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Cultura dos povos tradicionais de terreiros: percurso de vivências na Universidade Federal do Rio de Janeiro Aderbal Ashogun Moreira* Clarisse Mantuano** Marta Simões Peres*** * Ogan, Sacerdote Ashogun do candom- blé, filho de Mãe Beata de Yemonjá, mestre popular, percussionista, gestor ambiental e articulador cultural. ** Graduada em Comunicação (PUC/RJ), jor- nalista, cineasta, trabalhou na pesquisa do longa “Marighella - retrato falado do guerrilheiro”, de Silvio Tendler, diretora de “Um companheiro”, documentário premiado no Festival Santiago Alvarez/ Cuba, do documentário “Encruzilhada das Águas”, sobre Mãe Beata de Yemonjá e Iyawo de Xangô. *** Professora adjunta da UFRJ, (Departa- mento de Arte Corporal, Escola de Edu- cação Física e Desportos). Doutora em Sociologia (UnB), Pós-Doutora em Antro- pologia (IFCS/UFRJ). Bailarina, coreógrafa e fisioterapeuta. Participa atualmente de Pós-Doutorado no Núcleo Diversitas/ USP Introdução R elatamos uma expe- riência de colabora- ção entre Aderbal Ashogun Moreira, mestre da cultura tradicional de matriz africana e o Departamento de Arte Corporal (Dança) da Escola de Educação Fí- sica e Desportos da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O texto relata uma experiência de colaboração entre Aderbal Ashogun Moreira, mestre da cultura tradicional de matriz africana (Candomblé), o Departamento de Arte Corporal (Dança) da Escola de Educação Física e Desportos da Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro, em novembro de 2012. O mestre ensinou canto, dança, toque, mitologia, línguas, medicina, fitoterapia, cromoterapia, comida sagrada, arte sacra e práticas tradicionais sustentáveis. O principal ob- jetivo foi diminuir a distância entre saberes tradicionais e convencionais, valorizando e difundindo a cultura afro -brasileira como fonte de um conhecimento ainda hoje invisibilizado por séculos de opressão pelos colonizadores europeus. Por conta desta confluência de saberes e práti- cas, estabelecemos um diálogo o conceito de “Polifonia”, de Bakhtin e a Pedagogia Griô (Pacheco/Caires). Palavras-chave: Povos de Terreiro; Religiões de Matrizes Africanas; Dança.

10. MOREIRA, Aderbal Ashogun

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  • Cultura dos povos tradicionais de

    terreiros: percurso de vivncias na Universidade

    Federal do Rio de Janeiro

    Aderbal Ashogun Moreira*

    Clarisse Mantuano**Marta Simes Peres ***

    * Ogan, Sacerdote Ashogun do candom-bl, filho de Me Beata de Yemonj, mestre popular, percussionista, gestor ambiental e articulador cultural.

    ** Graduada em Comunicao (PUC/RJ), jor-nalista, cineasta, trabalhou na pesquisa do longa Marighella - retrato falado do guerrilheiro, de Silvio Tendler, diretora de Um companheiro, documentrio premiado no Festival Santiago Alvarez/Cuba, do documentrio Encruzilhada das guas, sobre Me Beata de Yemonj e Iyawo de Xang.

    *** Professora adjunta da UFRJ, (Departa-mento de Arte Corporal, Escola de Edu-cao Fsica e Desportos). Doutora em Sociologia (UnB), Ps-Doutora em Antro-pologia (IFCS/UFRJ). Bailarina, coregrafa e fisioterapeuta. Participa atualmente de Ps-Doutorado no Ncleo Diversitas/USP

    Introduo

    Relatamos uma expe-

    rincia de colabora-

    o entre Aderbal

    Ashogun Moreira,

    mestre da cultura

    tradicional de matriz africana e

    o Departamento de Arte Corporal

    (Dana) da Escola de Educao F-

    sica e Desportos da Universidade

    Federal do Rio de Janeiro.

    O texto relata uma experincia de colaborao entre Aderbal Ashogun Moreira, mestre da cultura tradicional de matriz africana (Candombl), o Departamento de Arte Corporal (Dana) da Escola de Educao Fsica e Desportos da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro, em novembro de 2012. O mestre ensinou canto, dana, toque, mitologia, lnguas, medicina, fitoterapia, cromoterapia, comida sagrada, arte sacra e prticas tradicionais sustentveis. O principal ob-jetivo foi diminuir a distncia entre saberes tradicionais e convencionais, valorizando e difundindo a cultura afro-brasileira como fonte de um conhecimento ainda hoje invisibilizado por sculos de opresso pelos colonizadores europeus. Por conta desta confluncia de saberes e prti-cas, estabelecemos um dilogo o conceito de Polifonia, de Bakhtin e a Pedagogia Gri (Pacheco/Caires).Palavras-chave: Povos de Terreiro; Religies de Matrizes Africanas; Dana.

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    A inteno ao registr-la nasce do desejo de que ela venha

    a proporcionar novas aes na UFRJ, na Universidade de So

    Paulo e em inmeros outros estabelecimentos, pontos de

    cultura e espaos de ensino do Brasil.

    A opo por um texto econmico em termos de cita-

    es e referncias bibliogrficas, deve-se valorizao

    que Aderbal dedica ao conhecimento produzido in loco,

    a partir das conversas nos encontros. Baseados no con-

    ceito de Produo Partilhada de Conhecimento (Bairon,

    2012), solicitamos dos participantes depoimentos acerca

    da vivncia, o que os torna coautores desta escrita, pois,

    mais que um grupo estudado, foram eles que tornaram o

    acontecimento possvel. Assim, vislumbramos a constru-

    o de um pensamento polifnico, aberto a outros sa-

    beres, enraizados em culturas tradicionais historicamente

    excludas da academia.

    Em seu passado de colnia de explorao, a formao

    da sociedade brasileira foi marcada pelo estabelecimento

    de um muro separando o portugus colonizador dos ind-

    genas e dos africanos trazidos como escravos. A distino

    entre aqueles que sabiam ou no ler e escrever determi-

    nante numa estrutura do poder escrita, a comear pelas

    leis vigentes, sendo que o analfabetismo ainda constitui

    um grave problema social.

    Nas artes, tanto na pintura quanto na literatura, supos-

    tamente eruditas, enalteciam-se os brancos, portugueses

    e seus descendentes, os ndios pacficos e aliados, a be-

    leza natural, escondendo ou marginalizando os negros e

    ndios rebeldes (Barros, 2006, p.7-8). A nao brasileira,

    construda a partir da ideia de identidade nacional, ao

    contrrio de buscar abranger a multiplicidade tnica de

    nossa sociedade, teve como base a identidade das elites,

    dos brancos, ou brancos relativamente mestiados (Negri

    e Cocco, 2005, p.77). Nosso rico patrimnio imaterial foi

    deixado historicamente margem da cultura dita oficial

    ou erudita, de maneira que implantar polticas pblicas

    no sentido de valoriz-lo consiste num grande desafio.

    Ao longo de um processo lento de lutas, passa a ser

    exigido o reconhecimento das etnias historicamente co-

    locadas margem dos contedos oficiais. Podemos citar,

    como exemplos, a atual LDB Lei de Diretrizes e Bases (n

    9394/96, art. 26-A) que obriga os estabelecimentos de

    ensino fundamental e mdio, pblicos e privados, a incluir

    no currculo o estudo da histria e cultura afro-brasileira

    e indgena as leis 10639, 11645 e a Ao Gri Nacional1

    com a Lei Gri.

    1 PACHECO, Lllian. CAIRES, Mrcio (org.). Nao Gri: o parto mtico da identidade do povo brasileiro. Gros de Luz e Gri: Lenis/BA, 2009. A Ao Nacional Gri visa o reconhecimento do lugar social, poltico e eco-nmico dos Gris e Mestres na educao mediados pela atuao de Gris aprendizes, considerando que muitos povos tm na oralidade sua nica fonte histricas. Trata-se de uma ao criada e proposta pelo Gros de Luz e Gri em gesto compartilhada com o Ministrio da Cultura.

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    Ao abordar a cultura dos povos tradicionais de terreiro,

    Aderbal chama a ateno para a luta e a cultura negra, a

    presena do negro na formao da sociedade, assim como

    o resgate de suas contribuies sociais, econmica e pol-

    tica histria do Brasil. Ele considera que estes devem ser

    ministrados no mbito de todo o currculo escolar, com

    nfase especial nas disciplinas de artes, literatura e hist-

    ria. Por arte, entendemos no somente as artes plsticas,

    frequentemente sinnimo de arte para o senso-comum,

    mas tambm a msica, a literatura, o teatro, o cinema e

    a dana. Uma das dificuldades com que se esbarra ao se

    buscar cumprir essa obrigao legal, consiste na falta de

    professores capacitados para o conhecimento do com-

    plexo cultural dos povos tradicionais, problema que pode

    ser superado pelo contato direto com pessoas que hoje

    mantm viva a cultura afro-brasileira, tal como se prope

    no percurso.

    Cada um sua maneira, o mestre Aderbal e os artistas/

    pesquisadores de dana, partilham um universo que

    da ordem da experincia, do movimento, da expresso,

    do corpo, de maneira que este texto resultado de um

    esforo peculiar de colocar em palavras algo indizvel,

    acerca do qual as palavras jamais daro conta. Isso no

    impede a busca do dilogo com a academia, pois esta

    produo terica um desdobramento da prpria ao e

    tambm uma importante forma de resistncia aos poderes

    hegemnicos, enfim, consiste na ocupao, com nossos

    pontos de vista, de territrios historicamente dominados

    por vises de mundo excludentes. Desse modo, apesar

    das dificuldades impostas, faz-se extremamente necessrio

    coloc-la no papel, a fim de que possa se difundir entre par-

    ceiros de dentro e de fora da universidade. Considerando

    que experincias oriundas das reas das artes da univer-

    sidade podem oferecer canais de troca com os saberes

    tradicionais, apresentamos uma sucinta contextualizao

    da Dana na UFRJ, onde o percurso foi oferecido.

    A ideia de realizar o percurso ocorreu aps o encontro

    entre o mestre Aderbal e a professora Marta Peres, em

    outubro de 2012, por ocasio do lanamento do Labo-

    ratrio de Polticas Culturais/Universidade Gri, na Sala

    Vianinha, Escola de Comunicao da UFRJ. Ivana Bentes,

    poca diretora da ECO, uma importante parceira na

    luta pela instaurao de novos paradigmas na relao

    universidade-sociedade.

    No encontro, foi apresentado ao MinC, UFRJ e Rede

    Ao Gri, o projeto Universidade Gri2, tendo como cen-

    2 O projeto Universidade Gri foi elaborado por Lllian Pacheco e Mrcio Cai-res, criadores do Ponto de Cultura Gros de Luz e Gri, primeiro premiado no prmio Ita-Unicef 2003, destaque no Prmio Cultura Viva. Pacheco e Caires tambm so criadores da Ao Gri Nacional, ao gerida de forma compartilhada com o MinC desde 2006 e h 4 anos com os pontes de cultura regionais: Nina Gri - SP, Ceaca SP, Escola Viva Olho do Tempo - PB e a comisso nacional de Gris e mestres, parceiros na implementao e coordenao do projeto Universidade Gri com Sergio Bairon da USP e Ivana

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    tro de referncia o Ponto de Cultura Gros de Luz e Gri

    (Lenis - Bahia), o projeto prope uma gesto comparti-

    lhada em rede. Em sua primeira etapa de implementao,

    objetivou a articulao de convnios, projetos e cursos

    com cinco universidades pblicas diferentes campus

    da Universidade Gri para realizao de cursos de ex-

    tenso e ps-graduao e elaborao de projetos em par-

    ceria com as universidades envolvendo os Mestres Gris.

    Foram criadas, assim, aes de mediao da tradio oral

    com o meio acadmico no Projeto Laboratrio de Polticas

    Culturais entre Nina Gri e UFRJ e uma proposta concreta

    de parcerias entre Mestres Gris e professores da UFRJ.

    Ampliaram-se, ento, as parcerias entre o ponto de Cultura

    Gros de Luz e Gri, a USP e o CEACA, por meio do ncleo

    Diversitas, com os Professores Sergio Bairon e Zilda Iokoi.

    Logo na primeira rodada de apresentaes, esclareci

    que havia tomado contato com a Ao Gri por acaso,

    em festas de aniversrio da professora Ivana Bentes no

    nibus Caravana Carbono Neutro, dos artistas paraenses

    Andr Lobato e lida Braz, e na casa de Alexandre Santini.

    Mestre Doci, contadora de histrias, da Escola Viva Olho

    do Tempo, Paraba, Representante Nacional dos Mestres

    e Mestras Gris do Brasil, me fez essa observao: mas

    Bentes da UFRJ.

    isto no por acaso, pois nas festas transmitimos nossos

    saberes. Elas fazem parte de nosso processo.

    O evento esteve entre os cinco assuntos mais comentados

    nas redes do Brasil e foi marcado por rodas, canes, bnos

    aos antepassados e mestres presentes, reuniu mestres de

    tradio oral e povos tradicionais, Gris, parlamentares, re-

    presentantes do Ministrio da Cultura e de pontos de cultura,

    polticos, artistas, educadores e militantes de todo o Brasil. O

    encontro com figuras expressivas, tais como Lia de Itama-

    rac, Chico Csar, Bida Nascimento, Mestre Doci, Mestre

    Alcides, Mestre Aderbal, dentre outros, contrastou com

    paradigmas sobre os quais a universidade se constituiu

    historicamente impedindo a chegada destas manifesta-

    es em seu territrio e aproximou-se de muitos anseios

    de quem atua no campo da dana no espao acadmico.

    Estas personalidades da cultura brasileira constituem

    um referencial importante que aponta para dilogos com

    projetos e pesquisas da dana e demais setores da UFRJ

    professores, grupos, estudantes no campo da religio-

    sidade de matriz africana, danas brasileiras, tambores,

    festividades religiosas do interior e com a trajetria da

    professora Marta, ligada articulao entre dana e sade.

    Por ocasio do evento de lanamento na UFRJ, a ocupa-

    o da universidade por uma viso de mundo diversa da

    convencionalmente estabelecida no meio acadmico, foi

    possvel identificar, na proposta da Pedagogia Gri, uma

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    grande afinidade e a realizao viva de conceitos que vinha

    pesquisando, voltados para a criao cnica, tais como po-

    lifonia e carnavalizao (Bakhtin, 2010)3 . Assim, a atuao

    poltica daqueles grupos apontou para a possibilidade de

    realizao de antigos anseios.

    Aps termos participado da concepo e da apresen-

    tao da aula-espetculo4 que homenageou Abdias Nas-

    cimento5, na qual tambm atuou/tocou seu filho, Bida

    Nascimento, surgiu a ideia da parceria. Elegemos, a partir

    da, as disciplinas da graduao em dana em que Ader-

    bal, ministraria o percurso que atraram grande interesse

    e uma demanda para que se repita em oportunidades

    futuras6. Este percurso trouxe UFRJ a oportunidade de

    receber em sala de aula coincidentemente, na prpria

    3 Polifonia foi o termo utilizado por Bakhtin para se referir obra literria de Dostoivski, em que os personagens possuem voz e posio prprias, ao invs de serem meros porta-vozes do pensamento do autor. A representa-o dos personagens a de conscincias plurais que dialogam, interagem, entram em conflito. A carnavalizao refere-se miscelnea dos corpos destas festividades que embaralham relaes de poder trazendo consigo o corpo grotesco da multido (BAKHTIN,2010).

    4 A aula espetculo uma prtica reelaborada pela Pedagogia Gri para trans-mitir pela oralidade saberes, histrias, cantos, danas e fazeres tradicionais. PACHECO, Lllian. Pedagogia Gri: A reinveno da Roda da Vida. Gros de Luz e Gri: Lenis/BA, 2006, p.156.

    5 Intelectual, poeta, escultor, ator e diretor teatral, grande nome ligado reflexo e ao sobre a questo do negro na sociedade brasileira. Criador do TEN, Teatro Experimental do Negro, em 1944.

    6 J no ms seguinte, alm da parceria com o percurso de Aderbal, na UFRJ, participei do curso de Pedagogia Gri e Produo Partilhada do Conhecimen-to, na USP, que contou com a presena de Gris, estudantes e professores.

    sala Vianinha da ECO uma das figuras mais respeitadas

    do Candombl no Brasil, Me Beata de Iemanj.

    Me Beata de Iemanj

    Eixo temtico desta revista, o(a) Gri um(a) guardi(o )

    da histria oral de um povo, reconhecido(a) por sua co-

    munidade, que tem a misso transmitir ensinamentos

    de gerao em gerao. Sagrado e ritualstico, oriundo

    da lngua bamanan, antigo imprio Mali, griot em francs,

    traduzido para Gri pelo Ponto de Cultura Gros de Luz

    e Gri (Lenis - Bahia), significa o sangue que circula

    saberes, histrias, mitos, lutas e glrias do povo. Por meio

    de uma pedagogia que valoriza o poder da oralidade, da

    vivncia e da corporeidade, o Gri uma biblioteca viva

    de memria, fortalecendo a ancestralidade e a identidade

    da comunidade (site do Ponto de Cultura Gros de Luz

    e Gri).

    A famlia de Aderbal conhece sua genealogia desde os

    antepassados de Benin/Ketu, na frica do sculo XVII. No

    contexto do complexo cultural dos povos de terreiro, cam-

    po abordado no percurso conduzido por Aderbal, sua me

    biolgica7, Me Beata de Iemanj a principal referncia

    na transmisso de conhecimento ancestral.

    7 Utilizamos esta expresso pois, no candombl, alm dos biolgicos, pa-

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    Beatriz Moreira Costa, desde pequena chamada de Bea-

    ta, nasceu em Santiago do Iguape (Recncavo Baiano), onde

    j frequentava terreiros e se identificava com Iemanj. Na

    dcada de 1950, aps uma infncia atribulada, foi morar

    em Salvador, com sua tia Feliciana, casada com o baba-

    lorix Ansio Agra Pereira. Ialorix do Il Omi Oju Ar,

    Me Beata foi iniciada pela ialorix Olga do Alaketu, Olga

    Francisa Rgis, princesa do Benin/Ketu.

    Tendo sofrido preconceito na prpria famlia por ter se

    separado, em 1968, trazendo consigo seus filhos consan-

    guneos Ivete, Maria das Dores, Adailton e Aderbal, veio

    para o Rio de Janeiro, onde fundou seu terreiro. Ela afirma

    que sempre foi uma rebelde, tendo militado intensamen-

    te nas causas ligadas cultura, religio, direito e cidadania

    de populaes afro-brasileiras e das mulheres, atuando

    contra o preconceito, em projetos sociais e campanhas

    de solidariedade.

    Em 1991, Me Beata recebeu o Diploma de Personali-

    dade de Destaque da Comunidade Negra da Assembleia

    Legislativa do Rio de Janeiro; foi homenagada, em 2005,

    pela Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares com

    a Medalha de Mrito Cvico Afro-brasileiro, em 2007; re-

    cebeu o diploma Mulher-Cidad Bertha Lutz do Senado

    rentescos espirituais tornam a pessoa filho, me, irmo/irm de santo, tema que originou perguntas dos participantes e esclarecimentos por parte do mestre.

    Federal. Alm disso, ela a presidente de honra do grupo

    de mulheres negras Criola.

    Em Caroo de Dend, livro de 1997, a ancestralida-

    de de Me Beata faz-se presente atravs de histrias do

    cotidiando que trazem, em linguagem singela e direta,

    lies, conselhos para a vida e o ax dos orixs. Em 2005,

    ela publicou As histrias que minha av contava. Entre

    a militncia na manuteno do conhecimento e cultura

    tradicional e movimento negro, a dedicao ao candom-

    bl e o trabalho na televiso, aos 54 anos, aps 21 anos

    de prticas e obrigaes como se fazia tradicionalmente,

    ela recebeu a outorga de Me de Santo. Hoje, Me Beata

    aposentada da Rede Globo como costureira. Sua biografia

    confunde-se com as bandeiras em prol de melhorias para

    as comunidades negras.

    Aderbal Ashogun Moreira, seu filho biolgico, ressalta a

    urgncia de reconhecimento e valorizao desses mestres

    mantenedores das culturas tradicionais africanas enquanto

    fontes de saberes fundamentais no processo de constru-

    o histrico, poltico e cultural brasileiro. Sua proposta

    de percurso visa suprir a necessidade de formao de

    docentes para o cumprimento da obrigao prevista na

    LDB (Lei de Diretrizes e Bases (n 9394/96, art. 26-A), nas

    leis 10639 e 11645.

    Contextualizando a Dana na UFRJ

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    Embora j tenha se passado mais de meio sculo da

    fundao do primeiro curso superior de Dana do Brasil,

    na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1956, e vin-

    te anos da implementao deste curso de graduao na

    UFRJ (1993/1994), a Dana na academia vive um perma-

    nente processo de construo de metodologias e busca

    de canais de dilogo com demais reas de conhecimento

    e criao artstica.

    A dana possui uma indiscutvel afinidade com os sa-

    beres tradicionais, medida que tem no corpo sua principal

    fonte de criao, realizao, suporte e obra, o que gera

    tambm dificuldades e conflitos especficos no contexto

    acadmico. No por acaso, o curso de Aderbal encontrou

    imediata procura entre estudantes da Dana, assim como

    participantes de extenso.

    A Dana da UFRJ tem suas razes no trabalho da Pro-

    fessora Emrita Helenita S Earp, que inseriu a dana nos

    currculos universitrios brasileiros quando lecionava as

    disciplinas dana e ginstica rtmica para a Educao

    Fsica desde a dcada de 1939. Ao longo destes anos, ao

    contrrio de se restringir a uma nica linha de pensamen-

    to, a Dana/UFRJ abriu-se para inmeros mtodos, prticas

    e referncias tericas e conta hoje com trs cursos de

    graduao, o Bacharelado, a Licenciatura e o Bacharelado

    em Teoria da Dana. De modo bastante sinttico, pode-

    mos dizer que neles se formam, respectivamente, artistas/

    bailarinos/coregrafos, professores de dana e tericos

    deste campo das artes.

    A Companhia Folclrica da UFRJ8, fundada pela pro-

    fessora Sonia Chemale em 1971 (sob o nome Grupo de

    Danas Folclricas da UFRJ), e dirigida pela professora

    Eleonora Gabriel desde 1987, apresenta-se ininterrup-

    tamente no Rio de Janeiro, Brasil e exterior. Este grupo

    realiza anualmente o Encontro com Mestres Populares, no

    qual comparecem figuras importantes do jongo, capoeira,

    maracatu, dentre outras danas, msica e festas do Brasil.

    A Professora Katya Gualter realiza pesquisas em dana

    e cinema que tm como eixo construes poticas inspi-

    radas na religiosidade de matrizes africanas. A Professora

    Tatiana Damasceno tem nestas manifestaes o tema de

    suas pesquisas tericas e coreogrficas, assim como os

    professores Las Bernardes, Alexandre Carvalho, Frank

    Wilson Roberto e Renato Barreto.

    Alm das vertentes culturais propriamente ditas da

    Dana, o Projeto Paratodos, coordenado pela Professora

    Marta Peres, insere-se numa linha de pesquisa ensino

    -extenso no campo da dana e sade, em dilogo com

    a rea biomdica, estudos da deficincia, sade mental,

    dentre outros campos de pesquisa. Colocando em ques-

    8 O uso do termo folclore amplamente questionado, mas esta discusso foge ao escopo deste texto.

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    to o virtuosismo e padres corporais impostos por uma

    viso da arte circunscrita ao sculo XIX, as aulas do pro-

    jeto renem pessoas com deficincias fsicas e sensoriais,

    transtornos mentais, idosos e quaisquer participantes de

    extenso interessados.

    Enquanto abordagem teraputica, em especial na sade

    mental, a experincia da coletividade proporcionada pela

    dana consiste num recurso para a percepo da singu-

    laridade, individualidade, permitindo a mistura, envolvi-

    mento, acolhimento pelo grupo, ao mesmo tempo em que

    tambm auxilia a fornecer as bases para a diferenciao,

    a autopercepo, a conscincia de si, de seus contornos,

    espao, tempo.

    Mencionamos o projeto pois a oficina do mestre Ader-

    bal inseriu-se como uma atividade parceira do mesmo,

    tendo recebido seus participantes, inclusive pessoas com

    deficincia visual, o que relataremos adiante. Deste modo,

    sua proposta que alternava momentos de propostas mais

    propriamente "expositivas" com vivncias de msica e

    dana, afinou-se tanto com as linhas de pesquisa ligadas

    s comunidades tradicionais quanto com as interfaces

    entre dana e sade do Departamento de Arte Corporal/

    EEFD/UFRJ.

    Questionamentos e dilemas ligados construo do

    conhecimento, pesquisa e criao artstica no espao

    da universidade possuem afinidade com aes voltadas

    para a insero e dilogo com contedos das culturas de

    transmisso oral, da a importncia crucial do papel dos

    cursos na rea das artes neste movimento de mudana

    de paradigma.

    Cultura dos povos de terreiro nos currculos das escolas e universidades

    Com a inteno de iniciar um processo de abertura

    da universidade a conhecimentos milenares transmitidos

    pela tradio oral, em novembro do ano passado, em co-

    laborao com o Departamento de Arte Corporal (EEFD) e

    o curso de Direo Teatral da (ECO) da UFRJ, onde lecio-

    na a Professora Marta Peres, o mestre Aderbal ministrou

    para estudantes, professores, funcionrios e participantes

    externos oficinas que fizeram parte dos contedos das

    disciplinas Etnopesquisa em Dana e Estgio Curricular

    Obrigatrio, em seu plo de vertentes culturais.

    A participao de pessoas no matriculadas nas respec-

    tivas disciplinas ou na UFRJ foi estimulada, enfatizando-se

    o carter extensionista da Universidade e do Paratodos

    ensino pesquisa-extenso, o que estreitou ainda mais os

    laos entre a Dana/UFRJ e o curso do mestre Aderbal. Por

    conta disso, participaram dos encontros reabilitantes do

    Instituto Benjamin Constant, com deficincia visual parcial

    e completa. Ante sua chegada, o mestre teceu relevantes

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    consideraes acerca da maneira como sua cultura lida

    e respeita as pessoas com deficincia, apresentando-nos

    uma explicao que envolvia a mitologia dos orixs, prin-

    cipalmente quando nos falou de Oxal.

    De fato, identificamos na militncia poltica, artstica e

    ecolgica do mestre Aderbal uma estreita afinidade com

    as lutas das pessoas com deficincia. Um lema que capta

    de maneira contundente a motivao do programa de ao

    do movimento das pessoas com deficincia Nada sobre

    ns sem ns, ou seja, em ingls, Nothing about us, without

    us, e no latim, Nihil de nobis, sine nobis. Isto quer dizer que

    nenhuma das polticas pblicas voltadas para seus direitos

    devem ser decididas sem a participao direta dos mem-

    bros afetados por elas. Em latim, o lema tem suas origens

    nas relaes internacionais da Europa Central, e pode ser

    encontrado em leis hngaras, nas polticas de imigrao,

    em especial da Polnia. Em ingls, foi adotado pelos ati-

    vismo dos movimentos das pessoas com deficincia nos

    anos 1990, na frica do Sul, na Europa Oriental e ttulo

    de um livro de James Charlton. Deste campo, esta bandei-

    ra passou a ser usada por outros movimentos, servindo

    para se pensar questes nacionais, tnicas e de inmeros

    grupos marginalizados de oportunidades polticas, sociais

    ou econmicas.

    A condio ativa de personalidades como Aderbal est

    em sintonia com estas ideias e lema, ao recusarem o papel

    de objeto de pesquisa do saber acadmico etnolgico.

    Para ele, evidente o protagonismo das pessoas envolvi-

    das na produo desta peculiar forma de conhecimento

    de carter predominantemente oral, artstico e corporal.

    Oku Ab, que quer dizer bem vindo em iorub, foi

    o ttulo do percurso. Referimo-nos a um percurso e no

    a um curso, pois esta vivncia escapa das metodologias

    convencionais de sala de aula, criticadas por Paulo Freire

    sob a expresso educao bancria. Na metodologia de

    Aderbal, o encontro, a troca, a experincia possuem um

    protagonismo em relao palavra escrita. Alm da co-

    notao espiritual, ancestral e mtica da palavra, o mestre

    ressalta que, em contraposio s formas de comunicao

    escrita, a expresso culturas de transmisso oral no se-

    ria propriamente a mais precisa, pois a cultura de que ele

    fala no est limitada voz, mas tem suas razes no corpo

    inteiro, em todo o ser, que canta, toca, dana, se move,

    sente, interage, se relaciona, comunga consigo, com os

    outros, com o mundo.

    Sem gua, sem folha, no tem santo: o ditado iorub

    sintetiza o compromisso com a ecologia e a educao

    ambiental enquanto um dos eixos centrais do trabalho

    do mestre, que abordou aspectos da mitologia, medicina,

    culinria, vestimentas, rituais, msica e dana dos povos

    de terreiro.

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    tambm denominado Oku Ab um projeto mais

    amplo de Aderbal voltado para a educao ambiental e

    combate ao preconceito contra religies afro-brasileiras.

    Este surgiu da necessidade de preservao, recuperao

    e conservao dos recursos hdricos impactados pelas

    prticas, envolvendo o monitoramento e manejo das reas

    utilizadas, limpeza peridica de rios, cachoeiras e flores-

    tas, reciclagem dos materiais das oferendas, plantao

    e recuperao da mata nativa degradada. Trabalhando,

    basicamente, sob a forma de mutires, eles j chegaram

    a retirar, de apenas uma rea escolhida para tal, cerca de

    cinco toneladas de resduos. Estas aes educativas fazem

    parte, j fora da sala de aula, de um segundo momento

    do percurso, assim como se deu a visita ao terreiro de

    candombl da Me Beata de Iemanj.

    O ciclo de vivncias comunitrias, proposto pelo Mestre

    Aderbal Ashogun, teve como objetivo ensinar prticas e

    costumes tradicionais de herana africana, formadores do

    Complexo Cultural dos Povos Tradicionais de Terreiros. Um

    dos mais expressivos complexos culturais de manuteno

    das razes africanas, fundamental na formao da identi-

    dade brasileira, resulta da miscigenao entre os grupos

    africanos Fon, Banto e Yorub, oriundos da regio corres-

    pondente hoje Nigria, Benin, Angola e arredores. Entre

    estes grupos, membros da famlia real, artistas e sacerdotes

    religiosos reorganizaram sua cultura e espaos geogrficos

    de origem no Novo Mundo. Dessa reorganizao, surgiram

    os candombls, comunidades onde a cultura africana

    vivida intensamente por seus membros at os dias de hoje.

    Uma das maiores responsveis por essa manuteno

    na Bahia foi a Ialorix Olga do Alaketu, descendente da

    famlia real de Ketu, antigo reino do atual Benin. Me

    Beata de Iemanj, sua filha de santo mais velha, que vive

    em Nova Iguau, estado do Rio, e sua famlia so hoje um

    arquivo vivo da cultura afrodescendente. Preservando a

    mitologia, a filosofia, as terapias, a msica, as artes, a ln-

    gua e todas as demais formas de organizao cultural de

    matriz africana, que encontra um veculo de comunicao

    e transmisso pela dana e a msica sagrada, vitais para

    os povos de terreiros, cantando, danando e tocando

    que eles encontram com seus deuses.

    Aderbal Ashogun Moreira um ogan, que em iorub

    quer dizer mestre de um saber especfico. Esta palavra

    rene diversas funes masculinas dentro de uma casa

    de Candombl. Embora possua intuio espiritual, este

    sacerdote eleito pelo orix no entra em transe. Ele afirma

    que no s nos bancos escolares que se educao. As

    atividades fora da sala de aula so fundamentais para o

    melhor desenvolvimento da capacidade de compreenso

    do aprendizado. Os povos de terreiro apostam no poder

    do carter ldico desta cultura como um poderoso m-

    todo educativo, o que os aproxima dos artistas da dana.

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    Ao abordar diversos aspectos ligados da cultura dos

    povos de terreiro, ao contrrio de uma vivncia religiosa,

    o percurso teve uma proposta didtica. A professora Mar-

    ta, de formao familiar catlica, teve na experincia seu

    primeiro contato com o candombl, assim como demais

    participantes, dentre eles, outros catlicos, um judeu e

    at evanglicos. O mestre enfatizou as especificidades do

    espao da sala de aula, educativo, e o do terreiro, propria-

    mente religioso e ritualstico, e que sua inteno no era

    converter ningum, mas sim, difundir saberes que no

    fazem parte dos currculos tradicionais e trazer esclareci-

    mentos, que se fazem necessrios por conta de sculos de

    preconceitos e atos de violncia fsica e simblica contra

    seu povo.

    No percurso, foram ensinados canto, dana, toques,

    mitologia, lngua, medicina, incluindo fitoterapia, cromo-

    terapia, comidas sagradas, arte sacra, prticas tradicionais

    sustentveis, histrias e causos de personagens emble-

    mticos desta cultura. Sua proposta foi organizar refern-

    cias culturais afro-brasileiras que contribuem para que

    educao e cultura no Brasil, a fim de caminharem em

    coerncia com sua riqueza, valorizando a definio de sua

    identidade. O principal objetivo foi diminuir a distncia

    entre saberes tradicionais e convencionais, valorizando

    e difundindo a cultura afro-brasileira como fonte de um

    conhecimento ainda hoje invisibilizado por sculos de

    opresso pelos colonizadores europeus. Dentre os ob-

    jetivos especficos podemos citar: aproximar pesquisa e

    extenso; instrumentalizar educadores para a aplicao

    das leis 10.639/03 e 11.645.09; promover qualidade de vida

    atravs da dana; estimular prticas saudveis; ampliar o

    nvel de conhecimento dos educadores e sociedade sobre

    as tradies culturais e religiosas afro-brasileiras, dimi-

    nuindo preconceitos e harmonizando prticas; articular

    Mestres Gris; difundir o Programa Cultura Viva9; moti-

    var um olhar cultural quebrando paradigmas e mudando

    comportamentos em relao a cultura e meio ambiente;

    promover experincias relevantes para a integrao social

    9 O Programa Cultura Viva foi criado e regulamentado por meio das Portarias n 156, de 06 de julho de 2004 e n 82, de 18 de maio de 2005 do Ministrio da Cultura. Ele executado pela Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC/MinC) e surgiu para fortalecer o protagonismo cultural na sociedade brasileira, valorizando as iniciativas culturais de grupos e comunidades, ampliando o acesso aos meios de produo, circulao e fruio de bens e servios culturais, tendo como base os Pontos e Pontes de Cultura. De 2004 a 2012, foram fomentados 3662 Pontos de Cultura em todo o pas, dos quais 3034 j foram conveniados. financiado por recur-sos do Governo Federal e dos parceiros pblicos e privados, por meio de convnios, bolsas ou prmios concedidos atravs de chamamento pblico e tem como objetivos: reconhecer iniciativas e entidades culturais; fortalecer processos sociais e econmicos da cultura; ampliar a produo, fruio e difuso culturais; promover a autonomia da produo e circulao cultu-ral; promover intercmbios estticos e interculturais; ampliar o nmero de espaos para atividades culturais; estimular e fortalecer redes estticas e sociais; qualificar agentes de cultura como elementos estruturantes de uma poltica de base comunitria do Sistema Nacional de Cultura.

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    com outros atores; discutir os valores culturais brasileiros

    atravs da apreciao esttica.

    A metodologia baseou-se em aulas-ensaio, divididas

    em mdulos, organizados a partir dos orixs da cultura

    afro-brasileira Egun, Exu, Ogun, Oxosse, Ossain, Omolu,

    Iroco, Oxumar, Xang, Oxum, Ew e Oba, Yans, Yemanj,

    Nan, Oxal. Diferentes dinmicas de aprendizagem al-

    ternavam-se entre momentos de aula expositiva com

    rodas de conversa e apresentao dos contedos e

    prticas de canto, toque e dana, dentre cantigas sagradas

    de candombl, samba de roda, festa de caboclo, exibio

    de vdeos, dana. Seguindo a mitologia dos orixs, os prin-

    cipais temas abordados foram a ecologia e cultura dos

    Povos Tradicionais de Terreiro, as Folhas Sagradas, o uso de

    defumadores, rezas, banhos, xaropes e Sassanha (cnticos

    sagrados das folhas), elementos da Lngua Iorub/Banto;

    Comidas sagradas afro-brasileira; Orculo/Me Beata; Arte

    sacra yorub/fon/banto (adereos, mscaras, vestimentas

    e adornos; a dana e demais manifestaes tradicionais

    dos terreiros, canto, ritmos; finalmente, a apresentao da

    aula espetculo do Treme Terra Esculturas sonoras, grupo

    musical de Aderbal Ashogun, ocorrido na Sala Vianinha da

    ECO, com a ilustre presena de Me Beata.

    A ecologia uma preocupao central desses povos e

    o principal material pedaggico consiste na Cartilha Oku

    Ab, criada por Aderbal. Um aspecto curioso que no

    discurso do preconceito, as religies de matriz africana so

    repudiadas por realizarem sacrifcios animais. No entanto,

    nem todos os que repetem este jargo so vegetarianos,

    muito pelo contrrio. A venda e consumo de carne de toda

    espcie consistem num aspecto importante de diversas

    sociedades ocidentais, a ponto da palavra churrasco ser

    praticamente sinnimo de festa. No se come carne de

    animal que no tenha sido sacralizada". Para se matar um

    cabrito, tem que haver um ritual especfico. Imagina se a

    Sadia tivesse que ter todo este tato para matar uma gali-

    nha... Certamente, a quantidade de animais abatidos seria

    muito menor, afirmou Aderbal. Ele enfatizou a preocupa-

    o de seu povo com a ecologia e com a fome, ressaltando

    que no costume jogar comida fora mas sim, comer suas

    oferendas. Segundo ele, a humanidade vive o problema da

    fome e da misria e seu povo se preocupa com isso. Ainda

    acerca da gastronomia, o mestre nos contou que a dieta

    de seu povo rica em gros, azeite de dend, que possui

    muita vitamina A. Ele abordou tambm a aromaterapia e

    a cromoterapia. A primeira, realizada por meio de banho

    de cheiro, quando dizemos dar um cheiro como cumpri-

    mento carinhoso, nas prticas de infuso. A segunda, ligada

    ao uso da cor mais adequada, para os dias da semana, em

    sua relao com os orixs.

    Os elementos da natureza trouxeram a discusses so-

    bre as bases da cultura dos povos de terreiro e os pri-

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    meiros pensadores gregos, os chamados filsofos pr-

    socrticos. O sistema Laban de anlise do movimento,

    importante referncia da dana, tambm relaciona ele-

    mentos, qualidades de movimento e sistemas do cor-

    po. Vislumbramos a um eixo de dilogo entre as noes

    apresentadas por Aderbal e questes essenciais com que

    lidam os bailarinos, atores, artistas.

    Bonita de ser ver, a dana no tem o carter de espe-

    tculo, mas utilitria, carregada de smbolos; xir quer

    dizer brincadeira, ritual que conta as histria dos orixs,

    cantadas, danadas e tocadas. A roda era uma formao

    constante e a coletividade um valor com uma relevn-

    cia totalmente prpria, que contrasta com os valores

    das sociedades modernas, baseadas no individualismo.

    Referindo-se roda e repetio dos mitos nos ritos,

    Clarisse Mantuano, esposa de Aderbal, formada em Jor-

    nalismo (PUC/RJ), recordou o conceito de eterno retorno

    do filsofo alemo Nietzsche. No sexto ms de gravidez,

    Clarisse nos ensinou as danas de alguns destes orixs,

    detalhes acerca dos passos. Andr, filho deles, participou

    intensamente.

    Aderbal comparou a relao entre orixs e as pessoas

    com os signos do zodaco. Sagrada, a gua apresenta-se

    de diversas maneiras no mundo doce, salgada, para-

    da, nos mangues, acumulada nas nuvens, caindo com a

    chuva, dentro dos seres vivos... Ele chamou ateno para

    nosso hbito de jogar gua, despachar a porta, usar a

    gua como purificadora. O primeiro orix sobre o qual

    nos contou foi o da gua doce, Oxum. Cachoeira que

    simboliza a gestao, a bolsa dgua que envolve o feto no

    tero da mulher at o nascimento. o orix do amor, da

    fertilidade, da beleza. Segunto Aderbal, estas so caracte-

    rsticas presentes nas pessoas filhas deste orix, bonitas,

    faceiras, vaidosas. No extremo, os aspectos negativos po-

    dem resultar em coqueteria. Evitavam cham-la quando

    iam para a guerra, um orix que definitvamente no

    gosta de guerra e violncia. Sua ferramenta o espelho,

    abeb, em iorub. Quando pegou seu espelho e o voltou

    na direo dos olhos do cu, Oxum fez com que a noite

    voltasse para seu reino.

    Temos muito mais acesso, na escola, mitologia grega e

    Revoluo Francesa do que s atrocidades da escravido

    e cultura dos povos de origem africana. Semelhanas

    entre Oxum e a deusa grega Afrodite foram comentadas

    por alguns participantes. Aderbal recordou-nos que a hu-

    manidade o homo sapiens nasceu na frica, de onde

    caminhou. Mais que pela presena num inconsciente cole-

    tivo que nunca as teria ouvido, as histrias circulam. E os

    nomes e idiomas falados vo se modificando, adquirindo

    outras roupas, sotaques, temperos.

    Xang o orix dos raios, troves, grandes cargas eltri-

    cas e do fogo. Viril e atrevido, violento e justiceiro, castiga

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    os mentirosos, ladres e malfeitores com o raio, morte

    considerada infamante, assim como uma casa atingida por

    um raio marca da clera de Xang. Orix do Poder, ele

    a representao mxima do poder de Olorum. Suas cores

    so terracota e branco e Amal sua comida.

    Ians a orix dos raios e tempestades. Ao mesmo

    tempo em que guerreira, possui a leveza de uma borbo-

    leta. Representa a gua que circula entre o cu e a terra.

    Tem um jeito de ser briguento e fogoso. Nan a orix

    das lagoas e mangues. Os filhos de Nan so pessoas

    observadoras. Como as corujas, no so de falar muito,

    mas prestam ateno em tudo. So as guas paradas, ela

    uma anci, uma matriarca. A biologia comprova que

    os manguezais consistem num ecossistema de enorme

    biodiversidade. Nan o bero das criaturas marinhas,

    ovas e peixinhos, pulula vida ancestral. chamada de a

    Soturna, a Feiticeira, a Velha.

    Iemanj o princpio da vida na Terra, a dona das ca-

    beas, palavra originria do iorub Y amon ej. a me e

    madrinha de todos os peixinhos do mar, esposa de Oxal,

    povoou o Sul. Oxal o deus da acessibilidade, tem res-

    ponsabilidade pelas pessoas especiais. Ele diz: Sou eu o

    responsvel por fazer uma pessoa com um olho s, com

    uma perna s. Ns somos todos feitos assim. Ogum o

    deus da tecnologia. O primeiro ferreiro, forjou a espada.

    tambm o deus da ira, do vcio, do pecado. Mas o que

    seria de um general sem a ira? Nas aulas, teceram-se co-

    mentrios a respeito de suas afinidades com Hermes ou

    Mercrio, da mitologia greco-romana.Oxssi caador.

    Com astcia, monta a armadilha e fica trs dias esperando,

    com uma flecha s, mira e acerta! Aderbal nos falou tam-

    bm de Exu, a que se referiu como imagem e semelhana

    do homem, e Ol-Orum, o senhor dos astros.

    Embora seja difcil eleger algum, pois todo o percurso

    foi um acontecimento inesquecvel, os pontos altos de

    nossos encontros foram a visita de Me Beata sala Viani-

    nha, da ECO/UFRJ, contando as histrias de seus bisavs,

    separados quando desembarcaram no navio negreiro e

    posteriormente reunidos, numa teia pica merecedora de

    um filme, e nossa ida ao Terreiro de Me Beata, em Miguel

    Couto, Nova Iguau, estado do Rio.

    Deste modo, a proposta oferece diretrizes potentes para

    integrar uma ps-graduao transdisciplinar que conte

    com estes imprescindveis mestres, abarcando uma poli-

    fonia de saberes e aes.

    Polifonia e Carnavalizao

    Aderbal tinha a inteno de trazer convidados da Capoei-

    ra, do Jongo, do Samba de roda, erveiros, samba de raiz

    e mestres da cultura tradicional, indgenas, ciganos, qui-

    lombolas e outros mestres, mas infelizmente isso no

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    foi possvel no primeiro percurso, devido s dificuldades

    impostas pela sua realizao em pouco tempo, no final do

    ano e sem qualquer apoio financeiro. Todavia, a proposta

    de ps-graduao em Pedagogia Gri, a ser realizada ini-

    cialmente na USP, com a perspectiva de se expandir para

    demais campi universitrios do Brasil, engloba a participa-

    o de mestres oriundos de diferentes tradies culturais.

    Os povos de terreiro sofreram e sofrem at hoje perse-

    guies, so alvo de acusaes equivocadas e preconceitos

    histricos. No entanto, contrastando com o tratamento

    recebido, sua atitude de acolhimento, no s dos seus,

    mas dos outros, em respeito s diferenas. Tanto no evento

    de lanamento na ECO/UFRJ quanto no curso de Pedagogia

    Gri na USP, Gris procedentes de tradies africanas e

    indgenas, sem cair numa homegeneizao, estabeleceram

    um dilogo enriquecido por suas diferenas, demons-

    trando que no faz sentido uma cultura afirmar-se como

    melhor ou mais forte que a outra, mas sim apontando

    para a possibilidade de troca.

    Durante o curso de Introduo Pedagogia Gri do qual

    a professora Marta teve a oportunidade de participar, em

    Lenis, em setembro de 2013, um dos pontos altos foi o

    encontro de uma participante vinda da aldeia indgena Tu-

    cum, de Olivena, regio prxima de Ilhus - Bahia, Ndia

    Tupinamb, com Dona Judite, erveira da comunidade do

    Remanso, em visita sua casa, em que ambas trocaram

    conhecimentos a respeito de ervas e fitoterapia tradicional.

    O movimento de buscar trazer para a escola a diver-

    sidade cultural, historicamente excluda de um discurso

    cientfico hegemnico, remete "teoria da polifonia", do

    crtico literrio russo Mikhail Bakhtin. Segundo ele, ao

    contrrio de um mero reflexo da personalidade do autor,

    as personagens dos romances de Dostoivski apresen-

    tam-se como senhoras de seus discursos, numa multi-

    plicidade de vozes e conscincias independentes. Bakhtin

    contrape, assim, a polifonia10 dostoievskiana ao romance

    monofnico, em que as personagens so simplesmente

    porta-vozes do pensamento do autor. No romance plu-

    rivocal de Dostoivski, cada personagem possui viso,

    posio no mundo prprias e suas vozes apresentam uma

    excepcional independncia da estrutura da obra como um

    todo, pois se tratam de conscincias mltiplas, imiscveis

    e equipolentes que no se subordinam, mas soam lado a

    lado com a palavra do autor. Tanto que Bakhtin chegaria

    a afirmar que o autor-artista no inventa a personagem,

    mas a pr-encontra j dada, independentemente de seu

    10 O termo polifonia tem origem num estilo musical que se desenvolveu na Idade Mdia e, posteriormente, no perodo gtico, na chamada Escola Notre Dame de Paris, contrastando-se com a homofonia, propagada durante a Contra-Reforma, em que um mesmo texto cantado simultaneamente por todas as vozes, faciliando-se a compreenso das palavras e consequente-mente, a f. (ROMAN, 2003).

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    ato puramente artstico, pois se as gerasse de si mesmo,

    no seriam convincentes. Como diria o Belmiro de Cyro

    dos Anjos, no romance, como na vida, os personagens

    que se nos impem, ou Gide, eles nascem e crescem

    por si, procuram o autor, insinuam-se-lhes no esprito

    (BEZERRA, in BAKHTIN, IX).

    Em Dostoivski, a representao das personagens a

    representao de conscincias plurais, nunca da conscin-

    cia de um eu nico e indiviso, mas da interao de muitas

    conscincias, de conscincias unas, dotadas de valores

    prprios, que dialogam entre si, interagem, preenchem

    com sua vozes as lacunas evasivas dos interlocutores, no

    se tornam objeto dos discursos de outros falantes nem do

    autor, produzindo o grande dilogo do romance. O autor,

    conscincia das conscincias, participa e o organizador

    deste dilogo, o regente do coro de vozes. Dostoivski no

    cria, assim, escravos mudos como faz Zeus, mas pessoas

    livres, capazes, at mesmo, de se rebelar contra seu criador.

    A comear pela trama e pela composio de persona-

    gens extremamente humanas, contraditrias, repletos de

    nuances, inacabados, como todos ns, o tema fascinan-

    te, de modo que pode se desdobrar em outros campos,

    tais como o prprio percurso com Aderbal, a criao c-

    nica e propostas de aes futuras. Embora parea simples

    primeira vista, a ideia de polifonia muito complexa,

    de maneira que coloc-la em prtica exige um rigoroso

    exerccio metodolgico.

    A noo de carnavalizao, tambm desenvolvida por

    Bakhtin no campo da teoria literria, consiste num rele-

    vante referencial terico para os processos criativos de

    nossas aulas de dana, que por sua vez possuem afinida-

    de com o percurso apresentado pelo mestre. Ao trazer a

    reflexo de que somos todos diferentes em nossa singu-

    laridade, e que a homogeneizao em indivduos-padro

    a desempenhar corretamente seus papis sociais uma

    falcia facilmente desnaturalizada ante olhos mais atentos,

    nas festividades carnavalescas, a miscelnea dos corpos

    embaralha relaes de poder e derrete as fronteiras entre a

    pessoa, seu semelhante e o mundo. Ao colocar em cheque

    o corpo oficial moderno, a festa traz consigo o "corpo

    grotesco" da multido. Nesta espcie de intervallum mundi,

    entramos em contato com um estado que se perdeu com

    o advento do indivduo moderno, mas que ainda se faz

    presente nas sociedades tradicionais. Recorda-se aqui a

    afirmao da Mestre Doci, no incio deste texto, a respei-

    to da importncia da "festa" e do encontro, mais que um

    acaso, momento relevante para as culturas tradicionais.

    Corpos, mentes, comportamentos, "diversos" dos es-

    perados de ns remetem ao corpo grotesco, ideia que pode

    ser um caminho possvel para desnaturalizar a condio

    de "indivduo", ao chamar ateno para sua historicidade,

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    apontando para modos de existncia em que esta categoria

    ainda no havia sido estabelecida. Tornada uma vivncia

    mais intensificada, a concepo de si enquanto indivduo,

    principal responsvel por seus sucessos e fracassos, trouxe

    um tipo de sofrimento mais propriamente moderno, con-

    trastado com o acolhimento presente na condio coletiva

    das sociedades tradicionais. A atitude de acolhimento de

    Me Beata foi imediata ao receber a turma da UFRJ em seu

    terreiro, absolutamente sem se importar o quanto conhe-

    camos ou que vnculos possuamos com o candombl.

    Assim como na unio da coletividade em torno de um

    anseio comum, de resistncia opresso, as festividades

    do carnaval so identificadas como uma espcie de inter-

    vallum mundi, marcadas por uma suspenso das relaes

    de poder. Le Breton considera as civilizaes medieval e

    renascentista uma mistura confusa de tradies populares

    locais e referncias crists, numa espcie de "cristianismo

    folclorizado" que nutre as relaes entre homem e seus

    meios social e natural11. Bakhtin refere-se ao grande corpo

    popular da espcie: insatisfeito com os limites que no

    cessa de transgredir, ele ilustra o fim e o renascimento do

    mundo, uma nova primavera da vida, indiscernvel, aberto,

    ultrapassando a si mesmo, o corpo grotesco do carnaval

    no demarcado do resto do cosmos, no fechado, con-

    11 Le Breton, 2003, p.29.

    cludo, pronto: formado por salincias, protuberncias e

    transborda vitalidade. Tempo de excesso e dispndio, tais

    festas tendem a experimentar esse "no diferenciar-se"

    entre homem, corpo e mundo caracterstico das socie-

    dades holistas, utilizando os termos do socilogo Louis

    Dumont, que as ope s "individualistas"12. Naquelas, reina

    uma identidade de substncia entre o homem e a multi-

    do de semelhantes, de modo que ele no se distingue da

    trama comunitria e csmica em que se insere, pois sua

    singularidade ainda no faz dele um indivduo, no sentido

    moderno do termo. A partir do advento do individualismo,

    passaria a se dar a separao pela matria, pelo corpo,

    que deixa de se confundir com a pessoa e passa a ser

    uma "propriedade" sua13. Em outras palavras, deixamos

    de dizer "eu sou meu corpo" e passamos a dizer "eu tenho

    um corpo".

    Na Pedagogia Gri, alm do protagonismo assumido

    pelo corpo e a importncia da sensao de acolhimento e

    pertencimento ao grupo, identifica-se uma maneira muito

    especial e genuna de propor um equilbrio entre relaes

    de poder em geral conflitantes, ao simultaneamente dar

    vazo s singularidades dos participantes, embora sob uma

    12 Louis Dumont chamou as sociedades modernas de individualistas em oposio s tradicionais, que denominou "holistas" (DUMONT, 1985; DUMONT, 1992).

    13 Le Breton, 2003, p.29/31.

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    indiscutvel e peculiar autoridade assumida por um Gri

    dotado e reconhecido pelo saber tradicional. Atente-se a

    para a diferena entre autoridade e autoritarismo.

    A ideia de polifonia exposta acima afina-se com o con-

    ceito de Produo Partilhada do Conhecimento (Bairon,

    2012). Segundo Bairon e Lazaneo, referindo-se ao produto

    hipermdia Bo erro Kurireu documentrio, pesquisa

    e discusso de conceito , a mudana propiciada no

    contexto das autorias mltiplas na produo partilhada

    do conhecimento apresenta uma alternativa assime-

    tria tradicional das representaes monolgicas. () Essa

    forma reticular de produzir conhecimento questiona as

    estruturas rgidas e formais da produo de conhecimen-

    to cientfico, que elege as narrativas acadmicas como o

    protagonista do saber (Bairon e Lazaneo, 2012).

    A metodologia de Aderbal est em sintonia com estas

    linhas de ao, medida que, antes de serem uma trans-

    misso de conhecimento de quem sabe para quem no

    sabe, os encontros eram vivenciados, experincias com-

    partilhadas em instantes nicos e especiais na histria

    de cada um.

    Depoimentos

    Em sua relao com as comunidades por ele pesquisa-

    das, o professor Sergio Bairon14 prope realizar um outro

    tipo de etnografia, em que as mesmas so empoderadas

    como produtoras de mdia. Segundo esta perspectiva, o

    pesquisador deixa de ser um olhar invasor, para partici-

    par, ensinar e criar junto. A comunidade, seja uma tribo

    indgena, seja um grupo de descendentes de africanos que

    preserva a tradio da Coroao dos Reis Congo, ganha a

    oportunidade de divulgar de uma outra maneira seus co-

    nhecimentos, por meio de recursos de mdia e da internet.

    Os encontros do percurso de Aderbal foram registrados,

    por meio de uma colaborao do Ponto de Cultura da

    Escola de Comunicao da UFRJ. No entanto, a produo

    audiovisual no foi uma de nossas prioridades, o que pode

    vir a ser aprofundado num futuro percurso. Alm disso,

    no se configurou numa etnografia de uma comunidade,

    mas sim na entrada de um mestre de uma cultura de tra-

    dio oral para trocar saberes com estudantes e partici-

    pantes de extenso no espao acadmico, o que envolveu

    tambm a sada do grupo para atividades ecolgicas, na

    14 O trabalho de Bairon o aproximou da Pedagogia Gri e de iniciativas como o percurso proposto por Aderbal. O professor participa da luta pela aprovao da Lei Gri e de articulaes para a criao de cursos institucionalizados com esta metodologia.

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    Floresta da Tijuca e no terreiro da Me Beata, enfim, aes

    relevantes voltadas para o aumento da permeabilidade

    universidade e sociedade, comunidade, mundo.

    Ao estabelecermos uma analogia do Aderbal e os parti-

    cipantes do percurso com um autor de romance polifni-

    co e suas personagens, podemos afirmar que o percurso

    produziu em ns ressonncias inusitadas, que extrapola-

    ram o que o mestre apresentou ou seria capaz de prever.

    Adiante, apresentamos os depoimentos dos participantes,

    coautores deste texto:

    Fazer o curso do Aderbal Ashogun foi uma experincia fantstica,

    receber os saberes ancestrais daquele que mantm viva a tradio da

    cultura afro brasileira, enriquece e abre caminhos por um futuro mais

    humano e com o compromisso de formar as novas geraes de bra-

    sileiros com respeito e em harmonia com a natureza. (Paulo Rafael

    Pizarro, malabarista, professor de futebol, pizzaiolo, bacharel em

    Direito, ator, dramaturgo e diretor da Tropa de Palhaos de 5).

    A minha experincia com as razes de matriz africana me aprofun-

    dou a ancestralidade, me fez encontrar o Brasil. Aderbal Ashogun

    meu mestre, amigo e reencontro. Fomos todos ao quilombo e taba.

    (God Quincas, nome artstico de Victor Ferreira, ator e palhao).

    Foi maravilhoso. Eu acho as aulas ali timas. Ele falou do iorub,

    contou histrias dos ancestrais, de onde a gente veio. Porque na

    realidade, todo mundo veio da frica. Alguns vo ficando mais

    branquinhos, outros, no. Aquela aula foi maravilhosa porque ele

    nos contou lendas, ervas, histria, alimentao. Acabava passando

    uma energia maravilhosa, terminava com um alto astral, muito legal.

    (Eliane Rodrigues Pereira, graduada em Administrao, deficiente

    visual, reabilitante do Instituto Benjamin Constant).

    O curso foi ministrado pelo mestre Aderbal, onde ele constituiu

    parcerias entre pontos de cultura, escolas e Universidades como a

    UFRJ. Tive o privilgio de participar de encontros atravs dos quais

    percebi que tinha receio do desconhecido, do que era umbanda,

    candombl, por no conhecer o que significava. Hoje analiso de

    outra forma, apesar de ser to complexo. Agora entendo que tudo

    energia e que isso se manifesta de diversas formas e intensidades

    atravs da natureza. Percebi com as aulas que cada ser humano tem

    uma tendncia de movimento e que o homem utilizado como meio

    para concretizar o imaterial fazendo o elo entre o homem e suas

    divindades que so caracterizadas por smbolos onde realizada essa

    troca de energia. As aulas faziam uma reflexo de como a sociedade

    enxerga a questo da cultura africana e que por falta de conhecimento

    a discriminam. Como os alunos e professores da universidade podem

    est colaborando para acabar com esse mito em relao aos orixs,

    por exemplo? Como o professor pode estar buscando entender esses

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    aspectos para saber explicar, caso seja questionado? Como reagir

    diante dessas situaes? O curso abriu um leque de oportunidades

    de se trabalhar a questo da cultura africana nas aulas de dana,

    comeando o mais cedo possvel desde educao infantil, a fim de

    conscientiz-los da onde viemos. (Rosana Oliveira, professora de

    Educao Fsica e estudante do Bacharelado em Dana (UFRJ).

    Cultura de Povos de Terreiros e Paratodos: uma primeira aproximao:

    Viver a sociedade contempornea, especificamente na metrpole do

    Rio de Janeiro, envolve a possibilidade da (re)aproximao com uni-

    versos culturais historicamente submetidos segregao, perseguio

    e tentativa de aniquilamento. Ao mesmo tempo em que aumentam as

    demandas pela laicizao do Estado, pela liberdade de culto religioso

    e pelo dilogo intertnico, nos confrontamos com o crescimento da

    intolerncia religiosa por parte de certos grupos ligados s religies

    bblicas15, a proliferao de seus cultos televisivos e seu avano

    sobre o sistema poltico. Neste sentido, a vida espiritual na cidade

    15 Por outro lado, finalmente, podemos dizer que alteridade no significa a ausncia da possibilidade de reconhecimento da existncia social , tampouco ausncia de proximidade. Em seus versculos iniciais, o texto bblico, ao descrever o Jardim do den, conhecido tambm como paraso (dos quais seriam expulsos os primeiros seres humanos da ancestralidade judaico-crist), narra que um rio dali se convertia em quatro cabeceiras e entre elas, as guas da segunda cabeceira rodeava toda a terra de Cush (Gnesis, captulo II, versculo 10-15). Atualmente, em lngua hebraica, a expresso Cushi referncia para mulheres, homens e coletivos que trazem nos tons escuros da sua pele, a herana das origens da nossa humanidade no continente africano.

    sofre processos de acelerao, inclusive comunicacional, via novas

    tecnologias aplicadas informtica, a construo de imagens publi-

    citrias e s operaes mercantis. Como nos instrui Milton Santos

    (1994), no perodo tcnico-cientfico em que nos encontramos, cresce

    a distncia do homem comum em relao a esse novo Tempo Mundo

    (...) aumenta as distncias entre as instituies e as pessoas. Por

    outro lado, o tempo concreto dos homens a temporalizao pr-

    tica (...) a interpretao particular do tempo por cada grupo, classe

    social, cada indivduo(p.82-3) e a co-presena ensina aos homens

    a diferena. Assim, a possibilidade de contato com saberes da nossa

    ancestralidade, reunida a partir das prticas rituais e culturais que

    tem a frica como origem, atravs de projetos de extenso univer-

    sitria com oficinas de dana e artes corporais favorece o resgate de

    um tempo definido por uma matriz de comunho espiritual e social,

    que at recentemente era marginalizada na maioria das instituies

    convencionalmente relacionadas cultura. No contexto do projeto

    de extenso universitria Dana Paratodos, coordenado pela profes-

    sora Marta Peres, as lutas pela afirmao identitria se encontram

    com a necessidade de no se restringir a dana a uma viso presa

    a padres de corpo e de tcnica do sculo XIX, mas sim ampli-la

    para uma multiplicidade de prticas, de maneira a no contrapor

    danar e pensar16 (alm de contribuir para a renovao do nimo

    em estrito senso, como forma de tratamento ou preveno, a dana

    16 Peres, Marta. Festival Corpos mpares. Jornal da Dana. Rio de Janeiro, Ano 23, n 163, novembro de 2012, p.4.

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    traz inumerveis benefcios motores, psicolgicos , de qualidade de

    vida, de autonomia)17. Na oficina oferecida pelo mestre Aderbal

    Ashogun Moreira, ligada ao projeto Dana Paratodos, nos envolve-

    mos em algumas prticas e debates sobre a disposio comunitria

    e familiar dos povos do terreiro e seu modo de vida, a dinmica dos

    seus rituais e a cosmologia dos Orixs, o uso medicinal de plantas e

    a observao de comportamentos transcendentes, por exemplo. Gestos,

    ritmos e cantigas herdados pelos povos transpostos do continente

    africano para o sul americano, apesar de terem sido, na maioria das

    vezes, isolados da lgica formal da cultura ocidental e do conheci-

    mento bblico judaico cristo, mantiveram-se sendo praticados e

    transmitidos pelas mes de santo a seus filhos do terreiro. Alm de

    resistir pelo esforo de reconstruo de um modo de vida em uma

    dispora opressiva e de explorao das energias da sobrevivncia,

    esta transmisso geracional de conhecimentos, permitiu que hoje,

    junto com a luta pela afirmao identitria e liberalizao dos cos-

    tumes, estes saberes se recolocassem diante de grupos reunidos por

    uma instituio pblica de excelncia, como a UFRJ. Em ambiente

    acadmico, experimentamos a alternncia dos batuques nos instru-

    mentos de percusso, os gestos e passos de roda referidos ao culto aos

    Orixs, a sabedoria sobre os tempos biolgicos dos organismos na

    natureza, valores ancestrais e saberes simples entre os usos das es-

    truturas metodolgicas e as linguagens digitais das novas tecnologias

    17 Peres, Marta. Paratodos. Jornal da Dana Rio de Janeiro, Ano 22, n 162, outubro de 2012, p.4.

    que caracterizam os processos de aquisio de conhecimento. Assim,

    nos foi possvel estabelecer contato com alguns comportamentos e

    saberes recuperados da cultura de matriz africana e mantidos pelos

    povos do terreiro no Brasil, em um processo de resgate institucional

    da alteridade religiosa e cultural em nossa contemporaneidade, e

    reconhec-los em um arranjo de oficina. (Ivy Schipper, gegrafo,

    mestre em urbanismo e pesquisador do IPPUR).

    Com o desejo de continuar...

    Nossa cultura fala de simplicidade, carinho, hospita-

    lidade. De guerreiros, eguns, que so smbolos ancestrais

    dos avs, bisavs. O mestre comparou seus rituais a uma

    forma de meditao e encontro com a natureza: Enquan-

    to no Oriente, este encontro se d com a pessoa calada,

    em silncio, entre os catlicos, existe o ritual da missa, nos

    povos de terreiro, este encontro acontece com as pessoas

    cantando, danando, tocando, num estgio orgnico de

    meditao com a natureza. Eu sou de Xang, diz Aderbal

    Quando medito, me sinto um rei, o deus da justia. Foi

    com este esprito que ele conduziu lindamente o percurso,

    que ser reiniciado numa prxima oportunidade. H muito

    mais a falar, mas podemos continuar num prximo texto.

    Terminamos de escrever este texto num domingo en-

    solarado, na grande festa da Caminhada pela Liberdade

    Religiosa ao longo da Avenida Atlntica, Praia de Copaca-

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    bana, Rio de Janeiro (08/09/2013), organizada por coletivos

    de redes. Com muitos tambores, cantos e dana. Ax!

    Referncias Bibliogrficas

    BAIRON, S.; LAZANEO, C. Produo Partilhada do

    Conhecimento: do filme hipermdia. Intercom,

    Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da

    Comunicao/ XXXV Congresso Brasileiro de Cincias

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    PACHECO, L. CAIRES, Mrcio (org.) Nao Gri: o parto

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    YEMONJ, Me Beata de. Caroo de Dend: A Sabedoria

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