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17 - A TIA ALICE ANDREAZZA PECCIN José Peccin e sua esposa Alice Andreazza Peccin (ao centro) e filhos Não posso concluir a história da vovó Regina, sem fazer uma mensão especial à sua filha mais nova, a nossa querida TIA ALICE. Era a mimosa e muito protegida da Vovó. Pelo menos a mim parecia. Morou sempre na cidade de Caxias, depois do casamento com o tio José Constantino Peccin ( falecido em 2001, com 93 anos), que fabricava móveis e esquadrias sob encomenda. Era fotógrafo amador. Muitas fotos da família foram tiradas por ele. Tiveram onze filhos: Antoninho, EDY LURDES (co-autora, deste trabalho), Maria, José, Miguel, João, Pedro, Paulo, Maria Estela e Celso. O grande destaque da tia Alice, na família, adveio do tratamento que dispensou aos familiares e parentes. Dois pontos de encontro e referência existiram, por mais de 40 anos, para os Andreazza de todas as localidades, filhos e netos de Constante e Regina, como também para outros parentes e afins da família. Eram a residência dos tios José Peccin e Alice, na cidade, na rua Irma Valiera, e a velha casa da Linha 30, Nona Légua, de Constante e Regina. O movimento dos parentes, por motivo de visitas, negócios, doenças, dentista, viagens a Porto Alegre e a outros lugares eram freqüentes e sempre passavam pela casa dos tios Alice e José e terminavam na Linha trinta, lugar de festas, ”sagras” e longas 91

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17 - A TIA ALICE ANDREAZZA PECCIN

José Peccin e sua esposa Alice AndreazzaPeccin (ao centro) e filhos

Não posso concluir a história da vovó Regina, sem fazeruma mensão especial à sua filha mais nova, a nossa querida TIAALICE. Era a mimosa e muito protegida da Vovó. Pelo menos amim parecia. Morou sempre na cidade de Caxias, depois docasamento com o tio José Constantino Peccin ( falecido em 2001,com 93 anos), que fabricava móveis e esquadrias sob encomenda.Era fotógrafo amador. Muitas fotos da família foram tiradas por ele.Tiveram onze filhos: Antoninho, EDY LURDES (co-autora, destetrabalho), Maria, José, Miguel, João, Pedro, Paulo, Maria Estela eCelso.

O grande destaque da tia Alice, na família, adveio dotratamento que dispensou aos familiares e parentes.

Dois pontos de encontro e referência existiram, por mais de40 anos, para os Andreazza de todas as localidades, filhos e netosde Constante e Regina, como também para outros parentes e afinsda família. Eram a residência dos tios José Peccin e Alice, nacidade, na rua Irma Valiera, e a velha casa da Linha 30, NonaLégua, de Constante e Regina.

O movimento dos parentes, por motivo de visitas, negócios,doenças, dentista, viagens a Porto Alegre e a outros lugares eramfreqüentes e sempre passavam pela casa dos tios Alice e José eterminavam na Linha trinta, lugar de festas, ”sagras” e longas

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permanências (férias).

Os meus tios e seus filhos, que vinham do Araçá, de AntaGorda, de Santa Rosa, de Segredo, ficavam vários dias com a TiaAlice, ou na Linha 30, com Joaquim e Aurélia, porque eram muitosos parentes que iam rever, ao redor de Caxias e variados oscompromissos na cidade.

A Tia Alice sempre foi bem despachada. Falava bastante erápido, “pelos cotovelos”, como se diz, mas era uma jóia de pessoa.Generosa, prestativa, desprendida, com o apoio sempre receptivo ealegre do tio José Peccin, acolhia a todas as pessoas amigas eparentes. Proporcionava aconchego e hospitalidade, refeição epousada pelo tempo necessário, segundo os interesses enecessidades dos que chegavam.

Todos procuravam notícias e informações dos parentes maislongínquos, com a Tia Alice. Ela sempre estava mais atualizada. Umcasamento, um nascimento, uma festa, uma doença, uma carta. Acaixa postal estava ali com ela.

Assumia o atendimento como sagrada obrigação de amigade todos os parentes. Levava em conta que tinha o privilégio demorar na cidade, enquanto os demais residiam no interior, comdificuldades de transporte e de comunicação. Ademais, o Tio JoséPeccin tinha telefone que punha à disposição, facilitando a soluçãode freqüentes problemas. Se porventura, fosse caso de doença ouhospitalização, assistia e acompanhava o enfermo com a máximadiligência, quando não hospedava acompanhantes.

Nas festas e casamentos, ela também colaborava para as

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Edy Andreazza Peccin Bordine filhos: Ann, James, Albert

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noivas passarem alguns dias em sua casa, afim de escolheremmelhor nas lojas o que lhes convinha.

Tia Alice teve uma vida longa, como a Vovó Regina, paramais tempo de servir, como gostava de fazer.

Todos os parentes e amigos, devemos deixar registrado umjusto obrigado para a Tia Alice, como homenagem, transformada emmarco familiar !

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CAPÍTULO VII - JOAQUIM E AURÉLIA DE CARLI ANDREAZZA

1 - Joaquim e Aurélia

Meu Pai JOAQUIM nasceu em 1894 e faleceu, com 83anos, em 1977 sendo o terceiro dos 12 filhos de Constante eRegina.

Minha mãe AURÉLIA DE CARLI, nasceu em 1899 e faleceuem 1983. Era a oitava dos 18 filhos de Antônio e Giovanna DeCarli.

Os Andreazza, já sabes como vieram para o RGS.

Não se tem informações exatas sobre a chegada ao Brasilda família dos De Carli. Entre os parentes, nos primeiros cinqüentaanos da colonização, essa questão não importava. Quando os netosinteressados, da segunda e terceira geração brasileira, iniciarampesquisas, encontraram poucos escritos e os velhos já tinhammorrido. Aqueles que foram à Itália procurar informações edocumentos, voltaram decepcionados. A guerra destruíra a igreja eos arquivos, em Onigo e Nervesa della Bataglia e outras localidades.Houve também desencontros e confusões, especialmente de datas.

O Arquivo Histórico do RGS, por exemplo, registrou achegada dos Andreazza, quatro anos depois de estarem aqui. Alguns

Minha filha,

- para terminar esta carta, não poderia fazer melhor doque te contar alguma coisa sobre meus pais Joaquim e Aurélia,que conheceste durante as visitas que fazíamos todos os anosa Caxias, quando viajávamos de Kombi, cantando “Cadê minhavaca malhada” e a “Mérica, Mérica...”. Impressões erecordações tuas, podes acrescentar, depois... O espaço no fimé sem fim...

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Joaquim e Aurélia - Casamento em 1918

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filhos do Giuseppe, constam já casados, quando está provado quetodos eles emigraram solteiros para o Brasil. Que credibilidadepodemos emprestar a tais documentos?

Conhecemos a família De Carli estabelecida em Santa Lúciada Nona Légua, Travessão Thompson Flores. Lote 20. Norecenseamento de 1890, ficou registrado que viviam sete pessoas,naquela morada, ocupando três “prédios” de madeira, quetrabalhavam basicamente na agricultura de subsistência.

Numa viagem, que fiz, agora, a Caxias, consegui colhermais alguns dados. Antônio De Carli (1869 +13-06-1951), meu avômaterno, era filho de Vitório de Carli e Tereza Balem. Casou comGiovanna Slongo. Veio da Itália com 13 anos em 1882 e ela com 6a 7 anos. Ambos originários de Feltre, Província de Treviso. Eramtrevisani, portanto, como os Andreazza e os Piccoli da Vó Regina.Mas, falavam o “feltrin”, variação do mesmo dialeto.

A neta Saly De Carli informa que seu avô Antônio lembravados grandes peixes que rodeavam o navio, durante a viagem. Equando morria um passageiro, era jogado ao mar.

Informa, ainda, que Antônio foi procurar, em Caxias ummascate que se dizia da família “De Carli”. Queria saber qual erao parentesco. Mas, recebeu como resposta que os pobres tinhamvindo na frente para o Brasil e como ele era dos ricos permanecerana Itália. Disse mais, que os ricos não eram parentes dos pobres.

A ironia de mascate “rico”! Mas, o vô Antônio não fez caso.Conhecia esse jeito “fazer pouco dos outros”, para ver a reação ese divertir. Na verdade, significava que não sabia nada dos DeCarli.

Há poucos anos o Nestor De Carli, irmão da Saly, foi à Itáliaa negócios. Lá ficou algum tempo para estudar o funcionamento damáquina de malharia que adquiriu para a sua indústria. Então,procurou os De Carli. Mas, esses não tinham nenhum parentescocom os imigrantes da Família. Pelo menos não souberam informar.

A Maleva, filha do Arcízio Luiz, meu irmão mais velho, estevena Itália, fazendo um curso da língua Italiana ( é professora deitaliano em Nova Prata-RS). Procurou parentes pelo nomeAndreazza e De Carli, mas percebeu que eles se preocupavamcom a possível reivindicação de herança, de parte dosdescendentes emigrados para outros paises. Explicou-lhes queestávamos bem de vida no Brasil e não tínhamos nenhuma intençãode voltar para a Itália. Mas, não conseguiu melhoresesclarecimentos. Aplica-se aqui a sábia sentença do Luiz Andreazza,que registrei no “Aviso aos Navegantes”: “ se a gente não se visita,perde o parentesco”

2 - Aconteceu uma tragédia

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A Nona Giovanna Slongo era moça muito bonita e namoravaum irmão mais velho de vovô Antônio De Carli.

Mas, aconteceu uma tragédia, porque outros rapazestambém queriam se aproximar da Giovanna, tentando namora-la.

Houve uma festa com baile em que, um moço estranho tiroua Giovanna para dançar e não a largava mais. O irmão doAntônio pediu licença para dançar com ela porque era suanamorada. Os amigos do estranho intervieram e armou-se então umabriga. Na confusão, mataram o namorado da Giovanna e mais outroirmão dos De Carli que tentou socorre-lo.

Foi um caso de apavorar toda a região da colônia. Nuncase tinha visto coisa igual, nem parecida, por aqui ou lá na Itália.Durante muitos anos foi assunto de comentários e lamentaçõestristes.

Um crime passional. Com a morte de dois irmãos semculpa, inocentes.

Mais tarde, o Antônio casou com a Giovanna e tiveram 18filhos. Dois morreram novos e 16 foram criados, casaram e tiveramtambém muitos descendentes. A família da Giovanna morava longede Caxias, muito alem da Linha Jansen. Perto de Nova Vicenza,hoje Farroupilha ou de Bento Gonçalves.

A vó Giovanna era muito linda. Sua beleza ficou estampadanos seus filhos e filhas que eram todos bem apessoados. A tiaDelézia que ainda vive e eu conheci de mais nova, poderia ter sidorainha, se houvesse concursos de beleza, na época de suamocidade,

Sobre as atividades de Antônio, em 1904 consta dospagamentos de impostos municipais que recolheu 15 mil réis do“fogolar”( para fazer fogo em casa, os colonos pagavam imposto!). Eem 1914, a importância de 11 mil réis, de tributo do alambiquepara produzir graspa ( Cachaça).

AURÉLIA contava para as filhas que na família dela, DeCarli, as suas irmãs tomavam a dianteira, para todos os assuntos.Eram, ao todo 9 irmãs e sendo ela a do meio, a sua vez de falar eentrar na conversa demorava. Ficava quieta e se habituou a ouviras irmãs que sabiam mais.

Aconteceu que todas já estavam com idade de casar. Numdeterminado domingo à tarde, após terem assistido à reza do terçona igrejinha (tcheseta) de Santa Lúcia, estavam em casa e falavamde namorados, quando apareceu lá a cavalo, bem trajado, de botasaltas, todo faceiro, o rapagão Joaquim Andreazza. As moças se

3 - Namoro e casamento.

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alvoroçaram. E já se imaginavam candidatas.

Ele apeou, atou o cavalo e se aproximou, saudando a família.A seguir disse que desejava falar com a AURÉLIA. As irmãs,decepcionadas, levaram um choque, pois estavam aparecendo nafrente, se mostrando e pensavam que escolheria uma delas. Nessasituação, após o susto, perdido o entusiasmo, uma falou: “Onde éque está a Aurélia?” Chamaram-na. Estava dentro de casa.

Então, ela é que se assustou, quando disseram: “Vai lá. Elequer falar contigo!”

Passados uns minutos, saiu de dentro da casa, meioempurrada e constrangida foi ter com o Joaquim. Mas, aos poucos,após o boa tarde, como vai, o tempo está bom, como está tua mãe,eu te vi lá na igreja, a conversa iniciou. Ela disse estar surpresaporque tinha irmãs com mais idade, enquanto ela com 16 anosnem sabia falar: “mi son ceta, no só anca parlar”. O Joaquimrespondeu: “ É por isso que estou te procurando. Eu não gostodaquelas que falam muito, que são “ciaccolone”.

Começou o namoro dessa forma. Falando pouco. Eleaparecia todos os domingos de tarde e ficava namorando atéescurecer, para ir embora. Também se encontravam na igrejinha, nahora do terço e nas festas religiosas da Santa Lúcia e de outrosSantos quando o Padre rezava a Missa, ou fazia os batizados,

Durou apenas seis meses, o namoro. Aurélia dizia que tinhacasado com 17 anos. Os documentos informam que teria 18.

Quando as filhas lhe indagavam mais sobre como era onamorado Joaquim, ela respondia: “ Éh!... êl era bél.”..Ele erabonito, alto, sempre de traje novo, lenço branco, botas atadasacima do joelho, chapéu de feltro, alegre, bem disposto. O cavalobem arrumado.

Casaram em 1918 e tiveram onze filhos.

Moraram sempre com a Nona Regina e o vovô Constante,aos quais deram assistência até o fim da vida.

A Aurélia, quieta e conformada, aceitava o mando da VovóRegina que se intrometia em tudo e decidia. Raramente Auréliareagia, mas com poucas palavras, quando a intromissão erademasiada: “Nó, nó, cosi nó”,.-..não, não, assim não”. Dava aimpressão de viver orientada por um provérbio que transmitia àsfilhas: “ Se volê viver ben, - tolê el mondo come el vien”. Se quereisviver bem, - aceitai o mundo como vem”. Falava pouco, enquanto aRegina se esbanjava na conversa. Completamente diferentes, serespeitavam e conviviam em harmonia.

Recomendava aos filhos o bom comportamento e a

4 - “Se volê viver bem...”

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seriedade na vida: ”Com l'onestá, in cielo se vá”. Com honestidade, sevai pra eternidade(céu)”.

Outro dito de que ela gostava e muito repetia: “Fuori del'onesto - si perde el mánego e anca el minestro”. Fora dahonestidade, - se perde o cabo ( começo) e também o colherão dasopa. (o fim ). Ou este “ de um dir a um far, bisogna laorar”- Entre odizer e o fazer, é necessário trabalhar”.

Sabia ler e escrever. Ensinava o catecismo em italiano,preparando as crianças para a primeira comunhão, enquanto tiravao leite das vacas na estrebaria, pois era serviço demorado e elaaproveitava o tempo. Eu aprendi, repetindo e recitando, todo ocatecismo em italiano para fazer a primeira comunhão, na Catedralde Caxias. Pergunta e resposta, iniciava: -“Siete voi Cristino? -Si,sono cristiano per la grazia di Dio”.

As minhas irmãs sempre diziam que a mãe falava pouco,mas, ensinava muito. E quando se queixavam do trabalho ou davida, ela respondia “nó ghê ne ben che sempre dure, - ne mal chenó finisse', não há bem que sempre dure, nem mal que não acabe.

Por sua vez, o Pai recomendava, quando apareciam ascostumeiras fofocas, “noaltri, intant, se tás”, nós, entanto, ficamoscalados. Não queria dar curso aos dizeres maledicentes oudesabonatórios. Se a gente ouvia, deveria acabar por ali. E sealguém lhe perguntava qual fora a “conversa”, ele dizia...”Ah...lê zêfrótole” ( ah, são conversas sem valor, “dizquedizque”).

Quando nós iniciávamos uma discussão, a mãe Aurélia,recomendava “el sito, l'ê un bel scrito”, o silêncio é mais bonito.

E se nós demorávamos a pegar no trabalho, ela dizia “ el canpegro el magna la polenta freda”. O cão preguiçoso come a polentafria.

A Aurélia nos contava que as noras ( ela também ) não seatreviam a contestar a vó Regina. Quem não aceitasse, devia semudar com o marido. Nunca falavam, “a minha sogra”, mas, semprediziam a minha “modonna”, ou “la mia mama”. Quando casaram,para morar com a sogra na mesma casa, deviam passar por umacerimônia declarando que a aceitavam por mãe e Ela respondia queaceitava a nora, por filha. Ela se tinha por mãe de todas. Dali emdiante, deviam obedecer e tratar a sogra com reverência .

Uma das poucas informações da Aurélia sobre sua família éa de que o Pai, Antônio De Carli, quando vinha da roça muitocansado e não queria rezar o terço, à noite, recitava esta oração:

“Signor, mi son el vostro Togno (nho)

“Gó tanto de bisogno (nho)

5 - O vovô Antônio De Carli.

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“Gó da morire, má no só quando..

“ L'ánima mia vi racomando...

“Mi racomando giorno e note

“In fine, al punto de la mia morte”

Uma vez recitados os versos, bem rápido, ia dormir. E a famíliaficava rezando. Mas, aAurélia. ria discreta, quando contava esse fatodo seu pai.

Na véspera da festa de São Giácomo, da sociedade da SantaLúcia, onde moravam os De Carli, em 1951, o vô Antônio teve umderrame cerebral. No dia seguinte, domingo, o Padre que foi rezara missa da festa, visitou-o primeiro e deu-lhe a extrema-unção e acomunhão.

Uma hora após, durante a missa, quando tocaram os sinos, oPadre avisou que Antônio havia falecido. Os parentes que sabiamda reza dele e dos versos, pedindo a Deus uma boa morte,contavam que a coincidência fora uma benção divina.

Joaquim tinha pouca instrução. Freqüentou apenas um anoa Escola de Nossa Senhora da Saúde, da Nona Légua, porquedevia trabalhar. Mas, sabia ler e escrever o nome, algumaspalavras e fazia contas. Eu o vi anotar no verso de uma NotaPromissória as palavras “pago o juro do ano tal”.

Não se descuidava da instrução dos filhos. Eu tinha quatroanos e o Pai me obrigava a ir à Escola junto com minha irmãmais velha, Zita Maria. Eu não gostava. Não queria, porque nãotinha livro. Mas, o Pai mandava - tem que ir, neste primeiro ano,mesmo sem livro,“para aprender a estrada da escola”. Eram 300metros de distância ( ! ), mas a estrada cheia de pedras meincomodava.

Demonstrava interesse na instrução que não pode ter. Maistarde, eu sai de casa para estudar e o Pai me pagou sempre asdespesas. Minhas irmãs, a Amábile e a Leonora Maria, tiraram omagistério e exerceram a profissão, graças ao apoio e à força queos Pais deram. A Amábile lecionou, enquanto solteira, vários anosna Escola local da Sociedade São José, pelo empenho e interessedemonstrado por Joaquim e Aurélia. Era uma escolinha pequena,com dificuldades crônicas para conseguir a nomeação deprofessdor, depois que se aposentou o meu antigo Mestre AlbertoVeadrigo que me alfabetizou e me ensinou até o penúltimo “livro”!.No ano da “seleta” e do “manuscrito”, havia sido nomeada, pelaPrefeitura, uma professora que morava na cidade e não batia nosalunos, só dava “bolo”, com uma régua pesada e larga, na palmada mão.. Lecionou dois anos só, vagando o cargo de novo por

6 - Joaquim e a escola

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algum tempo. Até que assumiu a Amábile, quando eu já havia“terminado a Escola”

O Curso Primário não se dividia em “anos”, mas, em “livros”.O aluno estava cursando o primeiro livro, o segundo, ou terceiro...Depois vinha a “seleta” ( a célebre coleção das fábulas do “lobo eo cordeiro”, etc. ). O último era o “manuscrito”, com letra de váriascaligrafias. Diziam, o aluno não passou, deve repetir o terceiro livro.

O antigo Professor, muito bom, ensinava à moda antiga,com um “stropon” na mão, uma comprida vara de vime. A aula,sempre de tarde, porque de manhã ele ensinava na Escola daLinha 40. Em dias de calor o Professor pegava no sono. Ficavasentado, de cabeça abaixada, escondendo o rosto com os braços ouas mãos sobre a mesa, enquanto os alunos em número de 4 a 6,do mesmo livro, exercitavam a leitura em voz alta, formando umsemicírculo, de pé, à sua frente. Cada aluno lia meia página epassava para o seguinte. Acontecia que o meu colega Casagrandeerrava as palavras, ou fazia brincadeiras. O Professor acordava,com a interrupção da monótona “cantilena” , leitura cantada. Pegavaa vara de vime, batia com destreza admirável, na orelha dele, queficava muito vermelha.

A didática daquele tempo, hein? Bem diferente dos “muitosdireitos e poucos deveres”, de hoje !

Esse mesmo aluno, às vezes cansado pelo decurso da aulasem novidades, enquanto o Professor abaixava a cabeça paradescansar ou afugentar o sono, ele atirava a sacola dos livros pelajanela. Depois pedia licença para ir ao banheiro. Saia e não voltavamais naquele dia. Esse também era um motivo de apanhar e sermarcado pelo Professor

Meus irmãos e eu contávamos para os Pais o assunto do“stropon” do Professor. O Joaquim dizia, “não tem importância, deum jeito ou de outro tem que aprender a lição”: “studiê par nosciaparle”... Estudem para não apanhar.

Cuidava bem dos animais o Pai. Dava aos cavalares feno emilho no inverno, dentro da estrebaria onde pousavam, para ficaremabrigados do frio. As vacas de leite tinham outro curral para dormir.Recebiam ração e pasto verde à noite.

Um fato marcante na vida da colônia era a visita dos“Vacarianos”, como nós chamávamos os tropeiros de Vacaria.Sempre apareciam com uma tropilha de cavalos e éguas, unsquantos burros e mulas, quase todos carregados, com cangalhas ebruacas grandes de couro cheias de rodas (formas) de queijogostoso. Um produto diferente do nosso, feito em casa. Bem

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7 - Os Vacarianos

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curado, o queijo dos vacarianos era superior. Duas ou três formasque nossa mãe sempre comprava, eram a nossa delícia.

Pelas informações a nós transmitidas, esses tropeiros“vacarianos” nunca deixaram de visitar as colônias todas, desde oinício da imigração. Era o comércio ambulante. Os cavalares tambémeram para vender ou trocar com os colonos. Nunca precisava o Paiprocurar cavalos mansos de uso. Cada ano ou dois, os vacarianosapareciam com suas novidades. “Que essa égua é mansa. Queaquela pode encilhar ou pode botar na aranha, ou charrete. Aqueleburro tem muita força e não é coiceiro, nem empacador. Burroempacado, ninguém tirava do lugar. Nem com fogo no rabo, comodiziam.

Eram apreciados e recebidos com satisfação, essesfornecedores da única e válida condução dos primeiros anos decolonização. Os cavalos e os muares resolviam os muitosproblemas de transporte, carga, comunicação.

Lembremos que os antigos vênetos eram grandes criadoresde cavalos, no Oriente e na Europa. Forneciam animais para outrospovos. Aqui, os sucessores vênetos brasileiros, compravam ecuidavam os “amigos do homem”, porque não sabiam viver de outramaneira.

Os vacarianos, se me lembro, sempre chegavam em nossacolônia, ao anoitecer. Pousavam com seus ponchos e chapéusgrandes lá na estrebaria dos cavalos e faziam suas camas no meiodo feno, pois no inverno o frio obrigava. Assavam diretamente nofogo, a carne que traziam debaixo dos pelegos. Também tomavamcafé e chimarrão. Nós não tomávamos mate. Somente quandochovia, a vovó Regina, às vezes fazia o tal do ”cimaron”..quetomava com a bomba numa tigela em lugar de cuia. Certamenteaprendera dos vacarianos. Erva, havia no mato. Ela colhia folhas esecava no fogão. Depois moia ou macerava do jeito que desse.

Também lembro que na época da Revolução (1930),acompanhei o Pai uma vez, para esconder os animais cavalaresmais novos e de melhor estado, no fundo do potreiro, no meio domato. Atados a cabresto. Com um monte de feno e umas espigasde milho, para não ficarem com fome. Queria evitar de seremrequisitados pelos pelotões militares. Mantinha em casa somenteuma égua baia, já velha. Três vezes ela foi levada pelosrevolucionários e em todas as três, voltou para casa sozinha,depois de alguns meses, fugindo dos acampamentos.

Lembro, quando retornou pela última vez. As duasanteriores não vi, me contaram. Todos nós, crianças, corremos dacasa para a estrada, afim de ver a chegada da égua baia. Talveztenha sido a lembrança mais marcante da minha infância. Não me

8 - As três voltas da Égua Báia.

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saiu mais da memória. Tinha menos de quatro anos

Aos gritos de “a égua baia está chegando”, fomos aoencontro dela e abrimos a porteira, fazendo-a entrar. Para mim elatinha uma altura enorme. Era obrigado a olhar para cima, Lembrocomo fazia aquele “hó-hó-hó”.. o relincho anasalado, nosreconhecendo. Pensava que fosse a “fala” dela. Também acenavacom a cabeça, pra cima e pra baixo.

Discutíamos, os irmãos, sobre como a égua baia sabia ocaminho de volta. O vovô que lidava mais com os cavalos, diziaque ela havia aprendido, de tanto ir à cidade com a vovó. E quesempre guardava na cabeça o rumo, a “direção de casa”. Enfim,para meus irmãos, um grande mistério. Eu, o menor, não tinhadúvidas. Pensava que ela sabia falar. E ficava imaginando, porquenão adiantava dizer. Eles não me escutavam.

O certo é que a nossa égua baia venceu a guerra e voltou.Conquistou a liberdade de viver onde queria. E não mais a vierambuscar. Os revolucionários perderam para ela.

Constante e Regina, ao estabelecerem-se na terra adquiridana linha 30, após dois anos de casados e seguindo a lição dopatriarca Giuseppe, dedicaram-se basicamente ao cultivo dasvinhas, tendo como produção principal, não o trigo ou o milho, masa uva, cuja colheita vendiam às cantinas da cidade. Guardavam oresultado para formar capital. Era o tal “dinheiro que não se podiagastar”.

Passados alguns anos, com a ajuda do filho Joaquim,construíram cantina própria, onde produziam o vinho que, depois deconcluída a fermentação e “transvasado”, isto é, separado da“borra”, comercializavam nas grandes empresas Vinícolas deCaxias.

Os produtos cultivados em torno de casa, as hortaliças, asfrutas, bem como os frangos, galinhas gordas para fazer o "brodo",ovos, eram vendidos na cidade pela vovó para comprar, com oresultado, roupas e calçados, e mais freqüente, sal, café, açúcar efarinha de mandioca. Farinha de trigo para o pão e as massas, eraproduzida no moinho local, da família de Casemiro Scur, meupadrinho de Batismo, situado perto da antiga serraria dos Salomoni,no rio Branco. Duas vezes por mês eu montava na égua zaina elevava ao moinho um saco de milho, numa viajem e um saco detrigo na outra e trazia, de volta, a farinha. Eu gostava de retornarsem carga, para galopear

Aproveitaram o desnível das várias quedas, ou cascatas,para mover a roda d'água, Cada colônia tinha seu moinho quefuncionava com esse sistema, utilizando o desnível dos rios.

9 -A cantina e as provas do vinho

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Naquele riacho havia cinco quedas ou cascatas onde íamosem grupo de irmãos e amigos, pescar e tomar banho de cachoeira.Conhecemos lá uma gruta em que diziam terem morado os“bugres”, índios, antes da colonização. Os imigrantes nunca viramíndios de verdade. Os caboclos que apareciam na colônia, eramdescendentes deles, mas vestidos normalmente e falando o“brasileiro”. Os colonos, mais para assustar as crianças, falavam que“i bulgari”, os bugres eram perigosos.

Joaquim, ao assumir a chefia da casa, quando o vovô lhepassou o poder, ampliou a cantina e os parreirais. Colhia mais uva,produzia mais vinho. Derrubou a machado, um enorme pinheiro quefez um “estrondo” ouvido de longe, ao cair no meio do mato,.despertando a gritaria da vizinhança. Transportou as toras uma auma, na carreta reforçada, por causa do peso, para a serraria dosMichielon, onde fez construir pipas grandes, para armazenar o vinho.Tiveram que montar dentro da cantina, porque não ,passariam pelosportões. Eram tiroleses os tanoeiros e bons carpinteiros queproduziam vasilhame de qualquer tamanho, fosse “bôte ou tinass”, lána Linha do 40. Por brincadeira, apelidavam-nos, de “tirolesi “senzabandiera”.

É que o Tirol, donde eles eram originários, misturava italianocom alemão, tanto na língua quanto nos costumes e na comida,porque eram dominados pela Áustria (alemão), ora pela Itália, orapela França.Abandeira deles mudava freqüentemente. Dali a confusãoe o apelido de “sem bandeira”.

Além das grandes pipas, o Pai Joaquim mandou fazer o“tórcio”, a prensa de tirar do bagaço o último mosto, que era bompara dar mais cor ao vinho. A torta da sobra, levada ao alambique,dela extraia a graspa (cachaça). Todos os colonos possuíam o seualambique que consistia num panelão amurado com alvenaria detijolos e um “chapéu” alto, para servir de tampo e acumular o vaporque se formava com a fervura. Ao ser resfriado pela água corrente,transformava-se no líquido alcoólico. (graspa). O alambique erafabricado em chapa de cobre, não podia ser de ferro ou de outrometal.

Cada três barris produzidos, devia “refinar”, isto é, passarnovamente no alambique, para destilar a bebida final, levantando ograu ou teor alcoólico verificado com o “provim”. A cachaça eravendida às empresas da cidade. Mais um dinheirinho, entrava nobolso.

Passada a fermentação, que demorava uns quarenta dias, ovinho era transvasado de um depósito ( pipa) para outro e oscompradores, apareciam em nossa cantina para fazer a prova daqualidade. Ficavam conversando com o Pai, contando histórias e dequando em quando, tiravam um pouco de vinho de uma pipa por

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uma torneirinha ou “spinel”, mas não engoliam, só mascavam eestalavam a língua. Cuspiam, depois de manter por instantes ovinho na boca. Não bebiam, para não “enciucar-se”, ficarem tontos detanto provar. Descansavam um certo tempo, contavam maishistórias, davam risadas, comiam pão e queijo que meu pai memandava buscar na cozinha. Logo tiravam de outra pipa a amostra,repetindo o processo. Anos após, soube que essa cerimônia era adegustação que influía no preço do vinho, pois diziam teu vinhovale tanto. Ou, falta “extrato-seco”, (quando havia chovido demais nasafra), vai comprar no Veronesio bi-solfito. O pai, quase não usava.Apenas o que os provadores recomendavam.

Além de vender o vinho e a graspa a cada safra, a colôniafornecia para a Indústria do Veronese, a sobra do fundo das pipasou borra, juntamente com a “grupola”, ou seja a casca que as pipasformavam por dentro, pelo armazenamento do vinho durante longosmeses. Era retirada com uma enxó, num trabalho estafante. Mas,dava dinheiro, porque o Veronese comprava tudo e dela extraiaprodutos químicos, concentrados, vários dos quais ele fornecia aoscolonos que tinham deficiência de tanino, de meta-bissulfito ou ácidotartárico e outros componentes para produzir um bom vinho. Era o“giro” da produção colonial que formava uma cadeia de exploraçãoindustrial, iniciando o alicerce daquilo que veio a se tornar Caxias.

O Joaquim sempre queria melhorar as condições da família.Instalou um encanamento para conduzir a água de uma nascente,para dentro de casa. Foi uma grande comodidade. A água era muitoboa e suficiente. Saia da fonte, “fontana”, e vinha por gravidade. Ogrande investimento foi o cano de chumbo. Não havia outro.

Construiu uma pequena usina de turbina, aproveitando aqueda de água, sendo, assim, o primeiro da região a ter luzelétrica, rádio e geladeira. Uma grande conquista. Tínhamos águagelada e algumas lâmpadas de noite para iluminar a casa.

Embora não tivesse boa voz, não sendo bom cantor, gostavade música. Comprou uma pequena vitrola de dar corda commanivela, para tocar um disco do cantor Caruso e outros..

Sempre apoiava as boas iniciativas e elogiava a coragemdos que se arriscavam a empreender.

Não posso esquecer a indústria caseira do vovô Constante,mantida e melhorada pelo pai Joaquim. Era a chamada ferraria.Tinha um fole de couro com duas divisões, para assoprar o ar emanter as brasas do fogo acesas. Ali meu pai esquentava efabricava os ferros de ferrar os cavalares, malhando na bigorna commartelo pesado. Os animais empregados em carreta para transportar

10 - Usina elétrica, geladeira e rádio

A FERRARIA

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peso, precisavam ser ferrados, para não quebrarem os cascos eficarem mancos, imprestáveis. Ns estradas havia muita pedra ecascalhos. Cada colono tinha a sua oficina com ferraria e carpintaria,em área coberta. Trabalhavam nela nos dias de chuva em que nãopodiam atender à roça.

O Joaquim produzia também outras ferramentas, na suaferraria, como talhadeiras, ponteiras e cunhas para rachar as torasde madeira e furar os grandes blocos de pedra dos quais tirava osmoirões de dois metros e meio para sustentar as latadas dos parreirais.Com o passar dos anos, Joaquim foi substituindo todos os postesde madeira de pinho que duravam pouco, por outros que elemesmo fazia. Cavoucava com a picareta e a pá até encontrar umapedra de basalto de regular tamanho. Estudava e fazia uns furosem linha, nos quais colocava as brocas curtas de aço, que apontavae temperava na ferraria e batia nelas até rachar em dois pedaços.Depois, com outros furos menores dividia as diversas partes,sempre rachando ao meio, até o formato desejado que era deaproximados 30 centímetros de quadrado ou grossura, por mais dedois metros de comprimento. Estava pronto o moirão de pedra, quedurava para sempre.

Aconteceu que o Joaquim, como de hábito, saia de casabem cedinho, que era a melhor hora para trabalhar na pedreira.Embora a pouca idade, a mim cabia, depois das oito, levar-lhe a“colassion”, o desjejum ou café da manhã. A pedreira, localizada nomorro a 400 metros de casa, era alta e perigosa. Enquanto o paisentava para se alimentar, eu subia nas pedras e, embora ele meadvertisse, uma vez resvalei e cai de uma altura de dois metros ebati noutra pedra “quebrando a cabeça”, como diziam os familiares,ferindo-me. Fiquei em tratamento caseiro por algum tempo, feitos oscurativos pela mãe Aurélia. Depois, no lugar da ferida curada,alguns meses passados, nasceu o cabelo crespo e diferente donormal. Assim, fiquei marcado

Joaquim, nos últimos anos de vida, foi residir na Cidade.Aproveitou bem o tempo de “no far niente” percorrendo diariamente,em longas caminhadas, o Centro e todos os Bairros, recordando ecomparando a história do crescimento de Caxias que ele viu nascer.Iniciava de manhã, assistindo missa numa igreja, ora noutra eseguia sua excursão turística, encontrando amigos, indagando e

Ana Aurélia,

Estou te contando essa estória porque tenho na minhamente, não só a lembrança, mas também a marca de umacicatriz na cabeça e, assim, podes melhor compreender a nossavida na colônia, com os acidentes e as habilidades empregadaspelos imigrantes para vencer.

11 - Morou na cidade e esteve em Rosário

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recolhendo lembranças que reproduzia no almoço para a Aurélia,fazendo comentários. Ela gostava das novidades e conferia tudo.Quando nós os visitávamos, notávamos sua alegria e satisfação, aonos contarem novidades sobre parentes e pessoas ligadas à família,que já estavam esquecidas.

Perguntei uma vez se estranhara viver na cidade. Respondeuque não. Que achava muito bom, maravilha. E arrematou, “andemoveder se la dura”, vamos ver se isto dura. E coçava de leve acabeça, com um dedo.

Também esteve duas vezes em Rosário, ficando encantadocom a vastidão dos campos. Aqui se vê longe, dizia. E não tempedras. Só terra e mais terra boa de trabalhar.Aqui deveríamos teriniciado a colonização!

Falando em pedras, lá na colônia de Caxias, era o que nãofaltava. Quase todas as terras de cultivo tinham pedras quedificultadam a limpeza das plantas e lavouras. As estradas também.Aliás, quem colocava cascalho feito na marreta, quebrando pedrasmaiores, eram os proprietários. Todos os colonos tinham obrigaçãode trabalhar para a conservação das estradas, enchendo os buracosde atolador abertos pelas carretas, com pedras. Cada ano, conformea área da propriedade, deviam dar “tantas jornadas” de trabalho.Para aquele que não trabalhasse, o imposto não sofria desconto naPrefeitura

O Município mantinha um empregado “zelador” cujaobrigação era zelar pela conservação, mas, pouco fazia. Era“funcionário” que andava percorrendo a estrada com seu carrinho demão ( cariola), uma pá ( badile), uma marreta com cabo longo e apicareta. Carregava também um “corote” de água para “matar asede”. Diziam que misturava vinho, ou que, às vezes, enchia ovasilhame só de vinho, esquecendo a água.. O nome dele eraJoanin Marcarini, mas chamavam de “Joanin Stradin”, por causa daestrada. Fumava o cachimbo ( pipa), o que lhe ocupava bastantetempo, e retornava à tardinha para a sua casa cantando...

Entre outros funcionários públicos, havia também o Juiz dePaz que presidia os casamentos civis, atendendo uma granderegião. Chamava-se Eugênio Lucchese, morava na esquinacontígua à Cantina do Pão e Vinho, perto da Casa de Pedra. Tinhacomércio e era considerado autoridade, pacificava as brigas defamília e dos colonos. Quando sabia de alguma encrenca, mandavachamar os brigões. Ouvia as queixas de cada um e passava umacarraspa em ambos, cobrava a multa de cinco mil réis e osmandava para casa, ameaçando que, se repetissem, dobraria opagamento. Com medo de “gastar”, deixavam de brigar.

ESTRADAS

JUIZ DE PAZ

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Na Colônia sempre existiram os que prosperavam,sobravam dinheiro e emprestavam, com juro de 12% ao ano. Haviaos bons pagadores e os que se “descuidavam” ou fracassavamtornando-se maus devedores. Alguns comerciantes, em vista disso,passaram a exigir garantias hipotecárias.. Vários casos aconteceramde os endividados perderem seu patrimônio.

Joaquim procurava ajudar os parentes e vizinhos. Sempretinha suas contas em dia. Não fez maior capital, como o vovôConstante. Ele emprestava aos compadres e parentes, semgarantias e em alguns casos, perdeu dinheiro. Quando os herdeiros lhepagaram, sem correção que não era conhecida, o valor estava defasado.

Um colono da região esteve a ponto de perder sua terra,por não pagar suas contas. Bateu à porta do Joaquim chorando epedindo misericórdia. Foi socorrido, salvou sua propriedade. Mas,não se tratava de um homem bom, pois gostava de beber muito,“blasfemar como um demônio” e fazer desaforos para seus vizinhos,invadindo as cercas. E chamava o Joaquim de Pai. “O Joaquim é meuPai”, dizia a todos. Uma vez o Joaquim disse-lhe, “Tu fazes coisasmás (malfati) para teus vizinhos, me chamas de Pai porque teajudei. Mas, se não mudares, vais terminar a fazer o mesmocomigo”. Ele jurava que não.

Os anos passaram e o tal do “filho” se esqueceu dagratidão Voltou a beber muito. Sofria do fígado e gritava de dor(“urlava”) e blasfemava sozinho dentro da sua cantina. Nessasocasiões, ninguém chegava perto.. Não freqüentava as reuniões eFestas da comunidade.. Os colonos diziam que ele estava com odiabo O Pai Joaquim recomendava aos filhos, fiquem longe dele,porque “é capaz de qualquer coisa de mal”. De fato, aconteceuaquilo que repetia “ainda vou matar algum”. Matou nosso irmão masvelho o Arcízio Luiz, à traição, com arma escondida.

Sofreu nosso Pai com toda a família essa injustiça.Passamos vários anos muito tristes. Mas, Joaquim nunca deixou deser generoso com os que lhe pediam ajuda e dizia sempre aodevedor “no bisogna|(nha) aver paúra”, não precisa ter medo, se nãome paga nesta ano, fica para o ano que vem.

Joaquim era homem de muita fé. Quando a safra da uvanão rendia ou fracassava o resultado, dizia “El Sinhor el sá -andemo vêder el ano que vien”. Deus sabe! Vamos ver no ano quevem... E se conformava com o resultado.

Ficava alegre nas festas religiosas de São José e deSanta Libera. Uma em março e outra em novembro de cada ano.Tomava as providências para que o Padre encontrasse tudo em

EMPRÉSTIMOS “BANCÁRIOS”

12 - A construção da nova igreja

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ordem, ao rezar a missa. Sino, velas, toalhas, paramentos, limpeza,água, vinho. Tudo era revisado.

Aos domingos à tarde, na capela, ele puxava o terço,acompanhado pelas famílias da Comunidade.

Também ocupava o cargo de primeiro fabriqueiro etesoureiro que administrava as contas da “Sociedade São José”.Tinha um livro “cassa”, caixa, onde anotava os valores e despesas.Depositava o dinheiro na paróquia, nas mãos do Padre Vigário.

A Comunidade de “San Giuseppe” da Nona Légua erapequena, apenas de nove famílias, mas freqüentada por váriasoutras da vizinhança, embora não sócias. Tinha tudo: igreja comtorre e sino, escola, duas canchas de bocha, cemitério commuros de pedra, tudo construído aos poucos. E mais tarde, salãode festas.

De tábuas de pinho, a segunda capela (a primeira haviaqueimado ), durou mais de 50 anos quando, com o esforço de todosos sócios e do empenho especial do Joaquim, construíram aterceira igreja de alvenaria, tal como existe ainda. Ele não poupounada, nem dinheiro, nem trabalho pessoal, nem esforço. Nessaobra realizou o sonho da sua vida.

Sempre se mostrava muito feliz por ter erguido a nova igrejade material que seria definitiva.

Aurélia e Joaquim entendiam-se bem.. Trabalhavam de sol asol e rezavam todas as noites, de joelhos, com a família, após ajanta, o terço do Rosário de Nossa Senhora. Finalizavam com aoração para pedir a Deus “uma boa morte”, seguindo a tradição.

Celebraram as bodas de ouro, dos 50 anos de casados em1968. Com a presença de quase todos os parentes e vizinhos,compadres e amigos. Houve de manhã a missa na igreja local comas cantorias. Depois seguiu a Festa durante toda a tarde, na casavelha, transformada em salão para caberem todos os convidadosnas longas mesas.

Ana Aurélia,

- não te lembras que, ao final da festa, tu com o PauloRicardo cantaste os parabéns para os Avós Joaquim e Aurélia?Tinhas cinco anos.

Estavam presentes três tias, irmãs da Aurélia, velhinhas,que te atrairam a atenção e também cantavam la Bella Violeta,com a voz “bem fininha”, tu dizias!

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13- Foi apresentar-se de traje novo

Quando Joaquim esteve de cama por morrer, eu viajei aCaxias, e fui vê-lo. Conversou bastante comigo. A certa alturaperguntei como se sentia. Com a maior serenidade, sempre deterço na mão, falou da morte e me disse: Já estou pronto. “Mancasol un colpét, che El vien..” Falta só uma pegadinha, que Ele vem (me buscar)! E sorriu, como se dissesse que, da sua parte, nãohavia mais nada e fazer Só esperar a hora. Mostravatranqüilidade...

Poucos dias após, já quase em coma, uma filha entrou noquarto e abriu a porta do seu guarda-roupa. Ele, abriu os olhos edisse: “Não, não!...comprem tudo novo”.

Olhando o corpo no velório, todos os parentes nosimpressionamos. Parecia estar se dirigindo a uma solenidadeconhecida, de olhos fechados !

Era a sua fé e segurança estampadas no rosto.

Apresentava-se “al SIGNOR “!

E foi de traje novo....como pediu.

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BODAS DE OUROJoaquim e Aurélia

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CAPÍTULO VIIIº - A MÃE AURÉLIA

1 - Mãe na Colônia

Eu era o quinto filho, dos 11, e acompanhava bem como amãe Aurélia cuidava dos pequenos, porque me chamava a ajudar.Sempre de olho neles. Minha função de mandalete, às vezes falhava eela me puxava a orelha. Aliás, quando aniversariava todos mepuxavam a orelha, para comemorar. Não havia presentes. Abrincadeira consistia em estimular o vivente para crescer. E todos sealegravam e me incentivavam a melhorar, a estudar, a ficarhomem. Mas, nem todos os meus irmãos me pegavam, porque eufugia e subia nas ameixeiras de fruta amarela, as japonesas.

Falando em ameixeira, eu cai cinco vezes das árvores.Lembro que perdia o fôlego com a pancada nas costas. A mãeAurélia me punha de cama alguns dias e aplicava na coluna ummacerado de mestruço. Dor de dente, também resolvia. Aplicavaálcool para amortecer até ir ao dentista. Febre, tratava com umafaixa de pano embebido em água fria, enrolada na cabeça e umremédio que não lembro qual era. Dor de barriga, com chá e sopafraca de “brodo”. De quando em quando ”sal amargo”, ou óleo derícino.

Havia o Natal do Menino Jesus, “del Bambim Gesú ”,quando as crianças recebiam umas balas de açúcar e algunsbiscoitos forrados.. Eram os presentes da “burrinha” do presépio,“La musseta”. A mãe Aurélia nos ensinava que na véspera do

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Natal, depois das galinhas se deitarem, para receber presentesdevíamos colocar num local escolhido por ela, fora de casa, umaração para a burrinha , composta de farelo de trigo e bastantemilho.

No dia seguinte, era Natal, a Mãe levantava muito cedo,retirava a ração e dava para as galinhas ao tempo em que colocavanos pratos as balas de açúcar e biscoitos.

Contava-nos que “la musseta” vinha de noite visitar o presépiolá na igreja de São José, para aquecer o Menino Jesus que estavacom frio. Ele nascia na estribaria e tinha pouca roupa. Precisava docalor do bafo do animal que, ao passar de viagem, comia a ração edeixava os presentes. Nós, encantados, arregalávamos os olhos epedíamos para contar de novo várias vezes antes de dormir.

Era tradição na colônia, provocar a fantasia infantil e infundirbons sentimentos, ao contar a história do Natal, como ensinaramos velhos imigrantes da Itália.

O ritual, na hora da refeição era sempre observado e fiscalizadopela Mãe. As crianças, não sentavam à mesa, enquanto não “sabiamse comportar” convenientemente. O respeito quase que religiosoimperava. Não se falava, enquanto o “Capo-tola” (era o Pai que sentavaà cabeceira), não dissesse alguma palavra. Os pequenos que se atreviama falar sem fundamento eram chamados à atenção... “não se fala assim...”“Êh!...tem que aprender a falar”. Os novos se retraiam, ouvindo osmais velhos que sabiam mais. “bisogna(nhá) imparar”, “precisaaprender”. Era a hora dos ensinamentos.

Lembro que o Capotola era o Pai Joaquim, chefe da família. OCostante sentava ao fundo da longa mesa, como a dizer que tinharenunciado ao lugar a favor de responsável pela condução dostrabalhos e dos negócios. O vô já estava velho.

O respeito à hierarquia, a mãe impunha como ordem, a favor doPai, dizendo: “não se faz assim, ..o Pai não quer”.

Era uma vida rústica, com restrições de toda ordem. Principalmente,“não se podia gastar”, o dinheiro era preservado, como algo de sagrado,para garantir o futuro. O instinto de sobrevivência se manifestava sempremuito agudo, transmitindo a precaução, quando não o medo... “como éque vai ser, mais tarde ( o futuro)?”

Quando Aurélia ganhava os filhos, ficava de quarentena noseu quarto e no escuro. Não abriam a janela. Só uma fresta. Eraassim e não explicavam porque.A vó Regina mandava.

Os nenês eram “enfagotados”, enrolados com uma faixa davários metros. Ficava só a cabeça de fora. Depois de certo tempo,liberavam os bracinhos, mas continuavam a enfaixar bem apertado.

Um dos últimos filhos nasceu durante a colheita da uva,

2 - Nascimento de filho

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quando nunca há braços suficientes. Todos da família vão pra baixodo parreiral. Colhem nas cestinhas, enchem as grandes que sãotransportadas no arrastão ou na carreta para a cantina, segundo adistância.

Naquele ano, a Aurélia junto com os demais da família,estava colhendo uva. Em certo momento retirou-se para casa queficava ao lado do parreiral. Como era de seu temperamento, nãoavisou e não disse nada....O Pai, que de tanto em tanto sedeslocava para a cantina com a uva colhida, retornou e disse para aVovó Regina. Acho bom a senhora ir ver a Aurélia, porque meparece que ouvi choro de nenê, de lá da cantina.

É que a casa tem dois pisos.A cantina, no porão. Em cima,os quartos. A Regina foi exercer as suas funções de parteira. Mas,chegou tarde. O nenê já tinha nascido. Ganhar filho não é doença,dizia.

Um fato de muita importância para minha mãe AURÉLIA,eram as festas dos Padroeiros São José e Santa Líbera, da nossacapela da Linha Trinta, Nona Légua. Constituíam-se nos grandesacontecimentos sociais, ao lado dos casamentos das filhas,comentados sempre e recordados anos afora.

A mãe iniciava os preparativos alguns meses antes da data,engordando as galinhas e frangos, juntando ovos. Providenciavaigualmente os recursos necessários, vendendo o que sobrasse daprodução, adquirindo açúcar e outros produtos necessários àconfecção de bolos e “biscotti” de toda espécie.

O “pranzo” ou banquete como denominava o almoço, eracomposto de cinco ou mais pratos. Entravam a sopa de agnoliniou capeletti. Como segundo prato, a carne “lessa”, de galinha e degado, gorda, com a qual haviam feito o “brodo”. Antes ou depoisdesse prato, serviam os tortei. Acompanhavam o crém, raiz raladae amadurecida no vinagre e as saladas de radicci, alface e outrasverduras junto com o terceiro prato em que serviam o “carne a“mena rosto”, de frango novo, “Galleto al primo canto”. Tal qualhoje servem no espeto. Naquele tempo, o “mena-rosto” não eraespetado, mas, assado no forno de pão superaquecido com fogodireto de lenha de cerno ou “cop de pin”, nó de pinheiro. Tiravam ascinzas e colocavam as travessas cheias de carne para assar nocalor, tipo “na brasa”.

Era o prato principal, por isso repetido, servido à vontade,bem acompanhado.

Nos dias comuns, sem festa, eram servidos os “nhoqui”,quando não restava mais tempo para espichar a massa. A sopados “fidelini”, era o prato dos domingos. Também o macarrão furado

3 - As festas de “sagra

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e carepento, da grossura de um dedo mingo. Quando liso,chamavam de “subioti”, parecido com canudo para assobiar. Distovinha o nome. Todas essas massas, bem como as “taiadele”,talharim, eram feitas em casa a mão, num trabalho estafantepassando no rolo ou na máquina que também era pesada.

O segredo das várias massas era o molho diferente paracada uma.

Após horas de cantoria regada a vinho, entravam osdoces, bolos, gróstoli, coscorrões, biscoitos simples e cobertos e,finalmente, os pudins e café preto em xícara grande.

Iniciado o “pranzo” entre 12 e 13 horas, terminava àsquatro ou mais tarde. Às vezes havia longas e espaçadas mesadasquando a sagra se realizava no salão de festas da comunidade.

Ali compareciam os amigos e visitantes da cidade. Dessaforma divulgou-se a culinária criada pelas colônias de origemitaliana. Hoje, as churrascarias e restaurantes especializados servempratos típicos originários dessa tradição.

Os parentes convidados para a “sagra”, com antecedência,vinham em número de pessoas, uma, duas ou três por família,obedecendo aos convites recebidos que eram retribuídos, quandoda festa da sua comunidade. Tudo muito bem organizado, para nãohaver surpresas. Chegavam de Monte Bérico, de Santa Lucia, daSaúde, do Quarenta, do Sessenta.

Muitos comentários, antes e depois da sagra. Sempreressaltando o bom gosto dos pratos e temperos das carnes. Passeivários anos, como guri de recados. Minha mãe me mandava acavalo à casa de todas as famílias dos parentes e compadres parafazer os convites. “ La mama la vê manda convidar par la festa deSan Giuseppe”.

A Aurélia sobreviveu cinco anos ao Joaquim. Embora nãose lamentasse, revelava uma certa tristeza, nas recordações.

Era paciente. Retraída. Rezava muito. “Mas, - no dizer danora Antônia Altiva - quando falava, tinha um encanto” !

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FAMILIA DE CARLI

4 - Final da Carta

Querida filha Ana Aurélia,

- vou terminar esta carta bastante longa. Os assuntosforam misturados, igual à polenta, como acontecem na vida deuma família numerosa. Sempre, sem ordem programada.

Para poderes entender melhor os imigrantes e a vontadeque sempre tiveram de buscar novas aventuras e novasoportunidades, vou passar para a Segunda Parte, com asinformações dos descendentes de DAVIDE PAOLO ANDREAZZAque “saiu” da colônia e foi desenvolver negócios na cidade,onde com sua família de 11 filhos, muito contribuiu para ocrescimento e industrialização de Caxias.

Como eu não sabia, o dr. Ely José escreveu sobre seuavô, Davide Paolo, com rara competência, no Capítulo a seguir.

Depois, falo sobre o parente e amigo de meu avô e de meu

Foto da Familia de Antônio e Joanna Slongo De Carli - 1ª - fila ( de pé): 1-João e esposa Carolina c/ sua filha; 2-Vitório c/esposa Afonsina e suafilha; 3-Salvador e esposa Joanna c/filho;

2ª-fila,(de pé):4-José; 5-Isidoro; 6-Ângela; 7-Aurélia;8-Carmelina;9-Teresa.- 3ª- fila: 10-Pierina; 11-Isabel; 12-Adelina; ( Joanna, mãe)13-Luiza; (Antônio, pai); 14-Delézia; 15-Ernesto; e 16- Júlio.

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Pai, o Luiz Andreazza.

Concluo a Segunda Parte com um capítulo especialdedicado ao nosso parente mais ilustre da Família, que foi oMinistro Mário David Andreazza, cuja memória merece muitomais do que ali está escrito.

A terceira parte é dedicada à ÁRVORE GENEALÓGICA,que deve abranger mais de mil descendentes daqueles 16imigrantes de 1879.

Finalmente, apresento algumas conclusões edocumentos, uma explanação resumida sobre os “Vênetos”,nossos antepassados, que mostra a têmpera de um povo aoqual pertences.

A Arvore restará sempre incompleta, pelo óbvio! Separassem numa região, era fácil contá-los e lançar o nome detodos os Andreazza, nos ramos, nos galhos, nas folhas e nosfrutos...mas, irrequietos, procuram “terras novas” e semultiplicam, mais e mais...

É impossível completar a história ! Espero que tucontinues.

Sem esgotar o assunto, fiquei com a impressão de quenós, - o Ely José. a Edy, a Leonora e eu, - encontramos a“Mina das Lembranças”, onde poderá haver muita lavra edescoberta de grandes tesouros !

Terminei em 26 de julho de 2002.

Do teu pai que te ama,

Romeu.

Ana Aurélia, esposo Ruy Alberto Souto,filhos Henrique e Antonia com a Pupi.

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