110810121122Sobre Mil Platôs - Antonio Negri

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    Sobre Mil Plats

    Antonio Negri52

    em O Ser e o Tempoque Heidegger decreta o fim das Geisteswissens-chaften53e sua tradio (iluminismo e hegelianismo), quando, ao comentar a trocade cartas54entre Dilthey e Yorck von Wartenburg, rende homenagem ao ltimo porsua acabada compreenso do carter fundamental da histria como virtualidade[] (o que ele deve) ao conhecimento que tem do carter do prprio Dasein55

    humano. Conseqentemente, prossegue Heidegger, o interesse de entender ahistorialidade enfrenta o desafio de elaborar a diferena de gnero entre o nticoe o histrico. Mas distanciar-se- de Yorck quando este, depois de estabelecerclaramente esta diferena, desloca-se da virtualidade para o misticismo.

    Se, ao contrrio, depois de separada do ntico, a questo da historicidademostra-se ela mesma como questo ontolgica que investiga a constituio do serdo ser histrico, novamente em direo a Dilthey que temos que nos voltar, ape-sar de seu confuso vitalismo. Heidegger realiza duas operaes simultaneamente.

    Por um lado, expulsa as Geisteswissenschaftenda posio que ocupavam no centroda metafsica, como herdeiras do Iluminismo e como sada do hegelianismo. Poroutro, completa o trabalho crtico que mostrou seu valor, precisamente, no histori-cismo de Dilthey (apesar das limitaes que Yorck assinalou) trabalho crtico quedesdobra a busca pela significao da historicidade e permite que nos desloquemosda teoria da objetividade para a teoria da expresso; do reconhecer a historiografiano contexto da crtica do conhecimento, para defini-la no centro do esquematismotranscendental. A historicidade posta ento como uma dimenso ontolgica, e sdeixa para a historiografia seu resduo ntico (Negri, 1959, cap. 1-3).

    52Uma verso anterior deste ensaio apareceu na revista Chimres 17 (Paris, outono de 1992)com o ttulo Sur Mille Plateaux. Tambm foi publicado no Graduate Faculty Philosophy

    Journal, v. 18, n. 2, 1995, em homenagem a Flix Guattari. Esta verso foi traduzida por CaiaFittipaldi.53A traduo literal de Geisteswissenschaften cincias do esprito (distinguindo-se das cin-cias da natureza, uma distino defendida, entre outros autores, pelo filsofo e historiadorWilhelm Dilthey), mas corresponde tambm ao que designamos em portugus como cinciashumanas (N. de R.).

    54Briefwechsel no original.55 O ser-a, o ser-no-mundo.

    LUGAR COMUM N23-24, pp.95-112

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    interessante observar que Heidegger rompe aqui (e este fenmeno recorrente em Heidegger) com ambigidade o ritmo destinal de sua crtica ao

    moderno e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, traa um significado outro domoderno que reenvia quela outra viso da modernidade que, de Maquiavel aSpinoza e Nietzsche, apreende a historicidade como absoluta virtualidade, e o sercomo potncia do Ser-a. A virtde Maquiavel se instala precisamente nesta di-menso. Mas, sobretudo no Tratado Teolgico Poltico(1670) de Spinoza que asignificao da histria vista como a realizao de uma faculdade: a imaginao.Nascida da confuso do primeiro tipo de conhecimento, dissolve-se criativamenteno segundo tipo, e apresenta a absoluta potencialidade da construo tica do ser.

    esse impulso do ser como a abertura da histria, esta definio absolutamenteimanente de um significado da histria que Heidegger retoma e fixa com ambi-gidade. Nietzsche tinha compreendido sem qualquer ambigidade este pontocrtico fundamental que, ao mesmo tempo, cava o tmulo de todos os historicis-mos e reivindica a abertura da historicidade constituindo-se no cerne de uma teo-ria do ser intempestivo, virtual e criativo (Deleuze, 1962). A auto-ultrapassagemdo prprio tempo est em ato: uma relao com a histria que consiste numaredeno, no como adorao do passado mas como conscincia de que s a ten-so entre o presente e o futuro trama do possvel, uma potncia de deciso

    ontolgica. Assim falou Zaratustra:

    Redimir os mortos e metamorfosear cada foi em um eu o queria assim, s istopoderia ser, para mim, chamado redeno. Vontade, este o nome do libertadore do que nos traz alegria; isto o que lhes ensinei, meus amigos. Mas aprendamtambm isto: que a prpria vontade ainda prisioneira. Querer liberta: mas

    qual o nome de quem pe as correntes ao prprio liberador? O que Foi, este o nome que faz a vontade rilhar os dentes, e sua mais solitria aflio. Impo-tente em referncia a tudo o que aconteceu, olha o passado com ira. A vontade

    no pode querer para trs: que ela no possa quebrar o tempo e sua avidez, eisl a mais secreta aflio da vontade []. Que o tempo no retroceda, eis o que airrita; foi, esse nome da pedra que ela no pode fazer rolar (Nietzsche,Assim

    Falou Zaratrustra, Da Redeno, citado por Lwith, 1949, p. 310).

    esse fazer rolar que contm todo o significado da historicidade.Voltemos a Dilthey. em sua obra que, efetivamente, esto mais plena-

    mente articuladas as tenses entre a investigao histrica e a exigncia de quese renove o questionamento sobre o significado da historicidade. sobretudo em

    sua obra que o trabalho de compreenso histrica procura identificar o seu prprioterreno constitutivo que ele s vezes definiu, grosseiramente, como filosofia de

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    vida, como psicologia compreensiva etc. Obcecado com o problema da subjetivi-dade histrica, Dilthey, durante toda sua investigao, faz o inventrio de todas as

    formas possveis mediante as quais a cincia histrica pode, por assim dizer, abrir-se para a historicidade. Desde as posies positivistas de sua Aula inaugural,extremadamente crtica do carter eunuco da objetividade histrica, at a agudaconscincia em,Erlebnis und Dichtung56,de que a histria no suscetvel, denenhum modo, de constituir a suprema cincia acabada, capaz de dar conta, paraum dado jogo de fenmenos, das causas concomitantes, nem que se lhe atribuaum grau mximo de cientificidade; desde o trabalho kantiano doEinleitug en DieGeisteswissenschaften57tenso entre a afirmao do prprio eu, (trata-se, pois, de

    perceber, sem se deixar amarrar pelos preconceitos, a realidade da vida interiore, comeando desta realidade, determinar o que so a natureza e a histria emrelao vida interior) e uma concepo agora segmentada, fractal e difusa dessemesmo eu (o indivduo singular o ponto de conexo de uma pluralidade desistemas), at a construo de tipologias histricas como proposta metodolgicapara apreender ao mesmo tempo universalidade e singularidade; desde o retorno psicologia em osIdeen58, que aspira a dar uma consistncia dinmica e produ-tiva ao sujeito histrico, e a descobrir nele a potncia da Erlebnis59(ao mesmotempo como vitalidade e conexo, como expresso e determinao objetiva), at

    as ltimas posies vitalistas nas quais o ncleo psicolgico abre-se funo ex-pressiva e determina-se numa presena que constitui a abertura tica: pois bem,durante todo este inventrio, as Geisteswissenschaften so concebidas, seja qualfor o caso, como crises e todos os caminhos crticos esto abertos problemticade uma historicidade que ainda no consegui definir-se. Essa indeciso de Dilthey,este modo de converter-se em psiclogo ou filsofo da vida, que sempre o conduzalm de toda posio filosfica dada, ilumina a intensidade da passagem ontolgi-ca que ele realiza e que nos leva beira da descoberta de um novo significado da

    historicidade (Aron, 1950).Por que este caminho diltheyano to importante? Porque, antecipan-do as concluses de Heidegger, explora tambm vias radicalmente outras e sdepositando e afinando a significao dessas operaes que a deciso ontolgica

    56A vivncia e a poesia (Nota de Traduo).57Introduo s cincias humanas, 1830 (Nota de Traduo).58Ideen ber ein beschreibende und vergliedernde Psychologie[Idias sobre uma psicologia

    descritiva e analtica], 1894.59[existncia, vivncia].

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    heideggeriana, a significao da historicidade como virtualidade, adquirem todaa sua significao.

    Questionar nossa vontade de verdade; devolver ao discurso seu carterde evento; remover, por ltimo, a soberania do significante. Quando Foucaultanuncia este programa em suaLeon Inaugurale60, tambm ele est no limite dacrtica da historiografia e das Geisteswissenschaftenem geral; expressa a aberturana virtualidade da histria, que se constituiu como conscincia filosfica entreDilthey e Heidegger. E Foucault, tal como Dilthey, havia passado por fases ex-tremamente ambguas ao longo de sua experincia cientfica. Desde seus estudosde juventude sobre Ludwig Binswanger at os estudos de Weizcker e, depois, os

    estudos da antropologia pragmtica de Kant, Foucault seguiu e esgotou todas astentativas de reafirmar o eu (em oposio objetividade histrica) enquanto pes-soa moral, psicolgica ou biolgica (Negri, 1982, p. 70 e seguintes). Quando en-fim, sobretudo nos trabalhos da maturidade, enfrentou definitivamente o tema dahistoricidade como agencement, o marco j estava fixado a histria produode subjetividade, cuidado de si, expresso ontolgica imediata e direta. Como emDilthey, porm mais do que em Dilthey, as experimentaes transitrias, psicolo-gizantes, culturais, vitalistas da compreenso do real histrico so transfiguradasdentro de um novo ponto de vista: o da presena do mundo como a trama do ser

    que deve ser percorrido, que a todo momento criado. Como em Dilthey, a pas-sagem se realiza, em Foucault, desde uma teoria da histria, at uma apercepofundamental da historicidade depois de Heidegger, isto , depois que a consci-ncia dessa tem sido estabelecida pela perspectiva nietzschiana. neste percurso,mediante esses sucessivos avanos que ocultam problemas e discursos anlogos,que Dilthey retomado e, por assim dizer, posto no prprio lugar da inveno dahistoricidade, onde a ao histrica torna-se a nica perspectiva segundo a qual sepode interpretar o ser. O fim das Geisteswissenschaften a renovao da ontolo-

    gia (Deleuze,Foucault, 1987).Contudo, este grandioso projeto no teve um grande sucesso na hist-ria do pensamento contemporneo. Assistimos a um estranho fenmeno: dessasGeisteswissenschaften, que certamente no sobreviveram ao prolongado processocrtico que vai de Nietzsche a Heidegger, de Dilthey a Foucault, no se encontrao cadver em lugar nenhum. De fato, a renovao crtica da pesquisa sobre ahistoricidade desde o ponto de vista constitutivo, o descobrimento da potnciado ser, foram, por assim dizer, neutralizados no interior de novas disciplinas, no-vas distribuies do saber, novos conceitos de experincia e de um novo clima

    60Collge de France, 2/12/1970.

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    filosfico, que se tornou cada vez mais relativista e ctico. Um vitalismo tnue esuperficial bloqueou esse outro vitalismo, trgido mas sempre trgico, que ia da

    historiografia ao ser, para abrir-se novamente na historicidade. Uma vez derruba-do o ponto de vista historiogrfico objetivamente eunuco, uma vez abandonadoo hegelianismo em todas as suas entusiastas ressurgncias de efectualidade brutae a dialticas em todos os seus subterfgios, uma vez adquirida esta viso desdebaixo que permite ao sujeito histrico de determinar agencementsontolgicos,pois bem, esta perspectiva viu-se novamente reduzida ao horizonte do relativismoe do ceticismo. As diferentes escolas hermenuticas que se sucedem, e que pre-cisamente pretendem ser as herdeiras do pensamento Diltheyano e Foucaltiano,

    nos levaram s delcias do pensamento fraco. A significao da complexida-de dos processos que emanam dos sujeitos histricos converteu-se em pretextopara repudiar o carter ontologicamente forte de sua emergncia. O movimentode constituio, negado totalidade, foi, por esta mesma razo, reduzido pre-cariedade, e as singularidades reduzidas ao encanto da particularidade nua. Dofim do historicismo, passamos assim, imperceptivelmente mas seguramemte, determinao do fim da histria. essa mesma objetividade eunuco contraa qual se ergueram as crticas das Geisteswissenschaftenque agora reaparece: ohistoricismo ganhou novamente, mas com a aparncia de uma enciclopdia dos

    saberes para uso das mdias. O ser historicamente aberto tornou-se ser falante efalastro. O fim das Geisteswissenschaftentransformou-se, ele mesmo, no triunfoda tagarelagem.

    Nesta nova sntese experincia/compreenso, sobre a qual reina o ps-moderno, os mecanismos de perverso do ensino crtico, de Dilthey a Heidegger,so perfeitamente perceptveis. No grande Gadamer, como nos pequenos Rorty eVattimo, o movimento circular da experincia e do entendimento j no abre paraa historicidade, a no ser no sentido de um condicionamento histrico, substan-

    cialmente, de uma finitude que, longe de abrir o ponto de vista subjetivo consti-tutividade, fecha-o na disperso vnementielle, numa necessidade de significadoque se enrosca nela mesma, numa concepo pessimista e totalizante do ser, quetenta justificar-se no religioso, mas s encontra fundamento no vazio da msticaou da democracia. Exalta-se em Dilthey o movimento circular experincia/enten-dimento sem apreender a ruptura na expresso dessa circularidade; toma-se emHeidegger a crtica da empiria, do ntico, ao mesmo tempo evita-se cuidadosa-mente sua percepo do fundamento potencial do ser que, j na retomada de Yorke a polmica contra seu teologismo, permitia restaurar o ponto de vista diltheyanoda expresso e criatividade da historicidade. Ao passo que precisamente proce-

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    dendo crtica do ntico, com as armas da apercepo ontolgica, como base dacrtica histrica, como quando se abre fecundidade de sua experincia, como

    experincia da historicidade, que Heidegger nos mostra o melhor dele mesmo. esse Heidegger que conscientemente retoma o Nietzsche esquecido, que incons-cientemente reproduz o Spinozismo da imaginao que ento jogado para obrejo. A histria terminou, nos sussurram os hermeneutas e os ps-modernos, ea historicidade do ser, separada da constitutividade do ser, converte-se em umapietas aucarada e melanclica. O descobrimento da historicidade padece entoo desastroso sentimento de fim da histria... e nos deixa desarmados diante dolimite de uma poca (Pierre Macherey, 1992).

    II

    Contrastando radicalmente com a atual deriva, os Mil Platsreinventamas cincias do esprito (lembrando que, na tradio qual se filiam Deleuze eGuattari, Geist61 o crebro), ao renovar o ponto de vista da historicidade, em suadimenso ontolgica e constitutiva. Os Mil Platsultrapassam o ps-moderno eas teorias da hermenutica fraca: eles antecipam uma nova teoria de expresso,um novo ponto de vista ontolgico instrumento que lhes permite atacar a ps-modernidade, revelar e dinamitar suas estruturas. Trata-se de um pensamento for-te, mesmo quando se aplica fraqueza do cotidiano. No que diz respeito a seuprojeto, trata-se de apreender o criado, do ponto de vista da criao. Este projetonada tem de idealista: a fora criativa um rizoma material que ao mesmo tem-po mquina e esprito, natureza e indivduo, singularidade e multiplicidade eo cenrio, a histria, do ano 10.000 aC. at hoje. O moderno e o ps-modernoso ruminados e digeridos, e reaparecem para ajudar a fertilizar generosamenteuma hermenutica do porvir. Ao reler Mil Platsdez anos depois, o que maisimpressiona a incrvel capacidade de antecipao que ali se expressa. O desen-

    volvimento da informtica e da automatizao, os novos fenmenos da sociedademiditica e da interao comunicacional, os novos caminhos que as cinciasnaturais e a tecnologia cientfica tomaram, na eletrnica, na biologia, na ecologiaetc. so no apenas considerados, mas tambm considerados como um horizonteepistemolgico; j no como mero tecido fenomenolgico submetido a uma ex-traordinria acelerao. Mas a superficialidade do contexto em que a dramaturgiado futuro acontece de fato ontolgica uma dura e irredutvel superficialidade

    61[esprito].

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    que , precisamente ontolgica e no transcendental, constitutiva e no sistmica,criativa e no liberal.

    Em Mil Plats, podemos tentar entrever pelo menos quatro temas funda-mentais. O primeiro a teoria da expresso e dos agenciamentos. O segundo a teoria das redes. O terceiro a nomadologia. O quarto a teoria ontolgicada superfcie. Quatro pontos, quatro dimenses que integram o trabalho de cons-tituio das novas cincias do esprito, ao definir o plano em que elas poderose desenvolver, como produtos de uma abertura da possibilidade, ou, melhor, dapotencialidade do ser.

    A A teoria da expresso e dos agenciamentos, a filosofia primeira

    de Deleuze e Guattari. Na crtica feita psicanlise, em especial em OAnti-dipo(1970), foi identificado este plano de fora. A fora da expresso ontolgica,criativa e estruturada. Isto significa que o ponto de vista da singularidade ime-diatamente conjugado com uma definio do espao em extenso, segundo a ima-gem Bergsoniana do movimento aberto e estruturante. A singularidade, individualou coletiva, a determinao da relao ator/evento so postos em movimento. Ahecceidade62, definida pelo primeiro Deleuze como o termo problemtico funda-mental da histria da filosofia, originariamente ativa e desdobra-se segundo asdimenses do movimento, mediante um faisceaude desejos ou elementos ma-

    qunicos. A fora inicial subjetiva e construtiva; ela agenciamento, termoque significa: expresso mais organizao; ou ainda expresso organizada, fora,extenso, movimento organizados. O ser da mesma maneira que a histria soconcebidos como produo e produto de agenciamentos subjetivos. O mundo construdo e reconstrudo de baixo para cima. A historicidade dada como pre-sena. Nesta articulao, convergem ao mesmo tempo uma definio metafsicade movimento ou uma boa fenomenologia Bergsoniana do espao, a liberao dodesejo, em sentido analtico, como potencialidade universal, aberta e singular;

    e enfim uma concepo tica da singularidade, naquele sentido Spinoziano quetanto agrada a Deleuze. O marco geral parece, numa primeira abordagem, ani-

    62Hecceidade, rastreado desde Duns Scott (sec. 13-14). Do latim haec, isto (pron.). L sel: O que a est em questo aproximadamente o seguinte: o que explica o fato de que (porexemplo), um clone de mim-mesmo no seja um instncia de mim-mesmo, mas uma instnciada natureza humana? Resposta: a hecceidade; alm de explicar a distino, tambm explica a

    no-instanciabilidade. Ch.-Sanders Pierce tambm usa o mesmo termo, traduzido como this-ness(do ingls this[isto/isso]), quando estuda a segundidade.

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    mista, hilozoosta63, pr-Socrtico. Mas o vitalismo invertido desde o momentomesmo em que afirmado: pois ele no se apresenta nem como invlucro do

    real, nem como concepo do mundo, nem como fora indistinta da produo doreal, seja natural ou histrico, mas como todos estes elementos ao mesmo tempopostos a servio da produo de singularidade, da emergncia da singularidade.As persistentes (embora convergentes) contradies entre as pesquisas de Dil-they, Nietzsche e Heidegger (embora convergentes) so aqui dissolvidas. Se o ser historicidade, a ontologia pode ser devolvida instncia de produo, quelemomento da expresso originria. A partir dali, expresso e produo abrem-separa a materialidade do moderno. A relao homem/mquina, que caracteriza a

    modernidade, torna-se contedo e forma do agenciamento subjetiva. As mqui-nas, a realidade construda pelo capitalismo, no so fantasmas de modernidadeatrs dos quais a vida pode correr restando inclume so, muito pelo contrrio,as formas concretas segundo as quais se organiza a vida, se transforma o mundo,so as conexes materiais dentro das quais se produz a subjetividade. Ordo et con-nexio rerum idem est acordo et connexio idearum64. Contudo, a relao homem/mquina sempre um evento singular, quer dizer um evento que, apropriando-sea materialidade, produz a subjetividade. A construo do ser como tarefa univer-sal , deste modo, considerada na base do processo em sua integralidade ou, se

    preferirmos, como procedente tanto de eventos como de singularidades. O evento a produo dos corpos, a produo histrica do conjunto dos corpos e suas re-laes. A cosmogonia atomstica de Spinoza aqui reinterpretada e reformulada luz deste vitalismo da historicidade que os grandes modernos nos ensinaram. Aproduo dos corpos a produo da historicidade; a historicidade a produode corpos. Em uma pgina de Mil Platsencontra-se esta pergunta fundamental:Depois de tudo, o grande livro sobre o corpo sem rgos (CSO) no seria atica?(Deleuze e Guattari, 1980, p. 190-191), e isso explicando que o CSO o

    campo de imanncia absoluta do desejo, o plano de consistncia prprio da his-toricidade. O mundo tem uma matriz zero enquanto no se apreende o processode constituio de subjetividade, e no se segue a infinita tenso da constituio(ibidem, cap. 6).

    B A teoria das redes. Pode-se seguir o ritmo de constituio medianteuma segunda abordagem, que a da teoria das redes. Depois de ter estabelecido

    63Aproximadamente: o interesse pela natureza (zoon, gr.) [ainda] est integrado ao interessepel esprito.64A ordem e a conexo das coisas est de acordo com a conexo das idias. Spinoza.Etica. II,

    prop. VII, G. 2, p. 89.

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    a instncia da produo na fora do desejo e seu processo maqunico, Deleuze-Guattari passam anlise da extenso [tendue], de sua expanso em ato e de seu

    movimento. O que caracteriza esse espao o rizoma. O rizoma uma fora, umphylumque abre a um horizonte de indomvel arborescncia e, neste processo,a singularidade singulariza-se cada vez mais. Ao mesmo tempo, na riqueza destaproduo de singularidades, o contexto de vida apresenta-se como um conjuntode interrelaes - unidade e multiplicidade, conexes e heterogeneidade, rupturase linhas de fuga se invertem segundo uma cartografia incessantemente renovada,formando sempre novos sistemas, no auto-centrados mas em expanso. a partirda que as cincias do esprito podem comear a se reorganizar, quer dizer quando

    as tenses rizomticas e aos agenciamentos maqunicos aparecem como agencia-mentos subjetivos de enunciao as dinmicas constitutivas deslocam-se entoda fsica do rizoma para o regime de signos que caracteriza a cincia. A superfciedo mundo se organiza segundo regimes de signos, sem dispersar sua consistnciamaqunica, mas renovando-a na enunciao. Existe, pois, uma rede das cincias doesprito: ali, a rizomtica retroage na esquizo-anlise, essa para a estrato-anlise eem seguida pragmtica e micropoltica. J analisamos a relao entre esquizo-anlise e rizomtico na parte A desta seo; trata-se agora estudar sua relaocom os outros pontos. Primeiramente, no que concerne estrato-anlise: a cincia

    estabelece-se no horizonte sistmico construdo pela arborescncia do rizoma, edescobre sua conflitualidade. O prprio sistema constitui uma arborescncia, oconflito sair da orientao de seus ramos: um conflito que no poder ser reas-sumido, simplificado ou reduzido, no sistema, mas que se repete continuamentecomo a regra de autoconstituio das redes reais. O ponto de vista da historicidadeno apenas constitutivo, ele tambm conflitivo: como em Spinoza, a guerraque gera vida. As redes constituem aberturas e agenciamentos ambguas: abrem-se, fecham-se e novamente se abrem, enquanto determinam conflitos. Cada ponto

    da arborescncia maqunica ou enunciativa se reabre seqencialmente em outrasarborescncias, outras redes, tanto por cima como por baixo, de acordo com mo-dalidades conflitivas. Estamos assim completamente inseridos e submersos numconjunto de sistemas produtores de signos em mutao permanente: disso quese preocupa a cincia do esprito. A prpria dimenso epistemolgica encontra-senum horizonte de guerra. A segmentao dos traos de enunciao (expressivos) contnua. devir do real e da cincia, a resultante de todos estes processos. Odevir a resultante inovadora no magma da expresso, , em alguma maneira, asoluo da guerra e, por isto mesmo, a reabertura de cenas conflitivas. A rizom-tica refere-se a um mundo hobbesiano no qual contudo no so os indivduos

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    proprietrios mas (de maneira spinozista) as singularidades produtivas, desejan-tes, individuais ou coletivas, que so as protagonistas. As cincias do esprito so

    pois cincias polemolgicas65, anlises das redes de protagonistas que participamdo conflito e nele se constituem elas aceitam, sem nenhuma reserva, o terrenodo questionamento nietzscheano.

    C A nomadologia. Pragmatismo e micropoltica constituem-se na no-madologia. Isto significa que o horizonte da guerra est limitado por potnciaspragmticas. O mundo histrico, constitudo em geologia da ao, emana a partirde uma genealogia de moral, no sentido literal do termo, incansvel, incessante.Produzidas por arborescncias conflitivas, as subjetividades so nmades, quer

    dizer livres e dinmicas. Como sabemos, as subjetividades organizam-se median-te agenciamentos maqunicos portanto como mquinas de guerra. As mquinasde guerra representam o tecido molecular do universo humano. A tica, a polticae as cincias do esprito tornam-se aqui uma nica e mesma coisa: as mquinasde guerra interpretam seu projeto, constituem o mundo humano ao realizar a dis-criminao entre desejo e antidesejo, entre liberdade e necessidade. Trata-se no-vamente de rizomas e arborescncias mas dotados de significao. a escolhana guerra que determina a significao da historicidade. Mas o que significaoneste horizonte completamente imanente, neste cenrio absolutamente no-tele-

    olgico? a expresso do desejo, a enunciao e a organizao do desejo comoevento, como discriminao vis visqualquer transcendncia, como hostilidadea qualquer bloqueio do devir. Politicamente, a mquina de guerra define-se comopositividade porque ela se pe contra o Estado. Deleuze-Guattari reinventam ascincias do esprito, medida que atacam os ltimos vestgios do historicismo,do hegelianismo e sua concepo de um esprito objetivo que se sublima noEstado. Diante ao Estado, em particular diante ao Estado do capitalismo madu-ro, a ordem molecular organiza espontaneamente um dispositivo molar, torna-se

    necessariamente um contrapoder: a sociedade contra o Estado ou, melhor, muitomelhor, o conjunto de subjetividades desejantes e suas infinitas arborescncias,no ritmo nmade de suas aparies, contra tofa mquina fixa, centralizadora ecastradora.

    Na realidade, s podemos apreender e apreciar a subjetividade e o sig-nificado da historicidade de um ponto de vista pragmtico. O ponto de vista quesustenta a nomadologia uma verdadeira filosofia da prxis. Ser nmade na

    65Polemologia. Estudo da guerra como fenmeno social autnomo; anlise de suas formas,

    causas, efeitos etc. (Dicionrio Houaiss, em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=-polemologia&cod=151227).

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    ordem da histria produzida e fixada, significa produzir permanentemente estesagenciamentos maqunicos e de enunciao, que abrem em novas arborescncias

    rizomticas, que, pura e simplesmente, constituem o real. Assim a poltica passaa ser implementao de micro-agenciamentos, construo de redes molecularesque permitem ao desejo de se desdobrar e, mediante um movimento permanente,fazem dele a matria do pragmatismo. A pragmtica na micro-poltica e da micro-poltica o nico ponto de vista operatrio da historicidade: pragmtica comoprxis do desejo, micro-poltica como terreno da subjetividade, incessantementepercorrida e para ser percorrida, indefinidamente. Esta alternncia de pontos devista e esta convergncia de determinaes construtivas nunca descansam. O ob-

    jetivo da ordem molar absorver a fora do desejo e re-moldar os dispositivoscom o nico objetivo de bloquear o fluxo pragmtico do molecular: o molar , pordefinio, o obstculo ontolgico do molecular. Ao contrrio, o fluxo molecular indomvel, busca permanentemente transformar os dispositivos de bloqueio eabrir o caminho para a historicidade. Mas o que a revoluo? fazer desse pro-cesso infinito um evento. A linha poltica de Mil Plats aquela que leva o dispo-sitivo moleculares dos desejos a resistir ordem molar, a evit-la, a contorna-la, afugir-lhe. O Estado no se reforma nem se destri: a nica maneira de destrui-lo de fugir a ele. Uma linha de fuga, organizada pela criatividade do desejo, pelo in-

    finito movimento molecular dos sujeitos, por uma pragmtica reinventada a cadainstante. A revoluo o evento ontolgico da recusa e atualizao de sua infinitapotencialidade.

    D O marco ontolgico geral. A partir deste conjunto de consideraesque deram origem a uma viso constitutiva do mundo, cuja genealogia a tramade toda subjetividade e todo evento, podemos agora voltar atrs e re-examinaro marco ontolgico geral que os Mil Plats nos oferecem. Mil plats de umamesma superfcie. Uma superfcie plena de fendas, de rupturas, de construes e

    reconstrues: um territrio permanentemente ligado e dobrado. Uma nica di-reo, uma nica teleologia: a crescente abstrao das relaes que acompanha acomplexidade das arborescncias, o desenvolvimento dos rizomas e a expansodos conflitos. Uma abstrao que ela mesma um territrio, um novo territrio,novamente coberto de dobras, sombras variadas e alternativas possveis. A potn-cia do desejo fez-se superfcie de um territrio, e a transformao repete-se inde-finidamente. Este novo territrio sempre produtivo, infinitamente produtivo. por essa razo que o mundo um territrio que deve ser sempre territorializado,ocupado, reconstrudo, habitado; uma tenso que s a intensidade de uma aocriativa mltipla pode satisfazer. Nesta viso, a relao entre mquina e enuncia-

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    o, entre cincia e ontologia, global. A cincia constitutiva na medida queela decalque, que ela imita o real: ela mergulha nele para construir-lo. A cincia

    constri planos de consistncia ontolgica cada vez que o conjunto das funesde enunciao torna-se objeto de uma pragmtica, ou ainda se realiza no evento;numa determinao. A subjetividade tambm apresenta-se na superfcie, comodobra da superfcie. Mas ns sabemos o que supe a leveza do evento to forteque a produo de subjetividade: o agenciamento maqunico, o atravessamentodo conflito, a enunciao do projeto, a expresso do desejo, a realizao do infi-nito no evento. um novo mundo que aqui descrito. Se cada filosofia assumee determina sua prpria fenomenologia, aqui se afirma energicamente uma nova

    fenomenologia. Est se caracteriza pelo processo que devolve o mundo produ-o, a produo de subjetividade, a subjetividade potncia do desejo, a potnciado desejo ao sistema de enunciao, a enunciao expresso. E vice-versa. pordentro da linha traada pelo vice-versa, quer dizer, subindo da expresso subje-tiva para a superfcie do mundo, em direo a historicidade em ato, que se revelaa significao do processo (ou, outra vez, a nica teleologia que a imanncia abso-luta pode permitir-se): o significao do processo o da abstrao. O sujeito queproduz o mundo, na horizontalidade alargada de suas projees, realiza cada vezmais ele mesmo sua prpria realizao. primeira vista, o horizonte do mundo

    construdo por Deleuze-Guattari parece ser animista: mas logo se aparece que esteanimismo traduz a mais alta abstrao, o incessante processo dos agenciamentosmaqunicos e das subjetividades se eleva a uma abstrao cada vez maior. Nestemundo de cavernas, de dobras, de rupturas e de reconstrues, o crebro humanotenta compreender antes de mais nada sua prpria transformao, seu prpriodeslocamento, alm da conflitividade, onde reina a mais elevada abstrao. Masesta abstrao novamente desejo.

    IIISeMil Platsedificam o terreno no qual redefinido o materialismo do

    sculo 21, Quest ce que la Philosophie? (1991), ensaio publicado por Deleuze-Guattari em 1991 como apndice a Mil Plats, nos ilustra sobre este tema. Asinergia de anlises sobre a cincia, a filosofia e a arte que se desdobrava incan-savelmente em Mil Plats, com exuberncia digna da matria tratada, torna-seaqui ilustrao pedaggica, popularizao dos mecanismos conceituais que estona base do processo expositivo de Mil Plats. Neste ensaio, as funes meto-

    dolgicas, tericas e prticas so delimitadas com mxima clareza. Talvez sejapossvel identificar aqui (em Mil Plats vistos mediante o ensaio pedaggico)

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    os elementos fundamentais de renovao do materialismo histrico, em funodas novas dimenses do desenvolvimento capitalista, quer dizer, esse plano de

    mxima abstrao (a subsuno real da sociedade no capital) qual conduz eno qual se reformulam hoje as lutas sociais. Isto sem esquecer que na filosofiadas cincias do esprito de Deleuze-Guattari, assim como no materialismo his-trico, encontra-se a mesma exigncia tica e poltica de liberao da potnciahumana. Qual , ento, o contexto produtivo no qual nos movemos e a partir doqual pode e deve ser renovado o materialismo histrico como base das cinciasdo esprito?

    Mil Platsdo uma resposta explcita a esta pergunta. Mediante a exten-

    so e a complexidade das anlises que desenvolvem, os autores esboam o prprioplano que Marx identificava tendencialmente no Fragmento sobre as Mquinasdos Grundrissee que definia como a sociedade do General Intellect66. Trata-sede um plano no qual a interao homem/mquina, sociedade e capital, tornou-seto estreita que a explorao do trabalho assalariado, material e temporalmentequantificvel, devem caduca; incapaz de determinar uma valorizao, base mi-servel de explorao diante da potncia das novas foras sociais, intelectuaise cientficas sobre as quais, doravante, repousa hoje exclusivamente a produodas riquezas e a reproduo da sociedade. Os Mil Platsregistram a realizao

    da tendncia analisada por Marx, e desenvolvem o materialismo histrico dentrodesta nova sociedade. Tentam, portanto, construir este novo sujeito que revelaa potncia do trabalho, tanto social como intelectual e cientfico. Um sujeito-mquina que tambm um sujeito tico; um sujeito intelectual que tambm umcorpo; um sujeito desejante, que tambm fora produtiva; um sujeito plural edisseminado, que contudo se unifica na pulso constitutiva do novo ser. E vice-versa, em todos os sentidos.

    O que fundamental aqui o deslocamento completo da valorizao

    da produo, na passagem da esfera da explorao material direta para aquelada dominao poltica (sobre a cooperao social, entre o desenvolvimento dasubjetividade coletiva e a potncia da produo intelectual e cientfica). Nestedeslocamento, a interatividade social fica submetida contradio molar da do-minao, ela tambm explorada: mas o antagonismo elevado ao nvel mximo,ele atua mediante uma implicao paradoxal do sujeito explorado. Confrontandoas anlises foucaltianas do poder, Deleuze enfatiza a passagem da sociedade dis-ciplinar sociedade de controle, caracterstica fundamental da forma-Estado

    66Ver em K. Marx, Grundrisse der Kritik des politischen konomie, Dietz Verlag, 1953, e A.Negri, Marx au-del de Marx, C. Bourgois, 1979.

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    contempornea (Deleuze, 1990, Post-scriptum sobre as sociedades de controle).Hoje, neste marco aquele ao qual os Mil Plats remetem a dominao, em-

    bora permanea o tempo todo, to abstrata quanto parasitria e vazia. Levadoa seu mximo grau, o antagonismo, por assim dizer, esvaziou-se, o comandosocial tornou-se intil. O controle da sociedade produtiva imediatamente umamistificao: j no tem sequer a dignidade que funo de organizao detinha,co-natural de algum modo a figura do explorador, na sociedade e na forma-Estadodisciplinares. Se as coisas so assim, o trabalho produtivo do novo sujeito social imediatamente revolucionrio, sempre libertador e inovador. nessas bases queo materialismo histrico renovado, implicitamente, na fenomenologia dos Mil

    Plats, explicitamente, na metodologia elaborada em O que a filosofia?Antesde tudo, o materialismo histrico como cincia. O ensaio nos diz que a atividadecientfica se forma a partir de observadores parciais que assemblam funesem planos de referncia. O materialismo histrico pode ser mais do que pro-mover o ponto de vista proletrio e fazer da critica das contradies o plano dereferncia? Pode ser outra coisa que o descolamento de um sujeito parcial no seiode uma tendncia que traduz materialmente uma trama de leitura do real? Ou seja,em nosso caso, do desenvolvimento capitalista como referente global do conjuntodas contradies que determinam o movimento do trabalho abstrato? Plano de

    referncia: novamente o mundo da subsuno real, da completa submisso dasociedade ao capital. O trabalho: rizoma que produz o real, que o passar daordem molecular ordem molar, no curso do desenvolvimento, que atravessa ir-resistivelmente a guerra e que, na guerra, define a liberao. O plano de referncia o Umwelt67do trabalho social e suas contradies.

    O lugar da filosofia ali enquanto ela pragmtica, tica e poltica. Oobservador parcial torna-se aqui o personagem conceitual da filosofia. Estepersonagem conceitual pode ser diferente da nova figura do proletariado, o Ge-

    neral Intellect como subverso ou seja, uma nova figura do proletariado que tanto mais reunificada como potncia social e intelectual da produo, quantoele difuso no espao (uma multido spinoziana, no literal sentido do termo)?A filosofia de Deleuze-Guattari imita a nova realidade do proletariado moderno,define as figuras de sua necessria subverso. Por um lado, ento, o personagemconceitual duplica o real, f-lo aparecer no seu dinamismo conflitivo e na realiza-o de seu movimento tendencial. Por outro lado, apresentando-se a como desejo,como produo utpica indomvel, o personagem conceitual proletrio promoveuma ruptura impiedosa e permanente de todas as referncias materiais a que est

    67O ambiente, o meio. (Nota de Traduo)

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    subordinado. O plano de imanncia que a filosofia constri um projeto in-surrecional permanente, efetivado mediante um sobrevo absoluto do real, pela

    intempestividade radical do contacto entre a ordem molecular e a ordem molar,pela atual inatualidade atual da resistncia.

    A Arte (porque tambm h uma arte do pensamento revolucionrio) co-labora nesta dinmica da transformao e subverso do conceito, de modo es-sencial: compondo os diferentes planos do imaginrio e referindo-os, sempre, urgncia da prxis.

    O esquema didtico de O que a filosofia?traz luz os fios fenomeno-logicamente construdos nos dionisacos Mil Plats. Mas, com qual riqueza! O

    que quero dizer que a aproximao das duas obras no em nenhum caso umaidentificao, como se a segunda fosse um captulo da primeira. Ao contrrio,trata-se de marcar as diferenas, que so todas vantagem de Mil Plats. Pois MilPlats(apesar da reduo funcional que fiz nesta demonstrao) no constituemapenas uma fenomenologia, extraordinariamente rica, do personagem conceitualdo General Intellect meio mquina, meio sujeito, inteiramente mquina, in-teiramente sujeito. Os Mil Plats constituem tambm uma experincia revolu-cionria. Os anos do desejo e dos Erlebnisse68de mudar a vida que seguiram1968, so ali recolhidos por meio da re-exposio dessa extraordinria casustica

    que s os grandes episdios revolucionrios sabem propor. Diz-se que no existelivro que re-traduza o 1968: no verdade! Esse livro Mil Plats. Mil Plats o materialismo histrico em ato de nossa poca, o equivalente de Luta deClasses na Alemanha e Frana, de Marx. Se o texto nunca termina, se jamais sesatisfaz com concluses definitivas, porque (como no que lhe equivalente nopensamento marxiano) traz luz um sujeito novo, cujo mecanismo de formaoainda no se completou, mas que j ganhou consistncia na pluralidade de micro emacro experimentos que foram feitos, experimentos tico-polticos de todo modo

    significativos. Mil Plats a pulso de um corpo coletivo, de mil corpos singula-res. O poltico que se expressa aqui a do comunismo da multido spinoziana,o da devastadora mobilidade de sujeitos no recm constitudo mercado mundial,o da democracia mais radical (a de todos os sujeitos, inclusive os loucos), dirigidacomo arma contra o Estado, este grande organizador da explorao dos operrios,do disciplinamento dos loucos, do controle do General Intellect. Os Mil Platsreferem-se explicitamente s lutas sociais difusas e autnomas de mulheres, jo-vens, trabalhadores, homossexuais, marginais, imigrantes... em uma perspectivana qual j caram todos os muros. Essa riqueza do movimento compe o marco

    68[vivncias, experincias]

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    dentro do qual, de agora em diante, o ponto de vista cientfico e a construodefinitiva do conceito so possveis. O conceito , pois, um evento e o sistema de

    conceitos a fratura da geologia da ao, mediante uma genealogia de evento-desejo.

    Dessa maneira, esto reunidas as condies da reconstruo das Geis-teswissenschaftenna perspectiva de uma teoria da expresso e no contexto deuma historicidade que , ao mesmo tempo, o movimento real do ser e o pontoincidente do sujeito. Um nico exemplo: o tratamento que Mil Platse O que afilosofia?do histria da filosofia e as hipteses metodolgicas ali desenvolvi-das. A continuidade historiogrfica da histria da filosofia dissolve-se, junto com

    sua teleologia ntica a historicidade filosfica assim tratada como historici-dade tout court, entendida como enfrentamento singular entre o pensamento e aproblemtica atual do ser. A prpria histria da filosofia s pode ser entendida, spode ser reconstruda, como evento, como intempestividade, como inatualidadepresente. A filosofia sempre um scholium69spinozano do desdobramento doreal. O esquema das cincias do esprito ser, portanto, sempre horizontal, articu-lado ao evento, interdisciplinar, estratificado pelas interrelaes de seus mltiploselementos. Mas onde est o passado ou o que ele nos produziu? De fato, ao rizomado presente e da criatividade opem-se os phylumsmaqunicos, que so ao mes-

    mo tempo resultados e resduos do passado. Mas a cincia do esprito nasce ondeessesphylumsmaqunicos so consumidos na determinao de uma nova criao,de um novo evento. As determinaes materiais, suas acumulaes, o fundo opa-co do passado constituem um conjunto morto que s o trabalho vivo vivifica eque as mquinas da subjetividade re-inventam. Quando isto no acontece, o pas-sado est morto e mesmo nossa priso. Os Mil Platsso a teoria materialista dotrabalho social, entendido como o evento criativo dos mil sujeitos que se abrem realidade presente, com base em um condicionamento maqunico produzido por

    este mesmo trabalho, e que s o trabalho vivo e real pode valorizar novamente.Em um vitalismo assim revisado, onde a teoria da expresso e a ima-nncia absoluta so as bases da reconstruo das cincias do esprito, o que nospermite, nesse horizonte, no entrar novamente no impasse do ceticismo ou deuma qualquer leituras fraca do valor ? Nada mais distante dos Mil Platsdo que atentao de absolutizar alguns elementos do processo interno para evitar desviosrelativistas. Porm, o que permite s cincias do esprito de renascer e renovar a

    69Scholium, pluralscholia(Gr.: , comentrio, uma espcie de nota posta margem

    dos manuscritos antigos, com comentrios gramaticais, crticos ou explicativos, que tanto po-dem ser originais quanto podem ter sido extrados de outros autores.

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    potncia lgica e tica do materialismo so o conceito de superfcie, a ontologiaaberta historicidade, tomados como subjetividade presente. Voltemos atrs, por

    um momento: quando Heidegger pe como inevitvel a inverso do ntico emontologia, da historiografia em historicidade, ao mesmo tempo ele faz dessa in-verso, da ruptura lgica, da recusa do destino a nica significao do existente. Aoperao heideggeriana constitui um bloqueio da vida. Ela empurra at o extremoa dmarche metafsica em direo a uma meta. Heidegger J, que v Deus efica cego. Em Mil Plats, ao contrrio, ver Deus, no sentido spinozista, fazeroutra vez a reverso ontolgica do ntico ao ontolgico, numa nova percepo doser do ser aberto. No mais para reafirmar Deus, mas exclu-lo definitivamente,

    no mais para afirmar um absoluto, mas considerar omnino absolutaa construodo ser; a partir do trabalho da singularidade em ao no trabalho humano. Comoso rizomticas e centradas no presente, as cincias do homem podem ser recons-trudas. As cincias e, portanto, os planos de referncia; a filosofia e os planos deconsistncia; as cincias do homem e, pois, a convergncia destas abordagens,aproximaes do evento, cargas ticas que atravessam as mquinas ontolgicas,as agenciamentos subjetivos que so cada vez mais abstratos. No h outro modode considerar o ser, que no seja s-lo, que no seja faz-lo.

    Referncias

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    DELEUZE, G. Post-scriptum sur les socits de controle, Pourparlers, Paris:Ed. Minuit, 1990. Ps-scriptum sobre as sociedades de controle, Conversaes:1972-1990. Trad. Peter Pl Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

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    LWITH , K. Von Hegel zu Nietzsche. Zurique: Europa Verlag, 1949.

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    112 SOBRE MIL PLATS

    MACHEREY, P. Chroniques dun dynosaure, in:Futur Antrieur, 1992, n.9.

    NEGRI, A. Saggi sullo storicismo tedesco, Milo: Feltrinelli, 1959. Cap. 1-3.

    ______ Macchina tempo, Feltrinelli, Milo, 1982.

    Antonio Negri, cientista social e filsofo, autor, entre outras obras, deImprio; Mul-

    tido(em parceria com Michael Hardt);Anomalia Selvagem poder e potncia em Spinoza; Opoder constituinte ensaio sobre as alternativas da modernidade.