Memoria Urbana Aderbal (1)

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  • UNIVERSIDADE DA REGIO DE JOINVILLE UNIVILLE

    MESTRADO EM PATRIMNIO CULTURAL E SOCIEDADE

    MEMRIA URBANA: Diagnstico do Patrimnio Cultural Edificado no Bairro Centro de Joinville

    ADERBAL RODRIGO CASTELLAN LOPES

    JOINVILLE SC

    2011

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    ADERBAL RODRIGO CASTELLAN LOPES

    MEMRIA URBANA: Diagnstico do Patrimnio Cultural Edificado no Bairro Centro de Joinville

    Dissertao de Mestrado em Patrimnio Cultural e Sociedade da Universidade da Regio de Joinville UNIVILLE sob orientao da Professora Doutora Dione da Rocha Bandeira, na linha de pesquisa de patrimnio e Sustentabilidade.

    Joinville SC

    2011

  • Catalogao na publicao pela Biblioteca Universitria da Univille

    Lopes, Aderbal Rodrigo Castellan L864m Memria urbana: diagnstico do patrimnio cultural no bairro Centro de

    Joinville / Aderbal Rodrigo Castellan Lopes ; orientadora Dra. Dione da Rocha Bandeira Joinville: UNIVILLE, 2011.

    207 f. : il. ; 30 cm

    Dissertao (Mestrado em Patrimnio Cultural e Sociedade Universidade da Regio de Joinville

    1. Arquitetura. 2. Planejamento urbano - Joinville. 3. Patrimnio histrico. 4. Patrimnio cultural. I. Bandeira, Dione da Rocha. II. Ttulo.

    CDD 720.9

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    Dedico esta dissertao a Deus, aos meus pais, minha esposa, e a toda minha famlia pelo apoio incondicional nas horas difceis e por toda alegria e amor proporcionadas nas horas felizes.

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    a cidade no conta seu passado, ela o contm como as linhas da mo, escrito nos ngulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimos das escadas, nas antenas dos pra-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhes, serradelas, entalhes, esfoladuras

    talo Calvino

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    AGRADECIMENTOS

    A minha famlia, aos amigos e aos meus clientes, pela compreenso da minha ausncia, pelas desculpas e pelos atrasos.

    Aos colegas de classe e aos professores a quem tive o prazer de conhecer neste mestrado, por terem proporcionado discusses e reflexes muito significativas para as ideias aqui discutidas. Aos funcionrios da UNIVILLE, especialmente Rosemeri Welter Rohrbacher. banca de qualificao, Professora Dra. Sandra de Paschoal Leite de Camargo Guedes, Professor Dr. Fabiano A. Oliveira, pelas crticas que tanto contriburam para o desenvolvimento deste trabalho. Professora Dra. Janine Gomes da Silva, que me orientou na maior parte deste trabalho e, em especial, Professora Dra. Dione da Rocha Bandeira, orientadora deste trabalho em sua reta final, pela sua ateno, pela sua dedicao e pela forma objetiva e motivadora com que me orientou nos ltimos meses. Arq. Nina Vaissman pela imensa oportunidade profissional na elaborao de planejamentos urbanos e para minha amiga e eterna professora Ndia Oliveira Cahen, fonte inspiradora deste trabalho. Uma honra conhecer pessoas como elas. Meus agradecimentos tambm aos seus braos direitos, Yara Cortez e Maria do Carmo Lima, pelo apoio e pelo carinho de sempre. Fundao Catarinense de Cultura e Fundao Cultural de Joinville, em especial aos meus amigos e parceiros de trabalho, Arq. Raul Walter da Luz e Dietlinde Clara Rothert, pela oportunidade de realizar trabalhos fantsticos na rea do patrimnio cultural. Ao Bruno da Silva, Silvia Iapunira e Rodrigo Lazzarini, grandes pessoas, que colaboraram de forma fantstica, no momento mais oportuno. A todas as pessoas que, de alguma forma colaboraram na minha carreira como arquiteto, tais como professores, colegas de classe e de trabalho, parceiros comerciais e, em especial ao Centro Universitrio Belas Artes de So Paulo, Universidade de So Paulo e Universidade da Regio de Joinville por proporcionarem minha qualificao profissional e acadmica.

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    RESUMO

    Esta dissertao uma reflexo acerca da problemtica que envolve a preservao do Patrimnio Cultural Edificado de Joinville nos dias de hoje, a partir da consolidao da ideia de cultura e de patrimnio, analisando a cidade em seu desenvolvimento urbano, nas questes histricas, scio-econmicas, ambientais e na leitura crtica dos dispositivos legais que a cidade conta para a preservao e para a elaborao de novos instrumentos que conciliem o desenvolvimento urbano e a preservao da memria da cidade. O centro da cidade foi escolhido para ser o foco dos estudos, visto que testemunha o desenvolvimento da cidade sendo um dos locais que mais sofrem as consequncias desse desenvolvimento. Desta forma estabelecido o diagnstico dessa situao de forma a contribuir com a possibilidade de aes e estratgias que fortaleam a preservao desse patrimnio, melhorando a paisagem urbana e contribuindo para o desenvolvimento da cidade.

    Palavras-chave: Joinville, Patrimnio Cultural, Planejamento urbano, Cultura.

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    ABSTRACT

    This dissertation is a reflection about the problems involved in the preservation of the Cultural Heritage built in Joinville today, from the consolidation of the idea of culture and heritage, analyzing the city in its urban development, on historical issues, social-economic, environmental and critical reading of the legal provisions against the city for the preservation and development of new instruments to reconcile urban development and preserving the memory of the city. The city centre was chosen to be the focus of studies, to witness the development of the city. The places that most suffer the consequences of this development. In this way it has established the diagnosis of this situation in order to contribute to the possibility of the actions and strategies that strengthen the preservation of this heritage, improving the urban landscape and contributing to the development of the city.

    Key words: Joinville, Cultural Heritage, Urban Planning, Culture.

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    SUMRIO

    INTRODUO 11 1. Cultura e Patrimnio 21 2. Dimenso Urbana: Quadro Situacional 45

    2.1. Localizao______________________ 45 2.2. Insero Regional 46 2.3. Permetro Urbano de Joinville 50 2.4. Os Bairros de Joinville 51 2.5. O Centro 53 2.6. Caractersticas do municpio 54

    2.6.1. Atividades Econmicas 54 2.6.2. Turismo 55

    2.7. Dinmica Demogrfica 56 2.7.1. Distribuio da populao por situao 57 2.7.2. Distribuio por sexo e idade 58 2.7.3. Distribuio da populao por territrio 59 2.7.4. Escolaridade 63 2.7.5. Renda 63

    2.8. Saneamento Bsico 64 2.8.1. Distribuio de gua encanada 64 2.8.2. Sistema de esgoto 64 2.8.3. Energia Eltrica 66

    2.9. Caracterizao Ambiental 66 2.9.1. Recursos Hdricos 67 2.9.2. Geomorfologia e relevo 68 2.9.3. Flora e Fauna 69 2.9.4. Clima 70 2.9.5. Arborizao Urbana 70

    2.10. Mobilidade 71 2.10.1. Sistema virio 71

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    2.10.2. Frota de veculos 74 2.10.3. Bicicletas 74 2.10.4. Sistema de transporte coletivo 75 2.10.5. Sistema de transporte rodovirio 75 2.10.6. Transporte areo 76 2.10.7. Transporte ferrovirio 76

    3. Memria Urbana: Contexto Histrico 78 3.1. Precedentes histricos 78 3.2. Evoluo urbana 84

    4. Leis e Instrumentos Urbansticos 104 4.1. Uso do solo 104

    4.1.1. Rural 105 4.1.2. reas de preservao ambiental 106 4.1.3. Urbano 109

    4.2. O Patrimnio Cultural em Joinville 113 4.3. Plano Diretor 123

    5. Diagnstico do Patrimnio Edificado na regio central de Joinville 131 6. Intervenes Possveis 148 CONSIDERAES FINAIS 163 REFERNCIAS 167 APNDICE 174 ANEXOS 176

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    INTRODUO

    Durante o perodo em que trabalhei na Coordenao de Patrimnio Cultural de Joinville pude perceber o quo frgil a relao da preservao do patrimnio cultural edificado frente expanso urbana. Apesar de a cidade contar com Arquivo Histrico e museus, alguns relacionados a atividades histricas da cidade, e um setor especfico para a gesto do patrimnio cultural, as questes relativas, sobretudo em relao ao patrimnio edificado1, so muito complexas, pois a situao atual da cidade compatvel com as diretrizes do planejamento urbano, a preservao das edificaes e o crescimento da cidade na prtica. As leis atuais acerca da preservao do patrimnio cultural edificado so bastante restritivas e a contrapartida do poder pblico para auxiliar na conservao desse patrimnio muito tmida diante das diretrizes de planejamento, nacionais e municipais, para o assunto2. O mercado imobilirio se mostra cada vez mais forte na cidade e os setores com maior incidncia de exemplares edificados so justamente aqueles que mais podem ser verticalizados, ou seja, cria-se um conflito entre os interesses do mercado e a preservao pelo poder pblico.

    Nesta experincia pude perceber que os proprietrios das edificaes catalogadas como Unidades de Interesse de Preservao3, em sua grande maioria, no possuem recursos para manuteno e veem o seu patrimnio pessoal se desvalorizar diante de outros imveis da mesma regio. O fato mais preocupante, no entanto, a aparente falta de percepo da sociedade sobre a importncia das edificaes consideradas Patrimnio Cultural, muitas delas de arquitetura simples, mas importantes no contexto do desenvolvimento urbano e acabam por considerar

    1 Por definio, patrimnio edificado so todas as construes que colaboram na concepo da

    cidade como um todo, independente de seu valor esttico, e por algum motivo sua permanncia importante para a memria do desenvolvimento urbano de Joinville. 2 Consideram-se as diretrizes previstas na Constituio Brasileira, no Estatuto da Cidade e no Plano

    Diretor de Joinville. 3 Unidades de interesse de Preservao, ou UIPs, o nome dado aos imveis catalogados, porm

    no tombados, ou seja, imveis que possam integrar a lista de tombamentos municipal.

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    relevantes apenas as edificaes smbolos4 da cidade, principalmente as edificaes em bom estado de conservao e que no estejam no caminho de grandes empreendimentos para a cidade.

    Para reverter essa situao, no bastaria apenas a preservao dos edifcios, mas um planejamento especfico para viabilizar essa preservao, de forma a contribuir para a restaurao dessas edificaes e para a requalificao dos espaos urbanos, tornando a paisagem urbana mais agradvel, aproximando a sociedade da memria urbana de Joinville, visto que as edificaes histricas, sobretudo na regio urbana, tornam-se marcos de referncia, ficando expostas a todos os cidados que transitam pela cidade. Tais atitudes valorizariam os imveis e, consequentemente, trariam desenvolvimento social e econmico.

    Para um planejamento desse porte, necessrio conhecer os problemas que o patrimnio cultural edificado de Joinville enfrenta, e relacion-los, no apenas com a histria da cidade, mas com uma idia que tange a percepo sobre a cultura de Joinville, bem como as diretrizes que a cidade possui para o ordenamento do desenvolvimento urbano.

    O ponto de partida para esse planejamento um diagnstico que permitiria a elaborao de diretrizes e aes para se encontrar a melhor maneira de preservar o patrimnio cultural edificado de Joinville, reduzindo ao mximo os danos s edificaes histricas e possibilitando o crescimento da cidade. Um planejamento com a metodologia semelhante a de um plano diretor, onde se conhece a situao do local e, diante da situao encontrada e um ideal a ser alcanado, so traadas diretrizes, estratgias e aes para se alcanar esse objetivo.

    Tais diretrizes so hoje apontadas pelo atual Plano Diretor da cidade como veremos adiante nesta dissertao. No entanto, no h um estudo especfico sobre a situao atual do patrimnio cultural da cidade. Assim, esta dissertao contribuir, nesse ponto, com a elaborao do diagnstico desse patrimnio cultural em uma determinada regio da cidade, o bairro Centro, que abriga inmeras

    4 As edificaes smbolos so aquelas voltadas a fatos histricos conhecidos, e tambm aquelas

    edificaes que remetem a estilos europeus, as quais so relacionadas como germnicos. As construes enxaimel, por exemplo.

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    edificaes e um traado urbanstico que retrata o desenvolvimento da cidade de Joinville.

    O entendimento acerca da temtica do patrimnio cultural se demonstra na relao entre diversos fatores que definem a cultura de uma comunidade que ser discutida no Captulo 1 desta dissertao, onde sero aprofundados os conceitos de patrimnio cultural, cultura e cidade como habitat humano. Nesse captulo sero analisadas as pesquisas tericas que embasaram a construo da idia central de patrimnio cultural, fundamental para elaborao de um raciocnio necessrio para a leitura dos dados a serem levantados nos captulos seguintes da pesquisa.

    A discusso proposta no Captulo 1 envolve as relaes entre natureza humana, sociedade, histria, arte, cidade e cultura, relaes importantes de serem abordadas para ter um entendimento sobre cultura no s como um aspecto importante da vida citadina, mas tambm como essncia do homem que a partir da constri suas obras, organiza sua sociedade e escreve sua histria. Assim, a idia a respeito de patrimnio cultural se torna mais ampla, no se limitando apenas aos aspectos do trabalho humano, mas tambm, aos aspectos da relao do homem com o seu local e os seus semelhantes.

    O trecho a seguir demonstra a sensao de vida conferida cidade:

    [...] Imaginemos o percurso de um transeunte: ao afastar-se pouco a pouco dos edifcios depara, ao virar de uma esquina, com um conjunto totalmente inesperado. normal que fique surpreendido ou at mesmo espantado; mas a sua reao deve-se mais composio do grupo do que a uma construo especfica. Imaginem agora os edifcios colocados de maneira a permitir o acesso ao interior do conjunto; ento o caminhante sentir que esse espao delimitado tem uma vida prpria, que a sua existncia independente das construes que o originam e envolvem. (CULLEN, 1996, p. 9)

    De acordo com Cullen, a relao entre o transeunte e o tecido urbano uma experincia de percepo paisagstica e explorao dos meandros da cidade, descobrindo no interior dessa trama uma vida que, ao mesmo tempo em que transcende construo, molda a paisagem urbana. Alm disso, o conjunto urbano se constitui por locais onde h reunies de pessoas. Um edifcio isolado no meio do campo nos d a sensao de estarmos diante de uma obra de arquitetura, mas um

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    grupo de construes, imediatamente nos d a possibilidade de criar uma arte diferente, ou seja, o desenho que a cidade toma com seu crescimento. As edificaes isoladamente vo se agrupando e esse agrupamento d forma a conjuntos urbanos, e, periodicamente, intervenes so feitas nesses conjuntos, de forma a gerar um excedente de bem-estar e de facilidades que leva a maioria das pessoas a preferirem viver em comunidade a viverem isoladas (CULLEN, 1996. p. 10).

    H uma relao entre a vida na cidade e como se constri essa cidade. Essa relao se d na forma como a cidade cresce, fruto de um aumento no nmero de habitantes bem como um aumento nas atividades exercidas nesse espao. Assim, o crescimento urbano impulsionado por fatores scio-econmicos, e projetado5 de forma a sustentar uma condio de vida favorvel habitao. Nesse ponto, so necessrias aes de planejamento urbano, de forma a organizar a cidade de acordo com as demandas da comunidade que ali reside.

    O patrimnio edificado produto e, ao mesmo tempo, produtor cultural, afinal, toda edificao construda de acordo com a tcnica e os materiais disponveis em determinada poca, considerando tambm as manifestaes estticas dos autores. No entanto, a edificao marca pela sua esttica e, ou pelo seu uso, o local onde est inserida, e rene pessoas e atividades, criando situaes de vivncia peculiar quele local.

    Essa relao simples no contexto geral, mas no estudo histrico e antropolgico dessas relaes esto envolvidos inmeros aspectos culturais, afinal, o edifcio no objeto de estudo exclusivo do arquiteto, um documento para inmeras possibilidades de pesquisa.

    O bairro Centro de Joinville, independente de sua esttica arquitetnica, foi moldado por edificaes e, consequentemente, os locais mais movimentados dessa regio so justamente onde os exemplares de edificaes consideradas patrimnios culturais6 so abundantes, pois alm do cenrio, historicamente foi ali que a

    5 Projetado no apenas nos parmetros de desenho urbano, mas na elaborao de diretrizes e leis

    que regulamentam a utilizao do espao urbano. 6 Considerar a amostragem da listagem de UIPs do Bairro Centro, encontrada no Anexo A desta

    dissertao.

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    urbanizao de forma concentrada iniciou. importante ter em vista que a ocupao da cidade se deu simultaneamente na regio central e nos arredores, em propriedades rurais, que so igualmente importantes, uma vez que os caminhos abertos quela poca so os eixos estruturantes das mais importantes vias de circulao da cidade, que poderemos ver no captulo 2. No entanto, o foco da dissertao o bairro Centro da cidade, que alm de sofrer uma grande presso antrpica, rene um nmero maior de edificaes em um espao menor do tecido urbano.

    O contedo do captulo 1 contribui para a discusso acerca do patrimnio cultural de uma cidade que foi colonizada por povos europeus a partir de 1851 com indcios de ocupao colonial lusitana anterior a esse perodo, sinais de ocupao indgena e, ainda antes, como pode ser observado em vrios pontos da cidade, ocupao pr-histrica de sambaquianos7.

    No captulo 2 temos o levantamento do contexto geral e atual do municpio, essencial para entendermos o crescimento da cidade. Normalmente esses dados so utilizados de forma a ressaltar as aes positivas realizadas ao longo do tempo, mas o fundamental a percepo e a sensibilidade para corrigir os aspectos negativos desse crescimento.

    Na primeira metade desse captulo, descrita a situao geogrfica da cidade, tanto na insero regional quanto no aspecto ambiental. Essa leitura importante no momento em que se visualiza toda a cidade de Joinville moldurada por uma grande rea de Mata Atlntica a oeste e pela Baa da Babitonga e uma grande rea de manguezal a leste. Essa grande moldura verde da cidade importante no cenrio urbano e tambm como condicionante climtica. Esses fatores influem na cultura da cidade e so perceptveis desde a forma como se construam as casas at nas atividades rurais propcias para a regio. Todo esse conjunto interage com as cidades vizinhas, que tm suas atividades citadinas relacionadas a um contexto regional do qual Joinville a cidade polo, e tem em suas obrigaes

    7 A distncia temporal entre os sambaquianos, os ndios e os colonizadores muito grande para se

    considerar uma influncia cultural, no entanto, seus vestgios marcam forte presena na paisagem urbana de Joinville. Alm de servir por muito tempo de matria prima para construo de inmeras edificaes na cidade, bem como pavimentao de ruas, os sambaquis tambm geram conhecimento cientfico, tornando a cidade de Joinville referncia em estudos arqueolgicos.

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    absorver a demanda dessas cidades vizinhas, tanto nas questes de mobilidade, trabalho e emprego, mas, sobretudo, nas questes de sade e educao.

    Essa contextualizao auxilia na compreenso de como o crescimento horizontal nas periferias pode prejudicar, no sentido de oferecer risco envolvendo questes de preservao do ambiente natural, ou contribuir na conurbao com cidades vizinhas na questo de integrao regional.

    Na segunda metade do captulo so compilados dados scio-econmicos da cidade, de forma a se compreender melhor como se constitui a sociedade, e como esses parmetros podem influenciar nas aes de preservao do patrimnio cultural edificado. Da mesma forma, busca-se entender como a atividade econmica da cidade se constitui, e de que forma essa atividade poder se adequar ao espao urbano. Partindo do princpio de que as grandes atividades econmicas da cidade so basicamente industriais e de servios, podemos entender e sugerir as formas de ocupao dessas atividades de forma a propiciar ao espao central da cidade uma ambincia mais adequada para a preservao do patrimnio cultural.

    Dando sequncia dissertao, o Captulo 3 trar uma discusso que contextualiza o desenvolvimento urbano com a histria da instalao da Colnia Dona Francisca e com alguns pontos especficos da histria de Joinville que resultam na construo do patrimnio cultural edificado da cidade. Dessa forma, podemos buscar indcios que permitam aprofundar alguns aspectos acerca do desenvolvimento urbano e a relao das edificaes com o local onde se encontram, possibilitando uma melhor leitura da cidade atual, bem como aspectos sobre a colonizao do espao e aspectos sociais histricos, afinal, em Joinville as polticas culturais, aparentemente, tendem a concentrar as aes nas manifestaes oriundas da cultura germnica, mas no podemos esquecer que a prpria cultura alem se funde, em muitos aspectos, com a cultura brasileira. Dessa forma:

    Se quisermos lanar novos alicerces para a vida urbana, cumpre-nos compreender a natureza histrica da cidade e distinguir, entre as suas funes originais, aquelas que dela emergiram e aquelas que podem ser ainda invocadas. (MUMFORD, 1998, p. 9)

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    Aplicando esse conceito de Mumford, entende-se que a natureza histrica de Joinville receber pessoas, pois constantemente est passando por movimentos diferentes de imigrao ou migrao. Esse processo se d pela situao de cidade de trabalho, visto que o processo de industrializao e agricultura esteve presente no desenvolvimento da cidade, desde o seu princpio. Esse fato demonstra que a cidade foi construda por vrias mos que formam uma cultura joinvilense, com traos de diversas etnias, onde a germnica uma forte influncia, mas no a nica.

    Dessa forma, ao mesmo tempo em que a cidade foi o lar de culturas antepassadas - que marcaram, no seu tecido urbano, edificaes, stios arqueolgicos e paisagens buclicas o lar das geraes atuais e futuras, formada por vrias influncias culturais, bem como atividades relacionadas ao crescimento da cidade, trazendo novas demandas como habitao, lazer, comrcio, sistema virio entre outras.

    No captulo 4 feito um levantamento a respeito das polticas pblicas para preservao do patrimnio cultural, acompanhado de uma leitura crtica a respeito das leis que regem o assunto no municpio. Esse fator muito importante, pois toda ao pblica pautada por legislao especfica, portanto, o conhecimento das leis existentes, suas qualidades e pontos falhos se tornam diretrizes para a criao de leis que complementem a preservao do patrimnio cultural

    A discusso sobre leis e projetos de lei ainda no aprovados, ser enunciada no captulo 5, que trata do diagnstico do patrimnio cultural de Joinville.

    Ainda no Captulo 4 desta dissertao, traado um panorama da situao atual, com dados quantitativos, dos imveis cadastrados como UIPs (Unidades de Interesse de Preservao) e como esses exemplares se distribuem no tecido urbano. Essa distribuio ser demonstrada em um mapa, com a marcao de cada unidade, dentro do espao foco desta dissertao, o centro da cidade. Diante desse mapeamento, surgem os stios e os eixos para preservao, que se constituem pela maior incidncia dos exemplares em determinado local, bem como a contextualizao das caractersticas histricas dos eixos. Essa viso de stios e

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    eixos vai ao encontro da discusso atual sobre o patrimnio, como se refere CHOAY:

    O Patrimnio no se limita mais aos edifcios individuais; ele agora compreende os aglomerados de edificaes e a malha urbana: aglomerados de casas e bairros, aldeias, cidades inteiras e mesmo conjuntos de cidades. (CHOAY, 2001, p. 13)

    Uma informao muito importante, que muitas vezes passa despercebida nas discusses acerca do patrimnio cultural de Joinville, o zoneamento da cidade. Afinal, esse zoneamento estabelece os limites construtivos do cenrio onde se encontram as edificaes histricas, sobretudo nos terrenos livres e nos imveis que no so considerados patrimnios culturais edificados. Dessa forma, a relao dos stios e eixos com o zoneamento proposto para a regio um tema discutido nesta dissertao, no captulo 5, de forma a construir a idia do patrimnio cultural edificado como conjunto de edificaes, e no edificaes isoladas belas ou monumentais.

    Todas as edificaes tm uma importncia considervel na formao da cidade, mas no necessariamente, remetem idia herica das edificaes ligadas a fatos, alguns fictcios8, conhecidos da colonizao de Joinville, portanto, devem ter o mesmo cuidado para a sua preservao, que no envolve apenas a preservao da edificao em si, mas de todo um conjunto que propicia uma paisagem urbana adequada preservao desses exemplares.

    O Patrimnio a ser preservado no constitui um elenco de artefatos homogneos e independentes entre si (justamente aqueles que anteriormente tinham valor de modelo: os monumentos e as obras de arte); pelo contrrio, um sistema de artefatos heterogneos e ligados entre si, que no seu conjunto formam o ambiente vital de pocas passadas, com as quais perdemos o contato espontneo habitual. (BENEVOLO, 1991, p. 141)

    8 O Museu Nacional de Colonizao conhecido tambm como Palcio dos Prncipes, no entanto, o

    prncipe de Joinville nunca esteve em Joinville

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    Benevolo revela que no cabe mais a idia de preservao ligada ao modelo esttico, ou herico, o qual sempre foi representado, pois essas informaes nos dizem pouco sobre o passado de nossas cidades, nos dizem mais sobre nossa arte ou sobre nossos heris, isso porque a cidade um conjunto heterogneo, que envolve diversos fatores desde estticos e histricos at sociais e ambientais. Esse conjunto de informaes o que constri a cidade real, a cidade em que vivemos hoje.

    O bairro Centro da cidade alvo de muitos projetos de infra-estrutura urbana, como reformas de praas e reestruturao de sistema virio. As obras previstas para o sistema virio devem constar no diagnstico, pois muitas delas atropelam as edificaes, ou seja, foram projetadas sobre o espao considerado como patrimnio cultural. claro que essas intervenes tambm tm sua importncia e esse mapeamento, com a sobreposio das informaes, indicam a necessidade de uma reestruturao desses projetos. Sobre o local onde esto previstos esses projetos, as novas edificaes tm que respeitar recuos maiores que o padro e, em sua maioria, as edificaes consideradas patrimnio cultural esto construdas no alinhamento da calada. Caso esses projetos virios no se concretizem, essa diferenciao de recuos possibilita uma soluo interessante para viabilizar a coexistncia de edificaes histricas normalmente de, no mximo, trs pavimentos com prdios mais altos.

    preciso entender como se deu a construo do espao urbano para avaliar, dentre as edificaes remanescentes, o que pode ser considerado patrimnio cultural da forma segura e mais definitiva possvel, tanto para assegurar a preservao desse patrimnio quanto para possibilitar o crescimento da cidade, o que implicar na construo dos futuros patrimnios culturais.

    O teor cauteloso do pargrafo anterior explicado pelo fato de o poder pblico utilizar um cadastro9 de exemplares como mecanismo para preservao da

    9 Essa catalogao, conhecida como listagem de UIPs um estudo pouco aprofundado, com uma

    lista de imveis com fotos, onde foram catalogadas inmeras edificaes antigas da cidade. Esse catlogo no tem instrumento legal de preservao. Cf. Anexo A

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    cidade, onde os processos para demolir ou reformar imveis dessa lista so retidos at que o poder pblico decida se esse imvel ser preservado de fato ou no.

    Diante do presente conflito, a preocupao do cidado em ter o imvel tombado, bem como a falta de informao, a falta de incentivos para a preservao e a falta de compreenso sobre a funo social dessa propriedade, resulta, muitas vezes, em atitudes extremas como incndios criminosos, abandono do imvel, ou mesmo demolies e reformas irregulares, pois, para os imveis que no so tombados, as penalidades so brandas, com multas e embargos pouco significativos se comparados s penalidades previstas nas leis de tombamento.

    Todo o levantamento de dados descrito at aqui embasa a discusso do captulo 5 da dissertao, bem como o diagnstico do patrimnio cultural edificado de Joinville, uma anlise crtica do estado atual dos sintomas apresentados pelo contexto da preservao do seu patrimnio cultural, revelando os provveis equvocos das polticas de preservao, as dificuldades em se manter esse patrimnio e, ao mesmo tempo, as facilidades em se criar dispositivos legais para a preservao.

    A inteno do diagnstico , ao descrever os problemas enfrentados pelo patrimnio cultural de Joinville, direcionar aes de preservao no sentido de resolver esses problemas de forma coerente e segura, levando em conta as peculiaridades. Ser feita uma discusso das diretrizes para preservao constante das leis federais sobre o assunto que definem o resultado final da inteno de se preservar a memria de uma cidade.

    Esse diagnstico possibilitar o Captulo 6, o espao ideal para sugerir diretrizes, aes e estratgias que podero contribuir para uma discusso mais ampla, tornando esta dissertao um instrumento de colaborao nas discusses sobre o patrimnio cultural da cidade, que no cabe apenas aos tcnicos, tericos e polticos, mas a toda comunidade de Joinville.

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    1. Cultura e patrimnio

    O objeto do diagnstico proposto nesta dissertao so as edificaes e, sobretudo, o desenho urbano da rea central da cidade de Joinville, localizada ao nordeste do estado de Santa Catarina. A cidade tem uma caracterstica interessante, desde sua ocupao fsica num territrio entre a Serra do Mar e a Baa da Babitonga, em reas predominantemente alagadias, com grande incidncia de manguezais e vrzeas.

    A ocupao humana no territrio tem indcios na pr-histria que podem ser constatadas pelos sambaquis, construes compostas de vestgios daquela ocupao, onde eram acumuladas conchas de moluscos coletados, formando grandes morros de formato variado, mas predominantemente circular e bem particular. O territrio foi ocupado tambm por aldeias indgenas e por comunidades aorianas, como a do Morro do Amaral. O territrio especfico da fundao da cidade era particular, e sua ocupao especificamente urbana se d no momento da colonizao em 1851 por imigrantes alemes, suos e de outras localidades, especialmente do norte da Europa.

    Atualmente a cidade composta por uma populao multi tnica, forte atividade econmica e possui um grande nmero de edificaes histricas, que sofrem risco diante do crescimento urbano. O tecido urbano mantm muitas caractersticas de seus caminhos originais, no entanto, estar sempre suscetvel s alteraes que se fazem necessrias para comportar a demanda crescente de automveis. Todo esse cenrio contribui para uma situao de presso ao patrimnio cultural edificado remanescente, pois as demandas e as consequentes solues causadas pelo crescimento urbano so fatores perceptveis pela comunidade, que considera apenas os aspectos histricos, estticos e as condies de conservao do imvel. Ora, os imveis mal conservados devem ser restaurados, ou seja, a eles devem ser direcionados maiores recursos, mas esse fato colocado como agravante para a preservao, sugerindo a abertura do caminho a novas

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    edificaes, sem considerar a possibilidade de conciliao ou preservao integral do bem. Assim, o entendimento de patrimnio cultural edificado est muito longe da percepo da comunidade em geral.

    A idia de patrimnio cultural est muito ligada sua classificao, dentro de uma lgica baseada na concepo da criao do SPHAN em 193710, que classifica o patrimnio como histrico ou artstico, o que formou uma impresso que perdura desde ento de um valor histrico ou artstico para que um imvel seja merecedor de preservao especial. Mas dentro do conceito difundido atualmente de patrimnio cultural, essa forma de preservao no contempla todos os aspectos necessrios desses prprios bens, e exclui tantos outros das polticas de preservao.

    Para uma melhor compreenso, preciso perceber que a relao entre patrimnio histrico e patrimnio cultural estreita, uma vez que a cultura pode ser entendida como algo que se transmite durante geraes, ou seja, em um tempo histrico:

    Uma cultura avaliada no tempo e se insere no processo histrico no s pela diversidade dos elementos que a constituem, ou pela quantidade de representaes que dela emergem, mas, sobretudo por sua continuidade. Essa continuidade comporta modificaes e alteraes num processo aberto e flexvel de constante realimentao, o que garante a uma cultura sua sobrevivncia. (MAGALHES, 1985. p.44)

    De acordo com o autor, a leitura temporal da cultura se d na forma como ela constri suas representaes, no em um tempo cronolgico, como o tempo dos acontecimentos, mas num tempo absorvido pelas geraes, num processo de continuidade, que no pode ser considerado de forma linear, pois dentro desse desenvolvimento, ocorrem novas transformaes, fatores da prpria convivncia ou da troca com outras culturas que so interpretadas e assimiladas. Esse processo dificulta o estabelecimento de uma metodologia para avaliao acerca da transformao cultural.

    10 Criado pela Lei n 378 de 13 de janeiro de 1937, captulo III, seo III, artigo 46 onde diz que fica

    criado o Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, com a finalidade de promover, em todo o pas e de modo permanente, a conservao, o enriquecimento e o conhecimento do patrimnio histrico e artstico nacional.

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    Podemos analisar os feitos do homem, mas a relao que estabelece com o tempo e o espao, alm da relao com outras sociedades e tambm com a natureza - que se torna o local da repetio, do ciclo, da causa e efeito se d no momento em que a cultura se diferencia pela vontade do homem na transformao racional, interferindo no processo de uma causa para se obter um efeito desejado, alterando o ciclo natural das coisas, marcando seu prprio tempo. Cultura, sob o ponto de vista histrico, passa a ser a relao das sociedades humanas com o tempo e no tempo.

    Da mesma forma que o processo natural no se enquadra na curta existncia do homem sobre a terra, o desenvolvimento cultural no pode ser observado por uma, ou duas geraes. Quando tratamos a questo cultural, nos referimos memria, e no necessariamente aos fatos.

    [...] a crise da memria,..., cria uma situao problemtica no que diz respeito documentao e prtica da histria. [...] se conclui a necessidade de historicizar a memria (e, portanto, multiplicar as contribuies que se insiram numa linha de histria da memria). Necessidade, tambm, de estreitar a solidariedade do trabalho documental (em todas as suas instncias) e da produo do conhecimento histrico. (MENESES, 1999. p. 27)

    Meneses mostra que os estudos culturais por observaes antropolgicas, pesquisas histricas, arqueolgicas, prospeces arquitetnicas e urbansticas, so a solidariedade a que se refere, ou seja, indica que a construo de uma linguagem histrica na cultura algo que transcende s titulaes acadmicas, e rompem com a idia da histria ligada coleo de fatos.

    Esses conceitos vo ao encontro da crtica de Zanirato e Ribeiro, histria pautada nas mincias dos grandes acontecimentos, capazes de mostrar a evoluo das aes humanas, seu aprimoramento e seu caminhar em direo civilizao, ao progresso (2006, p. 253), afinal, inmeros agentes, imensurveis apenas pelos fatos e documentos, contriburam para o acontecimento dos fatos histricos. Assim, refora a necessidade de uma viso ampla, mais adequada aos conceitos que envolvem a palavra cultura, que, segundo Eagleton compreende uma tenso entre fazer e ser feito, racionalidade e espontaneidade (2005, p. 14). Algo moldado pela racionalidade humana em conjunto com a natureza, seja ela do ambiente no qual

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    vivemos ou mesmo a prpria natureza humana, uma relao que permite, ento, os fatos de acontecerem. O autor acredita que cultura indica que h algo faltando na natureza, ou seja, se existe uma histria e uma poltica ocultas na palavra cultura, h tambm uma teologia (Id, Ibid., p. 16). Percebe-se que, conforme se aprofunda o tema, inmeros fatores se mostram determinantes na construo conceitual de cultura, justificando a razo pela qual essa temtica pode ser estudada de forma ampla, ou seja, no apenas na viso do arquiteto ou do historiador como normalmente ocorre nas organizaes polticas, responsveis pelas diretrizes acerca do tema perante a sociedade11.

    Podemos ento considerar, que os fatos nos levam a novas informaes, pois ocorrem diariamente, numa dinmica de vivncia da comunidade. Podem indicar aspectos culturais, mas no podem ser considerados como a prpria leitura de cultura, como no trecho a seguir:

    Pode-se mesmo afirmar que, no processo de evoluo de uma cultura, nada existe propriamente de novo. O novo apenas uma forma transformada do passado, enriquecida na continuidade do processo, ou novamente revelada, de um repertrio latente. Na verdade, os elementos so sempre os mesmos; apenas a viso pode ser enriquecida por novas incidncias de luz nas diversas faces do mesmo cristal. [...] O tempo cultural no cronolgico. Coisas do passado podem, de repente, tornar-se altamente significativas para o presente e estimulantes do futuro. (MAGALHES, 1985. p. 45 e 67)

    Magalhes confirma o raciocnio estabelecido at este momento, inviabilizando a leitura histrica de um povo como nica traduo de sua cultura, revelando que a dinmica cultural se desenvolve por momentos, assim como observamos na arte, a alternncia entre momentos racionais e momentos romnticos. Essa discusso vlida para uma situao muito comum quando falamos em preservao de patrimnio cultural em Joinville. Na minha experincia com o atendimento ao pblico na Coordenao de Patrimnio Cultural, constantemente ouvia contestaes sobre um tombamento com argumentos do tipo: Essa casa nem to velha... Como pudemos perceber na discusso anterior, o

    11 Esta discusso complexa, pois tanto a arquitetura, quanto a histria como todas as cincias,

    abordam atualmente noes multidisciplinares, no entanto, a noo do que patrimnio cultural, sobretudo pela sociedade em geral, est muito ligada quela idia de histria dos fatos notveis que so criticadas nesta dissertao.

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    tempo no fundamental, afinal, a urbanizao de Joinville data de cento e sessenta anos. Nessa leitura, pouqussimos exemplares seriam preservados se considerssemos uma idade configurada por uma gerao diferente. Dentro do contexto abordado pelos autores, toda edificao pode ser considerada relevante para a histria documental.

    Outro fator nessa experincia a qualidade esttica das edificaes, como se apenas as belas edificaes merecessem ser preservadas. Para a compreenso dessas constataes, voltamos a falar dos conceitos iniciais de preservao patrimonial no Brasil. A criao do SPHAN, bem como a criao do decreto n 25 de 1937, serviu como referncia para a pesquisa e preservao do patrimnio cultural em todo o pas durante muito tempo12. Esse decreto institui o patrimnio como Patrimnio Histrico e Artstico Nacional13. Assim prevalecendo a idia relacionada, e discutida anteriormente, ao histrico, ao artstico, e no campo das artes, com grande influncia de uma linha artstica ainda pautada nas obras do sculo XIX para trs, pois o modernismo do final do sculo XIX e incio do sculo XX era um fato contemporneo ao da criao da lei em 1937. Para exemplificar, a promulgao ocorreu 15 anos aps a semana de arte moderna de 22, ou seja, as novas correntes artsticas faziam parte de uma vanguarda, sobretudo no Brasil. Importante lembrar que a criao do SPHAN bem como o decreto 25 de 1937, e tambm a carta de Atenas de 193114 foram concebidas por um grupo de intelectuais modernistas, que consideravam importante a preservao da arte do passado como forma de viabilizar o traado de uma arte totalmente inusitada, assim, a leitura artstica do patrimnio passa a idia de que:

    [...] a arte (perodo anterior ao sculo XX) era concebida a partir de critrios que priorizam a beleza plstica, as formas artsticas. Seguindo esses critrios, um bem poderia ser considerado um patrimnio desde que dotado de valor histrico e artstico que explicasse a importncia para o

    12 Joinville decretou sua lei de preservao do patrimnio apenas em 1980, no mesmo ano em que foi

    aprovada a lei estadual, ou seja, 43 anos aps o Decreto n 25 de 1937, em esfera federal. 13

    De acordo com o decreto n25 de 30 de novembro de 1937, artigo 1: Constitui o patrimnio histrico e artstico nacional o conjunto de bens mveis e imveis no Pas e cuja conservao seja de interesse pblico, quer por sua vinculao a fatos memorveis da histria do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueolgico ou etnogrfico, bibliogrfico ou artstico. 14

    A carta de Atenas de 1931 estabelecia normas para se preservar os monumentos histricos frente expanso das cidades, bem como metodologias de restaurao, conservao e utilizao desses monumentos. O intuito era a preservao do cenrio histrico das cidades, destrudos pela 1 guerra mundial e ameaados por um novo movimento na arquitetura e na engenharia que viabilizavam a construo de edifcios cada vez maiores, com uma esttica totalmente diferente de qualquer outro movimento artstico na poca.

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    desenvolvimento da arte ou da histria. (ZANIRATO E RIBEIRO, 2006. p. 253)

    Os autores, em sua crtica, descrevem os argumentos das polticas de preservao patrimonial, que exalta a importncia do bem na construo de uma identidade nacional, sugerindo seu desenvolvimento, seu progresso, atravs da arte e da histria. Essa viso pode fazer parte de uma poltica de preservao cultural e da memria, mas no pode ser o ponto central, pois essas idias so monumentalistas e escondem fragilidades histricas que tambm interferem no desenvolvimento social. Uma viso que busca classificar apenas elementos de grande beleza ou ligados a fatos histricos, contribui para uma histria que enaltece os heris nacionais, deixando de lado a organizao social que viabilizou os grandes acontecimentos histricos. Essa viso gerada pela redao das leis, no representa as prprias aes desenvolvidas pelo SPHAN.

    Essa idia monumentalista incompleta, pois, da mesma forma que os fatos histricos podem no representar de forma ampla a cultura de um povo, a arte no tem o compromisso com a cultura desse povo. A relao da arte com a cultura se d no momento em que o ato de produzir arte cultural15 e no o resultado em si, pois a arte lanada para a interpretao individual de cada um, e no necessariamente deve agradar ao indivduo, muito pelo contrrio, pode agredir moralmente esse indivduo.

    A produo artstica inicia-se mediante imagens que servem ao culto. Pode-se admitir que a prpria presena dessas imagens tenha mais importncia do que o fato de serem vistas. O alce que o homem figura sobre as paredes de uma gruta na idade da pedra consiste num instrumento mgico. Ele est, sem dvida, exposto aos olhos de outros homens, porm antes de tudo aos espritos que ele se enderea. (BENJAMIN, 1978. p.12)

    Benjamin nos remete idia de que a arte uma forma de comunicao, que utiliza uma linguagem, mas no necessariamente a linguagem estabelecida dos cdigos de tica dos homens. Essa linguagem algo abstrato, que sai do interior do artista, buscando uma comunicao com o semelhante. Diante de uma obra de arte, temos inmeras interpretaes, seja um simples retrato pintado ou um quadro

    15 Da mesma forma que a produo artstica algo observado em todas as culturas, as tcnicas, as

    observaes, os anseios do artista sofrem influncia de seu repertrio cultural.

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    abstrato. Essa interpretao o dilogo proposto pelo artista, um dilogo mudo da imagem e da sensibilidade do espectador. o que Benjamin considera como linguagem espiritual, fruto de um imaginrio e, esse imaginrio presente nas artes, tambm est presente no espao urbano. a idia de cidades invisveis de Lewis Mumford16, quando relata a teia de infra-estrutura invisvel que d condies ao homem de se conectar em um espao metafsico. Nesse raciocnio, podemos considerar tambm o imaginrio urbano, pois certos locais carregam fortes identidades e contribuem em atividades de sociabilidade, por grupos especficos. So os locais de encontro dos artistas, dos skatistas, dos idosos, entre outros. A cidade de Joinville repleta desses locais, desde as sociedades tradicionais germnicas esportivas como clubes de tiro, de bocha, at mesmo as praas, onde se encontram colecionadores de carros, jogadores de domin.

    Esse imaginrio urbano acaba por interferir na produo artstica, desde determinada escolha esttica17 at a formao do intelecto e da personalidade do artista. No entanto, a arte no tem o mesmo compromisso que a cultura, haja visto que, quando viajamos ao exterior e encontramos um brasileiro, sentimo-nos vontade, com uma sensao de saudosismo. No necessariamente nos sentiremos assim diante de uma obra de arte concreta brasileira exposta em algum museu europeu, pois a arte diferente do artesanato, ou do souvenir, ela uma representao pessoal do artista diante de seu imaginrio.

    O que se deve entender por imaginrio em arte ou arquitetura? Seguramente no uma forma de alucinao, fantasia ou irrealismo. Num conceito comum e vulgar da palavra, imaginrio sem dvida tudo isso (alm de produto dos sonhos, fico, etc.), com um acrscimo especfico: Banalidade, coisa desprezvel e mesmo perniciosa. (COELHO NETTO, 1999, p. 124)

    As palavras de Coelho Netto auxiliam na construo de uma idia que vai contra a vinculao da arte diretamente com o patrimnio cultural. A arte no busca necessariamente o belo, portanto, podemos, sim, considerar as obras de arte como patrimnio cultural, mas no podemos cobrar um rigor esttico como argumento

    16 Cf. MUMFORD, Lewis. A cidade na histria: suas origens, transformaes e perspectivas. So

    Paulo: Martins Fontes. 1998. p. 606 a 611. 17

    Sobretudo nos casos de edificaes arquitetnicas.

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    central para a preservao desse patrimnio. Para exemplificar, recorremos anlise que Benjamin faz sobre a arte do movimento dadasta18:

    O intento era, antes de tudo, chocar a opinio pblica. De espetculo atraente para o olho e de sonoridade sedutora para o ouvido, a obra de arte, mediante o dadasmo, transformou-se em choque. Ela feria o espectador ou o ouvinte; adquiriu poder traumatizante. (BENJAMIN, 1978. p. 24)

    A arte, como se pode perceber em Benjamin e Coelho Netto, pode revelar as partes desprezveis do comportamento humano, ou mesmo as incertezas e dvidas, contrariando vrios aspectos culturais, sobretudo morais e ticos, que ordenam a sociedade. A arte a liberdade perdida com a cultura, o trao mais prximo do homem animal, ali onde os instintos adormecidos tm espao.

    Retomando o raciocnio, a partir do momento em que consideramos o patrimnio excepcional pelo seu valor histrico e, ou, artstico, transformamos esse patrimnio em um documento, ou seja, sua insero no contexto urbano passa a ter um compromisso muito grande. Quando consideramos os aspectos culturais, podemos dizer que o uso mais importante, pois uma edificao foi construda para ser utilizada.

    O trecho a seguir complementa esse raciocnio:

    H tambm que se considerar que a obra ou o objeto elevado condio de bem patrimonial era isolado do uso e disponvel apenas para a contemplao. O mesmo entendimento se aplicava aos espaos urbanos portadores de uma arquitetura considerada artstica, vistos como monumentos histricos que no poderiam ser utilizados, nem mesmo para a habitao. A cidade histrica destinava-se a uma funo propedutica, por ser testemunha das aes do homem no passado, e assim buscava-se preservar os conjuntos urbanos antigos como se conservam os objetos em um museu. (ZANIRATO E RIBEIRO, 2006, p. 253)

    Percebemos que o patrimnio cultural edificado algo que necessita de uma abordagem diferente, que respeite todos os aspectos que tornam um exemplar significativo, mas que, ao mesmo tempo, se insira na paisagem urbana, no apenas visualmente, mas como um objeto de uso na cidade, que seja vivido e que revele,

    18 Movimento artstico que propunha uma arte solta das amarras racionalistas, com combinao de

    elementos ao acaso, ou de acordo com a espontaneidade psquica. O Dadasmo defendia o absurdo, a incoerncia, a desordem, o caos, ou seja, era a negao total da cultura.

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    tanto na prosperidade, quanto na adversidade, sua relao mais fiel com a sociedade em que se insere. No pode ser um documento que se deve manter intacto para o estudo, ou da obra de arte que se deve manter preservada para a apreciao do pblico. A edificao deve ser vivida, seno perde o sentido para a qual foi construda. O sentido que faz, da arquitetura, uma arte diferenciada. A partir da, o entendimento acerca do tema patrimnio cultural se torna muito mais complexo do que parece.

    Fazendo uma anlise mais primria, a palavra patrimnio vem do latim patrimonium, que significa herana, bens de famlia, que associa uma viso mais individualista da questo, afinal, os laos entre as pessoas e os patrimnios num sentido mais social, no so to fortes, pois a noo de herana sempre remete a uma idia mais familiar. O termo cultural qualifica a relao desse patrimnio, no contexto social, como uma herana de uma coletividade antepassada que levou determinada sociedade a se organizar de determinada maneira. Cultura j traz dentro de si uma questo de herana, pois qualquer atividade humana realizada por possuirmos um precedente intelectual que nos permite realizar algum tipo de trabalho.

    Vinda do verbo latino colere, que significa cultivar, criar, tomar conta e cuidar, cultura significava o cuidado do homem com a natureza. Donde: agricultura. Significava, tambm, cuidado dos homens com os deuses. Donde: culto. Significava ainda o cuidado com a alma e o corpo das crianas, com sua educao e sua formao. Donde: puericultura. [...]. A cultura era, assim, a interveno deliberada e voluntria dos homens sobre a natureza de algum para torn-la conforme aos valores de sua sociedade. (CHAUI, 2006, p. 105)

    Marilena Chaui tem um raciocnio interessante sobre o desenvolvimento da idia de cultura que demonstra, num primeiro momento, uma relao entre a capacidade do homem de criar mecanismos para transformar ou dominar a natureza em seu favor e, ainda, criar mecanismos para transmitir tal conhecimento de gerao em gerao de forma a garantir a permanncia de sua espcie. No entanto, essa concepo no apenas evolucionista19, mas moral, tica e poltica. Esses fatos, segundo Chaui, so fundamentais, pois a moral baseava-se na forma de viver os

    19 Isso nos colocaria em condies semelhantes a de um animal que consegue se perpetuar por se

    adaptar ao ambiente no qual vive. Para Chaui tem algo que difere os homens dos animais, muito alm das questes de inteligncia, raciocnio ou mesmo adaptaes corpreas. a questo moral, tica e poltica, a forma do homem de criar mecanismos de domar seu comportamento animal.

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    costumes de seu grupo, a tica dava-se no aperfeioamento do comportamento humano para se enquadrar na sociedade, dominando seus instintos naturais e a poltica, no sentido de organizar esse grupo com a criao de hierarquias, regras e arbitragem dos conflitos. Junto a esses fatores, temos uma relao na interao do homem com a natureza que resulta no ambiente urbano, ou seja, as cidades.

    Para estabelecer uma relao com o cenrio de Joinville, podemos observar o trabalho dos colonos. Num primeiro momento, na construo da colnia e na produo agrcola, para se adaptar ao espao, modificando a natureza para abrigar suas atividades, utilizando-se dos recursos naturais para construo de suas moradias e adaptando-se ao clima, estabelecendo uma produo agrcola para sua sobrevivncia. Num segundo momento, nos aspectos da convivncia entre esses colonos, seguindo uma cultura predominantemente germnica e protestante.

    Surgiu uma tica econmica especificamente burguesa. Com a conscincia de estar na plenitude da graa de Deus e visivelmente por Ele abenoado, o empreendedor burgus, desde que permanecesse dentro dos limites da correo formal, que sua conduta moral estivesse intacta e que no fosse questionvel o uso que fazia da riqueza, poderia perseguir seus interesses pecunirios o quanto quisesse, e sentir que estava cumprindo um dever com isso. (WEBER, 2001, p. 84.)

    Essa descrio de Weber algo perceptvel em muitas pessoas, sobretudo, as de descendncia protestante. Essas caractersticas contriburam para o desenvolvimento urbano de Joinville, refletindo efeitos, no incio da industrializao da cidade, com indstrias que levavam os nomes das famlias, da forma de aplicao dos recursos e de poupana. Assim, a cultura passa a ter reflexos nos resultados de todo esse conjunto de valores, ou seja, os resultados decorrentes de um ordenamento tico, moral e poltico:

    [...] resultados expressos em obras, feitos, aes e instituies: as artes, as cincias, a filosofia, os ofcios, a religio e o Estado. Na medida em que o pensamento da Ilustrao conserva a idia antiga de que a cultura advento do estado social e da vida poltica, isto , da vita civile, cultura torna-se sinnimo de civilizao [ou mesmo de comunidade], como expresso dos costumes e das instituies enquanto efeitos da formao e da educao dos indivduos, do trabalho e da sociabilidade. (Id. Ibid., p. 106)

    O trecho acima aponta a cultura como o aprimoramento da natureza humana. Dessa forma, no se opunha natureza propriamente dita, mas sim, corrigia um

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    desvio de personalidade animal do homem que inviabilizava o convvio deste em sociedade, como se fosse uma segunda natureza adquirida para aperfeioar a natureza primitiva do homem, fugindo ao processo mecnico de causa e efeito, ou seja, o convvio social dos homens se organiza atravs de um processo de liberdade e razo, ou, de escolhas voluntrias e no instintivas. Essas escolhas voluntrias se do pela vontade, um mpeto humano em realizar coisas que deseja. No entanto, essa vontade s vivel se aceita pelo outro, e esse desejo nem sempre adequado aos costumes sociais, assim, a moral funciona como uma regra para se controlar esse desejo, de forma a se adaptar aos propsitos da vivncia do homem em comunidade.

    [...] h uma regra negativa, a regra da moralidade. Ela no , como seriam as regras do egosta, uma regra instrumental, mas sim uma regra para controlar os objetivos propostos pelo desejo. A segunda tarefa da vontade cuidar para que essa regra limitadora seja sempre obedecida. (SCHNEEWIND, 2001, p. 562)

    O autor, analisando Kant, contribui na discusso de liberdade e razo, sobre os dilemas que passamos por exercer nosso livre arbtrio. Nietzsche observa a moral como o fato orientador de uma tica e de uma organizao poltica, no entanto, atribui a esse fato uma perda da liberdade humana:

    Ora, foi a moral que protegeu a vida do desespero e do salto no nada, naqueles homens e classes que foram violentados e oprimidos por homens: pois a desesperada amargura contra a existncia. A moral tratou os detentores do poder, os violentos, os senhores em geral, como inimigos, contra os quais o homem comum tem de ser defendido, isto , antes de tudo, encorajado, fortalecido. Foi a moral, portanto, que ensinou mais profundamente a odiar e desprezar aquilo que o trao caracterstico fundamental dos dominantes: sua vontade de potncia. [...] O oprimido veria que ele est sobre o mesmo cho que o opressor, que ele no tem nenhuma prerrogativa, nenhuma superioridade hierrquica em relao a este. (NIETZSCHE, 1974, P. 192)

    Assim, no foi a moral que diferenciou o homem no contexto natural, foi essa que criou as condies para que os homens se diferenciassem entre si, no momento em que, sob condies naturais iguais, alguns sobressairiam pela fora ou capacidade de adaptao e, sob os cdices ticos e morais, sobressaem os detentores do poder, ligados riqueza e posio social. Observa-se ento a vontade de potncia de alguns homens em se diferenciar de outros, a mesma vontade que primitivamente fez com que os homens se distinguissem dos animais, a

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    mesma vontade que fez o homem transmitir seus conhecimentos por geraes, de forma a garantir a sobrevivncia de sua espcie. Dessa forma, a vontade demonstrada pela natureza humana, e a potncia pelas condies racionais e fisiolgicas do homem em poder executar suas vontades. Chaui complementa esse raciocnio afirmando que se a natureza o reino da necessidade, a cultura o reino da vontade. (CHAUI, 2006. p. 107) e complementa seu raciocnio afirmando: Cultura , pois, a maneira pela qual os humanos se humanizam e, pelo trabalho, desnaturalizam a natureza por meio de prticas que criam a existncia social, econmica, poltica, religiosa, intelectual e artstica. (Id. Ibid. p.113)

    Esse o sentido de cultura bem apropriado para estudarmos a relao dos homens perante o local onde se instalam, onde formam sua comunidade de acordo com costumes no previamente estabelecidos, mas sim, estabelecidos de forma gradual, aperfeioando cada vez mais o convvio em grupo. Assim, temos a construo da sociedade propriamente dita, donde se estabelecem normas e princpios de uma maioria para viabilizar essa convivncia. Digo isto me referindo cidade de Joinville, pois sabido que os colonos que aqui desembarcaram, vieram de diferentes locais, famlias protestantes e catlicas que tiveram que se adaptar a um local de natureza totalmente diferente dos seus locais de origem para viver em sociedade, o que nos leva a refletir um pouco sobre a identidade dessa comunidade, que a partir dessa confluncia foi reconstituda.

    [...] a identidade cultural de um povo forjada no meio em que se vive, e de que as obras humanas mais significativas obtm parte de sua beleza do lugar onde se encontram instaladas. [...] o patrimnio cultural se convertia no conjunto de elementos naturais ou culturais, materiais ou imateriais, herdados do passado ou criados no presente, no qual um determinado grupo de indivduos reconhece sinais de sua identidade. (ZANIRATO E RIBEIRO, 2006. p. 256)

    Os autores contribuem nesse raciocnio no sentido de que a colnia foi organizada sobre um espao com densa Mata Atlntica, reas extremamente midas, que determinou as atividades, sobretudo as rurais, que foram se desenvolvendo na colnia. Assim, esse lcus passa a compor o patrimnio cultural desse povo, e sua preservao de grande importncia para a compreenso dos aspectos culturais, como complementam os autores

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    O patrimnio natural pode ser definido como uma rea natural apresentando caractersticas singulares que registram eventos do passado e a ocorrncia de espcies endmicas. Nesse caso a sua manuteno relevante por permitir o reconhecimento da histria natural e, tambm, para que se possa analisar as conseqncias que o estilo de vida hegemnico pode causar na dinmica natural do planeta. (Id. Ibid. 2006. p. 256)

    Assim, o aspecto natural fomentou as atividades produtivas e, ao mesmo tempo, moldou o formato da cidade, que foi se desenvolvendo nas reas planas, mais fceis de construir. Aproveitavam as madeiras nativas dos desmatamentos para rea de cultivo como material das primeiras edificaes, mescladas a paredes de taipa, telhados de sap e tijolos, visto que havia uma olaria na regio onde hoje se encontra a cidade de Araquari, de acordo com o mapa de demarcao da colnia de 1846 na Figura 1:

    Fig. 1 Mapa de demarcao da colnia Dona Francisca, em 1846. Fonte: Biblioteca Nacional

    Essa organizao teve contribuio de uma cultura lusitana que j ocupava a regio nessa poca, sobretudo no entorno e em So Francisco do Sul, a quem pertenciam as terras da colnia naquele momento. Percebemos ento que essas identidades foram construdas de acordo com os encontros culturais, com aspectos locais que se diferenciavam das outras regies do Brasil poca.

    A questo da formao da identidade de um povo passa justamente pela ideia da troca e da convivncia entre as diferenas, pois, da mesma maneira que um

    NNNN

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    homem dentro de um grupo espelha suas atitudes em relao a esse grupo, um grupo tnico frente a outro tambm mantm esse tipo de relao. Dufour tem uma percepo interessante sobre o assunto, quando diz:

    O ser humano uma substncia que no recebe a prpria existncia de si, mas de outro, a que sucessivas ontologias atriburam nomes diversos: a Natureza, as Idias, Deus ou... o ser. O ser, qualquer que seja, nunca deixou de encarnar-se na histria humana. (DUFOUR, 2001)

    O ponto de vista de Dufour remete idia de que o homem se identifica perante uma fonte externa, ou seja, credita sua existncia sempre a outra existncia, seja a de outros homens, ou a algo maior, como a natureza, ou Deus. Esse conceito no apenas peculiar ao comportamento do homem perante seus semelhantes, mas tambm, como conceito de sua prpria existncia. Toda a atividade do homem realizada, no apenas para sua prpria sobrevivncia, como tambm de sua espcie, seja num sentido mais restrito ao de sua famlia, ou no sentido de um grupo maior.

    A cultura uma abstrao, um artefato de pensamento por meio do qual se faz economia da extraordinria diversidade que os homens apresentam entre si e com o auxlio do qual se organiza o que os homens tm de semelhante. A cultura tambm o que os distingue das demais formas vivas: a capacidade de diferir de seus coespecficos. (RODRIGUES, 1989, p. 132)

    Rodrigues considera que, apesar de os homens diferirem entre si no contexto de sua vivncia em grupos e subgrupos, mantm uma relao subjetiva de semelhana que ele considera possvel, uma relao diante da cultura. Assim, a cultura diferencia e assemelha os homens, mas, fundamentalmente, difere-os das outras formas de vida. a ideia de organizao das sociedades humanas, no a partir de um instinto animal, mas sim, a regras e significados criados pelos homens.

    [...] o homem um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua anlise; portanto, [entendo a antropologia] no como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa a procura de significado. (GEERTZ. 1978. p. 15)

    Geertz assume que a cultura transcende a vontade humana, no momento em que se torna referencial para a atividade humana, as referidas teias. Um referencial

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    criado por homens, mas no de forma objetiva, e sim subjetiva20. Por isso no busca as leis, mas a interpretao de significados que orientam os homens na convivncia em sociedade. Assim, toda a produo humana sempre est relacionada de forma a manter a existncia humana. Esses fatos levam o homem a viver em sociedade, e consequentemente em cidades, pois a imagem do homem est refletida no prximo.

    O fato de que o homem no pode contar consigo mesmo nem ter f absoluta em si prprio o preo que os seres humanos pagam pela liberdade; e a impossibilidade de permanecerem como senhores nicos do que fazem, de conhecerem as conseqncias de seus atos e de confiarem no futuro o preo que pagam pela pluralidade e pela realidade, pela alegria de conviverem num mundo cuja realidade assegurada a cada um pela presena de todos. (ARENDT, 2008, p. 256)

    Hannah Arendt refora essa ideia, atribuindo liberdade da razo humana a grande causa da subjetividade de nossa existncia, pois, para estabelecermos os parmetros de nossas atitudes, necessitamos da reao de outra pessoa, que concordar ou discordar. Esse jogo o que desenha a realidade criada pelo prprio homem, dentro de seus prprios conceitos, e, dessa forma, surgem as necessidades de se creditar existncia humana, uma fora mstica de sua existncia, como se ele prprio no pudesse se responsabilizar pelas suas obras. Dentro desse conceito, chegamos concluso de que a vida em sociedade requer um grande esforo para ser compreendida, como podemos observar em Da Matta (1987, p. 22):

    [...] os fatos que formam a matria-prima das cincias sociais so, pois, fenmenos complexos, geralmente impossveis de serem reproduzidos, embora possam ser observados. [...] o problema no s o de somente reproduzir e observar o fenmeno, mas substancialmente o de como observ-lo.

    O autor defende que os estudos sobre uma sociedade no podem ser reproduzidos em laboratrio e no podem ser observados com dedues sobre tentativas e erros, mas sim, ele vivido, e suas concluses so interpretadas de acordo com o conhecimento intelectual do pesquisador. Esse estudo no define, de forma imperativa, sua razo, mas deixa o tema aberto para discusses e reinterpretaes, abrindo grande campo para pesquisa. O pesquisador no relata

    20 A forma objetiva expressa nas questes ticas e morais, pelo conjunto de leis formuladas para

    serem seguidas. Essas leis so fruto de uma cultura, mas no a cultura propriamente dita.

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    um documento oficial fechado sobre determinada cultura de determinado povo, mas sim, disponibiliza um relato, que poder ser utilizado por outros pesquisadores que podero tirar concluses iguais ou diferentes.

    Esse fato permite a concluso de que a cultura no fixa, e sim, varivel. Assim, tanto os pesquisadores podem tirar diferentes concluses sobre cultura, uma vez que cada qual interpretar esses smbolos de acordo com seu repertrio cultural21, quanto os prprios integrantes do grupo podero adotar novos smbolos. Esse fato no se restringe apenas a um estudo antropolgico de uma aldeia, mas, numa escala maior, perceptvel nos meios de comunicao da nossa sociedade.

    Cultura, dessa forma, comea a ter sua relao com processo de linguagem entre os homens, no apenas na questo da fala ou da escrita, mas da significao que as atitudes humanas tm sobre o outro. As cincias sociais buscam desvendar esse labirinto que norteia as sociedades humanas, labirinto este que forma as cidades a partir da relao social entre seus habitantes.

    Cultura aqui essencialmente uma questo de idias e valores, uma atitude mental coletiva. As idias, os valores, a cosmologia, a esttica e os princpios morais so expressados por intermdio de smbolos e, portanto, - se o meio a mensagem cultura podia ser descrita como um sistema simblico. (KUPER, 2002, p. 288)

    A cidade um grande conjunto desses smbolos, presentes nos seus monumentos, suas edificaes, na sua estrutura urbana, na forma como funciona essa estrutura, na organizao espacial de pessoas e de lugares para pessoas. Essa compreenso fundamental quando tratamos de patrimnio cultural, pois a cidade e as edificaes22 que a compem so uma forma de linguagem do desenvolvimento das sociedades at os dias de hoje, em especial a joinvilense, sendo assim, documento de estudo social.

    21 claro que os pesquisadores, sobretudo os antroplogos, ao estudar uma comunidade, tentam

    viver ao mximo a experincia, de forma a tentar raciocinar de acordo com o grupo estudado. No entanto, a base terica para se elaborar todo o trabalho, as ferramentas intelectuais e a forma de observar so muito pessoais, normalmente pr-estabelecidas, portanto, por mais fiel que um relato possa parecer, sempre haver a influncia da cultura do pesquisador sobre o assunto. 22

    Especifico as edificaes e a cidade por serem objetos de estudo desta dissertao, mas todas as espcies de manifestaes que possam embasar aspectos culturais de nossa vivncia poderiam ser citados.

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    A ordem da cultura no apenas a dos territrios nos quais foram sedimentadas e cristalizadas formas autctones, ancestrais e tradicionais do ser cultural, mas sim o de universos abertos ressignificao da natureza, de reinvenes de identidades, de hibridaes entre o orgnico, o tecnolgico e o simblico. (LEFF, 2006, p. 411)

    Leff aponta para um processo decorrente do desenvolvimento das sociedades, sobretudo aps os avanos tecnolgicos do sculo XX. Os meios de comunicao, cada vez mais abrangentes, fazem com que diversos grupos compartilhem de idias que influem sobre aspectos da vida das pessoas, tornando a cultura passvel de um processo de hibridao. comum vermos hoje sociedades tradicionais orientais, ou indgenas, utilizando-se de aspectos de vida, forma de se organizar, muito semelhantes s naes ocidentais. Isso ocorre por um processo de mundializao cultural fomentados pelas redes de comunicao, pela arte e, principalmente, pela transnacionalizao das empresas, que, cada vez mais, abandonam a questo da identidade nacional, instalando-se de acordo com fatores econmicos favorveis s suas atividades.

    Uma cultura mundializada corresponde a mudanas de ordem estrutural. Essas transformaes [...] constituem a base material sobre a qual se sustenta sua contemporaneidade (ORTIZ, 1994, p. 22). O autor aponta esse fenmeno como um processo pelo qual estamos passando, ou seja, no temos a dimenso exata do que causar esse processo. O fato que as transformaes as quais se refere causam um processo irreversvel de alterao dos aspectos culturais do local, por exemplo:

    [...] a cultura entendida como o conjunto de valores, saberes e prticas que modulam os estilos de vida e os direitos das comunidades sobre seus territrios tnicos sobre suas prticas sociais e suas instituies para a autogesto de seus recursos esteve excluda dos paradigmas da economia, dos processos de racionalizao social e das polticas de desenvolvimento sustentvel. (LEFF, 2006, p. 420)

    A citao de Leff contribui para a construo de um raciocnio no qual, apesar de essas empresas perderem a relao com os locais originais, trazem dentro de sua prpria cultura organizacional, uma forma de produo, que imposta aos seus trabalhadores, que, por sua vez, acabam adaptando-se s condies de trabalho dessas empresas. Assim, aspectos de uma cultura passam s outras, numa espcie de hibridao cultural.

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    A preservao do patrimnio cultural assume um papel de registro histrico da cultura diante do cenrio apresentado acima, pois essas multinacionais, muitas vezes se adaptam cultura local, mas, na maioria dos casos, imprimem novos conceitos de experincias em outras sedes que alteram os aspectos culturais dentro das prprias comunidades.

    Esse cenrio relevante para a comparao com a cidade de Joinville, que possui uma grande atividade industrial e, ao longo de sua existncia, recebeu muitas indstrias em seu parque fabril. Atualmente, alm de receber empresas multinacionais, muitas de suas prprias empresas tradicionais foram compradas ou associadas a empresas estrangeiras23. Um cenrio como esse recebe influncias tecnolgicas, mas tambm atrai um contingente de pessoas para trabalhar nessas empresas, ou seja, desencadeia um processo de migrao, onde os diferentes aspectos culturais, que so assimilados por pessoas diferentes, criam grupos heterogneos nas suas peculiaridades, mas homogneos num mbito da construo de uma cultura comum.

    Em termos mais prosaicos, a idia que a identidade concretizada por meio de participao na cultura. [...]. A identidade cultural anda de mos dadas com a poltica cultural. Uma pessoa s pode ser livre na arena cultural apropriada, onde seus valores so respeitados. Toda nao, portanto, deve ser independente. Numa sociedade multicultural as diferenas culturais devem ser respeitadas e at mesmo estimuladas. (KUPER, 2002, p. 299)

    O autor indica que todas essas peculiaridades trazem novas formas de organizao social, que, de certa forma, alteram tambm tanto cdigos objetivos de determinada cultura, quanto uma questo mais ampla de tolerncia entre as diferenas. As diferenas devem ser respeitadas no sentido da construo de algo maior, que a convivncia harmoniosa em sociedade. Assim, os homens de hoje passam por um novo processo de resignificao tica, moral e poltica, ou seja, por uma nova construo de sua cultura.

    Relembrar a importncia da continuidade do processo cultural a partir de nossas razes no representa uma aceitao submissa e passiva dos valores do passado, mas a certeza de que esto ali os elementos bsicos

    23Para exemplificar, a fbrica de motores Multibrs que foi comprada pela americana Whirlpool , bem como a empresa de softwares Datasul, incorporada pela Totvs.

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    com que contamos para a conservao de nossa identidade cultural. (MAGALHES, 1985, p. 47)

    A citao fortalece a ideia de que se torna latente a preservao da memria urbana da cidade de Joinville como registro de germanidade, mas tambm, para registrar como se construram as diversas caractersticas em torno de uma identidade da cidade que justamente a relao entre diferentes. Uma relao que, de certa forma, contribuiu para a prosperidade dessa sociedade, afinal [...] cultura no uma questo de raa. Ela aprendida, e no transmitida por genes. (KUPER, 2002, p. 288)

    Atualmente h uma grande discusso sobre cultura e etnia, favorecida pelos estudos acerca de diferenas fisiolgicas entre raas. As peculiaridades fisiolgicas entre as diversas raas podem ser obtidas pelas origens culturais, ou seja, os aspectos culturais de um determinado grupo podem alterar a fisiologia do corpo dessas pessoas, e no a fisiologia ser um fator relevante para o aspecto cultural.

    Alm dos cdigos naturais, provavelmente de base gentica, que organizam as percepes desde os rgos dos sentidos e das estruturas do crtex cerebral, cada cultura de certa forma programa e influencia o registro das impresses sensoriais. Assim, a viso aguda dos ndios das plancies norte-americanas por exemplo no resultaria certamente de uma acuidade visual organicamente superior, mas de uma habilidade culturalmente exigida e estimulada, no sentido de compreender o que significam os movimentos de um animal ou cavaleiro por intermdio da poeira que longe levantam. (RODRIGUES, 1989, p. 133)

    Rodrigues exemplifica perfeitamente esse raciocnio, ressaltando que, muito alm das diferenas fisiolgicas, o que realmente diferencia as etnias o repertrio cultural, que se d numa relao maior da prpria natureza humana em relao natureza do local onde essa etnia vive, retomando assim o raciocnio descrito no incio deste captulo. Dessa forma, por mais diferentes que fossem alemes, suos, portugueses, italianos, negros ou ndios, no so as diferenas isoladas que formam uma cultura, mas o resultado dessa convivncia sobre um mesmo local, que, apesar de suas diferenas, viviam sob um mesmo cdigo tico.

    Uma tica antropocntrica est no cerne das contradies com que nos vemos hoje. E com ela, temos no s uma negao da natureza, mas tambm a negao de homens e mulheres cujas existncias so negadas

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    na mesma medida em que so assimilados natureza, seja no interior de uma mesma formao social so os burros, os pau de arara, os macacos, as por natureza mais frgeis -, seja entre povos diferentes tidos como inferiores, selvagens (da selva, isto , da natureza). (GONALVES, 2002, p. 277)

    O autor contribui para a discusso no sentido de exaltar, sobretudo, o grande fator racional que assombra essa discusso. Fator que passa tambm pela compreenso de um sistema capitalista, onde os que sobressaem so os que prosperam, e, dentro das sociedades capitalistas atuais, sobressair est ligado, em grande parte, a enriquecer. Assim, dentro desse conceito, o homem se contrape natureza e prpria espcie, relacionando ao fato natural, um aspecto pejorativo de falta de racionalidade. Assim, os que no sobressaem nesse cenrio so, na verdade, discriminados perante os outros, e cria-se um ciclo contnuo, ou mesmo um aspecto cultural, de preconceito perante esses indivduos, que sofrem sanes sociais e, consequentemente, so marginalizados. A contradio, que Gonalves considera, se d no momento em que, na natureza, prevaleceria o mais forte ou o melhor adaptado.

    Joinville no apenas a representao de uma cultura fundadora a construo de uma cidade, que superou os planos da colnia, desenvolveu-se, por muito tempo, em um ritmo diferente de sua regio, ou mesmo da nao, e que, como toda grande cidade que pretende um crescimento econmico, deve manter viva a sua memria urbana, de forma a permitir que novos cidados possam interagir com os aspectos culturais tradicionais, formando e transformando essa cultura de forma justa e democrtica. No devemos esquecer o cenrio inicial da formao da cidade e tampouco retroceder e querer que o cenrio atual seja o mais prximo possvel daquele. H de se considerar que o crescimento econmico da cidade tem viabilizado condies para torn-la prspera, de forma razoavelmente estruturada. Devemos buscar, ento, uma conciliao entre o patrimnio cultural e o desenvolvimento urbano.

    A acelerao da urbanizao no decorrer do sculo XX fez que a cidade passasse a ser compreendida como um tecido vivo, composto por edificaes e por pessoas, congregando ambientes do passado que podem ser conservados e, ao mesmo tempo, integrados dinmica urbana. Ela tornou-se um nvel especfico da prtica social na qual se vem paisagens, arquiteturas, praas, ruas, formas de sociabilidade[s]; um lugar no homogneo e articulado, mas antes um mosaico muitas vezes sobreposto,

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    que expressa tempos e modos diferenciados de viver. (Zanirato e Ribeiro, 2006, p. 254)

    Os autores reconhecem na expanso urbana, os elementos que permitem uma leitura de como se constitui uma cidade. No apenas formada por edifcios, etnias, ou produo, mas um conjunto, diferenciado que identifica, no somente as semelhanas, ou as diferenas, mas a forma como so vivenciadas, ou seja, os lugares de memria onde os habitantes da cidade reconhecem suas identidades e que, ao mesmo tempo, contribuem para a construo da memria urbana.

    A experincia proporcionada pelos lugares de memria est vinculada a uma importante busca do ser humano, o entendimento de si mesmo. O universo dos objetos e da imaterialidade, que os torna o que so, podem e devem possibilitar a emergncia de como lidar com a diferena e a diversidade no processo de construo de identidades. (SOUZA, 2007, p. 95)

    A experincia proposta pelo autor pertinente e descreve exatamente a relao entre cidade e cidado, pois a cidade proporciona inmeros lugares de memria, que, ao mesmo tempo em que se relacionada com a experincia individual do cidado, se relaciona com a prpria memria urbana.

    Quando se fala em memria urbana para defender o patrimnio cultural, considero que a cidade uma construo social que toma vida prpria e se perpetua em relao aos que a criaram, formando um grande conjunto de vivncias e experincias sobrepostas, no podendo ser encarada como matria prima para a especulao do mercado, tampouco para alimentar o ego de polticos e profissionais especializados. Dessa forma, o estudo do espao se torna multidisciplinar e faz da cidade um complexo objeto de estudo e aprimoramento coletivo fundamentais, uma vez que o patrimnio cultural de uma comunidade se desenha pelo grande conjunto de fatores materiais e imateriais que orientaram o seu crescimento. No podem, portanto, ser objetos de adorao ou desprezo extremados, devem, sim, ser respeitados, acima de tudo, pois contribuem para a construo de uma sociedade a partir de experincias reais das cidades.

    [...] gostaria de dizer que a prpria cidade a memria coletiva dos povos; e como a memria est ligada a fatos e a lugares, a cidade o lcus da memria coletiva. Essa relao entre o lcus e os citadinos torna-se, pois, a imagem predominante, a arquitetura, a paisagem. (ROSSI, 1995, p. 198)

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    A cidade torna-se pea chave na questo da preservao e, quando a estudamos, podemos considerar uma relao entre uma sociedade e a situao fsica da mesma, uma vez que a situao fsica de uma sociedade mais durvel do que essa sociedade, e pode ainda ser constatada quando a sociedade que a produziu j desapareceu h muito tempo (BENEVOLO, 1991, p. 13). De acordo com o autor, essa situao fsica corresponde organizao social de uma comunidade, contendo informaes sobre suas caractersticas, que podem ser conhecidas movendo-se no cenrio da cidade, ou melhor ainda, nela residindo (id., ibid.). Essa vivncia cria espaos singulares de socializao observados por Coelho Netto (1999), quando se refere s praas como lugares de onde emanam, no s a vida, mas a animao de uma cidade, pois ao redor das igrejas e nas praas, desenrolam-se atividades fundamentais como o teatro e o carnaval.

    O estudo das cidades pode ser visto sob diversos olhares, tais como o da histria, da geografia, da economia, da arquitetura e urbanismo, das artes, da arqueologia, da antropologia, da engenharia, da ecologia dentre muitos outros, uma vez que a cidade uma estrutura viva e concentra boa parte das atividades exercidas pelo homem. Mesmo as atividades exercidas fora dos centros urbanos existem, de certa forma, para suprir necessidades urbanas como agricultura, indstria, pesca entre outras.

    A cidade algo mais do que um conjunto de indivduos e de vantagens sociais; mais do que uma srie de ruas, edifcios, luzes, eletricidade, telefones, etc., algo mais, tambm, do que uma mera constelao de instituies e corpos administrativos: Tribunais, hospitais, escolas, polcia e funcionrios civis de toda a espcie. A cidade principalmente um estado de esprito, um conjunto de costumes e tradies, com os sentimentos e atitudes inerentes aos costumes, e que se transmitem pela tradio. A cidade, por outras palavras, no um mecanismo fsico ou uma construo artificial. Est implicada no processo vital da populao que a compe; um produto da natureza, e em especial da natureza humana. (PARK. apud GOITIA, 1982, p.32)

    Esse o anseio que contrasta com a idia de progresso, no qual se busca equipar a cidade para as atividades humanas, no que isto no seja necessrio, mas deve-se tomar certo cuidado de forma a no comprometer a identidade daquela sociedade e, ao mesmo tempo, viabilizar o crescimento e o desenvolvimento da cidade.

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    Quando organizamos nosso espao urbano, seguimos uma arraigada tradio cultural e designamos as linhas que o formam (ruas, viadutos, ordenamento numrico das casas etc.). Ao faz-lo, estamos praticando algo bastante diferente das concepes trobriandinas, pois estes vem a aldeia como um agrupamento de protuberncias. (GONALVES, 2002. p. 143)

    Gonalves atribui a organizao do espao urbano a uma tradio cultural, e diferencia a forma como as cidades contemporneas se dispem em relao a aldeias indgenas. Surge, assim, a idia de planejamento urbano, tanto nas nossas cidades funcionais quanto nas aldeias, que, por mais diferentes que possam ser esses agrupamentos, seguem uma lgica de ocupao e sua forma se torna livre, pois a noo de fruio dos espaos muito diferente das metrpoles.

    Os habitantes da cidade deslocam-se e situam-se no espao urbano. Nesse espao comum, que cotidianamente trilhado, vo sendo construdas coletivamente as fronteiras simblicas que separam, aproximam, nivelam, hierarquizam ou, numa palavra, ordenam as categorias e os grupos sociais em suas mtuas relaes. Por esse processo, ruas, praas e monumentos transformam-se em suportes fsicos de significaes e lembranas compartilhadas, que passam a fazer parte da experincia ao se transformarem em balizas reconhecidas de identidades, fronteiras de diferena cultural e marcos de pertencimento. Os lugares sociais assim construdos no esto simplesmente justapostos uns aos outros, como se formassem um gigantesco e harmonioso mosaico. [...] eles se superpe, entrecruzando-se de modo complexo, formam zonas simblicas de transio. (ARANTES, 2000. p. 106)

    Observamos que o planejamento urbano to antigo quanto noo de cidade que conhecemos, pois ele compe nossos aspectos culturais, e se mostra necessrio quando a estrutura urbana no comporta as demandas crescentes de uma sociedade. O crescimento populacional e econmico das cidades faz com que sejam necessrias novas frentes de expanso, geralmente, sobre reas desocupadas ou mesmo uma maior concentrao nas reas j ocupadas, criando um conflito espacial dentro da estrutura da cidade.

    A convivncia entre centro histrico e periferia no fcil, [...], os espaos livres da cidade antiga foram preenchidos; as ruas foram atingidas por um trfego incompatvel devido intensidade e s caractersticas tcnicas, ou ento devem ser defendidas com desvio de trnsito dos veculos; as margens externas no confinam com o campo, mas com as massas compactas dos bairros perifricos,..., um grande nmero de casas antigas foram transformadas em escritrios e grandes lojas comerciais, mal-e-mal conservando a sua aparncia exterior. Todas essas modificaes comprimem e aviltam a coerncia formal e funcional da cidade antiga e constituem as conseqncias da incompatibilidade estrutural entre os dois organismos. Mas a surpreendente resistncia do concatenado histrico e

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    essas transformaes demonstram que o mecanismo ps-liberal pode ser impugnado e suspenso. (BENEVOLO, 1991, p. 71)

    Isso nos compromete a utilizar o planejamento urbano em benefcio do atendimento de todos os aspectos que envolvem a vida em cidades. Em Joinville, especialmente, esse planejamento tem dado conta do crescimento urbano, mas no de forma sustentvel, uma vez que ntida a ocupao de reas da cidade, antes grandes manguezais, bem como a construo dessa cidade sobre os rios e suas reas de vrzea, causando transtornos recorrentes na cidade a cada chuva forte. Esse mesmo raciocnio aplicado ao patrimnio cultural. Veremos mais adiante que vrios projetos de alargamento virio passam por reas e eixos de grande relevncia para a preservao, estabelecendo um conflito que poderia ser evitado se planejado com mais cautela.

    O planejamento da cidade de Joinville deve conciliar os conflitos de interesse dos diversos grupos que se apresentam, mas deve manter, sobretudo, a noo de funo social dos espaos pblicos. A funo social do patrimnio cultural muito grande, uma maneira de aproximar o cidado da histria da cidade, uma grande contribuio para as geraes futuras. Assim, o planejamento urbano deve fazer a cidade cumprir sua misso, muito bem representada nas palavras de Mumford:

    A misso final da cidade incentivar a participao consciente do homem no processo csmico e no processo histrico. Graas a sua estrutura complexa e durvel, a cidade aumenta enormemente a capacidade de interpretar esses processos e tomar neles uma parte ativa e formadora, de tal modo que cada fase do drama que desempenhe vem a ter, no mais elevado grau possvel, a iluminao da conscincia, a marca da finalidade, o colorido do amor. Esse engrandecimento de todas as dimenses da vida, mediante a comunho emocional, a comunicao racional e o domnio tecnolgico, e, acima de tudo, a representao dramtica, tem sido na histria a suprema funo da cidade. E permanece como a principal razo para que a cidade continue existindo. (MUMFORD, 1998, p. 621)

    Joinville dever garantir s geraes futuras o direito de compreender como ocorreu seu desenvolvimento.

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    2. Dimenso Urbana: Quadro Situacional

    2.1. Localizao

    Joinville est localizada na regio sul do Brasil, ao nordeste do Estado de Santa Catarina, ocupando a plancie entre a Serra do Mar e a Baa da Babitonga (Figura 2). Ela a maior cidade do estado e concentra grande parte das atividades econmicas e administrativas da regio que ocupa.

    Localizada em uma rea litornea, atravessada pela rodovia BR-101 (Figura 3), uma rodovia translitornea que interliga o estado do Rio Grande do Sul ao estado do Rio Grande do Norte passando por 12 estados diferentes. O Trecho compreendido entre a Regio Metropolitana de Porto Alegre e Rio de Janeiro, passando por Florianpolis, Curitiba e So Paulo, concentra a maior movimentao de cargas no pas, e d acesso aos grandes portos, como o Porto do Rio Grande, Itaja, Navegantes, Santos e Rio de Janeiro. Joinville est localizada nesse trecho, e contribui nesse cenrio como grande polo industrial e prestador de servios, um cenrio que contribui muito para o crescimento econmico e populacional do municpio.

    Fig. 2 - Localizao de Joinville Fonte: Ippuj 2008

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    2.2. Insero regional

    Em todo o pas, se difunde a idia de regies metropolitanas, ou administraes regionais que planejam as iniciativas dos poderes pblicos de forma a integrar os municpios que compem tais regies. Os municpios que se localizam prximos a cidades desenvolvidas tm grande parte de suas atividades relacionadas s atividades dessas cidades, seja moradia, lazer, indstria, servios, etc. Nesse contexto, Joinville se configura como municpio central, pois concentra grande parte das atividades econmicas do estado. No entanto, os municpios que integram sua regio metropolitana no tm uma definio jurdica clara, ou representativa da interatividade entre os municpios. Para co