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RESISTÊNCIA E REINVENÇÃO: O ESTATUTO DA ÉTICA EM DELEUZE Jorge Luiz Viesenteiner 1 1.Considerações iniciais “Um dia o século será deleuzeano”: de modo bastante profético, assim Michel Foucault se refere a propósito da envergadura que a filosofia de Gilles Deleuze ainda receberia, na medida em que seu pensamento fosse gradativamente sendo maturado mundo afora, inclusive no Brasil. Professor na Université Sorbonne Paris VIII – fundada no bairro Vincennes após o maio de 1968 –, o pensamento de Deleuze (1925-1995) passou a exercer uma profunda influência nas últimas décadas não apenas no âmbito da filosofia, mas também na política, artes, cinema e psicanálise. Numa entrevista publicada em setembro de 1988 2 , Deleuze faz um auto-esboço cronológico de sua trajetória intelectual que consiste em três períodos. O primeiro, grosso modo, inscrito entre 1952-1970, inicia-se com livros de história da filosofia a partir de um comentário que Deleuze faz de filósofos como D. Hume, Nietzsche, Kant, H. Bergson e Espinosa. Embora comentários, os livros de história da filosofia não se limitam a ser apenas meio de reproduzir o que pensou determinado autor. 3 Antes disso, Deleuze direciona seus comentários de modo que eles se convertem num programa preparatório de sua própria filosofia. 4 O segundo período é marcado decisivamente pelos dois volumes de “Capitalismo e Esquizofrenia”, vale dizer, O Anti-Édipo (1972) – escrito logo após o fervor político do maio de 68 – e Mil Platôs (1980) – uma continuação e finalização de algumas questões iniciadas n’O Anti-Édipo –, ambos escritos em parceria com Félix Guattari. Ao longo dos anos 80 Deleuze esboça seu terceiro e último momento intelectual registrado, segundo o próprio Deleuze, sob a rubrica das reflexões sobre “pintura e cinema, de imagens aparentes” (DELEUZE, In: ESCOBAR, 1991, p. 11). As reflexões sobre o estatuto da ética 1 Professor do depto. de filosofia da PUCPR e pesquisador da Universidade de Greifswald/Alemanha. É autor de A Grande Política em Nietzsche. (Annablume Editora). 2 Publicada na revista Magazine Littéraire, a entrevista se chama “Signos e Acontecimentos”. In: ESCOBAR, Carlos H (org.). Dossiê Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon editorial, 1991. p. 9-30. 3 Em O que é filosofia (1997, p. 74), Deleuze escreve: “A história da filosofia é comparável à arte do retrato. Não se trata de ‘fazer parecido’, isto é, de repetir o que o filósofo disse, mas de produzir a semelhança, desnudando ao mesmo tempo o plano de imanência que ele instaurou e os novos conceitos que criou”. 4 Dois textos marcam o fim da primeira fase: Diferença e Repetição (1968) e Lógica do sentido (1969).

16661632 O Estatuto Da Etica Em Deleuze

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  • RESISTNCIA E REINVENO: O ESTATUTO DA TICA EM DELEUZE

    Jorge Luiz Viesenteiner1

    1.Consideraes iniciais

    Um dia o sculo ser deleuzeano: de modo bastante proftico, assim Michel

    Foucault se refere a propsito da envergadura que a filosofia de Gilles Deleuze ainda

    receberia, na medida em que seu pensamento fosse gradativamente sendo maturado mundo

    afora, inclusive no Brasil. Professor na Universit Sorbonne Paris VIII fundada no bairro

    Vincennes aps o maio de 1968 , o pensamento de Deleuze (1925-1995) passou a exercer

    uma profunda influncia nas ltimas dcadas no apenas no mbito da filosofia, mas

    tambm na poltica, artes, cinema e psicanlise.

    Numa entrevista publicada em setembro de 19882, Deleuze faz um auto-esboo

    cronolgico de sua trajetria intelectual que consiste em trs perodos. O primeiro, grosso

    modo, inscrito entre 1952-1970, inicia-se com livros de histria da filosofia a partir de um

    comentrio que Deleuze faz de filsofos como D. Hume, Nietzsche, Kant, H. Bergson e

    Espinosa. Embora comentrios, os livros de histria da filosofia no se limitam a ser apenas

    meio de reproduzir o que pensou determinado autor.3 Antes disso, Deleuze direciona seus

    comentrios de modo que eles se convertem num programa preparatrio de sua prpria

    filosofia.4 O segundo perodo marcado decisivamente pelos dois volumes de Capitalismo

    e Esquizofrenia, vale dizer, O Anti-dipo (1972) escrito logo aps o fervor poltico do

    maio de 68 e Mil Plats (1980) uma continuao e finalizao de algumas questes

    iniciadas nO Anti-dipo , ambos escritos em parceria com Flix Guattari. Ao longo dos

    anos 80 Deleuze esboa seu terceiro e ltimo momento intelectual registrado, segundo o

    prprio Deleuze, sob a rubrica das reflexes sobre pintura e cinema, de imagens

    aparentes (DELEUZE, In: ESCOBAR, 1991, p. 11). As reflexes sobre o estatuto da tica

    1 Professor do depto. de filosofia da PUCPR e pesquisador da Universidade de Greifswald/Alemanha. autor de A Grande Poltica em Nietzsche. (Annablume Editora).2 Publicada na revista Magazine Littraire, a entrevista se chama Signos e Acontecimentos. In: ESCOBAR, Carlos H (org.). Dossi Deleuze. Rio de Janeiro: Hlon editorial, 1991. p. 9-30.3 Em O que filosofia (1997, p. 74), Deleuze escreve: A histria da filosofia comparvel arte do retrato. No se trata de fazer parecido, isto , de repetir o que o filsofo disse, mas de produzir a semelhana, desnudando ao mesmo tempo o plano de imanncia que ele instaurou e os novos conceitos que criou.4 Dois textos marcam o fim da primeira fase: Diferena e Repetio (1968) e Lgica do sentido (1969).

  • se situam em torno dos textos do segundo perodo, com especial ateno ao texto de 1980:

    Mil Plats.

    Segundo Deleuze (1997, p. 10), a filosofia a arte de formar, de inventar, de

    fabricar conceitos. O exerccio filosfico precisa lanar luz sobre as estruturas da cultura,

    do mundo, o homem, a morte, etc., a fim de que se converta em prxis de resistncia.

    Quando Deleuze (1988a, p. 225) pergunta: Que um pensamento que no faz mal a

    ningum, nem aquele que pensa nem aos outros?, na realidade enfatiza que um

    pensamento precisa violentar, precisa se dirigir ao encontro de algo que force a reflexo e,

    sobretudo, que se imponha como resistncia.

    Pensar, inclusive, tambm significa ser violentado por foras externas; o exerccio

    do pensamento no brota de um Eu metafsico e abstrato, mas do encontro com foras

    que rompam as nossas cercas, que esvaziem nossos punhados de convices ilusrias que

    s tm valor na medida em que nos do uma falsa sensao de segurana: que violncia se

    deve exercer sobre o pensamento para que nos tornemos capazes de pensar, violncia de um

    movimento infinito que nos priva ao mesmo tempo do poder de dizer Eu? (DELEUZE,

    1997, p. 73). O pensamento, pois, ao ser exerccio de fabricar conceitos, deve violentar e

    sacudir as teias de aranha da estabilidade e quietude e, neste aspecto, ele se configura

    tambm como capacidade de resistir.5

    O texto Mil Plats expressa muito bem essa prxis filosfica inventora de conceitos.

    Na verdade, podemos nos referir a ele como a operacionalizao de um projeto de filosofia

    que consiste precisamente em criar novos conceitos, modos de vida e formas de resistncia.

    Trata-se de um livro que experimenta ao fabricar conceitos, especialmente porque Deleuze

    o pensou, junto com F. Guattari, como livro que expressa resistncia ou mquina de guerra

    contra os espaos pr-fabricados: Esto nos fabricando um espao literrio, bem como um

    espao judicirio, econmico, poltico, completamente reacionrios, pr-fabricados e

    massacrantes (...). A mdia desempenha nisso um papel essencial, mas no exclusivo.

    muito interessante. Como resistir a esse espao literrio que est se constituindo? Qual seria

    o papel da filosofia nessa resistncia a um terrvel novo conformismo? (DELEUZE, 1992,

    p. 39).

    5 Cf. Deleuze (In: ESCOBAR 1991, p. 10): A filosofia no comunicativa, nem contemplativa ou reflexiva: ela , por natureza, criadora ou mesmo revolucionria na medida em que no cessa de criar novos conceitos.

  • Mil Plats uma cartografia, uma geografia do pensamento, do desejo, da poltica,

    da tica e da linguagem, que pretende desvendar quais so esses espaos pr-fabricados, a

    fim de resistir a eles.6 Cada um dos ttulos do livro compe plats, um experimento ou

    resistncia que podem ser lidos independentemente uns dos outros, exceto a concluso,

    que s deveria ser lida no final. Um plat no uma metfora, mas sim zonas de variao

    contnua, ou como voltas onde em cada uma se vigia ou sobrevoa uma regio, e se fazem

    sinais uns aos outros (DELEUZE, In: ESCOBAR, 1991, p. 16). Cada ttulo ou plat

    significa o traado de um mapa de circunstncias que possuem datas fictcias e ilustraes.

    Como fala Deleuze (1992, p. 38), trata-se de um livro ilustrado que se interessa pelos

    modos de individuao, ou seja, os processos de codificao do homem bem como as

    produes de signos que vo compor os espaos pr-fabricados da cultura contempornea,

    que nos seqestra e controla a todo instante. possvel entrar por qualquer lugar do livro,

    como um rizoma, sem uma entrada ou sada especfica, mas que todo lugar se soma para

    decodificar as estruturas fixas e rgidas do homem e da cultura contempornea.

    No por acaso os plats (ttulos) do livro so aleatrios e podem ser lidos

    independentemente uns dos outros. Trata-se de um livro nmade sem lugar fixo e estvel,

    sem momento histrico definido e, por isso, no capturvel. comum seqestrar o que

    estvel, mas o aleatrio e nmade escapa a todo instante dos aparelhos codificadores da

    sociedade. Assim Mil Plats: no constante, nem capturvel, nem estvel e, sobretudo,

    no um livro que no oferece riscos; ao contrrio, ele violenta, rompe as cercas da falsa

    segurana, fora-nos a pensar e, sobretudo, a resistir para inventar novas possibilidades de

    vida. Em Mil Plats, Deleuze faz da prpria escrita um processo de resistncia e liberao,

    o que ele chamou de traar uma linha de fuga: Escreve-se sempre para dar a vida, para

    libertar a vida l onde ela est aprisionada, para traar linhas de fuga. Para isto, preciso

    que a linguagem no seja um sistema homogneo, mas um desequilbrio, sempre

    heterogneo (DELEUZE, In: ESCOBAR, 1991, p. 14s.). Para Deleuze, escrever criar, e

    criar resistir para que se inventem novas formas de vida que escapam s codificaes e

    seqestros.6 Para Deleuze (1992, p. 47), na medida em que Mil Plats um livro que leva a termo um projeto filosfico que fabrica conceitos, preciso compreend-lo tambm como um livro que no mais pretende dizer a essncia ou fundamento das coisas, como o foi a tradio filosfica. Deleuze supera esse modelo, uma vez que o conceito est relacionado circunstncias e, portanto, tem interesse em construir uma geografia, um mapa ou cartografia das mais variadas linhas, fluxos, signos e cdigos que atuam ao mesmo tempo sobre o homem e a cultura.

  • Investigar o estatuto da tica em Deleuze significa compreend-la tal como essas

    caractersticas do livro Mil Plats, mas que nos interessam apenas duas questes principais

    que, em resumo, podem ser apresentadas nos seguintes termos: a) tica a decodificao

    das linhas que nos atravessam e nos codificam a fim de sermos capazes de resistir a elas; e

    b) na medida em que se resiste aos mais variados modos de produo de subjetividade, de

    tipos codificados, essa resistncia j uma criao e, neste caso, a tica tambm

    resistncia que reinventa novos modos de existncia e novas formas de vida. Em suma, a

    tica em Deleuze pode ser compreendida atravs de dois movimentos que implica em

    resistncia e reinveno.

    2. tica e Rostidade: resistir ao Rosto para reinventar a vida

    Tomemos o stimo plat de Deleuze intitulado Ano zero rostidade. Quando

    Deleuze fabrica o conceito de Rosto quer se referir tambm ao que ele denomina de

    processo de subjetivao. Trata-se de um gigantesco projeto que constri signos, cdigos,

    territrios e que depois se encarrega de transferi-los e grav-los nos homens, de modo que

    aos poucos cada homem vai ganhando um Rosto. Logo de incio, importante dizer que a

    produo social do Rosto no significa individualizar cada rosto concreto em particular, ou

    seja, produzir o Rosto concreto de Joo, Maria, Jos, etc. Ao contrrio, segundo Deleuze os

    rostos concretos individuados se produzem e se transformam numa grande unidade comum,

    construdo atravs das codificaes que a cultura produz, at desembocar no grande Rosto.

    Assim, ao invs de construirmos um rosto prprio somos metidos e gravados em um Rosto

    produzido culturalmente: Introduzimo-nos em um rosto mais do que possumos um

    (DELEUZE, 1996, p. 44). Em outras palavras, isso significa que se no formos capazes de

    construirmos um projeto ou modo de existncia prprio, a cultura sempre se encarregar de

    nos vender uma forma pronta e, ao comprarmos, pagamos caro por isso.

    Mas o que um Rosto, afinal? Deleuze nos diz que um sistema muro-branco

    buraco negro, um modelo que conjuga dois eixos: um de significncia (o muro branco)

    sobre o qual inscreve seus signos e suas redundncias, e outro de subjetivao (o buraco

    negro) onde aloja sua conscincia, sua paixo, suas redundncias (DELEUZE, 1996, p.

    31). Todo sistema muro branco-buraco negro produzido por mquinas abstratas

    responsveis pela construo do Rosto:

  • Os rostos concretos nascem de uma mquina abstrata de rostidade, que ir produzi-los ao mesmo tempo que der ao significante seu muro branco, subjetividade seu buraco negro. O sistema buraco negro-muro branco no seria ento j um rosto, seria a mquina abstrata que o produz, segundo as combinaes deformveis de suas engrenagens. No esperemos que a mquina abstrata se parea com o que ela produziu, com o que ir produzir (DELEUZE, 1996, p. 33).

    A mquina abstrata no tem forma, embora seja ela que crie os mais variados

    cdigos e signos culturais, uma mquina de binarizao social: branco/negro,

    homem/mulher, adulto/criana, rico/pobre, europeu/latino americano, homem-til-

    consumidor/homem-desempregado. O engraado que a mquina abstrata mesma no tem

    um rosto, e por isso Deleuze fala que a mquina de rostidade nunca vai se parecer com o

    que ela produz. Ela est em toda parte ao mesmo tempo em que no podemos captur-la.

    como se dissssemos que, atualmente, o inimigo no possui mais fisionomia. Se no sculo

    XVIII quisssemos fazer uma revoluo, atacaramos diretamente o inimigo, por exemplo,

    o Rei. A cultura contempornea possui mquinas produtoras de cdigos mas que oculta o

    nome dessa mquina produtora de normas, regras, signos, cdigos, etc. No por acaso

    temos dificuldades em lutar contra algo, pois sequer conseguimos identificar quem o

    inimigo. O sistema no tem rosto, embora produza o Rosto.7

    O mecanismo oculto que a mquina abstrata emprega para produzir Rosto (o

    sistema muro branco-buraco negro) um grande agenciamento de poder que opera mais ou

    menos assim: ao mesmo tempo em que a cultura contempornea necessita convencer que se

    vive um momento de extrema liberalizao, paradoxalmente, sentimo-nos reprimidos como

    nunca antes. como se dissssemos que para controlar e dominar melhor uma pessoa

    precisamos antes falar que ela livre. uma mquina abstrata que opera sem ser vista e,

    por isso, extremamente perigosa. Podemos nos referir ao Capital contemporneo, por

    exemplo, como uma grande mquina abstrata que est aliada s suas principais

    engrenagens: as Corporaes, com seu regime de signos, cdigos, condutas, regras, enfim,

    com a produo de seus lugares comuns ou territorializaes, como fala Deleuze.

    A mquina abstrata de rostidade fabricante dos cdigos (os significantes), e das

    subjetivaes (a formatao da conscincia): essa mquina denominada mquina de

    rostidade porque produo social do rosto, porque opera uma rostificao de todo corpo,

    de suas imediaes e de seus objetos, uma paisagificao de todos os mundos e meios.

    7 Impossvel deixar de mencionar dois textos de Deleuze em que ele abre melhor esse dilogo, atravs de uma lcida interpretao das sociedades de controle atuais: Controle e Devir e Post-scriptum sobre as sociedades de controle, ambos publicados no Brasil no livro Conversaes (1992).

  • (DELEUZE, 1996, p. 49). Segundo Deleuze, a subjetividade do homem alfinetada e

    introduzida no muro branco. Na medida em que a mquina abstrata produz os territrios o

    lugar comum dos signos, das codificaes, das moralizaes, etc. ela tambm vai

    alfinetando cada homem nesse grande regime de signos, dando a eles um grande Rosto

    unitrio. Podemos perceber, portanto, que a mquina abstrata (o capital e suas corporaes)

    opera por identificao do diferente, quer dizer, um processo que torna igual o diferente

    ou fabrica a cpia ao invs do original, num imenso projeto de mesmificao que

    consiste em nascer original para morrer cpia.

    Temos nossa subjetividade produzida e compramos bem caras as codificaes que

    nos vendem. Mas qual esse grande Rosto? Qual esse grande muro branco de cdigos

    que a mquina abstrata produz para depois imprimir nossa subjetividade nele? Segundo

    Deleuze (1996, p. 43) o prprio Homem branco, com suas grandes bochechas e o buraco

    negro dos olhos. O rosto o Cristo. O rosto o europeu tpico.8 Trata-se do tpico homem

    branco, europeu, cumpridor de suas funes sociais e deveres, alm de produtivo e

    consumidor. Essa mquina de rostificao vai julgar e escolher quais os Rostos que sero

    ou no adequados, para depois se encarregar de rostific-los:

    Se o rosto o Cristo, quer dizer o Homem branco mdio qualquer, as primeiras desvianas, os primeiros desvios padro so raciais: o homem amarelo, o homem negro, homens de segunda ou terceira categoria. Eles tambm sero inscritos no muro, distribudos pelo buraco. Devem ser cristianizados, isto , rostificados. (...) O racismo procede por determinao das variaes de desvianas, em funo do rosto Homem branco que pretende integrar em ondas cada vez mais excntricas e retardadas os traos que no so conformes, ora para toler-los em determinado lugar e em determinadas condies, em certo gueto, ora para apag-los no muro de jamais suporta a alteridade. (...) do ponto de vista do racismo, no existe exterior, no existem as pessoas de fora. S existem pessoas que deveriam ser como ns, e cujo crime no o serem. (DELEUZE, 1996, p. 45)

    Na nossa cultura contempornea, como j dissemos antes, o Capital e seus

    tentculos, as Corporaes, podem ser analisados como a grande mquina abstrata de

    rostidade, capaz de transformar em culpados aqueles que na verdade so suas vtimas. Ele

    responsvel por levar a cabo o processo de homogeneizao de todos os homens,

    imprimindo seus buracos negros no grande muro branco de significantes, com todo cortejo

    de codificaes e signos, confiscando cada pessoa para enfi-la no grande Rosto. Virtual e 8 No por acaso o ttulo do texto Ano zero rostidade. Segundo Deleuze, a grande mquina de rostidade comea no ano zero, com Cristo, atravs do imenso projeto civilizatrio de cristianizao do mundo que construiu e penetrou em todas as estruturas culturais. Neste caso, podemos falar que o cristianismo rostifica quando imprime a subjetividade dos diferentes no mesmo muro branco de seus cdigos e signos. Em todo caso, essa mesma mquina de rostidade opera tambm em vrias estruturas sociais. Tome-se, p.ex., o caso do racismo ou mesmo da produo social do louco.

  • invisvel, o capital opera produzindo as territorializaes necessrias para que todos sejam

    comportadamente rostificados.

    O mais interessante que essa mquina produtora de cdigos se encarrega de

    sobrecodificar todo aquele que pretenda fugir do cdigo ou do Rosto. Deleuze se refere a

    esse processo como um mecanismo empregado pelos agenciamentos de poder despticos

    que re-territorializa tudo que pretende se desterritorializar, quer dizer, todos os desvios

    padres so imediatamente re-disciplinarizados: Ora, so esses agenciamentos de poder,

    essas formaes despticas ou autoritrias, que do nova semitica os mesmo de seu

    imperialismo, isto , ao mesmo tempo os meios de esmagar os outros e de se proteger de

    qualquer ameaa vinda de fora (DELEUZE, 1996, p. 49. O grifo nosso).

    Vejamos um exemplo para entendermos como o capital sobrecodifica os desvios do

    Rosto. Originalmente, quando a cultura hip-hop importada para o Brasil, ela se pretendia

    um movimento alternativo e desviante em relao aos agenciamentos de poder

    estabelecidos. Para o capital, uma ameaa externa. Cria seus prprios cdigos e signos,

    linguagem e estilo de vida no interior dos guetos do pas. Surge como suposta resistncia

    montada contra a mquina de produo do Rosto. Imediatamente, porm, o capital se

    encarregou de sobrecodificar essa desviana que a cultura havia criado. como se o capital

    dissesse: Isso mesmo! Eu no valho nada! Critiquem-me pois eu sou um monstro. O que

    ocorre depois que essa mquina abstrata confisca a cultura hip-hop e a vende sob a forma

    de um novo modo de vida. Cria uma grife, um modismo, recodifica a linguagem alternativa

    em mais um objeto vendvel, mais uma engrenagem da grande mquina. O inconformismo

    e a indignao desviantes do jovem do gueto, p.ex., so comprados e sobrecodificados na

    medida em que o capital vende a ele um estilo de vida, ou seja, d a ele um Rosto. De

    algum desviante ou desterritorializado, o capital o converteu em algum recodificado e

    novamente territorializado, pois teve sua indignao seqestrada depois de ser metido num

    Rosto: a mquina abstrata do capital acabou de homogeneizar e sobrecodificar a ameaa

    vinda de fora. Em suma: o capital produz capital mesmo daquilo que o pretendia

    inicialmente destru-lo; ele rostifica novamente o desviado. E o que pior: por ser uma

    mquina abstrata, tudo ocorre como se nada estivesse acontecendo. Como foi dito antes,

    nunca fomos to seqestrados, controlados e rostificados, ao mesmo tempo em que,

    paradoxalmente, tambm falamos muito de liberalizao: O dspota ou seus

  • representantes esto por toda parte. o rosto visto de frente, visto por um sujeito que, ele

    mesmo, no v propriamente, mas, antes, tragado pelos buracos negros (DELEUZE,

    1996, p. 51s.).

    Essa mquina abstrata no atua mais sobre o corpo diretamente, mas sobre desejo.

    Ela produz desejo e o vende sob a forma de modo de vida. Assim, se o preo do silncio e

    da adaptao custa preo baixo, comodidade ou um estilo de vida, a mquina abstrata se

    encarrega de produzir um Rosto para fazer falar precisamente o silncio. Pensemos na

    clssica imagem de Che Guevara estampada nas camisetas: o smbolo por excelncia do

    capital transformado em cdigo vendvel, em signo do capital. Isso paradoxal!!! E

    assim que a mquina abstrata do capital sobrecodifica as ameaas externas, imprimindo-as

    novamente no grande Rosto. Deleuze fez esse prognstico em Mil Plats:

    Os corpos sero disciplinados, a corporeidade ser desfeita (...). Produzir-se- uma nica substncia de expresso. Construir-se- o sistema muro branco-buraco negro, ou antes deslanchar-se- essa mquina abstrata que deve justamente permitir e garantir a onipotncia do significante, bem como a autonomia do sujeito. Vocs sero alfinetados no muro branco, cravados no buraco negro. (...) A desterritorializao do corpo implica uma reterritorializao no rosto; a descodificao do corpo implica uma sobrecodificao pelo rosto (DELEUZE, 1996, p. 49. O grifo nosso).

    A frustrao, os medos e o convencimento de que a vida dura so alguns dos

    operadores gerenciados pelo capital. A mquina de rostidade antes de suprir desejos, precisa

    produzir um exrcito de homens cansados do mundo e da vida, a fim de que ela possa

    produzir mais desejo sobre essa matria-prima frustrada e esgotada. Da o porqu da

    atuao dessa mquina abstrata sobre o desejo humano. Em Dilogos publicado com

    Claire Parnet em 1977 e, portanto, trs anos antes de Mil Plats Deleuze escreve:

    Os poderes estabelecidos tm necessidade de nossas tristezas para fazer de ns escravos. O tirano, o padre, os tomadores de alma, tm necessidade de nos persuadir que a vida dura e pesada. Os poderes tm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar (...). Os doentes, tanto da alma quanto do corpo, no nos largaro, vampiros, enquanto no nos tiverem comunicado sua neurose e sua angstia, sua castrao bem-amada, o ressentimento contra a vida, o imundo contgio. (DELEUZE, 1998, p. 75)

    como se a matria-prima sobre a qual atua a mquina de rostidade fossem

    precisamente as frustraes e impotncias. Deleuze volta a reafirmar essa hiptese em Mil

    Plats, dizendo que a defesa do capital e a administrao de toda segurana tem por

    correlato toda uma microgesto de pequenos medos, toda uma insegurana molecular

    permanente, a tal ponto que a frmula dos ministrios do interior poderia ser: uma

  • macropoltica da sociedade para e por uma micropoltica da insegurana (DELEUZE,

    1996, p. 94).

    A produo do Rosto, portanto, est relacionada com a mquina abstrata que, por

    sua vez, relaciona-se com os agenciamentos de poder para produzirem socialmente esse

    Rosto: por isso que no cessamos de considerar dois problemas exclusivamente: a

    relao do rosto com a mquina abstrata que o produz; a relao do rosto com os

    agenciamentos de poder que necessitam dessa produo social (idem, p. 50).

    Diante do imperialismo da mquina abstrata produtora do rosto, uma pergunta se

    impe: Como sair do buraco negro? Como atravessar o muro? Como desfazer o rosto?

    (idem, p. 56). A questo complexa e abre espao para outra longa reflexo. Em todo caso,

    o primeiro passo compreender que no h possibilidades para conservadorismos: No

    podemos voltar atrs, diz Deleuze, visto que somente do interior do prprio Rosto

    poderemos nos desrostificar: somente no interior do rosto, do fundo de seu buraco negro

    e em seu muro branco que os traos de rostidade podero ser liberados (idem, p. 59).

    Da mesma forma que Deleuze compreende Mil Plats um livro nmade, no

    capturvel e que pe em curso uma prxis que resiste e escapa s codificaes , assim

    tambm Deleuze reconhece a tarefa do homem contemporneo e, de modo geral, da tica:

    resistir s codificaes, ao Rosto. Segundo Deleuze, o prprio homem precisa se converter

    em algo clandestino e nmade, pois resistir precisamente se tornar imperceptvel.9 Ao

    invs de se render aos gozos da submisso irrestrita, das territorializaes e rostidades,

    Deleuze insiste em perder o Rosto e escapar s codificaes, ou melhor, desterritorializar-se

    ou traar uma linha de fuga. Mais ou menos como se dissssemos que traar uma linha de

    fuga ou se tornar imperceptvel significa um certo ocultamento aos dispositivos

    rostificadores e codificantes.

    Fugir no se acovardar e nem transportar um eu: Deleuze pensa numa viagem

    imvel prpria dos nmades que so capazes de renunciar a todo lugar fixo, a qualquer

    territrio ou porto seguro. Tornar-se imperceptvel renunciar a ser metido no muro dos

    significantes e das codificaes, no Rosto. Alis, significa ser capaz de se desprender de si

    9 possvel falar tambm em impessoalidade, ou ainda, uma vida. O nmero especial da Revista Philosophie, publicada em 1995, traz o artigo de Deleuze intitulado A imanncia: uma vida..., em que se fala em substituir a vida do indivduo, marcada pelas subjetivaes e rostidades, por uma vida impessoal, embora singular, que produz um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior ou exterior (...): vida de pura imanncia, neutra, alm do bem e do mal. (DELEUZE, 1997, p. 17s.).

  • mesmo, ou seja, aprender a trair10: traidor de seu prprio reino, de si mesmo, das prprias

    convices, das verdades absolutas, dos desejos mesquinhos, pois quem possui possudo.

    O traidor capaz de criar e, portanto, de resistir: que trair difcil, criar. preciso

    perder sua identidade, seu rosto. preciso desaparecer, tornar-se desconhecido11

    (DELEUZE, 1998, p. 58).

    Trair as rostidades, as codificaes que nos rotulam, a subjetividade que nos

    produzem. Trair a si prprio e ao territrio, pois quem permanece preso a um nico e fixo

    territrio no o nmade e clandestino, mas o covarde, o reprodutor do Rosto e das

    codificaes. Por isso trair resistir. Cada vez que tramos, escapamos de permanecer fixo

    e idntico; e cada vez que resistimos, tornamo-nos imperceptveis e nmades. Um dos

    estatutos da tica, pois, precisamente resistir ao Rosto, ou escapar dos processos de

    rostificao empenhados pela mquina abstrata. Em outros termos, para alm de todos os

    mecanismos que a mquina abstrata do capital emprega para nos rostificar, atravs dos seus

    tentculos e engrenagens que penetram em toda estrutura social codificando-a, isso no

    deve ser um argumento contra nossa principal possibilidade: a resistncia.12

    Resistir ao Rosto no uma frmula que se esgota em si mesma, pois ela precisar

    dar um passo e mais e caminhar para a reinveno ou criao e novas formas de vida. A

    resistncia o mecanismo para a reinveno dos espaos pr-fabricados pelo Rosto, para a

    criao de novas possibilidades de vida, para a reinveno de novos modos de existncia, e

    nisso consiste o segundo estatuto da tica. Neste ponto Deleuze considera o homem como

    obra de arte: a vida mesma obra de arte que precisa ser reinventada a cada instante: trata-

    se de regras facultativas que produzem a existncia como obra de arte, regras ao mesmo

    tempo ticas e estticas que constituem modos de existncia ou estilos de vida

    (DELEUZE, 1992, p. 123). Deleuze v na resistncia e na criao de novos modos de

    existncia, mais do que uma simples reinveno tica: ele tambm v uma esttica: mas se

    10 Segundo Deleuze (1998, p. 58), trair traar a linha de fuga, ou seja, tornar-se imperceptvel e nmade para perder o Rosto: Perder o rosto, ultrapassar ou furar o muro, lim-lo pacientemente (...): a linha de fuga, no a viagem nos mares do Sul, mas a aquisio de uma clandestinidade (...). Ser, enfim, desconhecido, como poucas pessoas so, isso trair.11 Cf. entrevista j citada In: ESCOBAR (1991, p. 17): Criar no comunicar mas resistir.12 No comentrio que Deleuze faz a Michel Foucault, ele se refere ao homem como foco de resistncia (DELEUZE, 1988b, p. 113), desde que esse homem compreenda a si mesmo como algum sempre em vias de se fazer, in-acabado e, portanto, nmade.

  • h nisso toda uma tica, h tambm uma esttica (...), a inveno de uma possibilidade de

    vida, de um modo de existncia (DELEUZE, 1992, p. 126).

    O estatuto da tica em Deleuze resume duas esferas: por um lado, resistir aos

    espaos pr-fabricados, ao muro branco das codificaes e ao buraco negro das

    subjetividades: resistir ao Rosto; e, por outro lado, a resistncia implica a criao de novas

    formas de vida: a reinveno da prpria vida. Resistncia e reinveno, portanto, so as

    linhas gerais com as quais podemos pensar o estatuto da tica em Deleuze.

    Questes para debate

    1. O que significa Rostidade?

    2. Faa uma anlise relacionando tica, mquinas abstratas e Rosto.

    3. O que significa pensar a tica como resistncia e reinveno?

    Filmografia

    The Corporation. Dir.: Mark Achbar e Jennifer Abbott. EUA, 2003.

    Surplus. Dir.: Erik Gandini. 2003.

    El taxista ful. Dir.: Jordi Rediu e Norbert Llars. Barcelona, 2005.

    Textos para discusso

    Os rostos concretos nascem de uma mquina abstrata de rostidade, que ir produzi-los ao mesmo tempo que der ao significante seu muro branco, subjetividade seu buraco negro. O sistema buraco negro-muro branco no seria ento j um rosto, seria a mquina abstrata que o produz, segundo as combinaes deformveis de suas engrenagens. No esperemos que a mquina abstrata se parea com o que ela produziu, com o que ir produzir. (DELEUZE, 1996, p. 33).

    Se o rosto o Cristo, quer dizer o Homem branco mdio qualquer, as primeiras desvianas, os primeiros desvios padro so raciais: o homem amarelo, o homem negro, homens de segunda ou terceira categoria. Eles tambm sero inscritos no muro, distribudos pelo buraco. Devem ser cristianizados, isto , rostificados. (...) O racismo procede por determinao das variaes de desvianas, em funo do rosto Homem branco que pretende integrar em ondas cada vez mais excntricas e retardadas os traos que no so conformes, ora para toler-los em determinado lugar e em determinadas condies, em certo gueto, ora para apag-los no muro de jamais suporta a alteridade. (...) do ponto de vista do racismo, no existe exterior, no existem as pessoas de fora. S existem pessoas que deveriam ser como ns, e cujo crime no o serem (DELEUZE, 1996, p. 45).

  • Os corpos sero disciplinados, a corporeidade ser desfeita (...). Produzir-se- uma nica substncia de expresso. Construir-se- o sistema muro branco-buraco negro, ou antes deslanchar-se- essa mquina abstrata que deve justamente permitir e garantir a onipotncia do significante, bem como a autonomia do sujeito. Vocs sero alfinetados no muro branco, cravados no buraco negro. (...) A desterritorializao do corpo implica uma reterritorializao no rosto; a descodificao do corpo implica uma sobrecodificao pelo rosto (DELEUZE, 1996, p. 49).

    Os poderes estabelecidos tm necessidade de nossas tristezas para fazer de ns escravos. O tirano, o padre, os tomadores de alma, tm necessidade de nos persuadir que a vida dura e pesada. Os poderes tm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar (...). Os doentes, tanto da alma quanto do corpo, no nos largaro, vampiros, enquanto no nos tiverem comunicado sua neurose e sua angstia, sua castrao bem-amada, o ressentimento contra a vida, o imundo contgio. (DELEUZE, 1998, p. 75).

    que trair difcil, criar. preciso perder sua identidade, seu rosto. preciso desaparecer, tornar-se desconhecido (DELEUZE, 1998, p. 58).

    Sugestes de leitura

    DELEUZE, G. Diferena e Repetio. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1988a.

    _______. Foucault. So Paulo: Brasiliense, 1988b.

    _______. (c/ F. GUATTARI). Mil Plats: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Rio de

    Janeiro: Ed. 34, 1996.

    ______. O que a filosofia?. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.

    DELEUZE, G.; PARNET, C. Dilogos. So Paulo: Editora Escuta, 1998.

    ______. Conversaes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

    ______. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversaes. Rio de

    Janeiro: Ed. 34, 1992.

    ______. Signos e Acontecimentos. In: ESCOBAR, Carlos H (org.). Dossi Deleuze. Rio de

    Janeiro: Hlon editorial, 1991. p. 9-30.

    ______. A imanncia: uma vida.... In: VASCONCELLOS, J. Deleuze: imagens de um

    filsofo da imanncia. Londrina: EDUEL, 1997.