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03Caso Literario - 2 Monologo

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* Capítulo de livro inédito intitulado “A Psicose de Nietzsche”. ** Psiquiatra, ensaísta em temas filosóficos, membro da Academia de Ciências de Minas Gerais. Ataulpho da Costa Ribeiro** Endereço para correspondência: 86 Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2)86-90 O último monólogo de Nietzsche 87 Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):86-90 88 Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):86-90 O último monólogo de Nietzsche 89 Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):86-90

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Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2)86-90 86

* Capítulo de livro inédito intitulado “A Psicose de Nietzsche”.** Psiquiatra, ensaísta em temas filosóficos, membro da Academia deCiências de Minas Gerais.

Endereço para correspondência:Rua Califórnia 100030315-500 Belo Horizonte [email protected]

Ataulpho da Costa Ribeiro**

Em três de janeiro de 1889, em rápido delíquio, Nietzscheperde os seus sentidos, em plena praça pública de Turim. O fatorevestiu-se de intensa dramaticidade e ocorreu quando o filósofose lançou ao pescoço de um cavalo procurando, com suas lágri-mas, exclamações e gestos, protegê-lo das sevícias que então lheeram infligidas por seu proprietário.

Ao retornar à sua consciência, à consciência de si mesmo, desi mesmo e dos objetos, em uma percepção semicrepuscular darealidade feita de fragmentos que se esparsam, tributários de umametamorfose psicótica que, pouco a pouco, vem destruindo-lhe oespírito, o pensador entretém-se consigo mesmo, em uma derra-deira e dolorosa vez. Culminando esses tempestuosos dias queprecedem sua perda da razão, expressando-se em um introspecti-vo, pungente e quase inaudível solilóquio, nele rememorando osgrandes episódios e vicissitudes de sua vida, em citações suas, gra-fadas no texto, ele confidencia às suas evocações o seguinte e pos-sível diálogo imaginário:

1889... Três de janeiro... Depois de Cristo...Por que não do ano I, por que não registrar o tempo con-

soante uma nova cronologia, a iniciar-se em 30 de setembro de1889, quando termino meu livro O Anticristo, quando enunciominha contra-avaliação dos valores, a primeira da História, quan-do aclamo e celebro as exéquias do velho mundo, aquelas de umDeus morto até mesmo no coração dos crentes? Por que não trêsmeses e três dias após o último dia do cristianismo?

Por que depois do disangelho, por que depois da má nova,por que antes do evangelho da aquiescência e da vontade?Zaratustra, o mais ativo de todos os niilistas, o mais piedoso doshomens que não acredita em Deus, sucessor de divindades mortas,com suas canções, discursos e exortações, não é a boa nova, amensagem da consagração, o evangelho da terra, da anuência e davontade, o antípoda dos antigos valores, a antítese da noluntas, ointercessor da vida, removendo velhas e pesadas mortalhas? Eu sópoderia acreditar em um Deus que soubesse dançar. ... Não é dignode ser recordado um dia transcorrido sem dança.

Talvez eu seja um novo messias, um apóstolo sem deus, aantítese da vontade niilista, um fragmento da fatalidade... Emtodas as minhas obras, desde os meus mais distantes ensaios juve-nis, reconheci na morte de Deus o mais importante dos aconteci-mentos recentes, analisei e proclamei as suas conseqüências maisprofundas, imediatas e remotas, descortinando novas expectati-vas, novos valores, outras perspectivas. Em todas elas, desenvol-

vendo uma filosofia superior do ateísmo, denunciei os filósofoscomo semi-sacerdotes, como uma espécie de párocos de aldéia,então afirmando que o teólogo protestante é o avô da filosofiaalemã. ... Todos os que nascerem depois de nós pertencerão, em con-seqüência desse ato, a uma história maior.

Todos nós, deicidas e niilistas, que vivemos em um mundoimpensável e difícil, desprovido de valores eternos, jungidos àscontingências das coisas, à natureza efêmera dos fenômenos,não temos onde aplacar a sede do espírito. Embora o pensamen-to seja um deleite para quem possui uma vocação subjetivavoltada à análise e consciência dos grandes temas da existência,ele também enseja, em nível crítico, angústias dolorosas,desesperos noogênicos e profundos, jamais aliviados por umasó certeza confortante.

Toda a minha obra canta e celebra o triunfo de Dionisos, asua epifania, em hinos de louvor, de transcendência e fervor.Todas as coisas foram batizadas na fonte da eternidade; ... é aos pésdo acaso que elas preferem dançar. ... O céu se rejubila, aclama e setransforma, todos cantam, o silêncio exclama e fala, todos setransfiguram na exortação e retorno de Dionisos, deus da abun-dância e da saciedade, ... senhor das antíteses... Em toda a parte“tristaníssimos” e dolorosos acordes. Queres cantar, ó! minhaalma! Não cantes, silêncio, não cantes! O meu mundo se consu-mou. ... Todos os deuses morreram; doravante queremos que viva oacima-do-homem, um tipo maior, simultaneamente poeta, decifra-dor de enigmas e redentor do acaso. Perguntaram-me alhures, emmeu Zaratustra: Quem removerá de teus ombros o peso dessamelancolia? Todos nós fomos chamados à alegria, diziaHölderlin, o poeta de minha predileção.

Sou o primeiro niilista completo da Europa, a primeira e maisradical consciência da total e absoluta caoticidade do mundoadverso em que vivemos; fui dos primeiros pensadores a admitirque não há verdades absolutas; um dos poucos a reconhecer quea vida é uma anomalia no universo, assim como a consciência o énas estruturas, economia e leis da existência. Em suas perspecti-vas – eu o sei – o niilismo é ambíguo. No niilismo passivo, a von-tade e a inteligência abdicam de seus poderes virtuais; no niilismoativo, que constitui o eixo de minhas meditações mais profundas,pelo contrário, elas trabalham as niilidades da existência consoan-te um propósito criador. Vontade de poder e niilismo, niilismopassivo, excluem-se. Disse alhures que o homem prefere um quan-tum de poder a um plus de felicidade, acrescentando: Lieber kön-nen, nicht wissen, “ao saber prefiro o poder”. Deplorando nossasperdas infinitas criei, em meu Ecce Homo, um longo e expressi-

O ÚLTIMO MONÓLOGO DE NIETZSCHE*NIETZSCHE’S LAST MONOLOGUE

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O último monólogo de Nietzsche

vo substantivo composto: Das Seinen-Nutzen-nicht-mehr-finden-können, “o não mais poder encontrar sua utilidade”. Minha filo-sofia é uma escola de fidalgos, ... o homem nobre honra o poder.Insurgindo-me contra as idéias tradicionais, aquelas da filosofiaclássica, de suas especulações verbalistas, de seus pressupostosabstratos, eu sepultei nossa confiança na moral, na moral darenúncia e da repressão, substituindo as antigas por novas tábuasde valores. Em minha última autobiografia, em seu conciso e des-concertante texto, mostrei-me à História, contrapondo-me aoCrucificado: Ecce homo. ... Ecce homo, wie man wird, was man ist...

Conheço o meu destino. ... Só o depois de amanhã me perten-ce; alguns nascem póstumos. Através de meu filho Zaratustra,menosprezando o logos, a abstração fria e mortífera, proclamei oprimado do pathos, a preeminência do ser, restabelecendo o rio ea inocência do devir, outrora amaldiçoados pela idiossincrasia dosfilósofos. A natureza dolorosamente efêmera e agonística das coi-sas, como não reconhecê-la? O homem não é um ser de razão, éum ser de vontade, vivendo em um cruel cenário darwinista. Se arepresentação detém o devir, os sentidos o constatam. Deixai vir amim o acaso, disse em meu Zaratustra, evocando e ressaltando opoder potencial do homem.

Parmênides e Orfeu, mestres de Platão. Parmênides, o maisglacial e anti-helênico instante do pensamento grego. Platão, oanti-Heráclito... Sabe-se que Heráclito chorava, publicamente,pelo infortúnio de estar vivo. Hybris, essa palavra perigosa, é apedra de toque de todo discípulo de Heráclito. ... Sócrates e Platão,almas sombrias, tortuosas, protótipos de valores negativos, deparâmetros reativos, modelos de decadência. ... Sócrates era feio.Sócrates e Dionisos, a nova antítese. Em seus desvarios, ao procla-mar a hegemonia da razão, o homem perdeu infinitamente, abriurupturas em sua própria e mais íntima essência. Eu anuncio umnovo triunfo do paganismo; Deus morreu, morreu infinitamente,morreu até mesmo e sobretudo no coração daqueles que o vene-ram, cujo incenso escamoteia uma confiança titubeante. Der neueund alte Glaube, a primeira fé e aquela que se propõe substituí-la...

Nasci em 15 de outubro de 1844, na pequenina e quase des-conhecida aldeia de Röcken, perto de Leipzig. Aos meus quatroanos de idade, em uma perda dolorosa, insubstituível, que tortu-rou-me ao longo de todos os meus dias, meu pai faleceu precoce-mente, aos seus 36 anos de existência. Pastor afeiçoado à música,dele herdei esse privilégio e esse pendor. Aos meus olhos decriança, doravante perplexa, a vida então desdobrou toda a suacrueldade injustificada, os desacertos que a estruturam, a totalausência de uma finalidade racional nas coisas. Desde a infância,nunca me iludi quanto à Absurdität do mundo, ao primado doabsurdo. Nos horizontes de meu espírito, em seus confrontos,recusas e questionamentos, entrementes, descortinaram-se novasestrelas, novos itinerários, todos eles repudiando a pesada heran-ça cultural que me era imposta. Denominei a mim mesmo, poste-riormente, der Unzeitgemässe, um pensador inatual, consideran-do todos os filósofos a má consciência de seu tempo. Desde entãoabateu-se sobre o meu espírito uma profundae pungente Verlassenheit, um poderoso e plúmbeo sentimentode derrelição, de desamparo inerme. Alhures eu escrevi: Punge,punge de novo, punge crudelíssimo aguilhão, ... punge, ohDeus desconhecido!

Aos 24 anos de idade, em 1869, fui nomeado professor deFilologia Clássica na Universidade de Basiléia. Dessa matriz nas-ceu a minha filosofia. Fui admitido sem concurso prévio, louvan-do-se no só mérito de meus trabalhos universitários. Os alunosestimavam-me, como amigo e preceptor. Em 2 de janeiro de 1872publiquei meu primeiro livro, intitulado O Nascimento daTragédia, esse centauro do espírito. Sobre ele escreveu-me Wagner:Schöneres als Ihr Buch habe ich noch nicht gelesen. Meus discípu-los, 22 dias depois, como escrevi a Rohde, logo após, no dia 28,queriam desfilar pelas ruas da cidade, à noite, portando tochasacesas, em homenagem à minha pessoa. Declinei, naturalmente.

Nesse mesmo ano de 1869 ocorreu, em Basiléia, a IVInternacional dos Trabalhadores. A rumorosa presença dos anar-quistas, desses utopistas messiânicos, não despertou uma sóobservação de minha parte. Recordava Horácio: Odi profanumvulgus et arceo. ... Et arceo... Eu não me interesso pela questão ope-rária porque o trabalhador é um entreato da história. Para mim, aquestão social é uma conseqüência da decadência, não a sua causa.Zaratustra feliz porque terminou a luta de classes, disse alhures...Hegel, por seus escotomas racionalistas, celebrando a Históriacomo triunfo da razão, foi incapaz de reconhecer que ela é um riode sangue, que ela oscila como um pêndulo, entre poderes queoprimem e oprimidos que se revoltam.

Publiquei muitos livros, versos e canções, em todos elesrepudiando os antigos valores, aqueles que turvam e envenenamas águas da existência – embora seja descendente de várias gera-ções de eclesiásticos cristãos. As minhas obras, todas elas, são gran-des saturnais do espírito. Muitas vezes julgo-me seu único leitor:mihi ipsi scripsi. ... Sou o escritor do caos por excelência. Talvezseja um terrorista da cultura. No caminho de minhas heresias, aolongo de minhas contestações e recusas, colhi uma nova doutrina,alhures anteriormente vislumbrada por reflexões de outros pen-sadores, capaz de ensejar um novo destino; nessa nova perspecti-va, desdobrando o pensamento de Darwin até suas últimas con-seqüências, antevi um porvir promissor, aquele de um homemacima de si mesmo, que supera contingências, desacertos, humi-lhações e determinismos aleatórios, capaz de desfazer, como anti-Alexandre, o nó górdio da civilização. Posteriormente, perguntariaa mim mesmo: Onde reedificaremos o Jardim de Epicuro, ... ondeconstruir um claustro laico?

Reiteradas vezes reconheci e proclamei que a história é a refu-tação experimental da pretendida ordem moral do universo. Quesão as suas cansativas crônicas senão uma enfadonha e permanen-te sucessão de desvarios, de crimes e crueldades? Quem, hoje, nãotem a boca, o coração e os olhos cheios de asco? Escrevi em meuZaratustra: A dor de Deus é maior. Estendei vossas mãos à dor deDeus, não à minha dor. Foi Ele quem criou o homem. ... Os espí-ritos mais preocupados indagam: Como salvar o homem? MasZaratustra pergunta – e é o único e o primeiro a fazê-lo: Como supe-rar o homem? ... O que amo no homem é ser ele uma transição eum fim, uma expectativa, a possibilidade de um ser superior.

Zaratustra, o livro dos livros, ... o vestíbulo da minha filosofia,... é um livro à parte. Ele não tem paralelo. Não há psicologia, nãohá arte de escrever, antes de Zaratustra. Sua leitura apenas cursiva,semântica, é fácil; ela, entretanto, sequer aflora o cerne de suamensagem. Vive-se antes, vive-se depois de Zaratustra. Em EcceHomo, nessa última retrospectiva de minha vida, dediquei-lhe

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quinze páginas, contra apenas duas à Genealogia da Moral, qua-tro à Aurora, oito à Humano, demasiado humano, sete à minhaprimeira contra-avaliação dos valores, que denominei ONascimento da Tragédia. ... De que serve um livro que não nostransporta além dos outros livros? Nessa obra eu vivo uma expe-riência interior que não compartilho com ninguém. Outrossim, nãoconcedo a nenhuma pessoa, viva ou morta, o direito de falar emmeu nome. Afirmei alhures que um bom livro enriquece aquelesque lhe são hostis... Nesse poema filosófico, reordenando as inces-santes e adversas metamorfoses do mundo, suas dissonâncias,desencantos e privações, suas clivagens e perplexidades, o ser e odevir se conciliam, em intermináveis celebrações de louvor, deapoteoses, júbilo, ressonâncias e plenitude, recolhimento, fervore introspecção. Suas efusões líricas, semi-místicas por suas visõesinteriores, por seu esplendor e vaticínios, por seus cânticos deexpectativa, por seus prenúncios e colóquios, confidências e sub-jetividade, por suas continuadas ressurreições do ser, transbor-dam em uma interminável sofreguidão de milagres... De todoescrito só me agrada aquele que o homem escreveu com o seu pró-prio sangue. Escreva com sangue e aprenderás que o sangue é espí-rito. ... É preciso ter um caos dentro da alma para engendrar estre-las que dançam. Sua doutrina, que exorta a uma eticidade supe-rior, é o chanceler de uma nova História... Quem poderá ser indi-ferente à angústia de Zaratustra, ao grito de socorro que chega àsua solidão, exortando à superação do homem? Lê-se em seutexto: Se alguma vez a minha cólera profanou sepulturas, removeubarreiras e precipitou velhas tábuas partidas em escarpadas profun-dezas; se alguma vez estive sentado, cheio de alegria, no sítio ondejazem deuses antigos, abençoando e amando o mundo, ao lado dosmonumentos de seus antigos caluniadores; se alguma vez joguei osdados com os deuses, na divina mesa da terra, ... como não hei deestar anelante da eternidade, anelante do nupcial anel dos anéis, oanel do eterno retorno?

Por que o homem, já conhecendo suficientemente a realida-de hostil do universo, a natureza apenas imanente de seu ser e domundo, o seu obscuro lugar na ordem natural das coisas, já dis-pondo de um grande domínio sobre as leis da matéria, ainda nãodecidiu por dominar o seu próprio destino? Por que os homens,saturados de técnica, de crimes, de alienação e tédio, se deixamviver em uma civilização enervante e daninha, não se esforçandopor predeterminá-la consoante um desígnio inteligente, contra-pondo-a à natureza, desprovida de um propósito finalístico que aconsagre, inspire e redima? Sobre todas as coisas estende-se o céudo acaso, à espera de um gesto redentor... O homem, será ele umerro de Deus?

Quando pela primeira estive com os homens, cometi a loucurado solitário, a grande loucura: fui para a praça pública, atormentan-do-me com as moscas do mercado, com seus discursos de vingan-ça e reivindicação. Na praça pública, entretanto, ninguém acreditano grande homem. Em uma anotação imediatamente posterior adezembro de 1887, indaguei: Onde estão os bárbaros do séculoXX? Obviamente, eles só vão aparecer e se consolidar após enormescrises socialistas. Disse em meu Zaratustra, na parábola intituladaO Mendigo Voluntário, ao dirigir-lhe minhas palavras: Não serásaquele que, envergonhado da riqueza e dos ricos, fugiu para juntodos pobres, a dar-lhes sua abundância e seu coração? Que foi queme impeliu para os mais pobres? Não foi a aversão que sentia pelos

mais ricos dos nossos? Pelos forçados da riqueza, que aproveitamseus lucros em todas as varreduras, com olhos frios e concupiscen-tes? Por essa chusma, cuja fetidez sobe até o céu? Por essa douradae falsa populaça, cujos ascendentes eram gente de unhas compridas,aves carnívoras ou trapeiros, com mulheres complacentes, lascivas eesquecediças, pouco diferentes de rameiras? Plebe em cima, plebeem baixo! Que significam, hoje, pobres e ricos?

Quando contemplo os numerosos itinerários e desencontrosde minha vida, sua vertente introspectiva, seus hiatos e dissonân-cias, seu âmago e dédalos, vejo-me inteiramente só, desnudo einerme, incapaz de reerguer as forças da vida, de refazer seu dina-mismo, o elã que a soergue e vivifica, de surpreender e reconquis-tar seus caminhos cotidianos e simples, aqueles de outrora, reple-tos de luz, de azul e de sonhos... Em minhas horas mais silencio-sas, em minhas confidências mais subjetivas, mudas e solitárias,sinto-me a encarnação viva do niilismo mais sombrio, da maisabsoluta derrelição, como se fosse uma representação sem maté-ria, uma vida desprovida de corpo, destruída por si mesma, porum pensamento que se fez crítico, impiedoso e desumano, espe-lho de outros espelhos, todos destituídos de imagens representa-tivas da ilusão que torna acreditável a vida...

Há sempre um pouco de razão na loucura. ... Serei porventuraum adivinho, um sonhador, um ébrio, um interprete de sonhos, umsino da meia-noite, uma gota de orvalho, um perfume de eternida-de? Não ouvis? Não percebeis? O meu mundo acaba de se consu-mar; a meia-noite é também meio-dia, a dor é também uma alegria,a maldição é também uma bênção, a noite é também um sol.Alguma vez dissestes sim a uma alegria? Então dissestes sim a todasas dores! ... Toda alegria quer eternidade, quer profunda eternida-de.

A enfermidade sempre foi a dolorosa sombra de meus dias,dias de constante, solitário e penoso sofrimento; eu a suportei, aolongo dos anos, como se fosse o último dos estóicos, alhures reco-nhecendo e proclamando que ninguém carrega na alma um desti-no semelhante ao meu. Em 1865 conheci a obra de Schopenhauer,sua exaltação da vontade, seu repúdio à representação; consoan-te suas palavras, a consciência é um acidente da vontade. Nestadata conheci Wagner, privei de sua amizade e confiança, entãocompartilhando um só e mesmo ideal, visitando-o vinte e trêsvezes em Tribschen, a Ilha dos Bem-aventurados, em Luzern, ondesempre me era reservado um Denkenzimmer, um “cômodo parapensar”; a última em companhia de Lou Salomé, quando Wagnerjá residia em Bayreuth. Depois, sobreveio um desentendimentorecíproco. Ao enviar-me um exemplar de Parsifal, sua obra após-tata, aos meus olhos, curvando-se à poderosa influência catolisan-te de sua mulher, Cosima, nela renegando nosso comum ideal deuma regeneração da cultura, subscreveu a dedicatória comomembro do Oberkirchenrat, como Alto Conselheiro da Igreja...Essa foi a perfídia, a ofensa mortal que ele me infligiu, alhures rui-dosamente mal interpretada. Em nosso derradeiro encontro, noano de 1876, em Sorrento, ele falou-me de suas profundas emo-ções religiosas, enaltecendo-as... Como Dionisos me fala de manei-ra diferente... Só alguns anos depois de nossa fervorosa convivên-cia compreendi que sua música está a quatro passos do hospital.Sua morte, a hora sagrada de sua morte, em Veneza. Meu bizetis-mo, hostil à sua obra, reverenciava Carmem como a antítese irô-nica de suas músicas e pensamento; eu a assisti pela primeira vez

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O último monólogo de Nietzsche

em Gênova, no dia 26 de abril de 1881. No mesmo dia e mês de1872, antes de deixar Tribschen, com destino a Bayreuth, Cosimapediu-me, à noite, que improvisasse ao piano... Lou Salomé, umsegundo e doloroso equívoco: Ao chamar alegria a seus torpessonhos, envenenaram as palavras, observa Zaratustra.

Cosima, Nietzsche e Wagner, Ariadne, Dionisos e Teseu...Quem sabe o que é Ariadne? ... Dionisos e Ariadne, o equilíbriofeliz de todas as coisas. Em um extrato de conversações fragmen-tárias e imaginárias, entre Dionisos, Teseu e Ariadne, na ilha deNaxos, idealizei um breve diálogo: Teseu tornou-se absurdo, dizAriadne, Teseu tornou-se virtuoso./Ciúme de Teseu pelo sonho deAriadne./O herói, que admira a si mesmo, torna-se absur-do./Lamento de Ariadne./Dionisos, sem ciúme, diz a Ariadne: Oque amo em ti, como poderia amá-lo Teseu?/Último ato. Bodas deDionisos e Ariadne./ ... Ariadne, diz-lhe Dionisos: tu és um labirin-to. Teseu se perdeu em ti, já não possui o fio que o possa salvar doMinotauro. ... O que amo em ti, como Teseu o poderia privilegiar?Como ele poderia alegrar-se por não ter sido devorado peloMinotauro? Aquilo que o destrói é pior que um Minotauro. Tu melisonjeias, responde Ariadne, eu estou cansada da minha compai-xão. Todos os heróis devem morrer por mim. Este é o meu extremoamor por Teseu: eu o faço perecer.

Uma só e rápida palavra sobre a Alemanha. Sou o depreciadordos alemães por excelência... Eles não têm dedos para nuanças. Aosmeus olhos, ser um bom alemão significa desgermanizar-se.Quando o cristianismo agonizava, os alemães o salvaram, insti-tuindo a Reforma, sempre retardando a história. Não obstante,eles são os seus melhores destruidores. ... Nós, os alemães de ontem.... Já não há filósofos na Alemanha. ... Em seu velho culto pela obs-curidade, ... eles sempre lutaram contra a razão. ... Na verdade, oespírito alemão ainda não perdeu sua nostalgia mística. ... O credoquia absurdum ainda está impresso na alma da Alemanha. ... A ger-manidade, a Deustschheit; ... nenhum povo escreve pior que os ale-mães. Alemanha, “terra de poetas e pensadores”. Hoje, entretan-to, quanta cerveja na inteligência alemã. ... Em Munique vivem osmeus antípodas.

Para mim, o tempo é circular, ele se curva sobre si mesmo: Ouniverso alimenta-se de suas próprias dejeções. Todo efeito é causade uma causa, toda causa é efeito de um efeito. Último efeito,causa da primeira causa. Causa, “estado modificativo das coisas”.

Periodicidade do ser, continuidade do vir-a-ser. Heráclito oObscuro, já o dizia: “No perpétuo fluir do universo, nada é e tudose transforma. A vida cede lugar à morte, o frio torna-se quente..É a mesma coisa em nós estar vivo ou morto, desperto ou dormin-do, pois, em virtude da mutação isto passa a ser aquilo e aquilovolta a ser isto. Os mortos são imortais, porque morrem nos quenascem.” Eu próprio faço parte das causas do eterno retorno dascoisas, da ciclogênese cósmica. Um dia eu regressarei com este sol,com esta terra, com esta águia e com esta serpente; não para umavida nova, para uma vida melhor ou análoga. Tornarei eternamen-te para esta mesma vida, igual em pontos grande e pequeno, a fimde ensinar, outra vez, a eterna recorrência de todas as coisas, a fimde repetir, mais uma vez, as palavras do grande meio-dia da terra edos homens, a fim de instruir os homens sobre o acima-do-homem...

O ser absoluto é uma ilusão subjetiva, uma abstração equívo-ca. A única realidade constante é o vir-a-ser, a incessante meta-morfose das coisas, o devir implacável, que nada consegue deter.

Tudo que é está condenado a deixar de ser. No mundo não hárepouso ou imobilidade. Às causas sucedem-se os efeitos inevitá-veis, atuando como novas causas. Causa aequat effectus. No pas-sado e no presente, como também no porvir, o ser se submete,passivo como cariátide, ao perpétuo retorno periódico do tempo.“Colocais nomes nas coisas como se elas subsistissem. Nunca nósnos banhamos duas vezes nas águas de um mesmo rio”, dizia olacrimoso Heráclito; nem sequer uma vez, dirá um de seus discí-pulos, porque as águas que banharão nossos pés não sãos as mes-mas que, depois, lavarão nossas cabeças. Em nenhum instante daHistória a total inconsistência do mundo se despiu com menospudor e totalmente a um pensador. Ninguém, como ele, sentiumelhor a sombria infecundidade dos esforços humanos, a efême-ra transitoriedade dos fenômenos. Quem não gostaria de ser cegopara evitar a contemplação do eterno retorno?

Não há Deus, não, não há. O testemunho é de todos os dias,a evidência é de todas as horas, a evidência é para todos. O ateís-mo nunca foi um acontecimento em minha vida. ... Ele é o meu apriori... Os postulados da teologia são insustentáveis. O sofrimen-to, em toda parte, protesta contra a realidade, exclama e denuncia.A inteligência, não obstante o seu enorme poder potencial, é ape-nas um epifenômeno, um episódio marginal às transformaçõescósmicas, ao nascimento e morte dos astros. Ela também é prisio-neira das grandes e ininterruptas metamorfoses da matéria. Nãohá um desígnio superior no coração das coisas. Hoje, conscientesdos desacertos que nos humilham, que desencantam e ferem,sabemos que jamais repousaremos em uma confiança infinita egenerosa, ... que nunca mais haverá razão no decurso das coisas.Condenados ao mais cruel de todos os desamparos, todos somosórfãos indefesos. O velho Jeová prepara-se para morrer... Não ouviso badalar dos sinos? Ajoelhem-se! Eles carregam os sacramentos aum Deus que agoniza, diz Heine. Na alma do universo não há pro-pósitos inteligentes, finalísticos, teleológicos. L’excuse de Dieu,c’est qu’il n’existe pas, exclamava Stendhal.

Meus olhos se turvam; minh’alma hesitante, oprimida eexausta, recua; minhas pernas, frágeis, vacilam, meus lábios secalam, meus pés se arrastam, minhas mãos se fecham, meu cora-ção se aflige. ... É noite, eleva-se a voz das fontes... Minha almatambém é uma fonte borbulhante. Sou luz, ah se fosse noite, comosorveria nos seios da luz! Eu, porém, vivo de minha própria luz,absorvo em mim mesmo as chamas que de mim surgem. ... Entre dare receber há um enorme abismo. ... Para onde foram as lágrimas dosmeus olhos? ... Há gelo em torno de mim, gelo que queima asminhas mãos! ... É noite, ai!, por que hei de ser luz, luz e solidão? Énoite; eleva-se mais a voz das fontes e minh’alma também é umafonte, uma fonte que se consome, que contempla e canta...

Dos vários textos que esbocei como epílogo do meuZaratustra, ao qual se segue, imediatamente, meu livro Além doBem e do Mal, prelúdio a uma filosofia do futuro, livro esse quecontém a chave de mim mesmo, destaco alguns fragmentos daque-le que considero um dos mais expressivos: Um homem se mata,outro se torna louco. /Um divino orgulho de poeta alentaZaratustra; tudo deve ser colocado sob a luz. No momento em queanuncia, simultaneamente, o acima-do-homem e o eterno retorno,ele cede à piedade. /Todos o renegam. É necessário – dizem – des-truir essa doutrina e assassinar Zaratustra. /No mundo, não há umasó alma que me ame, murmura ele. Como poderei amar a vida?

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/Zaratustra morre de tristeza ao descobrir o sofrimento que é a suaobra. /Por amor, causei a dor maior; agora entrego-me à dor quecausei. /Partem todos, e Zaratustra, ao ficar só, toca a serpente coma mão; que me aconselha a minha sabedoria? A serpente morde-o,a águia dilacera a serpente, o leão precipita-se sobre a águia. Nomomento em que Zaratustra vê seus animais lutarem entre si,morre. /Quinto ato: os louvores. /A liga dos fiéis que se sacrificamsobre o túmulo de Zaratustra. Tinham fugido. Agora, herdeiros desua alma, elevam-se à sua altura. / Cerimônia fúnebre; fomos nósque o matamos. / Os louvores. / O grande meio-dia. / Meio dia eeternidade.

Bibliografia consultada:

1. Andler, Charles. Nietzsche, sa vie et sa pensée, 3 volumes,Gallimard, 1958.

2. Benders, J. Raymond e Oettermann, Stephan. FriedrichNietzsche Chronik in Bildern und Texten, Hanser, 2000.

3. Chamberlain, Lewsley. Nietzsche em Turim, Difel, 2000.4. Hollingdale, R. J. Nietzsche, l'uomo e la sua filosofia,

Ubaldini, 1965.5. Janz, Curt Paul. Nietzsche, 4 volumes, Alianza Editorial,

1981.6. Montinari, Mazzino. Che cosa há veramente detto Nietzsche,

Ubalini Editore, 1974.7. Montinari, Mazzino. Su Nietzsche, Editori Reuniti, 1981.8. Morel, Georges. Nietzsche, introduction à une première lec-

ture, 3 volumes, Aubier, 1985.9. Nietzsche, Friedrich, Sämtliche Briefe, Band 8, Walter de

Gruyter, 1986.

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