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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    ANA PAULA COMIN DE CARVALHO

    O ESPAO DA DIFERENA NO BRASIL: ETNOGRAFIA DE POLTICAS PBLICAS DE RECONHECIMENTO TERRITORIAL E CULTURAL NEGRO NO SUL DO PAS.

    Porto Alegre 2008

  • ANA PAULA COMIN DE CARVALHO

    O ESPAO DA DIFERENA NO BRASIL: ETNOGRAFIA DE POLTICAS PBLICAS DE RECONHECIMENTO TERRITORIAL E CULTURAL NEGRO NO SUL DO PAS.

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da UFRGS, como um dos requisitos para a obteno do ttulo de Doutor em Antropologia Social.

    Orientador: Professor Doutor Carlos Alberto Steil

    Porto Alegre 2008

  • ANA PAULA COMIN DE CARVALHO

    O ESPAO DA DIFERENA NO BRASIL: ETNOGRAFIA DE POLTICAS PBLICAS DE RECONHECIMENTO TERRITORIAL E CULTURAL NEGRO NO SUL DO PAS.

    Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia como requisito parcial para obteno do grau de Doutora em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    COMISSO EXAMINADORA

    ________________________________________________

    Dr. Jos Mauricio Paiva Andion Arruti PUC/RJ

    ________________________________________________

    Dr. Rogrio Res Gonalves da Rosa UFPEL/Pelotas

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Sergio Baptista da Silva UFRGS __________________________________________________

    Prof. Dra. Denise Fagundes Jardim UFRGS

    Porto Alegre 2008

  • Para Nilson e Isadora

  • AGRADECIMENTOS

    Ao finalizar um trabalho com a dimenso de uma Tese de Doutorado, rememora-se o caminho percorrido e verifica-se que este foi resultado de um laborioso esforo para o qual contriburam diversas pessoas e instituies. A manifestao de minha gratido a eles requer, ao menos, a recompensa simblica de uma meno em forma de agradecimento.

    Ao CNPq, que me concedeu uma bolsa de estudos. Ao Programa de Ps Graduao em Antropologia Social da UFRGS, pela

    excelncia de seu quadro docente. Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Alberto Steil, por ter me instigado, orientado

    e confiado na minha capacidade intelectual. s Professoras Denise Fagundes Jardim e Claudia Lee Fonseca, pelo apoio

    dentro e fora da academia. s funcionrias do PPGAS, por serem solcitas sempre que necessrio. Aos colegas de Mestrado e Doutorado, em especial a Cristian Jobi Salaini, Vera

    Regina Rodrigues da Silva, Cntia Beatriz Muller, ao Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Jr, Luciana da Costa Job e ao Lucas Graeff, pela amizade e trocas intelectuais.

    Daisy de Macedo Barcellos, pela amizade, pelo carinho e apoio incondicional. Ao Rodrigo de Azevedo Weimer, pela parceria no relatrio antropolgico e

    histrico da Famlia Silva. A toda a equipe de pesquisa do Inventrio de Referncias Culturais sobre o

    Massacre de Porongos, pela parceria neste trabalho que foi quase um casamento. Superintendncia Regional do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico

    Nacional, em especial Beatriz Muniz Freire, pela oportunidade de pesquisa e cooperao que dela recebi na reflexo sobre o tema do patrimnio.

    Aos integrantes da Famlia Silva, pela confiana e afeto. Aos militantes dos movimentos sociais negros do Rio Grande do Sul e aos

    demais partcipes do processo de pesquisa do Inventrio de Referncias Culturais

  • sobre o Massacre de Porongos, em especial Dona Santinha, pela disposio em nos atender e aprendizado pessoal e acadmico que me oportunizaram.

    Superintendncia Regional do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria, atravs de sua Coordenao de Projetos Especiais, em especial a Jos Rui Cancian Tagliapietra, Josiane Schoen Barros Correa, Sebastio Henrique dos Santos Lima e Vitor Py Machado pelo apoio no ltimo ano e principalmente na reta final da tese.

    Ao meu marido Nilson Weisheimer pelo seu amor, pela compreenso e companheirismo sem os quais este trabalho no seria possvel.

    minha filha Isadora pelo carinho e pacincia diante de minhas ausncias e de minhas presenas ausentes.

  • Pra ns, a maravilha que descubram tudo, n? A nossa turma ali, a gente acha que a gente tem que saber o que aconteceu, e o que mesmo que aconteceu com o negro. A gente s sabe uma histria por um, por outro, e acho que deveria a gente saber tudo, e pra mim uma maravilha. Porque eu acho que pra ns isso um orgulho pra ns, porque o negro tem uma histria pra contar. E mais, ns nascemos lutando pra nossa liberdade, e a gente no tem liberdade ainda. A gente ainda tem aquele pouco do preconceito, no tem?

    Santa Eullia, Pinheiro Machado 09 de outubro de 2005.

  • RESUMO

    Esta tese tem como tema o reconhecimento social da diferena no Brasil no que concerne populao negra. A problematizao desta questo se d a partir da anlise de polticas pblicas de regularizao fundiria de territrios quilombolas e de patrimonializao de bens culturais relacionados a este segmento social, com o intuito de compreender como se d o reconhecimento da diferena negra nesses processos sociais e refletir sobre a participao dos antroplogos nessas situaes. Deste modo, procuramos explorar as nuances desse fenmeno, os impactos que ele produz sobre os grupos que so objetos dele e as reaes que ele provoca na esfera pblica. O universo de pesquisa deste trabalho composto pelos processos de reconhecimento territorial da comunidade remanescente de quilombo Famlia Silva, em Porto Alegre, e de reconhecimento cultural do Cerro de Porongos, em Pinheiro Machado, ambos municpios do estado do Rio Grande do Sul. A anlise comparativa desses processos nos leva a acreditar que a cultura continua sendo o lugar por excelncia reservado ao tema da populao negra em nosso pas; isto o espao da diferena.

    Palavras chaves: Reconhecimento social. Diferena. Populao negra. Polticas pblicas.

  • ABSTRACT

    This work has as its subject the social acknowledgment of the difference in Brazil related to afro-descendent population. The problematization of such question is made from the analysis of the public policies of land regularization of quilombolas territories and the patrimonialization of cultural goods related to this social segment, aiming to understand how works the acknowledgment of afro-descendents difference in these social processes and to think about the participation of anthropologists in these situations. This way, we aim to explore the subtleties of this phenomenon, its impacts over the groups that are its objects and the reactions it causes on the public realm. The research universe in this work is composed by the territorial acknowledgment processes in the lasting community at quilombo Famlia Silva, in Porto Alegre, and the cultural acknowledgment of Cerro dos Porongos, in Pinheiro Machado, both counties at Rio Grande do Sul State. The comparative analysis of the processes leads us to believe that the culture is still the place par excellence reserved to the subject of afro-descendent population in our country, what means to say, the espace of difference.

    Keywords: Social acknowledgment. Difference. Afro-descendent population. Public policies.

  • RSUM

    Cette thse a pour thme la reconnaissance sociale de la diffrence au Brsil concernant la population noire. La problmatisation de cette question est faite partir de lanalyse des politiques publiques de rgularisation foncire des territoires marrons et de la patrimonialisation de biens culturels relatifs ce segment social, avec lintention de comprendre la manire dont on fait la reconaissance de la diffrence noire lintrieur de ces processus sociaux ainsi que de rflchir la participation des anthropologues dans ces situations. De cette faon, nous cherchons explorer les nuances de ce phnomne, les impacts quil produit sur les groupes qui sont ses objets et les ractions quil provoque dans la sphre publique. Lunivers de recherche de ce travail est compos par les processus de reconnaissance territoriale de la communaut rmanente de marrons Famille Silva, Porto Alegre, et de reconaissance culturelle du Cerro de Porongos, Pinheiro Machado, deux villes de ltat du Rio Grande do Sul. Lanalyse comparative de ces processus nous mne croire que la culture est toujours le lieu par excellence rserv au thme de la population noire dans notre pays ; ceci est lespace de la diffrence.

    Mots-cls: Reconnaisance sociale. Diffrence. Population noire. Politiques publiques.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AGU - Advocacia Geral da Unio CAPES - Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CCDH - Comisso de Cidadania e Direitos Humanos da Assemblia Legislativa do Rio Grande do Sul CNFCP - Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico CNRC - Centro Nacional de Referncias Culturais CODENE - Conselho de Desenvolvimento e Participao da Comunidade Negra do Rio Grande do Sul CONAQ - Coordenao Nacional de Articulao das Comunidades Negras Rurais Quilombolas CTG - Centro de Tradies Gachas DRT - Delegacia Regional do Trabalho FCP - Fundao Cultural Palmares FSM - Frum Social Mundial GRAC - Gabinete de Reforma Agrria e Cooperativismo do Estado GSI - Gabinete de Segurana Institucional GTPI - Grupo de Trabalho do Patrimnio Imaterial IAB - Instituto de Arquitetos do Brasil IACOREQ - Instituto de Assessoria as Comunidades Remanescentes de Quilombos INCRA - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria IPHAN - Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional MDA - Ministrio do Desenvolvimento Agrrio MinC - Ministrio da Cultura MJDH -Movimento de Justia e Direitos Humanos MNU - Movimento Negro Unificado MPF - Ministrio Pblico Federal NUER - Ncleo de Estudos sobre Identidade e Relaes Intertnicas da UFSC OIT - Organizao Internacional do Trabalho ONU - Organizao das Naes Unidas PDT - Partido Democrtico Trabalhista PMDB - Partido do Movimento Democrtico Brasileiro PMPOA - Prefeitura Municipal de Porto Alegre PT - Partido dos Trabalhadores PTB - Partido Trabalhista Brasileiro PUC - Pontifcia Universidade Catlica SDSHU - Secretaria de Direitos Humanos e Segurana Urbana SEPPIR - Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial SPHAN - Secretaria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional SPU - Secretaria do Patrimnio da Unio STCAS Secretaria da Cidadania, Trabalho e Assistncia Social UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura

  • LISTA DE FIGURAS

    FIGURA 1: ATO DE APOIO A FAMLIA SILVA DURANTE O II FRUM SOCIAL MUNDIAL.............111 FIGURA 2: ATIVIDADES DA OFICINA SOBRE COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS NO II FRUM SOCIAL MUNDIAL. ....................................................................................................................112 FIGURA 3: MONUMENTO AOS LANCEIROS NEGROS. CAAPAVA DO SUL........................................113 FIGURA 4: GRUPO DE DANA CLARA NUNES EM APRESENTAO NO I FRUM SOCIAL MUNDIAL. PORTO ALEGRE...............................................................................................................................113

    FIGURA 5: GRUPO DE CAVALARIANOS LANCEIROS NEGROS CONTEMPORNEOS NO ..............114

    FIGURA 6: LANCEIROS NEGROS NO FILME NETO PERDE SUA ALMA................................................114

    FIGURA 7: LANCEIROS NEGROS NA MINISSRIE A CASA DAS 7 MULHERES...................................114 FIGURA 8: MOBILIZAO DE PESSOAS NO TERRITRIO DA FAMLIA SILVA DURANTE O DIA 03 JUN. 2005 ..................................................................................................................................................................164 FIGURA 9: REUNIO DOS SILVA COM OLVIO DUTRA, MINISTRO DAS CIDADES ..........................165

    FIGURA 10: REUNIO DA CCDH DA AL/RS SOBRE OS SILVA. ................................................................165

    FIGURA 11: REUNIO DOS SILVA COM O JUIZ DA JUSTIA ESTADUAL............................................165

    FONTE: FOTOGRAFIA DE ALEXANDRE MENDEZ, CP, 15 JUN. 2005......................................................165 FIGURA 12: REUNIO NA AL/RS.......................................................................................................................166 FIGURA 13: CAF NA REA DOS SILVA.........................................................................................................166 FIGURA 14: OS SILVA SO RECEBIDOS PELO GOVERNADOR DO RS..................................................166 FIGURA 15: VISITA DO MINISTRO DO MDA AOS SILVA...........................................................................167 FIGURA 16: REUNIO EM BRASLIA SOBRE O CASO DOS SILVA..........................................................167 FIGURA 17: PERFORMANCE DA PEA LANCEIROS NEGROS.............................................................167

    FIGURA 18: PERFORMANCE DA PEA LANCEIROS NEGROS.............................................................168

    FIGURA 19: PERFORMANCE DA PEA LANCEIROS NEGROS.............................................................168

    FIGURA 20: EXECUO DO HINO RIOGRANDENSE POR CANTORA DA PEA LANCEIROS NEGROS .................................................................................................................................................................168 FIGURA 21: VIGLIA NA MADRUGADA DE 14 DE NOVEMBRO DE 2004................................................169 PINHEIRO MACHADO/RS ...................................................................................................................................169

    FIGURA 22: O BAIRRO TRS FIGUEIRAS E A CIDADE DE PORTO ALEGRE.......................................207

    FIGURA 23: LOCALIZAO DA FAMLIA SILVA NO BAIRRO TRS FIGUEIRAS ..............................207

    FIGURA 24: MARCO DE PEDRA COBERTO PELA VEGETAO NA REA DOS SILVA....................208 FIGURA 25: FALSA SERINGUEIRA QUE FICA NA PARTE CENTRAL DO TERRITRIO DA FAMLIA SILVA........................................................................................................................................................................208 FIGURA 26: CASAS DOS INTEGRANTES DA FAMLIA SILVA ..................................................................208

    FIGURA 27: FOTO DA CASA DE UM DOS INTEGRANTES DA FAMLIA SILVA ...................................209

    FIGURA 28: CASA DOS INTEGRANTES DA FAMLIA SILVA.....................................................................209

  • FIGURA 29: MURO QUE SEPARA A REA DOS SILVA DE UM CONDOMNIO RESIDENCIAL ........209 FIGURA 30: FOTO DOS ALUNOS DA ESCOLA VESPERTINA DO COLGIO ANCHIETA ...................210

    FIGURA 31: POO LOCALIZADO NA REA DOS SILVA FEITO COM AS PEDRAS DA CONSTRUO DO COLGIO ANCHIETA ......................................................................................................210 FIGURA 32: SILVA RECEBEM CPIA DA EMISSO DE POSSE DOS MEMBROS DO INCRA............211 FIGURA 33: EDIFCIO EM CONSTRUO FRENTE E CASAS DOS SILVA AOS FUNDOS ..............211 FIGURA 34: LOCALIZAO DE PINHEIRO MACHADO.............................................................................212 FIGURA 35: AO FUNDO O CAPO DO SARANDI E O CERRO DE PORONGOS .....................................213

    FIGURA 36: ESTRADA QUE LEVA AO CERRO DE PORONGOS................................................................213

    FIGURA 37: CERRO DE PORONGOS AO FUNDO ..........................................................................................214

    FIGURA 38: REA ADQUIRIDA PELA PREF. MUN. DE PINHEIRO MACHADO....................................214 FIGURA 39: CELEBRAO NO CERRO DE PORONGOS EM 14 DE NOVEMBRO DE 2005 .................215 FIGURA 40: IMAGENS DO PROJETO VENCEDOR DO CONCURSO NACIONAL MEMORIAL LANCEIROS NEGROS ..........................................................................................................................................216

  • SUMRIO

    INTRODUO .........15

    1

    INSTITUIO DAS CATEGORIAS JURDICAS PATRIMNIO CULTURAL BRASILEIRO E REMANESCENTES DAS COMUNIDADES DOS QUILOMBOS...................................................................28 1.1 POLTICAS INTERNACIONAIS SOBRE PATRIMNIO E QUESTO RACIAL....................................................................30 1.2

    O PATRIMNIO BRASILEIRO ...................................................................................................................................34

    1.3 A QUESTO RACIAL NO BRASIL .............................................................................................................................40 1.4

    A CRIAO DAS CATEGORIAS ................................................................................................................................45

    1.5 DESDOBRAMENTOS E TENTATIVAS DE APLICAO DAS NOVAS CATEGORIAS .........................................................52 1.5.1 PATRIMNIO CULTURAL.....................................................................................................................................52 1.5.2

    REMANESCENTES DAS COMUNIDADES DE QUILOMBOS ......................................................................................57

    2 DESCOBRINDO-SE SUJEITOS DE DIREITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS .....................................72 2.1 MOBILIZAES ANTERIORES..................................................................................................................................73 2.2

    A APROXIMAO DOS SUJEITOS EM RELAO S CATEGORIAS JURDICAS.............................................................78

    2.2.1 FAMLIA SILVA...................................................................................................................................................80 2.2.2

    CERRO DE PORONGOS.........................................................................................................................................99

    2.3 FOTOS FAMLIA SILVA: .........................................................................................................................................111 2.4 FOTOS MASSACRE DE PORONGOS:.........................................................................................................................113

    3

    O RECONHECIMENTO ESTATAL DA FAMLIA SILVA COMO COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO E DO CERRO DE PORONGOS COMO PATRIMNIO CULTURAL BRASILEIRO 115 3.1 SER QUILOMBO? S UM LAUDO PODER DIZER .................................................................................................116 3.2

    MASSACRE DE PORONGOS, UMA HISTRIA QUE ERA PRECISO PESQUISAR ............................................................120

    3.3 OS BASTIDORES DOS CAMPOS...............................................................................................................................123 3.3.1

    FAMLIA SILVA.................................................................................................................................................123

    3.3.2 CERRO DE PORONGOS.......................................................................................................................................132 3.4 ESBOANDO ALGUMAS COMPARAES................................................................................................................138 3.5

    O DISCURSO ANTROPOLGICO POSTO A PROVA....................................................................................................146

    3.6 A AMEAA DE UM DESPEJO ..................................................................................................................................149 3.7

    160 ANOS DE PORONGOS......................................................................................................................................157

    3.8 FOTOS FAMLIA SILVA ..........................................................................................................................................164 3.9

    FOTOS MASSACRE DE PORONGOS:.........................................................................................................................167

    4

    TERRITORIALIZAO E OS LIMITES DO RECONHECIMENTO.........................................................170

    4.1 FAMLIA SILVA ....................................................................................................................................................170 4.2 CERRO DE PORONGOS ..........................................................................................................................................177 4.3

    METAMORFOSES ..................................................................................................................................................181

    4.4 INSTITUCIONALIZANDOSE ..................................................................................................................................184 4.4.1

    O SURGIMENTO DA ASSOCIAO COMUNITRIA KILOMBO FAMLIA SILVA ....................................................184

    4.4.2 A CRIAO DAS COMISSES PR-MEMORIAL E DO CONCURSO NACIONAL DE ARQUITETURA LANCEIROS ............ NEGROS.......................................................................................................................................................................187

    4.5 TORNAR-SE OU NO UMA REA FEDERAL?...........................................................................................................190 4.6

    OS RECONHECIMENTOS TERRITORIAL E CULTURAL EM DEBATE ...........................................................................197

  • 4.7 MAPAS E FOTOS FAMLIA SILVA ............................................................................................................................207 4.8 MAPAS E FOTOS CERRO DE PORONGOS..................................................................................................................212

    CONSIDERAES FINAIS...................................................................................................................................217

    REFERNCIAS .......................................................................................................................................................220

  • INTRODUO

    As questes relacionadas s comunidades remanescentes de quilombos e ao patrimnio cultural afro-brasileiro tm adquirido extrema importncia na agenda pblica desde a democratizao do pas. O movimento quilombola, que envolve grupos negros rurais e urbanos, estima a existncia de mais de trs mil comunidades em todo o Brasil. No entanto, pouco mais de mil delas receberam declarao de auto-identificao da Fundao Cultural Palmares (FCP), rgo ligado ao Ministrio da Cultura (MinC); aproximadamente setecentas destas possuem processos administrativos de regularizao fundiria formalizados junto ao Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), autarquia do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA)1. A normatizao vigente sobre o tema estabelece que para cada procedimento em andamento deva ser elaborado um relatrio antropolgico de identificao e reconhecimento territorial. Deste modo, tornou-se muito intensa a demanda pela produo deste tipo de estudo. As mobilizaes polticas destas comunidades negras por direitos territoriais enfrentam fortes resistncias no mbito administrativo, poltico e jurdico, o que faz com que tais demandas venham sendo respondidas pelo Estado de uma maneira muito reticente e morosa.

    De outro lado, diversos segmentos da populao negra brasileira tm buscado o reconhecimento de lugares, edificaes, celebraes, ofcios e formas de expresso aos quais atribuem sentidos identitrios, tais como reminiscncias de antigos quilombos, terreiros de candombl, clubes sociais, festas e manifestaes culturais. Esse movimento se d atravs do encaminhamento de solicitaes de tombamento e registro ao Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN). Uma legislao especfica sobre o patrimnio imaterial foi criada, bem como uma metodologia de identificao dos bens culturais potencialmente patrimonializveis, cuja aplicao tem requerido crescentemente o envolvimento de antroplogos. Vrias referncias importantes tm sido reconhecidas pelos diferentes instrumentos de salvaguarda, no apenas no plano nacional, mas tambm para alm deste, atravs de

    1 Dados obtidos a partir de reportagens sobre o tema e de consultas aos rgos pblicos.

  • 16

    distines que so concedidas periodicamente por organizaes internacionais a temas que so apresentados pelos pases partcipes destas instituies. Exemplo disso a incluso do Samba de roda do Recncavo Baiano entre as obrasprimas do Patrimnio Oral e Imaterial da Humanidade no ano de 2005. Apesar da importncia que estas questes alcanaram nos ltimos anos e da intensa mobilizao de antroplogos para a realizao destas pesquisas, como bem observa Jos Mauricio Paiva Andion Arruti (2006) em relao questo quilombola, poucas reflexes de maior flego foram desenvolvidas a fim de colaborar para uma maior compreenso desses fenmenos to complexos da histria recente de nosso pas.

    Com vistas a contribuir para este debate, esta tese tem como tema o reconhecimento social da diferena no Brasil no que concerne populao negra. A problematizao desta questo se d a partir da anlise de polticas pblicas de regularizao fundiria de territrios quilombolas e de patrimonializao de bens culturais relacionados a este segmento social. A escolha deste objeto foi motivada pela experincia pessoal de elaborao de um relatrio de identificao de uma comunidade remanescente de quilombo urbana, de realizao de um inventrio de referncias culturais sobre um evento histrico significativo para um conjunto expressivo de indivduos negros e de trabalho no rgo que tem a misso de titular as reas de comunidades remanescentes de quilombos.

    O conhecimento adquirido nesses contextos foi submetido a um novo investimento analtico com o intuito de compreender como se d o reconhecimento da diferena nesses processos e refletir sobre a participao dos antroplogos nessas situaes. Deste modo, procuramos explorar as nuances desse fenmeno, os impactos que ele produz sobre os grupos que dele so objeto, e as reaes que ele provoca na esfera pblica2.

    Consideramos que os pleitos por titulao de terras quilombolas e registro/tombamento de referncias culturais endereados ao Estado por estes grupos no so apenas de direitos territoriais e culturais mas tambm de identidades, configurando aquilo que o filosofo Charles Taylor (2000) vai chamar de poltica de

    2Universo discursivo onde normas, projetos e concepes de mundo so publicizadas e esto sujeitas ao debate pblico (OLIVEIRA, 2001).

  • 17

    reconhecimento. No entanto, de que tipo de identidade estamos falamos nessas situaes? Da identidade quilombola, negra e/ou afro-brasileira, abordadas sob o ponto de vista antropolgico enquanto identidades tnicas baseadas na ascrio e auto-ascrio, atravs das quais se criam e se mantm fronteiras em relao a outros grupos com os quais eles interagem (BARTH, 1998).

    Contudo, como o prprio Fredrik Barth (2003) admite, precisamos fundir esta perspectiva de etnicidade com aquelas que enfatizam os efeitos da organizao do Estado sobre os processos tnicos, tal como a elaborada por Joo Pacheco de Oliveira (1988) atravs do conceito de territorializao. No caso em questo, esta noo se refere interveno produzida pelo Estado que associa, de forma ordenada e categrica, um grupo no caso quilombola ou um conjunto de indivduos no caso do patrimnio a um espao geogrfico precisamente delineado (territrio quilombola e lugar registrado/tombado). Esta ao poltica constitui, enquanto objetos polticos administrativos, os quilombolas e os negros ou afro-brasileiros.

    A emergncia social e poltica desses agrupamentos tnicos que demandam reconhecimento e lutam pela obteno de direitos deve ser compreendida como um processo de etnognese, isto , de reconstruo identitria. Tal dinmica no est alheia s legislaes que garantem direitos especiais a grupos particulares, podendo, muitas vezes, ser resultado indireto e no planejado de polticas pblicas especficas. Esta atualizao identitria tambm fomentada pela experincia de participao poltica mediada pela influencia das organizaes etnopolticas o movimento negro que contribuem para dignificar o elemento tnico e para dar um sentido positivo a condio quilombola e negra (BARTOLOM, 2005).

    Como aponta Roberto Cardoso de Oliveira (2006) em relao aos povos indgenas, mas que aqui estendemos tambm populao negra seguindo a sugesto do prprio autor, as demandas de reconhecimento de identidades tnicas e dos direitos cidadania plena, que a elas devam estar associados, baseiam-se em argumentos polticos e de ordem moral. Recorremos ao filsofo Axel Honnet (2007) para elucidar este ltimo aspecto. Segundo ele, os sujeitos no buscam reconhecimento de suas identidades to somente pelos benefcios materiais que isto pode lhes proporcionar, mas tambm em funo de uma questo moral, isto , dos atributos que eles

  • 18

    consideram desejveis ou obrigatrios nas relaes sociais, tal como o respeito. Nesse sentido, o reconhecimento se configura enquanto ato expressivo pelo qual a identificao do sujeito est confirmada pelo sentido positivo de sua afirmao. Ele o reconhecimento depende de meios de comunicao que exprimam o fato de que outra pessoa considerada como detentora de um valor social (HONNETH, 2003).

    Outrossim, se o Estado age no mundo social estabelecendo fronteiras, identificando grupos e reconhecendo direitos, ele o faz municiado pelos discursos acadmicos que lhe fornecem certo nmero de instrumentos de ordenao que podem informar prticas polticas e, mais especificamente, propiciam a identificao das populaes e a construo do sentido das aes para os prprios agentes estatais. Afirmando, deste modo, os problemas sociais aos quais devem responder s polticas pblicas. De outro lado, a cincia fornece um conjunto de argumentos que podem legitimar a proposio destas polticas. Deste modo, a mobilizao da cincia, mais particularmente da antropologia como o caso aqui, no espao da ao estatal, apresenta duas dimenses: a da instrumentalizao e a da legitimao. Com efeito, a existncia de uma disciplina consagrada ao exame das diferenas entre as populaes estabelece uma confirmao cientfica da necessidade de uma poltica que se adapte a essa diversidade. Por sua vez, a necessidade de elaborar polticas especficas em funo de caractersticas singulares de uma populao uma justificativa muito forte para o desenvolvimento de conhecimento sobre ela. Por conseqncia, cincia e estado se constituem progressivamente num espao comum, enquanto um conjunto de saberes e um conjunto de polticas, evidenciando-se um campo de edificao mtua entre estados, saberes e populaes (LESTOILE, et al, 2002).

    O Brasil, enquanto nao, estabeleceu formas especficas de construo e relao com a sua alteridade interior configurando-se assim numa formao da diversidade (SEGATO, 1998). Mas qual lugar tem a populao negra nessa formao? Em relao a este tema, o socilogo Antonio Sergio Alfredo Guimares (2001) argumenta que, no ordenamento simblico brasileiro, no se reconhece o negro como sujeito poltico ou de direito, mas apenas como objeto cultural, como marco da nacionalidade e da civilizao brasileira. Ainda segundo este autor, o ordenamento jurdico, embora aponte para direes menos simblicas, tende a ficar encapsulado

  • 19

    pela lgica cultural. Em sua anlise sobre o surgimento do artigo constitucional que permite a regularizao fundiria dos territrios quilombolas, Jos Maurcio Paiva Andion Arruti (2006) aponta que o campo da cultura era, at aquele momento, o prprio limite permitido ao reconhecimento pblico e poltico da populao negra. Tais afirmaes, associadas anlise comparativa dos processos de reconhecimento anteriormente mencionados, levam-nos a crer que a cultura continua sendo o lugar por excelncia reservado ao tema da populao negra em nosso pas; isto o espao da diferena.

    O CAMPO EMPRICO E A ETNOGRAFIA

    O universo de pesquisa deste trabalho composto pelos processos de reconhecimento territorial da comunidade remanescente de quilombo Famlia Silva3, em Porto Alegre, e de reconhecimento cultural do Cerro de Porongos, em Pinheiro Machado, ambos municpios do estado do Rio Grande do Sul4. Deste modo, o espao pesquisado no se define por limites geogrficos, mas por conexes especficas, relacionamentos particulares, redes de circulao e fluxos de sentido que atravessam estas situaes e as vinculam a outros fenmenos mais amplos (FLEISCHER, SCHUCH e FONSECA, 2007).

    Meu contato com o pleito dos Silva se deu no incio de 2004, quando fui contratada pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre para elaborar um relatrio antropolgico sobre o grupo para fins de seu reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo e titulao das terras que ocupavam nesses termos. Desde ento, passei a me inteirar do histrico desse embate e a acompanhar seus desdobramentos, tendo contato freqente com as pessoas envolvidas, de alguma ou de outra forma, e participado constantemente de eventos que estavam relacionados com

    3 Denominao a partir da qual o grupo ficou nacionalmente conhecido e que utilizada por seus

    integrantes para se identificarem para seus interlocutores. 4 Adotamos as expresses reconhecimento territorial e cultural, no porque acreditemos que um possa

    ocorrer sem o outro, mas sim porque esta a nfase dada pelas polticas estatais na medida em que divide o trabalho de reconhecimento entre instituies distintas.

  • 20

    ele. O curto perodo de desenvolvimento da pesquisa, somente quatro meses, foi apenas o comeo de um longo relacionamento com a questo que perdura at os dias atuais.

    A Famlia Silva um grupo de pessoas pobres e aparentadas entre si que habitam, h mais de sessenta anos, um territrio de aproximadamente hectare que se sobrepe em parte ao traado projetado da rua Joo Caetano, entre as Avenidas Nilo Peanha e Carlos Gomes, no bairro Trs Figueiras, na regio leste da capital do estado, h aproximadamente 9km do centro da cidade.

    Seus integrantes procedem de um tronco comum de negros oriundos dos municpios de So Francisco de Paula e Cachoeira do Sul que migraram para a capital no incio da dcada de 1940 e ali se estabeleceram constituindo famlia e sendo sucedidos no local por seus descendentes. So seis irmos, seus respectivos cnjuges, filhos, netos e sobrinhos de duas irms falecidas. Desde 1998, indivduos de camadas mdias, que possuam os registros desse imvel sem nunca terem exercido a posse do mesmo, ingressaram com aes judiciais para despejarem esse grupo familiar de sobrenome Silva.

    Em 2000, os moradores do territrio conheceram um corretor imobilirio que passou a auxili-los juridicamente para impedir a expulso de suas famlias do local. No final de 2002, quando ele procurou a Comisso de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) da Assemblia Legislativa do Rio Grande do Sul para denunciar a situao do grupo, o caso veio a pblico. A partir de ento, gradativamente, o conflito territorial vivenciado pela Famlia Silva tornou-se uma questo de regularizao fundiria de terras de remanescentes de quilombos em reas urbanas. Nesse processo de redefinio dos sentidos da contenda, diferentes pessoas passaram a se envolver com o caso. Entre elas, esto integrantes dos movimentos sociais negros, polticos, advogados, representantes das esferas municipal, estadual e federal do poder pblico, pesquisadores, entre outros.

    Minha insero no processo de reconhecimento cultural do Cerro de Porongos se deu quando, no segundo semestre de 2004, passei a integrar a equipe de pesquisa do Inventrio de Referncias Culturais sobre o Massacre de Porongos. Tratava-se de uma iniciativa da Superintendncia Regional do Instituto do Patrimnio Histrico e

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    Artstico Nacional no estado com vistas a orientar as suas aes de salvaguarda no que se refere ao local deste evento e aos significados atribudos a ele. A partir desse momento, passei a conhecer o percurso desse embate e a seguir de perto o seu progresso, tendo me relacionado seguidamente com as diferentes pessoas envolvidas e participado constantemente de situaes que diziam respeito a ele.

    Na madrugada de 14 de novembro de 1844, nas imediaes do Cerro de Porongos, no distrito de Torrinhas do ento municpio de Piratini, parte de um dos destacamentos de lanceiros negros5 do exrcito farroupilha, formados majoritariamente por escravos que lutavam sob a promessa de liberdade, que estava sob o comando do General Davi Canabarro, foi atacado pelas tropas imperiais. A localidade referida, atualmente, pertence cidade de Pinheiro Machado, na regio sul do estado, situada h aproximadamente 378 km da capital.

    Esta seria mais uma das batalhas perdidas pelos farrapos ao longo da revoluo6. Todavia, estava em curso um processo de negociao de paz entre as partes, atravs do qual o Imprio do Brasil no concordava em premiar com a liberdade os cativos insurretos que integravam o exrcito farroupilha. Outrossim, parcelas da elite gacha envolvida no conflito estancieiros criadores de gado e produtores de charque com base em mo de obra escrava temiam que estes negros politizados e militarizados pudessem se somar a outros num levante contra a ordem vigente. Adiciona-se a isso uma carta atribuda ao Baro de Caxias, representante do Imprio que buscava dar fim revolta. Endereada ao Coronel Francisco Pedro de Abreu, o Moringue, comandante das tropas imperiais que atacaram os lanceiros negros em Porongos, a missiva fornecia a localizao do exrcito farrapo e dava instrues para poupar sangue branco e indgena e facilitar a fuga do General Davi Canabarro.

    A polmica em torno desse fato, polarizada pelas teses de surpresa de Moringue, ou traio de Canabarro, foi gestada entre pesquisadores da histria do Rio

    5 Escravos que lutavam sob a promessa de liberdade.

    6 Segundo Flores (2004), a Revoluo Farroupilha faz parte dos movimentos liberais que abalaram o

    Imprio do Brasil no perodo regencial, quando explodiram dissenses polticas entre os liberais federalistas e os conservadores unitrios nas provncias do Cear (1831-1832), Pernambuco (1831-1835), Minas Gerais (1833-1835), Gro-Par (1835-1840), Bahia (1837-1838), Maranho 91838-1841 e Rio Grande do Sul (1835-1845) (p.25). chamada de Revoluo porque implicou a mudana de governo com a instituio do sistema republicano, mas, de acordo com o autor, trata-se de uma guerra civil entre aqueles que aderiram ao movimento e os que no o fizeram.

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    Grande do Sul desde o final do sculo XIX. Ela perdeu prestgio nesse meio entre as dcadas de 1920 e 1930 e ressurgiu no intervalo de 1970 e 1980 em virtude de produes de militantes dos movimentos sociais negros e de pesquisas acadmicas com novas abordagens. No entanto, a maior parte da populao ainda ignorava o tema.

    Essa situao comeou a mudar a partir de 2000, quando ocorreram algumas iniciativas relacionadas com a valorizao do negro no estado, protagonizadas por militantes ou simpatizantes da causa que acionavam as figuras dos lanceiros e o ataque sofrido por eles. Parte destas aes se projetou sobre o lugar onde estes soldados foram atacados, configurando uma mobilizao poltica pela construo de um memorial. Desde ento, a controvrsia histrica gradativamente ganhou contornos de reconhecimento do patrimnio cultural dos negros do Rio Grande do Sul a nvel nacional e passou a dizer respeito no apenas a pesquisadores ou estudiosos, mas tambm a integrantes dos movimentos sociais negros, representantes das esferas municipal, estadual e federal do poder pblico, polticos, arquitetos, arquelogos, entre outros.

    Em diferentes perodos de 2004 (agosto a dezembro), 2005 (setembro a dezembro) e 2006 (janeiro a abril) visitei os municpios de Pinheiro Machado, Piratini, Guaba e Caapava do Sul, onde viviam as pessoas envolvidas na mobilizao poltica pela construo do memorial em homenagem aos lanceiros negros no Cerro de Porongos, para realizar entrevistas e participar de eventos sobre o assunto. Depois disso, continuei acompanhando o tema atravs de conversas com vrias pessoas que faziam parte desta reivindicao e tambm atuavam na questo quilombola.

    A partir de 2007, tornei-me servidora do INCRA e passei a trabalhar nos processos de regularizao fundiria de mais de trinta comunidades remanescentes de quilombos do Rio Grande do Sul. Ocupar este lugar me permitiu conhecer, sob outra perspectiva, os problemas que perpassavam a execuo desta poltica pblica, as opinies e interpretaes dos agentes estatais que a implementavam e dos grupos que as demandavam. Outrossim, vivenciei de maneira ainda mais intensa, as expectativas e tenses em relao ao fazer antropolgico em contextos como este; o que reforou meu interesse em submeter estas experincias a uma anlise mais sistemtica.

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    Em relao a este ltimo aspecto, importante esclarecer que trazer estas questes para o texto no foi uma tarefa fcil e implicava muitas vezes expor, de maneira bastante problemtica, alguns de meus interlocutores7 nesses processos. Por esta razo, optei por suprimir os seus nomes e enfatizar os lugares e as condies de fala dos sujeitos. Dispensar este tratamento para uns e no para outros se tornou uma questo bastante complicada ao longo da escrita, tanto do ponto de vista operacional, quanto tico. Em virtude disso, acabei adotando esta conveno para os demais8.

    A pesquisa para a elaborao desta tese no se ateve ao perodo de elaborao dos estudos que subsidiaram a implementao das polticas pblicas. Ela abarcou pocas anteriores e posteriores e baseou-se numa variedade de dados obtidos a partir de diferentes fontes: processos judiciais, atas e transcries de reunies, notcias e reportagens de jornal, revistas e internet, entrevistas realizadas por mim juntamente com outros membros das equipes de pesquisas, ou somente por eles, conversas informais e observaes de palestras, mobilizaes polticas, reunies e celebraes.

    Esta aparente indisciplina metodolgica, implica na verdade numa concepo mais ampla e aberta de investigao etnogrfica que busca responder as questes norteadoras deste trabalho. Deste modo, o trabalho de campo precisou ser complementado por outros mtodos de pesquisa que propiciassem o acesso aos mecanismos sociais e aos pontos de vista em suas manifestaes concretas (GIUMBELLI, 2002).

    A escrita buscou apreender o seu objeto atravs dos fluxos que o atravessam e que o ligam a agentes e fenmenos distribudos por diferentes locais, tempos e escalas. Consideramos que os processos de implementao de polticas pblicas de reconhecimento so eventos9 etnogrficos que, como os rituais, portam uma fora

    7 Os sujeitos com os quais desenvolvi este trabalho foram aqueles que estavam direta ou indiretamente

    relacionados aos processos de reconhecimento territorial e cultural: integrantes dos grupos pleiteantes, militantes negros, polticos, agentes estatais, pesquisadores, entre outros. 8 A antroploga Cimea Bevilaqua (2003) aponta num artigo como o problema tradicional da identificao

    dos informantes tende a se agudizar medida que os pesquisadores se voltam com maior intensidade ao estudo etnogrfico de instituies e processos relativos ao universo do Estado. 9 Eventos so tomados aqui como interrupes do cotidiano reveladoras, que podem dar acesso ao

    pesquisador a estruturas sociais ou culturais ou a princpios informadores da ao social dificilmente perceptveis no dia a dia. No evento espelham-se relaes entre diferentes segmentos da sociedade.

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    performativa rica na produo de sentidos e na definio de relaes sociais (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2004).

    Os eventos, segundo a antroploga Mariza Peirano (2006), mantm aquela dimenso social dominante que antes os dramas sociais e os rituais instigavam nos antroplogos. Eles so recriados no texto desta tese na tentativa de capturar o instante vivido, perdido e crucial que a pesquisadora presenciou ou que se tornou significante. Vistos como porta de entrada etnogrfica, os eventos privilegiam a ao social, o contexto, o impondervel, a mudana, a linguagem em ato.

    A anlise dos eventos abre a possibilidade de pensar a poltica fora dos marcos j reconhecidos como sendo os seus e nos permite visualizar o aparecimento de uma multiplicidade de agentes/atores polticos. Trata-se tambm de ver como determinado evento transcende certos limites, mesmo quando o seu lcus e uma instituio poltica (PALMEIRA e BARREIRA, 2006). Outrossim, precisamos verificar o que o contexto nos diz do evento e o que o evento nos diz do contexto. Para evitar o perigo do isolamento do evento, so estudados diretamente mais de um evento, referindo-se a outros coetnos, estabelecendo seqncias e contextualizando em termos histricos mais amplos o evento estudado.

    Inspirando-nos no modelo descritivo das etnogneses, proposto por Jos Mauricio Paiva Andion Arruti (2006) em sua tese sobre a formao da identidade quilombola dos moradores do Mocambo, adotamos uma perspectiva comparada dos processos de reconhecimento territorial e cultural em curso, nestas situaes especificas. Para tanto, considerando as seguintes dimenses: da nominao, que diz respeito instituio das categorias jurdicas constitucionais que fundamentam estas polticas; da identificao, que se refere mobilizao poltica dos grupos nos termos legais existentes; do reconhecimento, que trata do convencimento estatal da pertinncia dos pleitos e da territorializao, que aborda os efeitos deste reconhecimento sobre os grupos e seus espaos de referncia. Acrescentamos anlise outro aspecto que consideramos relevante para a compreenso da relao da nao com sua alteridade interna: o debate pblico sobre a implementao das polticas de regularizao fundiria de territrios quilombolas e de patrimonializao de bens culturais relacionados populao negra fomentado por estes casos.

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    A perspectiva comparativa empregada neste trabalho se justifica tanto pelas semelhanas quanto pelas diferenas entre os dois processos. Os pleitos dos Silva e de segmentos da populao negra gacha estavam intimamente ligados ao surgimento de categorias jurdicas constitucionais e s suas posteriores regulamentaes e apropriaes. Este era o contexto mais geral a partir do qual essas demandas, pr-existentes por regularizao fundiria e visibilidade histrica, ganharam uma nova formatao. Em ambas as situaes, as aes estatais de reconhecimento implicaram a realizao de estudos antropolgicos sobre os quais se projetaram as inmeras expectativas dos agentes envolvidos. Alm disso, em vrias ocasies elas envolviam as mesmas pessoas (militantes dos movimentos sociais negros, pesquisadores, agentes estatais, entre outros).

    No entanto, instituies estatais distintas INCRA e IPHAN executavam estas polticas, o que se traduzia na maior nfase que a primeira dava dimenso territorial; ltima, a cultural. Este destaque diverso produziu impactos diferenciados sobre a organizao dos grupos sociais que demandavam estas aes, suas identidades e suas relaes com o territrio. Alm disso, tais processos no provocaram as mesmas reaes na esfera pblica. Essas variaes diziam respeito s formas especificas de construo e relao que a nao brasileira estabeleceu, historicamente, com a sua alteridade interior e que, atravs destas polticas de reconhecimento, estavam sendo postas em questo.

    Tomando como referncia um texto do socilogo Charles Tilly (2004)10 explicitamos aqui os ngulos de aproximao, ou afastamento, que adotamos nesta tese em relao ao que ele vai denominar de escolhas ou encruzilhadas a serem confrontadas pelo analista social: a) presente versus passado; b) ao versus contexto; c) poder versus vulnerabilidade e d) prescrio versus explicao.

    Este trabalho trata de uma questo atual, o reconhecimento social dos negros no Brasil atravs de polticas pblicas especficas, mas reconhece que ele se d dentro de limites legados pelo passado, ou seja, a partir de estruturas e de relaes sociais que so historicamente constitudas. Embora seja possvel identificar a maneira como

    10TILLY, Charles. Itinerrios em anlise social. Tempo Social, So Paulo, v. 16, n. 2, 2004.

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    este reconhecimento se processa na atualidade, entendemos que estamos diante de um processo que leva longo tempo para se definir, demandando assim futuras anlises de longo prazo que possamos identificar regularidades persistentes.

    Focalizamos a ao dos agentes sociais em eventos singulares e as suas conseqncias para os processos como um todo, mas procuramos, simultaneamente, situ-los em seus tempos, lugares e contextos sociais para explicitar as intencionalidades e os poderes associados as suas atitudes. Buscamos aproximar-nos da vida social tal como ela vivenciada pelos indivduos e, concomitantemente, reconhecer as conexes entre suas aes, poca, espao e situao em que ocorrem.

    Ao focalizar as interaes entre indivduos, grupos e instituies de impacto na vida dos sujeitos; que geralmente sofrem as conseqncias deste poder sem conseguir exercer muita influncia sobre ele, intencionamos alcanar um meio-termo entre as perspectivas daqueles que so considerados poderosos e dos que so tidos como vulnerveis. Pretendamos, com isso, captar a forma como o primeiro grupo exerce o poder e a maneira como o ltimo lida com a opresso e as dificuldades.

    Nosso intuito foi o de explicar porque o reconhecimento social dos negros toma a forma que tem, mas assumimos que a escolha deste tema de investigao est relacionada com a perspectiva crtica que temos deste estado de coisas. Em suma, este o itinerrio que procuramos percorrer ao longo da pesquisa e elaborao deste trabalho.

    A tese est organizada em quatro captulos, alm da Introduo e das Consideraes Finais.

    O Captulo 1 versa sobre o estabelecimento das categorias jurdicas patrimnio cultural e remanescentes das comunidades dos quilombos na Constituio Federal de 1988, e as aes empreendidas para torn-las operacionais. Para tanto foram consideradas as: influncias das polticas internacionais sobre patrimnio e a questo racial, a emergncia e tratamento destes temas no Brasil, o modo como tais categorias jurdicas foram propostas e debatidas no processo constituinte e as tentativas posteriores de regulament-las e aplic-las.

    O Captulo 2 dedicado anlise dos processos sociais a partir dos quais a Famlia Silva se percebe como remanescente das comunidades dos quilombos e o

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    Cerro de Porongos passa a ser visto como patrimnio cultural por diversos segmentos da populao gacha.

    O Captulo 3 versa sobre o modo como se produz o convencimento estatal de que os Silva e o local do Massacre de Porongos deveriam ser objetos de reconhecimento territorial e cultural, mostrando como o discurso antropolgico passa a ser considerado o mais adequado nestes processos, e quais as expectativas e tenses dos campos de pesquisa. Alm disso, ele aborda o trabalho de outros mediadores na persuaso dos agentes estatais em reconhecer a pertinncia dos pleitos.

    O Captulo 4 trata do conjunto de mudanas que afetam a Famlia Silva e os grupos sociais mobilizados em prol da construo de um memorial em homenagem aos lanceiros negros. Examinam-se os acontecimentos decorrentes da implementao das polticas pblicas de regularizao fundiria de territrios quilombolas e de patrimonializao do bem cultural relacionado aos soldados que lutavam sob a promessa de liberdade. Ele tambm aborda o debate pblico fomentado por estes processos de reconhecimento.

  • 1 INSTITUIO DAS CATEGORIAS JURDICAS PATRIMNIO CULTURAL BRASILEIRO E REMANESCENTES DAS COMUNIDADES DOS QUILOMBOS

    O presente captulo trata do estabelecimento das categorias jurdicas patrimnio cultural brasileiro e remanescentes das comunidades dos quilombos na Constituio Federal de 1988 e sobre as aes empreendidas para torn-las operacionais. Para tal empresa, consideramos as influncias das polticas internacionais sobre o patrimnio e a questo racial, a emergncia e tratamento destes temas no Brasil, o modo como tais categorias jurdicas foram propostas e debatidas no processo constituinte e as tentativas posteriores de regulament-las e aplic-las. A implementao de reformas legais que propiciem direitos coletivos a negros no Brasil pode parecer, primeira vista, surpreendente se levarmos em conta que este pas elaborou uma ideologia nacional de mestiagem que enfatiza a mistura racial da populao e, desta forma, a ausncia de discriminao racial ou cultural.

    Num artigo sobre as aes afirmativas no Brasil e na frica do Sul, a sociloga Graziella M. D. da Silva (2006) aponta que as respostas tradicionais ao porqu de uma nao como a nossa ter implementado polticas desta ordem so a modernizao e a globalizao, tanto de um ponto de vista otimista quanto pessimista.

    Sob o primeiro prisma, o Brasil viveu a pouco menos de trs dcadas um processo de democratizao a partir do qual passou a sofrer presso de grupos sociais para compensar suas dvidas histricas com as coletividades excludas; com isso, abriu-se um espao para que os movimentos sociais reclamem polticas especficas. Outrossim, a influncia de agncias internacionais no apoio a determinadas polticas e reivindicao de direitos sociais ajuda a difundir a cultura da igualdade e dos direitos humanos (MEYER et al, 1997 e TELLES, 2004). O advento da democracia e a emergncia de grupos de presso so considerados, neste contexto, indcios da modernizao, enquanto a difuso de um pas a outros de valores e prticas de reconhecimento e promoo de direitos s minorias percebida como uma conseqncia positiva da globalizao.

    Na segunda tica, a presso internacional pela adoo destas aes vista como uma imposio das agncias internacionais, uma forma de violncia simblica, de

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    imperialismo cultural, de exportao de categorias e compreenses que direcionariam a atuao dos movimentos sociais e as polticas pblicas brasileiras (BOURDIEU e WACQUANT, 2002). Esta leitura foi bastante criticada por pesquisadores estrangeiros e nacionais dedicados ao estudo das relaes raciais no pas11.

    A globalizao e a difuso das polticas guardam relaes com a criao de categorias jurdicas que possibilitam a execuo de polticas de reconhecimento territorial e cultural voltadas para a populao negra no Brasil. Contudo, importante lembrar que estamos diante de uma luta sobre a definio do que sejam estas categorias e polticas, que envolvem inmeros agentes com inseres, interesses e poderes diversos. Trata-se de uma disputa de enquadramento, onde quadros interpretativos12 competem entre si. Os debates travados sobre estas aes so centrais para a compreenso dos processos de difuso. A batalha de enquadramento definida, principalmente, pela recepo destas polticas a partir dos valores nacionais cognitivos e normativos relacionados raa, mas tambm pela organizao socioeconmica e institucional da vida social de cada pas.

    No entanto, este esquema cultural e essas estruturas no determinam a priori o resultado da disputa. Eles preparam o cenrio para a batalha de enquadramento, cuja dinmica pode vir a transformar estas mesmas estruturas. Desta forma, a implementao de polticas de reconhecimento territorial e cultural em nosso pas deve ser compreendida como resultado de um processo dinmico de luta entre definies internacionais e nacionais, assim como entre os diversos interesses nacionais.

    Neste sentido, existem fatos relevantes ocorridos na esfera poltica internacional que esto relacionados com a concepo de patrimnio e a questo racial e que conformam um cenrio favorvel criao destas nomenclaturas no Brasil que precisam ser considerados.

    11

    TELLES, Edward E. As fundaes norte-americanas e o debate racial no Brasil. Estudos Afro-Asiticos, Universidade Candido Mendes, Rio de Janeiro, n. 24, p. 141-165, 2002. 12

    Conjuntos de crenas que inspiram e do significado ao social, influenciando o diagnstico de uma condio social, a previso de resultados de polticas e a motivao da ao social. Sobre o assunto, ver ainda, BENFORD e SNOW, 2000 e FERRE et al, 2002.

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    1.1 POLTICAS INTERNACIONAIS SOBRE PATRIMNIO E QUESTO RACIAL

    Os anos subseqentes ao fim das grandes guerras so marcados pela criao de instituies e organismos internacionais que passam a fornecer parmetros de atuao estatal de seus pases membros em diversos assuntos atravs de declaraes, convenes, resolues e recomendaes13. Dentre elas a Organizao Internacional do Trabalho (OIT), a Organizao das Naes Unidas (ONU) e Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) que, desde as suas fundaes, tm forte atuao nas questes relacionadas ao patrimnio e a discriminao racial.

    Sobre o primeiro tema possvel dizer que, com a formao da UNESCO em 1945 e em virtude de nova concepo histrica de documento e dos avanos da Antropologia, ocorrem mudanas nos critrios de seleo dos bens a serem considerados monumentos histricos ou patrimnios histricos e artsticos nacionais14.

    At meados do Sculo XX, eram a arte e a histria os saberes que fundamentavam a escolha de monumentos. Imperava o conceito renascentista de beleza na seleo do patrimnio que se limitava apenas a bens mveis e imveis caracterizados pela grandeza e excepcionalidade. Conseqentemente, os edifcios e as obras de arte escolhidas como patrimnio pelas vrias naes europias durante o Sculo XIX correspondiam, em sua maioria, a vestgios da Antiguidade Clssica e a

    13 A Organizao Internacional do Trabalho (OIT) foi criada em 1919 pela Conferncia de Paz, aps a

    Primeira Guerra Mundial, com o objetivo de promover a justia social e o reconhecimento internacional dos direitos humanos e trabalhistas. A Organizao das Naes Unidas (ONU) e a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) foram fundadas em 1945. A primeira foi instituda com o objetivo de manter a paz e a segurana no mundo, fomentar relaes cordiais entre as naes, promover progresso social e melhores padres de vida e direitos humanos. A segunda agncia especializada da ONU foi criada para padronizar aes em relao a assuntos tnicos emergentes, disseminar e compartilhar informao e conhecimento, promovendo a cooperao internacional nas reas da educao, cincias, cultura e comunicao. 14

    As noes de monumento histrico e de patrimnio so, como afirma a antroploga Mrcia SantAnna (2001), datadas e ocidentais. Durante o sculo XIX, o conceito de monumento histrico se configura nos pases europeus, vinculando-se a instituies e prticas de preservao governamentais e civis. Simultaneamente, a idia de patrimnio histrico e artstico nacional se consolida como entidade englobadora do conjunto dos monumentos histricos, amparada em leis de proteo formuladas pelos Estados europeus, e como um dispositivo estratgico de sua organizao monumental. A prtica da preservao histrica contribuiu para a representao simblica da identidade e da memria da nao reforando o sentimento de nacionalidade por meio de uma narrativa histrica, bem como a valorizao de uma determinada produo artstica.

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    edifcios religiosos e castelos da Idade Mdia, destacados pela arqueologia ou pela histria da arquitetura erudita. Passam a ser incorporadas como patrimnio todas as formas de arte e construo eruditas ou populares, urbanas e rurais, edificaes pblicas ou privadas, suntuosas ou utilitrias. Altera-se igualmente a fronteira cronolgica do patrimnio incluindo a primeira metade do Sculo XIX, depois a segunda, o comeo do Sculo XX, at chegar s obras produzidas na metade deste sculo pelo modernismo.

    Como observa a antroploga Marta Anico (2005), ao abordar patrimnio na contemporaneidade, o perodo subseqente Segunda Guerra Mundial marca o incio de uma transformao qualitativa e quantitativa nos processos de configurao patrimonial, decorrentes de uma nova sensibilidade em relao aos referentes culturais potencialmente patrimonializveis. A proliferao de instituies e instrumentos vocacionados para essa tarefa, a criao de lugares, teatros ou locais de recordao e reminiscncia do passado (fenmeno conhecido como boom da memria) buscavam contribuir com o propsito de evitar o esquecimento e contrapor uma noo de tempo glacial, contnuo e estvel, a instantaneidade que caracteriza a temporalidade em contextos ps-modernos.

    Em 1972, a UNESCO produziu a Conveno do Patrimnio Mundial, Cultural e Natural, alarmada com os perigos que corriam os stios culturais e naturais existentes em funo da construo de grandes obras e do desenvolvimento e urbanizao acelerada das cidades. Neste perodo em encontros sobre o tema realizados pela organizao em pases do terceiro mundo foram elaboradas recomendaes com noes mais ampliadas de patrimnio cultural. Abordavam questes que tratam da proteo de lugares definidos como de valor scio-cultural, de aglomeraes tidas como reservas de modos de vida, das criaes annimas surgidas da alma popular e, por fim, das obras materiais e no-materiais que expressam a criatividade de um povo.

    Em 1989 aprovada, pela Conferncia Geral da UNESCO, a Recomendao sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular. Nela define-se que deve ser protegido o conjunto de criaes que provm de uma comunidade cultural, fundadas na tradio, expressas por um grupo ou por indivduos, e que reconhecidamente

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    correspondem s expectativas da comunidade enquanto expresso de sua identidade cultural e social. Os padres e valores dessas criaes seriam transmitidos oralmente, por imitao ou por outros meios; poderiam adotar diferentes formas: a lngua, a literatura, a msica, a dana, os jogos, a mitologia, os ritos, os costumes, o artesanato, a arquitetura, etc..

    O conceito de patrimnio imaterial ou intangvel se firma, no plano internacional, a partir de uma paulatina, hesitante e controversa transformao no conceito de cultura tradicional e popular que essa recomendao expressava. Reconhece-se que no se poderia apenas proteger as manifestaes culturais de uma determinada camada social que a categoria problemtica de popular abarcaria e que no poderiam ser excludas expresses contemporneas da cultura por uma interpretao limitada do termo tradicional.

    Em relao questo racial, oportuno lembrar que, aps os resultados catastrficos da Segunda Guerra Mundial, a UNESCO foi criada tendo como um dos seus principais objetivos tornar compreensvel o conflito internacional e a sua conseqncia mais perversa: o Holocausto. A persistncia do racismo, especialmente nos Estados Unidos e na frica do Sul, o surgimento da Guerra Fria e os processos de descolonizao africana e asitica mantiveram a atualidade do tema.

    A 5 sesso da Conferncia Geral da Unesco, realizada em Florena em junho de 1950, tornou pblica a 1 Declarao sobre Raa, que negou qualquer associao determinista entre caractersticas fsicas, comportamentos sociais e atributos morais. Nesse encontro foi aprovada a realizao de uma pesquisa sobre as relaes raciais no Brasil com o objetivo de oferecer ao mundo uma nova conscincia poltica que primasse pela harmonia entre as raas.

    Este organismo internacional patrocinou uma srie de estudos acerca do tema no pas entre os anos de 1951/52. As investigaes foram desenvolvidas em regies economicamente tradicionais, no Nordeste; em reas tidas como modernas, no Sudeste. Visavam apresentar ao mundo os detalhes de uma experincia no campo das interaes raciais julgada, na poca, singular e bem sucedida tanto interna, quanto externamente. Contrariando os resultados esperados, estas pesquisas revelaram a existncia do preconceito racial e da discriminao. Como aponta o cientista poltico

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    Marcos Chor Maio (1999), o ciclo de investigaes chancelado pela instituio intergovernamental ofereceu uma oportunidade singular para o desenvolvimento das Cincias Sociais no Brasil dos anos 50.

    Popularizam-se, neste perodo no cenrio internacional, as polticas pblicas de ao afirmativa. Surgidas, inicialmente, das dinmicas dos processos que resultaram na independncia dos pases da frica, do Caribe e do Pacfico Sul, antes colonizados pela Europa, objetivavam garantir o rpido acesso dos nativos s funes at ento monopolizadas pelos europeus e estimular a participao de determinadas etnias ou castas na vida econmica e social destas naes.

    Nos Estados Unidos, a segunda metade da dcada de 50 e a primeira da dcada de 60, so a poca de emergncia do movimento pelos direitos civis dos negros americanos e de promoo de polticas de ao afirmativa criadas pelo Estado ou pela sociedade civil. Essas se davam, geralmente, apoiadas por importantes decises da Suprema Corte15. Tambm nos anos 60, a ONU, preocupada com a persistncia das polticas de apartheid e de segregao nas antigas colnias europias e nos Estados Unidos, elaborou uma Declarao (1963); poucos anos depois, uma Conveno Internacional sobre a Eliminao de todas as Formas de Discriminao Racial (1965). Este organismo internacional tambm realizou em Genebra, na Sua, em 1978 e 1983 as duas primeiras conferncias mundiais para combater o racismo e a discriminao racial.

    Ainda que os fatos mencionados sejam importantes para a compreenso do surgimento das categorias jurdicas patrimnio cultural brasileiro e remanescentes das comunidades dos quilombos no Brasil, no podemos deixar de abordar o contexto nacional em relao a estes dois temas.

    15 Estas aes ultrapassaram as fronteiras nacionais e vm sendo utilizadas como paradigma pelos

    ordenamentos jurdicos da maioria dos pases que integram o sistema das Naes Unidas. De maneira similar, a luta dos negros americanos por seus direitos tem servido de inspirao aos movimentos negros de outros pases, em especial do Brasil.

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    1.2 O PATRIMNIO BRASILEIRO

    Segundo a antroploga Regina Abreu (2007), embora a formao do Estado Nacional e a construo da identidade do povo brasileiro tenham sido preocupaes constantes das elites polticas e intelectuais durante o perodo imperial e aps a proclamao da repblica, a insero da temtica do patrimnio na pauta destes segmentos comeou a tomar vulto no incio do Sculo XX.

    A Primeira Guerra Mundial, a proximidade do Centenrio da Independncia do pas e a crescente industrializao e urbanizao das cidades brasileiras desencadearam, entre estes grupos, maior angstia sobre a conformao e a reproduo da identidade nacional. No incio da dcada de 1920, emerge no pas a discusso sobre o que conservar e o que mudar num contexto de rpidas transformaes.

    De um lado temos o movimento pela conservao dos prdios pblicos e objetos vinculados histria do Brasil que resultou na criao do Museu Histrico Nacional e a mobilizao pelo registro das manifestaes culturais tradicionais locais e regionais, que derivou numa srie de livros sobre o folclore brasileiro. De outro, emerge o movimento modernista no campo das artes plsticas e da literatura disseminando a idia de criao de uma nova cultura que no ficasse refm do passado, ou das influncias estrangeiras que, sob a sua tica, despersonalizavam o pas, mas que buscasse nas formas tradicionais sua fonte de inspirao (ABREU, 2007).

    Como aponta a sociloga Maria Ceclia Londres Fonseca (1997), vrios intelectuais manifestavam, atravs de artigos, o interesse pelo destino e pela proteo da arte colonial brasileira, vista como manifestao de uma autntica tradio nacional. As primeiras respostas a estas demandas vieram dos governos estaduais, atravs da criao de acervos de monumentos histricos e artsticos. No nvel federal, um primeiro anteprojeto de lei para a defesa do patrimnio histrico e artstico do pas foi elaborado no mbito do Museu Nacional, mas foi considerado invivel porque atrelava a proteo desapropriao. Nesta poca, vrios projetos, com o objetivo de criar mecanismos para a proteo legal do patrimnio, vinham sendo apresentados no Congresso Nacional, mas sua aprovao esbarrava nas prerrogativas do direito de propriedade, asseguradas pela constituio e pela legislao em vigor.

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    O estado brasileiro, durante o governo de Getlio Vargas, buscou encampar as idias dos intelectuais modernistas no seu projeto de construo da nao. Em 1936, o Ministro da Educao e Sade, Gustavo Capanema, solicitou a Mrio de Andrade expoente do movimento modernista, que elaborasse uma proposta de salvaguarda do patrimnio brasileiro que foi utilizada nas discusses preliminares sobre o tema.

    No ano seguinte, foi criada a Secretaria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (SPHAN) atravs da lei n 378 com a finalidade de promover o tombamento, a conservao, o enriquecimento e o conhecimento do patrimnio histrico e artstico nacional. Ainda em 1937, promulgado o decreto lei n 25 que define o que constitui este patrimnio conjunto de bens mveis e imveis vinculados a fatos memorveis da histria do Brasil ou de excepcional valor arqueolgico, etnogrfico, bibliogrfico ou artstico, alm de monumentos naturais, stios ou paisagens de feio notvel e a forma jurdica de proteg-lo o tombamento. Rodrigo Melo Franco de Andrade, que foi autor do decreto lei, ficou encarregado da tarefa de organizar e dirigir o servio de patrimnio por Capanema.

    Por esta legislao, os bens tombados continuavam sendo de seus proprietrios, mas os donos deveriam se submeter fiscalizao peridica da SPHAN, s podendo realizar intervenes no local mediante autorizao prvia do rgo que promoveu o tombamento. Numa situao de venda dos bens, Estado teria preferncia na compra. Na vizinhana da coisa tombada, no seria possvel fazer construo que impedisse ou reduzisse a sua visibilidade, nem nela colocar anncios ou cartazes sem a permisso da instituio competente. O tombamento configura-se assim num procedimento administrativo que implica a inscrio do bem no Livro do Tombo e na transcrio deste ato no Registro de Imveis.

    Considerados de interesse pblico, os bens tombados se convertem, em alguma medida, em propriedade da nao, embora no percam seu carter de mercadorias apropriveis individualmente. Deste modo, o tombamento surgia como uma frmula de compatibilizar o direito de propriedade e a defesa do interesse pblico na manuteno de valores culturais. Esta soluo se tornou possvel na medida em que a Constituio de 1934 estabeleceu limites ao direito de propriedade, definindo-lhe o conceito de funo social. De outro lado, ao garantir ao proprietrio no s o uso como

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    a posse do bem material, o instituto do tombamento no implicava em aumento dos gastos pblicos, j que dispensava a desapropriao na prtica da preservao, reservando-a para situaes de comprovada ameaa a sua conservao.

    Para deliberar sobre os processos de tombamento da Secretria do Patrimnio, foi criado um Conselho Consultivo, composto pelo Diretor do SPHAN, por diretores dos museus nacionais e por membros nomeados pelo Presidente da Repblica. Na poca, os mandatos eram vitalcios, e a funo no-remunerada. O Conselho, que teoricamente deveria ser uma representao da sociedade junto ao rgo para legitimar as aes de preservao do patrimnio nacional tinha um alcance social bastante limitado. Isso se devia a sua composio restrita ao meio intelectual e a rea das humanidades e as disciplinas que eram ento relacionadas com a proteo dos bens culturais, tais como a Arqueologia, a Museologia e a Etnologia, e a forma de seleo de seus membros. No geral, as decises do Conselho ratificavam as propostas e os pareceres tcnicos encaminhados pelo SPHAN e recusavam, sistematicamente, as impugnaes.

    Na prtica dos tombamentos, foram priorizados os bens remanescentes da arte colonial brasileira. A justificativa dos agentes institucionais para esta preferncia era de que, com o processo de urbanizao, tais construes e objetos passaram a ser identificados pelas classes mdias afluentes (em que se incluam os imigrantes que enriqueciam com a industrializao); com um passado arcaico, primitivo, referente a presena portuguesa, cuja influencia cultural fora substituda pela francesa, inglesa e norte-americana. Os bens e conjuntos tombados refletiam uma leitura sobre o processo histrico de ocupao das diferentes regies brasileiras que considerava que a influncia presena portuguesa predominava sobre a indgena e negra; essas, praticamente, sem vestgios materiais significativos.

    O predomnio de arquitetos no corpo tcnico do SPHAN influenciou, significativamente, para que o critrio de seleo de bens com base em sua representatividade histrica da civilizao material brasileira ficasse em segundo plano. Eles os arquitetos se pautavam por critrios formais e agiam de acordo com uma leitura modernista da histria da arquitetura do Brasil que via afinidades estruturais

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    entre as tcnicas construtivas do perodo colonial e os princpios da arquitetura modernista (FONSECA, 1997).

    Como observam os antroplogos Manuel F. Lima Filho e Regina M. do R. Monteiro de Abreu (2007), quando tratam da Antropologia e do Patrimnio Cultural no Brasil, no discurso mtico sobre a origem desta instituio, apresentam-se duas perspectivas distintas que concorreram para a criao do rgo e para a definio do que deveria ser patrimonializvel: a viso de Mrio de Andrade e a de Rodrigo Melo Franco de Andrade. A primeira conteria uma verso mais culturalista e antropolgica, privilegiando uma noo de patrimnio que enfatizava os aspectos mais intangveis da cultura como manifestaes diversas da cultura popular; a segunda tenderia a focalizar os aspectos materiais do patrimnio e teria sido a vencedora na configurao e institucionalizao de polticas sobre o tema. Tal relato serviu para legitimar a viso de um grupo de gestores do patrimnio que mantiveram uma oposio ao poder hegemnico no campo, formado em grande parte por arquitetos, e que privilegiaram aes de preservao de cunho material pautadas em critrios histricos e artsticos.

    Em outra frente, os folcloristas organizaram em 1947 a Comisso Nacional de Folclore, voltada para os estudos das manifestaes culturais do pas. Foi na conjuntura do ps-guerra e de fundao da UNESCO que esta comisso lanou a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Esta mobilizao redundou na transformao da Campanha em um rgo executivo ligado ao Ministrio da Educao em 1958. No perodo de 1947 a 1964, foram produzidos importantes trabalhos sobre lendas, costumes, mitos, rituais, festas, celebraes, artesanato, culinria, musica, arte e cultura popular.

    No final da dcada de 1950, um parecer contrrio ao tombamento do Santurio de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, elaborado por um membro do Conselho Consultivo do SPHAN, considerava que as expresses da cultura popular deveriam ser apreciadas dentro de outra ordem que no a que presidia a prtica de preservao exercida pelo rgo, adequada aos bens mveis e imveis de excepcional valor artstico e histrico (FONSECA, 1997).

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    Conforme Lima Filho e Abreu (2007), a breve passagem do designer Alosio Magalhes pela SPHAN trouxe algumas idias novas com a criao do Centro Nacional de Referncias Culturais (CNRC). Ele tambm influenciou a transformao, por um perodo, da instituio de Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional em Fundao Nacional Pr-Memria. Em 1975, ele fundou o CNRC com o objetivo de traar um sistema referencial bsico para a descrio e anlise da dinmica cultural brasileira; pretendia, com este centro, cruzar o mundo das tecnologias e da indstria com o das tradies populares e do fazer artesanal. Fazendo uso das modernas tecnologias existentes, acreditava poder recuperar e proteger o que ele considerava as razes autnticas da nacionalidade. Em 1979, criada a Fundao Nacional Pr-Memria (FNPM), que substitui a SPHAN na implementao da poltica de preservao, incorporando o Programa de Cidades Histricas e o Centro Nacional de Referncia Cultural.

    Alosio Magalhes adotou uma perspectiva mais culturalista do patrimnio e formou um grupo de colaboradores que tinham uma viso crtica proposta hegemnica encarnada por Rodrigo Melo Franco de Andrade, considerando-a elitista. Segundo Maria Ceclia Londres Fonseca (2000), nesse perodo, agentes ligados s reas do desing, da indstria e da informtica no exerccio de uma prtica institucional sugerem reavaliaes das polticas culturais, introduzindo no debate a noo de referncias culturais. Cabe salientar que essa reorientao, embora promovida por pessoas vinculadas a atividades tidas como modernas, estava em consonncia com as mudanas ocorridas nos diferentes campos das Cincias Sociais (da Histria, mas, sobretudo, da Antropologia). Tratava-se de uma postura inovadora em relao noo de patrimnio histrico e artstico; remetia, principalmente, ao patrimnio cultural no-consagrado. Nesse perodo, mais precisamente no ano de 1972, a UNESCO instalou um escritrio no Brasil. A morte prematura de Alosio e o acirramento das disputas internas no rgo no possibilitaram que uma proposta culturalista de patrimnio vingasse, permanecendo a viso at ento preponderante. No entanto, alguns esforos isolados continuaram a ser implementados.

    De acordo com o antroplogo Marcio Augusto Freitas de Meira (2004), somente no final dos anos 70 se iniciou, no interior do Estado brasileiro, um debate sobre tal

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    questo. Vislumbrava-se a possibilidade de traduo do conceito antropolgico de cultura: de um complexo de saberes e prticas de um povo, num conjunto de polticas pblicas que considere a cultura no apenas como arte, mas como um direito fundamental dos cidados, sendo inclusive definidora da sua humanidade e do seu exerccio republicano de cidadania. Essa idia teria comeado a se evidenciar, ainda segundo este autor, durante a ditadura militar, atravs das aes de Alosio na Secretaria de Cultura e no IPHAN.

    Conforme aponta Jos Maurcio A. Arruti (2006), no incio da dcada de 1980 comeou a se gestar, no interior da FNPM, a discusso em torno dos chamados Monumentos Negros. O debate mais amplo tinha por motivao a renovao da noo de patrimnio, e, nesse sentido, esta fundao encaminhou os trabalhos que iriam ter resultados significativos: o tombamento do Terreiro de Candombl da Casa Branca16 (Salvador, BA) primeiro a ser considerado patrimnio histrico e artstico nacional ; discusses relativas ao tombamento da Serra da Barriga17 (Unio dos Palmares, AL) como stio histrico.

    Ao propor a introduo de bens do patrimnio cultural no-consagrado no patrimnio histrico e artstico nacional e a participao da sociedade na construo e gesto deste patrimnio, a poltica da Fundao Nacional Pr-Memria visava se inserir na luta mais ampla da sociedade brasileira pela reconquista da cidadania. Contudo, a poltica hegemnica do instituto, desde sua fundao em 1937 at final dos anos 90, privilegiou os tombamentos e a preservao de edificaes de pedra e cal, de conjuntos arquitetnicos e paisagsticos, a proteo de bens mveis e imveis considerados de relevo para a nao brasileira por suas caractersticas.

    No ano de 1985, o governo federal brasileiro criou o Ministrio da Cultura (MinC), atravs do Decreto 91.114, e, atravs dos rgos responsveis pela preservao do Patrimnio at ento vinculados ao Ministrio da Educao, lhe repassou a misso de pensar a cultura arquitetnica, artstica, histrica. Os secretrios estaduais de cultura, articulados num frum nacional, tiveram um papel significativo na

    16 VELHO, Gilberto. Patrimnio, negociao e conflito. In: LIMA FILHO, Manuel Ferreira, BELTRO, Jane

    Felipe, ECKERT, Cornelia (orgs.). Antropologia e Patrimnio Cultural: dilogos e desafios contemporneos. Associao Brasileira de Antropologia. Blumenau: Nova Letra, 2007. 17

    CORREIA, Rosa Lucia Lima da Silva. Mito e Territorialidade: o monumento nacional e a comunidade da Serra da Barriga. Democracia Viva, IBASE, Rio de Janeiro, n. 34, v. 1, 2007.

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    implantao do MinC com o argumento de que a Unio deveria assumir seu papel na coordenao da poltica cultural.

    1.3 A QUESTO RACIAL NO BRASIL

    No Brasil Colnia e Imprio, no houve lugar para o negro no imaginrio18 nacional portugus ou brasileiro. As elites desejavam um pas branco o que buscavam atravs do incentivo imigrao europia para a colonizao19. Some-se a isso o esforo para brutalizar os negros que importavam do continente africano como cativos e os que aqui nasciam por meio da escravido, sob a justificativa de estarem contribuindo para a sua domesticao e civilizao. Apenas na Repblica o problema de como integrar simblica e materialmente os negros nao foi colocado. As elites se queixavam e se envergonhavam de no contar com um povo branco e homogneo, mas sim com um que alguns consideravam pervertido pela escravido, outros pela raa, ou ainda pelo primitivismo cultural. A soluo encontrada foi substituir a mo de obra escrava por uma nova onda de trabalhadores brancos importados, que deveriam tambm embranquecer a sociedade pela mestiagem sucessiva das geraes futuras (GUIMARES, 2000).

    Em So Paulo, passados pouco mais de quarenta anos da abolio da escravatura, os negros continuavam em sua maioria nas camadas subalternas e marginais da sociedade, onde, inicialmente, tambm estavam os imigrantes europeus. No entanto, a esta altura, estes ltimos j tinham rompido a barreira de classe e vinham se integrando nacionalidade atravs do domnio da cultura luso-brasileira. A impermeabilidade da estrutura social brasileira mobilidade dos negros mais escuros foi um dos estmulos e uma das justificativas para que se formasse um movimento

    18 De acordo com Baczko (1985), o imaginrio social se assenta e opera por meio de sistemas simblicos

    que so construdos a partir da experincia dos agentes sociais, dos seus desejos, aspiraes e motivaes. Ele uma das foras reguladoras da vida coletiva, designando identidades, elaborando determinadas representaes sociais, estabelecendo e distribuindo papis e posies sociais, exprimindo e impondo crenas comuns. 19

    SEYFERTH, Giralda. O beneplcito da desigualdade: breve digresso sobre o racismo. In: BENTO et al. Racismo no Brasil. So Paulo: Peirpolis; ABONG, 2002.

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    social com o objetivo de integrar socialmente os negros (FERNANDES, 1965 e GUIMARES, 2002).

    Surge assim, na dcada de 1930, a Frente Negra Brasileira (FNB). Ela buscava afirmar o negro como brasileiro renegando as tradies culturais que acreditavam contribuir para a sua discriminao e denunciar o preconceito de cor que alijava este segmento do mercado de trabalho em favor dos estrangeiros. A ideologia nacionalista de integrao e assimilao que norteava a FNB exclua deste movimento a defesa das formas culturais africanas como o candombl e a umbanda, vistas como resqucios primitivos que contribuam para a estereotipizao deste segmento.

    Esta organizao poltica chegou a se transformar em partido antes de ser extinta pelo Estado Novo; apesar de conter algumas dissidncias socialistas, era majoritariamente de direita, de corte fascista, incluindo at mesmo um grupo paramilitar. Seus integrantes apoiaram o golpe de Getlio Vargas (1937) que, em alguma medida, implementara polticas que iam ao encontro das suas reivindicaes; contudo, como a ditadura prescindia de organizaes polticas livres, o protesto negro s poder emergir com a restaurao das liberdades civis oito anos depois (GUIMARES, 1999 e 2002).

    A redemocratizao em 1945 foi marcada por um forte projeto nacionalista em termos econmicos e culturais. Este ofereceu aos negros uma melhor insero econmica e transformou em nacionais ou regionais as diversas tradies culturais de origem africana ou luso-afro-brasileira, tais como o barroco colonial de Pernambuco, Bahia e Minas, as procisses catlicas, as festas de largo, o samba, o carnaval, a capoeira, o candombl, entre outros. A nacionalizao dos diversos regionalismos culturais e a integrao dos negros como trabalhadores brasileiros contriburam para a configurao do imaginrio de que o pas, se no era de fato, deveria ser futuramente uma democracia racial.

    Guimares (2006) procura demonstrar que, mais do que um mito ou uma ideologia, a democracia racial brasileira teve sentidos, despertou expectativas, esperanas e aspiraes diferenciadas em trs perodos: anos do ps-guerra (1945-1964), da ditadura militar (1964-1985) e da Nova Repblica (depois de 1985). Ela foi um modo tacitamente pactuado de integrao dos negros sociedade de classes do Brasil ps-guerra, tanto em termos de simbologia nacional quanto em termos da sua poltica

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    econmica e social. Tratou-se, contudo, de um compromisso limitado que inclua apenas parte dos trabalhadores urbanos (alijando deste processo outros segmentos populares urbanos e os trabalhadores rurais); no havia espao para o reconhecimento de formaes tnico-raciais que pretendessem participar do sistema poltico.

    A ampliao do mercado de trabalho urbano brasileiro, neste perodo, absorveu grandes contingentes de trabalhadores pretos e pardos, incorporando-os definitivamente s classes operrias e populares urbanas. Incorporao esta que foi institucionalizada por leis como a de Amparo ao Trabalhador Brasileiro Nato, assinada por Vargas em 1931, que garantia que dois teros dos empregados em estabelecimentos industriais fossem brasileiros natos; ou a lei Afonso Arinos, de 1951, que transformava o preconceito racial em contraveno penal.

    O ideal modernista de uma nao mestia foi absorvido pelo Estado, e as manifestaes artsticas, folclricas e simblicas dos negros brasileiros foram reconhecidas como cultura afro-brasileira, sendo que o afro designava apenas a origem da cultura que, acima de tudo, era definida como regional, mestia e, como o prprio negro, crioula.

    Um dos aspectos singulares deste acordo implcito foi crena generalizada de que as desigualdades oriundas do escravismo deveriam e poderiam ser eficazmente combatidas com a universalizao das oportunidades de vida e com garantias a competio por mrito em mercados livres de particularismos sociais, culturais, polticos ou biolgicos. Tratava-se de implantar um regime que alijasse do poder a classe senhorial e estabelecesse uma democracia representativa cujo alicerce estivesse assentado sobre as classes produtoras e trabalhadoras urbanas. Os negros e mulatos entravam politicamente neste compromisso como povo, trabalhadores e intelectuais.

    Ainda sim, o protesto negro no desapareceu neste perodo, mas amadureceu intelectualmente; na medida em que se ampliavam os mercados e a competio, a discriminao racial tornava-se mais problemtica. Os preconceitos e os esteretipos continuavam a perseguir os negros, e grande parte da populao de cor permanecia marginalizada em favelas, mucambos, alagados e em locais onde se dava a agricultura de subsistncia. Neste contexto, sero justamente os negros em ascenso social, aqueles recentemente incorporados sociedade de classes, que expressaro com

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    maior contundncia os problemas da discriminao, do preconceito e das desigualdades.

    O Teatro Experimental do Negro (TEN) do Rio de Janeiro foi, nesta poca, a principal organizao negra do pas. Apesar de, no incio, ter um objetivo eminentemente cultural de abrir o campo das artes cnicas brasileiras aos atores negros, acabou se transformando numa agncia de formao profissional, clnica pblica de psicodrama para a populao negra e movimento de recuperao da imagem e da auto-estima dos negros brasileiros. Este grupo ampliar a agenda anti-racista incluindo nela a luta contra a introjeo do racismo pela populao negra que se dava pela aceitao do ideal de embranquecimento, dos valores estticos brancos e da detrao da herana cultural africana. No entanto, a ideologia predominante do movimento ser nacionalista e integracionista, na medida em que, nela, a idia de que somos uma s nao e um s povo unida da negao das raas enquanto realidade fsica; busca uma redefinio do Brasil em termos negros mestios. (GUIMARES, 1999, 2002).

    O regime militar entre 1964 e 1985 rompeu com alguns pressupostos do acordo implcito realizado no perodo anterior. Embora se mantivesse a nfase na universalizao das oportunidades de vida e no combate corrupo que maculava a competio por mrito, as reformas educacionais do perodo militar ampliaram, prioritariamente, o acesso ao ensino primrio e mdio, cabendo iniciativa privada criar novas universidades. O acesso s melhores instituies de ensino superior pblicas passou a associar-se com o ensino e cursinhos pr-vestibulares particulares. Isso significou, tambm, associar o ingresso a essas universidades a rendas familiares mais altas e cor da pele mais clara. Desta forma, acentuou-se a rigidez da reproduo social das elites, voltando-se a associar classe, cor e oportunidades pblicas de ascenso a nveis similares ao da Primeira Repblica. Outrossim, o regime