídos ditirâmbicos do desejo, como acompanhamento inconsciente do pensamento

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da mulher. Despreocupada como o vento que passa, serena como a profundidade do mar, não deixa a mulher de ser removida por um desejo languescente, de um desejo inexplicado.

«Meus amigos: Tenho a alma deliquescente, de maneira que não articulo a expressão. Sei, porém, que também a minha vida corresponde a uma ideia, se bem que vós a não compreendeis. Sim, também eu revelei o segredo da vida; também eu estou a servir, algo que é divino, e

certamente, o meu culto não é vão. Já que a mulher é um engano dos deuses, pode com ver-

dade dizer-se que a existência dela consiste em querer ser seduzida; e como ela não é uma ideia ou uma essência, há só uma conclusão a

tirar, que é a seguinte: o homem erótico quer amar o maior número possivel.

«Só o erótico é capaz de compreender a vo-

lúpía de gozar o engano sem ser enganado. Só a mulher conhece verdadeiramente a felicidade que consiste em se deixar seduzir. 0 que digo e sei, aprendi-o com a mulher, se bem que não tenha agora tempo para maiores explicações; digo e sei porque me mantenho ao serviço da ideia por um rompimento tão decisivo como a

morte; porque noivo e renúncia estão na mesma relação que masculino e feminino. Só a mulher é que o sabe, e sabe-o na sua relação com o

sedutor. Nenhum homem casado é sequer capaz de conceber tudo isto. A mulher nunca

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chega a confessar esta verdade ao marido. Casando aceita resignada o novo destino, adivinha que tal é a ordem natural das coisas, admite que não pode ser seduzida mais do que uma vez. No intimo, apesar de quanto diga, nunca a mulher volta o seu ódio contra o sedutor. n preciso ver que ele tenha efectivamente realizado acto de sedução, o que implica exprimir a respectiva ffiela. A falsa promessa de casamento, e outras mentiras tais, constituem esperteza e expedientes indignos da vida humana, e nada têm que ver com o problema da sedução. Sendo assim, não há -grande infelicidade para a mulher no facto de ser seduzida; pelo contrário, a felicidade dela está em ter essa sorte. Uma donzela, seduzida por arte superior, pode vir a ser uma esposa modelar. Se eu não tivesse as

aptidões necessárias para ser um sedutor, se bem que reconheça as minhas deficiências quando me considero como tal, e se quisesse casar-me, escolheria sem dúvida uma rapariga já seduzida, para não ter o trabalho de começar a seduzir minha mulher. É que o casamento também exprime uma

ideia, e essa ideia tem um significado completamente diferente em relação ao absoluto que a minha ideia exprime. 0 casamento nunca deveria ser considerado como um ponto de partida, nunca

deveria ser confundido com o princípio de uma

história de sedução. Enfim, de uma coisa estou certo: é de que para cada mulher há um sedu-

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tor possível, mas feliz só será aquela que o encontrar.

«0 casamento significa, pelo contrário, a vitória dos deuses sobre os homens. A mulher que foi uma vez seduzida vai continuar a sua vida ao lado de um marido; por vezes ela olha para trás, com o coração pleno de desejo; mas resigna-se com a sua sorte, até chegar o termo dos seus dias. Morre, sem que a sua morte se compare com a do homem; desvanece-se e dissolve-se no elemento inefável de que os deuses a formaram; desaparece como um sonho, como imagem efémera, como imagem de tempos passados. Que mais é a mulher do que um aonho, sonho que não deixa de ser a mais alta realidade? É assim que o homem erótico compreende a mulher, é assim que ele a conduz, é assim que ele se deixa conduzir por ela ao momento da sedução, momento que está já fora do tempo, que pertence já à pátria da ilusão, que é a pátria da mulher. Junto do marido, a mulher vive no tempo, pertence ao tempo, e o marido também.

«Natureza, maravilhosa!... Se não te admirasse de há muito, a mulher ensinar-me-ia a admi,rar-te, porque a mulher é venustidade do mundo! Tu, Natureza, fizeste da mulher um ser

esplêndido, mas a tua maior glória está em

nunca teres dado ao mundo duas mulheres iguais! No homem, o essencial é essencial, e,

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portanto, sempre o mesmo; na mulher o essencial é o acidental e, por conseguinte, a inesgotável diversidade. 0 reinado da mulher dura pouco, mas pouco dura também a dor que cai no esquecimento. Creio que nunca cheguei a observar a dor quando outra vez o mesmo voltava a ser-me oferecido. Há também a fealdade que pode surgir mais tarde; também a vi, também sei que ela existe; mas não é pelo aspecto da fealdade que a mulher é vista pelo seu sedutor».

Estavam proferidos os discursos. Constantino esboçou um sinal, e logo, com automatismo militar, os convidados se levantaram e dispunham-se a ir deixando a mesa. Constantino, com o

seu invisível bastão de comando, flexível como varinha mágica, deteve-os por um momento para lhes lembrar, em efémera reminiscência, o banquete e os prazeres já um pouco olvidados por causa da agitação que os discursos haviam provocado nos espíritos. Pouco a pouco se reconstituiu todo o aspecto da solenidade esquecida e

durante um instante pareceu ouvir-se o eco e a

ressonância das palavras cerimoniosas, Antes da despedida, quis Constantino saudar os convivas com mais um brinde, bebeu, e atirou com a taça para detrás das costas que foi quebrar-se contra a parede. Os convivas imitaram o exemplo; executaram o gesto simbólico com a solenidade de

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uma iniciação. Ficou assim satisfeito o desejo com o prazer de quebrar, prazer imperial que, nem por ser mais breve, deixa de ser mais libertador. Todo o prazer deve começar por uma libação, mas a libação que é seguida da quebra da taça que fica esquecida, como quem apaixonadamente se liberta de toda a lembrança, como quem se liberta da memória e da morte, essa é a libação que interessa os deuses subterrâneos. Tal acto significa um rompimento, e para tal é indispensável muita força, mais força do que para cortar um nó, cuja dificuldade excita e alimenta a paixão; mas paixão necessária para romper, cada qual tem de a adquirir por si pró prio. Exteriormente, o resultado é um só e mesmo; mas do ponto de vista da arte, há uma diferença tão vasta como o céu. Ver uma coisa acabar, terminar ou ver quebrá-la por acto livre, distinguir entre um acidente fortuito e uma decisão apaixonada; verificar que uma coisa chegou ao fim como a lição do mestre escola ou que cessou pela operação cesariana do prazer; reconhecer se se trata de uma vulgaridade ao alcance de toda a gente ou de um segredo completamente insuspeitado; -

entre tudo isso há grande diferença.

0 gesto do Constantino foi simbólico e ao

mesmo tempo decisivo; porque, depois, as portas abriram-se de par em par. Tal como o temerário que bate às portas da morte se vê súbitamente na presença do génio da aniquilação,

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assim os convivas tiveram ocasião de ver a brigada dos demolidores prontos a desmontar e esfacelar tudo - um m~to ~ que imediatamente obrigou os hóspedes a abandonarem o local e que, em poucos segundos, transformara o quadro decorativo em desolado montão de ruínas.

Uma carruagem já estava preparada e pronta, diante da porta. Todos ocuparam lugares dentro dela, a convite de Constantino; e seguiram viagem, com os espíritos reanimados, porque o

afastarem-se do cenário destruido deu-lhes nova elasticidade mental. Depois de ter percorrido talvez mais de milha e meia, a carruagem parou; Constantino despediu-se dos convidados e disse-lhes que tinham à sua disposição cinco carruagens diferentes; cada qual poderia seguir para onde lheaprouvesse, só ou acompanhado, inteiramente à vontade. Assim o foguete que, sob o impulso da pólvora, sobe uns momentos, e depois dispersa-se aos quatro ventos.

Enquanto os cocheiros atrelavam os cavalos, os convivas foram passeando para longe da estrada. Já a brisa matinal começava a refrescar a pele aquecida pela circulação do sangue; todos se entregavam ao prazer da nova sensação; as figuras deles e o grupo que formavam causaram-me uma impressão completamente estranha. É que no espectáculo da aurora a

sorrir aos campos, aos prados, e a todas as

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criaturas que, no repouso nocturno, recuperaram forças que lhes permitem ir ter com alegria de encontro ao sol, vemos a benéfica harmonia de todas as coisas; mas ver aquele grupo de noctívagos entre a saudável alegria da natureza que desperta para a vida era espectáculo que produzia uma impressão assaz penosa. Eles faziam lembrar espectros que a alba surpreende, demónios da terra que não podem encontrar fenda onde desapareçam, porque ela só é vis!vel nas trevas, infelizmente para os quais a

distinção entre noite e dia se desvaneceu pelo efeito uniformizador do sofrimento.-Uma senda havia que os conduziu por entre uma leira de terra até um jardim cercado, até um parque cujas árvores escondiam uma vila modesta que já se adivinhava ao longe. No fim do jardim, do lado do campo, as árvores alinhadas formavam como que uma barreira. Vendo que havia alguém, foram tomados de curiosidade; cercaram o retiro, ficaram alerta, escondidos também, com o

espírito atento, como agentes da policia que espiam o malfeitor antes de o prender. Agentes da policia, é uma maneira de dizer; porque também eles tinham um aspecto equívoco, e a policia bem poderia seguir-lhes a traça. Cada qual estava do seu pontoa observar, quando Vitor retroc,-, deu, voltou-se para o vizinho, e disse: <Tem graça! 12 o Dr. Guilherme, o assessor de justiça, com a mulher».

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Ficaram surpreendidos eles, que não o par ao abrigo da folhagem. Dois entes felizes, por demais entregues às doçuras da vida doméstica para que pensassem em observar, demasiado con-

fiantes para se julgarem objecto de curiosidade que não fosse a do sol, cujos raios ainda jovens iam ter voluptuosamente com eles através da folhagem, enquanto a brisa suave passava por entre os rarncs, enquanto todos os seres da vida campestre pareciam vigilantes para assegurarem a paz daquelas paragens. 0 casal feliz não foi surpreendido, nem se sentiu observado. Eram marido e mulher; via-se logo ao primeiro lance, por mau observador que se fosse. n que os aman-

tes nunca se sentem em segurança quando estão um ao lado do outro, ainda que nada, nada de e@iterior neste vasto mundo, nada de manifesto, nada de secreto, tenda leal ou traiçoeiramente a

perturbax-lhes a felicidade; parece haver sempre uma potência que quer separá-los, quebrar aquela felicidade, por mais fortemente que estejam abraçados; dir-se-ia que hão-de estar perpétuamente em guarda contra um inimigo, e que por isso nunca se podem sentir tranquilos e seguros. Não acontece o mesmo com os casados, como não acontecia com o nosso casal. Era difícil calcular havia quanto tempo estavam casados. Ela servia o chá, mostrando nos movimentos a se-

gurança que resulta de longo hábito; mas ela manifestava nos gestos tanta ingenuidade quase

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infantil que poderia parecer estar ainda nos primeiros tempos da vida conjugal, naquela fase em

que a mulher não sabe ainda se o casamento foi a brincar ou a sério, se é de distracção do jogo ou de trabalho, o papel que cabe a cada dona de casa. Talvez que estivesse casada havia um par de anos, mas ainda não estilizara os seus modos e os seus gestos; talvez que a desenvóltura procedesse de estarem no campo, mais à vontade, ou talvez esta manhã tivesse para eles a importância de um dia solene. Quem poderia saber? Entre a dúvida fica a indecisão, quando se trata de apreciar um ente que extrai da sua alma uma espontaneidade em que o tempo se vê impedido de deitar garra. Quando o sol de Verão brilha com o máximo esplendor, a gente pensa involuntàriamente em qualquer solenidade, porque não é habitual manter aspectos festivos na vida corrente; a gente julga que é a primeira vez, ou

uma das primeiras, que o sol se mostra assim, porque com o andar do tempo, deixa de nos aparecer cora esta beleza. Assim pensará aquele que só por uma vez viu espectáculo semelhante, ou

que o vê pela primeira vez; eu nunca tinha visto a mulher do assessor; talvez que o observador quotidiano deste quadro tenha outra opinião, se tiver olhos para ver. Mas isso é com o assessor. A amável hospedeira estava, pois, ocupada; es-

tava a deitar água fervente nas duas chávenas, para as aquecer; despejou-as, colocou-as sobre

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a bandeja, encheu-as de chá, deitou-lhes açúcar, e juntou-lhes as torradas; tudo ficou pronto; seria a sério ou a brincar? Não sois apreciadores de chá? Imaginai-vos, porém, no lugar do assessor. Eu imagino que tal bebida seria naquele momento a mais apetitosa de todas, nada seria mais de apetecer na presença da amável fisionomia da encantadora mulher. Entretida na sua missão, não tiveraainda ocasião de falar; mas agora que já podia quebrar o silêncio, oferecendo a chávena, disse: «Bebe enquanto está quente. Olha que a manhã está um pouco fria; o menos que posso fazer é interessar-me pela tua saúde».- «0 menos?» pergüntou o assessor com intencional laconismo. «Shn, ou o mais, ou tudo». 0 assessor fixou-a com um olhar perplexo e inquisitivo, e a mulher respondeu quando ele começou -a saborear a bebida: «Ontem interrompeste-me quando abordei o assunto, voltei a pensar e a repensar nele, mas principalmente agora, e já sabes a propósito de quê. Tenho a certeza de que se não fosses casado, terias chegado a uma

posição muito mais elevada na sociedade». A chávena estava ainda na bandeja; o assessor

bebeu o primeiro trago com visível sensação de conforto e bem estar; talvez manifestasse de propósito o prazer de estar assim na companhia da sua mulher amável. 2, o que eu penso. Ela, pelo contrário, parecia deliciada apenas porque ele estava a gostar dochá. 0 assessor colo-

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cou a chávena na beira da mesa, mais perto de si, tirou um cigarro e disse: «Queres fazer o favor de me dar um pouco de lume?» «Pois não», respondeu. E logo lhe apresentou uma brasa que segurava na tenaz. Ele acendeu o cigarro. Depois aproximou-me mais da mulher que se lhe encostou ao ombro; afastou a cara para o lado, a fim de expelir uma fumaça; voltou a olhar para a

mulher com um olhar cheio de abandono e a sorrir com ternura; mas a alegria deste sorriso estava perturbada por uma sombra de ironia melancólica; por fim, disse: «Acreditas a sério no que disseste, minha filha?» -,« Que queres tu dizer com isso?» Mas ele calou-se. 0 sorriso perdeu a sombra, ficou mais limpido, mas a voz ganhou um tom de seriedade. «Perdoo a tua tolice de há pouco, já que depressa a esqueceste, porque nem sempre falas com juízo. Que é que eu poderia fazer na alta sociedade, se tivesse ficado solteiro?» Ela pareceu de repente que ficava embaraçada, mas depressa se restabeleceu e, como verdadeira mulher que era, logo se dispersou em palavras. 0 assessor admirava-a e não quis interromper; mas, quando lhe pareceu que as palavras eram demais, começou a

tamborinar com a mão direita na mesa, e a trautear uma canção qualquer de que mal se percebiam as palavras; e tal como o desenho da trama, que aparece e desaparece, no trautear reaparecia o estribilho da canção: «Foi à mata

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cortar a lenha, o homem mais a mulher». Depois do discurso melodramático, que o assessor sublinhara com as estrofes da canção, depois das múltiplas explicações da esposa ao esposo, este proferiu a réplica. «Não ignoras que as nossas leis permitem que o marido bata na mulher; é pena que a lei seja omissa, e não esclareça em que casos». Ela riu da brincadeira, e aproveitou logo a ocasião para dizer: «Mas porque é que tu nunca me queres ouvir a sério quando te falo nestas coisas? Não me compreendes. Falo-te com franqueza, com sinceridade. Esta ideia é-me querida. Se tu não tivesses casado comigo, não pensaria nisso; mas como estamos casados, tenho de falar no que penso. Se verdadeiramente me

amas, ouve-me a sério e responde-me com a mesma franqueza». 4cIsso é o que não te posso prometer, porque nunca dizes coisa razoável. Se não queres que me ria, nem que te bata, deixa-me esquecer o assunto. Ou deixas de falar nisso, ou tenho de fazer-te calar de qualquer maneira. Bem vês que tudo isto é uma facécía; por isso tem várias maneiras de lhe dar resposta». Levantou--se, beijou a mulher na testa, deu-lhe o braço, e ambos seguiram por entre as sombras de uma alameda, até que desapareceram.

A rede ficou destroçada, 0 corpo de ocupação do inimigo, não tendo mais que fazer, retirou-se sem levar despojos. Ninguém ficara contente com o resultado, todos se vingavam com

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dizer palavras maliciosas. Regressaram à estrada, mas deram por falta de Vítor Eremita. Esse seguiu por outro caminho, ao longo do jardim, e foi ter à vivenda. A porta do salão dava para o relvado que estava aberto, assim como uma janela da qual se avistava o caminho. Alguma coisa lhe deveria ter atraído a atenção. Saltou pela janela para dentro de casa, e, quando saiu pelo mesmo processo, encontrou pela frente os

companheiros que o procuravam. Mostrou-lhes triunfantemente um papel e disse: «Tenho aqui um manuscrito do senhor Assessor. Já publiquei outros escritos dele; é justo que também dê à luz este que encontrei agora». Levou o manuscrito ao bolso, na intenção de o guardar, o que não conseguiu, porque sem que ele desse conta, consegui subtraír-lho.

Querem talvez saber quem sou eu? Ninguém mo pergunte. Se até agora ninguém tratou de se informax, já é tarde, porque o pior passo já foi dado. Aliás, não sou digno de que se interessem por mim; porque sou um ente insignificante, a personificação da insignificância, e uma

pergunta como essa apenas serve para me envergonhar. Eu sou a pura existência, um pouco menos do que nada. Eu sou a pura existência que passa despercebida no meio de qualquer companhia, porque da mesma maneira que o puro devir em cada instante vou ser e deixo de ser. Sou como o traço que na adição separa as par-

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celas da soma; quem há que se preocupe com

um traço? Não tenho poder algum por mim próprio, porque até a ideia de subtrair o manuscrito a Vítor não foi da minha iniciativa; esta ideia, graças à qual eu «surripiei» o manuscrito, como dizem os ladrões, foi também surripiada a Vítor. Ao publicar agora o manuscrito, continuo a ser um insignificante, porque o manuscrito não é meu, nem de Vítor, mais do assessor. Como editor, na minha nulidade não sou mais do que uma espécie de Nemé.%is sobre Vítor que se julgava, ele, autorizado a publicar esta obra.

1 N D I C E

Apresentação da obra ao leltor português

Advertência do Editor Antelóquio ... ... ... Colóquio ... ... ... ... Simpósio ... ... ... ...

Discurso do Mau~ Discurso de Constantino Discurso de Vítor Erenuta Discurso do Alfaíate Discurso de Johannes o Sedutor

COMPOSTO E IMPRESSO EM SETEMBRO DE 1972

NAS OFICINAS DE

GUIMARAES, EDITORES (IMPRENSA LUCAS & C.& L.da)

RUA DIARIO DE NOTICIAS, 61

L 1 6 B 0 A