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FRENTE 3 Editora Bernoulli MÓDULO FILOSOFIA QUAL É O CAMINHO QUE LEVA À VERDADE? A questão acerca do conhecimento seguro é, sem dúvida um dos maiores problemas do mundo moderno, o qual difere, essencialmente, do mundo medieval. Neste, o homem estava submetido às verdades reveladas por Deus por meio da Igreja, que se impunha como detentora do saber e do conhecimento em todas as áreas, da moral à ciência do Universo. Temos como exemplo a trajetória de Giordano Bruno, que foi queimado vivo pela Inquisição em 1600, por defender a teoria do heliocentrismo de Copérnico. Outro exemplo é o de Galileu, impedido de falar e publicar suas ideias por estas irem contra as ideias defendidas pela Igreja. Na Modernidade, veremos a gradativa desmisticação do Universo, o chamado desvelamento ou desencantamento do Universo. Assim, o Universo, a natureza e o próprio homem tornam-se objeto do conhecimento, o qual deve ser construído pelo homem, não sendo mais determinado pela autoridade eclesiástica.    F   r   a   n   s    H   a    l   s Monumento erguido em 1889 no local onde Giordano Bruno foi executado. Campo de Fiori, Roma, Itália. O homem moderno, portanto, recuperou sua liberdade e autonomia para pensar, apesar da autoridade da Igreja, que ainda exercia grande inuência no mundo e nos meios intelectuais. As ideias aristotélicas, que até então tinham servido como base para a Escolástica, não eram mais sucientes para fundamentar o conhecimento seguro sobre o mundo. As superstições cederam lugar à subjetividade, e o papel preponderante do homem abriu caminho para o conhecimento verdadeiro. O mundo se mostrava agora um livro aberto, pronto para ser conhecido. Nessa nova realidade, surge então a questão: qual é o caminho que leva ao conhecimento verdadeiro sobre o mundo? Com isso, a questão do método (do grego Methodos: meta: rumo; hodos: caminho: caminho que leva a algum lugar), ou seja, da teoria do conhecimento ou Epistemologia, torna-se urgente. Nesse contexto, ocorre uma inversão de valores e de paradigmas: desde a Antiguidade, acreditava-se no poder do homem para conhecer todas as coisas, ou seja, acreditava-se que o homem poderia conhecer plenamente o mundo e a si mesmo. Na Modernidade, entretanto, manifestam-se outras questões: Qual será a capacidade do homem de conhecer? Como ocorre esse conhecimento? Qual é a origem das ideias? Apesar de na Modernidade esse problema apresentar novos contornos, ele não é novo. Basta lembrarmos que a Filosoa tem, em sua origem, a ânsia pelo saber. Desde os seus primórdios, os lósofos naturalistas, como Heráclito e Parmênides, já tentavam solucionar o problema do caminho para o conhecimento verdadeiro, o qual tem sido uma das questões mais discutidas e polemizadas na história da Filosoa. Heráclito, por exemplo, acreditava que as coisas do mundo não possuem uma essência imutável, por isso, a única forma de conhecermos os seres seria através das informações fornecidas pelos sentidos. Já Parmênides, por acreditar que os seres possuem uma essência imutável, defendia que a única maneira de acesso a essa essência era o pensamento puro, a razão. Epistemologia moderna 11 A

05 - Filosofia Bernoulli

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    3Editora Bernoulli

    MDULOFILOSOFIA

    QUAL O CAMINHO QUE LEVA VERDADE?

    A questo acerca do conhecimento seguro , sem dvida um dos maiores problemas do mundo moderno, o qual difere, essencialmente, do mundo medieval. Neste, o homem estava submetido s verdades reveladas por Deus por meio da Igreja, que se impunha como detentora do saber e do conhecimento em todas as reas, da moral cincia do Universo. Temos como exemplo a trajetria de Giordano Bruno, que foi queimado vivo pela Inquisio em 1600, por defender a teoria do heliocentrismo de Coprnico. Outro exemplo o de Galileu, impedido de falar e publicar suas ideias por estas irem contra as ideias defendidas pela Igreja.

    Na Modernidade, veremos a gradativa desmistificao do Universo, o chamado desvelamento ou desencantamento do Universo. Assim, o Universo, a natureza e o prprio homem tornam-se objeto do conhecimento, o qual deve ser construdo pelo homem, no sendo mais determinado pela autoridade eclesistica.

    Frans

    Hal

    s

    Monumento erguido em 1889 no local onde Giordano Bruno foi executado. Campo de Fiori, Roma, Itlia.

    O homem moderno, portanto, recuperou sua liberdade e autonomia para pensar, apesar da autoridade da Igreja, que ainda exercia grande influncia no mundo e nos meios intelectuais. As ideias aristotlicas, que at ento tinham servido como base para a Escolstica, no eram mais suficientes para fundamentar o conhecimento seguro sobre o mundo. As supersties cederam lugar subjetividade, e o papel preponderante do homem abriu caminho para o conhecimento verdadeiro. O mundo se mostrava agora um livro aberto, pronto para ser conhecido. Nessa nova realidade, surge ento a questo: qual o caminho que leva ao conhecimento verdadeiro sobre o mundo? Com isso, a questo do mtodo (do grego Methodos: meta: rumo; hodos: caminho: caminho que leva a algum lugar), ou seja, da teoria do conhecimento ou Epistemologia, torna-se urgente.

    Nesse contexto, ocorre uma inverso de valores e de paradigmas: desde a Antiguidade, acreditava-se no poder do homem para conhecer todas as coisas, ou seja, acreditava-se que o homem poderia conhecer plenamente o mundo e a si mesmo. Na Modernidade, entretanto, manifestam-se outras questes: Qual ser a capacidade do homem de conhecer? Como ocorre esse conhecimento? Qual a origem das ideias?

    Apesar de na Modernidade esse problema apresentar novos contornos, ele no novo. Basta lembrarmos que a Filosofia tem, em sua origem, a nsia pelo saber. Desde os seus primrdios, os filsofos naturalistas, como Herclito e Parmnides, j tentavam solucionar o problema do caminho para o conhecimento verdadeiro, o qual tem sido uma das questes mais discutidas e polemizadas na histria da Filosofia.

    Herclito, por exemplo, acreditava que as coisas do mundo no possuem uma essncia imutvel, por isso, a nica forma de conhecermos os seres seria atravs das informaes fornecidas pelos sentidos. J Parmnides, por acreditar que os seres possuem uma essncia imutvel, defendia que a nica maneira de acesso a essa essncia era o pensamento puro, a razo.

    Epistemologia moderna 11 A

  • 4 Coleo Estudo

    Plato e Aristteles, por sua vez, respeitando algumas diferenas de aspectos menores que podem relativizar o problema, tambm estavam convencidos de que o conhecimento seguro era garantido pela busca das essncias dos seres. Plato buscava estas essncia no mundo inteligvel e Aristteles, nas coisas sensveis. Segundo Plato, o nico instrumento que leva a tal conhecimento a alma, onde est a razo, por meio da ascenso dialtica. J Aristteles acreditava que a experincia levaria, por meio do raciocnio indutivo, a tal verdade.

    Na Idade Mdia, Agostinho, principal representante da Patrstica, acreditava que a verdade estava dentro do homem, e esta s seria acessvel pela razo, com a ajuda da iluminao divina. J Toms de Aquino, importante pensador medieval e maior expoente da Escolstica, valorizava a utilizao dos sentidos para as Cincias Naturais e seu papel no conhecimento da natureza.

    A questo do mtodo, portanto, um dos mais importantes problemas filosficos. Para alguns comentadores, como Caio Prado Jnior, em seu livro O que Filosofia?1, essa a verdadeira questo com a qual a Filosofia deveria se preocupar.

    Para resolver tal problema, surgem dois caminhos, que ganham destaque na Modernidade: o racionalismo e o empirismo. Mais tarde, teremos tambm o criticismo kantiano, que consiste em uma sntese entre racionalismo e empirismo.

    Racionalismo

    1 - [O racionalismo uma] doutrina que privilegia a razo

    dentre todas as faculdades humanas, considerando-a como

    fundamento de todo conhecimento possvel. O racionalismo

    considera que o real , em ltima anlise, racional e que a

    razo , portanto, capaz de conhecer o real e de chegar

    verdade sobre a natureza das coisas. Segundo Hegel: Aquilo

    que racional real, e o que real racional (Filosofia do

    direito, Prefcio). Oposto a ceticismo, misticismo.

    [...]

    3 - Contrariamente ao empirismo (valorizando a experincia)

    e ao fidesmo (valorizando a revelao religiosa), o

    racionalismo designa doutrinas bastante variadas suscetveis

    de submeter razo todas as formas de conhecimento. Em

    seu sentido filosfico, ele tanto pode ser uma viso do mundo

    que afirma o perfeito acordo entre o racional e a realidade

    do universo quanto uma tica que afirma que as aes e as

    sociedades humanas so racionais em seu princpio, em sua

    conduta e em sua finalidade.

    RACIONALISMO. In: JAPIASS, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionrio bsico de Filosofia. Rio de janeiro: Zahar, 1996.

    1 PRADO Jr., Caio. O que filosofia?. So Paulo: Brasiliense, 1981 (Primeiros Passos, 37).

    No final do sculo XV e durante os sculos XVI e XVII se entusiasmaram pela Matemtica (aritmtica, lgebra e geometria), acreditando, ento, que poderiam aplicar o mtodo matemtico, puramente racional, a todas as reas de investigao, garantindo a exatido dos conhecimentos alcanados. O que se utilizaria no seriam os nmeros e os clculos em si, mas o procedimento dedutivo, isto , o mtodo pelo o qual a Matemtica encadeia as razes ou afirmaes segundo certa ordem, chegando a uma concluso exata e verdadeira. Essa racionalidade se expressaria de modo geomtrico, lgico, dedutivo, caracterizando a viso especfica do racionalismo moderno ou grande racionalismo.

    Podemos apontar como filsofos que seguem a linha dos grandes racionalistas, respeitando as devidas diferenas: Parmnides (pr-socrtico), Scrates e Plato (Antiguidade), Santo Agostinho (Idade Mdia), alm dos modernos Descartes, Malebranche, Espinosa, Leibniz e Hegel.

    Segundo Nicola Abbagnano, em Dicionrio de Filosofia22, o termo racionalismo foi utilizado pela primeira vez por Kant para se referir sua filosofia transcendental. J Hegel foi o primeiro a utilizar esse termo para se referir filosofia que comea com Descartes e se ope ao empirismo de Locke e seus sucessores.

    Uma das querelas da Filosofia diz respeito utilizao do termo racionalista. Afinal, os pensadores anteriores a Descartes, conhecido como o o pai do racionalismo, podem ser tambm chamados de racionalistas? Jos Ferrater Mora, em seu Dicionrio de Filosofia33, encerra essa questo ao se referir a Parmnides e a Plato como racionalistas. Dessa forma, o termo racionalismo, adequadamente utilizado para se referir ao procedimento de filsofos anteriores Modernidade, os quais buscavam a verdade ou o conhecimento por meio da razo. Nesse caso, podemos dizer que o procedimento mais importante que o termo, e, nesse caso, tal procedimento a busca da verdade por meio do pensamento puro.

    No podemos afirmar, porm, que o racionalismo de Plato seja pensado nos mesmos moldes que o de Descartes. O mundo material ou sensvel, para Plato tambm importante, sendo incorreto afirmar que existe em sua filosofia um dualismo que diz que as coisas materiais, sensveis, empricas sejam ruins em si mesmas e que as ideias inteligveis sejam alcanadas sem que o homem tenha qualquer contato com as coisas sensveis.

    2ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de Filosofia. Traduo de Alfredo Bosi. 21.ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 822.3RACIONALISMO. In.: MORA, Jos Ferrater.Dicionrio de Filosofia. 2. ed. So Paulo: Loyola, 2001

    Frente A Mdulo 11

  • 5Editora Bernoulli

    FILO

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    Empirismo

    I- Doutrina ou teoria do conhecimento segundo a qual todo

    conhecimento humano deriva, direta ou indiretamente, da

    experincia sensvel externa ou interna. Freqentemente

    fala-se do emprico como daquilo que se refere

    experincia, s sensaes e s percepes, relativamente

    aos encadeamentos da razo. O empirismo, sobretudo de

    Locke e de Hume, demonstra que no h outra fonte do

    conhecimento seno a experincia e a sensao. As ideias s

    nascem de um enfraquecimento da sensao e no podem

    ser inatas. Da o empirismo rejeitar todas as especulaes

    como vs e impossveis de circunscrever.

    Seu grande argumento: Nada se encontra no esprito que

    no tenha, antes, estado nos sentidos. A no ser o prprio

    esprito, responde Leibniz.

    EMPIRISMO. In: JAPIASS, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionrio bsico de Filosofia. Rio de janeiro: Zahar, 1996.

    Se os grandes racionalistas modernos ocupam espao nos sculos XVI e XVII, os empiristas, principalmente Locke e Hume, o fazem nos sculos XVII e XVIII. Com o aumento da produo industrial, que encontrou seu pice na Revoluo originada na Inglaterra, em meados do sculo XVIII, o conhecimento do mundo passou a ter preocupaes tipicamente prticas, por isso a nfase naquilo que experimentvel, nos sentidos e em um saber que privilegia o conhecimento e a dominao da natureza.

    Na linha dos grandes empiristas, encontram-se Herclito (pr-socrtico) e Aristteles (Antiguidade Grega), alm dos modernos Bacon, Pascal, Locke e Hume, sendo os dois ltimos os mais importantes representantes do empirismo moderno, chamado tambm de empirismo ingls.

    Assim como racionalismo, o termo empirismo utilizado principalmente para os modernos, porm, podemos estender sua utilizao para os antigos. Aristteles, por exemplo, quando fala de induo, est se referindo experincia. Da mesma forma, em seu pensamento tico, quando diz que o homem deve tornar-se melhor, tambm est se referindo prtica, ou seja, experincia4.

    Tal como para Plato, no podemos afirmar que Aristteles despreza a razo como meio de conhecer as coisas. Pelo contrrio, se pensarmos na lgica aristotlica, os argumentos indutivos partem sim de experincias e por meio delas fazem generalizaes, j o argumento silogstico ou dedutivo opera de modo puramente racional, o que prova a importncia da razo para Aristteles.

    Realizada essa introduo Epistemologia moderna, falemos agora dos principais pensadores desse perodo: Ren Descartes, Francis Bacon, John Locke e David Hume.

    4 EMPIRISMO. In: MORA, Jos Ferrater. Dicionrio de Filosofia. 2. ed. So Paulo: Loyola, 2001.

    RACIONALISMO MODERNO

    DescartesConhecido como o pai da Filosofia moderna, Ren

    Descartes nasceu na Frana, na cidade de La Haye, regio da Touraine, em 31 de maro de 1596. Sua famlia, cujos membros eram comerciantes e mdicos, ascendeu socialmente, tornando-se proprietria de terras e de ttulos de nobreza, o que levou seu pai, Joachin Descartes, a tornar-se conselheiro no Parlamento da Bretanha. Descartes passou a infncia com sua av, devido morte de sua me quando ele tinha apenas um ano de idade.

    Aos dez anos, foi enviado para o Colgio Real na cidade de La Flche. O colgio, fundado pelos jesutas sob a proteo do rei Henrique IV, logo ficou conhecido como uma das melhores e mais importantes escolas de toda a Europa. Descartes frequentou essa instituio durante 12 anos, onde obteve uma slida formao cientfica e humanstica, dedicando-se ao estudo da Lgica, da Matemtica e da Filosofia. Logo aps, foi estudar na Universidade de Poitiers, onde obteve bacharelado e licenciatura em Direito.

    Fran

    s H

    als

    Retrato de Ren Descartes, conhecido como o fundador da Filosofia Moderna.

    Descartes foi um aluno brilhante, tendo seu brilhantismo e sua dedicao levado-o a uma crise profunda em relao a todo o conhecimento cientfico e filosfico que obteve em seus tempos de estudo. Descartes percebeu que todo o conhecimento que aprendera em La Flche e na universidade no era to seguro quanto ele desejava, ou seja, percebeu que, em contraposio a toda e qualquer verdade, sempre havia uma outra ideia, que tambm se pretendia verdadeira, que a contrariava. No Discurso do Mtodo, o filsofo afirma:

    Epistemologia moderna

  • 6 Coleo Estudo

    Alimentei-me de letras desde a minha infncia, e, devido ao

    fato de me terem persuadido de que por meio delas podia-se

    adquirir um conhecimento claro e seguro sobre tudo o que

    til vida, tinha extremo desejo de aprend-las. Porm,

    assim que terminei todo esse curso de estudos, ao fim do

    qual costuma-se ser recebido na fileira de doutores, mudei

    inteiramente de opinio.

    DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. Primeira Parte, Lisboa, Ed. Marfim, 1989. p. 13.

    Dessa forma, Descartes se v imensamente decepcionado com o conhecimento, pois percebe que as ideias que aprendera no poderiam ser satisfatoriamente defendidas pela razo, ou seja, todo o conhecimento aprendido at ento era falho. importante ressaltar que o filsofo no se decepcionou com a escola ou com seus mestres, pelos quais sempre teve grande respeito e admirao, mas de com as prprias Humanidades, nas quais se incluia o estudo Geografia, Histria, Retrica, Direito, Poesia, Teologia, Lgica, Fsica, Metafsica, Moral, Medicina e Jurisprudncia, dentre outros.

    Assim, na filosofia que aprende como alis em todos

    os domnios das letras -, Descartes defronta-se com

    opinies inseguras e sem nenhuma utilidade prtica: as

    Humanidades no serviam verdadeiramente ao homem.

    DESCARTES. Vida e obra. In: Descartes. So Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. p. 12. Coleo Os pensadores.

    Gravura do sculo XVIII representando o Colgio de La Flche.

    Empolgado com os avanos da Matemtica trazidos por Coprnico e principalmente por Galileu e decepcionado com as Humanidades, Descartes acreditava que o conhecimento seguro deveria ser certo e indubitvel, tal como so os conhecimentos trazidos pela Matemtica. Dedicou-se, ento, a buscar esse conhecimento, no em livros e ensinamentos, mas em si mesmo e no grande livro mundo.

    O filsofo pronunciou-se sobre a insegurana das

    verdades filosficas que poderiam ser colocadas em dvida

    da seguinte forma:

    Da Filosofia nada direi, seno que, vendo que foi cultivada

    pelos mais excelsos espritos que viveram desde muitos

    sculos e que, no entanto, nela no se encontra ainda uma

    s coisa sobre a qual no se dispute e, por conseguinte, que

    no seja duvidosa, eu no alimentava qualquer presuno

    de acertar mais que os outros; e que, considerando quantas

    opinies diversas, sustentadas por homens doutos, pode

    haver sobre uma mesma matria, sem que jamais possa

    existir mais de uma que seja verdadeira, refutava quase

    como falso tudo o que era somente verossmil. Eis por

    que, to logo a idade me permitiu sair da sujeio de meus

    preceptores, deixei inteiramente o estudo das letras.

    E, resolvendo-me a no mais procurar outra cincia, alm

    daquela que poderia achar em mim prprio, ou ento

    no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha

    mocidade em viajar, em ver cortes e exrcitos, em freqentar

    gente de diversos humores e condies, em recolher

    diversas experincias, em provar-me a mim mesmo nos

    reencontros que a fortuna me propunha e, por toda parte,

    em fazer tal reflexo sobre as coisas que me apresentavam

    que eu pudesse tirar delas algum proveito. [...] Mas, depois

    que empreguei alguns anos em estudar assim no livro

    do mundo, e em procurar adquirir alguma experincia,

    tomei um dia a resoluo de estudar tambm a mim prprio

    e de empregar todas as foras de meu esprito na escolha

    dos caminhos que deveria seguir.

    DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. Primeira Parte. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 7

    nesse contexto que, Descartes ingressa nos exrcitos de

    Maurcio de Nassau em 1618, ano em que se deu o incio da

    Guerra dos Trinta Anos contra os espanhis pela liberdade

    da Holanda, pas onde mais tarde Descartes foi morar,

    devido tolerncia e liberdade cultivadas ali. Na cidade

    de Breda, conheceu um jovem, de quem se tornou amigo,

    chamado Isaac Beeckman, que o incentivou a se dedicar

    Fsica e Matemtica. Com o aprofundamento de seus

    conhecimentos matemticos, Descartes decide construir uma

    Mathesis Universalis (matemtica universal), com a qual ele

    poderia alcanar um conhecimento seguro e claro sobre o

    mundo, abandonando as incertezas at ento reconhecidas

    nas Humanidades.

    Frente A Mdulo 11

  • 7Editora Bernoulli

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    O Discurso do mtodo uma das mais importantes obras de Descartes. Nela, o filsofo tentar encontrar o caminho que leva o homem ao conhecimento verdadeiro sobre o mundo.

    A partir desse momento, Descartes dedicou-se escrita

    de suas obras, tendo sido, Discurso do Mtodo, Meditaes

    Metafsicas, Regras para a direo do Esprito, Princpios de Filosofia e Tratado das paixes da Alma suas obras mais importantes. Foi nesse perodo que conheceu Helne Jans,

    com quem se casou teve uma filha, Francine, que faleceu com 5 anos, fato que marcou profundamente a vida

    de Descartes.

    Depois de passar muitos anos na Holanda e de viajar

    por muitos outros lugares, as ideias de Descartes j eram

    internacionalmente conhecidas. Em 1649, o filsofo aceitou o convite da rainha Cristina da Sucia para se abrigar em

    seu palcio em Estocolmo. De sade frgil desde a sua

    infncia e tendo que acordar de madrugada durante trs dias da semana para lecionar rainha, Descartes no

    suportou o clima rigoroso daquele pas e decidiu ir embora.

    Ao abandonar a Corte, o filsofo adoeceu, vtima de uma pneumonia que o levou morte depois de uma semana

    de grande sofrimento, em 11 de fevereiro de 1650.

    O discurso do mtodoEmpolgado com os avanos da Matemtica e decepcionado

    com as falhas dos conhecimentos cientfico e filosfico aprendidos at ento, Descartes deu um passo ousado,

    tornando-se conhecido e admirado como grande pensador.

    Segundo ele, o edifcio do saber, ou seja, todos os saberes

    cientficos que se pretendiam corretos e verdadeiros sobre o mundo e as coisas, no passava de conhecimentos

    inseguros e frgeis, os quais poderiam ser contestados pelo

    uso de argumentos que os abalassem em suas certezas

    e os tornassem questionveis. Dessa maneira, para

    Descartes, no era possvel confiar em nenhum conhecimento

    cientfico que no fosse claro e distinto, ou seja, que

    no fosse transparente para quem a ele recorresse

    e que no fosse inconfundvel com qualquer outra ideia.

    Foi esta a meta cartesiana: encontrar verdades claras

    e distintas sobre todas as coisas; verdades estas que

    serviriam como certeza para a constituio do conhecimento

    seguro. Porm, Descartes sabia que o edifcio do saber,

    tem como fundamento verdades filosficas que, para

    ele, tambm so inseguras. Como poderia-se construir

    um novo edifcio sobre bases que tambm so inseguras?

    Para Descartes, isso era impossvel.

    Assim, tomando como base a Matemtica, o filsofo tentar construir a Mathesis Universalis matemtica universal , com o objetivo de, por meio dela, garantir verdades que sejam por si mesmas indubitveis. Veja que a ideia cartesiana no aplicar os nmeros Filosofia ou s Cincias, mas sim utilizar a lgica matemtico-dedutiva

    para elaborar um mtodo, um caminho que pudesse garantir

    que o conhecimento alcanado pelo homem fosse seguro

    e realmente verdadeiro.

    Para isso, Descartes elimina qualquer tipo de conhecimento

    obtido por meio das experincias, pois considera

    que os sentidos so falhos e, portanto, o conhecimento

    alcanado por meio deles impreciso. exatamente por

    isso que Descartes o grande racionalista moderno, uma

    vez que, para ele, somente a razo, operando com ideias

    e dedues matemticas, concatenaes de ideias que

    no sejam originadas dos sentidos, poderia encontrar

    as verdades.

    A (5,3)

    B (6,5)

    C (4,5;3,5)

    D (0,0)

    1 2 3 4 5 6

    123456

    5

    6

    4

    3

    2

    1

    5

    6

    Y

    X

    4

    3

    2

    1

    Os planos cartesianos ou o sistema de coordenadas no plano cartesianos permitiram a criao da geometria analtica.

    Epistemologia moderna

  • 8 Coleo Estudo

    Porm, no basta aplicar a geometria e a lgebra separadas uma da outra, para delas encontrar as verdades. Segundo Descartes, necessrio unir as duas, de modo que seja possvel traduzir os problemas geomtricos em linguagem algbrica para alcanar o conhecimento sobre as formas geomtricas atravs das equaes. Dessa forma, Descartes funda a geometria analtica, aplicando a lgebra geometria e estudando as figuras geomtricas por meio de equaes algbricas.

    Para Descartes, procedendo dessa forma, seria possvel alcanar verdades sobre o mundo que fossem evidentes mente humana e sobre as quais no se pudesse duvidar. Nesse sentido, ele afirma, no Discurso do Mtodo:

    Aquela longa cadeia de raciocnios, todos simples e fceis, de

    que os gemetras tm o hbito de se servir para chegar s

    suas difceis demonstraes, me havia possibilitado imaginar

    que todas as coisas de que o homem pode ter conhecimento

    derivam do mesmo modo e que, desde que se abstenha de

    aceitar como verdadeira uma coisa que no o e respeite

    sempre a ordem necessria para deduzir uma coisa da outra,

    no haver nada de to distante que no se possa alcanar,

    nem de to oculto que se no possa descobrir.

    DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 14

    Desse modo, Descartes chega seguinte concluso: se fosse possvel aplicar s Cincias e Filosofia a mesma lgica utilizada na Matemtica, a qual levava a verdades inquestionveis, poderia-se encontrar verdades to claras e evidentes que nem os homens mais criativos poderiam ousar duvidar.

    Para isso, uma nica coisa era necessria: um mtodo adequado. Portanto, Descartes, antes de buscar conhecer o mundo oferecer regras que, se bem seguidas e adequadamente dispostas, levariam o homem ao conhecimento certo, seguro e verdadeiro sobre tudo aquilo que se pode conhecer, elabora um mtodo para alcanar tais conhecimentos.

    O mtodo cartesianoO mtodo pensado por Descartes para se alcanar

    a verdade se baseia em quatro passos ou regras. Segundo o filsofo:

    [seriam] regras certas e fceis que, sendo observadas

    exatamente por quem quer que seja, tornem impossvel

    tomar o falso por verdadeiro e, sem qualquer esforo mental

    intil, mas aumentando sempre gradualmente a cincia,

    levem ao conhecimento verdadeiro de tudo o que se capaz

    de conhecer.

    DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 14.

    1 - Regra da evidncia

    No se deve acatar nunca como verdadeiro aquilo que

    no se reconhece ser tal pela evidncia, ou seja, evitar

    acuradamente a precipitao e a preveno, assim como

    nunca se deve abranger entre nossos juzos aquilo que no

    se apresente to clara e distintamente nossa inteligncia

    a ponto de excluir qualquer possibilidade de dvida.

    DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 13).

    o ponto de partida, mas tambm o ponto de chegada de todo o conhecimento. Mais do que uma regra, apresenta-se como um princpio norteador de todo o conhecimento. De forma mais simples: o homem s deve acolher como verdade aquilo que aparece ao seu esprito, sua mente, como uma ideia clara e distinta, que seja evidente e impossvel de ser confundida com outra ideia qualquer. Tal como 2+2 = 4 e desta concluso ningum em s conscincia poderia duvidar, sendo que essa ideia aparece mente humana com tal clareza que nenhuma outra ideia pode se confundir a ela, toda e qualquer verdade deve obedecer ao mesmo critrio de evidncia. Essa verdade intuitiva e se autojustifica, no necessitando de nenhuma explicao ou argumento que a comprove.

    2 Regra da anlise

    Dividir cada problema que se estuda em tantas partes

    menores, quantas for possvel e necessrio para melhor

    resolv-lo.

    DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. Primeira Parte. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 13.

    Se a intuio da evidncia se d na simplicidade, a segunda regra diz que, diante de um problema, necessrio dividi-lo em tantas partes quanto for possvel, evitando, assim, qualquer ambiguidade que possa aparecer e confundir o homem. De acordo com essa regra, deve-se reduzir o complexo ao simples, de forma que aquilo que era maior seja dividido em partes menores e indivisveis de um todo.

    3 Regra da sntese

    A terceira regra a de conduzir com ordem os pensamentos,

    comeando pelos mais simples e mais fceis de conhecer,

    para elevar-se, pouco a pouco, como por degraus, at o

    conhecimento dos mais complexos, supondo uma ordem

    tambm entre aqueles nos quais uns no precedem

    naturalmente aos outros.

    DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. Primeira Parte. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 13.

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    SOFI

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    Essa regra diz que, enquanto a regra da anlise divide o problema em partes menores, necessrio que esses problemas sejam resolvidos individualmente, comeando dos mais simples at alcanar a resoluo dos mais complexos ou mais difceis.

    4 Regra da enumerao

    A ltima regra a de fazer sempre enumeraes to

    completas e revises to gerais a ponto de se ficar seguro

    de no ter omitido nada.

    DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. Primeira Parte. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 13.

    Essa regra diz que, depois de ter dividido o problema em partes menores e de comear a resolv-los dos mais simples para os mais complexos, deve-se, de tempo em tempo, voltar-se sobre todo o caminho percorrido e verificar se alguma coisa ficou esquecida, ou seja, fazer revises constantes para verificar se tudo foi dividido na anlise e ainda se tudo foi resolvido na sntese.

    Segundo Descartes, aplicando esse mtodo a toda e qualquer pesquisa natural ou filosfica, o homem encontraria um conhecimento que fosse obediente primeira regra, ou seja, que fosse evidente e sem qualquer sombra de dvida. Se observarmos com cuidado, perceberemos que o mtodo cartesiano baseia-se na simplicidade da resoluo das questes matemticas, em que se parte da ideia de que a resposta alcanada com a resoluo do problema deve ser exata e indubitvel. Depois, partindo para a resoluo propriamente dita, divide-se o problema e inicia-se sua resoluo das partes mais simples para as mais complexas. No final ou durante o processo, verifica-se todas as operaes realizadas, observando cuidadosamente se no ficou nada sem ser resolvido ou se no se esqueceu de nenhum detalhe. Procedendo deste modo, pode-se afirmar com certeza de que a resposta obtida correta, ou seja, evidente.

    Cogito, ergo sum!Uma vez estabelecido o mtodo, Descartes tem certeza

    de que uma verdade s pode ser aceita como tal se aparecer mente humana com clareza e distino. Desse modo, ele estabelece o modelo universal, a Mathesis Universalis, que guiar o homem em busca de todo e qualquer saber, ou seja, que servir como instrumento ao novo edifcio do saber, j tendo o antigo desmoronado uma vez que suas certezas eram contestveis.

    Porm, para que esse novo edifcio do saber seja erguido, necessrio que existam certezas claras e distintas da Filosofia, base de toda e qualquer cincia. Mas, que certezas seriam estas? Que verdades filosficas poderiam sustentar esse novo edifcio do saber que trouxesse consigo toda clareza e distino essenciais ao saber nos moldes cartesianos?

    Buscando a verdade filosfica que sustentaria todo o edifcio do saber, Descartes, mesmo no sendo um ctico, utiliza-se do caminho dos cticos, acreditando que possvel encontrar uma verdade utilizando-se da dvida somente como instrumento e no como um fim em si mesma. O filsofo coloca tudo em dvida com objetivo de verificar se, ao final, alguma verdade que possa ser considerada indubitvel resiste. Dessa maneira, Descartes desenvolve um caminho sistemtico ao colocar em dvida tudo aquilo que at ento era considerado como certeza, o que ficou conhecido como a dvida metdica, dividida em trs passos ou estgios

    Primeiramente, Descartes duvida de todas as verdades que tm como fundamento os sentidos. De acordo com ele, se os sentidos j nos enganaram uma nica vez, isto j o suficiente para que desconfiemos deles todas as vezes. Portanto, no possvel acreditar ou confiar em nenhuma verdade que tenha como fundamento os cinco sentidos, ou seja, o empirismo.

    Em segundo lugar, Descartes duvida das realidades do mundo e de si mesmo, propondo que as ideias que temos de nossa existncia e do mundo podem no passar de iluses ou sonhos. Se algumas vezes temos sonhos to verdadeiros que parecem realidade, no h nada que assegure que estamos acordados ou dormindo, portanto, no h qualquer instrumento ou ideia que sirva para distinguir verdade de sonho, de iluso. Assim, ele afirma:

    [...] E, persistindo nesta meditao, percebo to claramente

    que no existem quaisquer indcios categricos, nem sinais

    bastante seguros por meio dos quais se possa fazer uma

    ntida distino entre a viglia e o sono, que me sinto

    completamente assombrado: e meu assombro tanto que

    quase me convence de que estou dormindo.

    DESCARTES, Ren. Meditaes primeiras. In: Meditaes. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 87.

    Em terceiro lugar, Descartes chega dvida hiperblica, dvida exagerada ou hiptese do gnio maligno. At ento, o filsofo havia desconfiado de todo o conhecimento, salvando de sua desconfiana somente a Matemtica, que para ele era o nico conhecimento seguro e exato, porque totalmente racional. Nesse terceiro momento da dvida metdica, Descartes coloca em dvida inclusive as verdades matemticas. E se as verdades matemticas que aparecem mente humana de modo intuitivo e evidente no passarem de iluses coletivas, de mentiras forjadas por um grande e malvolo gnio que engana todos os homens ao mesmo tempo, fazendo-os acreditar que 2 + 2 = 4 quando isso no passa de uma iluso? O saber matemtico no poderia ser fruto de um ser superior que sadicamente engana os homens para deles rir? As prprias coisas do mundo, as imagens que temos delas, as ideias, no poderiam ser tambm uma iluso de um ser enganador, ardiloso e astuto?

    Epistemologia moderna

  • 10 Coleo Estudo

    Presumirei, ento, que existe no um verdadeiro Deus, que

    a suprema fonte da verdade, mas um certo gnio maligno,

    no menos astucioso e enganador do que poderoso, que

    dedicou todo o seu empenho em enganar-me. Pensarei que

    o cu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as

    coisas exteriores que vemos no passam de iluso e fraudes

    que Ele utiliza para surpreender minha credulidade.

    DESCARTES, Ren Meditaes primeiras. In: Meditaes. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 88.

    Porm, ao final de seu caminho em que colocou todas as coisas, inclusive as verdades matemticas, em dvida, Descartes alcana a verdade clara, distinta e inabalvel que sustentar todo o edifcio do saber, de forma intuitiva e to evidente que seria impossvel que qualquer homem duvide dela: a verdade do cogito. Assim, ele afirma:

    [...] Somente depois tive que constatar que, embora

    eu quisesse pensar que tudo era falso, era preciso

    necessariamente que eu, que assim pensava, fosse alguma

    coisa. E observando que essa verdade penso, logo sou

    era to firme e slida que nenhuma das mais extravagantes

    hipteses dos cticos seria capaz de abal-la, julguei que

    podia aceit-la sem reservas como o princpio primeiro

    da filosofia que procurava.

    DESCARTES, Ren. Discurso do Mtodo. Traduo de J. Guinsburg e Bento Prado Jnior.

    So Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 46.

    Para Descartes, o homem pode duvidar de absolutamente tudo. Pode duvidar dos conhecimentos empricos, de sua existncia e da existncia do mundo. Pode duvidar at das verdades matemticas. Ele s no pode duvidar de que duvida, ou seja, de que pensa. E se pensa, ele existe.

    Portanto, esta verdade, conhecida como a certeza do Cogito (Cogito, ergo sum! Penso, logo existo!), to evidente e absolutamente verdadeira que mesmo a dvida, at aquela mais exagerada, serve como confirmao dela, de forma que o filsofo afirma, que se deixasse de pensar, ele deixaria de existir.

    Assim, para Descartes, o que garante a existncia humana no so os sentidos, mas o pensamento puro. O homem existe enquanto substncia pensante ou res cogintans. O que garante tanto a existncia do homem quanto a existncia de todas as coisas a substncia pensante, o eu pensante.

    [Nesse sentido] existem apenas duas substncias, claramente

    separadas uma da outra e irredutveis uma outra: a res

    cogitans (coisa pensante) que o homem, e a res extensa

    (coisa extensa que so as coisas do mundo fora do pensamento.

    A res cogitans a existncia espiritual do homem sem

    nenhuma ruptura entre pensar e o ser, a alma humana

    como realidade pensante que pensamento em ato, como

    pensamento em ato que realidade pensante. A res extensa

    o mundo material (compreendendo obviamente o corpo

    humano), do qual, justamente, se pode predicar como

    essencial apenas a propriedade da extenso.

    REALE, Giovanni. Histria da Filosofia Antiga. 2. ed. 7v. So Paulo: Loyola, 2001. Volume III. p. 293.

    Uma vez atingida a verdade do Cogito, s h uma nica instncia que garanta a verdade sobre o mundo: o prprio homem. No h necessidade de se encontrar provas ou justificativas, muito menos empricas, fora do homem que garantam a verdade. Toda pesquisa deve somente buscar o grau mximo de clareza e distino, dadas pelo pensamento puro. Se a verdade aparecer mente humana com clareza e distino, essa ideia verdadeira. justamente por isso que Descartes representa o maior expoente do racionalismo moderno: ele acredita que as verdades so alcanadas unicamente pela razo humana e nada mais. O prprio mtodo cartesiano tem como base a razo, o pensamento claro e distinto que, aplicado adequadamente ao mundo, s cincias, produziro verdades claras e distintas.

    A existncia de DeusDescartes chegou ideia do Cogito, considerando-a

    indubitvel e autoevidente. Porm surge, um outro problema: se o fundamento do conhecimento verdadeiro est na conscincia, o homem tem, enquanto ser pensante, uma multiplicidade de ideias em sua mente, e sobre essas ideias a Filosofia deve se debruar a fim de constatar a sua veracidade. E h ainda outro problema: ser que as ideias que o homem tem de um objeto do mundo correspondem verdadeiramente a esse objeto? Como possvel sair da ideia em si e alcanar o mundo externo de forma que ele corresponda exatamente ao que se pensou dele? As ideias so puras representaes mentais ou elas correspondem exatamente ao mundo externo, realidade objetiva fora do homem?

    Para responder a essas perguntas, necessrio, em primeiro lugar, compreendermos como Descartes divide essas ideias. Ele as classifica em 3 grupos:

    Frente A Mdulo 11

  • 11Editora Bernoulli

    FILO

    SOFI

    A

    1 Ideias inatas: so aquelas que nascem com

    o homem, que so intrnsecas sua conscincia. So as

    ideias de Deus, de corpo, de formas geomtricas como tringulos, crculos, dentre outras , que representam em si as essncias imutveis e verdadeiras.

    2 Ideias adventcias: so ideias estranhas, que vm

    de fora do homem, como as ideias dos objetos.

    3 Ideias factcias: so as ideias inventadas pelo

    homem.

    Essas trs classes de ideias existem subjetivamente na mente humana. A questo para Descartes saber se elas so tambm objetivas, ou seja, se aquilo que existe na mente tambm existe no mundo e corresponde realidade das coisas. Para o filsofo, as ideias factcias so ilusrias e, portanto, arbitrrias, devendo ser ignoradas. As ideias inatas s existem na mente do homem, portanto, no se referem a nada do mundo externo, j nasceram com o homem e encontram fundamento no res cogitans, no sendo questionveis. O problema est, ento, com as ideias adventcias: ser que aquilo que o homem pensa sobre o mundo corresponde realidade das coisas, ou tais ideias no passam de uma iluso?

    Para resolver esse problema, Descartes lanou mo da ideia de Deus. O filsofo considera certo que a ideia de Deus existe, mas questiona: teria sido ela criada pelo homem ou existe por conta prpria? A ideia de Deus objetiva ou subjetiva?

    Descartes considera, nas Meditaes Metafsicas:

    [que a ideia de Deus se constitui em] uma substncia infinita,

    eterna, imutvel, independente e onisciente, a qual eu

    prprio e todas as outras coisas que existem (se verdade

    que h coisas existentes) fomos criados e produzidos.

    DESCARTES, Ren. Meditaes primeiras. In: Meditaes. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 87.

    Nesse sentido, o filsofo conclui, que a ideia de Deus era inata, porque os homens, sendo seres imperfeitos e limitados, no poderiam ser a causa de uma ideia de perfeio e eternidade, uma vez que tal ideia seria o efeito de uma causa, e a causa no traria a perfeio que a ideia exige. De forma mais simples: a ideia de Deus no poderia ter como causa de sua criao o homem, porque este imperfeito, e um ser imperfeito e limitado no poderia elaborar a ideia de perfeio e eternidade. Portanto, a ideia de Deus inata e s poderia ter como causa um ser que tambm fosse perfeito e eterno, nesse caso, somente Deus poderia criar essa ideia e coloc-la na mente do homem, e, assim, pelo raciocnio de Descartes, Deus existe. Nas palavras do filsofo:

    [...] fica evidente que o autor dessa ideia que est em mim

    no sou eu, imperfeito e finito, nem qualquer outro ser, da

    mesma forma limitado. Tal ideia, que est em mim, mas no

    de mim, s pode ter por causa adequada um ser infinito,

    isto , Deus.

    DESCARTES, Ren. Meditaes primeiras. In: Meditaes. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 91.

    E quando considero que duvido, isto , que sou uma coisa

    incompleta e dependente, a idia de um ser completo e

    independente, ou seja, de Deus, apresenta-se a meu esprito

    com igual distino e clareza; e do simples fato de que essa

    idia se encontra em mim, ou que sou ou existo, eu que

    possuo esta idia, concluo to evidentemente a existncia

    de Deus e que a minha depende inteiramente dele em todos

    os momentos da minha vida, que no penso que o esprito

    humano possa conhecer algo com maior evidncia e certeza.

    DESCARTES, Ren. Meditaes. Traduo. de Jac Guinsburg e Bento Prado Jnior. So Paulo: Nova Cultural, 1996.

    p. 297-298.

    Desse modo, Descartes elabora um argumento denominado

    de prova ontolgica da existncia de Deus: a existncia de

    Deus parte integrante de sua essncia. Assim, impossvel

    ter a ideia de Deus sem que Ele exista, sendo o prprio

    criador de sua ideia, perfeita e infinita, que a coloca na mente

    do homem, ser imperfeito e finito. A ideia de Deus, segundo

    Descartes, a marca que o arteso (Criador) deixa em sua

    obra (homem). Nesse sentido, Descartes descarta a ideia

    do gnio maligno, que era somente uma hiptese, visto

    que filsofo no havia afirmado que Deus seria de fato um

    ser maligno.

    Para Descartes, Deus bom, perfeito, eterno e infinito.

    Ele criou o homem e o fez capaz de conhecer o mundo.

    No sendo mal, mas sumamente bom, Deus no permitiria

    que o homem, ao encontrar uma verdade clara e distinta

    sobre o mundo, estivesse errado, ou estivesse to

    enganado que tomasse como verdade aquilo que no

    passa de uma mentira. Dessa maneira, Ele que garante

    que o homem, ao alcanar uma verdade pela intuio

    intelectiva, encontre a verdade. Assim, o homem, quando

    alcana alguma ideia adventcia, proveniente das coisas

    para a conscincia, isto , alcana alguma ideia sobre

    o mundo e ele mesmo enquanto res extensa, se esta

    ideia aparece sua mente com clareza e distino, quem

    garante que essa ideia verdadeira, correspondendo

    de fato verdade daquilo a que se refere, o prprio Deus.

    Epistemologia moderna

  • 12 Coleo Estudo

    Pelo princpio da correspondncia, a ideia subjetiva do homem

    sobre as coisas do mundo realmente corresponde a essas

    coisas, e quem garante esse conhecimento verdadeiro

    Deus. Mas ento, surge a questo: e se o homem racional

    no encontra a verdade? Isto significa que ela no existe?

    A essa questo Descartes responde:

    [...] o bom senso (a razo) naturalmente igual em todos os

    homens; e, destarte, que a diversidade de nossas opinies

    no provm do fato de serem uns mais racionais do que

    outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos

    por vias diversas e no considerarmos as mesmas coisas.

    Pois no suficiente ter o esprito bom, o principal

    aplic-lo bem.

    DESCARTES, Ren. Discurso do Mtodo. So Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 29.

    Assim, o homem racional s no encontra a verdade sobre o mundo se ele no seguir os passos corretos do mtodo.

    Com duas verdades claras e distintas, a do Cogito e a de Deus, Descartes encontrou os fundamentos firmes e incontestveis que sustentaro todo o edifcio do saber, o qual tem, em sua essncia, a ideia de que aquilo que o homem pensa, atravs do mtodo, sendo uma ideia clara e distinta, verdade, e quem garante essa verdade Deus.

    As consequncias do pensamento cartesiano para o mundo ocidental

    Sem dvida, Descartes foi um dos grandes pensadores da histria da Filosofia que mais contribuiu para a formao do pensamento ocidental. Sua preocupao com o mtodo, ao tentar responder pergunta O que possvel conhecer?, o levou aos mais ilustres altares do pensamento filosfico, tendo ficado conhecido, inclusive, como o fundador da Filosofia Moderna.

    Descartes trouxe baila a questo do conhecimento e como este pode ser alcanado pelo homem, que, por ser racional, pode alcanar a verdade sobre o mundo se seguir os passos corretos para isso. A importncia da filosofia de Descartes tanta que muitos depois dele acreditaram que o objetivo nico e verdadeiro de toda a filosofia seria tratar somente da Epistemologia.

    Porm, outra consequncia do pensamento cartesiano entrou para a histria e at hoje vista como uma questo permanente da Filosofia: o dualismo psicofsico ou dicotomia entre corpo e mente do homem.

    Ren

    Des

    cart

    es

    Nessa imagem, buscam-se mostrar a ligao existente entre a percepo sensorial de uma imagem e a ao muscular. A imagem transferida dos olhos para a glndula pineal. A reao entre a imagem e a glndula determina a ao motora.

    Ao chegar certeza do Cogito, Descartes afirmou

    que a realidade do pensamento mais clara e anterior

    realidade da existncia fsica ou material do homem.

    Inclusive, disse que aquilo que garante a existncia

    material do mundo e do prprio homem o pensamento,

    por isso, primeiramente, o homem pensa e s depois

    se conclui que ele existe. Nesse momento, ocorre

    a diviso entre res cogitans (coisa pensante, substncia

    pensante) e res extensa (coisa extensa ou coisa material),

    sendo que a primeira garante a existncia da segunda.

    Esse antagonismo entre pensamento e matria, corpo e alma,

    foi tido durante pelo menos trs sculos como uma verdade

    incontestvel em relao ao homem. De fato, o homem tem

    em si uma dimenso de puro pensamento, a conscincia,

    e outra dimenso material, o corpo. Essa separao

    do homem trouxe muitas consequncias, por exemplo, para

    a Medicina, que passou a compreender o homem como duas

    coisas separadas. A partir dessa concepo, a funo do

    mdico passou a ser curar o corpo, os males fsicos, sem

    se importar se tais males esto ligados ou tm como causa

    algum mal ou distrbio mental, psicolgico.

    Frente A Mdulo 11

  • 13Editora Bernoulli

    FILO

    SOFI

    A

    Essa separao corpo-alma, porm, hoje combatida por

    muitos pensadores, que tentam unificar o que Descartes

    separou, buscando uma compreenso mais holstica

    do homem, concebendo-o como uma unidade em que mente

    e corpo se interligam e se complementam.

    Ser que essas duas instncias ou substncias do homem

    a res cogitans e a res extensa , completamente diferentes,

    se comunicam de alguma forma? Buscando uma possvel

    soluo para esse problema, Descartes escreveu duas

    obras nas quais trata desse assunto: Tratado sobre o

    homem e As paixes da alma. Nelas, o filsofo encontra o

    ponto de comunicao entre corpo e mente, entre matria

    e conscincia, denominado por ele de glndula pineal.

    A respeito dessa ligao, Descartes afirma:

    No basta que ela (a alma) seja inserida no corpo como

    um piloto em seu navio, seno, talvez, para mover seus

    membros, mas necessrio que ela seja conjugada e unida

    mais estreitamente com ele, para, ademais, experimentar

    sentimentos e apetites semelhantes aos nossos, compondo

    assim um verdadeiro homem.

    DESCARTES, R. Discurso do mtodo. So Paulo: Martin Claret, 2002. P.46.

    E ainda:

    preciso saber que, por mais que a alma esteja conjugada

    com todo o corpo, entretanto h no corpo algumas partes

    em que ela exerce suas funes de modo mais especfico

    que em todas as outras [...] A parte do corpo em que a alma

    exerce imediatamente suas funes no em absoluto o

    corao e nem mesmo todo o crebro, mas somente a parte

    interna dele, que certa glndula muito pequena, situada

    em meio sua substncia e suspensa sobre o conduto pelo

    qual os espritos das cavidades anteriores se comunicam

    com os espritos das cavidades posteriores, de modo que os

    seus mais leves movimentos podem mudar muito o curso

    dos espritos [...]

    DESCARTES, Ren. As Paixes da Alma. Traduo de J. Guinsburg e Bento Prado Jr.

    So Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 238.

    Constata-se, portanto, que, embora de uma forma

    um pouco precria, Descartes une novamente corpo

    e alma, apesar de, em sua filosofia, ter ficado mais evidente

    a separao entre essas duas substncias.

    EMPIRISMO MODERNO

    Francis BaconFrancis Bacon nasceu em 22 de janeiro de 1561 em York

    House, Strand, Inglaterra. Devido ao fato de seu pai ter sido

    tabelio da rainha Elizabeth, Bacon foi introduzido desde

    cedo na Corte inglesa. Entrou na universidade de Cambridge

    aos 12 anos e, em 1575, obteve o ttulo de advogado

    e jurisconsultor no Grays Inn, em Londres. Aos 23 anos

    de idade, entrou para a carreira poltica, sendo eleito para

    a Cmara dos Comuns onde permaneceu durante 20 anos.

    Ocupou cargos importantes na poltica da Inglaterra,

    principalmente quando Jaime I subiu ao trono, tornando-se

    advogado-geral, procurador-geral da Coroa e lorde tabelio.

    Recebeu o ttulo de lorde e, depois, de visconde.

    Francis Bacon

    Em 1620, publicou sua mais importante obra, o Novum

    Organum, que deveria, em sua opinio, substituir o Organum

    aristotlico. No ano seguinte, foi acusado de corrupo por

    ter aceitado presentes de uma das partes envolvida em

    um processo que ele deveria julgar, e, assim, sua brilhante

    carreira sofreu um duro ataque do qual nunca se recuperou.

    Foi condenado por crime de corrupo, permanecendo na

    priso por poucos dias, tendo pagado uma multa e ido perdoado

    pelo rei. Francis Bacon faleceu em 1526.

    Epistemologia moderna

  • 14 Coleo Estudo

    Bacon ficou conhecido, juntamente com Descartes, como

    um dos fundadores do pensamento moderno. Porm,

    seguiu decididamente o caminho inverso do racionalismo

    ao defender o mtodo experimental para se alcanar um

    conhecimento verdadeiro sobre o mundo. Entrou para

    a Histria como um dos grandes crticos da Escolstica

    medieval, uma vez que esta se ocupava de um conhecimento

    contemplativo sem se preocupar com o aspecto prtico

    e instrumental da Cincia. Tambm foi um crtico de

    Aristteles, considerando a lgica aristotlica, principalmente

    os argumentos dedutivos, estril para o conhecimento do

    mundo. Bacon chega inclusive a afirmar que a filosofia

    grega se fundamentava mais em discursos do que em

    conhecimentos que levariam a algum progresso da Cincia

    ou do conhecimento do mundo. O Novum Organum trabalha

    essa problemtica ao ser concebido como um instrumento

    eficaz para o conhecimento e dominao da natureza.

    Saber poderBacon, ao discutir a forma de se conhecer a natureza

    eficazmente, faz uma distino entre os conceitos de antecipaes da natureza e de interpretaes da natureza.

    As antecipaes da natureza so conhecimentos obtidos por meio de axiomas construdos a partir de poucos dados reais, sendo a razo a guia dessas verdades. Para Bacon, este um conhecimento temerrio e prematuro da razo que o homem costumeiramente tem, no passando de ideias obtidas do senso comum e de forma assistemtica, j que foram formadas a partir de uma primeira noo pouco precisa sobre os fenmenos da natureza e foram aceitas pelos homens sem antes verific-las. Essas verdades sobre a natureza so precipitadas, obtidas por meio de poucos e insuficientes exemplos.

    Por outro lado, temos as interpretaes da natureza, que tm como objetivo interrogar a realidade, subjulgando-a at que se alcance o conhecimento verdadeiro. Para o filsofo, so essas interpretaes que levam ao verdadeiro conhecimento do mundo j que se comprometem com a realidade e se constroem a partir de muitos exemplos e experimentaes. Para que se alcance a verdade sobre o Universo, necessrio, portanto, que sejam feitas experincias sucessivas por meio do mtodo indutivo, que consiste em partir de um estudo srio e pormenorizado dos casos particulares para se alcanar uma ideia geral que seja fundada em muitos e fartos exemplos. O mtodo indutivo, apesar de primeira vista parecer difcil, pois no traz imediatamente as respostas, considerado por Bacon como o mais adequado e o nico capaz de garantir um conhecimento de fato sobre o mundo natural, sendo, na linguagem do filsofo, o verdadeiro mtodo do conhecimento. Bacon prope, assim, a formulao do conhecimento atravs de uma cincia aplicada, a qual d

    ao homem o conhecimento das leis que regem a natureza, permitindo a ele interagir e controlar a natureza de acordo com seus interesses e em seu prprio benefcio.

    Partindo dessa distino entre antecipao e interpretao da natureza, podemos dividir a filosofia de Bacon em dois momentos:

    1 momento Retirar da mente todo conhecimento que no seja verdadeiro, ou seja todo conceito ou pr-conceito criados a partir das antecipaes da natureza. Essas falsas noes que devem ser eliminadas so chamadas por Bacon de dolos.

    2 momento Expor as regras do nico mtodo correto que pode levar o homem ao conhecimento do mundo de forma verdadeira.

    A teoria dos dolosQuais so as falsas noes que tomam conta do

    intelecto humano e o impedem de alcanar os verdadeiros conhecimentos sobre o mundo?

    Para Bacon, o primeiro passo para se chegar verdade deve ser reconhecer essas falsas noes, tornar-se consciente delas, para mais tarde, atravs do mtodo correto de investigao cientfica, se livrar delas.

    Os dolos e as falsas noes que invadiram o intelecto

    humano, nele lanando razes profundas, no s sitiam

    a mente humana, a ponto de tornar-lhe difcil o acesso

    verdade, mas tambm (mesmo quando dado e concedido

    tal acesso) continuam a nos incomodar durante o processo

    de instaurao das cincias, quando os homens, avisados

    disso, no se dispe em condio de combat-los medida

    do possvel.

    REALE, Giovanni. Histria da Filosofia Antiga. 2. ed. 7v. So Paulo: Loyola, 2001. Volume III. p. 269.

    So quatro os dolos que atrapalham o conhecimento verdadeiro.

    1 dolo da tribo

    [os dolos da tribo] esto fundados na prpria natureza

    humana, na prpria tribo ou espcie humana.

    BACON. Novum Organum. Livro I, LXXII.

    Tribo, para Bacon, significa a espcie humana, a raa

    humana. Assim, o homem coloca na natureza exterior

    aquilo que de sua natureza prpria. Tais dolos acontecem

    quando o homem mistura o intelecto humano natureza

    das coisas, dando a elas caractersticas que so prprias

    dos homens ou que lhes agradam. O homem d ao Universo

    Frente A Mdulo 11

  • 15Editora Bernoulli

    FILO

    SOFI

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    e natureza relaes e ordens que no existem, mas que

    ele acredita existirem porque lhe convm, enxergandoas

    coisas de acordo com as limitaes que so prprias

    da espcie humana. A natureza no o que achamos que

    ela seja, ela tem uma objetividade que se constitui em

    suas verdades. A dificuldade de se encontrar a verdade

    no se refere s limitaes individuais, mas s limitaes

    da espcie humana.

    2 dolos da caverna

    Cada um [...] tem uma caverna ou uma cova que intercepta

    e corrompe a luz da natureza; seja devido natureza singular

    de cada um, seja devido educao ou conversao com

    os outros, seja pela leitura dos livros ou pela autoridade

    daqueles que se respeitam e admiram.

    BACON. Novum Organum. Livro I, LXXII.

    Ao contrrio do dolo da tribo, que diz respeito ao conjunto

    dos homens, o dolo da caverna diz respeito s falsas noes

    ou ideias provenientes dos homens em particular. Desse

    modo, Bacon afirma que o esprito humano tal como se

    acha disposto em cada um coisa vria, sujeita a mltiplas

    perturbaes, e at certo ponto sujeita ao acaso5.

    Desse modo, esses dolos referem-se s concepes e aos

    pr-conceitos particulares.

    3 dolo do foro (ou do mercado)

    A relao entre os homens ocorre por meio da fala, mas

    os nomes so impostos s coisas segundo a compreenso

    do vulgo.

    Bacon. Novum Organum. Livro I, LXXII.

    Esses dolos dizem respeito linguagem, e por isso Bacon

    os considera os piores e mais graves ao entendimento

    humano. Para o filsofo, as palavras so imprecisas

    e se referem a coisas cuja natureza os homens no dominam.

    Dessa forma, eles utilizam termos e palavras sem saber

    exatamente o que significam, causando grande confuso.

    4 dolo do teatro

    [Os dolos do teatro] penetram no esprito humano por meio

    das diversas doutrinas filosficas e por causa das pssimas

    regras de demonstrao.

    BACON. Novum Organum. Livro I, XCV.

    5BACON. Novum Organum. Livro I, LXXII.

    Segundo Bacon, esses so os dolos derivados das diversas

    doutrinas filosficas e cientficas que no so verdadeiras,

    no passando de representaes fantasiosas que poderiam

    ser representadas em um teatro, pois so ilusrias.

    Dessa forma, Bacon nos mostra quais so os preconceitos

    dos quais os homens devem se ver livres. Assim, passamos

    segunda parte de sua filosofia, que busca mostrar qual

    deve ser o melhor caminho ao conhecimento verdadeiro.

    O mtodo indutivoQuando o homem consegue purificar sua mente dos

    dolos, ele deve buscar obter o conhecimento do mundo

    de forma experimental, por meio da induo. Segundo

    Bacon, o homem deve se colocar como uma criana

    diante da natureza para compreend-la tal como ela ,

    sem ideias pr-concebidas. O novo mtodo indutivo deve

    se preocupar com a regularidade dos fenmenos naturais,

    suas diferenas e seu funcionamento, de modo que, pela

    observao da experincia, se alcance uma lei geral.

    Essas observaes podem prescindir de instrumentos

    que so as extenses dos sentidos humanos, de modo

    que se superem as suas limitaes.

    Bacon representou o esprito da Cincia moderna

    ao defender o progresso da Cincia e sua aplicao na vida

    humana. Ele buscou uma cincia prtica, ativa e atuante,

    que rompesse, atravs da crtica, com as antigas concepes

    ou dolos, sendo capaz de representar a busca pelo domnio

    e seria pela transformao da natureza a qual deve servir

    ao homem em suas necessidades.

    O EMPIRISMO INGLS

    O sculo XVI foi marcado pela eminncia do racionalismo,

    corrente filosfica que encontrou seu auge com a filosofia

    de Ren Descartes. O racionalismo representou, por seu

    modo de tentar compreender o mundo, a valorizao

    da razo em contraposio fora da autoridade medieval

    e antiga, representada pela Escolstica, que encontrou

    no Renascimento a sua crtica mais importante. O racionalismo

    moderno encontrou na Matemtica de Coprnico e de Galileu

    (para citar alguns dos grandes expoentes desse pensamento),

    o caminho que levaria verdade sobre o homem e o

    mundo, tendo, por consequncia, a valorizao do mtodo

    dedutivo-matemtico como caminho para o conhecimento

    das essncias, das ideias e dos princpios que conduziriam

    o pensamento humano ao seu pleno desenvolvimento.

    Epistemologia moderna

  • 16 Coleo Estudo

    Porm, o movimento que surgiu no sculo posterior tomou novos caminhos: no bastava conhecer o mundo, era necessrio domin-lo e transform-lo de acordo com as necessidades humanas. Tal ideia encontrou seu pice na Revoluo Industrial, nascida na Inglaterra, que teve como base terica o pensamento do filsofo ingls Francis Bacon. O que interessava aos pensadores dos sculos XVII e XVIII era o conhecimento instrumental que conduziria descoberta de leis naturais atravs das quais se poderia dominar a natureza.

    Nesse contexto, o empirismo moderno se fortaleceu na busca do progresso da humanidade por meio do desenvolvimento das Cincias. As discusses metafsicas cederam lugar s discusses prticas de como a natureza se comporta e como o homem pode interferir nela. Porm, para que isso fosse possvel, era necessrio responder pergunta acerca do limite do conhecimento humano, sobre aquilo que o homem pode conhecer, sobre como as ideias so construdas na mente humana e sobre o papel dos sentidos para o conhecimento seguro e verdadeiro da natureza.

    Apesar de Bacon tambm fazer parte dessa tradio empirista, os maiores representantes do chamado empirismo ingls nos sculos XVII e XVIII foram os pensadores John Locke e David Hume.

    John LockeJohn Locke, um dos mais importantes pensadores

    da Epistemologia moderna, considerado o pai do empirismo. Apesar de ter se dedicado tambm a reflexes polticas, a importncia de sua filosofia deu-se principalmente em relao teoria do conhecimento.

    Sir G

    odfr

    ey K

    nel

    ler

    John Locke foi um dos mais importantes pensadores do empirismo ingls. Destacou-se tanto no campo da Epistemologia quanto no da poltica.

    Sua obra mais importante foi Ensaios sobre o entendimento humano, publicada em 1690. Locke debruou-se sobre essa obra durante 20 anos e nela que ele trata daquilo que mais caro sua filosofia: os limites, as capacidades e as funes do intelecto humano. Segundo Locke, sua funo com essa obra trabalhar como um ajudante de jardinagem, preparando o terreno e removendo o entulho que atrapalha o caminho do conhecimento6.

    Desse modo, Locke se prope a refletir sobre como o homem pode alcanar o conhecimento, buscando entender, primeiramente, como as ideias so construdas na mente humana.

    de grande utilidade para o marinheiro saber a extenso

    de sua linha, embora no possa com ela sondar toda a

    profundidade do oceano. conveniente que saiba que ela

    suficientemente longa para alcanar o fundo dos lugares

    necessrios para orientar sua viagem, e preveni-lo de

    esbarrar contra escolhos que podem destru-lo. No nos diz

    respeito conhecer todas as coisas, mas apenas aquelas que

    se referem nossa conduta.

    LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. So Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 32.

    A filosofia de Locke possui trs interesses:

    1 Epistemolgico: Locke procura saber a origem

    das ideias e como elas so construdas pelo homem.

    Esse o aspecto Locke mais importante de toda a sua

    reflexo filosfica.

    2 Poltico: Locke busca compreender a formao do

    Estado e legitimar a propriedade privada.

    3 Religioso: Locke busca estabelecer os traos

    essenciais da revelao de Deus aos homens.

    Neste mdulo, iremos tratar exclusivamente da Epistemologia de Jonh Locke.

    Crtica ao inatismoAo contrrio de pensadores anteriores, Locke inovou

    ao afirmar que no possvel conhecer todas as coisas, mas somente aquelas que esto de acordo com as possibilidades humanas de conhecer.

    Nesse caminho crtico, Locke contraria a posio filosfica de Descartes ao afirmar que no existem ideias inatas, como a ideia de Deus, que, segundo a filosofia cartesiana, est presente por natureza na mente humana. Ao contrrio, Locke defende que a mente humana uma tbula rasa, uma folha de papel completamente em branco em que no h, absolutamente, nenhuma ideia escrita a priori, ou seja,

    6LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. So Paulo: Nova Cultural, 1999. Epstola ao leitor. p. 27.

    Frente A Mdulo 11

  • 17Editora Bernoulli

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    no h a presena de nenhuma ideia previamente inscrita na mente dos homens.

    Aqui se faz necessrio definir de modo mais pormenorizado o que Locke entende por ideia. Enquanto na tradio platnica ideia era um ser em si mesmo, uma entidade metafsica, uma substncia que existia por conta prpria, com Descartes e Locke, essa concepo de ideia se esvai. Para esses dois filsofos, ideia um contedo do pensamento humano, ou seja, um pensamento sobre alguma coisa, no tendo realidade em si mesma e s existindo enquanto construo mental.

    A diferena entre a posio filosfica de Descartes e a de Locke que, enquanto o primeiro acredita que, algumas dessas ideias so inatas e outras so adventcias e factcias, Porm, para o segundo, as ideias que existem na mente no podem, de forma alguma, serem inatas. Dessa maneira, Locke defende que:

    A) no existem ideias, princpios ou quaisquer contedos

    inatos na mente humana;

    B) nenhum intelecto humano capaz, de forma alguma,

    de criar ou destruir ideias que existam nele;

    C) a nica fonte das ideias a experincia, ou seja. todas

    as ideias so originadas nas experincias humanas.

    O principal argumento que Locke refuta aquele acerca da presena de ideias inatas, elaborando, assim, a sua crtica ao inatismo, segundo a qual, se existissem ideias inatas, todos os homens deveriam alcan-las, o que no acontece, por exemplo, com a ideia de Deus ou com os princpios de identidade e de no contradio7. Se existissem ideias morais inatas por exemplo a ideia de que matar uma criana errado por si mesmo e, logo, essa lei deveria estar inscrita na mente e no corao de todos os homens , todos deveriam seguir tais ideias, o que, na prtica, no acontece, pois algumas culturas aceitam valores e fatos que para outras seriam absurdos ou antinaturais, agindo, portanto, de modo diferente. Assim, para Locke, sustentar que as ideias inatas existam, mas que no foram encontradas por alguns, seria absurdo e insustentvel.

    7 Identidade: Na lgica, o princpio da identidade, uma das trs leis bsicas do raciocnio para Aristteles, se expressa pela frmula A = A,ou seja, todo objeto igual a si mesmo. IN: JAPIASS, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionrio bsico de filosofia. Rio de janeiro: Zahar, 1996.

    Contradio: [...] A ontologia tradicional tem por premissa fundamental o princpio da no-contradio aplicado ao ser mesmo. O pensamento da contradio insustentvel, porque desqualifica todo pensamento, que se torna uma opinio sem valor de verdade. IN: JAPIASS, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionrio bsico de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

    Bart

    olom

    Est

    eban

    Murillo

    Sagrada famlia (1650). Segundo Locke, tudo o que conhecemos sobre o mundo chega nossa mente atravs dos sentidos. Nessa imagem, a criana, observando o cachorro, chegar ideia de o que um cachorro.

    Locke afirma que no h motivos para crer que a alma pense antes que os sentidos lhe tenham fornecido ideias nas quais pensar.

    As idias, especialmente as pertencentes aos princpios, no

    nascem com as crianas. Se consideramos cuidadosamente

    as crianas recm-nascidas, teremos bem poucos motivos

    para crer que elas trazem consigo a este mundo muitas

    idias. Excetuando, talvez, algumas plidas idias de fome,

    sede e calor, e certas dores, que sentiram talvez no ventre,

    no h a menor manifestao de idias estabelecidas

    nelas, especialmente das idias que respondem aos termos

    que formam proposies universais que so consideradas

    princpios inatos. Pode-se perceber como, por graus,

    posteriormente, as idias chegam s suas mentes, e no

    adquirem mais, nem outras, do que as fornecidas pela

    experincia e a observao das coisas que aparecem em seu

    caminho, o que deve ser suficiente para convencer-nos

    de que no h caracteres originais impressos na mente.

    LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. So Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 51.

    Epistemologia moderna

  • 18 Coleo Estudo

    Ou seja, so os sentidos, as experincias, que oferecem mente a matria prima das ideias. Defendendo a ideia da tbula rasa, Locke afirma:

    Suponhamos, pois, que a mente , como papel branco,

    desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer idias;

    como ela ser suprida? De onde provm este vasto estoque,

    que ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela

    como uma variedade infinita? De onde apreende todos

    os materiais da razo e do conhecimento? A eu respondo,

    numa palavra, da experincia. Todo o nosso conhecimento

    est nela fundado e dela deriva fundamentalmente

    o prprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos

    sensveis externos como nas operaes internas de nossas

    mentes, que so por ns mesmos percebidos e refletidos,

    nossa observao supre nossos entendimentos com

    todos os materiais do pensamento. Dessas duas fontes

    de conhecimento jorram todas as nossas idias, ou as que

    possivelmente teremos.

    LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento Humano. Traduo de Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 2. ed. So Paulo:

    Abril Cultura, 1978. p. 159.

    clara a diferena entre a concepo de conhecimento para Locke e para Descartes. Este prioriza o papel do sujeito para o conhecimento, uma vez que aquilo que garante a verdade a ideia clara e distinta que o sujeito conhecedor alcana, sem interferncia do objeto, sobre a coisa que est sendo pensada.

    Por outro lado, de acordo com a tese empirista de Locke, o conhecimento alcanado sobre algo fruto das experincias realizadas, as quais do ao homem os contedos essenciais a partir dos quais as ideias sero formadas. Para Locke, a mente humana como cera quente, que, aos poucos, vai adquirindo a forma do objeto que est sendo experimentado.

    Segundo Locke, a mente humana como se fosse uma cera quente que recebe a figura do braso. O que permanece na mente so as idias, cpias das experincias realizadas.

    A constituio das ideiasLocke acredita que todas as ideias nascem da experincia,

    necessrio distinguir as experincias, no existindo ideias inatas no homem. Assim, em sua Filosofia, ele distingui as experincias em dois tipos:

    A) Experincias externas dos objetos que nos cercam.

    Essas experincias geram a ideia simples ligada s

    sensaes, como as ideias de cor, odor, sabor, textura,

    som e cheiro. E, pelo conjunto de sensaes, geram

    as ideias de solidez, extenso, movimento, repouso,

    nmero e configurao.

    Exemplo: Ao se observar uma piscina, percebe-se

    que sua gua est transparente, fria e com odor

    de cloro. Tambm possvel perceber que ela grande,

    profunda, que a gua est em movimento e que foi

    construda em formato retangular.

    necessrio deixar claro que as ideias simples, que

    nascem dos sentidos particulares, so subjetivas, j que

    podem variar de uma pessoa para outra. Duas pessoas

    podem, por exemplo, ter sensaes diferentes sobre

    a gua da piscina, sendo que para uma a gua pode

    estar extremamente fria e, para a outra, nem tanto.

    Porm, as ideias simples relacionadas s qualidades

    fsicas do objeto em questo, como comprimento,

    profundidade, extenso, no variam, uma vez que

    no dependem de impresses subjetivas, mas dizem

    respeito s suas caractersticas objetivas.

    B) Experincia realizada pela reflexo.

    Reflexo a capacidade da mente de perceber seus

    processos internos; logo, esse tipo de experincia

    refere-se mente pensando em si prpria ao produzir

    as ideias. A mente humana no possui ideias inatas,

    mas pode trabalhar com as percepes originadas

    da sensibilidade do homem.

    Exemplos: prazer, dor, fora, distino, comparao, etc.

    Qualidades primrias e secundrias

    Os objetos do mundo externo que geram as ideias simples

    podem ser conhecidos de acordo com suas qualidades

    primrias e secundrias. No exemplo da piscina, percebe-se

    que o objetivo possui caractersticas objetivas, invariveis

    e independentes do observador, as quais esto ligadas solidez,

    extenso, movimento, repouso, nmero e configurao.

    Tais caractersticas invariveis so as qualidades primrias

    Frente A Mdulo 11

  • 19Editora Bernoulli

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    do objeto. As caractersticas variveis, que podem ser

    diferentes de acordo com o observador e que so,

    portanto, subjetivas, como a cor, o odor, a sabor , so as

    qualidades secundrias do ser. Tanto as qualidades primrias

    quanto as secundrias originam-se do objeto, no existindo

    por conta prpria ou na mente humana, sem que o homem

    tenha contato com o objeto, para que elas sejam formadas.

    Qualidades primrias: so objetivas e produzem

    no homem a cpia exata daquilo que o objeto em si

    mesmo. So qualidades dos prprios seres sem precisar

    do auxlio do homem para que existam.

    Qualidades secundrias: so subjetivas e, portanto,

    no se assemelham exatamente quilo que o objeto

    traz em si. So qualidades nascidas do encontro entre

    o homem e o objeto.

    Ideias simples e ideias complexasComo vimos anteriormente, as ideias simples so formadas

    pela capacidade do homem de receber as informaes dos objetos, podendo ser constitudas por qualidades primrias ou secundrias do ser. Porm, uma vez que o homem adquire essas ideias simples, elas juntam-se na mente humana das formas mais variadas possveis. Assim, as ideias complexas so produzidas pelo homem a partir das ideias simples. Em suma, a ideias complexa a reunio de vrias ideias simples.

    Desse modo, as ideias simples so adquiridas de forma passiva, e as complexas de forma ativa, j que o homem pode orden-las e comp-las de vrias maneiras, formando novas ideias a partir dessas separaes, composies, distines, etc. So exemplos de ideias complexas: o espao, a durao, as aes morais, as coisas corpreas e as coisas espirituais, a causalidade, a identidade, as ideias morais, dentre outras.

    David HumeNascido em Edimburgo, na Esccia, David Hume ficou

    conhecido como um empirista radical, devido seu ao ceticismo em relao s ideias que no tem fundamento nas experincias.

    Membro de uma famlia pertencente pequena nobreza de proprietrios de terra, desde cedo mostrou-se portador de uma inteligncia mpar. Seus pais queriam que ele estudasse Direito e se tornasse advogado, porm, Hume negou-se a dedicar-se a outra atividade que no fosse a Filosofia.

    Aos 18 anos de idade, teve a intuio de uma nova cincia da natureza. Dedicou-se arduamente aos estudos dessa nova concepo filosfica, a ponto de ultrapassar os limites do corpo, caindo em depresso, doena da qual se livrou somente aps longo tratamento.

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    Hume ficou conhecido como um empirista radical, por excluir qualquer forma de conhecimento de coisas que no podem ser experimentadas.

    Sua nova cincia da natureza levou-o a um novo cenrio de pensamento que culminou com sua obra magistral, Tratado sobre o entendimento humano, publicada em Londres em 1739. Em sua 2 edio, em 1748, a obra sofreu algumas alteraes e recebeu um novo nome: Investigao sobre o entendimento humano. Alm dessas obras, Hume publicou, dentre outras menos importantes, a Histria da Inglaterra, um compndio de 8 volumes ao qual se dedicou durante dez anos.

    Hume tentou seguir uma carreira acadmica, sem sucesso j que no foi aceito como professor em universidades como a de Edimburgo e Glasgow devido a algumas de suas ideias, interpretadas como atesmo. Porm, gozou de relativo prestgio em outros campos, ocupando importantes cargos no governo.

    Apesar de seus contemporneos no terem reconhecido o valor do seu Tratado sobre o entendimento humano, nele que se encontram as principais ideias de Hume sobre sua nova concepo de Filosofia.

    A cincia do homemO objetivo da filosofia de Hume era compreender os

    caminhos e os limites do conhecimento humano. Com Bacon, surgiu um novo mtodo que permitiu ao homem conhecer o mundo e agora, era necessrio utilizar esse mtodo experimental para conhecer o homem e elaborar uma cincia do homem. Assim, o objetivo da filosofia de Hume era compreender a origem das ideias e como elas surgiam na mente humana. Dessa forma, o filsofo buscou explicar o alcance e a fora do intelecto humano e tambm a origem ou natureza das ideias e como se elas comportam dentro da mente humana.

    Epistemologia moderna

  • 20 Coleo Estudo

    Seguindo a posio empirista de Locke e Bacon, Hume toma como ponto de partida de sua filosofia a confiana nos sentidos como nicas fontes do conhecimento. Assim, para ele, as ideias tm uma nica origem, que se d nas experincias.

    Impresses e ideiasUma vez que as ideias originam-se das experincias

    realizados pelo homem no mundo sensvel, essas experincias so a matria-prima de todo e qualquer conhecimento ou ideias.

    Desse modo, todos os contedos mentais so originados das impresses sensveis, que so as percepes imediatas que o homem tem ao experimentar algo. As ideias, por sua vez, so os resqucios das impresses, as lembranas das impresses realizadas no mundo, chamadas por Hume de percepes8. As impresses so mais vivas e tm mais fora do que as ideias, j que estas referem-se lembranas,vestgios mentais daquilo que foi experimentado.

    A diferena entre impresses e ideias consiste no grau

    diverso de fora e vivacidade com que as percepes

    atingem nossa mente e penetram no pensamento ou na

    conscincia. As percepes que se apresentam com maior

    fora e violncia podem ser chamadas de impresses e,

    sob essa denominao, eu compreendo todas as sensaes,

    paixes e emoes, quando fazem a sua primeira apario

    em nossa alma. Por ideias, ao contrrio, entendo as imagens

    enlanguescidas das impresses.

    [...]

    Podemos, por conseguinte, dividir todas as percepes do

    esprito em duas classes ou espcies, que se distinguem por

    seus diferentes graus de fora e vivacidade.

    HUME, David. Investigao acerca do entendimento humano. So Paulo: Nova Cultural, 1989. p. 69.

    Dessa diferenciao entre impresses e ideias, nasce a distino entre sentir e pensar. O que diferencia uma coisa da outra o seu grau de intensidade: o sentir mais forte, e o pensar mais fraco. Desse modo, a ideia depende da impresso. Primeiro se experimenta e como resultado dessa experincia, nasce a ideia. Nas palavras de Hume:

    8Percepo, para Hume, acompanhando o empirismo de Berkeley, refere-se a tudo aquilo que se apresenta mente humana. Nesse caso, so tanto as impresses (simples ou complexas) quanto as ideias (simples ou complexas).

    Todas as ideias simples provm, mediata ou imediatamente,

    de suas correspondentes impresses.

    HUME, David. In: REALE, Giovanni. Histria da Filosofia Antiga. 2. ed. 7v.

    So Paulo: Loyola, 2001. Volume IV. p. 135.

    Impresses simples e complexas e ideias simples e complexas

    Hume faz outra diferenciao importante para a compreenso de sua filosofia, que a distino entre impresses simples e complexos e ideias simples e complexas.

    Impresses simples: so as impresses das

    caractersticas sensitivas particulares do objeto

    experimentado. Por exemplo: transparente, frio, rgido,

    etc. Cada uma delas refere-se a um dos sentidos

    humanos. O vermelho percebido pela viso, j frio

    e a rigidez so percebidos pelo tato.

    Impresses complexas: so as impresses do objeto

    como um todo. Exemplo: gelo, fogo, mesa, etc.

    Ideias simples: so as cpias enfraquecidas

    das impresses simples.

    Ideias complexas: so as cpias enfraquecidas

    das impresses complexas.

    Segundo Hume, a mente humana possui a faculdade da memria, que capaz de guardar as ideias, as quais so lembranas das impresses. Porm, a mente possui outra faculdade, a imaginao, que responsvel pelos inmeros modos de compor, combinar, separar e distinguir as ideias. A imaginao combina as ideias das mais variadas formas, e essas combinaes podem ser tanto frutos da simples fantasia como de outras formas, chamadas por Hume de princpio da associao de ideias.

    As associaes de ideiasPara Hume, as ideias contidas na mente humana

    associam-se a partir de trs princpios mentais, chamadas pelo filsofo de propriedades. So elas:

    1 Contiguidade (no espao e no tempo):

    associaes de ideias que esto ligadas a outras no

    tempo ou no espao.

    Exemplos: um lugar aconchegante que faz o homem

    se lembrar de sua cama; a chegada do ms de dezembro,

    que faz o homem se lembrar do Natal e das festas

    de fim de ano; uma msica, que faz o homem lembrar de pessoa ou de um lugar, etc.

    Frente A Mdulo 11

  • 21Editora Bernoulli

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    2 Semelhana: associaes de ideias que

    se assemelham.

    Exemplos: uma foto que traz mente a lembrana

    da pessoa retratada; A escola atual, que faz o homem

    lembrar das escolas em que estudou quando era criana

    pela semelhana da arquitetura da construo; quando

    o homem entra em uma loja e recorda-se de outro

    estabelecimento que tinha uma decorao parecida

    com aquela, etc.

    3 Causa e efeito: associaes de ideias que so

    estabelecidas por causa e efeito.

    Exemplo: o fogo que me faz lembrar do calor; a fumaa

    que faz lembrar do fogo; o acidente que faz lembrar

    da morte ou da dor.

    Embora nosso pensamento parea possuir esta liberdade

    ilimitada, verificaremos, atravs de um exame mais

    minucioso, que ele est realmente confinado dentro de limites

    muito reduzidos e que todo poder criador do esprito no

    ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar

    ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos

    sentidos e pela experincia.

    HUME, David. Investigao acerca do entendimento humano. Traduo de Anoar Aiex. So Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 36.

    Desse modo, Hume acredita que as ideias so associadas de distintas maneiras na mente humana. Porm, as ideias verdadeiras so aquelas que tm um correspondente material, ou seja, que nasceram de uma impresso, como a ideia de ma, de casa, de livro, etc. Essas ideias so verdadeiras porque nascem de impresses sensveis das coisas. No entanto, possvel a existncia de ideias que partam exclusivamente da imaginao humana, e qual associou ideias simples ou complexas formando novos conceitos que no so reais e no passam de fantasia. Como exemplo, podemos pensar nas ideias de sereia e do minotauro, que so associaes de ideias fantasiosas, j que no foram originadas da experincia, mas so somente atividade da imaginao, que une a ideia complexa de peixe com a ideia complexa de mulher e forma a ideia de sereia, da mesma forma, une a ideia de homem com a ideia de touro e forma a ideia de minotauro. Nesse mesmo raciocnio, podemos incluir as ideias de montanha de ouro, anjos, demnios, monstros e, inclusive, a ideia de Deus.

    Para verificar se uma ideia verdadeira ou falsa, necessrio analis-la, buscando as impresses que a originaram. Caso no sejam encontradas essas impresses, o homem saber que tal ideia falsa e fruto de sua imaginao, uma vez que todo conhecimento ou ideia verdadeira deve ter sua origem nas sensaes ou nas experincias.

    Nessa mesma perspectiva, Hume afirma que as ideias de Deus e de eu no podem ser definidas. Para o filsofo, a ideia que os homens tm de Deus resulta de vrias ideias simples nascidas das impresses obtidas pelos sentidos humanos. Dessa forma, o homem reuniu na ideia de ser superior as ideias originadas de suas experincias particulares de bondade, justia, compaixo experimentadas nas relaes interpessoais. Portanto, para Hume, a ideia de Deus no passa de uma iluso, assim como a ideia de eu enquanto substncia ou essncia. Segundo o filsofo, essa ideia tambm no passa de inveno da mente humana, j que varivel e subjetiva, uma vez que resultando do conjunto de experincias realizadas ao longo da vida do indivduo.

    Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos

    duas idias compatveis, ouro e montanha, que outrora

    conhecramos. Podemos conceber um cavalo virtuoso, pois o

    sentimento que temos de ns mesmos nos permite conceber

    a virtude e podemos uni-la figura e forma de um cavalo,

    que um animal bem conhecido.

    HUME, David. Investigaes acerca do entendimento humano. Seo II. So Paulo: Abril Cultural, 1989.

    Coleo Os Pensadores.

    Segundo Hume, a investigao humana, ou seja, os

    instrumentos com os quais o homem pesquisa e busca

    conhecer a realidade, divide-se em dois campos de

    investigao: as relaes entre ideias e os dados de fato.

    A) Relaes de ideias: so todas as investigaes que

    se baseiam, em contedos abstratos e ideias. Trata-se

    da utilizao da lgebra, da geometria e da aritmtica

    como instrumentos para estabelecer uma anlise

    conceitual com base somente nas ideias, uma vez

    que os nmeros no so reais em si, mas abstraes.

    Quando o homem alcana a ideia de que 5 + 10

    a quinta parte de 75, esse raciocnio trata somente

    de relaes de ideias sem que haja qualquer experincia

    envolvida nesta concluso. Assim, os resultados dessas

    investigaes so certos e evidentes.

    Epistemologia moderna

  • 22 Coleo Estudo

    B) Dados de fato: no apresentam a mesma certeza

    das relaes de ideias, no trazendo em si uma

    lgica, j que so resultados da associao de fatos

    e experincias baseados em relaes de causa e efeito.

    Todos os raciocnios que dizem respeito realidade dos fatos

    parecem fundados na relao de causa e efeito. s graas a

    essa relao que podemos ultrapassar a evidncia de nossa

    memria e dos sentidos.

    HUME, David. In: REALE, Giovanni. Histria da Filosofia Antiga. 2. ed. 7v.

    So Paulo: Loyola, 2001. Volume IV. p. 138.

    Hume critica os dados de fato enquanto fonte

    de conhecimento, j que, para ele, essas relaes de causa

    e efeito que caracterizam os dados de fato tm sempre

    um carter particular, porque nascem de experincias

    particulares dos seres. Os homens realizam generalizaes

    sobre as experincias particulares, criando ideias gerais

    que dizem respeito a inmeros objetos reais e particulares

    que tenham alguma semelhana entre si. Por exemplo,

    criamos a ideia geral de homem a partir de experincias

    particulares de vrios homens que observamos ao longo

    da vida. Dessa maneira, esse conceito universal resultado

    somente da fora do hbito que nos leva a criar essas ideias

    generalizantes.

    Hbitos e costumesHume utiliza um exemplo que se tornou clssico para

    se referir sua crtica sobre as relaes de causa e efeito: se observarmos o movimento de uma bola de bilhar em uma mesa, tudo o que se pode ver o impacto de uma bola na outra, e desta em outra e assim sucessivamente. A experincia nos mostra apenas as bolas que se chocam e no a existncia de algo que faz com que esse acontecimento se torne inevitvel, aquilo que os homens chamam de causalidade, ou seja, a relao de causa-efeito

    Para Hume, causa e efeito so duas ideias separadas

    e distintas. Segundo ele, a relao de causa e efeito

    que os homens, principalmente os cientistas, insistem

    em encontrar entre os fenmenos no passa de um costume

    de ver dois acontecimentos sempre unidos, por exemplo,

    o ferimento e a dor, mas isso no significa que um seja

    a causa e o outro o efeito. Se assim o fosse, seria possvel

    identificar o efeito de alguma causa mesmo antes que esta

    acontecesse, ou seja, seria possvel saber a priori qual

    o efeito de determinado fenmeno antes que ele ocorresse.

    E mais, se existisse causa e efeito, sempre e que ocorresse

    uma causa, inevitavelmente seu efeito seria verificado,

    o que no acontece.

    Pense nesse exemplo: acredita-se que a fumaa o efeito

    do fogo; porm, so possveis situaes em que haja fogo

    mas no fumaa, como quando se acende a trempe de

    um fogo qualquer. Um outro exemplo dado por Hume :

    ser que Ado, ao ver a gua (causa) pela primeira vez,

    sabia que ela teria o poder (efeito da gua) de molhar

    ou afogar algum?

    Desse modo, o filsofo afirma que so as experincias

    que nos levam s concluses que temos acerca dos fatos.

    Por exemplo, chegamos concluso de que o remdio

    sempre curar a dor de cabea, pois, at hoje, sempre que

    tomado, tal efeito foi comprovado. Mas ser que sempre

    ser assim? Ser que este efeito sempre ocorrer? Se existir

    a relao de causa e efeito, toda vez que o remdio for

    tomado, a dor de cabea ser curada. Mas, se em alguma

    ocasio isso no ocorrer, significa ento que no existem

    relaes de causa e efeito.

    Se um objeto nos fosse apresentado e fssemos solicitados

    a nos pronunciar, sem consulta observao passada, sobre

    o efeito que dele resultar, de que maneira, eu pergunto,

    deveria a mente proceder nessa operao? Ela deve

    inventar ou imaginar algum resultado para atribuir ao objeto

    como seu efeito, e obvio que essa inveno ter de ser

    inteiramente arbitrria. O mais atento exame e escrutnio

    no permite mente encontrar o efeito na suposta causa,

    pois o efeito totalmente diferente da causa e no pode,

    conseqentemente, revelar-se nela.

    HUME, David. Investigaes sobre o entendimento humano e sobre os princpios da moral. Traduo de Jos Oscar de

    Almeida Marques. So Paulo: UNESP, 2004. p. 57-58.

    Hbito e crenaHume defende, ento, que o costume e o hbito que

    levam o homem a acreditar nas relaes de causa e efeito, e no algo real e verificvel na realidade. Esse costume leva o homem crena de que tais fenmenos sempre ocorrero. Essa crena nos d a iluso de que estamos diante de um fenmeno determinado por causa e efeito, iluso esta que nos leva convico de que, uma vez ocorrida a causa, o efeito inevitavelmente a suceder.

    Ao fim de sua reflexo, Hume afirma que aquilo que possibilita a relao de causa e efeito no so proposies ou princpios racionais, mas somente um sentimento afetivo-irracional, que a crena.

    Frente A Mdulo 11

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