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Gaspar Martins Pereira* SAAL: um programa de habitação popular no processo revolucionário 1 Criado em Julho de 1974, como serviço público vocacionado para apoiar as iniciativas dos moradores insolventes ou de fracos recursos nas zonas de habitação degradada, o SAAL – Serviço de Apoio Ambulatório Local integrava, de acordo com o despacho fundador, princípios inovadores de política de habitação popular, que orientaram a sua intervenção: a participação activa e organizada dos moradores pobres na resolução dos seus problemas de alojamento e a apropriação de espaços urbanos valiosos pelas camadas populares que aí se radicavam «sob forma marginal». No processo revolucionário, com a extensão das operações SAAL, em articulação com o forte movimento de moradores, esses princípios assumiram um cunho ideológico de transformação social, identificando-se com a defesa do «poder popular» e do «direito à cidade». A partir da experiência do SAAL/Norte, pretende-se reflectir sobre as condições que marcaram a evolução desse processo de intervenção urbana no contexto da revolução portuguesa, entre 1974 e 1976. Palavras-chave: SAAL, Habitação Popular, Movimento de Moradores, Processo Revolucionário The SAAL – Serviço de Apoio Ambulatório Local was created in July 1974 as a public service to support the initiatives of the insolvent or financially challenged inhabitants of areas of degraded housing. In accordance with the governmental decree which founded it the SAAL integrated innovative principles of popular housing policy which guided its action: the active and organized participation of poor residents in resolving their housing problems and the appropriation of valuable urban spaces by the lower social classes which were ‘marginally’ resident there. In the framework of the revolutionary process, with the extension of operations SAAL, in conjunction with the strong movement of residents, these principles were given an ideological slant of social transformation, identified with the defense of ‘popular power’ and the ‘right to the city’. Taking as a starting point the experience of the SAAL/North, we aim to reflect on the conditions that have marked the evolution of this urban intervention process within the context of the Portuguese Revolution, between 1974 and 1976. Keywords: SAAL, Popular Housing, Residents’ Movement, Revolutionary Process * Professor do DHEPI e Investigador do CITCEM, Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 1 Uma primeira versão deste texto, intitulada SAAL — um processo de intervenção urbana no processo revolucionário, foi apresentada num Seminário realizado na FLUP em Outubro de 1989, tendo por base a minha experiência de trabalhador do SAAL/Norte, como auxiliar técnico e responsável pela Brigada de S. Mamede de Infesta (Matosinhos), entre Julho de 1975 e Fevereiro de 1977. A versão que agora se publica, profundamente remodelada, beneficiou da leitura de novos e importantes estudos que vieram, entretanto, alargar a bibliografia sobre o SAAL e o período revolucionário, bem como dos comentários pertinentes dos amigos Ricardo Lima e Virgílio Borges Pereira, que aceitaram ler este texto e a quem expresso aqui a minha gratidão. R E S U M O A B S T R A C T

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SAAL Porto

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  • Gaspar Martins Pereira*

    SAAL: um programa de habitao popular no processo revolucionrio1

    Criado em Julho de 1974, como servio pblico vocacionado para apoiar as iniciativas dos moradores insolventes ou de fracos recursos nas zonas de habitao degradada, o SAAL Servio de Apoio Ambulatrio Local integrava, de acordo com o despacho fundador, princpios inovadores de poltica de habitao popular, que orientaram a sua interveno: a participao activa e organizada dos moradores pobres na resoluo dos seus problemas de alojamento e a apropriao de espaos urbanos valiosos pelas camadas populares que a se radicavam sob forma marginal. No processo revolucionrio, com a extenso das operaes SAAL, em articulao com o forte movimento de moradores, esses princpios assumiram um cunho ideolgico de transformao social, identificando-se com a defesa do poder popular e do direito cidade. A partir da experincia do SAAL/Norte, pretende-se reflectir sobre as condies que marcaram a evoluo desse processo de interveno urbana no contexto da revoluo portuguesa, entre 1974 e 1976.Palavras-chave: SAAL, Habitao Popular, Movimento de Moradores, Processo Revolucionrio

    The SAAL Servio de Apoio Ambulatrio Local was created in July 1974 as a public service to support the initiatives of the insolvent or financially challenged inhabitants of areas of degraded housing. In accordance with the governmental decree which founded it the SAAL integrated innovative principles of popular housing policy which guided its action: the active and organized participation of poor residents in resolving their housing problems and the appropriation of valuable urban spaces by the lower social classes which were marginally resident there. In the framework of the revolutionary process, with the extension of operations SAAL, in conjunction with the strong movement of residents, these principles were given an ideological slant of social transformation, identified with the defense of popular power and the right to the city. Taking as a starting point the experience of the SAAL/North, we aim to reflect on the conditions that have marked the evolution of this urban intervention process within the context of the Portuguese Revolution, between 1974 and 1976.Keywords: SAAL, Popular Housing, Residents Movement, Revolutionary Process

    * Professor do DHEPI e Investigador do CITCEM, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.1 Uma primeira verso deste texto, intitulada SAAL um processo de interveno urbana no processo revolucionrio, foi apresentada

    num Seminrio realizado na FLUP em Outubro de 1989, tendo por base a minha experincia de trabalhador do SAAL/Norte, como auxiliar tcnico e responsvel pela Brigada de S. Mamede de Infesta (Matosinhos), entre Julho de 1975 e Fevereiro de 1977. A verso que agora se publica, profundamente remodelada, beneficiou da leitura de novos e importantes estudos que vieram, entretanto, alargar a bibliografia sobre o SAAL e o perodo revolucionrio, bem como dos comentrios pertinentes dos amigos Ricardo Lima e Virglio Borges Pereira, que aceitaram ler este texto e a quem expresso aqui a minha gratido.

    R E S U M O

    A B S T R A C T

  • 14 Gaspar Martins Pereira - SAAL: um programa de habitao popular no processo revolucionrioHistria. Revista da FLUP Porto, IV Srie, vol. 4 - 2014, pp 13-31

    IntroduoA histria do SAAL (Servio de Apoio Ambulatrio Local), como programa de interveno

    urbana, em interaco com o movimento de moradores, inscreve-se na dinmica de democracia participativa que marcou o processo histrico da revoluo portuguesa, entre 1974 e 1976. Neste texto, partindo da experincia do SAAL/Norte, pretendemos reflectir sobre as condies que marcaram a evoluo do SAAL nesse perodo, destacando os dois princpios basilares em que o programa se baseava, j enunciados no despacho ministerial fundador: a participao activa e organizada dessas populaes na soluo dos seus problemas habitacionais; a apropriao pelas camadas populares dos espaos urbanos, onde se radicavam sob forma marginal. No contexto revolucionrio, esses princpios no se confinaram s operaes SAAL e orientaram os movimentos sociais urbanos, manifestando-se na defesa do poder popular e do direito cidade, adquirindo um cunho ideolgico de transformao social. Por outro lado, enquanto servio pblico de apoio s populaes urbanas carenciadas, o SAAL assumiu, desde o incio, uma metodologia de interveno que implicava a democratizao do trabalho tcnico, a sua discusso com as organizaes de moradores e o fluxo contnuo de informaes e conhecimentos, em que as brigadas de apoio local tinham de confrontar a sua aco, desde os inquritos iniciais aos projectos e construo, com as concepes e aspiraes dos moradores envolvidos, numa perspectiva de processo.

    Porm, se possvel destacar os princpios em que se baseava o processo SAAL, a sua evoluo no perodo revolucionrio, em articulao com o movimento de moradores, esteve longe de ser linear. Atravessou diversas fases, marcadas por diferentes ritmos e intensidades, de acordo com os factores e agentes que influram na maior ou menor aceitao daqueles princpios, ou mesmo na sua rejeio, a partir de Novembro de 1975, com a inflexo do processo revolucionrio, que conduziria, simultaneamente, ao enfraquecimento e marginalizao do movimento de moradores e asfixia e extino do SAAL.

    1. Um programa revolucionrio de poltica de habitaoEm 31 de Julho de 1974, o despacho conjunto assinado pelo Ministro da Administrao

    Interna e do Equipamento Social e do Ambiente, Costa Brs, e pelo Secretrio de Estado da Habitao e Urbanismo, Nuno Portas, considerando as graves carncias habitacionais, designadamente nas principais aglomeraes, e as dificuldades em fazer arrancar programas de construo convencional a curto prazo, criou o Servio de Apoio Ambulatrio Local (SAAL). Definido no despacho ministerial como um corpo tcnico especializado, que estava j a ser organizado pelo Fundo de Fomento da Habitao (FFH), o SAAL destinava-se a apoiar, atravs das cmaras municipais, as iniciativas das populaes mal alojadas no sentido de colaborarem na transformao dos prprios bairros, investindo os prprios recursos latentes e, eventualmente, monetrios. Considerava-se que as iniciativas deveriam partir dos moradores, organizados em associaes ou cooperativas. s Cmaras competiria um papel de controle urbanstico da localizao e cedncia de solo e de interlocutores directos da organizao dos interessados, designadamente na arbitragem das prioridades em face dos recursos disponveis [...] e na garantia dos emprstimos previstos na legislao.

    O apoio tcnico a prestar pelo SAAL s populaes mal alojadas compreenderia, segundo o despacho, diversas aces: i) aco fundiria: aquisio e cedncia de solo necessrio aps exame das aptides locais; ii) aco de projecto: traado urbanstico e de loteamento, projecto de infra-estruturas, fornecimento de esquemas tipo para habitaes; projecto de componentes normalizados; iii) aco de assistncia nas operaes de construo: organizao de estaleiro;

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    mudanas de casas ou barracas para dar lugar nova construo; eventual preparao de empreitadas e sua fiscalizao; treino das brigadas de trabalho locais, volantes ou de voluntariado e programao das tarefas no perodo previsto e aceite pelos moradores; iv) aco de assistncia na gesto social: organizao e preparao de estatutos das cooperativas; montagem do sistema de contabilidade, recurso ao crdito e repartio de responsabilidades entre os scios; aces culturais e polticas com colaborao eventual de movimentos polticos, sociedades recreativas, etc., mas sempre organizadas pela populao.

    Apontava-se para uma fase experimental do programa, at finais de 1974, aconselhando prudncia na seleco das iniciativas, quer por insuficincia dos recursos do Estado para esse ano quer por falta de experincia dos servios em operaes deste tipo.

    Como atrs referimos, o despacho assumia, claramente, como princpio basilar da interveno do SAAL, a apropriao de locais valiosos pelas camadas populares nele[s] radicadas sob forma marginal2. Em paralelo com a defesa da participao popular, este princpio marcou o carcter mais original e revolucionrio do processo SAAL face a outros programas de habitao social.

    A viabilidade do programa implicava, no entanto, que o Governo tomasse um conjunto de medidas: i) legislao relativa expropriao de solos urbanos nas reas de interveno; ii) definio dos modelos de financiamento e de crdito s organizaes de moradores; iii) estruturao interna do SAAL, enquanto servio pblico; iv) definio das modalidades de articulao e de colaborao do SAAL com outros organismos do poder central e local, de forma a permitir a sua afirmao como programa de aco prioritrio, com capacidade para ultrapassar a rotinas burocrticas da administrao pblica. Como afirmaria mais tarde Nuno Portas, a opo de lanar o programa sem a definio de todos esses aspectos legais foi um risco assumido. Esperava-se que o avano do processo conduzisse alterao das condies e relaes de fora, para que as leis traduzissem a recolha dessas experincias e a sua necessria consolidao3. Porm, no perodo revolucionrio, entre 1974 e 1976, a criao desses novos instrumentos legais, indispensveis para a prossecuo normal das operaes do SAAL, foi sendo protelada ou apenas parcialmente assumida, gerando ambiguidades, conflitos de competncias e impasses sucessivos.

    2. Entre o Estado e os moradores: organizao e funcionamento do SAALApesar de ter sido sucessivamente requerido e proposto aos organismos governamentais

    responsveis, nunca foi aprovado qualquer texto legal regulamentador da organizao do SAAL nem da sua articulao com outros servios oficiais actuando nas reas da habitao e urbanismo. Ao longo de mais de dois anos de funcionamento, foi um simples despacho que constituiu o suporte legal do Servio4, o que se traduziu na indefinio de funes e de competncias e, sobretudo, na ambiguidade da posio do SAAL tanto na estrutura do Estado como face s organizaes dos moradores.

    A mais grave dessas indefinies manifestava-se na relao entre o SAAL e as autarquias locais. Apesar de caber s Cmaras um papel fundamental, de acordo com o despacho de 31 de Julho de 1974, essa relao nunca foi regulamentada, o que provocou o principal factor de asfixia do processo. Por um lado, os servios camarrios, dominados pela rotina burocrtica, no correspondiam s necessidades de um processo de interveno urbana com princpios,

    2 Dirio do Governo, I srie, n. 182, 06/08/1974, p. 873-874.3 Nuno Portas, O Processo SAAL: Entre o Estado e o Poder Local, Revista Crtica de Cincias Sociais (Coimbra, n. 18/19/20,

    Fev. 1986), 637-638.4 Ibidem, 637.

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    metodologias e objectivos inovadores, que exigia rapidez nas decises e nos procedimentos administrativos. Em contrapartida, o SAAL, por presso das organizaes dos moradores ou em defesa da celeridade do processo, ignorou muitas vezes o papel das Cmaras como interlocutores directos da organizao dos interessados, segundo a letra do despacho. O certo que as Cmaras, em boa parte dos casos, no quiseram ou souberam assumir esse papel, opondo-se at algumas vezes s organizaes de moradores. A coordenao do apoio tcnico cabia ao SAAL, servio criado, como vimos, no seio do FFH (em Lisboa, na EPUL - Empresa Pblica de Urbanizao de Lisboa), sendo o apoio directo s populaes envolvidas confiado a Brigadas Tcnicas, contratadas tarefa. Mas esse apoio, segundo o despacho fundador, deveria ser prestado atravs de acordos a estabelecer com as Cmaras.

    A integrao do SAAL no FFH e na EPUL, apesar das reivindicaes de autonomizao do Servio, bem como a ambiguidade da posio das Brigadas Tcnicas face s organizaes de moradores, constituiu outro campo de indefinio, que acabou por se revelar fatal para o processo. Por um lado, as caractersticas inovadoras do SAAL no se coadunavam com a sua falta de autonomia. Por outro lado, o papel de intermediao das Brigadas, mesmo se recusado pelos seus tcnicos, entre o aparelho de Estado e o movimento de moradores, conduzia indefinio do seu lugar poltico e mesmo dificuldade de coordenao nacional do trabalho das Brigadas.

    falta de uma base legal de organizao do Servio, este foi-se estruturando ao longo do processo, de acordo com a experincia adquirida e as exigncias das operaes. No admira, por isso, que se verificassem alteraes sensveis na orgnica do SAAL, entre Agosto de 1974 e Outubro de 1976, bem como diferentes formas de estruturao a nvel regional, decorrentes quer da estrutura descentralizada dos servios quer do esforo de adaptao s diferentes realidades socio-espaciais em que intervinham. Apesar dessas diferenas, podemos considerar no SAAL trs nveis fundamentais de organizao: i) nacional: logo no incio de Agosto de 1974, formou-se no FFH uma Comisso Organizadora do SAAL, propondo-se uma primeira estruturao do Servio a nvel nacional, que obteve parecer favorvel do Secretrio de Estado da Habitao, sendo ento criado um Grupo de Trabalho com carcter permanente, embrio dos Servios Centrais do SAAL; ii) regional: formaram-se trs estruturas regionais ligadas ao FFH (SAAL/Norte, SAAL/Centro e Sul e SAAL/Algarve), ficando o SAAL/Lisboa integrado na EPUL at Julho de 1975; iii) local: Brigadas Tcnicas de apoio local s organizaes de moradores.

    Aps cerca de um ano de actividade, a Direco Nacional do SAAL elaborou, em Setembro de 1975, um projecto de estrutura bsica do Servio, que seria aprovado, com ligeiras alteraes, no I Conselho Nacional do SAAL, a 1 de Outubro, passando a regular a organizao do Servio a nvel nacional5. No terreno, a metodologia de interveno do processo SAAL foi-se definindo tambm gradualmente. No caso do SAAL/Norte, na sequncia das primeiras experincias, a matriz das fases do processo tcnico seria fixada em Junho de 1975.

    No decurso da elaborao dos processos documentais (PDUO - Processo de Definio de Unidade Operacional e PDUP - Processo para Declarao de Utilidade Pblica) e de projectao, todas as fases do trabalho tcnico eram discutidas com os moradores envolvidos, segundo o princpio de democratizao da racionalidade tcnica6, que orientava o Servio e que se traduziu sempre num fluxo de informaes e de opinies entre os tcnicos e os moradores. Conceitos, linguagens, motivaes e hbitos diferenciados geravam por vezes dificuldades de compreenso

    5 Para todos os aspectos relativos organizao e funcionamento do Servio veja-se o abundante material publicado em Conselho Nacional do SAAL, Livro Branco do SAAL, 1974-1976 (Vila Nova de Gaia: Conselho Nacional do SAAL, 1976).

    6 Margarida Coelho, Uma Experincia de Transformao no Sector Habitacional do Estado: SAAL - 1974-1976, Revista Crtica de Cincias Sociais (Coimbra, n. 18/19/20, Fev. 1986), 624.

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    mtua, o que exigia um enorme esforo de aprendizagem e de adaptao, para evitar solues paternalistas ou populistas. Mas essa metodologia participativa integrou-se, rapidamente, na rotina das relaes entre os tcnicos e as organizaes de moradores. O SAAL permitiu concretizar novas abordagens da arquitectura, que vinham sendo equacionadas no discurso tcnico desde os anos sessenta. De certa forma, os projectos desenvolvidos operacionalizaram uma arquitectura do 25 de Abril, em que o desafio era no s construir casas para o povo mas tambm construir com o povo7.

    Era na fase intermdia das operaes SAAL, subsequente aprovao do PDUP, que se situavam os principais factores de bloqueio do processo, provocando atrasos na prossecuo das intervenes. A ideia inicial de disponibilizar rapidamente os terrenos das zonas degradadas para construo de novos bairros para os seus moradores no foi, como referimos, seguida de medidas legais que tornassem mais expedito o processo de expropriao. Apesar das inovaes introduzidas, os Decretos-lei 56/75, de 13 de Fevereiro, e 273-C/75, de 3 de Junho, que vieram regulamentar esta matria, surgiram tardiamente e foram, segundo os responsveis do SAAL, manifestamente inadequados s caractersticas do processo. Da decorreram dificuldades e conflitos constantes com as Cmaras, que acarretaram o arrastar dos processos e consequentes atrasos no incio da fase de construo. Por outro lado, a regulamentao do sistema de financiamentos a conceder s populaes envolvidas nunca foi formalmente aprovada. A soluo prtica seguida foi a da concesso a fundo perdido pelo Estado de 60 contos para cada habitao. Essa verba era considerada uma parte do custo mdio dos fogos, devendo a restante ser negociada por emprstimo pelas Associaes de Moradores, com uma taxa de juros baixa e amortizvel em 20 a 30 anos. Mas a falta de regulamentao especfica do sistema de financiamento conduziu a sucessivos bloqueios na concesso de emprstimos, dando origem a frequentes paralisaes das obras em curso e ao agravamento dos seus custos finais.

    3. O processo SAAL no processo revolucionrioDesde o Vero de 1974, a histria do processo SAAL foi marcada pela evoluo rpida

    da conjuntura poltico-social e pelo posicionamento dos diversos agentes e movimentos intervenientes. Aparentemente, tais posies foram-se definindo a propsito das questes em aberto no despacho de criao do servio (expropriaes, financiamento, estruturao do servio, articulao do servio com os organismos do poder central e local). No entanto, decorreram, de facto, da aceitao ou rejeio dos princpios de poltica global que enformavam o programa, em especial a participao activa das populaes na definio da poltica habitacional e a apropriao de solos urbanos pelas camadas populares a residentes.

    3.1. De Abril a Julho de 1974: a formulao do programaO despacho de 31 de Julho de 1974, que criou o SAAL, surgiu no contexto poltico

    revolucionrio, marcado pelo esprito de mudana anunciado pelo 25 de Abril. Nesse contexto, entraram em jogo diversos actores e movimentos sociais e polticos, que facilitaram a formulao de um novo programa de habitao dirigido s populaes urbanas mais carenciadas.

    Desde logo, o MFA, agente tutelar da Revoluo, cujo programa defendia novas polticas econmicas e sociais que deveriam ser seguidas pelo Governo Provisrio: a) Uma nova poltica econmica posta ao servio do povo portugus, em particular das camadas de populaes at agora mais desfavorecidas, tendo como preocupao imediata a luta contra a inflao e a alta

    7 Jos Antnio Bandeirinha, O Processo SAAL e a Arquitectura no 25 de Abril de 1974 (Coimbra: Imprensa da Universidade, 2007), 13, 253.

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    excessiva do custo de vida, o que necessariamente implicar uma estratgia antimonopolista; b) Uma nova poltica social que, em todos os domnios, ter essencialmente como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade de vida de todos os portugueses8.

    O perodo posterior ao 25 de Abril conheceu uma profunda remodelao do aparelho de Estado, com a integrao de quadros polticos e administrativos vindos da oposio ao regime anterior e defensores das mudanas preconizadas pelo programa do MFA. Assim, frente da Secretaria de Estado da Habitao e Urbanismo (SEHU) ir estar, nos trs primeiros governos provisrios, o arquitecto Nuno Portas, defensor de uma poltica habitacional e urbanstica totalmente inovadora face aos modelos convencionais. O Programa do I Governo Provisrio (16 de Maio a 11 de Julho de 1974) estabelecia j, entre outros aspectos relativos poltica de habitao, uma poltica de solos adequada, de modo a facultar s camadas populacionais de menores rendimentos alojamento condigno e em condies acessveis. De acordo com essa orientao, o SEHU emitiria, em Junho, um despacho sobre o Programa de aces prioritrias a considerar pelos servios do Fundo de Fomento da Habitao, propondo a criao de um Servio de Apoio ambulatrio Local (SAL), para atender aos estratos mais insolventes, mas com organizao interna que permita o seu imediato envolvimento em auto-solues, com apoio estatal em terreno, infra-estrutura, tcnica e financiamento9. Em entrevista concedida a Manuel Castells, a 23 de Junho, Nuno Portas defendia uma poltica habitacional capaz de travar a centrifugao dos pobres no espao urbano, de pr fim rotina dos servios pblicos e de apoiar o desenvolvimento de uma tendncia de controle pelas prprias populaes do problema habitacional10.

    Paralelamente, no sector pblico, o ambiente posterior ao 25 de Abril, fortemente participativo, conferia aos tcnicos um novo papel, permitindo-lhes uma capacidade de interveno nas decises polticas. Logo a 16-18 de Junho, tcnicos de organismos pblicos ligados ao sector da habitao realizaram um encontro no Teatro de S. Lus, com o objectivo de pressionar as estruturas fechadas, burocrticas e tecnicistas em que funcionam as instituies do Estado [] e proporcionar uma participao efectiva por parte da populao, rgos e entidades locais na sua deciso e realizao11. Datado de 24 de Julho de 1974, o Estudo Interpretativo dos Objectivos a Prosseguir atravs do SAAL, da autoria do arquitecto Nuno Teotnio Pereira, ter orientado os primeiros trabalhos de estruturao do SAAL, no seio do FFH, avanando alguns aspectos essenciais que viriam a ser contemplados no despacho ministerial publicado uma semana depois12.

    Com o 25 de Abril assistiu-se ao desencadear de diversos movimentos sociais urbanos, mais ou menos espontneos, decorrentes, em grande medida, da situao de profunda crise habitacional que desde a dcada de sessenta se vivia nas principais cidades, bem como do prprio ambiente suscitado pela liberalizao poltica e pelo anunciar de medidas de correco de injustias sociais. Logo em Abril e Maio de 1974 verificaram-se movimentos de ocupaes de casas vazias ou em construo em diversos bairros de Lisboa e do Porto. As primeiras ocupaes de casas seriam sancionadas por um comunicado da Junta de Salvao Nacional, em meados de Maio, que

    8 Programa do MFA in Diniz de Almeida, Origem e Evoluo do Movimento dos Capites (Lisboa: Edies Sociais, s/d), 474.9 Conselho Nacional do SAAL, Livro Branco do SAAL, 61.10 Nuno Portas, entrevista a Manuel Castells,La question du logement au Portugal dmocratique, Espaces et Socits (Paris, n.

    13-14, Out.1974-Jan.1975), 199-207.11 Conselho Nacional do SAAL, Livro Branco do SAAL, 59-60.12 Mrio Brochado Coelho, Um Processo Organizativo de Moradores (SAAL/Norte 1974/76), Revista Crtica de Cincias

    Sociais (Coimbra, n. 18/19/20, Fev. 1986), 648-649; Jos Antnio Bandeirinha, O Processo SAAL e a Arquitectura no 25 de Abril de 1974, 118-119.

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    sublinhava, no entanto, a ilegalidade do acto, prevenindo contra futuras ocupaes (a partir do presente momento no sero permitidas mais atitudes deste gnero, as quais, se necessrio, sero contrariadas com os meios ao dispor da JSN). Paralelamente, assistiu-se ao irromper de organizaes populares, ainda em forma embrionria e de cunho essencialmente reivindicativo, com vista resoluo dos problemas locais. No caso do Porto, o movimento reivindicativo partiu dos moradores dos Bairros Camarrios e do centro histrico (Ribeira/Barredo). Assim, no 1. de Maio de 1974, os moradores do Bairro de S. Joo de Deus manifestaram-se, junto ao Quartel-General, contra o regulamento camarrio em vigor, de cunho autoritrio e repressivo, apresentando o seu caderno reivindicativo. A 26 de Maio, moradores dos diversos Bairros manifestaram-se pelos mesmos motivos em frente Cmara Municipal do Porto. E, a 15 de Julho, um plenrio de moradores dos bairros aprovava os Princpios Fundamentais Reguladores dos Bairros Camarrios da Cidade do Porto13. No caso do centro histrico, a mobilizao popular inicial, com a constituio de vrias comisses de moradores, voltou-se contra as condies degradantes de habitao e a especulao de subalugas14. Estes movimentos estenderam-se, em breve, s populaes das ilhas, espalhadas por toda a cidade.

    A poltica antimonopolista defendida pelo programa do MFA traduziu-se, por um lado, pelo reforo do intervencionismo estatal de apoio s iniciativas das populaes e, por outro, pelo desinvestimento e fuga de capitais envolvidos anteriormente em operaes de especulao imobiliria urbana. Os novos programas de poltica habitacional no encontraram, numa primeira fase, oposio aberta por parte dos interesses imobilirios. A reaco aos novos princpios orientadores da vida poltica foi, neste sector, de fuga, de medo ou de silncio, mas, sobretudo, de expectativa.

    3.2. De Julho a Setembro de 1974: o arranque do programaNo Vero de 1974, manteve-se uma tenso latente entre o poder poltico e o poder

    econmico, dissociados desde o 25 de Abril, no ousando qualquer desses poderes clarificar a situao atravs de um conflito aberto. Assim, ao mesmo tempo que se afirmou no poder poltico a corrente liderada pelo MFA, defensora da transio democrtica para o socialismo, de uma poltica social de defesa dos interesses das camadas mais desfavorecidas e de uma poltica econmica antimonopolista, o poder econmico, dominado por uma oligarquia monopolista, alicerada no sector bancrio, continuou praticamente intocado. Na construo civil, embora a esmagadora maioria das empresas fosse de carcter artesanal, empregando menos de dez trabalhadores, eram as grandes empresas do sector que concentravam o grosso da mo-de-obra e dominavam o volume de construo e o mercado imobilirio urbano15. Pouco afectada pelas medidas polticas, que permaneciam ainda no campo dos princpios, a oligarquia portuguesa manteve-se, maioritariamente, na sombra. certo que alguns dos seus membros saram do pas ou apoiaram as tentativas frustradas de alterao dos rumos do novo regime poltico (tentativa de golpe de Estado constitucional de Palma Carlos, em 27 de Maio; apelo de Spnola manifestao da maioria silenciosa, marcada para 28 de Setembro), que apenas favoreceram, por reaco, o reforo do ambiente poltico revolucionrio e o peso da corrente mais progressista do MFA no aparelho de Estado.

    13 Mrio Brochado Coelho, Um Processo Organizativo de Moradores (SAAL/Norte 1974/76), 646, 650.14 Sobre a situao habitacional no centro histrico e as movimentaes dos moradores aps o 25 de Abril, veja-se Joo Queirs,

    Precariedade habitacional, vida quotidiana e relao com o Estado no centro histrico do Porto na transio da ditadura para a democracia, Anlise Social (Lisboa, vol. XLVIII, n. 206, 2013), 102-133.

    15 Christian Topalov, La politique du logement dans le processus rvolutionnaire portugais, Espaces et Socits (Paris, n. 17-18, Mar.-Jun. 1975), 111-112.

  • 20 Gaspar Martins Pereira - SAAL: um programa de habitao popular no processo revolucionrioHistria. Revista da FLUP Porto, IV Srie, vol. 4 - 2014, pp 13-31

    Apesar da euforia revolucionria, os movimentos populares urbanos no passavam ainda de movimentos reivindicativos dispersos, a maior parte deles de carcter espontneo, sem estruturas organizativas coesas nem uma definio clara de objectivos. Formaram-se, um pouco por toda a parte, comisses de moradores, voltadas para a resoluo de problemas imediatos e localizados. Correspondiam, essencialmente, ao exteriorizar das esperanas na melhoria das condies de vida das camadas mais pobres, num ambiente favorvel participao poltica colectiva.

    O SAAL, que desde o seu lanamento atrara o interesse de um nmero significativo de tcnicos ligados ao sector da habitao e urbanismo, ainda no possua seno uma fraca ligao de reconhecimento face aos moradores das zonas degradadas e dos bairros pobres, em certos casos facilitada por experincias anteriores16. No perodo de 8 de Agosto a 15 de Setembro de 1974, o SAAL/Norte organizou uma lista de operaes prioritrias, envolvendo cerca de 12.000 moradores (7.470 no concelho do Porto, 350 no de Matosinhos, 4.000 no de Gondomar e 180 no de Ovar)17. Estava-se ainda na fase de estruturao interna do servio. E, no entanto, alertava-se j para a possibilidade de bloqueios futuros, perante a indefinio do grau de autonomia e das formas de articulao do SAAL com outros servios pblicos com responsabilidades no domnio da habitao e urbanismo. Num documento dos servios centrais do SAAL, datado de 13 de Setembro, pode ler-se: Atendendo s caractersticas especficas das formas de actuao do SAAL, ser importante definir o seu grau de autonomia, nomeadamente financeira, para que no venham a existir determinadas dificuldades de ordem burocrtica, incompatveis com a dinmica que se pretende imprimir a este tipo de trabalho18.

    3.3. De Setembro de 1974 a Maro de 1975: as primeiras operaesNum ambiente de crescentes reivindicaes populares, associadas enorme carncia de

    alojamentos, o dec.-lei 445/74, de 14 de Setembro, veio despoletar um conflito srio no sector da construo civil, ao determinar o controlo pblico sobre os arrendamentos, a obrigatoriedade de declarao das casas vazias, que deveriam vir a ser integradas nas bolsas de habitao, e a suspenso do direito de demolio de prdios urbanos. O que antes era desconfiana e oposio silenciosa por parte dos operadores privados face ao novo regime transformou-se em aces abertas de confronto. Nas grandes empresas de construo civil (J. Pimenta, Habitat, etc.) aumentaram os despedimentos e acentuou-se a tendncia, j anteriormente anunciada, para o desinvestimento e para a fuga de capitais, surgindo as primeiras grandes falncias (Arquitectura e Construo, Gro Par, etc.), com consequncias graves no avolumar do desemprego no sector. A resposta governamental viria a ser dada com o dec.-lei 663/74, de 26 de Novembro, visando o relanamento do sector privado da construo civil, atravs da criao dos Contratos de Desenvolvimento para a Habitao (CDH). Com esta medida, visava-se atenuar o desemprego no sector e aumentar o volume de construo para venda ou arrendamento, travando, em contrapartida, a forte tendncia de especulao imobiliria existente antes do 25 de Abril, atravs da fixao de valores mximos de arrendamento, bem como de custos de construo e margens de lucro19. Porm, os CDH no podiam resolver, nem esse era o seu objectivo, os graves problemas de alojamento dos moradores mais pobres, que depositavam no SAAL crescentes esperanas e

    16 No Porto, estudantes e professores da Escola Superior de Belas Artes realizavam, desde h alguns anos, estudos e levantamentos em zonas de habitao degradada da cidade. No centro histrico da cidade, uma equipa liderada pelo arquitecto Fernando Tvora elaborara, em finais da dcada de sessenta, o Estudo de Renovao Urbana do Barredo (Porto: Cmara Municipal do Porto, 1969), propondo um modelo de interveno participada, que preservasse a fixao das populaes a residentes, apostando na sua valorizao social. Cf. Joo Queirs, Precariedade habitacional, vida quotidiana e relao com o Estado no centro histrico do Porto, 118-119.

    17 Margarida Coelho, Uma Experincia de Transformao no Sector Habitacional do Estado, 621.18 Conselho Nacional do SAAL, Livro Branco do SAAL, 83.19 Antnio Fonseca Ferreira, Por uma nova Poltica de Habitao (Porto: Afrontamento, 1987), 99-100.

  • 21 Gaspar Martins Pereira - SAAL: um programa de habitao popular no processo revolucionrioHistria. Revista da FLUP Porto, IV Srie, vol. 4 - 2014, pp 13-31

    insistentemente requisitavam o seu apoio.Este perodo correspondeu fase de lanamento das operaes SAAL. No caso do SAAL/

    Norte, aps as primeiras intervenes, iniciadas em meados de Outubro (Bairro do Accio, Antas, Chaves de Oliveira, S, Bairro do Leal, Ilha do Malta), sucederam-se outras tantas em Novembro (S. Vtor e Lapa, no concelho do Porto; Cruz de Pau, no concelho de Matosinhos; Bela Vista - S. Pedro da Cova, no concelho de Gondomar; bairros de Poo de Baixo e Irmos Unidos e Praias de Esmoriz e Cortegaa, no concelho de Ovar), continuando nos meses seguintes a tendncia de expanso das operaes. Em incios de Dezembro, o SAAL/Norte integrava j 21 operaes, abrangendo cerca de 18 mil moradores, tendo contratado Brigadas Tcnicas para 13 dessas operaes. Porm, perante uma situao que os responsveis pelo organismo classificavam de impasse total, sem a criao de meios de aco suficientes, admitia-se a hiptese de no dar mais resposta aos pedidos das populaes, dada a extenso atingida pelas operaes em curso e a determinao de manter a qualidade tcnica das intervenes20. No resto do pas, em especial em Lisboa, o ritmo de expanso das operaes SAAL era semelhante.

    Essas primeiras intervenes depressa esbarraram com dificuldades, decorrentes quer da estrutura burocrtica das Cmaras e outros servios pblicos quer da falta de suporte legal relativamente aos financiamentos, s expropriaes e prpria articulao do SAAL com outros servios pblicos. A 12 de Novembro, um comunicado das Brigadas de Aco Local de Lisboa considerava: no est a ser dada suficiente cobertura poltica, legal, orgnica e financeira, de modo a conseguir canalizar da forma mais til os esforos quer das prprias Brigadas quer das populaes para os fins que estas se propuseram. A gravidade desta constatao tanto maior quanto se tem conscincia de estar no incio de um processo cujas repercusses mais profundas ainda no esto totalmente detectadas e que j esbarra neste momento com dificuldades que no se ultrapassam com declaraes de boa vontade nem votos de boas intenes21.

    Simultaneamente, o movimento popular urbano reforou as suas estruturas organizativas. A par da multiplicao das comisses de moradores, muitas das quais evoluram para associaes22, surgiram organismos de coordenao. A 2 de Dezembro, no 1. Plenrio de Comisses de Moradores integradas no processo SAAL, realizado na Escola Superior de Belas Artes (ESBAP), foi criada a Comisso Coordenadora das Comisses e Associaes de Moradores do Porto. Estreitou-se tambm a ligao entre as organizaes de moradores e o SAAL, passando aquelas a assumir cada vez mais a defesa do processo e a exigir do Governo as medidas legais necessrias sua prossecuo. Segundo Mrio Brochado Coelho, a preponderncia at ento desempenhada pelos Bairros Camarrios nas movimentaes de moradores passou para as zonas degradadas com intervenes do SAAL/Norte23, o que decorreu, naturalmente, da expanso destas ltimas operaes, a par da multiplicao das estruturas organizativas dos moradores envolvidos.

    A presso do movimento de moradores, numa conjuntura poltico-social que lhe era favorvel, conseguiu, em algumas situaes, impor solues prticas, falta de medidas legais. A legislao veio, por vezes, a posteriori, tentar sanar os conflitos entre essas solues prticas, baseadas na legitimidade revolucionria, e as velhas leis. Nesta altura, face ao avolumar dos

    20 Conselho Nacional do SAAL, Livro Branco do SAAL, 102-108.21 Ibidem, 91.22 Esse processo de institucionalizao, em especial nas reas das operaes do SAAL/Norte, foi estimulado e apoiado pelos

    servios do SAAL, nomeadamente na elaborao dos respectivos estatutos, dada a necessidade de legalizar diversos instrumentos contratuais inerentes ao processo. Helena Vilaa, As associaes de moradores enquanto aspecto particular do associativismo urbano e da participao social, Sociologia -Revista da Faculdade de Letras (n. 4, 1994), 68-69.

    23 Mrio Brochado Coelho, Um Processo Organizativo de Moradores (SAAL/Norte - 1974/76), 651-652. O que no significou a diminuio das movimentaes dos moradores dos Bairros Camarrios, que, a 13 de Dezembro, em assembleia de moradores realizada no Bairro do Lagarteiro, criariam tambm uma estrutura de coordenao, a Comisso Central dos Bairros Camarrios do Porto.

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    movimentos urbanos, verificou-se uma crescente ateno dos governos ao problema habitacional. Um conjunto significativo de medidas, embora considerado insuficiente pelas organizaes de moradores, testemunha tal preocupao. Refiram-se apenas algumas das que tiveram maior impacto nas intervenes do SAAL. Em 15 e 16 de Novembro, vrios despachos do SEHU concederam as primeiras comparticipaes a Cmaras Municipais para aquisio de terrenos e para obras de infra-estruturas em operaes SAAL. No final de Janeiro de 1975, o Fundo de Fomento da Habitao assinou protocolos com as Cmaras Municipais do Porto, Gondomar, Matosinhos e Ovar, para movimentao de verbas destinadas a infra-estruturas e aquisies de terrenos. Diversos decretos vieram regular a estrutura legal das Associaes de Moradores (dec.-lei 594/74, de 7 de Novembro) e das Cooperativas de Habitao Econmica (dec.-lei 730/74, de 20 de Dezembro, e dec.-lei 737-A/74, de 23 de Dezembro). Em 7 de Janeiro de 1975, o dec.-lei 6/75 veio suspender, na rea do Grande Porto, os despejos judiciais e administrativos que tivessem por base a sublocao ou a mera ocupao. O dec.-lei 56/75, de 13 de Fevereiro, apesar de se manifestar inadequado em muitos aspectos s caractersticas do processo SAAL, veio facilitar a expropriao de solos urbanos.

    No entanto, a actividade do SAAL continuaria a enfrentar srios bloqueios. Nas vsperas do 11 de Maro, um relatrio divulgado pelo SAAL/Norte referia a situao de impasse de muitos dos aspectos do trabalho em relao aos quais se aguarda[va] deciso superior.No fora ainda publicado o decreto sobre financiamentos, no estando definido o montante mnimo a cobrir pelo Estado para cada habitao. No estavam ainda fixadas as isenes fiscais das Associaes de Moradores, apesar de j o estarem para as Cooperativas. Faltava regulamentar o direito de superfcie dos terrenos que as Cmaras deveriam disponibilizar para construo. Por outro lado, faltava oramentar as verbas a atribuir ao SAAL/Norte para 1975. Nessa altura, estavam ainda por assinar os contratos com as Brigadas Tcnicas para esse ano, havendo funcionrios a trabalhar sem receber honorrios. Faltava tambm clarificar a ligao entre o SAAL e outros organismos pblicos. Os Processos para Declarao de Utilidade Pblica de diversas operaes (Bairro do Accio, Antas, Chaves de Oliveira, S. Vtor, Ilha da Bela Vista, Bairro do Leal, no concelho do Porto; Cruz de Pau, no concelho de Matosinhos; Poo de Baixo, no concelho de Ovar) estavam retidos nas respectivas Cmaras24.

    3.4. De Maro a Novembro de 1975: um processo revolucionrio de interveno urbana A 11 de Maro, o falhano da tentativa militar de derrube do regime traduziu-se no reforo

    da corrente revolucionria no aparelho de Estado. O poder poltico iria agora estabelecer, sem a ambiguidade anterior, o controlo sobre o poder econmico, atravs da nacionalizao sucessiva de sectores-chave da economia. No seio do MFA, e particularmente no COPCON, com crescente poder militar, era manifesta a simpatia por um projecto socialista revolucionrio, de democracia participativa, a chamada via portuguesa para o socialismo, que atribua um papel fundamental aos rgos populares de base, incluindo as comisses e associaes de moradores. Em contrapartida, essa via de poder popular enfrentaria crescentes resistncias quer na estrutura do Estado quer nos partidos polticos maioritrios, legitimados pelo voto (o Partido Socialista, vencedor das eleies para a Assembleia Constituinte, em 25 de Abril de 1975, valorizava um projecto social-democrata avanado, defendendo a estabilizao da democracia representativa, contra o que considerava a sovietizao do regime) quer ainda em foras tradicionais poderosas, como a Igreja Catlica. Na Primavera-Vero de 1975, a radicalizao do regime e das foras sociais que o apoiavam traduziu-se na bipolarizao da sociedade portuguesa, com contnuas

    24 Conselho Nacional do SAAL, Livro Branco do SAAL, 121-126.

  • 23 Gaspar Martins Pereira - SAAL: um programa de habitao popular no processo revolucionrioHistria. Revista da FLUP Porto, IV Srie, vol. 4 - 2014, pp 13-31

    manifestaes de conflitualidade social entre os adeptos e os opositores da via revolucionria. No Vero quente, esse ambiente agudizou-se. Multiplicavam-se as manifestaes, as ocupaes de quartis, de fbricas, de terras e de casas, os saneamentos nas empresas, escolas e instituies, com uma intensa mobilizao dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais urbanos. Em contraposio, sucediam-se as manifestaes contra-revolucionrias, os assaltos e destruies de sedes de partidos de esquerda e outros alvos, bem como os atentados bombistas realizados por grupos de extrema-direita (em especial, o ELP e MDLP), que actuavam sobretudo no Norte25.

    Neste contexto, o movimento de moradores evoluiu rapidamente das aces reivindicativas localizadas para um movimento social mais abrangente. A luta pelo direito habitao e pelo direito cidade parecia cada vez mais indissocivel da transformao global da sociedade. Acentuou-se ainda a tendncia para o alastrar do movimento para as periferias urbanas e para o reforo das suas estruturas organizativas.

    A extenso das operaes SAAL, as primeiras realizaes prticas no domnio da construo e, sobretudo, as metodologias e o sentido revolucionrio das intervenes suscitaram resistncias crescentes por parte dos servios pblicos. A 18 de Maro de 1975, um Plenrio do SAAL, realizado na ESBAP, com a presena de 29 Comisses e Associaes de Moradores, 23 Brigadas Tcnicas e a Comisso Coordenadora do SAAL, aprovou um Caderno Reivindicativo, em protesto contra a total paralisao do processo SAAL, que vinha esbarrando contra toda uma srie de resistncias, oposies e impossibilidades burocrticas e legalistas que impediram a sua concretizao. Denunciava-se, sobretudo, a total falta de colaborao dos servios camarrios no desenvolvimento do processo e a incompreenso tcnica, animosidade e sabotagem poltica da maior parte das Comisses Administrativas municipais. Alm disso, a burocracia e resistncia da prpria direco do FFH estavam a provocar a distoro prtica e a paralisao dos servios prestados pelo SAAL. Criticava-se ainda o Governo Provisrio por no ter definido uma poltica de defesa total dos interesses dos moradores em luta, hesitando nas solues a adoptar e no mostrando de modo inequvoco estar disposto a afastar de vez a lgica do capitalismo quanto a financiamentos, valorizao dos terrenos a expropriar, conduo popular das operaes e definio do tipo qualitativo mnimo das habitaes a construir26. Quinze dias depois (5 de Abril), realizou-se no Palcio de Cristal uma assembleia mais alargada, em que as mesmas consideraes conduziram a um conjunto de resolues mais radicais: i) suspenso de pagamento de rendas nas zonas de interveno SAAL, com processos de expropriao j entregues; ii) suspenso de pagamento de rendas a subalugas nas zonas de interveno SAAL; iii) ocupao de casas abandonadas, a organizar pelas Associaes de Moradores da respectiva zona; iv) reorganizao da gesto das Cmaras Municipais, com base na participao das Associaes de Moradores, Comisses de Bairros Camarrios, funcionrios municipais e do SAAL; v) saneamento da Comisso Administrativa da Cmara Municipal do Porto, especialmente do seu Presidente, Arquitecto Artur Andrade; vi) saneamento da Direco do FFH, especialmente do seu Presidente, Engenheiro Fortuna Pereira; vii) ocupao das instalaes do FFH27. Estas posies tiveram efeitos imediatos. A 10 de Abril, o SEHU assinaria vrios despachos de declarao de utilidade pblica das primeiras operaes do SAAL/Norte, bem como a portaria de concesso dos primeiros subsdios a fundo perdido a Associaes de Moradores.

    25 Diego Palcios Cerezales, O Poder caiu na Rua Crise de Estado e Aces Colectivas na Revoluo Portuguesa 1974-1975 (Lisboa: Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa, 2003), 147-172.

    26 Conselho Nacional do SAAL, Livro Branco do SAAL, 129-130.27 Idem, 130-131. Numa anlise realizada na poca, Vtor Matias Ferreira considerava que estas manifestaes eram j sintomas

    de que o SAAL, tal como fora projectado, se encontrava praticamente esgotado. Vtor Matias Ferreira, Movimentos sociais urbanos e interveno poltica. A interveno do SAAL (Servio Ambulatrio de Apoio Local) em Lisboa (Porto: Afrontamento, 1975), 59.

  • 24 Gaspar Martins Pereira - SAAL: um programa de habitao popular no processo revolucionrioHistria. Revista da FLUP Porto, IV Srie, vol. 4 - 2014, pp 13-31

    Entretanto, agravou-se o conflito entre o SAAL e a Cmara Municipal do Porto. No decurso de uma greve dos funcionrios municipais, iniciada a 5 de Maio, fora saneado todo o gabinete de coordenao Cmara-SAAL, o que foi entendido como uma tentativa de travagem do processo SAAL.

    Paralelamente, o movimento popular urbano ganhava agressividade, organizao e um carcter mais acentuadamente poltico. A 17 de Maio de 1975, realizaram-se simultaneamente em Lisboa e no Porto enormes manifestaes, organizadas pelas associaes de moradores. Pouco depois, o movimento de moradores do Porto conheceria uma nova vitria, com a demisso do executivo municipal. Vivia-se o perodo de ascenso da corrente revolucionria do MFA e, a 28 de Maio, seria empossada uma Comisso Administrativa Militar na Cmara do Porto, constituda por militares prximos daquela corrente, que iria assumir a defesa do processo SAAL.

    Pela mesma altura, foi criada a Inter-Comisses de Moradores de Matosinhos e em Gondomar foram ocupadas as minas de S. Pedro da Cova, encerradas desde 1969, formando-se o Centro Revolucionrio Mineiro, com a participao de duas Comisses de Moradores integradas no processo SAAL (Passal e Bela Vista). A 15 de Junho, seria criado o Conselho Revolucionrio de Moradores do Porto, constitudo por dois representantes de cada Comisso ou Associao de Moradores, ligadas ou no ao SAAL, que passou a reunir-se semanalmente, liderando o movimento popular na cidade e integrando o Conselho Municipal.

    A aproximao entre as organizaes de moradores e o SAAL intensificou-se, tendendo este a afirmar-se como projecto de interveno urbana global, especialmente no Porto. Paralelamente defesa do Poder Popular pelas organizaes de moradores28, o processo SAAL orientou-se para concepes revolucionrias de interveno urbana, marcando o momento-chave em que passou, de facto, a verificar-se o controlo do processo pelo movimento popular urbano. Uma anlise de contedo dos textos produzidos pelas diversas estruturas do SAAL poderia facilmente identificar a viragem de um discurso eminentemente tcnico, at aos primeiros meses de 1975, para um discurso de maior pendor poltico-social, em consonncia com as posies do movimento de moradores. o que transparece das concluses do 1. Encontro SAAL/Norte, realizado em Julho de 1975, reunindo funcionrios e responsveis do SAAL, Brigadas Tcnicas e Comisses e Associaes de Moradores, onde se defendeu, nomeadamente: i) a construo do socialismo, atravs da criao de um poder de base descentralizado; ii) a indispensvel municipalizao do solo urbano e urbanizvel (sob gesto das organizaes populares); iii) um movimento de rotura das relaes de produo capitalista, no domnio do prprio modo de construo da habitao social, dando preferncia a Cooperativas de desempregados, ou a comunas operrias, que constituam, de facto, os germes duma prxima sociedade socialista, devendo a aquisio dos materiais de construo ser feita a empresas em autogesto ou nacionalizadas; iv) a tentativa de passagem dos conhecimentos para os moradores, sendo certo que a resoluo destas questes depende da hegemonizao do processo pela classe operria; v) uma revoluo cultural no domnio da educao, atravs da criao de Escolas Populares ligadas s Comisses de Moradores e geridas pelas prprias Comisses, com vista progressiva destruio da escola burguesa institucionalizada; etc.29.

    Uma anlise mais detalhada da vida interna das estruturas organizativas dos moradores e das relaes entre os protagonistas mais activos e politizados, por vezes militantes partidrios, e a maioria dos moradores envolvidos poderia detectar outros aspectos que fragilizaram o movimento de moradores no seu conjunto, nomeadamente disputas entre militantes partidrios pela liderana

    28 Maria Rodrigues, Pelo Direito Cidade: o Movimento de Moradores do Porto (1974/76) (Porto: Campo das Letras, 1999), 99-101.29 Conselho Nacional do SAAL, Livro Branco do SAAL, 185-194.

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    dessas estruturas ou pela afirmao de determinadas posies polticas, a par do afastamento de outros moradores. Alguns autores tm salientado o papel dos partidos e organizaes polticas entre os actores colectivos que influram na evoluo do movimento de moradores30. No entanto, o papel dos partidos parece ter sido, pelo menos no mbito do SAAL/Norte, secundrio31, e at ostensivamente secundarizado quer por muitos activistas do movimento de moradores quer por muitos funcionrios do SAAL, o que no exclui a participao de alguns deles, com maior ou menor protagonismo, em projectos partidrios. Em certos casos, as estruturas associativas de moradores assumiram mesmo um claro distanciamento dos partidos, procurando travar a sua influncia, no sendo raro ouvir-se em reunies de moradores expresses como aqui no entram partidos ou o partido fica porta. Houve mesmo situaes em que activistas do movimento de moradores se desvincularam da vida partidria, em defesa de uma mais ampla unidade no seio das suas associaes32. Por outro lado, parece tambm inegvel, em especial a partir das eleies de 1975, um crescente distanciamento do Partido Socialista face ao processo SAAL e aos seus fundamentos, bem como ao movimento de moradores. No entanto, esse distanciamento derivou, em nosso entender, de uma opo tctica de defesa da democracia representativa, aps ter alcanado a vitria nas eleies para a Assembleia Constituinte, buscando, por um lado, enfraquecer o poder das estruturas de democracia participativa e, por outro, fechar o ciclo revolucionrio liderado pelo MFA.

    Apesar da importncia crescente concedida questo do alojamento e ao processo SAAL pelas organizaes de moradores, a questo poltica dominou as preocupaes do movimento popular urbano no Vero e Outono de 1975. O apoio ao documento-guia da Aliana Povo-MFA e ao documento do COPCON, em defesa do Poder Popular, mobilizou grande parte do movimento de moradores para as grandes manifestaes urbanas at ao 25 de Novembro, altura em que a ala militar revolucionria do MFA saiu derrotada, criando condies para a inverso do processo poltico, econmico e social. A ligao do movimento de moradores s foras polticas e militares derrotadas traduzir-se-ia no seu claro enfraquecimento, desagregao e marginalizao. As organizaes de moradores perderam capacidade de mobilizao e de interveno, recuando para uma atitude defensiva33.

    Entretanto, desde Setembro de 1975, coincidindo com a tomada de posse do VI Governo Provisrio (19 de Setembro), desenrolava-se uma campanha contra o SAAL nos meios de comunicao social, acusando os seus funcionrios de m utilizao dos dinheiros pblicos e de prosseguirem objectivos polticos, contra os interesses das populaes. Simultaneamente, punha-se em causa a representatividade das organizaes de moradores. No Porto, Mrio Cal Brando, Governador Civil do Distrito, entraria em conflito com o Conselho Revolucionrio de Moradores ao exonerar a Comisso Administrativa Militar da Cmara, substituindo-a por uma Comisso de Gesto (que tomou posse em 15 de Setembro) formada por funcionrios municipais por si escolhidos, e ao dissolver o Conselho Municipal, formado por organizaes populares. Quatro dias depois, o Conselho Municipal reuniria sem autorizao do Governador Civil, verificando-

    30 Veja-se, por exemplo, Joo Arriscado Nunes; Nuno Serra, Casas decentes para o povo movimentos urbanos e emancipao em Portugal in Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa, org. Boaventura S. Santos (Porto: Afrontamento, 2003), 224.

    31 Neste aspecto, a experincia do movimento de moradores parece ter sido bastante diferente da de outros movimentos sociais urbanos da poca, como o importante Movimento Cidado de Madrid, analisado por Castells. Manuel Castells, La ciudad y las masas. Sociologa de los movimientos sociales urbanos (Madrid: Alianza Editorial, 1986), 299-386.

    32 Virglio Borges Pereira, Sobre a importncia de se chamar Ernesto, Avelino ou Amadeu. Breves notas sobre a memria do encontro entre o social e a poltica no Porto (ps-) revolucionrio in A Poltica em Estado Vivo: uma viso crtica das prticas polticas, org. Bruno Monteiro e Virglio Borges Pereira (Lisboa, Edies 70/Le Monde diplomatique - edio portuguesa, 2013), p. 246-251.

    33 Diego Palcios Cerezales, O Poder caiu na Rua, 103.

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    se a ocupao popular dos Paos do Concelho, o que levaria Cal Brando, tambm deputado do Partido Socialista, a proferir, na semana seguinte, um violento discurso na Assembleia da Repblica contra as organizaes de moradores, acusando-as de anarco-populismo e de no contriburem para o fortalecimento do poder popular que se pretende ver realizado34. E, a 19 de Novembro, a propsito da greve dos trabalhadores da construo civil, o deputado socialista Sottomayor Cardia acusaria a Secretaria de Estado da Habitao e Urbanismo de ter perdido tempo, durante meses e meses, a promover a anarquia urbanstica, nomeadamente atravs do plano SAAL, em vez de se preocupar com os problemas da construo35.

    3.5. De Novembro de 1975 a Outubro de 1976: o enfraquecimento do movimento de moradores e a asfixia do processo SAAL

    A partir de Novembro de 1975, verificou-se a travagem do processo poltico revolucionrio, sob a liderana de sectores do centro-esquerda, em especial o Partido Socialista, maioritrio no aparelho de Estado, mas apoiado e pressionado pela direita e sob a gide da corrente moderada do MFA, especialmente o Grupo dos 9, cujo documento, lanado a 7 de Agosto, se transformara numa bandeira do descontentamento contra a orientao que o documento-guia da Aliana Povo-MFA vinha imprimindo ao processo poltico-social36. No seio do Partido Socialista, imps-se a tese da centragem, com o objectivo de alcanar a estabilidade poltica, evitando a bipolarizao entre a via revolucionria da esquerda e a violncia contra-revolucionria da extrema-direita.

    Ao nvel da poltica econmica, o novo contexto poltico conduziu inverso da importncia relativa concedida aos sectores pblicos e privado. Buscava-se agora o relanamento da iniciativa privada e do investimento. No campo da habitao, tal poltica econmica traduziu-se pela liberalizao da poltica habitacional e urbanstica, com o consequente abandono ou desinteresse pelos programas de poltica de habitao anteriores (SAAL e CDH), o que, se, por um lado, estimulou o relanamento do sector privado da construo civil, por outro, conduziu a um novo impulso da especulao imobiliria. O principal instrumento adoptado para a nova poltica da habitao foi o sistema de crdito aquisio de habitao prpria, com juros bonificados e prazos de amortizao dilatados, lanado por resoluo do Conselho de Ministros de 24 de Fevereiro de 1976. O Estado garantia, assim, um forte apoio ao sector privado, atravs da criao artificial de procura solvente. Esta nova poltica habitacional correspondia, como j assinalou Antnio Fonseca Ferreira, ao lobby dos promotores imobilirios, que se instalara no novo Ministrio da Habitao, Urbanismo e Construo, constitudo em Fevereiro de 197637. No mbito da nova poltica de habitao, o SAAL foi alvo de uma progressiva marginalizao. Num momento em que, apesar de enfraquecido, o movimento popular urbano se mantinha ainda bastante activo, o poder poltico optou pela no extino imediata do Servio. A estratgia adoptada foi a de tornar invivel o processo, atravs do desgaste provocado pelo retardamento das operaes, aguardando que a evoluo da conjuntura poltica levasse ao inevitvel esvaziamento do movimento popular urbano. Os processos de expropriao eram retidos nas Cmaras e no Ministrio. Retardavam-se os financiamentos s operaes, que em 1976 deveriam atingir 1 milho de contos. Sucediam-se os entraves concesso de novos emprstimos, obrigando a protelar o incio da fase de construo

    34 Dirio da Assembleia Constituinte (n. 52, 25-09-1975), 1515 (disponvel in http://debates.parlamento.pt/ - consultado em 11.01.2014).

    35 Dirio da Assembleia Constituinte (n. 82, 19-11-1975), 2704 (disponvel in http://debates.parlamento.pt/ - consultado em 11.01.2014).

    36 Maria Incia Rezola, 25 de Abril: Mitos de uma Revoluo (Lisboa: A Esfera dos Livros, 2007), 184.37 Antnio Fonseca Ferreira, Poltica(s) de Habitao em Portugal, Sociedade e Territrio (Porto, n. 6, Jan. 1988), 59.

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    ou a paralisar obras em curso. Paralelamente, os ataques ao SAAL tornaram-se constantes, crescendo em violncia

    e tomando formas diversas: i) entraves ao funcionamento normal do servio; ii) acusaes difamatrias na imprensa; iii) declaraes de responsveis polticos; iv) ataques bombistas s instalaes do SAAL e a funcionrios38; v) actos de intimidao policial39.

    Travaram-se as medidas de suporte legal necessrias ao funcionamento do servio. Em Junho, foi substituda a Comisso Directiva do FFH. As relaes entre o novo Conselho de Administrao do FFH e o SAAL assumiram crescente conflitualidade. A 21 de Setembro, demitiu-se o Director Nacional do SAAL, Jos Paz Branco, em protesto contra o desvio de verbas do SAAL para outros programas.

    A 13 de Outubro, o deputado socialista Gomes Fernandes, adjunto do Ministro da Habitao, proferiria na Assembleia da Repblica um violento discurso contra o SAAL, muito aplaudido por toda a direita parlamentar, em que acusava os seus trabalhadores de envolvimento partidrio, atacando as ambies polticas, o oportunismo e a incompetncia profissional de alguns tcnicos que se tm vindo a servir delas [massas populares] para atingir objectivos diversos daqueles para que so pagos; na maioria dos casos, muito bem pagos!. Considerava necessrio afastar os elementos nocivos e atacar rpida e localmente os problemas de habitao degradada, em zonas de populao economicamente insolvente e socialmente marginalizada, com o aproveitamento da dinmica social e do esprito de classe dessas populaes40. O ataque, segundo as palavras do deputado, no se dirigia contra o processo SAAL. Considerava, mesmo, ser necessrio reforar o programa, no respeito pelos objectivos fundamentais do despacho que o criou. Mas, de facto, as acusaes impessoais infundamentadas destinavam-se a criar um clima de suspeio favorvel extino do SAAL. Desnecessrio, alis, j que o movimento social urbano estava praticamente esgotado e s ele poderia ter evitado a extino do servio. As aces de rua promovidas pelas organizaes de moradores assumiram um carcter mais defensivo, recuando para posies reivindicativas. As divises internas no seio das Associaes de Moradores tornaram-se ento frequentes, muitas vezes por razes externas e provocadas por elementos partidrios, mas sobretudo pela perda de esperana de alcanarem os seus objectivos, perante a alterao das condies polticas.

    3.6. Outubro de 1976: a extino do SAALLogo a seguir, a 27 de Outubro de 1976, o Ministro da Habitao, Eduardo Pereira, e o

    Ministro da Administrao Interna, Costa Brs, assinaram um despacho interministerial sobre a construo clandestina, que se traduzia, na prtica, na extino do SAAL como servio, bem como na ruptura com a sua metodologia de interveno, entregando o comando das operaes em curso s autarquias. O despacho responsabilizava o SAAL pela falta de assistncia eficaz s populaes mal alojadas, pela demora verificada nos processos de expropriaes de terrenos e pela escassez de fogos construdos. Acusando algumas brigadas de actuarem margem do FFH e das prprias autarquias locais, que deveriam ser os principais veculos da conduo do processo, o despacho determinava: i) As iniciativas das populaes, concretizadas em operaes actualmente

    38 Na noite de 14 de Janeiro de 1976, as instalaes do SAAL/Norte foram totalmente destrudas por uma bomba. E, a 4 de Maro, o automvel de um responsvel do SAAL/Norte (Arq. Alexandre Alves Costa) foi alvo de outro atentado bombista. Conselho Nacional do SAAL, Livro Branco do SAAL, 27 e 29.

    39 Em 10 de Abril de 1976, o comandante da PSP do Porto, Major Mota Freitas, mais tarde implicado na rede bombista, ordenou uma busca s instalaes do SAAL, para deteco de estrangeiros em situao ilegal e armas clandestinas ou outro material suspeito. Ibidem, 318.

    40 Dirio da Assembleia da Repblica (n. 26, 13-10-1976), 719 (disponvel in http://debates.parlamento.pt/ - consultado em 11.01.2014).

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    em curso, sero apoiadas directamente pelas cmaras municipais, ficando-se assim com a certeza de que, dessa mais ntima ligao ao poder local, resultar uma maior eficcia na resposta da Administrao; ii) Os contratos de tarefa celebrados com as brigadas SAAL actualmente em servio manter-se-o enquanto as cmaras municipais responsveis pelas operaes considerarem necessria a sua colaborao, continuando o seu pagamento a ser suportado pelo FFH e feito atravs das autarquias locais. Simultaneamente, o despacho criava os comissariados para as zonas degradadas e clandestinas das reas metropolitanas do Porto e Lisboa e da regio do Algarve, zonas onde decorria a quase totalidade das operaes SAAL. A estes comissrios, empossados de imediato, caberiam as funes de: i) instalar o respectivo gabinete de apoio...; ii) apoiar as autarquias no planeamento das aces a desenvolver; iii) concertar e coordenar as aces das Direces Gerais do Planeamento Urbanstico e de Equipamento Regional e Urbano e do Fundo de Fomento da Habitao relativamente s intervenes na rea, sem prejuzo da respectiva competncia; iv) Informar os Ministros da Administrao Interna e da Habitao, Urbanismo e Construo e propor as medidas adequadas sempre que se verifiquem distores ou atrasos no cumprimento dos planos e programas; v) apresentar ao Ministro da Habitao, Urbanismo e Construo relatrios mensais da situao41.

    3.7. Aps Outubro de 1976: o fim do processoO despacho de 27 de Outubro constituiu no s o anunciar do fim do processo SAAL mas

    tambm o fim de uma poltica de interveno urbana para resoluo dos problemas habitacionais dos estratos sociais mais desfavorecidos. A maioria das brigadas tcnicas foram desactivadas e praticamente s nos casos de construes em curso se mantiveram as operaes. Como salientou Antnio Fonseca Ferreira: Aps a extino do Servio tudo foi deixado, literalmente, ao abandono. Na sequncia de uma campanha de duras crticas e muitas calnias campanha alimentada por vrios sectores poltico-ideolgicos com a colaborao dos prprios responsveis do Ministrio da Habitao ningum queria ouvir falar do SAAL. No se sabia sequer ningum se importava em esclarecer se a responsabilidade da conduo do processo cabia aos Comissariados do Governo para as Zonas Degradadas ou ao FFH. A atitude dos governantes e dos responsveis era deixar andar; as Cmaras Municipais (salvo algumas excepes) preferiam no intervir no que era considerado como uma batata quente; e as direces das Associaes caminhavam de Herodes para Pilatos sem encontrarem interlocutor; os empreendimentos em curso foram paralisando por falta de financiamento e de apoio tcnico; muitos dos projectos em elaborao e processos de expropriao de terrenos anteriormente iniciados foram abandonados, ao mesmo tempo que se verificava uma desmobilizao por parte das populaes envolvidas nas operaes42.

    Os Comissrios nomeados pelo Governo limitaram-se a tomar posse dos respectivos cargos, que ocuparam at Julho de 1978. Nos casos do Porto e do Algarve nem sequer foi instalado o gabinete tcnico previsto no despacho. Por outro lado, as autarquias locais no quiseram ou no foram capazes de utilizar o manancial de estudos e projectos que constitua o trabalho de milhares de horas das Brigadas Tcnicas do SAAL. Dos cerca de 4 mil fogos que poderiam ter sido adjudicados de imediato apenas foram iniciados 293 em 1977 e 374 em 1978. S em 1979, durante o V Governo Constitucional presidido por Maria de Lourdes Pintasilgo, seriam aprovados financiamentos para cerca de 2 mil fogos43. Mas era o canto do cisne

    41 Dirio da Repblica (I srie, n. 253, Suplemento, 28-10-1976), 2460 (1-3).42 Antnio Fonseca Ferreira, Poltica(s) de Habitao em Portugal, 86.43 Ibidem, 86-87.

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    Notas finaisAo fim de pouco mais de dois anos de experincia, data da sua extino como servio, o

    SAAL envolvia mais de 150 operaes, em vrios concelhos do pas, com especial incidncia nas reas metropolitanas de Lisboa e Porto, onde se concentravam os principais ncleos de habitao degradada. No conjunto, mais de 40 mil famlias pobres, organizadas em 14 Cooperativas de Habitao Econmica, 16 Comisses de Moradores e 128 Associaes de Moradores, recebiam apoio do SAAL, atravs de 118 Brigadas Tcnicas, constitudas por mais de mil trabalhadores, sem contar com os trabalhadores dos Servios Nacionais e Regionais44. Quando foi extinto como servio, o SAAL apoiava a construo de 2.259 habitaes e os seus responsveis previam, com base no trabalho desenvolvido, o incio de mais 5.741 at Maro de 1977. Um grande volume de processos documentais de Definio de Unidade Operacional, para Declarao de Utilidade Pblica, de estudos urbansticos, de projectao de infra-estruturas, habitaes e equipamentos estava j concludo. Em Outubro de 1976, cerca de 60 Processos para Declarao de Utilidade Pblica, alguns entregues havia mais de um ano s entidades competentes, aguardavam a respectiva publicao em Dirio da Repblica, sem a qual no podia dar-se sequncia s operaes. De um total de cerca de 20 mil hectares de terrenos a expropriar, com o respectivo processo documental concludo, apenas tinha sido formalizada a posse administrativa de menos de um dcimo. Muitos processos paravam nas Cmaras, nas Direces-Gerais de Urbanizao, na Secretaria de Estado e em outros gabinetes oficiais, sem que houvesse vontade poltica de lhes dar despacho expedito, como requeria o carcter prioritrio das operaes SAAL. Cerca de 20 mil fogos estavam ento em fase de projectao, dos quais mais de 8 mil j em fase final.

    Mas, em 1976, este programa de poltica de habitao para as camadas populares insolventes ou com menores recursos estava condenado extino, j que se situava em contradio com as novas orientaes de poltica econmica e social. E no foram, obviamente, as razes apontadas para a sua extino que a determinaram. As acusaes de que o servio foi alvo nunca foram seriamente comprovadas nem se procedeu a uma avaliao objectiva do trabalho desenvolvido, como seria de esperar. Em contrapartida, o interesse pela experincia de interveno arquitectnica e urbanstica do SAAL tinha atravessado fronteiras e suscitado grande curiosidade por parte de especialistas e instituies especializadas de vrios pases (Itlia, Espanha, Dinamarca, Sucia, Alemanha, Frana, Japo, etc.), manifestada em artigos de revistas de arquitectura e urbanismo45, visitas de estudo, exposies, convites a tcnicos do SAAL para participarem em cursos, seminrios e conferncias internacionais. Na I Conferncia das Naes Unidas sobre Estabelecimentos Humanos - Habitat, realizada em Vancver, no Canad, entre 31 de Maio e 11 de Junho de 1976, cuja delegao portuguesa integrava o idelogo do programa, Nuno Portas, e dois elementos do SAAL, reconhecia-se, alis, a importncia dos princpios que estavam na base do projecto SAAL, nomeadamente a participao popular como elemento indispensvel dos estabelecimentos humanos, em particular nos processos de planificao, de formulao, de execuo e de administrao das estratgias46.

    Era, de facto, na participao popular que residia a essncia do processo, historicamente possvel num perodo poltico em que se apostou na democracia participativa, antes ainda da constitucionalizao do regime democrtico. No de estranhar, por isso, que o SAAL tenha sucumbido na fase de estabilizao da democracia representativa, que, aps 1976, se imps como modelo de regime, coincidindo com a dinmica econmico-social de recuperao dos interesses

    44 Conselho Nacional do SAAL, Livro Branco do SAAL, anexos estatsticos.45 Veja-se, por exemplo, o nmero especial sobre Portugal, da revista Architecture dAujourdhui (Paris, n 185. Mai.-Jun. 1976).46 Citado em Conselho Nacional do SAAL, Livro Branco do SAAL, 334.

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    imobilirios urbanos. Da dinmica participativa intrnseca natureza de interveno do processo SAAL decorria que a prpria morfologia arquitectnica das habitaes construdas ou projectadas se distanciasse dos cnones tradicionais dos bairros camarrios ou da imposio de solues exteriores contra a vontade das populaes. No caso do Porto, por exemplo, as casas foram construdas por um ou dois pisos, organizados em uma ou mais filas, valorizando a identidade socio-espacial das ilhas, com a exteriorizao da cidade escondida47.

    Mais grave e fatal, numa conjuntura poltica de grande tenso social, foi o facto de o projecto entrar em confronto com o modelo econmico dominante, em particular no que respeitava aos fundamentos da propriedade. Ao anunciar, como principal justificao poltica do novo programa, a apropriao de locais valiosos pelas camadas populares neles radicadas sob forma marginal, o despacho de 31 de Julho de 1974 integrava-se no esprito socializante do 25 de Abril, sob a capa tutelar do programa do MFA. Se o fundamento ideolgico desse princpio era pouco explcito, o desenvolvimento do processo SAAL acabaria por pr em causa a legitimidade e os efeitos histricos da apropriao privada dos solos urbanos, acentuando, pelas expectativas criadas, a reivindicao do direito cidade pelas camadas populares a residentes. Impondo-se como alternativa s solues do planeamento dominante e s experincias anteriores ao 25 de Abril, cuja poltica de habitao social conduzira expulso das camadas pobres para as periferias, descaracterizando socialmente a cidade, o SAAL no tardou, por isso, a enfrentar, directa ou indirectamente, a oposio de interesses imobilirios poderosos. Aps o perodo revolucionrio, a metodologia de interveno urbana assumida pelo SAAL, que apontava para o respeito pelos direitos e interesses das populaes radicadas no lugar e para a sua integrao na cidade, tornar-se-ia incompatvel com a recomposio desses interesses imobilirios.

    Condenado e extinto ao fim de pouco mais de dois anos de experincia, antes de qualquer avaliao dos resultados atingidos48, o SAAL no teve tempo nem meios suficientes para ultrapassar o simples apontar de novos caminhos na busca de solues para uma interveno urbana integradora das camadas sociais mais pobres. O volume das realizaes prticas no domnio da construo foi reduzido, no pela ineficincia do processo em si mas pelos entraves colocados s diversas operaes. De resto, a extino do SAAL no ter sido ditada por essa invocada ineficincia mas antes, no momento em que se previa a entrada de muitas operaes na fase de construo, pelo risco de poder assumir resultados irreversveis. Como concluiu Jos Antnio Bandeirinha, o SAAL, no se quedou pela prefigurao de alternativas reluzentes, provavelmente utpicas, mas inertes, e avanou para o confronto com a realidade, avanou para o projecto, avanou para a construo, avanou para o compromisso de vizinhana com as implantaes da cidade e do territrio capitalistas. [] Os arquitectos do SAAL no fizeram planos para a cidade do proletariado, antes encetaram um processo de construo de fragmentos dessa cidade em conjunto com os moradores, um processo to credvel e to assustador que teve de ser interrompido49.

    Hoje, decorridos quarenta anos sobre o incio da actividade do SAAL, possvel perceber que o clima de conflitualidade que o envolveu foi portador de muitas atitudes e valores novos, lenta mas gradualmente adquiridos por vastos sectores da sociedade portuguesa como indispensveis a um modelo de desenvolvimento urbano socialmente inclusivo. Talvez esse tenha sido o grande

    47 lvaro Siza Vieira, O 25 de Abril e a Transformao da Cidade, Revista Crtica de Cincias Sociais (Coimbra, n. 18/19/20, Fev. 1986), 39. Sobre este aspecto, veja-se, tambm, Manuel Correia Teixeira, Do entendimento da cidade interveno urbana. O caso das ilhas da cidade do Porto, Sociedade e Territrio (Porto, n. 2, Fev. 1985), 88-89.

    48 A este propsito, vale a pena realar o valioso contributo de auto-avaliao (Livro Branco do SAAL) organizado pelos responsveis do SAAL, aquando da extino do servio.

    49 Jos Antnio Bandeirinha, O Processo SAAL e a Arquitectura no 25 de Abril de 1974, 260.

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    legado do SAAL, um legado essencialmente pedaggico, que contribuiu para enriquecer outras experincias, cuja vitalidade se manifestou depois com o movimento cooperativo habitacional, um maior pragmatismo e abertura da gesto local, um novo entendimento da arquitectura e da cidade, com a certeza de que as inovaes s sero possveis se assentarem na transgresso de rotinas mas tambm no respeito pelas identidades socio-espaciais. Porque a transformao da cidade, num momento em que esta se confronta com os seus prprios limites de desenvolvimento, exige a participao e o empenhamento colectivos, com todas as vantagens e limitaes que tal opo encerra. Num percurso de aventura e risco, em busca do bem-estar colectivo, porque, como escreveu lvaro Siza, reportando-se experincia do SAAL/Norte, um processo de participao move-se entre conflitos, tenses, choques, entrega, saltos, paragens; compreende erros e tambm a sua crtica; acumula experincia; tende globalidade50.

    Em contrapartida, a extino do SAAL gerou no s o desperdcio de imenso trabalho realizado pelas BTs, que poderia ter sido aproveitado pelas cmaras municipais para a concretizao de aces exemplares no domnio da habitao popular, e sobretudo o abandono de polticas de habitao inclusivas, em favor do retomar da especulao imobiliria desenfreada, com a apropriao de espaos de habitao popular e uma nova tendncia de expulso das populaes mais pobres para os concelhos limtrofes51. Entregue iniciativa privada e ao mercado, a questo da habitao deixou de fazer parte das prioridades governativas, impondo aos mais pobres loteamentos desconexos em cada vez mais distantes periferias52.

    50 lvaro Siza Vieira, O 25 de Abril e a Transformao da Cidade, 39.51 Virglio Borges Pereira, A poltica de habitao do estado e os seus efeitos sociais no Porto contemporneo: uma perspectiva

    sinttica e panormica in Famlia, Espao e Patrimnio, coord. Carlota Santos (Porto: CITCEM, 2011), 553-555.52 Manuel Graa Dias, O habitar do povo in Como se faz um Povo, coord. Jos Neves (Lisboa: Tinta-da-China, 2010), 335.