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A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO NAS

RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS

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Imagens da capa: https://pixabay.com/pt/afresco-mural-escola-de-atenas-67667/

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Ademir Menin José Francisco de Assis Dias Leomar Antonio Montagna

(Organizadores)

A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO NAS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS

Primeira Edição E-book

Toledo - PR 2017

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6 A importância do Conhecimento...

Copyright 2017 by

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Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL:

Prof. Daniela Menengoti Ribeiro - UNICESUMAR Prof. José Beluci Caporalini - UEM

Prof. Lorella Congiunti – PUU - Roma REVISÃO ORTOGRÁFICA:

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http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

A importância do conhecimento nas relações

I34 intersubjetivas / organizadores Ademir

Menin, José Francisco de Assis Dias,

Leomar Antonio Montagna. – 1. ed. e-book –

Toledo, PR: Vivens, 2017.

230 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN: 978-85-92670-30-6

1. Conhecimento. 2. Filosofia. 3. Platão,

427?-347? a.C. 4. Aristóteles, 384-322 a.C.

Título.

CDD 22. ed. 100

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................... 11 PRIMEIRA PARTE: A FUNDAMENTAÇÃO DO MITO ERÓTICO-SOCRÁTICO EM O BANQUETE DE PLATÃO Whesley Fagliari dos Santos ........................................................... 15 INTRODUÇÃO À PRIMEIRA PARTE: A MITOLOGIA GREGA UTILIZADA COMO ELEMENTO ESTÉTICO ...................................................... 35 II = IMPASSE NA GRÉCIA ANTIGA ENTRE DEUSES E FILÓSOFOS ....................................... 45 II = O MITO FILOSÓFICO E O FILÓSOFO MITOLÓGICO ............................................. 57 CONSIDERAÇÕES FINAIS DA PRIMEIRA PARTE ... 83 REFERÊNCIAS DA PRIMEIRA PARTE .......................... 91 SEGUNDA PARTE: A AMIZADE EM ARISTÓTELES E AS RELAÇÕES HUMANAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO Ederson Camilo Pãoeagua Leomar Antonio Montagna ............................................................ 93

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INTRODUÇÃO À SEGUNDA PARTE I = A AMIZADE NA ANTIGUIDADE ........................... 101 1.1 ASPECTOS HISTÓRICOS DA AMIZADE NO CONTEXTO ANTIGO ........................................................ 102 1.2 A AMIZADE SEGUNDO OS PITÁGORICOS ....... 107 1.3 A AMIZADE NA CONCEPÇÃO ATOMISTA DE EMPÉDOCLES ...................................... 110 1.4 A AMIZADE EM PLATÃO ENQUANTO FORMA IDEAL .......................................... 113 1.5 A AMIZADE COMO VIA PARA A FELICIDADE EM EPICURO ........................................ 118 1.6 CÍCERO E OS LIMITES DA AMIZADE ................. 121 1.7 A AMIZADE COMO CONSTITUTIVO DO HOMEM SÁBIO EM SÊNECA ......................................... 128 II = A AMIZADE NO PENSAMENTO DE ARISTÓTELES ............................................................... 133 2.1 O HOMEM EM ARISTÓTELES ................................. 136 2.2 CONCEITO DE PHILÍA NO PENSAMENTO ARISTOTÉLICO.................................... 139 2.3 TIPOS DE AMIZADE EM ARISTÓTELES............. 142 2.3.1 Amizade segundo a utilidade ........................................ 144 2.3.2 Amizade segundo o prazer ........................................... 146 2.3.3 Amizade virtuosa ............................................................ 149 2.4 AMIZADE ENQUANTO VIRTUDE E SUA RELAÇÃO COM A JUSTIÇA E A FELICIDADE ........ 154 2.4.1 As diferenças entre amor, amizade e benevolência ........................................................... 161 2.4.2 Papel da amizade no contexto da pólis grega............. 164 III = AS RELAÇÕES HUMANAS NO MUNDO PÓS-MODERNO ................................................ 171 3.1 ASPECTOS GERAIS DA ERA PÓS-MODERNA ......................................................... 172

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3.2 O INDIVIDUALISMO PÓS-MODERNO E A ERA DO VAZIO SEGUNDO LIPOVETSKY ....... 177 3.3 ZYGMUNT BAUMAN E A LIQUIDEZ DOS LAÇOS HUMANOS NA SOCIEDADE DO DESCARTÁVEL ............................................................ 189 3.3.1 A “virtualização” das relações humanas na era do descartável ........................................................................... 202 CONSIDERAÇÕES FINAIS DA SEGUNDA PARTE ............................................................... 213 REFERÊNCIAS DA SEGUNDA PARTE ....................... 219

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APRESENTAÇÃO

Com alegria indizível, apresentamos aos amantes da

filosofia antiga esta obra que põe em diálogo o pensamento antigo e pós-moderno sobre o atualíssimo problema das relações intersubjetivas e a importância do “conhecimento” para a criação e manutenção da amizade e do amor.

Na primeira parte, intitulada “a fundamentação do mito erótico-socrático em O Banquete de Platão”, de autoria do professor Whesley Fagliari dos Santos, investiga-se os motivos que teriam levado o célebre filósofo Platão a utilizar uma linguagem mitológica em uma de suas mais belas obras, O Banquete. É abordada a Mitologia, a forma como a população grega percebia os mitos e a influência que causou, tanto na política quanto na religião, esta concepção mitológica do mundo.

Verifica-se o veículo que difundiu a Mitologia, as Tragédias e as epopeias, que narravam as peripécias e aventuras de heróis e seres fabulosos. Trata-se ainda dos acontecimentos que teriam provocado toda a mudança no cenário político da cidade e como os primeiros filósofos, chamados de pré-socráticos, marcaram seu tempo com outra maneira de abordar as mais diversas questões acerca da natureza e das relações humanas.

Analisa-se ainda como é que Platão estrutura O Banquete, que se passa em casa de um poeta grego, Agatão. Existem convidados que lá estão para celebrar a vitória de Agatão em um concurso de Tragédias, muito comum naquela época. Durante a festa, em que está presente Sócrates, decidem fazer um concurso improvisado de elogios a Eros, o deus grego do Amor. Sócrates é o último a discursar em favor de Eros e, ao invés de falar, passa a narrar uma conversa que teria tido com uma sacerdotisa proveniente de Mantinéia,

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Diotima. Esta mulher é quem instruíra Sócrates nas questões referentes ao amor. Investiga o modo como Platão fundamenta o mito de Eros contado por Sócrates-Diotima. Estuda a relação existente entre Mito e Filosofia na obra supracitada.

Na segunda parte, intitulada “a amizade em Aristóteles e as relações humanas no mundo contemporâneo”, de autoria dos professores Ederson Camilo Pãoeagua e Leomar Antonio Montagna. Os Autores analisam o conceito de amizade no pensamento de Aristóteles, a fim de relacioná-lo com as características contemporâneas das relações humanas considerando, principalmente, o pensamento de Lipovetsky e Bauman. Apresentam alguns dos principais conceitos de amizade (phília), engendrados por autores antigos.

Em sequência, busca-se demonstrar que o conceito de amizade em Aristóteles assume conotações específicas e muito particulares em relação aos demais, uma vez que na teoria aristotélica, a amizade se constitui como necessidade vital para a vida, sendo levada à categoria de virtude. De acordo com determinados aspectos que condizem com as características de cada indivíduo, Aristóteles classifica a amizade em três tipos: amizade por utilidade, por prazer e por virtude.

Porém, os dois primeiros tipos de amizade, por serem orientados a partir de aspectos acidentais, são provisórios; somente a amizade virtuosa é duradoura, uma vez que se sustenta no caráter de cada pessoa, sendo mantida pela reciprocidade e pela confiança. Como principal conclusão, o que o conceito de amizade aristotélico propõe é o de que, a amizade enquanto relação humana contribui significativamente para a vida na polis, podendo até mesmo, em sua presença, ser excluída a necessidade da justiça.

Assim, os Autores buscam descrever os aspectos que caracterizam os tipos de relacionamentos intersubjetivos ou

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Apresentação 13

humanos na contemporaneidade, relacionando-os com as características da amizade aristotélica. Isso será possível considerando a análise de Lipovetsky, a partir da individualidade do homem narcísico de nossos tempos e do vazio dos valores norteadores da vida humana.

Os Autores também abordam os conceitos de “liquidez” e “descartável”, apresentados por Bauman, a fim de demonstrar a superficialidade com que as pessoas se relacionam no mundo pós-moderno. Assim, buscam propor alguns questionamentos diante desse contraponto conceitual e histórico, principalmente no que concerne a possibilidade de amizade virtuosa em tempos de relacionamentos virtuais e provisórios.

Boa leitura!

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Apresentação 15

PRIMEIRA PARTE:

A FUNDAMENTAÇÃO DO MITO ERÓTICO-SOCRÁTICO EM O BANQUETE DE PLATÃO

Whesley Fagliari dos Santos

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INTRODUÇÃO À PRIMEIRA PARTE

Esta primeira parte deste livro visa a investigação

acerca da forma como Platão permeia a obra O Banquete com mitos e se utiliza desta corrente de pensamento para conduzir uma sucessão de encômios, uns dialéticos outros retóricos, dentro de um movimento de ascese, onde culminará no grande discurso de Sócrates/Diotima1 acerca do ideal erótico, de acordo com o Belo Em Si.

A pesquisa deve procurar esclarecer se, de fato, Platão tentou fazer uma analogia entre Sócrates e Eros. Se ele fez isso, qual era a sua intenção? Platão personificou Eros em Sócrates? Se em Mileto, na Jônia, os naturalistas pré-socráticos inauguraram um novo sistema de pensamento – o que seria chamado mais tarde de Filosofia – sepultando, assim, o pensamento e as teogonias míticas, por que Platão faz uso de mitologia para explicar suas teorias? Qual o propósito de cada mito utilizado por este filósofo em suas obras?

O fato de Platão colocar encômios recheados de mitos para o elogio a Eros – um ser também mitológico – em sua obra O Banquete, não seria nenhum problema se, na época em que o referido filósofo escrevera esta obra, todo o pensamento mitológico não tivesse sido considerado insuficiente na busca pelas fundamentações das explicações almejadas. Platão, considerado o pai do pensamento governado pela razão e um dos pilares de todo o nascimento e elaboração do pensamento filosófico desde a Antiguidade, contribuiu para a pesquisa e reflexão em torno das grandes

1 Diotima de Mantinéia, sacerdotisa que teria visitado Atenas por volta de 440 a.C. Marcou a existência de Sócrates ensinando-lhe “as coisas do amor”. (Cf. BENOIT, Hector. Sócrates, O Nascimento da Razão Negativa. São Paulo: Moderna, 1996)

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questões que sondaram a humanidade. Ao longo de sua história, recorre a mitos para escrever uma das suas mais importantes obras, O Banquete: Este trabalho vem investigar por que Platão teria tomado tal atitude.

Para falar de Mitologia e o seu tão questionado envolvimento com a Filosofia de alguns antigos grandes pensadores da humanidade é de fundamental importância remeter o pensamento para épocas longínquas, onde deuses mitológicos, monstros fabulosos e grandes heróis conviviam com simples mortais. Estamos falando da Grécia Antiga, por volta do século VIII a.C., quando aparecem os primeiros registros, tanto históricos quanto religiosos, da cultura helênica.

O primeiro autor a narrar oficialmente tais mitos foi o poeta Homero, em suas duas principais obras: Ilíada e Odisseia:

Ao mesmo tempo em que refletiram luminosamente a antiguidade mais remota da civilização grega, os poemas homéricos projetaram-na adiante com tamanha originalidade e riqueza que ela se faria presente nas mais diversas manifestações da arte, da literatura e da civilização do Ocidente. Inúmeros poetas partiram de sua influência e inúmeros artistas impregnaram-se de sua fortuna criativa, de seu colorido e de suas situações, se tornaram símbolo e síntese de toda a aventura humana na Terra, a ponto de o nome de um poeta, cuja existência mesma não se pode provar, passar a confundir-se com a própria poesia. (Ilíada, Introdução, 2007, p. 13)

O sistema mitológico de Homero é constituído de

deuses – primários e secundários, semideuses, monstros e heróis fabulosos e apresenta de maneira sistematizada, o que podemos classificar como a religião adotada pelos antigos gregos: o politeísmo antropomórfico. O poli (vários, mais de um)

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Introdução à primeira parte 19

teísmo (do grego théos – deus, divino) antropo (do grego ánthropos – homens, humanos) mórfico (do grego morphé – figura, forma do corpo), foi assim denominado mais tarde com o objetivo de tornar mais bem explicado o processo de mitificação adotado por vários dos autores mais importantes da história, o que queriam dizer e como trariam essas explicações acomodadas em seus textos.

Principalmente para definir as características dos deuses, a forma como agiam e o modo como pensavam. Ainda não havia a noção de um Deus absoluto, onipresente e onipotente como se tem hoje. Mesmo Zeus que era o maior de todos os deuses do Olimpo, era provido de características humanas. Todos os deuses gregos da mitologia sentiam paixões como ciúme, raiva, ira, desejo sexual e outras tantas. Eram seres com limitações2 e com aspectos dos mais diversos. Eles se relacionavam sexualmente com mortais, eram sensíveis e possuíam poderes sobre-humanos. Guerreavam entre si, traiam-se, enganavam-se, tomavam partido entre preferências, cada qual com seus protegidos e eram tão humanizados com os seus sentimentos quanto os próprios humanos:

Os deuses, assim como os humanos, têm qualidades e defeitos. São apaixonados, amorosos, caprichosos, astuciosos, invejosos, ciumentos. Zeus, o deus dos deuses, é bastante conhecido por não resistir ao encanto das mulheres. (NOIVILLE, 2005, p. 154)

Todo o sistema mitológico dos gregos antigos era

divulgado principalmente por seus poetas, como o já citado Homero e assim como Hesíodo, por exemplo. Ao veículo de transmissão mais importante da época e a forma como este

2 Os deuses mitológicos apresentam as mesmas características dos seres humanos. A maior e principal diferença é a imortalidade. Os deuses são imortais, os homens perecíveis e efêmeros.

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sistema de mitos e lendas foram contados, deu-se o nome de Epopeia – tal termo designa os poemas épicos através dos quais eram narrados os fatos místicos, históricos e religiosos:

A epopéia em geral celebra os feitos mais representativos de um povo ou de uma nação e, por isso, manifesta um profundo espírito de exaltação nacional. Na conceituação clássica, a epopéia constitui um dos três grandes gêneros em que se divide teoricamente a poesia: o épico, em que predomina a objetividade; o lírico, no qual prevalecem os acentos subjetivos; e o dramático, que os entrelaça. (ILÍADA, 2007, p. 15)

Posteriormente, por volta do século V a.C., outros

nomes emprestaram sua importância para os registros e divulgação das peripécias e acontecimentos míticos fabulosamente arquitetados. Neste período, são as Tragédias que narram e disseminam o mito:

A matéria-prima da tragédia, como já se disse, é a mitologia. Todos os mitos são, em sua forma bruta, horríveis e, por isso mesmo, trágicos. O poeta terá, pois, de introduzir, de aliviar esta matéria bruta com o terror e a piedade, para torná-los esteticamente operantes. (JUNITO, 2001, p. 13)

Destacam-se entre os tragediógrafos3 especialmente

três nomes que tiveram grande importância para a história e filosofia universal: Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Cada um deles trouxe grande contribuição para a forma de contar histórias e representá-las, tendo, assim, sua influência no teatro mundial perdurado até os dias atuais.

3 Tragediógrafo era aquele poeta que escrevia suas tragédias teatrais e apresentava-as nos concursos gregos da Antiguidade.

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Ésquilo4 escreveu inúmeras histórias para o teatro

grego – por volta de noventa – que se perderam no decorrer do tempo. O que nos resta, hoje, deste autor são apenas sete obras, cuja mais importante é Prometeu Acorrentado. Neste livro, o poeta trágico conta a saga do titã Prometeu que, compadecido dos homens, fracos mortais, furta uma fagulha encantada de Héfeso, deus responsável por zelar pelo fogo divino, e o dá à Humanidade. Não teria nada de mais neste ato se tal fogo não fosse privilégio único e exclusivo dos deuses olímpicos. É o próprio Prometeu quem explica:

A sorte que me coube em partilha, é preciso que eu a suporte com resignação. Não sei eu, por acaso, que é inútil lutar contra a força da fatalidade? Não me posso calar, nem protestar contra sorte que me esmaga! Ai de mim! Os benefícios que fiz aos mortais atraíram-me este rigor. Apoderei-me do fogo, em sua fonte primitiva; ocultei-o no cabo de uma férula, e ele tornou-se para os homens a fonte de todas as artes e um recurso fecundo [...]. Eis o crime para cuja expiação fui acorrentado a este penedo, onde estou exposto a todas as injurias! (ÉSQUILO, 2007, p. 29)

Ao saber desta atitude de Prometeu, Zeus, o deus-

chefe do Olimpo, se enfurece com o titã e o condena a ficar aprisionado no alto de uma montanha por ferrolhos fincados na rocha. A pena maior, porém, ainda é mais dura. Prometeu tem o seu fígado devorado por uma águia todas as manhãs e

4 A utilização do coro como instrumento de seu lirismo e a ação teatral expressa pelo diálogo, que foi o primeiro a empregar, atestam a criatividade e a força dramática da obra de Ésquilo, tido por Aristóteles como fundador da tragédia grega. Ésquilo nasceu nas proximidades de Atenas, provavelmente em Elêusis, por volta de 525 a.C. De família rica, cresceu em ambiente de instabilidade política e acredita-se que lutou contra os persas nas batalhas de Maratona e Salamina. Muito cedo manifestou o seu talento literário (ÉSQUILO, Perfil Biográfico, 2007, 57).

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regenerado à noite para ser devorado novamente no dia seguinte. Zeus, ainda não satisfeito, envia aos homens a mais linda de todas as mulheres, Pandora5. Ela seduz a todos os mortais com sua divina beleza e acaba por encantar também a Epitemeu, irmão de Prometeu. Ela pede a Epitemeu, contudo, que jamais abra a caixa que trouxera consigo. Em um momento de descuido dela e extrema curiosidade dele, a caixa é aberta e, neste momento, todas as maiores desgraças da humanidade são libertadas. Epitemeu só conseguiu fechar a caixa a tempo de deixar presa uma única criatura – a Esperança.

Sófocles6, por sua vez, é o autor de duas das mais célebres tragédias da história: Édipo Rei e Antígona. Das mais de cento e vinte peças escritas por este dramaturgo, apenas sete chegaram até nossos dias. Em Édipo Rei a história começa com o rei de Tebas, Laio, depois de casar com a princesa Jocasta, consultando o Oráculo de Delfos para saber se a maldição que fora rogada sobre ele e seus descendentes seria levada a cabo. Laio fica horrorizado ao ser avisado pelo oráculo de que seu primogênito o mataria e desposaria a própria mãe:

Édipo é a grande vítima de uma maldição familiar. Seu pai, Laio, abandonara Tebas e refugiara-se na Élida, junto ao rei Pélope. O filho deste, Crisipo, apaixona-se pelo hóspede, sendo inteiramente correspondido. O idílio, porém, é

5 ... uma mulher sublime, irresistível. Ela se chama Pandora, ou seja, “dotada de todos os dons”. Pandora possui graça, encanto, astúcia, força, pois recebeu de cada um dos deuses uma qualidade de presente. O presente de Zeus é algo inesperado e maldoso: uma caixa bem fechada (NOIVILLE, 2005, 152). 6 Nascido por volta de 496 a.C., na cidade de Colona, província de Ática, Sófocles era filho de um rico comerciante de espadas. Desde cedo participou da vida teatral, interpretando vários papéis femininos (a mulher não tinha acesso ao palco) nos festivais dramáticos (SÓFOCLES, Perfil Biográfico, 2007: 16).

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proibido. Num ato de desespero, Laio rapta o amado. Mas Crisipo, temeroso da reação paterna, suicida-se. Ao tomar conhecimento da notícia, Pélope amaldiçoa Laio e todos os seus descendentes. Laio retorna a Tebas e tenta esquecer a infeliz aventura, unindo-se em matrimônio à bela Jocasta. A felicidade que se segue parece contradizer a maldição de Pélope – contudo, ela ainda ecoa nos ouvidos de Laio. (SÓFOCLES, 2007, p. 18)

Ao nascer o primeiro filho, a agora rainha Jocasta

ordena que um servo do palácio leve o bebê para bem longe e dê fim à vida dele, acreditando, com isso, estar protegendo sua casa. O empregado, contudo, compadece-se do destino do filho da rainha e o deixa vivo, abandonado em uma floresta bem distante de Tebas, com os tornozelos perfurados por um prego. Daí o nome Édipo, que significa pés inchados. A criança é encontrada e levada ao rei de Corinto, Políbio, que o cria como seu filho. Quando adulto, a verdade vem à tona e Édipo foge para não matar Políbio, acreditando que a profecia se referia ao rei que o criara e não ao pai biológico:

Um homem, durante um banquete, embriagado, insultou-me dizendo que eu não era filho de meus pais. Naquele dia, contive a custo a minha indignação, mas no dia seguinte procurei meus pais e interpelei-os sobre o assunto. Eles se irritaram contra o autor da ofensa, e sua reação muito me aliviou, pois o fato me havia aborrecido bastante. (SÓFOCLES, 2007, p. 54)

No meio de sua viagem, porém, Édipo se depara com

Laio sem saber que se trata do verdadeiro pai. Os dois se desentendem e Édipo acaba assassinando o rei de Tebas na estrada. Logo a diante, o jovem se depara com a Esfinge7 –

7 “A Esfinge” (o nome é feminino em grego) tem rosto e busto de mulher e um corpo de leão dotado de asas de águia. Foi enviado por Hera, deusa do casamento, para punir Laio, rei de Tebas, que violentara o jovem

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um monstro mitológico que está no meio do caminho e propõe a todos os passantes um enigma. Quem não consegue decifrá-lo é devorado. O enigma proposto a Édipo é o seguinte: qual criatura anda com quatro patas pela manhã, com duas pela tarde e com três ao anoitecer?

Édipo responde corretamente: “o homem” que anda quando criança sobre os quatro membros, engatinhando; quando adulto sobre as duas pernas e, ao envelhecer, com o apoio de uma bengala. A Esfinge, furiosa, precipita-se em um abismo, morrendo sobre as rochas. Tendo vencido o monstro, Tebas declara Édipo rei, dando-lhe como prêmio, a mão da rainha viúva, Jocasta. Os dois se casam sem saberem que são mãe e filho. Jocasta dá à luz a quatro crianças – uma delas é Antígona8. Devido a uma perigosa peste que assola seu reino, Édipo investiga a causa de toda a desgraça e, com isso, vem à tona o seu passado, a morte de seu pai, o desposo de sua própria mãe e toda a profecia do oráculo se concretiza. Jocasta dá fim à própria vida e Édipo é banido de sua terra, depois de furar os próprios olhos, acabando por morrer como um andante:

Aparentemente, o destino de Édipo atingiu o apogeu para, depois, cair numa linha vertical. [...] O final dessa vida criminosa sugere que, no pensamento de Sófocles, a responsabilidade não se prende ao ato realizado, mas, à atitude moral de quem o realiza. Édipo não queria cometer seus crimes, porém, tendo-os cometido, assumiu sua culpa e se puniu. De certa forma, isso o inocenta, e o faz merecer

Crisipo e se recusava a dar um filho à sua esposa legítima. (SÓFOCLES, Apêndice, 2007: 133). 8 Filha de Édipo e Jocasta, irmã de Ismênia, de Etéocles e Polinice. Acompanhou seu pai quando o infeliz, depois de se aperceber do crime e do incesto que tinha cometido sem saber, se exilou após ter vazado os próprios olhos. Refugiaram-se em Colona, cidade da Ática, onde Édipo morreu, enfim, em paz. (SÓFOCLES, Apêndice, 2007: 126).

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dos deuses a glória de ser o protetor eterno de Atenas [...]. (SÓFOCLES, 2007, p. 21)

De Eurípides9 são noventa e duas peças escritas, das

quais apenas dezenove perduraram. Sua obra de maior importância foi Medéia. Medéia foi uma mulher apaixonada que, ao ser abandonada e trocada por seu amado marido Jasão se vê mergulhada no ódio e no desejo de vingança. Jasão a deixa para desposar a filha do rei Creonte em busca de posição social e estabilidade financeira. Medéia confessa ao coro da peça:

Quanto a mim, o golpe inesperado que recebo despedaçou a minha alma. Acabou-se! Já não tem para mim encantos a vida; quero morrer, minhas amigas. Aquele que era tudo para mim, estou farta de sabê-lo, meu esposo, se tornou o mais pérfido dos homens. De todos os seres que respiram e que pensam, nós outras, as mulheres, somos as mais miseráveis. (EURÍPIDES, 2007, p. 25)

O rei bane Medéia, pois conhece sua fama de vingativa

e feiticeira, teme pela integridade tanto de sua filha quanto de seu novo genro. Medéia, para atingir a todos os que a feriram, planeja sua vingança: envia ao castelo, fingindo-se de conformada e entregue aos fatos, dois presentes para a princesa: um lindo vestido de festa e uma coroa. Os presentes estão envenenados e roubam a vida da princesa e de seu pai, o rei Creonte. Para atingir mortalmente Jasão, Medéia assassina seus dois filhos. Ela foge para o novo reino que lhe

9 Apaixonadamente interessado por novas idéias e arredio ao convívio social, o último dos três grandes dramaturgos da Grécia antiga imprimiu ao personagem teatral maior profundidade psicológica e à tragédia uma dimensão crítica em relação às tradições gregas. [...] Tido como excêntrico por seus contemporâneos, cultivou o hábito de meditar em completo isolamento, em uma gruta em frente ao mar. (EURÍPEDES, Perfil Biográfico, 2007: 63).

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oferecera exílio, deixando um rastro de desgraça atrás de si. Medéia, ainda conversando com o coro, explica suas intenções:

Amigas, minha decisão está tomada: quero, sem tardar, matar eu mesma meus filhos e fugir desta terra, em vez de expô-los, por minhas lentidões, a perecer sob os golpes de mão inimiga. É absolutamente necessário que morram e, pois, que é preciso, sou eu que lhes darei a morte, como fui eu que lhes dei a vida. Vamos, arma-te, meu coração! Que esperas? Recuar diante de mais um ato terrível, mas necessário, é uma covardia. (EURÍPEDES, 2007, p. 54)

Uma das grandes características das Tragédias Gregas

é, visivelmente, a fatalidade. Não há, nestas obras, como fugir do destino, pois este é governado pelos deuses. Não é possível enganar a ordem de acontecimentos pré-estabelecidos para cada um dos frágeis mortais ou até mesmo o que fosse determinado para os próprios deuses, pelos próprios deuses, dentro de uma espécie de hierarquia divina. Inegavelmente esta forma mítica de explicar a natureza e as interrelações humanas é enriquecida pelo fato de haver sempre uma moralidade conformista ou espécie de lição, tanto nos julgamentos feitos pelos deuses, quanto na recorrência dos homens à superioridade divina para nortear suas vidas. Esse determinismo, entretanto, parece já provocar certa inquietação nos poetas da época:

Assim estava consolidada a essência da tragédia: o destino inexorável determinaria as ações do herói que poderia lutar contra ele sem, entretanto, obter a vitória. Além disso, a maldição e a conseqüente destruição do herói implicariam também a destruição de tudo o que se relacionasse com ele. (EURÍPEDES, 2007, p. 103)

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Introdução à primeira parte 27

Na obra Édipo Rei, surge a dúvida acerca da validade e

da veracidade das profecias enviadas pelos deuses, na ocasião do diálogo entre Édipo e sua esposa Jocasta, quando questionam o Oráculo de Delfos que, décadas antes, previra toda a saga das gerações vindouras do rei Laio, pai de Édipo. Jocasta aconselha ao marido, ao vê-lo consumido por aflições condizentes ao destino, a deixar sua sorte nas mãos do destino:

Porque se afligir em tantos temores, se o homem nada sabe do futuro? O melhor é entregar-se ao destino. [...] Bem mais fácil e tranqüilo é o viver daquele que não dá importância a tais coisas. (SÓFOCLES, 2007, 59)

Notadamente, é demasiado confortável deixar que o

destino tome as rédeas dos acontecimentos e organize a vida de cada um conforme a vontade e os caprichos dos deuses influenciadores na vida dos mortais. Pobres homens que nada podem fazer, conforme o fatalismo estabelecido, para modificarem o curso de suas próprias vidas. Não há saída. E isso aparece explicitamente confirmado na obra sofocliana Antígona. Ela reclama seu infortúnio:

E eis que me levam para morrer, sem que houvesse provado os prazeres do amor e os da maternidade. Abandonada pelos amigos, caminho, viva ainda, para o reino das sombras. Deuses imortais, qual de vossas leis infringi? Mas... Poderá me valer implorar aos deuses? Que auxílio posso deles esperar, se foi um ato de piedade que atraiu sobre mim o castigo reservado aos ímpios? Se tais coisas recebem a aprovação dos deuses, reconheço que sofro por minha culpa... (SÓFOCLES, 2007, p. 111)

A personagem principal que recebe o mesmo nome

da peça é filha-irmã do rei Édipo com sua própria mãe-esposa, Jocasta. Neste texto, que é uma continuação da tragédia que

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narra a saga do infortunado rei Édipo, a protagonista é uma jovem de personalidade forte, que não hesita em contrariar o novo rei tebano, seu próprio tio Creonte, irmão de Jocasta.

Creonte ordena que o corpo do irmão de Antígona, morto em batalha contra sua terra natal, seja abandonado sem as devidas cerimônias fúnebres habituais. O rei determina que o cadáver seja exposto às intempéries e fique lá, sem receber sequer um sepultamento digno. Antígona, por amor ao irmão morto, desobedece ao rei e enterra o corpo de seu irmão. Por isso, é condenada à morte, confirmando, desta forma, a veracidade da profecia revelada pelo Oráculo de Delfos que predisse a desgraça de toda a geração de Laio e seus predecessores. O coro explica: “[...] Mas o destino é inexorável: nem a procela, nem a guerra, nem as sólidas muralhas, nem os navios abalados pelas ondas dele se subtraem” (SÓFOCLES, 2007, p. 109).

Quando adorados adequadamente, os deuses concediam a graça ou favor esperado pelos humanos – que só podiam agir de uma maneira: esperar a determinação divina e o transcorrer dos acontecimentos:

Os deuses gregos são onipresentes. É impossível escapar deles quando se é mortal, herói ou até mesmo um semideus. É possível parecer com eles ou até enganá-los, porém, na maioria das vezes, a vontade dos deuses, ou seja, do destino, termina por atingir os que se arriscam. (NOIVILLE, 2005, p. 156)

A história registra um período onde os mitos eram a

principal forma dos gregos pensarem e conduzirem suas vidas, suas cidades, seus negócios, suas casas, suas famílias e, sobretudo, seus destinos. Este momento da humanidade compreende um período muito valioso para o resultado das buscas por teorias que melhor explicassem as diversas inquietações humanas. Explicações que, cada vez mais,

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Introdução à primeira parte 29

deveriam se aproximar da verdade, até surgirem novas dúvidas, inquietações, buscas por conhecimentos mais apurados e explicações embrenhadas na verdade universal destituída de misticismo, opiniões ou teorias que não conseguiam sanar investigações filosóficas. Começava, a partir daí os passos em direção dos primeiros pensamentos filosóficos. Uma forma nova de pensamento estava preste a despontar nos horizontes da racionalidade: a Filosofia:

Era inevitável que, depois de os deuses terem se transformado completamente em pessoas humanas, as mentes céticas se recusassem a acreditar que uma tempestade na Ásia Menor fosse realmente devida à cólera de uma divindade sentada no cume do Olimpo. (CORNFORD, 2001, p. 16)

A partir de Tales de Mileto, Anaximandro e

Anaxímenes, filósofos chamados de pré-socráticos, a maneira de pensar o mundo, o comportamento e a razão humana, a postura do homem perante si mesmo mudou demasiadamente. Surgiram outras teorias acerca do conhecimento humano e com elas as discussões tornaram-se imprescindíveis. Até surgirem os primeiros pensadores, questionar não era preciso, pois os deuses, anteriormente, conseguiam prover todos os elementos de compreensão que os humanos precisavam:

À medida que acompanhamos a história, vamos gradativamente mergulhando em um mundo que conhecemos, e as figuras sobre-humanas reduzem-se a proporções humanas. (CORNFORD, 2001, p. 19)

Quando é dito que ocorreram incessantes buscas pelo

conhecimento considerado verdadeiro e sua origem, inúmeras teorias começam a perfilar-se. A mitologia não está embasada somente na explicação mística como crença, mas também

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como instrumento explicador das grandes questões humanas. Hesíodo escrevera uma obra onde se preocupou em explicar como foi que os deuses surgiram e quais as relações estabelecidas entre tais deuses e o conhecimento por eles doado aos homens.

Para Hesíodo, em sua Teogonia, a verdade de tudo era pertencente aos seres divinos e só era permitido aos homens conhecer a verdade quando os deuses queriam. Estes conhecimentos, estas verdades retidas pelos deuses eram transmitidas através das musas nos oráculos. Mas não era tão fácil nem tampouco simples, pois tais verdades nunca chegavam claramente explicadas, tornando-se verdadeiros enigmas para quem as recebia:

Mentes não menos argutas e possivelmente mais profundas achavam que o mito não era uma fantasia sem fundamento da superstição, mas podia ser como as Musas de Hesíodo, que sabiam não apenas dizer mentiras sob a forma de verdades, mas também, quando queriam, dizer a própria verdade. (CORNFORD, 2001, p. 17)

De acordo com Hesíodo e sua teoria acerca da origem

dos deuses, tudo começou com Caos e sua desordem. Quando Gaia, a deusa Terra, a mais antiga dentre as deusas, afastou-se de todos os elementos que, até então, estavam misturados no Caos, tudo começou a ser definido e criado. Junto com o deus Céu – assim chamado por Hesíodo, mas, correspondente ao deus Urano –, a mãe Terra Gaia gerou todos os principais deuses olímpicos e muitos outros seres.

O Céu não gostava, porém, de nenhum de seus filhos e os perseguia incansavelmente porque acreditava que algum deles poderia lhe tomar o poder. Gaia, como uma mãe zelosa e amorosa, não aprovava essa atitude contra os próprios filhos e, portanto, tramou com Cronos, o seu filho mais destemido, um plano para deter o tirano Céu:

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Introdução à primeira parte 31

Disse com ousadia, ofendida no coração: “Filhos meus e do pai estólido, se quiserdes ter-me fé, puniremos o maligno ultraje do vosso pai, pois ele tramou antes obras indignas”. Assim falou e a todos reteve o terror, ninguém vozeou. Ousado e grande Crono de curvo pensar devolveu logo as palavras à mãe cuidadosa: “Mãe, isto eu prometo e cumprirei a obra, porque nefanto não me importa o nosso pai, pois ele tramou antes obras indignas”. (HESÍODO, 2001, p. 115)

Em uma armadilha minuciosamente arquitetada por

Gaia e Cronos aconteceu a derrocada de Céu. O filho, armado e escondido, arrancou com um golpe certeiro o pênis do próprio pai quando este estava pronto para se enlaçar com a esposa. Das gotas de sangue que respingaram na terra, nasceram inúmeros gigantes. Cronos jogou o membro decepado no mar. Deste membro na água formou-se uma densa espuma, de onde nasceram várias criaturas. Afrodite foi uma dessas criaturas que surgiram dessa espuma10.

Havia, portanto, um número de coisas sendo ditas, através da mitologia, muito maior do que os percebidos à primeira vista. Os mitos eram, aparentemente, veículos transmissores de uma religião que se propagava. Com um olhar mais cuidadoso, entretanto, é visível a maneira como se dominava a população com a narrativa mítica; mostrando o que cada um dos deuses era capaz:

A imaginação grega era, talvez, única em sua claridade visual, superando em muito a romana neste sentido. Os poderes sobrenaturais haviam assumido formas humanas tão concretas e bem definidas que um grego conseguia reconhecer qualquer deus ao avistá-lo. (CORNFORD, 2001, p. 16)

10 O nome desta deusa origina-se da palavra aphros, que em grego significa espuma.

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Com o surgimento dos primeiros filósofos e da

ciência jônica11 consolidou-se, então, a Filosofia. O pensamento racional foi diferenciado do pensamento mítico, pois, procurava investigar questões acerca da natureza e das relações entre homens e entre homens e o mundo que os circundavam.

Historicamente, por volta do século VIII a.C., a Grécia passou por diversas modificações provenientes de acontecimentos políticos, tais como, por exemplo, o desaparecimento da realeza e o surgimento de um poder aristocrático. A invenção da moeda cunhada também teve relevância fundamental na modificação da Grécia, pois, fortaleceu as relações comerciais.

Existe, todavia, uma grande divergência de opiniões quando o assunto é a seguinte questão: o mito foi superado pela razão, ou seja, a Mitologia foi suplantada pela Filosofia?

Em Atenas, no ano (aproximado) de 428 a.C., nasceu aquele que, mais tarde seria considerado um dos pilares de todo o pensamento ocidental: Platão. Dentre inúmeras obras escritas por Platão encontra-se uma das mais poéticas e belas, O Banquete.

Estão reunidos, alguns amigos, em casa do poeta Agatão que ganhara, na noite anterior, um concurso de tragédias. O motivo da festa, um banquete, é a comemoração desta vitória. Neste diálogo platônico é possível acompanhar um concurso improvisado de elogios ao deus do amor, Eros. São cinco os discursos que antecederam a fala de Sócrates, o mestre de Platão. Sócrates era considerado pelo discípulo o modelo de filósofo. Percebe-se, contudo, a presença de vários mitos no decorrer de O Banquete, utilizados estrategicamente por Platão.

11 Esta ciência é chamada “jônica” porque teve início com Tales e seus sucessores em Mileto, uma das colônias jônicas da Ásia Menor. Tales viveu no começo do século VI. (CORNFORD, 2001: 6s).

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Introdução à primeira parte 33

O que investigamos são os motivos pelos quais um

filósofo como Platão teria se valido de mitologia para corroborar suas teorias. Quando se tem em mente o questionamento apresentado, acima, acerca da superação sofrida pela Mitologia surge o impasse. Por que Platão teria recorrido a mitos, já que os mesmos estavam definitivamente suplantados, com a ascensão da ciência dos primeiros filósofos, em Mileto, será perscrutado no caminhar desta pesquisa.

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= I =

A MITOLOGIA GREGA UTILIZADA COMO ELEMENTO ESTÉTICO

Neste capítulo, pretende-se demonstrar que a

Mitologia Grega, através das tragédias, epopeias e teatro antigo, era difundida e propagada com todo seu arcabouço de imagens e linguagens fabulosas para, esteticamente, comover o homem, com a figura do personagem-herói e fazer com que este espectador se transporte para a história que está sendo contada, reconhecendo no personagem-herói as qualidades e características que deveriam ser seguidas:

Além disso, é preciso fazer com que o espectador sinta terror com a catástrofe que vai acontecer, compaixão pelo que aconteceu, sem que haja no “caráter” nada de baixo, de vil, de nojento. Se o herói trágico fosse um salafrário, não haveria efeito trágico. Ele comete simplesmente erros, não faltas morais, mas erros que traduzem o fato de que o homem se encontra, durante toda a sua vida, confrontado com situações e forças que não controla e que está forçosamente sujeito ao erro. (VERNANT, 2001, p. 349)

O elemento estético para orientar, servir de modelo,

paradigma para toda a civilização que necessitava de heróis e seres maiores, fenomenais e superpoderosos para se viver harmonicamente é o que será explicado.

A tragédia grega, ao contrário do que muitos acreditam, não é meramente um estilo de teatro ou gênero de expressão artística. Nunca foi somente isso. Sempre houve uma linguagem bastante pertinente, porém, só perceptível aos olhares mais cuidadosos:

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A tragédia usa histórias e personagens que todos conhecem e as organiza em cena de forma a operar uma verdadeira experimentação, eu diria até uma simulação, como em física ou em química. Esta experiência simuladora é o que chamamos de mímesis. O objetivo é mostrar como é necessário ou extremamente verossímil que aconteça o que aconteceu a um determinado indivíduo socialmente definido, herói, rei etc. (VERNANT, 2001, p. 349)

O mito sempre foi componente primordial nas

grandes tragédias encenadas ao longo da história da Humanidade e na forma como se deu o seu pensamento herdado dos antigos gregos e nas aventuras fabulosas narradas – as epopeias12 – por que passavam os mais destemidos heróis. E é justamente um mito que conta a versão mais aceita do surgimento das tragédias e comédias na Grécia Antiga quando da ocasião do nascimento do deus Dioniso (Baco para os romanos). Conheçamos a lenda.

Uma princesa de Tebas, Sêmele, foi seduzida por Zeus, o deus dos deuses e dos homens, que se encantou por ela. Sêmele foi mãe do segundo Dioniso, de acordo com o que dita a lenda. Isso ocorrera da seguinte forma: Zeus era casado com a deusa e sua irmã Hera, conhecida, entre outros atributos, por proteger o matrimônio. Hera sempre fora muito ciumenta em decorrência da constante e inveterada infidelidade do marido-irmão. Quando, fruto de uma

12 As epopeias são um conjunto de fatos e acontecimentos narrados através de versos e poesia onde é, geralmente, situada uma época, um povo, uma cultura e uma forma de pensamento específica. A mitologia é também na epopéia a grande “massa bruta” onde será modelada a narração e traçada a trajetória do herói que não escapa das garras do destino nem muito menos da fúria ou das graças dos deuses quando despertadas. A diferença principal entre epopéia e tragédia é a seguinte: a primeira é somente narrada passando de geração em geração apenas sendo contada. Já a segunda é encenada, ou seja, apresentada em espetáculo teatral. Exemplos de epopéias, certamente, as mais conhecidas: Ilíada e Odisséia, do poeta grego Homero.

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experiência extraconjugal, nasceu o primeiro Dioniso, Zeus, temendo o ciúme de sua esposa, confia ao deus Apolo a missão de esconder o seu filho – que era o preferido e quem herdaria o trono de seu pai.

Apolo vai até o monte Parnaso e esconde a criança por lá. Hera, porém, ferida por seus sentimentos traídos, descobre onde está o rebento e ordena aos Titãs que o arrebate. Dioniso tenta se proteger através de diversos disfarces, mas os destemidos Titãs o descobrem e devoram-no. O coração do jovem deus, contudo, é salvo e, ainda pulsante, é engolido pela princesa tebana Sêmele que fica grávida esperando o segundo Dioniso.

Hera, contudo, ao descobrir que Zeus está enamorado por Sêmele decide que é necessário exterminar a rival. Forja-se, desta vez, de uma serviçal de confiança da princesa e vai falar-lhe. Aconselha à jovem Sêmele que peça a Zeus que se mostre a ela em toda a sua plenitude provando o seu amor. A princesa, então, vai até o deus dos deuses e dos homens e faz o que Hera disfarçada aconselhara. Zeus adverte a amada que se assim agir ela, que é mortal, ou seja, perecível, sofrerá consequências fatais. Mesmo assim a moça insiste.

Zeus, que jurara que faria todas as suas vontades, atende ao pedido da amada. Neste momento, ao mostrar-se em toda sua força, Zeus vê sua doce amada ser incendiada e morrer. “Sêmele se esqueceu de que um mortal somente pode contemplar um deus com forma hierofânica e não epifânica” (BRANDÃO, 1985, p. 10).

Zeus recolhe Dioniso, que não se queimara, e coloca-o em sua coxa até o momento de nascer. Depois disso Zeus leva seu filho, gerado ora no ventre da mãe ora na coxa do pai, até o monte Nisa e determina que os Sátiros e as Ninfas de lá cuidem de Dioniso. E assim eles o fazem dentro de uma gruta ladeada por densa mata. Com o passar dos anos o jovem Dioniso percebe em meio a tanta e variada vegetação os cachos de uva.

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Certo dia ele espreme essas frutas e bebe o resultado

em taças douradas juntamente com todos da turma. Pronto! Fez-se conhecido um novo néctar – o vinho. Beberam sucessivas vezes dançando e festejando ao som dos címbalos até desfalecerem embriagados pelo efeito perturbador da nova bebida. Surgiam, assim, os festejos báquicos, as bacanais:

Ora, ao que parece, esses adeptos do deus do vinho disfarçavam-se em sátiros, que eram concebidos pela imaginação popular como “homens-bodes”. Teria nascido assim o vocábulo tragédia [...] “tragoidía” = [...] “trágos”, bode + [...] “oidé”, canto + [...] “ia”, donde o latim tragoedia e o nosso tragédia. (BRANDÃO, 1985, p. 10)

O deus Dioniso, com todas as sensações provocadas

por sua dança, era quem tornava viável a efetivação da tragédia. Com isso, os homens eram superados por si próprios, pois aproximavam-se do deus provocador do êxtase e do entusiasmo, Dioniso.

A tragédia, a partir daí, passa a ser o terreno onde o anér, ou seja, o ator-herói convive com seus conflitos e, principalmente, encontra a oportunidade de ultrapassar o seu metrón, a sua justa-medida, para aproximar-se da divinização, da imortalidade divina e estar mais próximo do deus Dioniso. A vertiginosa dança dionisíaca era o caminho por onde o ánthropos, o homem, o destemido e disposto herói, rumava em direção ao que era divino e antes intocável, pois já não estava mais consciente:

Neste estado acreditavam sair de si pelo processo do [...] ‘ékstasís’, êxtase. Este sair de si, numa superação da condição humana, implicava num mergulho em Dioniso e este em seu adorador pelo processo do [...] ‘enthusiasmós’, entusiasmo. O homem, simples mortal, [...] ‘ánthropos’, em êxtase e entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se [...] ‘anér’, isto é, um herói, um varão que

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ultrapassou o [...] metrón, a medida de cada um. Tendo ultrapassado o metrón, o anér é, ipso facto, um [...] ‘hipocrités’, quer dizer, aquele que responde em êxtase e entusiasmo, isto é, o ATOR, um outro. (BRANDÃO, 1985, p. 11) O efeito colateral desta desmesura causada por

Dioniso em seus seguidores, porém, foi com toda a certeza o alvo do descontentamento da cúpula da religião oficial e aristocrática helênica que apresentava seus deuses olímpicos vigilantes e dispostos sempre a aniquilar todo e qualquer mortal que almejasse o que era apenas e exclusivamente deles: a imortalidade.

O homem, que por meio do êxtase e do entusiasmo concernentes a Dioniso, liberta-se de certos ditames nos mais diversos campos da vida – moral, político-social, religioso, por exemplo – acaba por incomodar e até preocupar a cúpula dos deuses olímpicos justamente por, neste momento, estar mais próximo a feitos heroicos e livres. Mesmo buscando, de determinada maneira, o mesmo objetivo, as diversas vertentes místicas e religiosas acabaram sendo enfrentadas em algum ponto de discordância:

Na Grécia, todas as correntes religiosas confluem para uma bacia comum: sede do conhecimento contemplativo (gnôsis), purificação da vontade para receber o divino (kátharsis) e libertação desta vida “geradora”, que se estiola em nascimentos e mortes, para uma vida de imortalidade (athanasía). (BRANDÃO, 1985, p. 11)

Na busca dionisíaca por superação de sua própria

medida o homem, que de agora em diante trataremos somente por herói, acaba por violar o cuidado de si mesmo. E esse

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descuidado, essa desmesura, “[...] ‘hybris’13, isto é, uma violência feita a si próprio e aos deuses imortais, o que provoca [...] o ciúme divino...” (BRANDÃO, 1985, p. 11) é o que causará a sua derrocada.

Uma vez feridos por seus ciúmes, desejos e desígnios, os deuses tornam-se implacáveis. Toda e qualquer ação feita pelo herói será voltada contra ele mesmo. A punição é severa e certeira. Daí, então, está justificada a tragédia e sua formação. Sempre lembrando que o mito é de extrema importância e necessidade para a história que será encenada, pois é através dos mitos que tudo começa a fazer sentido. É daí que virá a má-sorte, o destino certeiro e pontiagudo do herói, do ator e seu personagem – a vontade dos deuses.

Precisamos, contudo, ater-nos à questão estética da Mitologia Grega, veiculada através das tragédias, a fim de explicarmos pormenorizadamente como se dava o processo do belo nas encenações teatrais antigas e, com isso, tornar claro seu valor e importância para a elucidação das questões, acima, levantadas:

A espetacular representação dos deuses olímpicos não se propunha a orientar a crença na salvação do espírito nem ser regra de conduta moral que levasse à salvação do espírito num plano extrafísico. Às divindades gregas, a elas cabia serem vistas a partir de uma perspectiva estética e não moral e salvífica. (BELLEI, 2007, p. 146)

13 Essa palavra designa desmedida, ultrapassagem de medida, desmesura. Isso implica em dizer que é descuidado, excesso, insolência e tudo o mais que provocar um impacto violento sobre si mesmo e sobre o outro. Em muitas traduções e comentários de obras filosóficas esta palavra aparecerá representando o conceito de natureza, ou natural. Não é somente isso. O conceito de ‘hybris’ exprime o contraposto à virtude contemplativa que aproxima o homem de sua essência, a sophrosine. Quanto mais perto de uma mais distante da outra. Enquanto uma equilibra a outra desgoverna.

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Esteticamente o espectador de uma tragédia, um

mortal, entra em contato com o absurdo quando assiste a algum desses espetáculos. O absurdo, o rubor de um processo sobrenatural é familiar aos deuses, ou seja, são as imortais criaturas divinas que habitam as vias do absurdo. E o homem, isto é, o efêmero mortal não está convidado nem nunca é bem-vindo neste cenário por estar aquém, devido a sua mortalidade. O belo, entretanto, tratado esteticamente como via de acesso entre um homem, um mortal, um ser humano e sua auto compreensão, destranca os portais que outrora estiveram cerrados para ele: “Não obstante, dada a experiência metafísica do artista, pode-se em termos teóricos, afirmar que a atividade metafísica do homem é a própria arte” (BELLEI, 2007, p. 150).

Assistindo a uma encenação trágica ou cômica o homem estabelece contato com o belo e sua expressão estética provocará um processo de purificação, posteriormente denominado de catarse (kátharsis). Esta purificação, que é o “conhecimento” de si mesmo, do que é ser homem – ser humano – e reconhecer os próprios aspectos críticos debilitados e até os ridículos, acontece porque há a identificação do espectador com o herói que está em cena:

E o que os espectadores vêem são contudo sempre personagens e acontecimentos que sabem pertencer a um passado revoluto, se é que alguma vez existiram de fato. Assim, trata-se de personagens cuja presença não tem outro objetivo além de revelar a ausência real. Ou seja, ficções. O teatro é o universo do fictício. Não é mais, como na poesia, um fictício evocado por meio de uma narrativa indireta, é um fictício diretamente encenado. (VERNANT, 2001, p. 352)

Há uma sequência lógica no decorrer dos fatos da

tragédia, do que acontece com o referido herói. Tais fatos são semelhantes aos vividos pelo homem, pelo espectador. Neste

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ponto, quando ocorre a identidade entre personagem, herói e ser humano, o belo, a manifestação estética da tragédia acontece e desencadeia no mortal espectador uma espécie de revigoração, a catarse. Daí a utilidade estética na tragédia grega da mitologia e a expressão, a manifestação do belo através do teatro:

O teatro é, no mundo grego, uma forma de tornar outro. Aliás, não é só o teatro, [...] o banquete, a alegria do festim, a embriaguez, o travestimento, tudo o que faz com que os machos da cidade grega, sem se bestializar completamente, sem deixarem de ser totalmente eles mesmos, podem experimentar algo que difere do cotidiano, das normas. Quando vestem a fantasia – vestido de mulher, de bárbaro ou de Dioniso –, as fronteiras que pareciam tao firmemente estabelecidas entre o homem e a mulher, o grego e o bárbaro, o deus, o homem e o animal, se embaralham, tudo muda. Dioniso é o deus que, num dado momento, faz tudo passar para outra dimensão, e é isto que o teatro realiza no centro da cidade grega. (VERNANT, 2001, p. 354)

Verificamos, então, que a mitologia sempre teve uma

presença muito forte e enraizada na cultura e vida cotidiana da Grécia Antiga. Os poetas da época se valiam das lendas e dos mitos para narrarem os acontecimentos ocorridos em determinado lugar, com uma pessoa ou povo e em alguma época. Estas narrações foram feitas, escritas nas epopeias, que se distinguem, basicamente, das tragédias pelo fato da encenação.

Tanto em uma, quanto em outra, porém, os mitos assumem um caráter estético, pois é através deles que ocorre a superação do humanamente limitado em direção ao absurdo, divino, ou seja, o campo frequentado apenas pelos

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deuses. Todos os deuses mitológicos apresentam características humanas, ou seja, são antropomórficos14.

A maior diferença entre os seres humanos e os divinos, entretanto, é a imortalidade. Esta semelhança também não acontece por acaso já que aproxima deuses e homens. Quando, através do teatro, o homem perpassa todo processo de catarse pessoal e entra em contato com a possibilidade de compreensão de si mesmo através do belo, ficando mais próximo dos deuses, toda a mitologia acaba por adquirir a função de elemento estético.

14 Isto implica em dizer que os deuses mitológicos possuíam forma humana, ou seja, aparência e distribuição corporal exatamente como a do homem: braços, pernas, barba, órgãos internos etc. Os sentimentos, desejos e paixões como raiva, amor, ciúmes e apetites sensuais, também eram os mesmos.

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= II =

IMPASSE NA GRÉCIA ANTIGA ENTRE DEUSES E FILÓSOFOS

Neste capítulo mostraremos que na Grécia da

Antiguidade havia uma contraposição entre Mito e Filosofia aceita, muitas vezes, como ruptura entre deuses e filósofos. Essa ruptura, entretanto, existiu de fato?

Há o momento histórico onde os deuses mitológicos e tantos outros personagens correlatos a eles, como por exemplo, heróis destemidos e bravios já não conseguiam explicar questões que rodopiavam pelas mentes humanas. Dúvidas como: qual a relação existente entre a mistura dos elementos naturais e a reorganização destes pelos deuses? Quais os fatores que norteavam a convivência entre seres fabulosos e homens? O que é o destino e quem o governa? Uma característica existe, todavia, em questões como as desse âmbito que não pode ser ignorada nem tampouco se deixar que fique despercebida.

A origem de tudo estava sempre no divino. Eram os deuses que tudo organizavam. Os seres olímpicos, isto é, os deuses que habitavam o Monte Olimpo15 regiam as relações de humanos entre si e de homens com a natureza. Tudo partia dos deuses.

A história da Grécia e da Humanidade, entretanto, começa a mudar por volta do final do século VIII a.C.,

15 O Monte Olimpo existe, de fato, na Grécia e conta com uma altura de 2917 metros. Os gregos antigos acreditavam ser esta montanha a morada dos deuses pelo fato de que, por ter tamanha altura, o pico encontrava-se na maior parte do ano encoberto por nuvens e neblina criando, desta forma, certa atmosfera misteriosa propícia à habitação de deuses.

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quando finda a Idade das Trevas16, com uma nova conformação política e social onde desaparece a realeza e surge um poder aristocrático exigindo a reorganização do que passaria a ser a cidade, a polis grega e modificando uma sociedade, até então, de expressão oral, poética:

Essa nova forma de organização social e política é a pólis, cujas características, segundo o historiador francês Jean-Pierre Vernant, são a supremacia do logos (que significa “palavra”, “discurso” e “razão”), pois a decisão sobre os assuntos públicos depende apenas: da força das palavras dos oradores, cuja condição social e econômica não é mais levada em conta; do caráter público das discussões políticas, que deixam de ser privilégio de grupos (as leis são elaboradas em conjunto e depois escritas, para que todos possam conhecê-las); da ampliação do culto, uma vez que a religião já não é um saber secreto de reis e sacerdotes, mas sim algo afeito ao Estado, público, acessível a todos. (ABRÃO, 2004, p. 17)

O quadro histórico e político começa a ser modificado

por inúmeros acontecimentos. Povos indo-europeus, por exemplo, começam a desembarcar em solo helênico provenientes de guerras perdidas, de fugas das dificuldades

16 Esse período compreende seu início a partir da invasão dórica e o seu fim com o surgimento das primeiras cidades-estados na Grécia. A Idade das Trevas foi um momento muito importante para os gregos, pois, inúmeros acontecimentos determinantes ocorreram neste instante como, por exemplo, a expressão artística em cerâmicas sendo feita por desenhos geométricos simplórios, as casas construídas com estruturas menores e mais afastadas umas das outras, a fome, a falta de alimentos que acabou tendo por consequência uma considerável queda populacional e, já no final deste período, a realeza substituída pela aristocracia.

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econômicas, em busca de oportunidades em uma nação em construção.

Cada povo estrangeiro que estabeleceu morada na Grécia contribuiu para a formação da cultura, da educação, do fortalecimento econômico e da propagação de sua forma de pensar e de se expressar que, até então, ainda era mitológica. A polis, contudo, já não era a mesma e, com seu cenário político sendo alterado drasticamente, o modo como o pensamento humano era concebido também se transformou rápido.

O mito, narrado através das epopeias e encenado nas tragédias, é fator determinante para se entender a forma de agir, de se comunicar, de se expressar, de pensar e até mesmo de se relacionar com o mundo circundante de uma civilização e a época em que esta viveu. É através da mitologia que a Grécia do século VI e V a.C. expressa sua relação com o destino e com uma religião antropomórfica:

Esta forma de conceber as coisas não era contudo “irracional”. Era uma forma de explicar coisas relacionadas, mais uma vez, a uma forma determinada de civilização, a um tipo de poesia oral e a um tipo de narração particulares e, claro, a um tipo de crença religiosa. Neste sistema, as idéias de poder e de potência eram fundamentais. Tratava-se de elaborar uma narrativa que mostrasse que, em um mundo onde potências, poderes, forças se opõem e lutam, em um dado momento um soberano mais poderoso do que os outros vai impor sua lei. A partir desta imposição, a ordem do mundo se torna constante. [...] Assim, deste ponto de vista, ao cabo de toda uma série de gerações divinas e de lutas pela soberania, em um dado momento Zeus, o mais poderoso dos deuses, se instala. E, ao contrário dos outros, seu poder não envelhece, não enfraquece. (VERNANT, 2001, p. 211)

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É justamente neste cenário de crença em seres

mitológicos, em monstros fabulosos, em heróis homéricos, em deuses humanizados que intervinham no destino dos homens conforme suas próprias vontades e deliberações que as relações sociais e políticas começaram a ser modificadas por acontecimentos como, por exemplo, o surgimento da moeda cunhada e, com ela, o nascimento do comércio.

Estava, então, por surgir o impasse milenar entre deuses e filósofos, entre Mitologia e Filosofia. Entre o que é considerado conhecimento racional, laico e conhecimento religioso, mítico. Será, entretanto, que uma ruptura está muito próxima de acontecer? Ou será que o que aconteceu com o surgimento do pensamento racional, laico e com o pensamento mítico foi uma passagem bem mais sutil ou gradual, de um para o outro? Quem sabe, ainda, não tenha apenas sido mudado o ponto de partida do pensamento anterior para o posterior?

O fortalecimento das relações comerciais com a invenção da moeda cunhada provoca a extinção das pequenas aldeias tornando, desta forma, a sociedade bem mais complexa. A cidade também sofre modificações. A ágora17 é definida como o local das transições do comércio e, em consequência, o local onde se discute muito acerca da cidade.

As leis que regem a cidade também passam a ser elaboradas em praça pública apenas pelos cidadãos gregos. Somente eram considerados cidadãos gregos os homens adultos, nascidos em solo grego, proprietários de terra e livres.

17 A ágora, que existe ainda hoje, era a praça principal da cidade-estado grega onde os cidadãos reuniam-se a fim de praticar suas relações comerciais. Com o passar do tempo este local acabou por ser usado também por comandantes políticos para discutir as leis, as deliberações e as decisões relacionadas à cidade e por filósofos que discutiam e ensinavam filosofia ao ar livre.

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Nasce, então, a democracia, o governo do demos18, ou seja, do povo:

O modo de vida e a cultura são outros. A sociedade aristocrática que esbanjava luxo havia cedido à vida comedida do regime democrático. Os deuses já não bastavam para explicar o mundo. (ABRÃO, 2004, p. 20)

Há, neste ponto, uma característica imprescindível

para o entendimento de todas as transformações e consequências por que passavam os gregos antigos: a escrita prosaica. Este é apenas um detalhe que contribuiu imensamente para toda a modificação mostrada aqui. O fato de um povo que se expressava, basicamente, por via oral e se valendo de poesia passar a escrever suas leis e expor essas determinações em praça pública de maneira prosaica, ou seja, em prosa é demasiado importante:

A partir do momento em que se faz um discurso em prosa que pretende ser uma exposição explicativa, coloca-se o problema do rigor demonstrativo interno da exposição. Em outros termos, a narração mítica se desenrola sem se preocupar com sua própria coerência; a prosa explicativa, ao contrário, é um escrito que deve prestar contas. Suscita-se a crítica, as objeções, a controvérsia. Assim intervém espontaneamente a questão da coerência e da não-contradição do discurso. (VERNANT, 2001, p. 213)

18 Desta forma foram chamados os artesãos e agricultores que viviam ao redor do palácio do rei quando existia um na Grécia. Posteriormente, foi designado, deste modo, o povo, a massa, o senso comum que se distinguia dos cidadãos. Politicamente, o demos, ou seja, o povo é um contraposto ao rei e aos aristocratas. Na democracia, conforme entendida atualmente, é o demos, os cidadãos, o povo que governa através de seus representantes eleitos.

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Com toda essa transformação política, social e

econômica acontecendo é preciso agora expor as ideias de forma convincente, racional e eloquentemente forte para se estabelecer. Os fatos novos surgindo para modificar o cenário da vida na cidade, no estado grego os homens, os cidadãos, a civilização daquele momento histórico se viu na necessidade de procurar caminhos diferentes dos já percorridos para satisfazer as novas exigências instaladas na polis. Este novo quadro político onde o demos passou a decidir a vida da cidade revela também que os homens estão em situação de paridade, ou seja, todo cidadão tem o mesmo valor e a mesma força política diante do Estado; são politicamente iguais.

Com isso é imprescindível saber argumentar com persuasão para, além de colocar as próprias ideias de forma coerente, conseguir convencer os demais cidadãos. O mecanismo a ser empregado nesta empreitada recém-nascida tem um nome: raciocínio. Este logos19, ou seja, esse ato de raciocinar, de saber falar e até convencer através de argumentos transpõe, no entanto, as fronteiras da política e passa a ser empregado para pensar sobre qualquer tema ou assunto, principalmente nas relações intersubjetivas.

Importante, contudo, deixar claro que dizer que o homem grego antigo passa, em determinado momento de sua história, a utilizar a razão para resolver as questões que a mitologia já não está explicando, não significa, sobremaneira, dizer que o pensamento mítico é irracional:

Esta concepção do mundo só se torna irracional a partir do momento em que saímos dela, em que começamos a pensar de uma forma diferente. Enquanto estamos dentro

19 Há diversos sentidos e explicações para este termo. Trabalharemos, contudo, empregando esta palavra no sentido comumente utilizado em estudos filosóficos. Aceitaremos aqui o emprego de logos como razão, raciocínio, pensamento, discussão e argumentação.

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do sistema, esta concepção é racional, eu diria até que é extremamente sofisticada. (VERNANT, 2001, p. 211)

O impasse entre deuses e filósofos parece surgir neste

instante exato em que o homem passa a raciocinar, a utilizar o logos para resolver as questões mais variadas. Fatores novos começam a surgir em favor da mudança e busca por explicações diferentes das tidas até neste momento como, por exemplo, a utilização da prosa escrita, a formulação das leis que regem a sociedade feita pelos cidadãos e a alteração do foco de análise que parte da própria natureza:

Assim, em vez de situar na origem a desordem pura para fazer nascer desta desordem um soberano que vai impor a ordem, procura-se quais são os princípios, ou o Princípio que está na base de tudo. (VERNANT, 2001, p. 211)

Há estudiosos de Filosofia Antiga que acreditam

encontrar neste período, século VI a.C., aproximadamente, a ruptura que aponta o abandono do pensamento ou do conhecimento mítico, que recorre aos deuses para explicar as relações existentes entre os homens e o mundo, em favor do pensamento ou conhecimento dito filosófico, que busca as explicações racionais para elucidar questões como as discutidas pela mitologia, por exemplo:

Há, porém, uma diferença fundamental entre o pensamento mítico e o pensamento racional dos primeiros filósofos. A mitologia exprimia na forma divina e celestial todo o conjunto de relações, quer dos homens entre si, quer entre o homem e a natureza. Assim como os deuses são criadores do mundo, o rei é o criador da ordem social, o regulador do ciclo da natureza. (ABRÃO, 2004, p. 18)

Se essa cisão ocorreu, de fato, ela acabou,

consequentemente, por separar em lados opostos também

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poetas e filósofos. Os primeiros narravam as relações intersubjetivas sempre considerando a fatalidade como fator determinante:

Os primeiros filósofos [...] buscam uma explicação para a relação entre o caos e a ordem do mundo. A maneira de entender essa relação é que muda. Enquanto o poeta vê os deuses como os responsáveis por tudo o que há, os antigos pensadores preferem partir das formas da natureza que esses deuses representavam (terra, água, ar) para entender a vida. (ABRÃO, 2004, p. 18)

Dizer isso implica em afirmar que poetas como

Homero e Hesíodo, por exemplo, atribuíram credibilidade às vontades dos deuses mitológicos. Os homens, sob este ponto de análise, estavam fadados à fúria ou à graça dos deuses. Já os filósofos ou o pensamento racional, tentam partir dos próprios elementos da natureza para buscarem o entendimento racional, lógico, acerca da vida e do mundo.

Problematizar as questões que também eram abordadas pelos mitos, significa retirar a base que sustentava toda a explicação mítica: os deuses e suas determinações. A partir daí o problema deverá ser resolvido pelo mesmo instrumento buscado pelo homem para comandar a polis: a razão:

O declínio do mito data do dia em que os primeiros Sábios puseram em discussão a ordem humana, procuraram defini-la em si mesma, traduzi-las em fórmulas acessíveis à sua inteligência, aplicar-lhe a norma do número e da medida. Assim se destacou e se definiu um pensamento propriamente político, exterior à religião, com seu vocabulário, seus conceitos, seus princípios, suas vistas teóricas. (VERNANT, 2005, p. 142)

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Foi em meio a tantas mudanças e transformações

ocorrendo na Grécia que, na cidade de Mileto, na Jônia, os primeiros filósofos surgiram e se impuseram histórica e filosoficamente. A Escola de Mileto foi formada por três grandes nomes da filosofia ocidental: Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Considerados os primeiros filósofos também foram, posteriormente, denominados pré-socráticos por terem surgido antes de Sócrates.

Estes três filósofos formularam explicações bem diferentes um do outro, porém, partiram de um mesmo ponto, uma mesma questão para elaborarem suas teorias filosóficas: o que é a physis20?

Tales, natural de Mileto, foi matemático e astrônomo21. Considerado o primeiro filósofo, ele ficou bastante conhecido por sua distração (o que o teria feito cair, em certa ocasião, em um poço aberto) e por sua sagacidade (o que o teria ajudado a ganhar bastante dinheiro por conta de seus negócios). O que o imortalizou, entretanto, foi sua filosofia. Tales acreditava que toda a physis era constituída de um único princípio: a água. Tudo provinha da água e ela estava presente em tudo:

Segundo Tales, a água, ao se resfriar, torna-se densa e dá origem à terra; ao se aquecer transforma-se em vapor e ar, que retornam como chuva quando novamente esfriados. Desse ciclo (vapor, chuva, rio, mar, terra) nascem as diversas formas de vida, vegetal e animal. (ABRÃO, 2004, p. 26)

20 A palavra grega physis pode ser traduzida por natureza. Mas seu significado é mais amplo. Refere-se também à realidade, não aquela pronta e acabada, mas a que se encontra em movimento e transformação, a que nasce e se desenvolve. Neste sentido, a palavra significa gênese, origem, manifestação. Saber o que é a physis, assim, levanta a questão da origem de todas as coisas que constituem a realidade, que se manifesta no movimento. (ABRÃO, 2004: 24). 21 Tales teria previsto um eclipse solar ocorrido no ano de 585 a.C..

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Evidentemente a teoria formulada por Tales de Mileto encontra em seu caminho diversas dificuldades em se estabelecer. Barreiras de ordem filosófica, como a própria Filosofia enfrenta. É, contudo, justamente por encorajar a elucidação de problemas vindouros através de explicações acerca do princípio primeiro do mundo que Tales personificou a figura do filósofo.

Depois, surgindo na mesma época que Tales, Anaximandro, o segundo filósofo da Escola de Mileto, discorda do amigo e diz que o princípio de tudo, ou seja, o elemento formador de toda a physis é o indeterminado, ilimitado. A palavra grega para este conceito é apeíron. Sem começo, nem fim, o apeíron está eternamente em movimento e resulta disso opostos como, por exemplo, água e fogo, frio e calor, todos os elementos constitutivos do Kosmos:

O apeíron é, desse modo, algo abstrato, que não se fixa diretamente em nenhum elemento palpável da natureza. Com essa concepção, Anaximandro prossegue na mesma linha de Tales, porém dando um passo a mais na direção da independência do “princípio” em relação às coisas particulares. (ABRÃO, 2004, p. 26s)

Anaxímenes vem contrabalançar Tales e

Anaximandro estabelecendo certa mediação entre as duas teorias dos filósofos anteriores. Para Anaxímenes, o elemento ordenador e constitutivo da physis é o ar. O ar não é demasiado abstrato como o apeíron de Anaximandro nem, muito menos, concreto demais como a água de Tales:

Tudo provem do ar, através de seus movimentos: o ar é respiração e é vida; o fogo é o ar rarefeito; a água, a terra, a pedra são formas cada vez mais condensadas de ar. Tudo o que existe, mesmo apresentando qualidades diferentes,

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reduz-se a variações quantitativas (mais raro, mais denso) desse único elemento. (ABRÃO, 2004, p. 27)

Surgiram, no decorrer da história da humanidade,

muitos outros pensadores. Houve quem tentasse combater de forma obstinada toda a teoria dos já mencionados pré-socráticos, mas a contribuição desses primeiros filósofos já está estabelecida. Como está posta também a forma como pensaram e discutiram suas teorias e pensamentos: a Filosofia.

Todas essas mudanças sofridas pelo homem grego antigo e, consequentemente, por toda a humanidade posterior tiveram incontáveis resultados. O surgimento da democracia como tentativa da nação grega de viver em um sistema político justo onde todos os cidadãos fossem iguais perante o Estado foi um desses resultados. A confabulação cultural, artística e intelectual, se é que podemos dizer desta forma, sofrida pelo mundo proveniente da movimentação dos antigos gregos em busca da compreensão de si mesmo e do mundo ressoa em nossas mentes até hoje. A abertura para uma nova forma de pensar, de agir, de se expressar e de, sobretudo, organizar o conhecimento acerca do mundo, do homem e da natureza: a filosofia.

Não vamos dar respostas nem, muito menos, dizer categoricamente se houve, de fato, uma ruptura ou uma passagem gradual do pensamento mítico para o pensamento racional. A intenção não é essa. Pretende-se apenas analisar e propor reflexões acerca de todo o movimento do pensamento humano na Grécia Antiga. Tanto porque se acredita que a Filosofia existe desde que há o homem. O que mudou e continua sendo reinventado é a necessidade de se sentir seguro diante de uma incerteza: a vida. O que moveu poetas e seus deuses mitológicos e filósofos de todos os tempos foi uma coisa só: a necessidade de se perceber como indivíduo, como real, como um ser provido de sentimentos e emoções desconhecidas e mesmo incontroláveis no mundo. A poesia

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que alimentou poetas como Homero e Hesíodo, por exemplo, e tragediógrafos como Sófocles e Eurípides, também causou furor em filósofos como o grande e imortal Platão. E é pela poesia que há em O Banquete, que nos esforçaremos por mostrar no próximo capítulo como Platão lidou com todas as mudanças de pensamento e atitude na racionalidade humana tentando discutir como é que se dá o amor.

A obra tenta elogiar Eros ou é uma forma de expressar, com poesia, a inquietação de um dos maiores pensadores da humanidade acerca de algo tão simples e tão buscado por reles mortais? Por que Platão recorre ao que estava dito ultrapassado, a mitologia, para tentar sanar a pergunta norteadora de seu festim em homenagem ao amor? A Filosofia e a Mitologia, enfim, serão próximas!

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= III =

O MITO FILOSÓFICO E O FILÓSOFO MITOLÓGICO

Neste capítulo aborda-se a questão dos mitos

utilizados por Platão em uma de suas obras mais belas, O Banquete. Mais especificamente, analisaremos o mito de Eros, sobretudo, e investigaremos os motivos que teriam levado Platão a valer-se de uma narrativa mitológica para elucidar as questões por ele levantadas. Vamos verificar em que medida Platão faz uma exceção e, se faz, de fato, esta exceção, em sua Teoria das Idéias, que nega a verdade proveniente das aparências, do sensível, do efêmero. Ora, se o filósofo em questão se vale de Mitologia para explicar o que pretende dizer sobre o Amor, então, ele está utilizando o caráter estético, aparente, dos mitos, transitando, desta forma, nas vias da contradição do que ele próprio defendeu sobre sua Teoria das Ideias. Ou será que o fato de Platão ter recorrido aos mitos não caracteriza, necessariamente, uma contradição de suas ideias? Nossa intenção aqui, em nenhum momento, é tentar corroer ou atacar os alicerces platônicos nem, tampouco, escavar suas obras em busca de fissuras, brechas ou pontos fracos. Absolutamente! Vamos apenas buscar entender o modo como um filósofo, que é considerado o pai da Metafísica, arquitetou uma de suas obras mais interessantes, O Banquete.

Arístocles nasceu em Atenas por volta do ano 428 a.C. e recebeu o apelido “Platão” por seus ombros naturalmente largos. Aparece na literatura também outra explicação para esse apelido: seu nariz demasiadamente achatado. Platão viveu oitenta anos em uma vida bastante frutífera e de extrema importância para toda a Filosofia. De família aristocrata,

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tendo sua mãe, sobretudo, antepassados influentes, o jovem Platão presenciou, desde muito cedo, a movimentada vida política da Grécia e seus bastidores.

Tendo como cenário a agitação política, Platão ataca duramente e com desapreço tanto os políticos da época quanto a forma como a política era feita. E tendo contato com intelectuais, seus contemporâneos, começa a formular suas primeiras teses filosóficas. Com certeza, a principal e mais conhecida dessas teses, a Teoria das Ideias, é o alvo principal das pesquisas feitas nas obras platônicas. Dada, todavia, a complexidade desta teoria, que por si só daria um estudo e trabalho monográfico a parte, limitaremos nossa explicação àquilo que nos basta para um melhor esclarecimento deste estudo. Platão adota um princípio como verdadeiro: as causas inteligíveis, as ideias. As ideias (ou formas, eidos) seriam as causas inteligíveis da matéria, do sensível. Por serem atemporais, essas ideias não se deterioram, ou seja, não acabam. Ao contrário delas a matéria, o efêmero, o perecível definha e se extingue:

Perfeitas e imutáveis, as idéias constituiriam os modelos ou paradigmas dos quais as coisas materiais seriam apenas cópias imperfeitas e transitórias. Seriam, pois, tipos ideais a transcender o plano mutável dos objetos físicos. (OS PENSADORES, 2004, p. 19s)

Para que o homem tenha possibilidade de se

aproximar da compreensão deste princípio, destas causas inteligíveis, ele terá de efetuar um movimento vertical conhecido como movimento de ascese. Este movimento, segundo Platão, sairá do âmbito da opinião (doxa) e seguirá em direção à ciência (episteme), verdade. Ou seja, o indivíduo terá de sair da escuridão provocada pelas ilusões (opiniões), terá de passar pelas crenças e seguir em direção à dialética. Desta forma, libertando-se das opiniões infundadas e

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O mito filosófico... 59

contemplando o Belo em si, que está dado no cume do movimento vertical (ascese) rumo à verdade imutável, o homem estará próximo de conhecer as causas inteligíveis dos objetos materiais. Para Platão, o processo de contemplação somente pode ser realizado através da Filosofia. Evidente que esta explicação não elucida satisfatoriamente a Teoria das Ideias. É pertinente, contudo, neste momento, apenas deixar dito que Platão faz uma distinção clara e precisa entre opinião e verdade, objetos e princípios inteligíveis.

O processo de conhecimento representa a progressiva passagem das sombras e imagens turvas ao luminoso universo das idéias, atravessando etapas intermediárias. Cada fase encontra a sua fundamentação e resolução na fase seguinte. O que não é visto claramente no plano sensível (e só pode ser objeto de conjetura) transforma-se em objeto de crença quando se tem condição de percepção nítida. Assim, o animal que na obscuridade “parece um gato” revela-se de fato um gato quando se acende a luz. Mas essa evidência sensível ainda pertence ao domínio da opinião: é uma crença [...], pois a certeza só pode advir de uma demonstração racional e, portanto, depois que se penetra na esfera do conhecimento inteligível. No plano sensível o conhecimento não ultrapassa o nível da opinião, da plausibilidade. (OS PENSADORES, 2004, 24s)

O que, porém, marcou definitivamente a juventude de

Platão, foi o fato de ter conhecido aquele que viria a ser o seu mestre: Sócrates. O mestre de Platão ficou imortalizado juntamente com uma de suas particularidades: só sei que nada sei. Esta era a grande ironia socrática que incomodou (e ainda incomoda) tanta gente. Valendo-se desta premissa Sócrates dialogava com seus concidadãos buscando e procurando sempre a verdade:

A demolição das falsas idéias que fundamentam a falsa imagem que as pessoas têm delas próprias é o que pretende

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a ironia: momento do diálogo em que Sócrates, reafirmando nada saber, força o interlocutor a expor suas opiniões, para, com habilidade, emaranhá-lo na teia obscura de suas próprias afirmativas e acabar reconhecendo a ignorância a respeito do que antes julgava ter certeza. A ironia socrática tem, assim, a função de propiciar uma catarse: uma purificação da alma por via da expulsão das idéias turvas, das ilusões e dos equívocos que distanciavam a alma de si mesma. (PESSANHA, 2004, 25)

A técnica utilizada por Sócrates para fazer com que o

seu interlocutor se dê conta de sua própria ilusão e, com isso, promover a parturição de seu verdadeiro conhecimento ficou conhecida como maiêutica. Sócrates dizia que seguia a mesma arte de sua própria mãe, que era parteira, somente com uma variante: enquanto sua mãe ajudava vir à luz aos bebês, as crianças, Sócrates auxiliava o conhecimento de si mesmo a encontrar a luz, em cada um de seus interlocutores:

Trata-se bem menos de questionar o saber aparente que se acredita possuir do que se questionar a si mesmo e os valores que dirigem nossa própria vida. No fim das contas, após ter dialogado com Sócrates, seu interlocutor já não sabe muito bem por que age. Ele toma consciência das contradições do seu discurso e de suas próprias contradições internas. E vem a saber, como Sócrates, que nada sabe. (HADOT, 1999, p. 55)

Sócrates tornou-se alvo dos governantes de Atenas

quando se recusou a participar de uma trama maldosamente arquitetada para confiscar os bens de um aristocrata da época, Leon de Salamina. Esta recusa custou a Sócrates a sua própria vida, pois, mais tarde, ele foi acusado de corromper a juventude ateniense e pregar o culto a deuses22 não

22 Esta acusação contra o mestre de Platão aconteceu por que Sócrates revelou em suas conversas pela cidade que recebia instruções de um

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reconhecidos pela cidade. Morte por ingestão de cicuta, um veneno bastante agressivo, a sentença da qual o mestre de Platão não quis se livrar, certo tempo depois.

Quando teve contato com os discursos socráticos, Platão passou a acompanhar os debates e discussões de Sócrates e pôde ver o mestre ser atacado politicamente de todos os lados. Isso tornou Platão ainda mais avesso a toda situação política de sua época:

Mas o impacto causado por Sócrates no pensamento e na vida de Platão teve também outro significado, este de repercussões ainda mais duradouras: como Sócrates, o jovem Platão pudera sentir a necessidade de fundamentar qualquer atividade em conceitos claros e seguros. (OS PENSADORES, 2004, p. 10)

Sócrates, contudo, é executado. Depois de perder o

mestre para a morte, Platão passa um longo período de sua vida viajando. Neste período de viagens começam a ser escritos os primeiros diálogos. Estes primeiros diálogos que Platão redige passam a ser conhecidos, posteriormente, como diálogos socráticos, pois, trazem Sócrates como eixo central:

Em geral, os “diálogos socráticos” desenvolvem discussões sobre ética, procurando definir determinada virtude. [...] Mas são diálogos aporéticos, ou seja, fazem o levantamento de diferentes modos de se conceituar aquelas virtudes, denunciam a fragilidade dessas conceituações, mas deixam a questão aberta, inconclusa. (OS PENSADORES, 2004, p. 12)

Sob a ótica platônica, Sócrates não estava preocupado

em provocar explicações nem tampouco definir conceitos. Antes, todavia, promover a reflexão de si mesmo e o

determinado daimon (este termo em grego significa gênio) não reconhecido por mais ninguém da cidade.

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autoconhecimento eram seus maiores propósitos. Ao voltar de suas viagens, por volta do ano 387 a.C., Platão funda a Academia, sua instituição de ensino e Filosofia:

O acontecimento é da máxima importância para a história do pensamento ocidental. Platão torna-se o primeiro dirigente de uma instituição permanente, voltada para a pesquisa original e concebida como conjugação de esforços de um grupo que vê no conhecimento algo vivo e dinâmico e não um corpo de doutrinas a serem simplesmente resguardadas e transmitidas. (OS PENSADORES, 2004, p. 12)

Platão deixou uma vasta obra filosófica de herança

para a humanidade. Essas obras ficaram conhecidas por “diálogos”, pois, o filósofo em questão adotara para redigir seus textos uma forma literária onde, geralmente, Sócrates interpelava algum sábio ou intelectual da época acerca de determinada investigação específica. O grande fio condutor dos diálogos, sem dúvida, foi o método dialético23:

No caso dos diálogos socráticos redigidos por Platão, a originalidade dessa forma literária consiste menos na utilização de um discurso dividido em questões e respostas (visto que o discurso dialético existia bem antes de Sócrates) do que no papel de personagem central assimilado à Sócrates. (HADOT, 1999, p. 49)

23 A dialética é defendida por Platão como a arte do filósofo, a própria Filosofia. Isto é, o método consiste em perguntas e respostas entre dois interlocutores (diálogos) que defendem argumentos, fincados na veracidade, em busca da melhor compreensão e elucidação do que estão investigando. Não implica em uma disputa entre duas pessoas. Trata-se de argumentação. Na Grécia Antiga, a dialética opõe-se à retórica. Quem pratica o método retórico preocupa-se apenas com a beleza de seu discurso não se prendendo, desta forma, à veracidade de seus argumentos. Ou seja, o retórico quer apenas convencer seu interlocutor de que o que está falando é o correto.

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O Banquete começa já com uma explicação importante. É Apolodoro quem está narrando os acontecimentos da noite em que se realizou o encontro em casa de Agatão. Apolodoro, que relata a um companheiro, por sua vez, também ouvira a narrativa do episódio da boca de outro amigo, Aristodemo. Foi Sócrates quem convidou Aristodemo para acompanhá-lo ao festim. Toda a conversa entre Apolodoro e seu primeiro companheiro, que inicia a obra, está acontecendo muitos anos depois da noite comemorativa em questão ter se realizado. Este fato nos mostra dois fatores relevantes: primeiro, a cultura ágrafa, ou seja, os gregos antigos não tinham o hábito da escrita, o que indica o grande valor dado à memória. Segundo, a grande repercussão que alcançou os fatos passados em casa de Agatão na ocasião do banquete24.

Estar presente nesta comemoração, ao que parece, é de grande importância para Sócrates, pois, ele está preocupado em aparecer25 bonito na ocasião, esquecendo-se, momentaneamente, até mesmo de sua modéstia irônica (O Banquete, 174 b). À porta do festim, Sócrates passa por um de seus momentos de contemplação. Um estranho hábito de abstração e de se sobrepor a sua contemplação, ou seja, o seu espírito ao seu corpo e as necessidades destes. Aristodemo explica o hábito do amigo: “[...] às vezes retira-se onde quer que se encontre e fica parado. Virá logo, porém, segundo creio” (O Banquete, 175 b).

Uma comemoração! Este é, então, o pretexto para a festa dionisíaca26, isto é, regada de bom vinho, que Agatão utiliza para oferecer aos seus convivas a oportunidade de

24 Há registros que indicam ser rotineira a realização de banquetes festivos na Grécia Antiga, sempre com muito vinho, música e comida. 25 Destacamos este verbo porque é de extrema importância para o melhor entendimento deste trabalho. 26 Dionísio é o deus grego do vinho, da embriaguez e das festas desordenadas. Parece que o Banquete é envolto, desde o início, por um clima propício a Dionísio, mas, o grande elogiado da noite será Eros.

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celebrarem juntos. Agatão, poeta e anfitrião do banquete; Fedro, apreciador dos poetas e sua considerável influência; Pausânias, político; Erixímaco, um médico grego; Aristófanes, comediógrafo27 que ficou famoso porque ridicularizou a Filosofia e os filósofos na figura de Sócrates em uma de suas peças teatrais28; Sócrates, o filósofo e, posteriormente, Alcibíades, um comandante do exército grego. Estes são os personagens que Platão escolhera para celebrarem a vitória de Agatão, que é poeta, em um concurso de tragédias acontecido na noite anterior. Muita bebida, comida em abundância e convidados celebrando a vitória. Está pronto, enfim, o cenário de O Banquete.

Depois de confessarem, com exceção de Sócrates, não poderem beber em demasia devido à bebedeira da noite anterior ainda não totalmente curada29, decidem aproveitar o tempo venerando o Amor:

A companhia daqueles que bebem delineia um programa que determina simultaneamente o modo como se há de beber e o tema dos discursos que cada um dos participantes há de pronunciar. O assunto será o Amor. Narrando o banquete ao qual assistia Sócrates, o diálogo relatará, portanto, a maneira pela qual os convivas darão conta de sua tarefa, em que ordem os discursos suceder-se-ão e o que dirão os diferentes oradores. (HADOT, 1999, p. 72)

27 Comediógrafo era aquele poeta que escrevia comédias teatrais. 28 O nome da comédia escrita por Aristófanes onde Sócrates aparece de maneira ridícula é As Nuvens. 29 A ressaca que ainda atordoa todos os amigos de Agatão, que já comemoraram sua vitória na noite anterior, revela o descuidado de si mesmo; a desmedida, a desmesura em saciar os apetites sensuais, o governo da hybris que afasta o homem da sophrosine – alcançada até agora somente por Sócrates. (Verificar Nota Explicativa número 2 do primeiro capítulo desta parte).

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Essa ideia, a de elogiar o Amor, surge quando Fedro reclama a injustiça sofrida por Eros, que nunca recebeu uma homenagem digna. Erixímaco, então, propõe:

Se então também a vós vos parece assim, poderíamos muito bem entreter nosso tempo em discursos; acho que cada um de nós, da esquerda para a direita, deve fazer um discurso de louvor ao Amor, o mais belo que puder, e que Fedro deve ser o primeiro, visto que está na ponta e é o pai da idéia. (O Banquete, 177 d. Grifo nosso)

Todos, então, concordam e Fedro dá início ao seu

encômio30, seu discurso em homenagem ao Amor. Ele defende que o Amor tem sua origem na Antiguidade, citando o poeta Hesíodo31 quando este defende que não existem genitores deste deus. Por ser o mais antigo, Eros traz benefícios para o indivíduo e, com isso, para a sociedade, pois, auxilia o homem a ser virtuoso e feliz. Fedro diz o seguinte:

Assim, de muitos lados se reconhece que o Amor é entre os deuses o mais antigo. E sendo o mais antigo é para nós a causa dos maiores bens. Não sei eu, com efeito, dizer que haja maior bem para quem entra na mocidade do que um bom amante e, para um amante, do que o seu bem-amado. (O Banquete, 178 c)

30 Esta palavra significa elogio, louvação. Deve-se, entretanto, ser utilizada somente quando direcionada a determinado deus ou herói. Geralmente, um encômio é revestido por grande teor poético. 31 Os versos de Hesíodo a que Fedro se refere são retirados da obra Teogonia (116-122). Segue:

“Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, Dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado E Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, E Eros: o mais belo entre Deuses imortais, Solta-membros dos Deuses todos e dos homens todos Ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.”

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É com esse argumento, “a vergonha do que é feio e o apreço do que é belo” (O Banquete, 178 d), que Fedro defende seu discurso e diz, principalmente, que é melhor ser quem ama do que quem é amado:

Além da importância sociopolítica de Eros, convenientemente afirmada por Fedro, sobressai em sua fala um outro aspecto, de que não convém descurar: se apenas quem ama sabe morrer pelo outro, mostra-se, com isso, a superioridade do amante sobre o amado. [...] Eros é o amante e não o amado. (MACEDO, 2001, p. 21)

O discurso de Fedro apresenta traços sofistas32, pois,

acaba apresentando citações de poetas, como Hesíodo, por exemplo. É preciso, sobretudo, atentar para um detalhe importante: Fedro situa seu encômio no campo da poesia, que não é no contexto social em que Platão vivia quando escreveu O Banquete, considerada Filosofia. Devemos, porém, reconhecer a grande influência tida pelos poetas na Grécia Antiga.

Agora quem falará em favor do Amor será Pausânias. Para ele ocorreu um grande erro no discurso anterior, que ele próprio pretende corrigir, quando se defende apenas um Amor, sendo, na realidade, dois:

32 Os sofistas eram uma espécie de “professores” retóricos que vendiam conhecimento àqueles jovens que desejavam o poder político e precisavam, para isso, dominar a eloqüência, ou seja, o bem falar, o bem discursar. Os sofistas perambulavam de cidade em cidade vendendo seus “conhecimentos enciclopédicos”. O grande problema desses professores, e o que incomodou grandes filósofos como Platão e Aristóteles, por exemplo, além do fato de cobrarem por suas “aulas ministradas”, é que não se preocupavam com a verdade do conhecimento que vendiam. Era preciso apenas que seus “alunos” soubessem discursar bem e convencer, com isso, quem os ouvisse. A retórica sofista, sendo assim, opunha-se à dialética filosófica.

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Se, com efeito, um só fosse o Amor, muito bem estaria; na realidade, porém, não é ele um só; e, em não sendo um só, é mais acertado primeiro dizer qual o que se deve elogiar. (O Banquete, 180 c-d)

São dois os Amores, pois, são duas as Afrodites: a

velha, Urânia, que é celestial, e a jovem, Pandêmia, que é popular. Da mesma forma o Amor: o celestial, que é aconselhável e bom, e o popular, que é ruim e não recomendado. Somente é belo33 e digno de ser louvado o Amor que é feito corretamente. O Amor Popular é desmedido, descuidado de si mesmo, como o é a jovem Afrodite Pandêmia. Ele participa tanto dos homens quanto das mulheres e prende-se apenas ao ato, ao corpo. Já o Amor Celestial é regido pela razão e, por este motivo, é isento de violência. Participa somente dos machos34 e, por isso, procura somente os seres mais fortes, másculos e inteligentes. É por não participar das fêmeas que ele não possui as fraquezas femininas peculiares:

33 É proveitoso observar como essa palavra aparece repetidamente no sentido estético, de beleza, de aparência. Essa constatação vem alimentar a argumentação que perscruta em Platão e em seu Banquete o motivo que o teria levado a se valer tanto e repetidas vezes do que provém do efêmero. Adiante nos aprofundaremos nesta questão. 34 Não é possível falar de homossexualidade na Grécia Antiga, na medida em que a identidade e o estatuto do sujeito não eram constituídos a partir de sua inclinação sexual. A “verdade do desejo” não estava na preferência pelo homem ou pela mulher. Parece que subordinar a formação da identidade à inclinação sexual é algo totalmente estranho ao imaginário grego, que não opunha o amor pelos rapazes ao amor pelas mulheres. Nesse sentido, refiro-me ao relacionamento entre dois homens em termos de amor masculino. O termo “homossexual” esta cada vez mais sendo questionado em virtude de sua origem médica e de seu caráter por assim dizer frankensteiniano, por ser composto de duas palavras com origens diversas, uma grega e outra latina. (MACEDO, 2001: 23. Nota de Rodapé 30).

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Para Pausânias, o amor entre homens é belo e conduz à virtude, e se o aquiescer a um outro e conceder-lhe favores pode tornar melhor o rapaz em sabedoria e em virtude, por exemplo, é perfeitamente lícita a servidão voluntária [...] que, neste caso, não é confundida com adulação, mas estimada como algo enobrecedor. (MACEDO, 2001, p. 25)

Não é todo Amor, todo Eros, que merece ser louvado.

Para Pausânias, além de ser o Amor, o Eros Celestial, o melhor, por estar participando somente dos homens e, exatamente por isso, estar empenhado em ajudar a enobrecer cada cidadão, justamente por este motivo é ele, o Eros Celestial, o Amor embasado na razão, que é bom também para a cidade. É o que afirma no final de seu discurso:

Este é o amor da deusa celeste, ele mesmo celeste e de muito valor para a cidade e os cidadãos, porque muito esforço ele obriga a fazer pela virtude, tanto ao próprio amante como ao amado... (O Banquete, 185 b-c)

Ocorre em seguida, o soluço de Aristófanes

justamente quando chegara a hora de discursar. Há explicações que atestam que Platão fizera Aristófanes soluçar para ridicularizá-lo em resposta ao que fizera em As Nuvens com Sócrates e toda a Filosofia. Em outras versões, este soluço vem exemplificar a hybris, ou seja, a desmedida, o descuidado de si mesmo saciando os apetites do corpo, comendo e bebendo em demasia (motivo pelo qual rompe em soluços). Erixímaco se propõe a não só discursar antes de Aristófanes, dando-lhe tempo para se recuperar, mas, também, a livrá-lo do mal que o acomete, curando-o, pois, Erixímaco é médico e a medicina era reconhecida como uma arte.

Erixímaco tece seu elogio da seguinte maneira: ele começa concordando, parcialmente, com Pausânias. A

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dualidade do Amor é o ponto convergente entre os dois, pois, Erixímaco dirá que é duplo o Amor; o sadio e o mórbido (doente). Por ser médico, ele fará seu discurso baseado em sua arte. Erixímaco associa o Amor às musas (Urânia e Polímnia) e não à Afrodite, como fizera Pausânias. De acordo com o médico, no organismo de todos os seres vivos (não somente no ser humano) existem os dois tipos de Amor, o sadio e o mórbido:

Então, tanto na música como na medicina e em todas as outras artes, humanas e divinas, na medida do possível, deve-se conservar um e outro amor; ambos, com efeito, nelas se encontram. (O Banquete, 187 e - 188 a)

O médico Erixímaco, porém, vai deixar claro em seu

discurso que o Amor e a harmonia entre seres opostos são frutos da arte, ou seja, segundo ele, é a arte que tem o dever, e pode assim fazer, harmonizar todos os elementos e seres opostos existentes. Esta harmonização entre os dois Amores, o mórbido e o sadio, é promovida pela arte. No caso de Erixímaco, a arte médica:

A tese inicial da potência universal de Eros, presente nas almas dos homens para com os belos jovens, em muitos objetos e nos corpos de todos os outros animais, que Erixímaco descobrira graças à medicina, ocupa toda a extensão de seu discurso, e ele não faz senão desdobrá-la e aplicá-la às demais artes. (MACEDO, 2001, p. 32)

Erixímaco ainda vai mais longe, pois elevará ao

âmbito da universalidade a capacidade harmonizadora do Amor. Tanto que é ele capaz de aproximar até mesmo homens e deuses. É como será concluído o seu discurso:

Assim, múltiplo e grande, ou melhor, universal é o poder que em geral tem todo o Amor, mas aquele que em torno

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do que é bom se consuma com sabedoria e justiça, entre nós como entre os deuses, é o que tem o máximo poder toda felicidade nos prepara, pondo-nos em condições de não só entre nós mantermos convívio e amizade, mas também com os que são mais poderosos que nós, os deuses. (O Banquete, 188 d-e)

E, desta maneira,

[...] concebendo o amor como potência universal, capaz de criar laços entre as diferentes artes, entre os homens e entre os homens e deuses, Erixímaco prepara o caminho para o diálogo entre Sócrates e Diotima, aproximando-nos do longo e árduo exercício filosófico definido pela sacerdotisa de Mantinéia. (MACEDO, 2001, p. 32)

O soluço de Aristófanes cessa. Fato que,

estrategicamente, viera corroborar a tese do médico: sob o mau Amor (mórbido) ocorrem coisas ruins, desarmonias. Aristófanes, por sua vez, não deixando de fazer comédia, comediógrafo que é, faz graça do fato de Erixímaco ter usado algo que considera ruim, um espirro, para curá-lo de outro mal, o soluço.

Começa o discurso de Aristófanes e promete que sua fala será diferenciada das anteriores, pois, não tentará procurar, como fizeram os seus colegas, as virtudes do Amor, mas, sim sua natureza:

O amor humano é o reflexo antropológico de uma realidade cósmica, é a reparação possível daquela divisão que foi imposta com castigo ao gênero humano. Longe de ser meramente reiterativo, o amor em Aristófanes é a manifestação sensível e articulada da unidade que preside o cosmos e que se manifestara no início primordial, inclusive na natureza humana. (MACEDO, 2001, p. 34)

Este encômio defende que o Amor é o grande restaurador do ser primitivo ligando-o, ontologicamente, à sua

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metade original. Para fixar-se no argumento que está utilizando, Aristófanes baseia o seu discurso, quase que completamente, no mito do andrógino35. Aqui cabe dizer que também este mito expressa a fatalidade existente nas Tragédias e da qual nenhum mortal poderia escapar. A fatalidade é o alicerce sobre o qual as Tragédias foram escritas. Também no mito do andrógino os seres imortais, os deuses, decidiram, deliberaram e interferiram na vida dos homens, seres mortais.

O tão esperado momento em que Sócrates falará está chegando. Toda a sucessão de encômios foi sendo construída para o grande elogio socrático ter elementos de argumentação:

Associado por Aristófanes à Lua, o andrógino é luminoso como o Sol, pelo seu lado masculino; a morte e a regeneração a que a Lua está sujeita lembram o ciclo vital da natureza. Misto de homem e de mulher, o andrógino conserva vestígios do feminino e do masculino, do mesmo modo que Eros, por sua própria natureza e condição, conserva os laços entre os seres humanos e os deuses. (MACEDO, 2001, p. 41)

Aristófanes, então, estava certo quando afirmou que

sua fala seria diferente das anteriores. No discurso deste comediógrafo aparece uma noção metafísica, atingindo, desta forma, o campo das ideias platônicas quando este leva para

35 É dele o célebre mito dos três gêneros da humanidade. Primordialmente o ser humano possuía forma esférica, dividido em três gêneros: um, com os lados formados por mulher (nascido da própria Terra), outro com os lados composto por homem (descendente do Sol), e o terceiro que tinha de ambos (descendente da Lua). [...] Bifrontes, esses seres esféricos tinham quatro braços, quatro pernas, quatro orelhas, dois órgãos sexuais e dois rostos olhando para pontos opostos. Esses seres possuíam uma “força e um vigor terríveis” e tentaram fazer uma escalada ao Olimpo, para investir contra os deuses. Os deuses, temerosos que aqueles homens tomassem o céu com sua força titânica, cindiram-nos em duas partes, sendo que cada metade procura sua própria metade originária. (MACEDO, 2001: 33).

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fora das fronteiras da vida corpórea a natureza restauradora do Amor. Dentro do movimento de ascese, em direção ao Belo em Si, é um passo a mais dado avante:

Em Aristófanes, a restauração das partes ontológicas e primordialmente divididas parece configurar somente uma antropologia; em Sócrates, ela assume uma dimensão verdadeiramente espiritual e cósmica. Pois é da busca da totalidade que se trata. A eliminação da divisão originária é o restabelecimento da própria completude perdida graças ao castigo de Zeus. (MACEDO, 2001, p. 37)

Depois do discurso de Aristófanes e antes da fala de

Agatão, propriamente, ocorre um breve diálogo entre este último e Sócrates. A conversa discorre acerca do “bem falar”. É possível e provável que neste momento do concurso, quando Sócrates está próximo de discursar, Platão tenha inserido de forma sutil, porém, não menos contundente, uma de suas críticas à retórica tão utilizada pelos sofistas. Ironicamente, como lhe é de costume, Sócrates rende elogios ao belo discurso de Erixímaco e prevê o sucesso da fala de Agatão, que ainda fará seu encômio. Parece que Sócrates se declara acuado dizendo, com isso, que não há como não se deixar enlaçar pela fala tão bem articulada de um poeta:

Sócrates então disse: É que foi bela, ó Erixímaco, tua competição! Se porém ficasses na situação em que agora estou, ou melhor, em que estarei, depois que Agatão tiver falado, bem grande seria o teu temor e em tudo por tudo estarias como agora. (O Banquete, 194 a)

Chega, então, o momento em que o anfitrião da noite,

Agatão, discursará. Um encômio, como prevera Sócrates, retórico. Melhor dizendo, poético. Agatão, ao contrário dos colegas, não quer elogiar os homens que são contemplados com o Amor e sim esmiuçar sua natureza:

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Eu então quero primeiro dizer como devo falar, para depois falar. Parece-me, com efeito, que todos os que me antes falaram não era o deus que elogiavam, mas os homens, que felicitavam pelos bens de que o deus lhes é causador; qual porém é sua a natureza, em virtude da qual ele fez tais dons, ninguém o disse. (O Banquete, 194e-195a)

Segundo ele, é o Amor o deus mais feliz porque é o

mais belo e melhor. É o mais belo porque é o mais jovem. Afirmando ser o Amor o deus mais jovem, Agatão discordará abertamente de Fedro, que falara justamente o contrário em seu discurso. Agatão diz o seguinte para comprovar a certeza de seu argumento: “uma grande prova do que digo ele próprio fornece, quando em fuga foge a velhice, que é evidentemente rápida...” (O Banquete, 195a-b). Além de jovem, o Amor é delicado e úmido36. O Amor é justo e, extremamente, temperante, além de corajoso. É um deus sábio e poeta (assim como o é Agatão) e, a quem quer que ele toque também se torna poeta. Agatão dirá ainda que o Amor surgiu da beleza, posto que é belo e não se fixa no que é feio:

Ora, apesar da distinção por ele mesmo formulada, o tragediógrafo Agatão incorre no mesmo erro dos que o antecederam na ordem dos discursos, pois define Eros por suas qualidades, e não por sua essência ou natureza, como propusera inicialmente. Contra seu próprio preceito, ele desliza, quase sem o perceber talvez, da busca da essência e da natureza de Eros para a enumeração de suas funções, dons, méritos e benefícios, abandonando a norma que ele mesmo havia fixado. (MACEDO, 2001, p. 43)

36 “Pois não seria ele capaz de se amoldar de todo o jeito, nem de por toda alma primeiramente entrar, despercebido, e depois sair, se fosse ele seco.” (Banquete, 196 a). Podemos perceber neste argumento a influência incisiva de Tales de Mileto, um dos primeiros filósofos, fundador da Escola de Mileto, que defendia ser o princípio de todas as coisas a água.

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Depois de acabado o discurso de Agatão, Sócrates

toma a palavra e afirma, de sua maneira, que está abalado fisicamente (e intimidado moralmente). Com isso, podemos inferir que Agatão fora extremamente retórico enfeitando o seu encômio e, como os anteriores, não se prendendo à realidade, mas à aparência:

O elogio de Agatão não corresponde ao que se esperava dele, mas forma o legado com o qual Sócrates há de operar para dar continuidade ao seu louvor ao deus, louvor que assumirá toda uma outra dimensão, pois tem em vista a verdade. (MACEDO, 2001, p. 44)

Sócrates, contudo, parece ainda estar protegido sob o

manto de sua ironia quando diz não haver importância nenhuma mentir para elogiar o Amor, já que fora combinado que cada um dos encômios seria feito como bem quisesse por quem estivesse falando. Nesta fala do filósofo, que sabe que nada sabe, nos deparamos com um problema: onde está a verdade buscada pela Filosofia? Admitamos, todavia, que Sócrates fizera tal afirmação para ser irônico e criticar seus colegas que não atentaram para o detalhe da veracidade:

Pois eu achava, por ingenuidade, que se devia dizer a verdade sobre tudo o que está sendo elogiado, e que isso era fundamental, da própria verdade se escolhendo as mais belas manifestações para dispô-las o mais decentemente possível [...] No entanto, está aí, não era esse o belo elogio ao que quer que seja, mas o acrescentar o máximo à coisa, e o mais belamente possível, quer ela seja assim, quer não; quanto a ser falso não tinha nenhuma importância. (O Banquete, 198d-e)

A fidelidade ao que é verdadeiro não seria adotada

para que os encômios pudessem ficar o máximo possível belos. Com essa constatação chegamos a um ponto crucial da

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obra platônica aqui estudada: a beleza não é, necessariamente, verdadeira. Em seguida, é chegada a hora em que Sócrates falará:

Sócrates inicia sua fala pondo-se de acordo com princípio metodológico de Agatão sobre a natureza de Eros, dá a palavra a uma mulher inspirada e reproduz um discurso de iniciação como em Aristófanes. (MACEDO, 2001, p. 54)

Até neste ponto de O Banquete podemos considerar

encerrada a primeira parte, de duas, do concurso de encômios a Eros. Até aqui falaram cinco convivas:

Coagidos pelo poder das aparências, aferrados à intensidade e às cores dos retratos que eles mesmos pintaram de Eros, os convivas ofereceram sucessivas e circunstanciadas descrições – o deus mais antigo, Eros celestial e Eros humano ou popular, força dos combatentes, potência cósmica e lei do universo, desejo do outro e aspiração ao Uno, qualidades e benefícios – que nada mais são, conforme a sutileza de Sócrates, do que máscaras e disfarces sob os quais a verdadeira natureza de Eros é encoberta. (MACEDO, 2001, p. 48)

Não sofrerão, ao contrário do que é visto comumente

na literatura, refutação proveniente de Sócrates. Explicaremos, contudo, esse argumento logo mais adiante:

[...] o primeiro plano diz respeito exclusivamente à progressão dos discursos sobre o Amor. A meu ver, cada etapa percorrida pelos convivas parece encontrar sua resolução na etapa seguinte, sendo que a solução e conclusão são dadas pelo discurso de Alcibíades... (MACEDO, 2001, p. 49)

Incorrendo em enorme risco de neutralizar momentos importantes da obra supracitada, vamos a partir de agora, pontuar apenas alguns acontecimentos dando início à segunda

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parte de O Banquete, para, assim, adentrarmos e aprofundarmos, de fato, a questão abordada por este estudo em sua essência. Como Platão fundamenta o mito de Eros, se é que realmente existiu esta preocupação por parte do filósofo:

Há uma transição, no Banquete, do elogio à elaboração da verdade essencial do amor, transição esta que ocupa o diálogo como um todo. Em outros termos, O Banquete parece ser todo ele uma transição na busca da recuperação da verdade sobre Eros, movimento que aos olhos de Platão promove, igualmente, a definição do discurso filosófico e do papel do filósofo. (MACEDO, 2001, p. 77)

Sócrates vai, finalmente, apresentar em seu discurso o

elogio que reserva ao deus do Amor. Ele diz que precisará responder a três questões para elogiar o Amor: quem é ele (Amor), qual a sua natureza e quais são as suas obras. Surpreende a todos, porém, Sócrates não vai discursar. Pelo menos, não da maneira como estava sendo esperada. Sócrates passará a narrar uma conversa que tivera com Diotima, uma mulher de Mantinéia. Apesar de não existir nenhum registro, além desta aparição em O Banquete, sobre a existência de Diotima, teria sido ela quem “instruiu Sócrates nas questões do Amor” (O Banquete, 201 d). Diotima questiona Sócrates exatamente como ele faz com seus interlocutores valendo-se de sua maiêutica. A instrutora de Sócrates nas questões do amor dirá, em sua fala, que Eros não é nem um deus nem um mortal:

O discurso de Diotima dirige a Sócrates, supostamente ensinando a ele a verdade de Eros, desenvolve cada um dos aspectos em que o amor pode ser compreendido, sempre com o objetivo de mostrar que ele não é um deus, mas um semideus, partícipe da divindade e da humanidade, vestígio do divino, signo do humano. (MACEDO, 2001, p. 77s)

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O mito filosófico... 77

Uma das interpretações feitas acerca desta teoria defendida por Diotima diz que Platão colocara Eros como um intermediário entre deuses e homens. Diotima explica a Sócrates, que se diz equivocado como Agatão, que existe algo entre sabedoria e ignorância, a opinião certa:

O opinar certo, mesmo sem poder dar razão, não sabes, dizia-me ela, que nem é saber – pois o que é sem razão, como seria ciência? – nem é ignorância – pois o que atinge o ser, como seria ignorância? – e que é sem dúvida alguma coisa desse tipo a opinião certa, um intermediário entre entendimento e ignorância. (O Banquete, 202a)

Não somente é o Amor, segundo Diotima, um

intermediário entre deuses e homens, mas, também não o é nem belo, nem feio; nem bom nem mau:

Sócrates explica a Diotima seu espanto diante da refutação de que o Amor é belo, pelo fato de ser ele reconhecido por todos como um grande deus. Uma nova refutação da Sacerdotisa – o Amor não é nem mesmo um deus – leva-o então a pôr o Amor no que parece o oposto da divindade. (SOUZA, Introdução, 2006, p. 53)

Prosseguindo em sua explanação, a sacerdotisa diz

que Eros nem é um deus, nem é um mortal. Eros é um daimon, que significa gênio, ou seja, um semideus. Todos os deuses são belos e felizes, portanto, o Amor não é um deus, pois, já está admitido que não é belo. O poder de Eros, segundo Diotima, é levar aos deuses o que provém dos homens e aos homens o que é enviado pelos deuses. O Amor completa a ambos os lados justamente por participar37 dos dois:

37 Na Teoria da Participação, Platão explica que, para cada Ideia imutável, una, essencial, existem suas cópias empíricas que participam daquela Ideia. Isto é, para cada Ideia, ou forma, imutável, existem os indivíduos, efêmeros, objetos sensíveis, que se deterioram e acabam porque são meras

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[...] interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, de uns as súplicas e os sacrifícios, e dos outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como está no meio de ambos ele (o Amor) os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si mesmo. (O Banquete, 202e)

Para justificar seu argumento, Diotima narra como foi

o nascimento de Eros, qual a sua natureza e suas principais características, isto é, seu caráter. Eis, então, o mito: Na festa de aniversário de Afrodite, Eros foi gerado e nascido. Isso explica porque ama o Belo; nasceu no aniversário de uma bela. Seu pai, Poros (Recurso, Riqueza), embriagado com néctar deita-se desfalecido no jardim. Pênia (Pobreza), viera mendigar. Ao ver Recurso deitado, Pobreza deita-se ao seu lado e concebe um filho, Eros:

Não sendo belo nem feio, nem um deus nem um mortal, o Amor é um dos muitos gênios, cuja função é manter o contato entre os mundos destes dois últimos seres, e assim completar o universo. Sua natureza específica explica-se por sua origem de Recurso e de Pobreza, que se uniram no aniversário de Afrodite e o conceberam. (SOUZA, Introdução, 2006, p. 49)

Pela natureza de sua mãe, Pênia (Pobreza) é pobre, “duro, seco, descalço e sem lar” (O Banquete, 203d). Já de acordo com o pai, Poros (Recurso), é “corajoso, decidido, enérgico, caçador terrível e filósofo” (O Banquete, 203d):

cópias, mas, que têm participação nas causas inteligíveis, as Idéias. Exemplo: os corpos belos, que são perecíveis, mutáveis, empíricos e subjetivos, só são belos porque participam da Beleza em Si, que tem identidade imutável, essencial, causa inteligível. Desta maneira, o Amor consegue completar mortais e deuses porque ele possui participação tanto na Imortalidade quanto na humanidade devido a sua natureza de semideus, isto é, de pai imortal e mãe humana.

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Segundo Diotima, a natureza e o caráter do Amor explicam-se por esta origem. Nascido no dia do nascimento de Afrodite, é apaixonado pela Beleza. Filho de Pênia, é sempre pobre, indigente, mendicante. Filho de Poros é inventivo e astucioso. (HADOT, 1999, p. 74)

Diotima compara o Amor com a Filosofia dizendo

que o primeiro, sendo mediador entre deuses e homens é exatamente como o filósofo que não é nem sábio, posto que busque o que lhe falta, a sabedoria, nem ignorante, uma vez que percebe que lhe falta algo. O Amor é um filósofo, pois, de acordo com sua origem, encontra-se entre Sabedoria e Ignorância.

Estudiosos da obra de Platão, como o célebre Pierre Hadot, por exemplo, fazem neste ponto uma analogia entre Eros e a personificação do filósofo que sabe que nada sabe, Sócrates:

Ora, esse retrato de Eros-Sócrates é, a um só tempo, o retrato do filósofo, na medida em que, filho de Poros e de Pênia, Eros é pobre e deficiente, mas sabe, por sua habilidade, compensar sua pobreza, sua privação e sua deficiência. (HADOT, 1999, p. 75)

O Amor está entre a Sabedoria e a Ignorância por

causa de sua origem e natureza de semideus. E é também por isso que, segundo Diotima, é o Amor um filósofo. O filósofo não é nem sábio e nem ignorante, pois, busca a sabedoria tendo a consciência do que lhe falta. Sócrates é e age da mesma forma: sabe que nada sabe, mas, procura saber, isto é, ele não é ignorante porque sabe que algo lhe falta, mas não é sábio porque não possui sabedoria. Tal qual o Amor:

Uma das suas fortes características, resultantes desta origem híbrida, é a filosofia, isto é, o desejo da sabedoria,

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apanágio dos deuses e uma das mais belas coisas. (SOUZA, Introdução, 2006, p. 49)

Sócrates, conversando com Diotima, investiga o que

o Amor causa nos homens. Concordam que quem ama o Bom e o tem para si, junto de si, será feliz. Felicidade, então, é comum a todos se todos desejam ter o que é bom para si.

Somente à título de informação, depois do encômio de Sócrates-Diotima ainda haverá a entrada de Alcibíades na festa de Agatão, mas, não abordaremos este momento da obra platônica supracitada porque não será relevante para nosso estudo. É aqui que nosso trabalho procura fincar suas estacas indagando acerca do fundamento dado por Platão ao mito de Eros. Diotima começa a falar sobre poesia. Ela a classificará como um dos aspectos do Amor, de natureza múltipla:

Sabes que “poesia” é algo de múltiplo; pois toda a causa de qualquer coisa passa do não-ser ao ser é “poesia”, de modo que as confecções de todas as artes são “poesias”, e todos os seus artesãos poetas. (O Banquete, 205 b-c)

Diotima explicará a Sócrates que o que todos

procuram é ser imortalizado. E, da mesma maneira que a poesia, o Amor é de muitas formas. Seres humanos são seres divididos e participantes da mortalidade, já que se tem um corpo, e da imortalidade, pois, há uma alma. Esta alma é expressa, segundo Platão, e imortalizada quando ocorrem a geração e parturição no Belo. É, então, nas coisas belas que se concebe e dá a luz o Amor.

Por isso, quando do belo se aproxima o que está em concepção, acalma-se, e de júbilo transborda, e dá à luz e gera; [...] daí é que ao que está prenhe e já intumescido é grande o alvoroço que vem à vista do belo, que de uma grande dor liberta o que está prenhe. (O Banquete, 206d-e)

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Todos os seres humanos, de acordo com a sacerdotisa de Sócrates, não querem apenas o bem para si, mas, o querem sempre, para o futuro também. É chegada a hora em que pela própria natureza de ser humano é preciso gerar e parir coisas belas. Os poetas fazem esta parturição porque criam obras belas que serão imortalizadas e, através destas obras, eles também o serão:

Porque é algo e perpétuo e imortal para um mortal, a geração. E a imortalidade que, com o bem, necessariamente se deseja, pelo que foi admitido, se é que o Amor é amor de sempre ter consigo o bem. (O Banquete, 207a)

Platão fala de Filosofia valendo-se da sua natureza de

poeta que nunca conseguira abandonar. E é justamente neste raciocínio que encontramos o fundamento do mito erótico-socrático de O Banquete. O que se torna claro agora é que Platão está afirmando, de maneira poética, utilizando uma linguagem mítica, que toda a verdade (que é filosófica) buscada não pode ser simplesmente verdadeira, deve ser, sobretudo, verdadeira e bela. Beleza não entendida esteticamente, proveniente das aparências, do efêmero, do tangível. A Beleza que Platão está se referindo é consoante com a essência do amor. Não o amor-deus mitológico, utilizado nesta obra, parece, somente como figurativo, mas, o amor-essência que move filósofos, poetas, artesãos e tantos outros que enveredam pelo movimento de ascese, nos caminhos do amor:

Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir. Em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de

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nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça em fim o que em si é belo. (O Banquete, 211c-d)

A Filosofia é a arte do filósofo, ou seja, é a arte através

da qual o filósofo ama a sabedoria, sabendo que não a possui, mas, buscando-a. Neste percurso o filósofo acaba sendo imortalizado por sua filosofia, seu processo racional de contemplação. Gerando em algo belo sua obra, sua arte, sua poesia o homem, o filósofo, apesar de perecer sob o efeito do tempo, deixará sua obra para a posteridade e viverá imortalmente através dela. Não é intenção opor poesia e sabedoria nem, tampouco, emoção e razão. Porque, como o mito foi complementado pela filosofia, também assim será entre sentimento e razão.

O Amor é amor, amigo (philos) à sabedoria (sophia), ou seja, o Eros platônico é filosófico porque sua natureza é perscrutadora. Eros, assim como Sócrates, é um filósofo. O fato de utilizar mitos não descredencia, de forma alguma, Platão. Nem o torna um mitógrafo, ou seja, alguém que escreve acerca dos mitos. O que Platão faz é utilizar uma linguagem mitológica em favor de seu argumento racional. Não é o mito o cerne de sua discussão e sim a verdade. Quando preciso for abrir exceções e recorrer literariamente aos seres sobrenaturais para tornar o que está sendo dito inteligível e belo, verossímil, então que seja feito. A razão e o amor juntos no mito, a emoção e a razão reunidos na Filosofia. O Amor para Platão é o elo que une a poesia do mito e a razão da Filosofia:

[...] e, porque estou convencido, tento convencer também os outros de que para essa aquisição um colaborador da natureza humana melhor que o Amor não se encontraria facilmente. Eis porque eu afirmo que deve todo homem honrar o Amor e que eu próprio prezo o que lhe concerne e particularmente o cultivo, e aos outros exorto, e agora e sempre elogio o poder e a virilidade do Amor na medida em que sou capaz. (O Banquete, 212b-c)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS DA PRIMEIRA PARTE

É sempre oportuno ressaltar que o estudo e a análise

das obras de um pensador singular como Platão não esgotam nunca a discussão. Ao contrário disso, suscitam ainda com mais voracidade a dúvida, as possibilidades de caminhos a serem percorridos e a necessidade de esclarecimentos acerca do que está sendo dito pelo filósofo. Provavelmente seja exatamente essa a intenção de Platão ao elaborar suas teorias e diálogos: não entregar aos seus leitores um compêndio de argumentos já explicados e esclarecidos para mera aprovação ou reprovação por parte de quem os lê. O requinte e refinamento de Platão são muito mais apurados e, com isso, ele permite que seus perscrutadores enveredem por possibilidades de estudos das mais variadas e ricas:

Uma nova expansão da verdade mal podia ser revelada em palavras que ostentavam a impressão desgastada e familiar. Aqueles que, graças ao contato íntimo, sentiram a força de sua personalidade acreditaram mais neles que em qualquer coisa que tenham dito. (CORNFORD, 1999, p. 49)

Ao estudarmos, no primeiro capítulo, o modo como as

tragédias apresentavam os mitos, pudemos perceber que não foi sem intenção que Platão escreveu suas obras sob forma de diálogos. Constatamos a sutil, porém, contundente relação que, com certeza, existe entre as tragédias e os diálogos platônicos. É no processo trágico que o mito assume uma conotação estética para, desta forma, provocar no espectador a catarse. Através da presença cênica de um herói, de alguém que sofre, mas, que consegue lutar, ainda que esteja fadado à derrota, é que o espectador consegue se aproximar dos

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deuses, de sua imortalidade tão almejada pelos mortais, e perceber-se como ser humano, compreendendo-se.

Já nos diálogos platônicos, sobretudo naqueles que apresentam Sócrates como eixo principal, condutor da discussão, é notório perceber como Sócrates e sua maiêutica conduzem seus interlocutores à luz da própria verdade, da verdade de cada um. É nessa espécie de parto espiritual que o próprio Sócrates seria parteiro, auxiliando, desta maneira, o seu interlocutor parir a verdade do que pensava saber e não sabia, ou seja, Sócrates concede ajuda àquele que acredita dominar determinado assunto a descobrir que nada sabe na realidade. Da mesma forma como a tragédia proporciona a catarse pessoal, nos diálogos de Platão, Sócrates, valendo-se da sua ironia dialética parece provocar um processo diferente, porém, bem semelhante: a compreensão de si mesmo:

A única dádiva da fortuna para Sócrates foi ter, entre seus jovens discípulos, alguém que não só se tornaria um escritor de incomparável habilidade, mas que também foi, graças a seus dotes naturais, um poeta e pensador não menos sutil que o próprio Sócrates. (CORNFORD, 2001, p. 50)

É mister deixar claro que não há a mínima intenção

por parte deste estudo sugerir que Platão imitava os tragediógrafos em seus escritos. Absolutamente! Diríamos, sobretudo, que seria incorrer em grave erro afirmar que Platão utilizou mitos em suas obras da mesma maneira que os poetas os escreveram em suas peças teatrais. Como foi dito, no primeiro capítulo, o mito foi utilizado na antiguidade pelos poetas, tanto nas tragédias que eram encenadas, quanto nas epopeias que eram apenas narradas através de versos, como elemento estético. A preocupação consistia em comover os espectadores e sensibilizá-los causando, assim, a identificação entre homens (espectadores) e heróis (atores-personagens).

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O processo que parece ocorrer em Platão, em seus

diálogos, não é meramente estético, ainda que também abarque este enfoque, é dialético, filosófico, na medida em que se percebe que, o que Sócrates e seus interlocutores (estes de forma ainda inconsciente) estão buscando é a verdade essencial:

A descoberta de Sócrates foi que o verdadeiro ser não está no corpo, mas na alma. E, para ele, a alma significava a sede daquela capacidade de descoberta que consegue distinguir o bem do mal, infalivelmente escolhendo o bem. O autoconhecimento implica o reconhecimento deste ser verdadeiro. (CORNFORD, 1999, p. 46)

Um argumento desta natureza vem corroborar o

objeto de estudo do segundo capítulo: ocorreu, de fato, uma ruptura entre o pensamento mítico, ou seja, a mitologia e o pensamento racional, isto é, a filosofia? É possível estabelecer uma ligação firme e consistente entre mito e filosofia sem que, para tanto, seja necessário contrapô-los:

Marcel Detienne assinala que há mutação do pensamento mítico em pensamento racional, vale dizer, que existe um estatuto epistemológico comum a ambos. A força do mito consiste em ser a forma verossímil de verdades indemonstráveis; operando com imagens, o mito torna visível o invisível. (MACEDO, 2001, p. 56)

Verificamos que toda a situação política, econômica e

social da Grécia antiga contribuiu para que o pensamento dito mitológico sofresse modificações e exigisse uma abordagem um tanto quanto adequada às necessidades da cidade. Estudiosos mais ortodoxos, porém, defenderão veementemente a suplantação do mito pela razão. É provável que se ouça dizer que o mito, que não era considerado filosófico, só teve correspondência com o misticismo grego,

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ou seja, com a religião politeísta antropomórfica daquela época. Esta inferência, todavia, não se sustenta, pois, mesmo depois do surgimento da Escola de Mileto com os primeiros filósofos e sua ciência jônica, inúmeros pensadores recorreram aos mitos, aos heróis e às lendas para explicar suas teorias. Um desses filósofos foi, justamente, Platão:

A eficácia do lógos está em seu caráter demonstrativo; operando com conceitos, o lógos é a capacidade discursiva que os seres humanos têm de construir o conhecimento. Lógos e diálogo estão estreitamente unidos. (MACEDO, 2001, p. 56, grifos do autor)

Evidentemente houve modificação na abordagem da

mitologia. Essa mudança na maneira de explicar o mito ocorreu, sobremaneira, porque, com Tales, Anaxímenes e Anaximandro passou a ser analisada não só a relação do homem com a natureza, como já acontecia na mitologia, mas, também a relação do homem com o próprio homem, entre uns e outros. Há, a partir dos primeiros filósofos, um novo elemento que fará grande diferença na abordagem racional que é a retirada da base que sustentava, até então, a mitologia: as vontades e determinações dos deuses. Os mitos continuam sendo analisados e caminham lado a lado com a filosofia, porém, sob o olhar da razão.

Platão, irremediavelmente um dos filósofos mais importantes de toda a história humana, recorrera aos mitos em várias obras de sua autoria. O Banquete, a obra a que nos debruçamos demoradamente na tentativa de compreendermos o que está sendo dito, filosófica e poeticamente, acerca do Amor, é um dos tratados platônicos mais recheados de lendas e histórias mitológicas. Existem outros como, por exemplo, A República, onde Platão discorre acerca da política e da cidade; Lísis, onde se percebe Sócrates tentando explicar o que é, de fato, a amizade verdadeira; e

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Fedro, outra obra que trata do amor. Não detalharemos, contudo, nem os mitos nem as outras obras platônicas devido à atenção tamanha que preferimos dispensar a Eros:

No Banquete, Eros, intermediário entre os homens e os deuses, impulsiona a alma para a região supra-estelar, região das realidades absolutas e imutáveis, e, na reconquista da plenitude do ser e da verdade – que se efetiva por meio das etapas prescritas pela dialética e que hierarquiza segundo os modos de conhecimento e de linguagem - , permite à alma percorrer os patamares desse esforço erótico e filosófico, de conhecimento, enfim. (MACEDO, 2001, p. 64, grifo do autor)

Há muitas nuances pairando na atmosfera platônica

quando se fala no festim em casa de Agatão, um poeta trágico que ganhara um concurso de tragédias e oferecera um banquete a alguns de seus amigos para comemorar. Pudemos perceber que não é por acaso que o cenário deste diálogo é a casa de um tragediógrafo e a situação em que se passa, a sua festa comemorativa. Platão, antes de conhecer seu mestre Sócrates, era poeta. Acreditamos que a poesia nunca o abandonara. Um indício forte do que estamos falando é a presença da cultura dos concursos de peças teatrais, escritas, geralmente, por poetas, que aconteciam na Grécia antiga. As peças teatrais que representavam os mitos, as tragédias, eram escritas por diálogos porque, desta maneira, os personagens, protagonistas e antagonistas, ficavam claros e definidos. Não era apenas alguém falando ou descrevendo alguma tese, como em tantos tratados filosóficos. Não era nenhum filósofo sisudo falando algo maçante, de difícil compreensão. Platão escreveu através de diálogos e essa escolha não foi simples acaso. Ele sabia que, escrevendo em forma de diálogos, seus interlocutores seriam ativos e definidos nas conversas tornando, desta forma, o que estava sendo dito ainda mais

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verossímil, pois, estaria mais próximo de seus leitores e mais fácil seu entendimento:

O diálogo platônico, [...] é antes de tudo um “exercício”. Como vimos, ele não tem por objetivo principal e único resolver o problema proposto, mas fazer o participante “tornar-se melhor dialético”. E, precisamente, ser melhor dialético não é apenas ser hábil em inventar ou denunciar as sutilezas do raciocínio, mas antes de tudo saber dialogar, com todas as exigências que isso demanda: reconhecer a presença e os direitos do interlocutor, fundar sua resposta sobre o que o interlocutor reconhece saber, pôr-se em acordo com ele em cada etapa da discussão; é sobretudo submeter-se às exigências e normas da razão, da investigação da verdade e, finalmente, reconhecer o valor absoluto do Bem. (HADOT, 1999, p. 256s)

Com toda a certeza encontramos uma sutil relação

existente entre a primeira parte de O Banquete, onde falam os cinco primeiros oradores, com a mitologia. Já o discurso de Sócrates-Diotima elenca o que a Filosofia representou para Platão. Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e Agatão, os cinco primeiros encomiastas a falarem, demonstram a preocupação em descreverem Eros sob um prisma estético, ou seja, o grande elogiado da noite é descrito, na primeira parte de O Banquete, por sua aparência. É por este horizonte de aparências que caminha o mito na antiguidade. Os deuses eram conhecidos, temidos, respeitados e cultuados justamente por sua capacidade de sensibilizar, esteticamente, os homens, seres mortais. É o que parece acontecer com os cinco companheiros de Sócrates, pois, estes descrevem a Eros como um deus belo, celestial, harmonioso e harmonizador, entre tantos outros atributos. Nenhum, entretanto, trata de sua essência. Cada um dos convivas presentes sente-se, de alguma forma, próximo de Eros porque se identifica com ele, de uma maneira ou de outra. Este efeito é muito parecido com aquele

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provocado pelos heróis oriundos das tragédias, das encenações teatrais vigentes na época considerada mitológica. Os personagens platônicos, tão eloquentes e certos, convencidos do que estão dizendo parecem estar a um passo da sua catarse pessoal. E o grande herói que os levará a uma compreensão de si mesmo, através da divindade erótica, é Sócrates:

Sócrates pertenceu àquele pequeno número de desbravadores que, ocasionalmente, foram ampliando o horizonte do espírito humano. Eles adivinharam em nossa natureza poderes insuspeitos que só eles conseguiam, em suas próprias pessoas, transformar em realidade. Vivenciando a verdade que descobriram, ofereceram ao mundo a única garantia possível de que ela não é uma ilusão. (CORNFORD, 1999, p. 49)

Quando Sócrates se vê obrigado a discursar, ele

recorre àquela que outrora fora a sua heroína e que o fizera passar pelo mesmo processo catártico de compreensão de si como indivíduo, como partícipe de uma realidade também divina, também imortal. Como Diotima teria ajudado a Sócrates se sentir divinizado? Como Platão percebera-se também, um dia, como alguém que mesmo humano, se tornaria imortal, como os deuses mitológicos? Pelo seu legado, pela herança deixada à posteridade. Sócrates e Platão morreriam; como seres efêmeros e mortais eles pereceriam. Mas, perduraram naquilo que amavam: a Filosofia.

Eros foi pintado na obra estudada com as características encontradas por Platão em seu mestre, Sócrates. Existe, de fato, relação entre o Eros descrito por Diotima e Sócrates, não personagem, mas, mestre. Platão reverencia aquele que também fora, de determinada maneira, o seu herói dialético. Platão faz isso à sua maneira, poeticamente. É provável que o seu amor à sabedoria não tenha impedido Platão de recorrer aos mitos para elogiar seu

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mestre na figura de um semideus. Os mitos nunca foram o sustentáculo das obras platônicas. Foram apenas artifícios utilizados para facilitar seus leitores a chegarem a um melhor entendimento do que estava sendo dito por ele. A busca pela verdade essencial nunca foi abandonada por Platão, mesmo quando ele se valeu de mitologia para explicar suas reflexões:

Em todo caso, trata-se também de uma competição entre filosofia e poesia. De um lado, a filosofia com seus recursos argumentativos e discursivos abstratos; de outro, a poesia, com suas imagens concretas. Duas formas de conhecimento que aparentemente se opõem, mas que Platão tenta, de alguma maneira, conciliar no Banquete. (MACEDO, 2001, p. 61, grifo do autor)

Não é intenção provar contradições ou atribuir a

Platão atitudes que não são suas. Não estamos objetivando uma refutação nem tampouco um ataque filosófico ao mestre Platão. Estamos buscando interpretar através de um viés poético, humanizado, porém, verdadeiro o que está dito em O Banquete. Este trabalho não deve ser visto como uma crítica e sim como um elogio.

Platão defendeu em seu O Banquete que a verdade não precisa ser somente verdade. Ela também pode e deve ser bela. Beleza não estética, aparência vazia apenas para convencer, mas, beleza filosófica. Não explicaremos, entretanto, essa beleza filosófica. Como está dito no início desta conclusão, obras de alguém do quilate de Platão abrem margem para infindáveis pesquisas que jamais se exaurem. Não é intenção esgotar esse assunto, mesmo por que seria necessária uma competência divina, sobrenatural e mitológica para tal feito. Ao contrário, nos sentimos tentados, por traiçoeira vaidade, a provocar nosso leitor a perscrutar, arguir, investigar e questionar porque assim, desta maneira, também estaremos, como Platão, imortalizados através de nossa obra.

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REFERÊNCIAS DA PRIMEIRA PARTE HOMERO. Ilíada. Tradução de Manuel Odorico Mendes.

Revisão de Eliana de Fátima Rodrigues e Maria de Fátima A. C. Madeira. São Paulo, Martin Claret. 2007.

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OS PENSADORES. (Não há referência sobre tradutor, revisor ou qualquer outro responsável por este volume em português.) Volume: Platão, Vida e Obra. Coleção Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural. 2004.

PESSANHA, José Américo Motta. Sócrates: Vida e Obra. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. Tradução de Enrico Corvisieri e Mirtes Coscodai. Coleção Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural. 2004.

HADOT, Pierre. O Que é Filosofia Antiga? Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo, Edições Loyola. 1999.

MACEDO, Dion Davi. Do Elogio À Verdade: Um Estudo Sobre a Noção de Eros Como Intermediário No Banquete de Platão. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001.

PLATÃO. O Banquete, Ou Do Amor. Tradução, introdução e notas do prof. J. Cavalcante de Souza. 4ª Edição. Rio de Janeiro, DIFEL. 2006.

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SEGUNDA PARTE:

A AMIZADE EM ARISTÓTELES E AS RELAÇÕES HUMANAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

Ederson Camilo Pãoeagua

Leomar Antonio Montagna

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“Amigo fiel é poderosa proteção: quem o encontrou, encontrou um tesouro. Ao amigo fiel não há nada que se compare, pois nada equivale ao bem que ele é. Amigo fiel é bálsamo de vida; os que temem o Senhor vão encontrá-lo. Quem teme o Senhor, orienta bem sua amizade: como ele é, tal será o seu amigo”. (BÍBLIA, Eclesiástico, 6, 14-17) “A amizade é uma alma que habita dois corpos; um coração que habita em duas almas [...] De fato, a amizade é uma virtude extremamente necessária na vida; ninguém deseja viver sem amigos, mesmo dispondo de todos os outros bens, pois com amigos as pessoas são mais capazes de pensar e agir”. (ARISTÓTELES, 1996, p. 257)

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INTRODUÇÃO À SEGUNDA PARTE

Considerando os mais diversos problemas e questões

que a filosofia tem se preocupado em discutir ao longo dos séculos, desde suas origens, este trabalho tem o propósito de realizar uma análise acerca das principais reflexões sobre o tema da amizade no mundo antigo e sua relação com as condições contemporâneas do relacionamento humano. É inegável o fato de que o conceito de amizade não seja propriamente uniforme em todas as culturas, ou até mesmo dentro de uma única cultura em determinado momento histórico.

O fato é que desde a pré-história, orientados a partir do modo de vida nômade, os homens sentiram a necessidade de se reunir e viver em grupos a fim de sobreviverem; isso se deu na medida em que compreenderam que os esforços cooperativos eram mais eficientes que as ações individuais, o que promoveu uma melhor forma de desenvolvimento social humano. Nesse sentido, Perry (2002) nos reitera que com o passar do tempo, tal espírito de comunidade tornou-se cada vez mais presente na formação do homem. Prova disso é o fato de que na Grécia antiga, a Pólis era considerada o elemento que proporcionava aos indivíduos o sentimento de vinculação entre eles e através dessa vinculação, sentiam-se intimamente envolvidos na vida cultural e política da comunidade. Destarte, esse sentimento de unidade entre os homens era o caminho para a felicidade, na concepção dos gregos.

Todavia, a essência da relação que trataremos neste trabalho se concentra na ideia de um vínculo mutuamente íntimo e recíproco, adquirido livremente e desenvolvido entre duas ou mais pessoas e que gera efeitos diretos na comunidade como um todo, a saber: a amizade. Embora a amizade tenha

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sido modelada socialmente por inúmeros fatores ao longo do tempo, é consenso de grande parte dos críticos sobre o tema, afirmar que tal evento humano se constitua como uma constante humana em todas as sociedades.

Dessa forma, o objetivo principal desta pesquisa será o de analisar o conceito de amizade em Aristóteles, considerado o filósofo que fundamentou a ética de modo mais significativo na história do pensamento ocidental, e sua relação com a atual crise das relações humanas no mundo pós-moderno. Para isso, buscaremos no primeiro capítulo apresentar as principais reflexões acerca da amizade tendo como base alguns autores antigos, justamente para melhor compreendermos a evolução histórica-conceitual acerca da temática. Em seguida, no segundo capítulo, nos dedicaremos unicamente a descrever o conceito de amizade aristotélico, tido como o mais desenvolvido conceito de philía do mundo antigo. No terceiro capítulo, buscaremos descrever a atual situação dos laços humanos no mundo contemporâneo, principalmente a partir das inferências do filósofo francês Gilles Lipovetsky e do sociólogo polonês Zygmunt Bauman.

Bem sabemos que para Aristóteles, a felicidade enquanto fim último das ações humanas só poderia se dar na Pólis. O homem, considerado como um ser racional e político, só poderia se realizar no contato com o outro. Em seu livro Ética a Nicômaco (EN), mais precisamente nos livros VIII e IX, Aristóteles apresenta seu conceito de amizade e destaca que existem três tipos de amizades, sendo apenas uma virtuosa e as outras duas, ou por utilidade, ou por prazer, de modo que não contribuem para a formação do homem virtuoso, sendo apenas acidentais.

Nesse sentido, tratar desse tema é tratar de maneira indireta da condição em que se encontra o homem no mundo contemporâneo, particularmente nas suas relações sociais e na integração com os seus. Sem tratar especificamente sobre a amizade, Lipovetsky e Bauman oferecem um retrato factual

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da realidade contemporânea, onde a sociedade tem se caracterizado muito mais pela fluidez do que pela estabilidade.

Lipovetsky (2005a) compreende que a atual condição societária está pautada por uma moral indolor, de modo que os indivíduos orientados unicamente por seus interesses pessoais realizam suas vontades sem qualquer tipo de horizonte norteador de limite. A perda de valores universais levou o homem contemporâneo a viver uma espécie de Era do Vazio, segundo princípios subjetivos, o que conduz a uma nova fase do individualismo.

O valor fundamental do homem contemporâneo se dá na sua realização pessoal, pois numa sociedade caracterizada pelo consumo desenfreado, as relações humanas já não fazem mais nenhum sentido, pelo contrário, se constituem como um risco para a manutenção dos anseios consumistas.

Partindo de uma análise embasada na fluidez das relações, Bauman compara as relações humanas de nossa sociedade às relações virtuais, onde: “[...] não tem nenhuma consequência, pelo menos nenhuma consequência duradoura (isto é, consequência que dure mais tempo que o ‘obter satisfação’)” (BAUMAN, 1997, p. 125).

Assim, para o sociólogo polonês, os laços humanos na era pós-moderna se converteram em contratos não duráveis, pois os encontros tornaram-se cada vez mais breves e superficiais; e a distância entre as pessoas, aparentemente tornou-se algo muito mais desejável em detrimento do convívio humano efetivo.

O que se constata na contemporaneidade é a perda ou a irrelevância do significado que as pessoas atribuem umas às outras em suas relações. O individualismo se encontra presente, de modo que, a relação com o outro acaba sendo apenas passageira, ou como assinala Bauman: “descartável”. A fragmentação dos laços humanos, fez com que o conceito de amizade proposto por Aristóteles, tornasse cada vez mais

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inviável de ser adotado na prática hodierna dos indivíduos, no sentido de que, a reciprocidade nas relações humanas tornou-se cada vez mais tênue. A amizade tida correlatamente como o amor de si mesmo ao amor para com o amigo, significa, em termos aristotélicos, que o viver bem, exige necessariamente, o viver bem com o outro, sendo correspondente a relação de um amigo para com o outro, além de ser íntima e respeitosa.

Sendo assim, ao tratar desse assunto, procuraremos demonstrar a decadência com que as relações entre as pessoas se encontram nos dias atuais, tentando compreender os fatores debilitantes dos laços humanos, que levaram o homem a um egocentrismo destruidor, que torna os indivíduos cada vez mais individualistas e apáticos, caracterizando assim uma sociedade destituída de qualquer espécie de comprometimento humano.

Para a realização desta pesquisa, adotamos o método hermenêutico de análise, a fim de realizarmos, por meio das leituras selecionadas, uma interpretação reflexiva sobre os conceitos que se apresentam. Para maior organização na elaboração desta pesquisa e maior riqueza de informações, buscamos encontrar em livros, teses, dissertações e artigos os conteúdos que fomentaram nosso trabalho. A realização de fichamentos foi atividade constante no decorrer de toda a pesquisa, bem como a elaboração de resumos e reflexões acerca dos temas estudados.

A fundamentação teórica teve como fontes principais de estudo e análise, as obras clássicas de Aristóteles que tratam diretamente sobre o tema da amizade, como: Ética a Nicômaco e Ética a Eudemo. No que concerne aos estudos dos autores contemporâneos, dedicamos ao estudo de Gilles Lipovetsky, principalmente, a partir de suas obras: A Era do Vazio, Felicidade Paradoxal e Tempos Hiper-modernos. Ao analisar o pensamento de Zygmunt Bauman, nos detemos em suma ao estudo das seguintes obras: Amor Líquido, Modernidade Líquida e Ética Pós-Moderna.

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Introdução à segunda parte 99

Ao analisar o conceito de amizade clássica,

principalmente na concepção de Aristóteles, relacionando-a ao pensamento contemporâneo sobre a realidade das relações humanas no mundo atual, almejamos saber: quais os principais aspectos característicos da amizade na antiguidade? Qual o conceito e os tipos de amizade apontados por Aristóteles? É possível presenciar nos dias atuais, a concepção aristotélica de amizade virtuosa? Por que os laços humanos se encontram fragilizados? Basicamente, essas foram as questões norteadoras da presente pesquisa, que contribuíram para que chegássemos a uma visão do mundo atual, comparando com a perspectiva vigente no mundo antigo.

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= I =

A AMIZADE NA ANTIGUIDADE No presente capítulo, se apresenta as principais

discussões que se concentraram em torno do tema amizade e como ela foi conceituada no período antigo da história da Filosofia. Para isso, com base em estudos e de acordo com alguns estudiosos sobre o tema, selecionamos como objeto de análise alguns pensadores desse período que mais se destacaram, ao tratar do tema da amizade como elemento constitutivo e modelo de associação entre os homens. A escolha dos autores obedece a uma ordem cronológica da história, a fim de que se possa ter uma compreensão evolutiva sobre a amizade em seus aspectos mais essenciais.

Ressalta-se, contudo, que não temos o intento de expor o pensamento de todos os autores antigos que trataram do tema, visto que seria um trabalho muito mais específico e extenso, não sendo o objetivo desta pesquisa. O que se objetiva aqui, é tentar mostrar de uma forma cronológica, as diferentes formas de como a amizade foi interpretada por alguns dos autores do período antigo, a fim de que o leitor possa perceber, a partir do segundo capítulo deste trabalho, que embora houvesse diversas discussões sobre o tema, o conceito filosófico de Aristóteles sobre a amizade, juntamente com todas as conclusões que dele segue, adquire conotação muito particular e até mesmo inédita, segundo alguns autores.

Por isso, após explicar as razões desse resgate histórico-conceitual da amizade, apresentamos os autores selecionados, entre tantos outros como já mencionado, que serão trabalhados nessa etapa da referente pesquisa, a saber: Pitágoras, Empédocles, Platão, Epicuro, Cícero e Sêneca. Ao trabalharmos cada autor, nosso objetivo não consiste em exaurir todo assunto sobre o tema da amizade da qual cada

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um aborda em sua filosofia. Ao contrário, nosso intento é o de apresentar, de forma sucinta e objetiva, o que cada um desses filósofos pensou sobre a amizade, uma vez que, a exposição mais analítica e profunda sobre a amizade é aquela que será contemplada no segundo capítulo desta pesquisa, quando será trabalhado o conceito de amizade considerado o mais completo e atual da história da filosofia, o conceito de amizade aristotélico. 1.1 ASPECTOS HISTÓRICOS DA AMIZADE NO CONTEXTO ANTIGO

Em seus estudos sobre a amizade no decorrer da

história humana, Entralgo (1971) sugere que não há nada de errado em afirmar que a amizade existe de modo concomitante ao aparecimento do homem na face da terra, ou seja, desde que se tem conhecimento da atividade do homem nesse mundo, pode-se afirmar que a amizade existe. O fato é que, segundo o autor, não se pode reconhecer de que modo eram essas relações humanas primitivas; e também com isso, não se quer defender que mesmo que a amizade tenha relação originária direta com o aparecimento do homem, ela não se caracteriza como expressão direta, imediata e necessária da vida humana.38

Corroborando com essa querela, Spinelli (2011, p. 6), nos adverte que:

sob todos os aspectos, é difícil estabelecer [...] em que momento, e sob que termos, [os homens] estabeleceram, na relação com o outro, sentimentos de amor ou de

38 Este é um dos aspectos em que Pitágoras se contrapõe ao pensamento aristotélico, uma vez que para este último, em sua obra Ética a Nicômaco (Livro VIII) a amizade é uma forma de excelência moral extremamente necessária na vida, de modo que a existência humana deseja a presença do amigo para que assim se possa viver virtuosamente.

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amizade: emoção e zelo recíproco na administração de interesses. Por certo, tais sentimentos não afloraram tardiamente e inclusive antecederam a consciência da justa medida, que deve ter advindo como consequência da busca sincera no sentido de administrar tais sentimentos e interesses. O amor e/ou a amizade (enquanto sinônimos de relações amistosas) tiveram o seu início assim que os homens, sob impulsos afetivos ou de cordialidade, começaram a reciprocamente se carecer, e constataram que isso era muito bom, sobretudo útil, e se dispuseram a regular e preservar essa carência.

Dito isto, o que se pode anuir é o fato de que, embora

diversas sejam as teorias das quais temos consciência sobre a origem das primeiras sociedades39, a partir do momento em que os homens se unem e começam a viverem juntos, as primeiras relações interpessoais têm sua gênese. E nesse sentido, podemos supor que a amizade, na qual se refere o autor supracitado, tenha sua origem nesse momento em que o homem entende que é um ser de relações, e que unido a outras pessoas conseguirá fazer o que sozinho seria difícil ou impossível. Podemos observar isso, de modo mais claro, principalmente quando o homem deixa de ser nômade e passa a ser sedentário, formando suas primeiras comunidades e se relacionando com os seus, numa experiência de mútua reciprocidade, a fim de assegurar a existência e a manutenção da sociedade.40

39 Não é objeto deste trabalho expor as principais teorias que esboçam ou nos fornecem uma explicação acerca das origens das primeiras sociedades, como é o caso da filosofia política contemplada por Hobbes, Locke e Rousseau, por exemplo, onde os homens partem de um estado chamado de natureza, para viverem em sociedade. Esta explicação seria por demais delongada, podendo ser explanada em outro momento com mais afinco e de forma amiúde. 40 Na concepção de Aristóteles, contida em sua obra “Política”, o filósofo apresenta o que ele entende ser o processo formativo das primeiras sociedades. Ele inicia afirmando que a cidade é uma espécie de associação

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A problemática da amizade no pensamento ocidental

antigo está inserida na questão da própria filosofia, uma vez que a própria etimologia da palavra filosofia designa o seu aspecto de amizade pela sabedoria, ou pela verdade. No entanto, Ortega (2002) nos aponta certo distanciamento relacional entre a amizade e a filosofia no decurso da história, relação esta muito presente e significativa que estava incrustada na concepção antiga e que depois foi recuperada nas comunidades cristãs dos primeiro séculos depois de Cristo, onde a vida em comum, ou seja, as relações entre as pessoas era fator preponderante para o exercício da atividade filosófica. Porém, essa relação foi perdendo cada vez mais consistência, na medida em que:

mesmo existindo uma tradição mais ou menos constante (e que pode ser denominada de aristotélico-ciceroniana) de reflexão teórico-filosófica sobre a amizade na forma de amizade perfeita [...], as práticas e o significado social da amizade mudam constantemente, estabelecendo-se, a partir de Aristóteles, uma distância cada vez mais marcada entre os discursos filosóficos e as práticas sociais de amizade. (ORTEGA, 2002, p. 12)

que surge a fim de alcançar determinado bem, sendo que o bem maior é a própria cidade ou sociedade política. Aristóteles traça uma espécie de modo como os homens se organizam até que cheguem ao formato de sociedade política: num primeiro momento, o homem deve se unir a mulher com o propósito de garantir a reprodução; no segundo momento, esta união entre homem e mulher, constituiu a família. A partir de então, a união de muitas famílias tendo em vista a utilidade comum, fez com que surgisse a primeira sociedade, mas numa espécie ainda de povoado ou de colônia. No último estágio dessa organização está então a cidade completa, constituída por diversos povoados, que atinge então o principal fim a que se propôs: a necessidade de viver para uma vida feliz. Por isso, o homem é um ser naturalmente político, pois sua realização e seu fim só pode ser alcançado na sociedade política (ARISTÓTELES, 2009a).

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Segundo o mesmo autor, o conceito de amizade, ou

philía, aparece primeiramente em Heródoto no século V a.C. Porém, nos poemas homéricos já são encontradas algumas referências à possibilidade das relações interpessoais relacionadas no contexto da amizade, principalmente no que se refere a presença, nesses poemas, de algumas palavras sugestivas, como é o caso do adjetivo phílos, do verbo phílen e do substantivo philotés, ambos relacionados com a concepção de amizade.

Contudo, segundo o autor, o termo phílos pode ser compreendido na análise de Homero, como significando duas coisas: posse ou afeto. No que se refere ao primeiro significado, não há aí, relação de amizade no sentido de acepção por pessoa, mas no sentido de relação possessiva com referência a animais, pessoas, objetos ou qualquer coisa que se tenha uma acepção possessiva.41

Por outro lado, no seu sentido afetivo, phílos expressa as relações de parentesco e de proximidade entre as pessoas, sendo este adjetivo frequentemente adotado por Homero ao se referir aos membros de uma família, e também nas relações de hospitalidade. Em sentido análogo, o verbo phílen, exprime sentido de hospitalidade ao receber as pessoas em sua casa, uma espécie de comportamento que reconhece os que chegam a casa. Assim, entre o estrangeiro e o hóspede estabelece-se um vínculo: o philótes, numa relação recíproca, ética e de aliança entre as partes, onde a reciprocidade obrigatória tem mais valor que o sentimento, nas relações interpessoais (ORTEGA, 2002).

41 Na Ética a Nicômaco, Aristóteles afirma que a amizade só pode existir entre os seres da mesma espécie, e de modo muito especial, nas criaturas da raça humana (ARISTÓTELES, 1996). Essa concepção, afronta a pitagórica que afirma a possibilidade de relação amistosa entre o humano e os demais elementos, seja de outra espécie animal, seja de objetos figurativos.

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Segundo Konstan (2005), a amizade assumiu uma

forma extremamente pragmática nas estruturas do mundo antigo, principalmente devido ser ela mesma, a amizade, a matriz central que ordenava as relações entre os habitantes das cidades-estados. Por outro lado, afirma o autor, as relações humanas nas sociedades modernas e contemporâneas são ordenadas mediante os interesses econômicos e legais autônomos42.

As diversas reuniões, banquetes públicos, encontros e demais atividades coletivas que eram características inerentes à vida social do povo antigo no interior da Pólis, foram condições que contribuíram, no entender de Konstan (2005), para a formação de amizades entre as pessoas. Somado a esses fatores, o autor acrescenta que o serviço comum dos cargos políticos e das unidades militares realizados por homens que residiam em aldeias diferentes e muitos distantes, também foram meios que levaram os homens antigos a se relacionarem de modo a favorecer e fortalecer as relações de amizade entre eles.

O tema da amizade no mundo antigo, embora complexo e de grande abrangência, é de grande valia para nós hoje, para que ao olharmos para as nossas relações amigáveis, possamos perceber as diferenças teóricas e conceituais que muitas vezes se aplica a este laço humano tão nobre para os antigos. Tanto para os gregos quanto para os romanos antigos, a necessidade da amizade, ou seja, a presença do amigo era de certo modo tão vital, que a privação da companhia humana era geralmente considerada como o auge do sofrimento. Isso demonstra, cada vez mais, o quão esses povos eram sociáveis (KONSTAN, 2005).

42 Este assunto será retomado no capítulo terceiro deste trabalho, onde as críticas e aproximações das relações humanas no mundo pós-moderno e no mundo antigo, serão a chave de leitura para uma melhor compreensão sobre esta temática.

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Seja como for, o fato é que os filósofos da antiguidade

dedicaram à amizade uma atenção muito especial, elaborando obras inteiras para tratar do tema, na procura instigante de descobrir quais seriam as qualidades do amigo ideal e também qual seria o papel e a função da amizade, bem como sua natureza e essência. O fato é que são vários e diversos os momentos da história da amizade no mundo antigo e que, a partir de então, buscaremos apresentar alguns desses momentos, segundo alguns filósofos que se dedicaram a trabalhar o fenômeno da amizade a fim de melhor conhecê-lo. 1.2 A AMIZADE SEGUNDO OS PITÁGORICOS

De acordo com a tradição transmitida, Pitágoras43 foi

o primeiro a usar a terminologia Filosofia, em seu sentido técnico, significando do ponto de vista epistemológico, amor ou amizade pela sabedoria.

No que se refere à amizade, muitos dos filósofos pitagóricos antigos registraram em seus escritos diversos

43 Pitágoras (570 - 495 a.C.) foi um filósofo grego natural de Samos, que abandonando sua pátria, foi para o Egito onde aprendeu a teologia egípcia. Ao retornar para sua terra e estando a mesma sob tirania, foi para a Itália onde elaborou leis e conseguiu grande fama. Seu ideal político era uma forma de aristocracia baseada nas novas camadas dedicadas especialmente ao comércio. Muitos escritos de Pitágoras são atribuídos a ele mesmo, porém é possível que seu ensinamento tenha sido predominantemente (ou somente) oral. Após a morte de Pitágoras, muitos filósofos simpatizantes do seu pensamento, foram chamados de “pitagóricos”, onde criaram a chamada “Escola Pitagórica”, que apresentava algumas características peculiares, a saber: a) nasceu como uma espécie de fraternidade ou ordem religiosa, organizada com base em regras precisas de convivência e de comportamento; b) as doutrinas eram como que um segredo de conhecimento apenas de seus adeptos; c) o primeiro pitagórico a escrever uma obra foi Filolau, um contemporâneo de Sócrates; d) entre fins do século VI e V a.C., o pitagorismo enriqueceu seu patrimônio doutrinário (REALE; ANTISERI, 1990, p. 38-40).

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adágios sobre essa temática, onde a própria amizade era tida como uma das regras fundamentais dentro do modo de vida pitagórico. Mais do que uma regra, a amizade para os pitagóricos, supõe a confiança e a real fidelidade, devendo até mesmo, numa relação de empatia, substituir o amigo em caso de necessidade vigente, a fim de que o mesmo possa resolver seus problemas.44

Em outras passagens de seus escritos, podemos observar que para os pitagóricos, a amizade de fato era algo tão valioso e fundamental, que muitos estudiosos entendem que esses filósofos antigos prestavam certa espécie de culto à amizade, como sendo uma forma ordenadora e que conduzia as ações dos homens para o bem. Em seus estudos, Konstan (2005), fazendo um resgate da amizade com base nos estudos pitagóricos, afirma que para alguns desses filósofos o bem mais valioso era a boa vontade dos amigos, isto é, a relação amistosa desinteressada e bondosa seria a atitude mais louvável e agradável que um homem poderia exercer. Em termos aristotélicos, poderíamos afirmar que a virtude para os pitagóricos, consistia na relação leal entre os amigos45.

44 Este caso é exemplificado na obra “Sobre o modo de vida pitagórico”, onde o pitagórico Fíntias, tendo sido condenado à morte pelo tirano Dionísio (no início do século IV a.C), pede a seu amigo Dámon para servir de refém até que ele possa organizar seus negócios pessoais. Dámon assentindo ao pedido do amigo, fica ainda mais gratificado quando, num gesto de extrema confiança e fidelidade, após resolver todos seus problemas, Fíntias retorna a prisão para novamente ocupar seu lugar, libertando seu amigo e honrando com a promessa (KONSTAN, 2005, p.163). 45 O pensamento pitagórico acerca da amizade leva-nos a afirmar, segundo Baldini (2000), que o homem vivendo de modo isolado, sem amigos, não conseguiria perdurar por muito tempo, isso propriamente no sentido vital do termo. Tal conclusão pode ser subtraída de uma citação pitagórica que defendia a ideia de que todos aqueles que não eram detentores de amigos, eram de fato, canibais do próprio coração, no sentido de que, eram responsáveis eles mesmos, pela morte da vida em virtude da ausência de amigos com quem pudessem partilhar as dores e alegrias.

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Segundo o autor supracitado, a amizade para os

pitagóricos não era somente entendida nessa perspectiva da troca de favores e de confiança. Mais que isso, esses filósofos entendiam que a amizade era fundamentalmente uma das principais vias para que se pudesse chegar ao verdadeiro conhecimento das coisas. Isso significa que, para os pitagóricos, os amigos são aqueles que acima de tudo, ajudam os seus a chegarem mais perto da sabedoria.

Nesse sentido, a ideia de amizade entre os pitagóricos assume uma dimensão universal na medida em que extrapola o âmbito da vida comunitária a fim de alcançar a compreensão de toda a realidade, propondo assim uma relação de tudo para com tudo. No sentido de que, a amizade seria possível nos seguintes aspectos, a saber: dos deuses para com os homens46, dos homens para com outros homens e do homem para com os membros de sua família, numa relação tida como comunitária (CORNELLI, 2011; LIMA, 1997).

Para Lima (1997), essa relação amistosa no interior da concepção pitagórica sustentava-se sob um conjunto de ideias que envolviam a noção de uma harmonia universal, a existência de regras concretas e a possibilidade de certa identidade do pensamento, no sentido de que os amigos pudessem pensar de modo análogo, e assim pudessem compreender que o bom para um, poderia assim também o ser para o outro. Entretanto, mesmo que os pitagóricos tenham estabelecido um fundamento mais racional na elaboração do conceito de philía, estes não conseguiram se libertar das noções relacionadas à religião, à política e às relações interpessoais, assimilando a ideia de amizade ora como concórdia ora como filantropia.

Desse modo, vinculada à noção de concórdia, a amizade se designa como certa determinação harmônica entre

46 Ideia que contrapõe a concepção aristotélica de amizade, conforme assinalado na nota de rodapé nº 4.

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os homens; por outro lado, vinculada a ideia de filantropia, pode ser relacionada ao sentido de amor ou de sentimento afetuoso pela humanidade como um todo. O que se pode supor, que no seu âmago, a amizade entre os pitagóricos se estende mais para o âmbito do universal, e em sentido mais restrito, ao âmbito particular.

Assim sendo, a noção de philía no contexto pitagórico, assume como aspecto central seu caráter de uma fidelidade incondicional entre os amigos, garantindo assim uma identidade sólida ao grupo comunitário, de modo que as relações entre os membros já não podem mais serem observadas de modo privativo ou reduzido, mas sempre num aspecto de comunhão entre o “nós e eles”, contemplando toda a comunidade envolvida (CORNELLI, 2011). 1.3 A AMIZADE NA CONCEPÇÃO ATOMISTA DE EMPÉDOCLES

De acordo com Lima (1997), todas as discussões

anteriores a Empédocles47 no que se refere ao tema da amizade, estavam direcionadas de modo exclusivo ao âmbito do pensamento comum ou do pensamento literário. Dito de outro modo, as especulações precedentes a este filósofo não buscaram tratar do tema da philía no sentido de desenvolver uma reflexão acerca dos fundamentos que estruturam esse tipo de fenômeno.

47 Empedócles foi um pensador grego nascido em Agrigento em 484/481 a.C. e falecido por volta de 424/421 a.C. De personalidade forte, além de filósofo foi também místico, taumaturgo e médico, além de ter sido ativo na vida pública. As narrações sobre seu fim pertencem à lenda: segundo alguns, teria desaparecido durante um sacrifício; segundo outros, ao contrário, teria se jogado no vulcão Etna. Empédocles introduziu as forças cósmicas do Amor ou Amizade (philía) e do Ódio ou Discórdia (neîkos), respectivamente, como causa da união e da separação dos elementos (REALE; ANTISERI, 1990, p. 59-60).

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Corroborando, Entralgo (1971) pontua que em

Empédocles a amizade ganha estatuto de fundamento da natureza, no sentido de que a própria amizade se constitui como um dos princípios fundadores da natureza e de todo o universo48. Essa ideia de amizade enquanto fundamento natural resulta, no entender de Chauí (2002), pelo fato de que Empédocles era médico e suas práticas médicas tiveram papel fundamental na sua concepção de mundo, uma vez que o filósofo em questão compreende a physis como dotada de pluralidade, isto é, entende que a natureza (o cosmos) se constitui de quatro elementos (água, ar, terra e fogo); e estes quatro elementos são perpassados por duas forças corpóreas que os movem. Essas forças podem agir de modo dual sobre todas as coisas: podem unir esses elementos, e nesse caso o fator de união seria o amor ou a amizade (philía); ou podem fazer com que esses elementos se separem, onde o fator de separação seria o ódio ou a discórdia.49 Tal passagem encontra-se no fragmento 17 de Empédocles:

e estas (coisas) mudando constantemente jamais cessam, ora por Amizade convertidas em um todas elas, ora de novo divergidas em cada uma por ódio [...] Assim, por onde a partir de um, muitos aprenderam a formar-se, e de

48 Doutrina esta que será futuramente adotada e apoiada pelo filósofo romano Cícero. 49 A influência da medicina no pensamento de Empédocles, principalmente no que se refere a sua concepção cosmológica, onde os elementos se unem ou se separam mediante forças opostas é veementemente afirmada, uma vez que a medicina antiga concebia o corpo humano ou o homem como formado por quatro líquidos, os chamados humores (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra), onde a combinação desses elementos formava o caráter de cada homem. Assim, a amizade era a saúde do corpo, ou seja, o equilíbrio desses humores provocava no indivíduo um estado saudável e de harmonia, por outro lado, a discórdia entre esses elementos levava ao estado de enfermidade, de desequilíbrio do organismo. Assim, a harmonia desses elementos era a vida, e a sua separação era a morte (CHAUÍ, 2002, p.109).

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novo partido o um, múltiplos se tornaram, por aí é que nascem e não lhes é estável a vida; mas por onde mudando continuamente jamais cessam, pois aí é que sempre são imóveis segundo o ciclo. (EMPÉDOCLES, [s/d] apud MACEDO, 2001, p. 14)

Em seus estudos metafísicos, Aristóteles (2005), ao

tratar de como o mundo era formado e quais as causas de todo ordenamento, evoca Empédocles a fim de demonstrar, como já relatado no parágrafo anterior, que a amizade para o filósofo atomista era a causa eficiente, que ordenando todas as coisas dava origem ao bem, enquanto que a discórdia era a causa de todos os males.

A partir dessa perspectiva podemos compreender que, em Empédocles, o fundamento que sustenta a vida no âmbito natural, levando ao ordenamento, ao equilíbrio e, de certo modo, a um estado de “saúde” do cosmos: é a amizade. Assim, podemos supor que aplicando esse postulado para a vida relacional entre os indivíduos, a amizade torna-se um elemento fundamental na garantia do bom, do ordenado e do constante relacionamento entre as pessoas. Além do mais, as uniões humanas em torno da amizade, contribuiriam ainda mais para a organização efetiva de toda a natureza, uma vez que enquanto elemento de unidade, a amizade entre os homens pode ser entendida como reflexo de todo ordenamento social. Isso pode ser entendido, quando Aristóteles diz em seu tratado ético, que em uma sociedade onde a amizade se faz presente, a justiça já não se faz mais necessária, pois todo ordenamento é garantido pela boa relação entre os homens.

Em suma, como nos reitera Lima (1997), a philía na concepção do filósofo atomista assume a função de mover as forças naturais que envolvem o mundo e, nesse aspecto, funciona como princípio unificador de toda a realidade

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existente, organizando segundo o princípio de atração, os semelhantes que buscam seus semelhantes. 1.4 A AMIZADE EM PLATÃO ENQUANTO FORMA IDEAL

Para Ortega (2002), todo o pensamento platônico é

permeado pela philía, no sentido de que o método dialógico que Platão50 adota para expressar seu pensamento coloca a amizade na base da busca daquilo pela qual a filosofia se dedica desde o seu nascimento: a verdade dos fatos. Seja como for, o que se deve considerar é que através de seus diálogos, Platão pretende engendrar a importância da amizade na atividade filosófica, considerando que juntos se possa chegar com mais avidez à verdade, que é o objeto da filosofia.

Todavia, a reflexão acerca da amizade em Platão se torna infactível sem a relação direta com a discussão que o

50 Platão nasceu em Atenas em 428 a.C. Apesar de ser chamado assim, devido seu vigor físico, seu verdadeiro nome era Aristócles. Desde a juventude, devido ao contexto familiar bastante político em virtude das influências políticas dos pais, Platão desde a juventude viu na vida política seu ideal. Inicialmente Platão teria sido discípulo de Crátilo e depois de Sócrates, com o qual se dedicou para que através da filosofia pudesse se preparar para a vida política. Contudo, com a condenação de seu mestre à morte, Platão desgostou-se com a política e decidiu afastar-se da política militante. Após realizar uma viagem pela Itália (bastante conturbada) a fim de conhecer as comunidades dos pitagóricos, retorna para Atenas em 385 a.C., e apoiado por amigos estabeleceu sua própria Escola no horto de Academos, para onde começaram a afluir os intelectos mais brilhantes e promissores da Grécia, entre eles Aristóteles. Depois foi para a Sicília novamente, retornando à Atenas num curto espaço de tempo, pois atribuía muita importância a sua Academia a qual exigia sua presença. Suas viagens ao exterior, no entanto, eram sempre em busca do conhecimento e não por lazer. Por fim, após a terceira viagem à Sicília, Platão retorna novamente a Atenas, onde permaneceu na direção da Academia até sua morte em 347 a.C. (PLATÃO, 2009, p.13-14; REALE; ANTISERI, 1990, p.125-127).

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filósofo apresenta sobre o amor (Erôs)51. Fato este considerado por Ortega (2002) quando afirma que nos principais diálogos platônicos que tratam sobre o amor e a amizade, a saber: O Banquete, Fedro e Lísis; não se é possível distinguir de fato o erôs da philía, de modo que se pode chegar a reconhecer na amizade uma espécie de erôs sublimado.

Tendo Sócrates como principal interlocutor de seus diálogos, inclusive no Lísis, na qual se dedica exclusivamente a tratar sobre o tema da amizade, é possível afirmar, no entender de Macedo (2001), que o diálogo em questão além de ter Sócrates como interlocutor, tem-se nele uma ligação muito direta com o que pensava o próprio Sócrates acerca da amizade, no sentido de que Platão estaria corroborando diretamente como o que propunha seu mestre.

Considerando que grande parte dos diálogos platônicos são aporéticos, o tema da amizade tratado no Lísis não é diferente, portanto, durante todo o diálogo procura-se responder a natureza da amizade com base na discussão sobre sua reciprocidade e seu fundamento na semelhança ou dessemelhança entre os amigos. Antes de traçar suas características, Platão (na voz de Sócrates) inicia a discussão estabelecendo que a amizade é o que de mais valioso a alma de um homem pode desejar:

desde que era menino, há algo que sempre desejei possuir. Cada um tem um desejo de posse: um deseja possuir cavalos, outros cães, um ouro ou honras. No que me toca sou diferente a tudo isso. Mas quanto a possuir amigos, sou absolutamente passional e ter um bom amigo seria para

51 As discussões de Platão sobre o amor (erôs) e a amizade (philía), encontram-se principalmente em dois diálogos: O Banquete e Lísis, respectivamente. As principais referências e discussões de Platão sobre o amor consistem em meditações sobre Sócrates e sobre o poder que suas discussões filosóficas possuem de arrebatar, obcecar e educar (BENSON, et al., 2011).

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mim sumamente mais preferível do que possuir a melhor codorniz ou o melhor galo do mundo [...] tal afeição que tenho por amigos e companheiros. (PLATÃO, 2009, p. 285)

Assinalando a importância e a valoração da amizade

em detrimento de qualquer outro bem, Platão se volta para a problemática de reconhecer, no âmbito da amizade, quem seria o amigo por excelência: o que ama ou o que é amado? Partindo desse questionamento e depois de reflexões assíduas, o filósofo afirma que é da natureza da amizade a reciprocidade amorosa de ambas as partes, no sentido de que “não há amizade se aquele que ama não é correspondido” (PLATÃO, 2009, p. 286). Portando, é inconcebível segundo o pressuposto platônico, a manutenção ou até mesmo a gênese de uma amizade que não tenha em sua estrutura o elemento da reciprocidade52, que nada mais é do que a própria natureza da philía.

Tendo estabelecido a natureza da amizade, Platão se dedica a examinar qual seria o fundamento da amizade, a semelhança ou a dessemelhança. Precedida de várias discussões aporéticas, Platão chega à conclusão de que a amizade verdadeira não se funda nem na semelhança e nem na diferença, mas no que ele chama de “intermediário”, ou seja, o amigo não é nem bom e nem mal, tornando-se amigos justamente pela necessidade de reciprocidade que caracteriza a amizade, pois “o que não é nem bom nem mau torna-se então amigo do bom por causa da presença do mal” (PLATÃO, 2009, p. 294).

52 Posteriormente, essa tese platônica acerca da reciprocidade natureza da amizade será retomada por seu discípulo Aristóteles, contudo não como natureza, mas como uma característica essencial na manutenção da philía. Em Aristóteles também, o amor e a amizade não são tidos como sinônimos, como exposto no capítulo segundo deste trabalho.

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Para melhor entendimento desse pressuposto

platônico sobre a semelhança ou dessemelhança da relação de amizade, Reale (2007, p. 216) expõe que para o filósofo grego:

a amizade não nasce nem entre semelhantes nem entre dessemelhantes; a amizade não nasce nem entre bom e bom nem entre mau e bom (ou entre bom e mau). É antes o intermédio (nem bom nem mau) que é amigo do bom. É amigo do bom por causa do mal que traz em si [...] e por causa do desejo do bem do qual é carente, mas que, de alguma maneira, é próprio dele, sendo ele intermédio [...].

Seja como for, o ponto principal que assume a

discussão platônica em torno da amizade não se desvincula de sua teoria das ideias. Assim, as reflexões sobre a amizade não se desenvolvem apenas no sentido do mundo imanente em seus aspectos mais diversos como analisado alhures, pois tal discussão eleva-se numa dimensão transcendental à medida que o objetivo contemplado na amizade entre os homens remete-se a uma causa primeira, de modo que toda amizade só tem sentido em função do que Platão denomina de Primeiro Amigo (REALE, 2007).

Assim, segundo Platão o Primeiro Amigo (prôton phílon) identifica-se justamente ao Bem Primeiro e Absoluto, de modo que a verdadeira amizade consiste na busca incessante para se chegar ao Bem Supremo, que é o verdadeiro referencial da amizade. Nesse sentido, somente poderá ser considerada autêntica a amizade, em termos platônicos, se ela se caracteriza como um meio efetivo para se alcançar o verdadeiro e primeiro Bem que se encontra no mundo inteligível. Dito de outro modo, Reale (2007) ressalta que o fundamento da verdadeira amizade em Platão é a ideia do Prôton Phílon, pois a amizade entre os homens só tem sentido se existir em vista do “amigo em si”, por meio do qual tudo é amável, sendo este a referência primordial de toda e

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qualquer relação de amizade humana53. Assim nos reitera o filósofo ateniense:

[...] podemos chegar a um certo princípio que não vai nos remeter sucessivamente para outra coisa desejada situada mais além? Mas aquele princípio será que não é nem mais nem menos senão o Primeiro Amigo, por causa do qual afirmamos que todas as coisas são amigas [...] justamente por isso todas as outras coisas que nós dizemos amigas, e por causa daquele Primeiro Princípio, nos são caras e amigas, e como imagens Dele nos atraem e enganam. Aquele Primeiro Princípio, porém, é verdadeiramente o amigo [...] E Amigo propriamente dito é unicamente aquele em função do qual todas as outras amizades menores têm a sua consumação. (PLATÃO, 2009, p. 298)

Em suma, a teoria platônica sobre a amizade diluída

em seus diálogos aporéticos, embora seja de grande valia e contribuição para nós, não nos oferece uma definição concreta sobre o que de fato seria a amizade. Contudo, baseado em sua teoria das ideias, Platão nos postula o pressuposto de que o primeiro princípio de toda e qualquer relação entre amigos se constitui na própria ideia (eidos) ou forma da philía que se encontra no mundo inteligível. Ora, dessa maneira, todas as amizades que se concretizam no mundo sensível não passam de imagens ou cópias da verdadeira amizade, de modo que as cópias de amizade se tornam cada vez mais efetivas na medida em que mais se aproximam com a própria ideia de bem, pois o Primeiro Amigo identifica-se com a ideia de Bem para Platão.

53 Segundo Entralgo (1971), a relação que existe entre a alma e o Primeiro Amigo em Platão assume um duplo sentido e correspondência. Na ordem psicológica e sensata é uma aspiração veemente da alma, do não - ser ao ser; mas aos olhos do verdadeiro filósofo é um retorno da alma à sua natureza original que se tinha distanciado ao “cair” no mundo sensível.

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1.5 A AMIZADE COMO VIA PARA A FELICIDADE EM EPICURO

Epicuro54, embora tenha escrito pouco acerca da

amizade, os aforismos que escreveu são dotados de profunda reflexão filosófica sobre o tema e que, mais tarde, seguido por seus epígonos, tal tema ganhou proporções significativas ao longo de todo período helenístico, propagando-se para épocas subsequentes.

Considerando a sabedoria como condição sine qua non para se alcançar a felicidade verdadeira, uma vez que somente o homem sábio é capaz de purificar-se de todas as impurezas do espírito, tendo sua vida prática orientada pelo logos na busca pela eudaimonia, Epicuro acrescenta que diante de todos os bens que a sabedoria proporciona para a felicidade completa da vida, o maior de todos eles é a conquista da amizade (KONSTAN, 2005).

Nesse sentido, o filósofo grego nos ressalta que o homem sábio também é aquele capaz de se relacionar com outros na perspectiva de uma amizade que conduzirá para uma vida feliz, uma vez que o verdadeiro sábio entende que não é capaz de ser feliz sozinho e se compraz da presença de

54 Epicuro (341-270 a.C.) nasceu em Samos e foi o fundador da primeira das grandes escolas helenísticas. O surgimento da escola em Atenas constituiu um verdadeiro e preciso ato de desafio de Epicuro em relação à Academia platônica e ao Perípatos, o início de uma revolução espiritual. O próprio lugar escolhido por Epicuro para sua escola é a expressão da novidade revolucionária do seu pensamento: um prédio com um jardim nos subúrbios de Atenas. O Jardim estava longe da vida pública citadina e próximo do silêncio do campo, muito importante para a nova sensibilidade helenística. Por isso, o nome “Jardim” e os “filósofos do jardim” passou a indicar a escola tornando-se sinônimos dos seguidores de Epicuro, os epicuristas. Epicuro é tido como um precursor de São Paulo no espírito missionário, não no conteúdo da mensagem, uma vez que a fé epicúreia é uma fé ligada à dimensão natural e física, que nega toda transcendência (REALE; ANTISERI, 1990, p.237-239).

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um amigo com o qual poderá atingir o maior bem que orienta toda a vida do homem: a própria felicidade55.

Porém, embora seja a amizade uma qualidade inerente ao homem sábio que deseja alcançar a felicidade, sua origem não advém da atividade racional. Tal afirmação pode ser evidenciada no aforismo 23 da obra de Epicuro intitulada Gnomonologio Vaticano, onde ele cita: “toda amizade é em si mesmo desejada, porém sua origem é a utilidade” (EPICURO, 1994, p. 79). Partindo desse pressuposto, podemos compreender que por mais que a amizade seja algo a ser desejado por todos os homens em vista dos fins já mencionados, sua gênese está diretamente ligada a utilidade que um amigo pode proporcionar ao outro com vistas justamente a esse fim maior.

Tendo em vista seu caráter utilitário, Epicuro (1994) entende que a amizade é uma certeza, assim como o é a garantia de que nenhum mal é eterno ou duradouro. Contudo, mesmo sendo a amizade gestada a partir da necessidade de um benefício, o filósofo helenístico nos assevera que entre os amigos o que verdadeiramente importa não é a utilidade entre eles como fato real ou concreto, mas o que de fato deve ser considerado é a confiança em sua utilidade. Isso significa que a amizade poderá ser desejada por si mesma, mesmo sendo de sua natureza a utilidade, uma vez que o que garante a relação amistosa é a confiança que se tem na presença do amigo quando necessário e não necessariamente sua presença in locu.

Não obstante, vale ressaltar que para Epicuro (1994, p. 81): “não é um bom amigo nem aquele que busca a utilidade acima de tudo, nem aquele que nunca conecta ambas as coisas”. Nesse sentido, essa concepção apresenta certa aproximação com o pensamento aristotélico que a precede, na medida em que exige dos amigos certo equilíbrio na relação,

55 Epicuro afirma que: “a amizade percorre a terra inteira anunciando para todos que se despertem para a felicidade” (EPICURO, 1994, p.83).

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não devendo os amigos serem procurados apenas nos momentos de conveniência e muito menos nunca serem solicitados para alguma serventia, o que denota rompimento com a confiança ou a dúvida de sua existência.

Retomando à relação íntima que se estabelece entre a amizade e a sabedoria56, atribui-se a Epicuro a ideia de traição como incompatível com a prática da philía, ou seja, não se pode conceber que um homem sábio, sendo amigo de seu amigo, o trairá, mas pelo contrário, poderá morrer pelo amigo caso alguma eventualidade solicite tal ato (KONSTAN, 2005). A partir disso, a amizade no pensamento de Epicuro nos leva a refletir que a traição por parte de um amigo subjaz a perturbação por toda a vida, no sentido de que sua infidelidade não condiz com a sabedoria que deve possuir o amigo, pois uma vez que se conhece, tende a praticar o que é justo e verdadeiro, e a traição como ato antagônico da sabedoria, poderá incorrer na dissolução da relação amistosa.

Ratificando seu pensamento, Epicuro (1994, p. 85) acrescenta ainda que “o homem de bem se dedica, sobretudo a sabedoria e a amizade. Destas coisas, aquela é um bem mortal, esta, imortal”. Logo, o que se postula é justamente a importância que se tem a lealdade do amigo que é sábio, uma vez que a amizade inaugurada e fundada na sabedoria conduzirá de modo indelével à felicidade dos amigos. Assim sendo, o filósofo grego reconhece ainda na amizade uma espécie de garantia de segurança da própria sabedoria quando afirma: “das coisas com as quais a sabedoria abastece a si mesma para a bem-aventurança de uma vida inteira, a maior é a posse da amizade” (EPICURO, 1994, p. 72).

56 Epicuro buscou associar a amizade à associação de si mesmo pela ação, especificamente por um agir que exige a sabedoria prudencial, que se alcança mediante as manifestações do exercício do viver e da convivência. Por esse motivo é que a amizade e a sabedoria em Epicuro encontram-se no mesmo plano, uma vez que a amizade é concebida como um valor, um saber que em si mesmo, comporta um bem (SPINELLI, 2013).

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Em síntese, segundo Konstan (2005), a philía em

Epicuro deriva-se da utilidade, de modo que os amigos são reconhecidos por meio dos vínculos de utilidade que os unem e que garantem, por meio da confiança mútua, a tranquilidade da vida. A amizade permanece como um laço entre os indivíduos, sendo estimulada em termos comunais, a serviço da instrução e do desenvolvimento filosófico57. 1.6 CÍCERO E OS LIMITES DA AMIZADE

Com Cícero58, iniciamos a análise dos traços

fundamentais que caracterizam a amizade no contexto da Roma antiga, num contexto em que a cultura romana já havia tido contato profundo com a cultura grega, principalmente a

57 A amizade para Epicuro e seus adeptos, era segundo Spinelli (2011), um elo de sociabilidade, onde se valorizava os cuidados individuais e recíprocos, seja para com o próprio indivíduo, seja para como os demais membros da comunidade. Não era a amizade para Epicuro uma atividade retórica, no sentido de promover emoção, mas era acima de tudo uma atividade filosófica, caracterizada pela promoção do cuidado e da comunhão. 58 Marco Túlio Cícero nasceu em Arpino (uma comuna italiana) em 106 a.C. e morreu em 43 a.C., assassinado por soldados. Assim como Fílon e Antíoco foram os mais típicos representantes do ecletismo na Grécia, Cícero foi o mais característico representante do ecletismo em Roma. Cícero nos oferece o mais belo paradigma da mais pobre filosofia, que mendiga em cada escola migalhas de verdade. Cícero também é considerado a mais vasta e significativa ponte através da qual a filosofia grega se introduziu na área de cultura romana e, depois, em todo o Ocidente. Quando jovem, Cícero ouviu o epicurista Fedro e Zenão; foi influenciado por Fílon de Larissa de modo decisivo; leu também Platão, Xenofonte, Aristóteles e alguns filósofos da Academia e do Perípatos, mas sempre com parâmetros da filosofia de seu tempo. A sua maior contribuição reside na difusão e divulgação da cultura grega, sendo por isso, uma figura essencial na história espiritual do Ocidente. Em 44 a.C, escreveu várias obras, entre elas Laelius de amicitia, na qual trata sobre os limites da amizade (REALE; ANTISERI, 1990, p. 280-282).

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partir da Odisseia de Homero59. Contudo, mesmo que na língua latina, diferentemente do que acontece na língua grega, a palavra amizade é tida por amicitia, no entender de Konstan (2005), esse conceito também pode assumir uma gama de conotações como ocorria no caso da philía grega, podendo se referir tanto às relações específicas entre os amigos, como nas relações sociais e políticas60. Assim sendo, na língua latina, a palavra romana para a amizade deriva do verbo amare, que designava as relações de reciprocidade entre os indivíduos61.

Nesse contexto, convém analisarmos o pensamento de Cícero, que dedica uma de suas obras filosóficas justamente para tratar do tema da amizade, especificamente em seu diálogo Lélio ou Da Amizade. Nessa obra, encontramos o conceito de amizade ciceroniano nos seguintes termos:

a amizade nada mais é que o acordo perfeito de todas as coisas divinas e humanas, acompanhado de benevolência e afeição, e creio que, exceto a sabedoria, nada de melhor receberam os homens dos deuses. Uns preferem a riqueza, outros a saúde, outros ainda o poder e as honras, muitos os prazeres. Esta última é preferência dos animais, e os outros bens mencionados são frágeis e incertos, pois dependem menos de nós do que do acaso. Aqueles, porém, que estabelecem na virtude o sumo bem pensam realmente com muito acerto, mas é precisamente a virtude que

59 Konstan (2005), entende que quando as ideias romanas sobre a amizade se tornam acessíveis para o estudo, elas já são o produto de uma interação complexa entre as culturas grega e romana, no sentido de que, nesse aspecto, a cisão teórica entre uma e outra se torna um processo muitas vezes impraticável. 60 Com restrição, o campo da amizade para Cícero é delimitado com mais precisão e dele são excluídas as relações sociais e políticas que são associadas ao termo latino, significando especificamente, afeição que se restringe a duas pessoas ou algumas poucas a mais (CÍCERO, 2012). 61 Muitas vezes também, segundo Baldini (2000, p. 77), os romanos recorriam ao termo amizade, justamente para caracterizar as relações com os povos submetidos a Roma.

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engendra e sustenta a amizade, de modo que esta sem a virtude é impossível. (CÍCERO, 2012, p. 20-21)

Nesse sentido, o filósofo romano considera que a

amizade consiste no segundo maior bem que um homem pode possuir, precedida apenas pela sabedoria. De modo que, influenciado ou não pelo pensamento de Aristóteles, Cícero postula que uma amizade verdadeira só pode ser proveniente e consequentemente mantida, mediante a prática de uma ação virtuosa, pois não se pode pensar numa amizade sem a existência, entre os amigos, de um comportamento virtuoso.

A exemplo de Aristóteles, Cícero afirma, no Lélio, que uma vida não teria sentido sem o afeto mútuo dos amigos, nem mesmo a prosperidade seria um grande bem sem a presença de alguém que pudesse desfrutar dessa dádiva62. Uma das justificativas apresentada pelo autor na defesa desse pressuposto é o fato de que no ato da amicitia há a reunião de inúmeros bens, de modo que nada pode substituí-la, não havendo vantagem nenhuma na vida se a ação amistosa estiver ausente (CÍCERO, 2012).

Diante da atribuição à amizade de um estatuto de virtuosidade, Cícero elabora um argumento notoriamente contrário à concepção de amizade nos moldes de Epicuro. Para o filósofo romano, Epicuro estaria equivocado ao afirmar que a natureza da amizade provém da utilidade, uma vez que a verdadeira causa da amizade está no amor, de onde vem o próprio nome da amizade. No entanto, Cícero não

62 Este pressuposto encontra-se presente também na tese aristotélica sobre a amizade, na Ética à Nicômaco, quando o estagirita afirma: “ninguém deseja viver sem amigos, mesmo dispondo de todos os outros bens [...] de que serve a prosperidade sem a oportunidade de fazer benefícios, que se manifesta principalmente e em sua mais louvável forma em relação aos amigos? [...] como pode a prosperidade ser protegida e preservada sem amigos? Quanto maior ela for, mais exposta estará aos riscos [...]” (ARISTÓTELES, 1996, p.257).

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nega a presença da utilidade na amizade enquanto uma de suas propriedades, o que rejeita é que esta seja sua causa, uma vez que a amizade não permite o fingimento e a simulação, pois se trata de um ato verdadeiro e espontâneo, como afirma:

acredito que a amizade nasceu antes da natureza do que da indigência, mais por inclinação da alma através de um determinado sentido de amor, do que por reflexão sobre a utilidade que ela poderia ter em seguida. (CÍCERO, 2012, p. 28)

Ainda avesso ao pensamento de Epicuro e dos gregos

de um modo geral, Cícero postula que a amizade não deve ser desejada, tendo em vista a ajuda e a defesa, mas deve ser buscada por benevolência e por afeto, já que: “a amizade, portanto, não procurou a utilidade, mas a utilidade buscou a amizade” (CÍCERO, 2012, p. 47). Isso significa que a utilidade, enquanto propriedade acrescida à amizade, não constitui a essência da mesma, como entendia os epicuristas, mas uma consequência que pode estar presente em virtude dos laços pelos quais os amigos estão vinculados. Por isso, Cícero declara que a primeira lei da amizade consiste na solicitude e na honestidade, pois aos amigos deve-se tanto pedir quanto fazer coisas honestas, de modo que a sensibilidade do laço amistoso deve ser tão tênue, que não haja necessidade da solicitação de apoio do amigo.

Quando a amizade se resume apenas no aspecto utilitário, incorre-se no grande risco de extirpar o afeto e a confiança, de modo que a lealdade passa a ser mensurada de acordo com a presença ou a ausência da retribuição merecida, segundo afirma Cícero (2012, p. 47):

penso ainda que aqueles que fazem do proveito o alvo das relações de amizade rompem o vínculo mais digno do amor. Pois o que nos deleita não é tanto a utilidade auferida do amigo, e sim o próprio amor para com ele, quando

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inspirado pela sua dedicação. E os homens de bem estão tão longe de cultivar as amizades, movidos pela necessidade [...].63

Cícero condena o pensamento de muitos de sua época

que defendiam extirpar a amizade da vida humana, uma vez que ela exigia do homem, em determinados casos, o sofrimento, a angústia e as preocupações; onde alguns viam a preocupação com o outro em decorrência da amizade como sendo um excesso a ser evitado. Para suprimir esse tipo de egoísmo, o filósofo romano afirmara que, apesar de todos os incômodos que uma amizade pode trazer à vida de uma pessoa, decorrentes da prontidão no momento de um auxílio, nunca a amizade poderá ser negada, pois negar a amizade é o mesmo que negar a natureza humana, como afirma: “os que suprimem a amizade da vida, parecem-me privar o mundo do sol; os deuses imortais nada nos deram de melhor, nem de mais agradável” (CÍCERO, 2012, p. 43).

Por fim, após traçar suas considerações sobre o que entende por amizade, sua natureza e características, Cícero engendra em seu diálogo os limites que delimitam o afeto amistoso entre os amigos. A princípio, o filósofo romano procura combater três opiniões que se apresentam como sendo os limites da amizade.

A primeira refere-se justamente ao ideal epicurista, que afirma o dever da igualdade de afeto para com os amigos da mesma forma que temos para conosco. Para Cícero (2012), este não é de fato um limite da amizade; e argumenta dizendo que muitas são as coisas que seriamos capazes de fazer por

63 Peterlini (1999, p. 95), considera que em Cícero há a crença da amizade enquanto comunhão de virtudes entre os bons, porém, quem é amigo de si nunca estará sozinho. Acredita que quem é amigo ama, mas quem ama nem sempre é amigo. Este pensamento será corroborado mais tarde também por Sêneca.

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amor aos amigos e que jamais faríamos por amor a nós mesmos. Como exemplo, cita:

pedir insistentemente a alguém indigno, suplicar ou repreender asperamente outra, investir violentamente contra uma terceira: são coisas não muito convenientes quando se trata de nossos interesses, mas muito convenientes quando se trata dos interesses dos amigos. (CÍCERO, 2012, p. 50-51)

O segundo suposto limite da amizade combatido por

Cícero, consiste no pressuposto de que é preciso querer bem aos amigos do mesmo modo e na mesma medida em que os amigos nos querem bem. Para Cícero (2012), esse argumento reduz a amizade a uma igualdade de obrigações e vontades, caracterizando-a como um simples cálculo igualitário de “troca de favores”. Segundo ele, a amizade é mais rica e generosa do que isso, não havendo importância na rigorosidade entre o que se dá e o que se recebe.

Em última análise, Cícero nega a ideia de que o indivíduo é apreciado pelos amigos, na medida em que ele aprecia a si mesmo. Essa, para Cícero (2012), é a pior de todas as definições delimitadoras da amizade, uma vez que não muito raro o que se observa são indivíduos que estão demasiadamente deprimidos ou desesperançosos em melhorar a própria sorte. Por isso, é próprio do amigo, nesses casos por exemplo, ter uma atitude diferente daquela que está em relação a si mesmo, devendo por outro lado, esforçar-se a fim de levantar o ânimo deprimido do amigo e estimulá-lo a ter esperança e pensamentos melhores.

Após recusar essa tríade de opiniões que julgavam descrever os limites da amizade, Cícero postula o que ele próprio entende ser o limite de uma amicitia verdadeira. Antes de tudo, afirma ele: “ao fazermos amizades, deveríamos usar bastante a atenção para não começarmos a amar alguém que

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um dia pudéssemos odiar” (CÍCERO, 2012, p. 52). Contudo, afirma o filósofo, se mesmo assim um dia isso pudesse se tornar realidade, nossa atitude deverá ser a de suportar tudo o que for preciso em detrimento de uma possível inimizade.

Nesse sentido, Cícero conclui que o limite da amizade consiste em nunca menosprezar a própria reputação, nem julgar uma arma de pouca importância para a vida pública a benevolência dos cidadãos. Dito de outro modo, o limite da amizade circunscreve-se até o momento em que a reputação do indivíduo não seja prejudicada em vistas de uma ação amistosa, isto é, o caráter e a virtude devem antes de qualquer atitude, serem sempre preservados. Assim, Cícero (2012, p. 54), exorta que os indivíduos que devem ser escolhidos para serem amigos são aqueles dotados de “bom caráter, não volúveis, mas constantes”.64 Contudo, o próprio filósofo reconhece que é difícil fazer tal julgamento sem que se tenha feito primeiramente a experiência pessoal de ser amigo, pois: “a amizade antecede o juízo e tira a possibilidade de realizar antes tal experiência” (CÍCERO, 2012, p. 55).

Em suma, o pensamento ciceroniano sobre a amizade denota, segundo Konstan (2005), a necessidade crucial para a vida humana das relações de amizade, na medida em que qualquer atividade, seja ela de lazer ou laboriosa, torna-se mais agradável e adequada se houver nesses momentos a boa conversa entre amigos. Além do mais, as armadilhas e intempéries da vida se tornam menos nocivas quando se tem o ânimo e a esperança de que tudo pode ser melhor, e tudo isso só pode ser adquirido mediante a experiência de uma verdadeira amizade.

64 No Lélio, Cícero eleva a amizade num grau de divindade devido sua raridade, ao afirmar que: “aquele que em ambas as circunstâncias [na prosperidade ou na adversidade] se tenha demonstrado com relação à amizade, sério, constante e estável, este devemos julgá-lo o exemplar de uma raça de homens raríssima e quase divina” (CÍCERO, 2012, p.56).

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1.7 A AMIZADE COMO CONSTITUTIVO DO HOMEM SÁBIO EM SÊNECA

O pensamento do filósofo Sêneca65 sobre a questão

da amizade é relativamente sucinto e bastante raro no entender de Konstan (2005), uma vez que o momento mais profícuo em que o filósofo supracitado aborda o tema da amicitia é em sua obra Cartas a Lucílio (CL), datada aproximadamente de meados do primeiro século, onde busca resolver a discussão sobre a necessidade dos amigos em concederem benefícios mútuos, uma vez que se são amigos, possuem todas as coisas em comum. Nesse aspecto, e compartilhando do pensamento de seu predecessor Cícero, Sêneca não nega o valor da prestimosidade entre os amigos, pois entre eles os serviços podem ser interpretados como um

65 Lúcio Aneu Sêneca nasceu em Córdoba, em 4 d.C e faleceu com admirável força de espírito em Roma no ano 65 d.C., quando foi condenado por Nero ao suicídio. Em Roma, participou ativamente e com sucesso da vida política, sendo também um dos expoentes da Estoá em que mais se evidenciam aquela oscilação em relação ao pensamento de Deus. Em muitas passagens, Sêneca parece perfeitamente alinhado com o dogma panteísta de que Deus é a Providência imanente, é a Razão intrínseca que plasma a matéria, é a Natureza, é o Destino. Sêneca também destaca o dualismo entre alma e corpo com acentuações que recordam o pensamento platônico. Na base da psicologia, Sêneca descobre a “consciência” como força espiritual e moral fundamental do homem, colocando-a em primeiro plano como antes dele ninguém havia feito no âmbito da filosofia grega e romana. Indo além, Sêneca fala expressamente da “vontade” como faculdade distinta do conhecimento, entretanto não soube dar fundamento teorético a essa descoberta. No âmbito da Estoá, Sêneca talvez tenha sido o pensador que mais acentuadamente contrariou a instituição da escravidão e as distinções sociais. No que se refere às relações entre os homens em geral, Sêneca dá fundamento à fraternidade e ao amor; para ele o homem deve ter sempre presente o conceito de que nascemos para viver em sociedade (REALE; ANTISERI, 1990, p. 306-308).

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sinal de boa vontade e também de manifestação sincera da amizade verdadeira.

Corroborando em vários aspectos com Cícero sobre a amicitia, no início de sua obra Cartas a Lucílio, Sêneca afirma que mesmo o homem sendo dotado da virtude da sabedoria e por isso, sentindo-se autossuficiente e satisfeito, ainda assim precisa de um amigo ou de alguém que lhe esteja próximo, pois deseja que acima de tudo não lhe falte nada. Mesmo suportando e podendo ficar sem um amigo, o sábio jamais desejará viver sem um, pois reconhece a importância do zelo e do cuidado pela virtude da amizade (SÊNECA, 2004).

Nesse sentido, o filósofo em questão assinala a ideia de que nenhuma condição seja ela boa ou má, é capaz de subtrair da vida humana uma amizade verdadeira; nem mesmo o mais sábio é capaz de negligenciar um amigo, pois por meio do amigo ele tem a oportunidade de exercitar e de praticar a virtude. Por isso, o sábio mesmo tendo a possibilidade de prescindir de amigos, deseja estabelecer vínculos amistosos, pois não há sabedoria maior do que a compreensão por parte do homem de que depende dele mesmo ter um amigo ou tornar-se um (OLIVEIRA, 2009).

Assim sendo, Sêneca parece validar o pressuposto aristotélico de que a amizade verdadeira só pode se dar entre os sábios, entre os bons e que se assemelham pela virtude66. Por isso, da mesma forma que em Aristóteles a amizade se fundamenta na gratuidade, Sêneca (2004) atesta àqueles que se propõem a buscar a amizade visando apenas o interesse pessoal, que estão na contramão da sabedoria, pois a utilidade só garantirá a presença do amigo até o momento em que sua presença for útil. Portanto, para Sêneca a amizade que se fundamenta no interesse não passa de um vilíssimo negócio,

66 Contudo, segundo Peterlini (1999), enquanto o amigo de Aristóteles é um homem difícil de encontrar, o sábio de Sêneca consegue encontrar até mesmo vários amigos, pois é capaz de substituí-los facilmente, quando os perde.

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descaracterizando assim seu aspecto virtuoso e sábio; passando a se caracterizar pela instabilidade na relação, já que:

quem só cuida de si e procura amizades com fins egoístas não pensa corretamente. Tal como começou assim acabará: arranjou amigo para o auxiliar contra a prisão, mas assim que os ferros rangerem tal amigo evaporar-se-á! Amizades deste tipo chama-se-lhes correntemente “oportunistas”; alguém que seja tomado por amigo por motivo da sua utilidade deixará de agradar quando deixar de ser útil. (SÊNECA, 2004, p. 24)

Para Sêneca, a única utilidade ou benefício que

devemos ter nas relações de amizade é a própria relação enquanto elemento propulsor de aperfeiçoamento de nossas virtudes, de modo que a sabedoria é produto do conhecimento conquistado mediante a relação entre as pessoas, e a amizade pode-se dizer que é a relação que melhor caracteriza essa busca pela sabedoria (OLIVEIRA, 2009).

Em suma, segundo Sêneca (2004), mesmo que a felicidade dos homens sábios consista no fato deles estarem satisfeitos consigo mesmos, há neles a necessidade de procurar amizades e assim aproximarem-se de amigos. Na verdade, segundo o filósofo, primeiramente faz-se necessário ao homem em toda sua sabedoria, ser feliz consigo mesmo67, para depois ser capaz de procurar amigos, pois só assim a amizade assumirá nele sua verdadeira dignidade e honra, na medida em que suprimida de todos os interesses, resta- lhe apenas a atração natural da amicitia, movida pelo próprio

67 É comum no pensamento de Sêneca, bem como de Epicuro, sustentar a ideia de que a confiança em si mesmo é o referencial que deve ser gerado para se ter confiança na relação de amizade. No sentido de que, quem não é capaz de experienciar a confiança e o cuidado de si, também não o será na relação com o outro. Portanto, quem não confia e ama a si mesmo, não será capaz de expressar confiança e amor aos seus amigos (SPINELLI, 2013, p.110).

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impulso natural, que se caracteriza como um estímulo tão forte que leva os homens a tenderem para a amizade com toda alma, desejando viver em unidade com seus semelhantes.68

Diante dessas concepções que retratam os principais pensamentos e teorias que se preocuparam em discutir a amizade no mundo antigo, passaremos a partir do próximo capítulo para a análise do pensamento de Aristóteles sobre o tema em questão, a fim de demonstrar a originalidade e a profundidade com que o filósofo de Estagira exerce sua reflexão acerca da temática.

68 Mais uma vez Sêneca esboça traços da filosofia aristotélica, pois tanto para o filósofo grego como para o romano, as pessoas são movidas por uma espécie de impulso natural que as fazem serem verdadeiramente completas e felizes somente vivendo em sociedade.

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= II =

A AMIZADE NO PENSAMENTO DE ARISTÓTELES

Neste segundo capítulo, propomo-nos a apresentar o

que de mais essencial há no conceito de amizade em Aristóteles, contido nos livros VIII e IX da Ética a Nicômaco (EN) e no livro VII da Ética a Eudemo (EE), inserido na área do conhecimento das chamadas ciências práticas de Aristóteles, compostas pela Ética e pela Política. Além disso, procurar-se-á realizar uma reflexão a partir do conceito de amizade, a fim de melhor compreendermos a concepção do Estagirita acerca dessa problemática, que como dito alhures, se faz presente desde os primórdios da existência humana, a partir do momento em que o homem sentiu a necessidade de viver em associação com seu semelhante.

Aristóteles nasceu em 384 a.C., em um pequeno vilarejo com o nome de Estagira (daí o motivo que Aristóteles também é chamado de “Estagirita”). Seu pai, Nicômaco, era médico e amigo particular do Rei Amintas da Macedônia. Sua mãe, Féstia, era de família rica. Com 17 anos, Aristóteles se mudou para Atenas com o intuito de estudar na acadêmica de Platão; uma escola onde havia discussões filosóficas sobre assuntos que Platão escrevia em seus diálogos – ética e teoria política, psicologia, metafísica, epistemologia e lógica.

Aristóteles ficou em Atenas por vinte anos, sempre associado à academia. Aristóteles encontrava-se entre os alunos mais assíduos de Platão, distinguindo-se pelo seu ardor e inteligência, de tal modo que o Mestre, ao falar dele, apelidava-o sempre de “a inteligência da Escola” (CRESSON, 1943, p. 9). Permaneceu em Atenas até a morte de Platão em 347 a.C. Posteriormente, acompanhado por seu colega Xenócrates, também da academia platônica, Aristóteles partiu

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para Atarneus, na Ásia Menor, onde foi acolhido por Hermias (tido como o “tirano” do lugar) que também havia tido conexões com a academia.

Depois da morte de Hermias, Aristóteles se mudou para a cidade de Mitiline, onde conheceu Teofrasto, um nativo da ilha, que se tornaria seu pupilo mais famoso. Posteriormente retornou a Estagira por um breve período, e em 343 a.C., Felipe II, rei da Macedônia na sucessão de seu pai Amintas, convida Aristóteles para ser o preceptor de seu filho, Alexandre, o Grande. Dessa forma, surgiu a associação entre a mente mais poderosa da época e o homem mais poderoso.

Em 335 a.C., o Estagirita retorna a Atenas, montando sua própria academia no Liceu, onde enquanto caminhava, Aristóteles expunha suas ideias aos seus discípulos (por isso ficou conhecida como Escola Peripatética). Enquanto isso, a academia de Platão prosperava sob nova direção. Em 323 a.C., Aristóteles deixa Atenas após a morte de Alexandre, o Grande, se retirando para Cálcide, na ilha de Euboea, onde a família de sua mãe tinha propriedades, morrendo um ano após sua chegada. Após sua morte, Teofrasto se tornou diretor da escola no Liceu (BARNES, 2009, p. 32-35).

O ensino de Aristóteles compreende duas séries de lições: na parte da manhã, ocupa-se de questões meramente teóricas, é o ensino acromático ou esotérico, reservado aos iniciados; na parte da tarde, Aristóteles dirige-se a um público mais vasto, as questões tratadas são mais acessíveis, desempenhando aí a retórica um importante papel, é o ensino exotérico.

Aristóteles prossegue com suas lições durante doze anos, mas possui uma tal capacidade de trabalho que ainda arranja tempo para escrever e publicar inúmeras obras que abrangem quase todos os ramos do ser humano. Aristóteles, foi sem dúvidas, um dos maiores de sempre e talvez aquele

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que maior influência exerceu na evolução do pensamento humano (CRESSON, 1943, p. 12-13).

Os seus escritos exotéricos (destinados ao grande público que não pertenciam à Escola aristotélica), perderam-se completamente, restando apenas alguns títulos e fragmentos, entre eles cita-se: Grilo ou sobre a Retórica, Protrético e Sobre a filosofia, Acerca das Ideias, Acerca do Bem, Eudemos ou sobre a alma. No entanto, chegou até nós a maior parte de suas obras esotéricas, que trata da problemática filosófica e de alguns ramos das ciências naturais, entre elas: Organon, Categorias, Analíticos (primeiros e segundos), Refutações sofísticas, Física, Sobre a Alma, Parva naturalia, Metafísica, Ética a Nicômaco, Grande Ética, Ética a Eudemo, Política, entre outras (REALE, ANTISERI, 1990, p. 175-176).

O fato de tratarmos do pensamento de Aristóteles acerca da amizade neste capítulo, não o contemplando no interior do capítulo que a este precede (sobre a amizade na antiguidade), deve-se ao fato de que, muitos estudiosos consideram a concepção aristotélica sobre a Philía, muito peculiar e atual, tendo uma especificidade única no que tange ao assunto, uma vez que Aristóteles eleva a amizade ao grau de virtude e de necessidade vital. Segundo Konstan (2005, p. 29):

[...] a análise de Aristóteles sobre a amizade, no contexto de sua discussão sobre a philía de um modo geral [...] é o tratamento mais completo e inteligente dado ao tema em toda a Antiguidade.

Vale ressaltar ainda que Aristóteles no decorrer de

toda sua ética, completa sua análise teórica por um tipo de casuística da amizade, de modo que, se ele foi considerado o filósofo da amizade, foi também ele que na sua vida reconheceu de modo circunspecto os seus limites e traços peculiares (AUBENQUE, 2008).

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Reale (1994) considera que Aristóteles tenha tratado

do tema da amizade de modo tão único e dedicado por três razões fundamentais, a saber: primeiro, porque a philía é estruturalmente intrínseca à virtude e à felicidade; segundo, porque seu mestre Platão já havia analisado filosoficamente o tema; e em último caso, devido a importância que a amizade tinha no interior da sociedade grega antiga, o que não se contempla de modo tão intenso nas sociedades subsequentes.

Segundo Marcondes (2009, p. 37), foi no período em que Aristóteles retorna a Atenas, após ter instruído o rei Alexandre e funda o Liceu, que o estagirita escreve sua obra Ética a Nicômaco, considerado o “primeiro tratado de ética da tradição filosófica ocidental”. Não por acaso, é nesta obra que se encontra o âmago da discussão de Aristóteles sobre o tema da amizade, talvez pelo fato de que nesta fase de sua vida, tivesse experenciado intensas relações de amizade, como foi o caso das amizades que estabeleceu principalmente com Platão e com Alexandre. 2.1 O HOMEM EM ARISTÓTELES

Antes de adentrar no estudo do conceito aristotélico

de Philía propriamente dito, faz-se imprescindível uma breve exposição acerca da concepção antropológica de Aristóteles, sendo um estudo basal para o entendimento do conceito de amizade, uma vez que toda a estrutura da ética aristotélica nos remete ao estudo da conduta do homem, que tem como essência e fundamento de suas ações, a sua alma69.

69 Aristóteles faz uma distinção entre os seres inanimados e os seres animados, uma vez que estes últimos possuem um princípio que lhes dá a vida, na qual o filósofo diz ser: a alma. Considerando a concepção metafísica hilemórfica da realidade (alma como forma do corpo), onde todas as coisas são sinolos de matéria e forma, sendo a matéria a potência e a forma o ato, o estagirita afirma que os corpos vivos têm vida mas não são vida. Desse modo, a alma é definida como a substância como forma

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Lara (2009) entende que o âmago da noção aristotélica

de homem encontra-se na natureza (physis), que é animada pela dinâmica teleológica da alma racional imanente ao homem e que é capaz de conhecer. Assim, Aristóteles concebe o homem a partir de um princípio de decisão racional, onde há um vínculo tênue entre intelecto desejante e vontade refletida, de modo que tal decisão determina obrigatoriamente uma passagem de potência ao ato70.

Dito de outro modo, é a racionalidade o princípio que faz o homem ser homem, quer dizer, o homem diferencia-se dos outros seres pela capacidade de pensar; o pensamento é que caracteriza o homem, uma vez que a função define o ente. Aristóteles ao afirmar que a alma é a forma do corpo (princípio primeiro de seu movimento), não é possível a partir de então, defender a dissociação entre matéria (corpo) e forma (alma). Por conseguinte, a essência do homem é a alma e o corpo é o constitutivo do homem, de modo que ao se pensar sobre o homem, implica pensá-lo necessariamente enquanto composto de corpo e alma ou matéria e forma, respectivamente (LARA, 2009).

Aristóteles, na sua obra intitulada De Anima, escreve:

de um corpo físico que tem a vida em potência, e por ser forma, é, portanto, ato de um corpo. Em suma, a alma é o ato primeiro de um corpo físico que tem a vida em potência. A alma enquanto princípio de vida deve ter capacidades ou funções que regulem as constantes operações vitais. Por esse motivo, Aristóteles introduz a distinção entre três tipos de alma: a) alma vegetativa (presente nas plantas); alma sensitiva (nos animais, que também possuem a alma vegetativa) e alma intelectiva ou racional (no homem, que é o único que possui os três tipos de alma) (REALE; ANTISERI, 1990). 70 É nesse ponto dinâmico entre ato e potência, que a ética e a metafísica encontram-se entrelaçadas, fornecendo os meios para a compreensão do homem em Aristóteles, pois os conceitos de ato e potência regem tanto a metafísica como a ética, porque a felicidade humana consiste em uma atividade, que é a atualização de uma potência (LARA, 2009, p.22-23).

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revela-se que, na maioria dos casos, a alma nada sofre ou faz sem o corpo, como, por exemplo, irritar-se, persistir, ter vontade e perceber em geral; por outro lado, parece ser próprio a ela particularmente o pensar. Não obstante, se também o pensar é um tipo de imaginação ou se ele não pode ocorrer sem a imaginação, então nem mesmo o pensar poderia existir sem o corpo. Enfim, se alguma das funções ou afecções é própria à alma, ela poderia existir separada [do corpo]; mas se nada lhe é próprio, a alma não poderia existir separadamente. (ARISTÓTELES, 2012, p. 47)

Considerando que o homem é dotado de paixões e

racionalidade, Lima (2012), ao citar Aristóteles, afirma que deve haver uma conformidade entre esses dois âmbitos, entretanto, é papel da razão o controle das inclinações do homem. Esta estrutura permite com que o homem tenha consciência de suas ações, tornando-o apto para desenvolver sua vida ética enquanto ser político (zôon politikón), almejando sempre a felicidade e percorrendo sempre o caminho das virtudes intelectuais e a orientação das virtudes morais adquiridas pelo hábito (êthos)71.

Após compreendermos que o homem aristotélico envolve a noção de um ser composto de matéria e forma, sendo que a sua parte racional é a detentora de toda orientação para a vida virtuosa, cujo desejo desse homem é sempre atualizar sua potência a fim de se alcançar o bem – supremo,

71 Há duas espécies de excelência (virtude): a intelectual e a moral. Em grande parte a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento quanto o seu crescimento à instrução (por isso requer experiência e tempo); quanto à excelência moral, ela é produto do hábito [...] É evidente, portanto, que nenhuma das várias formas de excelência moral se constitui em nós por natureza, pois nada que existe por natureza pode ser alterado pelo hábito [...] quanto as várias formas de excelência moral, todavia, adquirimo-las por havê-las efetivamente praticado [...] tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente (ARISTÓTELES, 1996, p. 137).

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que é a felicidade (eudaimonia), convém agora tratar do assunto precípuo deste capítulo: a amizade enquanto virtude necessária para se atingir esse sumo bem. 2.2 CONCEITO DE PHILÍA NO PENSAMENTO ARISTOTÉLICO

A amizade (philía), no contexto da ética aristotélica,

adquire discussão muito peculiar e significativa, ao ser descrita como algo estritamente imprescindível na propagação do convívio humano, como condição sine qua non para realização plena da natureza humana e para o alcance da felicidade (eudaimonia72); além de ser considerada como disposição73 inata ao ser (BITTAR, 2003).

72 Chauí (2002), após uma análise etimológica da palavra eudaimonía, nos remete seu significado como sendo o de felicidade, prosperidade, abundância de bens; derivando do verbo eudaimonéo, que tem seu significado relacionado às ações para se obter algo ou alguma coisa, como por exemplo: ter êxito, conseguir algo, ser feliz. Em suma, eudaimonía é a felicidade como perfeição ética, como resultado da vida virtuosa (CHAUI, 2002, p.500). Na própria Ética a Nicômaco, no livro X, Aristóteles define a felicidade como: “atividade de acordo com a excelência, é razoável que ela seja uma atividade conforme à mais alta de todas as formas de excelência, e esta será a excelência da melhor parte de cada um de nós [...] Uma tal atividade é contemplativa (ARISTÓTELES, 1996, p. 310). De acordo com Reale e Antiseri (1990), todas as ações humanas tendem para fins, que por sua vez são também bens. Porém, existe um fim ultimo ou bem supremo, para qual tende todo o conjunto das ações humanas e de fins particulares; a esse bem supremo, Aristóteles denomina de felicidade, que por ser o maior bem do homem é entendida como a arte do viver bem e de fazer o bem. 73 Para construir o conceito de virtude, Aristóteles divide tudo aquilo que se apresenta a mente humana em três espécies de coisas: emoções, faculdades e disposições. Grosso modo, entende-se por emoções, todos os sentimentos que podem aflorar em quaisquer homens, acompanhados de prazer ou sofrimento. As faculdades representam as capacidades que os homens possuem por natureza, inclusive a de sentirem paixões. Por serem naturais ao homem, as paixões e as faculdades não podem servir

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De acordo com Lara (2009), comumente

compreende-se por amizade (philía, ou em grego, φιλία) a comunidade de duas ou mais pessoas que estão ligadas por algum tipo de afeto e/ou atitudes que levam ambas as partes em direção ao bem, isto é, união que promove o crescimento mútuo dos envolvidos no relacionamento recíproco. Segundo a autora, Aristóteles tem, entretanto, uma visão mais ampla e extensa e define a amizade como virtude e hábito, não como condicionamento, mas como disposição de caráter, disposição ativa de empenho da pessoa ao bem.

A amizade é considerada pelo filósofo estagirita como uma necessidade vital, de modo que de nada adiantaria qualquer bem na vida, se não houvesse a presença de amigos com quem pudéssemos partilhar desses bens e viver os bons momentos juntos. Até mesmo as pessoas mais prósperas na vida, que julgam possuir tudo o que precisam, precisam daqueles com quem podem partilhar sua prosperidade, a fim também de protegê-la e preservá-la.

Assim nos diz Aristóteles (1996, p. 257): como pode a prosperidade ser protegida e preservada sem amigos? Quanto maior ela for, mais exposta estará aos riscos. E as pessoas pensam que na pobreza e em outros infortúnios os amigos são o único refúgio. Os amigos também ajudam os jovens a evitar erros, e ajudam as pessoas idosas, amparando-as em suas necessidades e suplementando sua capacidade de ação reduzida pela senilidade.

como critério para julgar o homem como bom ou mau no sentido virtuoso. Por isso, é nas disposições: estados de alma que definem o modo como o homem utiliza suas faculdades no relacionamento com suas paixões, é que reside a virtude moral (ou excelência moral). Portanto, o gênero das várias espécies de excelência moral são as disposições, e não as faculdades ou emoções (ARISTÓTELES, 1996). [EN, II, 5)

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A disposição amistosa entre os adultos ainda é capaz

de estimular a capacidade de executar ações com maior excelência e eficácia, uma vez que o pensamento, segundo o estagirita, torna-se mais virtuoso em termos de resultados benéficos, quando somado ao pensamento do amigo. Isso significa que a relação de amizade proporciona uma melhor análise sobre determinado assunto, num dado contexto, resultando em melhores escolhas e consequências menos errôneas para aqueles que são amigos, pois “com os amigos, somos capazes de pensar e agir melhor” (ARISTÓTELES, 2009b, p. 174).

Corroborando, em sua obra Ética a Eudemo, Aristóteles também trabalha o tema da amizade de modo quase que análogo como o faz na Ética a Nicômaco e nela (Ética a Eudemo) o Estagirita afirma que, além de ser capaz de melhorar a vida daqueles que são amigos, a amizade proporciona também a aproximação entre as pessoas, reunindo-as para o mesmo convívio a fim de serem capazes de melhor agir (ARISTÓTELES, 1950)74.

É sabido que Aristóteles considera a naturalidade do homem como sendo movida a viver com os outros e com as coisas, na Pólis, para que assim possa ser considerado cidadão. Assim sendo, o mesmo filósofo considera que a amizade é um fenômeno natural ao homem; e por fazer parte da natureza humana, nenhum homem conseguiria viver de modo digno e virtuoso, recusando-se a praticar essa relação humana. Prova disso é que, quando saímos de nossas realidades históricas e geográficas, podemos observar que em qualquer lugar que formos, mesmo que não conhecemos nada da história e cultura de determinado povo, sempre se observa entre eles

74 A obra Ética a Eudemo, utilizada neste trabalho, encontra-se em versão vernácula no espanhol, de modo que todas as citações desta obra no corpo do texto foram traduzidas para o português, e todas as vezes que aparecerem citações diretas desta, será acrescentada uma nota com o texto original em espanhol.

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“afinidade e afeição naturais entre as pessoas” (ARISTÓTELES, 1996, p. 257).

Conforme a análise de Aubenque (2008), Aristóteles simpatizando-se com a tese75 de que o semelhante ama o semelhante, passa a caracterizar a amizade como sendo uma espécie de igualdade proporcional entre os amigos ou quando não há igualdade plena, que haja então certa tolerância na desigualdade, de modo que esta seja compensada por uma espécie de proporção, onde:

em todas as amizades onde intervém um elemento de superioridade, é segundo a lei da proporção que é preciso amar, de modo que o melhor seja mais amado do que ele ama. Quando a afeição que nasce é oferecida ao outro de acordo com o valor merecido, só nessa altura se gera de algum modo, uma igualdade, coisa que parece ser, então, própria da amizade. (ARISTÓTELES, 2009b, p. 184)

2.3 TIPOS DE AMIZADE EM ARISTÓTELES Aristóteles estabelece a existência de três espécies

(formas ou tipos) de amizade, que são proporcionais aos objetos que se busca quando ama. Dito de outro modo, existem três motivos pelos quais as pessoas se dispõem a uma relação de amizade, que se relacionam diretamente com as causas pelas quais se estimam as pessoas ou se buscam a amá-las. As razões pelas quais se ama e se é amigo, diferem especificamente entre si.

Konstan (2005) esclarece que Aristóteles adotou a estratégia de seu mestre Platão, explicar a philía partindo da análise daquilo que motiva o surgimento do afeto, que recebe

75 Sentença empregada por Empédocles que afirma: “o semelhante busca o semelhante”; e que está citada por Aristóteles na sua obra Ética a Nicômaco (Livro 1, I, 1155b 7,).

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em Platão o nome de “agente amorável”. Segundo o autor supracitado, Aristóteles ao determinar a existência de três espécies distintas de amizade, não desconsidera os apegos sentimentais que se desenvolvem nas associações mutuamente vantajosas.

Assim sendo, pressupunha-se que existam três objetos do amor, segundo nos evidencia Aristóteles (1996, p. 258-259):

parece que nem todas as coisas são amadas, mas somente aquelas que merecem ser amadas, e estas são o que é bom, ou agradável, ou útil; parece, porém, que o útil é aquilo que resulta de algum bem ou prazer, de tal forma que somente o bom e o agradável merecem ser amados como fins.

Após delimitar o motivo pelos quais as coisas são

amadas e considerando que as razões por que se ama diferem especificamente entre si, Aristóteles indica-nos então três formas de amizade, em número igual às qualidades que merecem ser amadas, de modo que o amor entre duas pessoas se baseia em uma dessas três qualidades e o motivo pela qual amam e desejam o bem, é o que se identifica como o fundamento de sua amizade.

Vale ressaltar que, devido a necessidade da reciprocidade de afeição mútua como condição sine qua non para realização da amizade, torna-se impraticável a amizade enquanto amor às coisas inanimadas, pois é evidente que não haverá, nesse caso, reciprocidade de afeição e nem o desejo do bem a este tipo de ser, o que é possível apenas entre os amigos enquanto seres humanos (ARISTÓTELES, 1996).

Examinaremos agora, de modo sucinto e particular, as três razões motivadoras pelas quais as pessoas se tornam amigas; e quais as características marcantes que permitem a singularidade de cada uma.

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2.3.1 Amizade segundo a utilidade

As pessoas que amam desejam o bem mútuo ao outro

de acordo com aquilo que amam também para si. Por esse motivo, Aristóteles (1996) assinala que se a amizade tem como fundamento a utilidade, visando sempre o interesse, aquilo que um amigo deseja ao outro, será sempre um bem que poderá retornar também para ele próprio. Para o autor, nesse tipo de amizade, o bem desejado de um amigo para o outro não é por aquilo que o outro é, quer dizer, não é pelo caráter que se é amigo, mas pelo interesse que se tem em manter a afeição do amigo; e nesse tipo de amizade, a relação não poderia ser de outro modo.

Na EN, o Estagirita confirma esse aspecto útil da amizade ao dizer que “os amigos cuja afeição é baseada no interesse não amam um ao outro por si mesmos, e sim por causa de algum proveito que obtêm um do outro” (ARISTÓTELES, 1996, p. 259). Nesse sentido, o autor reitera que esse tipo de amizade é tido como acidental, no sentido de que não se ama a essência do ser, mas aquilo que ele lhe pode proporcionar.

Ora, se o fundamento desse tipo de amizade é aquilo que o outro pode proporcionar ao amigo e vice-versa, então esse tipo de amizade poderá deixar de existir a qualquer momento, uma vez que aquilo que é útil pode se atualizar e deixar de ser com o tempo; e a amizade que era mantida como um meio em busca da satisfação de uma necessidade pessoal, deixa de existir, uma vez que o que a move já não existe mais.

Do ponto de vista etário, esse tipo de amizade ocorre mormente entre pessoas idosas, as quais não sentem necessidade de convivência, a não ser que o convívio lhes possa ofertar algo de útil. Contudo, Aristóteles (1996) acrescenta que esse tipo de amizade também ocorre frequentemente entre os jovens, que na plenitude de suas vidas, almejam o que é proveitoso.

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No livro VIII da EN, Aristóteles (1996) ressalta que a

amizade com vistas simplesmente à utilidade é a que mais acontece entre as pessoas que são contrárias, no sentido de que amigos desse tipo ambicionam dos outros o que lhes falta e fornecem em troca algo que os outros precisam. Todavia, a igualdade proporcional também é condição nesse tipo de amizade. Por isso, essa espécie é comumente marcada por queixas, onde os amigos não cumprem no decorrer da amizade seu papel de fornecer o bem ao outro, de modo igualitário ao que lhe foi concedido no momento inicial em que se tornaram amigos. Por isso, essa espécie de amizade é tida como instável do ponto de vista da manutenção.

Assim nos assinala o filósofo de Estagira, na EN: a amizade por interesse dá sempre margem a queixas; efetivamente, como as pessoas neste caso se aproximam visando aos seus próprios interesses elas querem sempre obter vantagens maiores, e sempre pensam que estão obtendo menos do que aquilo que lhes é devido; elas censuram os seus parceiros alegando que não obtêm tudo que querem e merecem, e a parte que neste caso está fazendo bem à outra não é capaz de fazer tanto quanto a parte beneficiada deseja. (ARISTÓTELES, 1996, p. 275)

Acrescenta-se a isso o fato de que a amizade por

utilidade pode ter fundamento duplo, a saber: um legal e outro moral. No que concerne ao aspecto legal, a amizade é encetada mediante condições pré-estabelecidas, baseando-se na retribuição imediata. Por outro lado, o fundamento moral (baseado no caráter) é isento de condições predeterminadas, todavia, espera retribuição equivalente ou maior; é como se a restituição tratasse de um empréstimo e não de um presente fornecido (ARISTÓTELES, 1996). Segundo o autor, isso procede pelo fato de que a maioria dos homens embora desejem o que lhes é nobre, acabam por escolher o que lhes traz vantagem, uma vez que fazer o bem sem esperar

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retribuição caracteriza a ação nobre, ao passo que o ato de receber benefícios é mais auspicioso.

Seja como for, nessa espécie de amizade é possível ser amigo de várias pessoas, uma vez que não se exige dedicação árdua na conquista e manutenção da amizade, pois atendendo ao interesse momentâneo do amigo a amizade se conservará, embora não de forma duradoura, pois como foi dito anteriormente, o que se deseja pode ser alterado subitamente. Porém, Aristóteles (1996, p. 264) acrescenta que “a amizade por interesse é para as pessoas mercenárias”; isso nos leva a refletir que, para o Estagirita, embora sendo considerado um tipo de amizade, seja o pior de todos os tipos, uma vez que parece caracterizar-se pela tibieza do relacionamento amigável, de modo que a relação de amizade não visa o fim em si mesmo (como na amizade baseada no caráter), mas é praticada com vistas ao puramente útil.

Assim sendo, nesta espécie de amizade onde o interesse é o objetivo, o traço característico será a intenção do amigo que determinará a amizade através das vantagens obtidas, em consonância com as retribuições recebidas de modo equivalente, enquanto a relação entre eles for durável. 2.3.2 Amizade segundo o prazer

Aristóteles assinala que da mesma forma que na

amizade por utilidade, onde a relação amistosa funda-se no interesse por algum tipo de bem que o outro possa oferecer como “barganha”, neste tipo de amizade que tem como base a satisfação do prazer, ocorre esta mesma espécie de relação, de modo que o desejo de bem pelo outro (amigo) não é movido por aquilo que o outro é, ou seja, pelo seu caráter, mas pelo fato de que a presença dele é algo agradável ao amigo e, por isso, deseja sempre tê-lo por perto (ARISTÓTELES, 1996).

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Nesse sentido, o Estagirita afirma que de modo

equivalente, variando apenas o motivo pelo qual se ama, a amizade que busca o prazer é tão acidental quanto a amizade que almeja aquilo que é útil. Esta categorização referente a estes dois tipos de amizade torna-se evidente na medida em que nelas, o que se ama não é a essência do ser enquanto pessoa humana dotada de dignidade, mas aquilo que este ser pode proporcionar, seja algo útil ou prazeroso, dependendo do que se busca, se é o retorno por um bem que se deseja ou pelo fato de que sua presença seja algo agradável para o amigo, respectivamente.

Seja como for, o filósofo ressalta que neste tipo de amizade que valoriza o prazer, incluem-se os laços familiares bem como as relações de hospitalidade, pois não há como refutar que a presença de familiares possa trazer uma espécie de satisfação agradável para as pessoas. Além do mais, nesse tipo de relação baseada no prazer, no que diz respeito à faixa etária, o Estagirita afirma que entre os velhos não há muito de agradável que possam oferecer, por isso não são propensos à amizade, visto que as pessoas tendem a buscar pelo agradável. Por outro lado, essa relação encontra-se de modo mais vigente entre os jovens, como nos esclarece Aristóteles (1996, p. 260):

[...] o motivo da amizade entre os jovens parece ser o prazer, pois eles vivem sob a influência das emoções e perseguem acima de tudo o que lhes é agradável e o que está presente; mas seus prazeres mudam à medida que a idade aumenta. É por isso que eles se tornam amigos e deixam de ser amigos rapidamente; sua amizade muda com o objeto que acham agradável, e tal prazer se altera rapidamente.

O que se pode inferir a partir desse pressuposto

aristotélico, é o fato de que na relação de amizade cujo objetivo é a satisfação do prazer, de fato, não se pode haver uma estabilidade relacional efetiva e duradoura, no sentido de

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que basta a dissolução daquilo que se mostra agradável e prazeroso, a existência da amizade já deixa de ter sentido. A situação é ainda mais agravante durante a juventude, onde os prazeres oscilam de modo impetuoso, o que leva à permuta constante de amigos por outros, que satisfaçam aquilo que se tornou um novo modelo de prazer, gerando assim um ciclo vicioso inconstante, com relações que são criadas, vividas, mas que não se sustentam por muito tempo.

Por esse motivo, Aristóteles considera que nos dois tipos de amizade que têm por finalidade o útil ou o agradável, há um caráter de imperfeição, uma vez que se baseiam sempre na busca de algum tipo de “bem” (útil ou prazeroso) para o próprio indivíduo, através do outro que é seu amigo. Para Lima (1997), isso significa, segundo a concepção aristotélica, que nessas relações onde o que se ama são as qualidades do amigo e não o que ele é em si, as amizades tendem a ser transitórias, uma vez que as qualidades não perduram por muito tempo.

Assim, segundo o autor supracitado, a característica definidora desses dois tipos de amizades consideradas “imperfeitas” é justamente a instabilidade que apresentam, pois o fim que buscam se trata simplesmente de um acidente em relação à verdadeira forma de amizade; e aqueles que se relacionam acidentalmente, não formam uma unidade. Por esse motivo, o Estagirita também afirma que são nessas espécies de amizade acidentais que os maus podem ser amigos, pois “pessoas más não gostam uma da outra e não convivem entre si a não ser que obtenham algum proveito recíproco ou alguma vantagem” (ARISTÓTELES, 1996, p. 262).

Contudo, mesmo que as motivações em busca da relação amistosa seja a satisfação de um prazer ou a utilidade que o outro proporciona, há aí amizade, mesmo que seja inferior em relação à amizade virtuosa. Isso se deve ao fato de que, para o Estagirita, essas espécies inferiores de amizade

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assemelham-se com a amizade perfeita quando consideramos que os homens bons também são agradáveis e úteis uns aos outros. Todavia, como dito alhures, nessas espécies a amizade é passageira, enquanto na virtuosa, ela é constante.76

Destarte, após termos apresentado as características centrais das espécies inferiores de amizade segundo a concepção aristotélica, nosso intento no próximo tópico é caracterizar a espécie de amizade, que para Aristóteles se trata da primeira forma própria de amizade que existe entre os homens bons; e por meio da qual as outras espécies existem por analogia a essa: a amizade virtuosa ou perfeita. 2.3.3 Amizade virtuosa

Como afirma Aristóteles (1996, p. 257), no início do

livro VIII da EN, a “amizade é uma forma de excelência moral ou é concomitante com a excelência moral”. Assim, consideraremos a partir de agora a espécie de amizade que Aristóteles considera ser a mais autêntica e a mais intrínseca ao homem, em detrimento das outras duas que são extrínsecas e ilusórias.

A amizade perfeita ou virtuosa é a que ocorre entre os homens de bem, que se assemelham na virtude na medida em que desejam o bem um ao outro de modo idêntico, sendo bons em si mesmos e por isso são amigos dos outros simplesmente pelo que são (ARISTÓTELES, 1996). É por esse motivo que tal amizade não se trata de um acidente ou um meio para se alcançar um fim, uma vez que são amigos

76 Lima (1997, p.147), elucida que “Aristóteles ao admitir que a philía é múltipla e não una e que se divide em espécies distintas, sustenta a posição de que todos podem ser amigos, por sua própria natureza social, só que uns serão amigos com vistas ao prazer e a utilidade e outros, no entanto, serão amigos verdadeiramente, em razão de sua bondade. Aqueles serão amigos por acidente e semelhanças a estes, que são amigos absolutamente [...]

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pelo que de fato são em sua essência, pela sua própria natureza. A busca pelo aperfeiçoamento na virtude faz com que o homem bom, agindo racionalmente e de modo ético, conceba o amigo como outro eu, de modo que o bem prestado ao amigo é simultaneamente o bem para o próprio indivíduo77.

Como a virtude é algo que se busca ou que se deseja manter, esse tipo de amizade durará enquanto as pessoas forem boas, isto é, virtuosas; e como ser bom é uma coisa muito duradoura, enquanto os homens forem virtuosos, a amizade permanecerá vigente. A partir dessa análise, têm-se então a máxima aristotélica de que “bondade e amizade se encontram na mesma pessoa78” (ARISTÓTELES, 1996, p. 258), uma vez que o bem do amigo configura-se como elemento imprescindível da amizade virtuosa.

Em sua análise, Lima (1997) considera que em Aristóteles, a philía perfeita é a philía fundada sobre o bem ou de acordo com a virtude, onde o outro é desejado como amigo pelo que é em si mesmo; e sendo assim, é perfeita no sentido de que nela realiza-se de modo íntegro o domínio das relações humanas, entre os bons e semelhantes segundo a virtude.

Contudo, Aristóteles pondera que os homens bons o são em absoluto, mas são concomitantemente úteis e agradáveis, porém, não no sentido de finalidade última, mas no sentido de reciprocidade. Dito de outro modo, o fato de ser bom implica necessariamente na capacidade de fazer o

77 Em sua análise acerca da discussão aristotélica sobre a philía, Chauí (2002, p.461), explica que “a amizade pressupõe que cada amigo deseje a mesma coisa com sua alma inteira: fazer desinteressadamente o bem ao amigo, desejar-lhe longa vida, desejar viver em sua companhia [...] compartilhar alegrias e tristezas – deseja ao outro o que deseja para si próprio.” 78 Corroborando, Aristóteles (1950, p.621) reitera na EE que: “[...] la amistad por virtud, no se produce en el corazón de los hombres malos, porque el malo se fía de nadie; es malévolo para todo el mundo, y mide a los demás por si mismo”.

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bem também ao outro, uma vez que o conceito de bondade exige a alteridade, pois não se concebe bondade de forma particularizada.

Isso significa que a cada atividade que o homem bom execute e que resulte em prazer para si, também o será para o amigo ou que seja de modo semelhante. Se o fundamento da primeira amizade é a virtude, então os que a possuem são absolutamente bons, pois:

toda amizade, com efeito, é baseada no bem ou no prazer, irrestritamente ou em relação à pessoa que a sente, e se alicerça em uma certa semelhança [...] no caso desta amizade, as qualidades também são semelhantes em ambos os amigos, e o que é irrestritamente bom é também irrestritamente agradável, e estas qualidades são os principais objetos de afeição. O amor e a amizade, portanto, ocorrem principalmente e em sua melhor forma em pessoas desta espécie. (ARISTÓTELES, 1996, p. 261)

Por esse motivo, como anunciado previamente, nesse

tipo de amizade em que a virtude se constitui como estrutura basilar, a característica mais notável é a garantia da durabilidade, oriunda da capacidade intrínseca dos amigos de encontrarem um no outro as qualidades que ambos devem possuir a fim de perpetuar a relação de maneira profícua e eficaz. Todavia Aristóteles (1996) pondera que é significativamente rara a existência de pessoas virtuosas ou homens bons79, ou seja, homens que contemplem em sua natureza simultaneamente o amor e a bondade, sendo justamente por essa razão que tais tipos de amizade são também esporádicos.

79 Na obra EE Aristóteles faz menção as características da amizade do homem virtuoso: “La amistad por virtud es la propia de los hombres más distinguidos y mejores. Como se vê, La amistad de los hombres virtuosos es la primera de todas, es una reciprocidad de afectos, y nace de la libre elección que hacen unos de otros (ARISTÓTELES, 1950, p.616).

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Talvez, um dos motivos que contribui diretamente

para a raridade da amizade virtuosa é o fato do tempo e da intimidade que ela exige para que seja consolidada a relação, pois diferentemente das outras espécies, na amizade perfeita o que se almeja não é algo provisório ou momentâneo, mas sim uma permanência definitiva e segura. A conquista da confiança, âmago da amizade, requer dos amigos a disponibilidade de tempo para conviverem, criando laços mais sólidos e íntimos de afinidade, o que resultará então na garantia da sustentabilidade da relação que os une. É o que nos sugere Aristóteles (1996, p. 262), no livro VIII da EN:

somente a amizade entre pessoas boas é imune à calúnia, pois não é fácil dar crédito ao que diz qualquer um acerca de uma pessoa que foi posta à prova durante muito tempo por quem ouve as palavras caluniosas; além disto, é entre pessoas boas que encontramos a confiança, o sentimento de que nunca fará mal à outra e tudo mais que se espera de uma amizade sincera. Nas outras espécies de amizade, todavia, nada existe que impeça o aparecimento de suspeitas.

Assim sendo, Aristóteles supõe que “os phíloi (os

amigos) desejam passar o dia juntos (synemereúein) e considera que a vida em comum (syzen) é uma realização (enérgeia) da amizade”80 (KONSTAN 2005, p. 132). Portanto, o fato de ter afeição por uma pessoa e considerá-la como amiga, ainda não caracteriza a amizade, pois aqueles que se apreciam, mas não convivem não são verdadeiros amigos. A condição para a amizade perfeita, assinala o Estagirita, é a experiência recíproca de ambas as partes que através de um esforço mútuo

80 Para que haja amor de amizade, no sentido virtuoso, é necessário que o amigo, ame também o que o ama, e que ele o ame igualmente num amor desinteressado, pois o amor de amizade é amor recíproco, que almeja sempre crescer em penetração e intimidade (PHILIPPE, 2002).

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são capazes de se tornarem íntimas, pois aqueles que se relacionam acidentalmente, não se coadunam com frequência.

Retomando a conclusão de Aristóteles, de que todas as outras espécies de amizade só podem ser assim consideradas, se for analogamente a amizade perfeita, de modo que os homens bons também tendem a ser agradáveis e úteis aos seus amigos, na medida em que “é por causa de algo bom e algo que tenha afinidade com aquilo que se encontra na verdadeira amizade que as pessoas são amigas [...]” (ARISTÓTELES, 1996, p. 262).

Nesse sentido, Lima (1997) afirma que se pode observar certa graduação entre as espécies de phília, no sentido de que, em primeiro lugar e em seu sentido próprio, encontra-se a amizade por virtude, em segundo lugar, por melhor assemelhar-se com a primeira, está a amizade baseada no prazer; e em terceiro lugar, a amizade que busca a utilidade. Disso decorre o que já foi postulado alhures, de que só a amizade virtuosa é permanente e invulnerável, pois amigos assim são bons e amam seus amigos por eles mesmos, não visando o prazer ou a utilidade, a princípio.

Em suma, após evidenciar as três espécies de amizade, argumentando sobre as características de cada uma delas, Aristóteles (1996) resume essa ideia declarando que afinal o que se apresenta é a divisão da amizade em duas espécies, segundo o aspecto mau e bom, a saber: a) os maus: são amigos por prazer ou por interesse, assemelhando-se sob este aspecto; b) os bons são amigos porque são como são, ou seja, por sua bondade. Estes últimos são amigos irrestritamente, ao passo que os primeiros o são acidentalmente, por analogia aos últimos.81

81 Aristóteles, além de descrever a existência das três espécies de amizade segundo ao objeto que se ama, examina também a presença de espécies de amizade entre os desiguais, onde há o predomínio de superioridade de um amigo em relação ao outro, onde a proporção ou a proporcionalidade é o princípio fundamental dessas amizades. Na EN no livro VIII ele

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2.4 AMIZADE ENQUANTO VIRTUDE E SUA RELAÇÃO COM A JUSTIÇA E A FELICIDADE

Embora tenhamos apresentado, de modo geral, o

conceito de amizade em Aristóteles, considerando que haja ainda muitos paradoxos e ambiguidades em torno desse termo desde os autores clássicos, cabe-nos agora investigar de modo mais profícuo a relação do conceito de amizade (philía) com a concepção de virtude (areté) no pensamento aristotélico e sua respectiva relação com a justiça. Em consonância, apresentaremos de que modo a amizade verdadeira é tida por Aristóteles, como sendo uma das formas de felicidade. Num segundo momento, buscaremos traçar as principais considerações acerca das semelhanças e diferenças entre os conceitos, aparentemente análogos, de amizade, amor e benevolência.

Como dito alhures, na concepção aristotélica, a amizade consiste numa forma de virtude moral82. Nesse

afirma: “Mas há outra espécie de amizade, na qual existe superioridade de uma das partes – por exemplo, a amizade entre pai e filho e em geral a amizade entre pessoas idosas e as pessoas jovens, e a amizade entre marido e mulher e em geral entre quem manda e quem obedece [...] Estas espécies de amizade diferem também entre si [...] Em todas as espécies de amizade nas quais está implícita a desigualdade, o amor também deve ser proporcional, isto é, o amor que a parte melhor recebe deve ser maior que o amor que ela dá, e portanto ela deve ser mais útil [...] pois quando o amor é proporcional ao merecimento das partes configura-se de certo modo a igualdade proporcional, que é considerada um componente essencial da amizade (ARISTÓTELES, 1996, p. 265-266). 82 Dentre tantos motivos, Chauí (2002), esclarece que Aristóteles possui um motivo egrégio para considerar a amizade como uma virtude ou ainda, a mais alta virtude ética. Para o filósofo em questão, a ética tem por intento educar o desejo e nos ensinar o valor da autonomia, encontrando dentro de nós mesmos os meios da ação sobre as coisas; o ideal de autonomia identifica-se com o ideal de autarquia, isto é, da independência e autossuficiência. Assim, buscando relação com a Metafísica aristotélica, Chauí ressalta que: Aristóteles ao assegurar que o Primeiro Motor Imóvel

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sentido, Zingano (2008), ao fazer uma análise da EM, afirma que, se somos por natureza dotados de capacidade, não podemos dizer o mesmo das disposições. Ora, as virtudes são disposições e por isso são capazes então, de tornar as pessoas, homens de bem graças ao bom desempenho de sua própria função.

Sendo assim e tendo em mente que a amizade é uma virtude, podemos inferir que aquele que é amigo, pratica sua virtude e torna-se uma pessoa boa, fazendo o bem83 não só para o amigo, mas também para si. Tal afirmação pode ser verificada na seguinte passagem da EN:

ao amarem o amigo as pessoas gostam do que é bom para si mesmas, pois a pessoa boa, tornando-se amiga, torna-se um bem para seu amigo. Cada uma das partes, então, ama o seu próprio bem e oferece à outra parte uma retribuição equivalente, desejando-lhe bem e proporcionando-lhe prazer. A propósito, diz-se que a amizade é igualdade, e ambas se encontram principalmente nas pessoas boas. (ARISTÓTELES, 1996, p. 264)

(deus) é autárquico, totalmente autossuficiente e independente, e por isso somente ele é plenamente feliz, também afirma que os homens não podem alcançar essa plenitude, embora possam desejá-la e imitá-la; e essa possibilidade que os homens têm de imitar a autarquia divina só é possível, por meio da amizade. Assim conclui: “[...] juntos, os amigos formam uma unidade mais completa e mais perfeita do que os indivíduos isolados e, pela ajuda recíproca e desinteressada, fazem com que cada um seja mais independente do que se estivesse só. A amizade é nossa parte no divino, a maneira como a ação humana imita a autarquia divina e faz a pólis imitar a autarquia do kósmos (CHAUÍ, 2002, p. 462). 83 “A felicidade e o bem derivam do tipo de vida que o indivíduo leva. Enquanto a maioria pensa que a felicidade é o prazer e outros se dedicam à política, identificando a felicidade com a aquisição de honra, a verdadeira função do Homem Bom é a vida contemplativa, dedicada à contemplação pura” (LOPES, 2014, p.17).

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Na EE, a amizade é considerada “uma das virtudes

mais belas e mais desejáveis na qual se pode tratar no âmbito da moral” (ARISTÓTELES, 1950, p. 39).84 O desejo de ser feliz, isto é, de alcançar o fim para qual tende todo ser humano, tem na amizade sua possibilidade de realização, uma vez que, enquanto virtude, ela capacita os homens a disporem-se, enquanto unidos, a buscar o bem um do outro, pois quando se é amigo, o bem do outro, também se torna o bem para si mesmo.

Ao definir a amizade como virtude e hábito, no sentido de disposição da pessoa ao bem, Aristóteles (1996, p. 258), como já assinalado anteriormente, afirma que “a bondade e a amizade se encontram nas mesmas pessoas”. Sendo assim, o Estagirita considera que a amizade condiz com a bondade, no sentido de que a pessoa que é capaz de desenvolver esta virtude moral, que ele caracteriza como “nobilitante”, também é capaz de ser ou de tornar-se uma pessoa boa. Destarte, a amizade mais que virtude, efetua-se como uma forma de agente determinante na ação do homem enquanto ser de relações (zoon politikon).

A amizade enquanto disposição de caráter é entendida também, de acordo com Lara (2009), como uma tendência ativa do homem para a prática do bem; assim, temos no bem, na solidariedade e no sentimento recíproco o fundamento da relação amistosa. Por conseguinte, a autora interpreta que a justiça, a felicidade e a amizade tornam-se, na concepção aristotélica, os alicerces da sociedade.

Ao compreendermos a justiça como virtude, remetemo-nos ao fato de que a ação justa não é intrínseca ao homem enquanto pertencente à sua natureza, mas é resultado da ação humana através da prática obstinada de hábitos virtuosos engendrados ao longo do tempo. Destarte, o

84 Tradução nossa: “La amistad [...] es una de las virtudes más bellas y más deseables de que puede tratarse en moral”.

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homem só se torna de fato justo, quando considera na sua formação virtuosa não apenas a sua realização pessoal, mas também a realização do outro (FARIA, 2013).

Por isso, o que o estagirita postula é uma íntima relação entre a justiça e a amizade85, enquanto qualidades morais, no que tange ao objeto comum ao qual se preocupam, a saber: com as associações sociais, especialmente com o Estado. Entretanto, Aristóteles reitera que a amizade não se resume ao respeito e a boa vontade, antes, a boa vontade deve ser entendida como o princípio ou fonte da amizade; e não como a consumação do ato propriamente dito.

Assim, podemos inferir que a amizade ultrapassa a justiça, no sentido de que um grau mais elevado de justiça prevalece entre os amigos. Consolidando essa concepção, o autor reitera que:

[...] a injustiça é mais grave quando é praticada em relação àqueles que são amigos num sentido mais amplo (por exemplo, é mais grave lesar um companheiro do que um cidadão qualquer, é mais grave não ajudar um irmão que um estranho, é mais grave ferir um pai que qualquer outra pessoa). As reivindicações de justiça também parecem aumentar com a intensidade da amizade, e isto significa que a amizade e a justiça existem entre as mesmas pessoas e tem uma extensão igual. (ARISTÓTELES, 1996, p. 269)

Desse modo, a relação direta existente entre a amizade

e a justiça86, é ressaltada na EN (ARISTÓTELES, 2009b, p.

85 Segundo Chauí (2002), Aristóteles nos leva a compreender que a amizade só pode existir entre os prudentes e justos, sendo por isso, a amizade, a condição e ao mesmo tempo consequência da vida justa, que é a vida presente na comunidade política. 86 A justiça em Aristóteles é conceituada como: “disposição da alma graças à qual as pessoas se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo; de maneira idêntica, diz-se que a injustiça é a disposição da alma graças à qual as pessoas agem injustamente e desejam

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175), onde o Estagirita anui que a amizade é análoga à concórdia, uma vez que assume a função de promover a união entre as pessoas. Nesse sentido, torna-se evidente que a maioria das pessoas, inclusive os responsáveis pelo governo das cidades, optem por garantir a amizade ao invés da justiça.

Dito de outro modo, a amizade enquanto elemento conciliador supre a necessidade da justiça, no sentido de que a amizade verdadeira, por sugerir imprescindivelmente a virtude, enjeita qualquer forma de justiça, na medida em que a atividade virtuosa sugere o bom uso da mediania; e isto é o essencial para manter a paz. No entanto, mesmo entre os justos, a presença da amizade é vital. Assim, o autor postula que a mais autêntica forma de justiça é uma espécie de amizade.

Ressaltando este postulado, o Estagirita na Ética a Eudemo assinala:

se comportar como amigo é procurar uma espécie particular de justiça, sendo que toda justiça está relacionada a um amigo, pois o justo diz respeito a alguns indivíduos que são associados por certo motivo, e o amigo é um associado seja na família seja na prática da vida [...] O homem é um ser formado para associar-se com todos aqueles de sua natureza, e haveria então associação e justiça, mesmo se não houvesse o Estado e a relação familiar é uma forma de amizade; em verdade a associação do senhor e do escravo é a mesma que a da arte e seus instrumentos, a da alma e seu corpo, mas essas não são nem amizades nem forma de justiça, mas algo análogo, assim

o que é injusto [...] a justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita” (ARISTÓTELES, 1996, p.193 e 195). Além disso, na referida obra, o autor especifica que a justiça é a observância do meio - termo, diferindo das outras formas de excelência moral, pelo fato que se relaciona com o meio – termo, enquanto a injustiça se relaciona com os extremos.

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como o sadio não é justo, mas algo análogo. (ARISTÓTELES, 1950, p. 639)87

Com base no exposto, pode-se concluir que tanto a

amizade quanto à justiça se ocupam da preservação e da garantia do bem do outro. Por isso, segundo Faria (2013), a amizade na concepção aristotélica instaura-se como um complemento da justiça, onde no encontro com o outro há o desejo de fazer bem ao amigo, pelo que ele é e não pelo que ele pode fazer como permuta.

Por isso, se há um avanço proporcional entre a justiça e a amizade, a relação entre esses dois conceitos é condição fundamental para a vida feliz, no sentido de que a causa da justiça como fator preponderante para o desenvolvimento humano, não é senão a amizade.

Tal ilação é estabelecida por Aristóteles (1996, p. 269) ao afirmar que “as reivindicações de justiça também parecem aumentar com a intensidade da amizade, e isto significa que a amizade e a justiça existem entre as mesmas pessoas e têm uma extensão igual”. A ação justa (temperante) é exercida de forma autêntica e veementemente excelente, quando o encontro com o amigo visa o bem dele (do amigo) próprio,

87 Tradução nossa: “Indagar cómo debe uno conducirse con un amigo es, en el fondo, indagar lo que es la justicia. De una manera general, la justicia sólo se aplica a un ser amigo. Lo justo se refiere a ciertos seres, que están asociados por cierto motivo; y el amigo es un asociado, primero a causa de la raza y de la especie, y después mediante la vida común [...] El hombre es un ser formado para asociarse con todos aquellos que la naturaleza ha creado de la misma familia que él, y habría para él asociación y justicia, aun cuando el Estado no existiese. La familia, El hogar, es una especie de amistad, mientras que entre el dueño y el esclavo hay la misma amistad y unión que la que existe entre el arte y los instrumentos, y entre el alma y el cuerpo. Indudablemente, éstas no son precisamente amistades, ni esto es justicia, sino que es cierta cosa análoga y proporcional, el remedio que cura al enfermo, que nada tiene de normal ni de sano precisamente, sino que es cierta cosa análoga y proporcional a su estado”.

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pois onde há justiça, os bens dos amigos são bens comuns a ambos; e o que era particular, torna-se agora objeto de uso comum entre os amigos.

Assim, considerando que em Aristóteles a finalidade para qual tende todos os homens é a felicidade88; e que ela exige uma ação virtuosa da parte do homem, sendo a justiça a virtude mais nóbil dentre as outras, onde o homem tem a liberdade de escolher a justiça e praticá-la a cada dia. Esse hábito constrói paulatinamente a ação justa, que consequentemente forma o homem justo, garantindo assim o alcance do Bem Supremo.

Destarte, Aristóteles ao demarcar que a amizade se manifesta apenas no acontecimento “do Humano com o Humano” (ARISTÓTELES, 2009b, p. 191) declara que a amizade, enquanto virtude é elemento crucial e inerente para se atingir a felicidade, pois o homem necessita do contato com o outro para o exercício de sua virtude, que culminará, no alcance do Bem Supremo ao qual todos almejam.

Em suma, segundo Neto (2007), o Estagirita concebe que a inexistência da amizade pressupõe evidentemente a ausência da justiça. Por isso, essas duas virtudes são basilares na construção e manutenção da sociedade justa, no sentido de que contribuem para a presença dos elementos essenciais para a conquista do Bem Supremo almejado por todos os homens: a felicidade.

88 Felicidade, bem supremo do homem e fim último das nossas atividades são verdadeiramente inseparáveis na ética aristotélica [...] em toda ação, o bem é aquilo em vista da qual a ação é executada (PHILIPPE, 2002, p. 35-35).

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2.4.1 As diferenças entre amor, amizade e benevolência

Embora Aristóteles tenha afirmado que exista uma

relação íntima entre aquilo que se ama e o motivo pelo qual se é amigo, o próprio filósofo acentua que existe uma diferença conceitual entre o amor (ερως), a amizade (φιλία) e a benevolência (ευνοια). Segundo Lara (2009), Aristóteles entende que mesmo tais conceitos sendo semelhantes, há na amizade uma superação em relação ao amor em completude e intensidade, além de ser mais resistente diante das eventualidades da vida.

Na concepção do fundador do Liceu, a amizade enquanto virtude não pode ser considerada como um mero sentimento de amor ou de bondade para com o outro, no sentido de que envolve outros traços fundamentais que fazem da Philía algo nobre e necessário à vida.

Partindo da caracterização da amizade segundo sua essência, para diferenciá-la de seus conceitos afins, Aristóteles define o amor como sensibilidade e emoção; é afeição no sentido de que pode ser objeto de amor até mesmo os seres inanimados, o que supõe que não exige reciprocidade de afeição no amor, pois existe a possibilidade de amar aqueles que não nos amam, da mesma forma que podemos ser enganados amando as pessoas falsas (LARA, 2009).

Em contrapartida, Lara (2009) afirma que, para o Estagirita, amizade verdadeira só pode ser experenciada entre aqueles que são bons, por isso mais que um sentimento é um traço do caráter, existindo somente através da reciprocidade, do desejo do bem, que se manifesta de forma autêntica através da convivência e do diálogo. Para a autora, exemplifica-se essa diferença entre amor e amizade, em suma, pelo fato de que o amor pode acabar mesmo existindo o bem, ou seja, mesmo que um casal se separe, podem continuar desejando o bem de modo recíproco, desenvolvendo uma relação amistosa.

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Esse postulado aristotélico pode ser mais bem

compreendido quando afirma na EN que:

parece que o amor é uma emoção e a amizade é uma disposição de caráter; de fato, pode-se sentir amor também por coisas inanimadas, mas o amor recíproco pressupõe escolha e a escolha tem uma origem na disposição de caráter; além disto, desejamos bem às pessoas que amamos pelo que elas são, e não em decorrência de um sentimento, mas de uma disposição de caráter. (ARISTÓTELES, 1996, p. 263)

No que se refere ao conceito de benevolência ou boa

vontade, Aristóteles também o diferencia do conceito de amor e de amizade. Para o Estagirita, a benevolência não pode ser amor, uma vez que não envolve intensidade ou desejo. Além do mais, na benevolência não há comprometimento posterior com o indivíduo, dito de outro modo, a boa vontade para com o outro surge repentinamente; e por não existir reciprocidade, converte-se em afeição meramente superficial (ARISTÓTELES, 1996).

Aproximando-se com o conceito de amizade, o Estagirita reconhece na benevolência uma disposição para a amizade, ou seja, a boa vontade é o princípio da amizade, porém, não é a amizade89 (ARISTÓTELES, 1996). Nesse

89 Na EN, fica melhor explicita essa ideia quando o filósofo afirma que: “A boa vontade parece ser então um início de amizade, da mesma forma que o prazer de olhar é o início do amor. Efetivamente, ninguém ama se não fica enlevado primeiro com a figura da pessoa amada, mas quem fica enlevado com a figura de uma pessoa nem por isto a ama; só se ama quando anseia pela pessoa ausente e se deseja intensamente a sua presença; da mesma forma, as pessoas não podem ser amigas se não passam a sentir uma boa vontade recíproca, mas nem por isto as pessoas que sentem boa vontade recíproca são amigas; elas somente desejam o bem das pessoas pelas quais sentem boa vontade, e nada fariam por elas nem se preocupariam com elas. Sendo assim, podemos estender o alcance da palavra amizade para dizer que a boa vontade é uma amizade estática,

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sentido, o filósofo entende que se pode ter boa vontade até mesmo por aqueles que são desconhecidos; e que talvez nunca estes tenham a possibilidade de nos conhecer, o que de fato é inconcebível na atividade da philía.

Partindo desse pressuposto, Bittar (2003) esgota qualquer tentativa de afirmar a paridade conceitual entre amizade e benevolência, ao argumentar que a amizade se configura a partir de sentimento recíproco, dialeticamente comungado, duplamente presenciado em fluxos e refluxos; enquanto que a benevolência caracteriza-se enquanto sentimento unilateral dirigido ao outro, não contemplando necessariamente a ideia de reciprocidade.

Em suma, Lara (2009) afirma que o desejo de bem ao outro, contido no ato da boa vontade pode, em alguns casos, não ser retribuído, fato este inconcebível na prática da amizade verdadeira. A essência da amizade está justamente na reciprocidade que se adquire através da convivência entre os amigos, possibilitada pela intimidade, pelo respeito e pela confiança, características estas que não estão necessariamente no cerne da benevolência.

Assim, o intuito do tópico subsequente será o de analisar de que forma a amizade constitui-se como elemento determinante para a vida em sociedade, uma vez que as ações humanas só fazem sentido se forem praticadas com vistas à comunidade política, que é considerada por Aristóteles, a comunidade perfeita, local da comunhão entre os amigos; local onde explicita-se a virtude da amizade como atividade do homem, caracterizado como sendo um ser político por natureza ou, nos termos gregos, o homem como zoon politikon.

embora quando se prolonga e atinge o nível da intimidade ela se torne amizade propriamente dita [...] (ARISTÓTELES, 1996, p. 286-287).

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2.4.2 Papel da amizade no contexto da pólis grega

Reconhecida como virtude ou algo concomitante à

virtude, a amizade no pensamento de Aristóteles não se trata apenas de uma virtude individual, mas deve ser interpretada também como uma virtude política, integrada como uma das condições que contribuem para a formação do homem virtuoso, no sentido de que o homem tende a praticar ações virtuosas almejando sempre alcançar algum bem, sendo o maior de todos os bens: a felicidade. Em outras palavras, a amizade conduz o homem à prática de ações que concorrem para se atingir o Bem Supremo ao qual todos objetivam. Tomando consciência do seu lugar na Pólis, é inconcebível que o homem, enquanto ser social, possa viver sem associação, pois assim descreve Aristóteles em sua obra intitulada Política:

sabemos que toda cidade é uma espécie de associação, e que toda associação se forma tendo por alvo algum bem; porque o homem só trabalha pelo que ele tem em conta de um bem. Todas as sociedades, pois, se propõem [...] a um bem maior, envolvendo todas as demais: a cidade ou sociedade política [...] A sociedade constituída [...] forma uma cidade completa, com todos os meios de se abastecer por si, e tendo atingido, por assim dizer, o fim que se propôs. Nascida principalmente da necessidade de viver, ela subsiste para uma vida feliz. Eis por que toda cidade se integra na natureza, pois foi a própria natureza que formou as primeiras sociedades [...]. É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e aquele que [...] deixa de fazer parte da cidade, é um ser vil ou superior ao homem. (ARISTÓTELES, 2009a, p. 13-16)

Considerando que a amizade, na concepção

aristotélica, não se trata apenas de uma virtude individual, mas

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é tida também como virtude política; e considerando também que o significado da amizade enquanto união de duas ou mais pessoas, vinculadas pelo afeto e por práticas virtuosas (habituais) que conduzem ao bem dos envolvidos, podemos pressupor que: enquanto ser social, animal político por natureza (zoon politikon), o homem tem sua finalidade na comunidade, de modo que todas as suas ações devam ser orientadas para a busca da felicidade não como algo subjetivo, mas como elemento objetivamente bom a todos os componentes da Pólis; pois a razão de ser do homem, enquanto ser político é a convivência harmônica do mesmo com sua comunidade como um todo, o que representa a própria felicidade.

Isso significa que a busca pela vida feliz só é possível vivendo em sociedade, pois o homem necessita relacionar-se com o outro a fim de realizar-se como ser social, de modo que somente através da associação é que se pode haver o aperfeiçoamento da virtude humana.90

Partindo de uma análise da ética aristotélica, evidencia-se que a busca pela felicidade enquanto fim último de todo homem exige dele determinadas condições, sendo que uma delas é a exigência de um círculo de amigos para que juntos possam buscar o exercício da virtude. A partir desse pressuposto, torna-se compreensível a ideia de que o homem não pode viver isoladamente, uma vez que somente no convívio social ele tem a possibilidade de exercitar sua virtude. Na verdade, o que Aristóteles sustenta é o que já foi exposto anteriormente, a saber: a íntima e “simbiótica” relação entre amizade e justiça, pois a ausência da amizade implica na extinção da justiça do meio social, o que leva

90 A amizade firma um vínculo social, como virtude política, lembrando que o homem não pode desenvolver as virtudes nem a felicidade sem a sociedade, por duas razões: sem a sociedade não sobreviveria uma vez que em princípio precisaria dos bens fundamentais, e sem as leis sociais nunca alcançaria as virtudes (LARA, 2009, p. 42).

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consequentemente à efetivação de uma sociedade injusta, que não conseguirá, nestes termos, alcançar o tão almejado Bem Supremo.

Soma-se a isso, o fato de o Estagirita anuir que a amizade não se refere apenas à afeição e as afinidades naturais entre as pessoas, mas constitui-se também como componente terminantemente útil para manter as cidades unidas. Com isso, a partir dessa sentença, sugere-se que não somente na relação entre os cidadãos de uma mesma cidade, ou seja, de uma comunidade, a amizade apresenta-se como precursora da ordem e da vida feliz, mas entre comunidades diferentes. A philía engendra a possibilidade de paz e unidade entre as nações, no sentido de que, em comunidades políticas diferentes, o laço amistoso entre elas inibe as desavenças e os desafetos, uma vez que desejam ambas o bem reciprocamente. Por esse motivo é que a amizade é desejada a todo custo, como entidade mantenedora da concórdia entre as cidades.

Deveras, ao elencar a amizade como virtude soberana pelo fato de que nela já se encontra a justiça e, portanto, dispensando essa última se houver a primeira, Aristóteles fornece os subsídios para a amizade na Pólis, no sentido de que, o bem comum em sociedade e a concórdia, são os fundamentos da amizade, o que requer o convívio entre os cidadãos (LARA, 2009). Nesse sentido, a vida harmoniosa em sociedade torna-se possível, na medida em que por meio da amizade, sobrevém a igualdade em detrimento das diferenças. Dito de outro modo, as relações amistosas na comunidade política, permitem interações educativas que geram desenvolvimento e progressão das potencialidades humanas.

Nesse sentido, a amizade constitui-se também, como agente propiciador do conhecimento, contribuindo diretamente na formação do homem enquanto ser subjetivo tanto quanto como ser social, favorecendo a busca pela realização do bem supremo. Por isso, é na relação entre

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amizade, justiça e felicidade que se percebe a importância da amizade como ensejo para o bom desempenho da vida em comunidade; e principalmente na comunidade política (Pólis).

O próprio hábito que determina a ação virtuosa e, por isso, conduz à experiência da amizade é, segundo Aristóteles (2009b), fruto da educação que se exerce entre os cidadãos no interior da Pólis, pois o hábito é adquirido mediante treinamento ou, em outras palavras, pela educação. Assim sendo, o problema do convívio social poderá ser resolvido através de uma educação efetiva que oriente a conduta do cidadão.

A argumentação de Aristóteles a fim de demonstrar a necessidade vital da associação amigável entre os homens para o bom desenvolvimento da Pólis é acrescentada pelo filósofo na EN quando afirma que:

todas as formas de associação, portanto, parecem constituir partes da comunidade política, e as espécies particulares de amizade correspondem às espécies particulares de associações em que elas se originam. (ARISTÓTELES, 1996, p. 269-270)

Em outras palavras, Aristóteles está a afirmar que toda

e qualquer associação particular entre duas ou mais pessoas, o que podemos entender como uma relação amistosa, são como se fossem partes de uma associação maior denominada de comunidade política; e que assim como esta, existe com o intuito de obter condições favoráveis e necessárias para que a vida social seja possível. Assim sendo, o que o Estagirita nos propõe, é a ideia de que tanto a associação entre amigos, quanto à associação maior que é a cidade, coexistem simultaneamente e objetivam concomitantemente a busca de condições para o bem viver da comunidade91. Não é

91 Em seus estudos sobre o pensamento de Aristóteles, Barnes et al.(2009), salienta que a amizade é uma relação mútua iniciada voluntariamente em

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concebível a vida individualizada, mesmo que o objeto condicionante da associação seja vantagem obtida por meio da utilidade ou do prazer, como parece ter sido o fundamento organizacional das primeiras sociedades.

A esse respeito, Aristóteles (1996, p. 292) afirma que a “função do amigo, que é um outro eu, é proporcionar as coisas que a própria pessoa não pode obter”. Nesse sentido, o autor corrobora na afirmação de que é imprescindível a relação de amizade na sociedade, uma vez que o ideal ético e, por conseguinte, virtuoso; só pode ser atingido mediante ajuda daqueles que temos ao nosso lado, ajudando-nos a conquistar os objetivos aos quais nos propomos, mas que sozinhos não seria possível de serem efetivados. Além do mais, todos, sem restrição, inclusive aqueles que parecem mais felizes, precisam de amigos, pois a amizade constitui-se como um dos maiores bens do qual uma pessoa pode contemplar.

Quando se pensa a amizade enquanto virtude como fundamento para a vida em sociedade, deve-se reconhecer que sua função é a opção pela vida comum, uma vez que naturalmente, ninguém se basta a si mesmo e todas as realidades sociais são da ordem da relação, onde, desde o início, os homens buscam unir-se para melhor viver, visando sempre o Soberano Bem não somente como meta particular, mas como objetivo comum da comunidade humana que é o fim de todas as comunidades anteriores à cidade92.

vista de diversos propósitos dos homens. Não se trata de uma relação limitada, se considerarmos o sistema político e econômico de Atenas, onde o estado desempenhava um papel pouco significativo no favorecimento da redução das dificuldades e na regulação dos negócios do cidadão, bem como no estímulo da prosperidade. Por isso, a necessidade das relações de confiança entre os cidadãos, era ao mesmo tempo uma necessidade econômica e de sobrevivência, como auxílios nos infortúnios e nas desventuras da vida grega. 92 Aristóteles entende, segundo Chauí (2002), que existiram duas formas comunitárias cronologicamente anteriores à comunidade política, a saber: a) a comunidade doméstica ou familiar, constituída pela relação conjugal

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Em suma, como comenta Zingano (2010), a vida

virtuosa vivida de maneira comunal, ou seja, no pensamento de Aristóteles a vida em sociedade seria uma vida virtuosa mais completa em detrimento daquela na qual o indivíduo volta-se apenas para a própria felicidade quando age virtuosamente. Assim sendo, o Autor entende que a vida virtuosa comunal é invariavelmente mais segura, pelo fato de acolher dentro de si vidas individuais mais completamente virtuosas, em relação à vida solitária.

Por isso a relação entre os amigos, de maneira virtuosa, é produtiva não só para os que se envolvem em tal relação, mas para a comunidade como um todo, onde o fim de um indivíduo, segundo a doutrina ética aristotélica, deverá sempre se converter no bem da maior parte da comunidade política em que está inserido.

A partir disso, buscar-se-á analisar no próximo capítulo, a atual condição das relações humanas no mundo hodierno, relacionando o conceito de amizade exposto neste capítulo, a partir do pensamento de Aristóteles, com a concepção de alguns pensadores contemporâneos acerca das relações humanas no mundo pós-moderno, enfatizando especificamente, por questões teóricas, o pensamento do filósofo francês Gilles Lipovetsky e do sociólogo polonês Zygmunt Bauman.

entre homem e mulher, pela relação entre senhor e escravo e pela relação paterna entre pais e filhos; b) aldeia ou vilarejo, formada por um conjunto de comunidades domésticas que se ocupam da administração da justiça e das cerimônias religiosas. Segundo a autora, essas duas primeiras comunidades despertam o laço de afeição e preparam seus membros para a philía propriamente dita, que só se realiza na Cidade.

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= III =

AS RELAÇÕES HUMANAS NO MUNDO PÓS-MODERNO

Nos capítulos precedentes, buscamos descrever o

modo como o relacionamento entre as pessoas, propriamente o relacionamento de amizade, foi descrito e caracterizado pelos autores antigos. De modo muito particular, buscamos demonstrar o conceito de amizade no pensamento de Aristóteles, tido por muitos autores, como sendo a explicação mais plausível e significativa no que concerne à relação entre aqueles que podem ser considerados amigos, uma vez que, mais que uma relação afetiva, a amizade consiste num meio de promoção dos demais modos do relacionar humano. Neste capítulo nos propomos a apresentar algumas considerações sobre a atual situação das relações humanas, advindas da crise da modernidade e que assumiram características inéditas ao longo da história.

Atualmente não se dispõe de grandes tratados ou estudos sobre o tema da amizade como o era no mundo antigo93. Contudo, sendo a amizade uma forma de relação entre os homens e considerando que as relações humanas se apresentam de certo modo com características peculiares no mundo hodierno, buscamos considerar de que modo a

93 De acordo com Barreiro e Carvalho (2015, p.127-128), os estudos acerca do pensamento aristotélico sobre a amizade são de grande valia uma vez que subsidiam as discussões contemporâneas sobre o tema na medida em que Aristóteles foi o primeiro a tratar sistematicamente sobre a ética, abarcando em seu conteúdo o agir humano e as relações entre os indivíduos. Contudo, este importante tema da ética aristotélica foi-se perdendo desde o período renascentista, sendo o tema da amizade deixado de lado e muito pouco referenciado nas filosofias subsequentes.

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mudança no comportamento do homem contemporâneo pode influenciar nas relações entre seus pares. Para isso, a fim de delimitar o campo de estudo, devido à necessidade referente a tal pesquisa, abordaremos nesta parte do trabalho duas explicações da atual situação do homem, que são de grande influência teórica, a saber: a teoria do Vazio, do filósofo francês Gilles Lipovetsky; e o conceito de modernidade líquida, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Ao apresentar o pensamento de cada autor, buscaremos realizar um paralelo entre eles e o conceito de amizade proposto por Aristóteles, conforme já discutido anteriormente. 3.1 ASPECTOS GERAIS DA ERA PÓS-MODERNA

É sabido que o período histórico denominado

“Modernidade” teve sua gênese, convencionalmente, no ano de 1453 com a tomada de Constantinopla, estendendo-se até o ano de 1789, com o fim da Revolução Francesa. Contudo, mais do que um período da história, a modernidade caracterizou-se pela promoção de mudanças expressivas na vida do homem e da sociedade que estavam adaptados a viver segundo a lógica medieval, cuja centralidade e o referencial da vida eram pautados no aspecto do divino. Todavia, o homem moderno promove uma cisão radical com essa concepção e, ao alterar modelos religiosos e consequentemente políticos, torna-se o centro do conhecimento na vida em sociedade, uma vez que a razão ocupa o lugar do transcendente. A partir disso, o homem assume o papel de mentor e condutor de todas as ações no mundo em que vive.

Com o advento da modernidade, mais especificamente com o movimento Iluminista do século XVII, o homem passa a se conceber como o único capaz de significar sua existência, a partir do momento que faz da razão sua exclusiva fonte de verdade. Com isso, exclui-se o

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elemento religioso e a própria tradição que, até então, eram fundamentais enquanto modelos referenciais do modo de agir humano. O homem moderno, para quem a felicidade estaria pautada na razão como sendo a única fonte do conhecimento verdadeiro, passa a exteriorizar e identificar na ciência, enquanto produto desta mesma racionalidade, a verdadeira possibilidade do desenvolvimento humano.

Contudo, ao passar do tempo, o homem se deu conta de que toda a expectativa “salvífica” depositada na razão tornou-se algo dubitável, pois a mesma razão que pretendia libertar o homem tornou-se o elemento fomentador dos meios de maior destruição da humanidade, como foram os casos das guerras, das bombas e demais armas, que destruíram vidas e colocavam em crise a existência humana. Desse modo, houve então o que se chamou de crise da modernidade, onde o homem, ao perder a confiança na razão, lança-se no universo das emoções, fazendo com que a verdade passe a ser pautada em uma nova referência: a vontade humana (CRUZ; CARDOSO, 2011).

Com isso, o período que sucede a esse momento histórico, caracterizado pela permuta de referenciais, passou a ser denominado por alguns estudiosos da pós-modernidade, embora não seja ainda consenso quanto à definição exata do termo. Em seus estudos sobre as características da pós-modernidade, Anderson (1999) nos alerta sobre as origens do termo “pós-moderno”, que segundo ele foi adotado pela primeira vez no ano de 1930 na Espanha, por Federico de Onís, que pretendia descrever uma forma de retorno conservador dentro do próprio modernismo, a fim de retomar com mais intensidade as características da modernidade que estavam tomando novos rumos, principalmente com as mudanças históricas que marcaram e transformaram os séculos XIX e XX.

Porém, segundo Cruz e Cardoso (2011), o termo pós-moderno, foi expandido de fato através da obra “A Condição

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Pós-Moderna”, do filósofo francês Lyotard, que detecta a mudança do estatuto do saber na medida em que as sociedades entram nesse período pós-moderno. Já em Lipovetsky94, o conceito é entendido como um prolongamento exagerado dos ideais da modernidade, que segundo ele, não condiz com as características de nosso tempo, marcado pela exacerbação dos valores modernos, pelo efêmero e pelo hedonismo desmedido; por isso tal filósofo prefere o termo “hipermodernidade” a “pós-modernidade”.

Seja como for, o que parece ser de consenso da grande parte dos que se dedicam ao estudo desse novo cenário que se apresenta, é o fato de que os que antes eram tidos como valores absolutos, regentes da vida humana, na era pós-moderna são substituídos por referenciais individuais e que, embora não adotados pela coletividade como um todo, também não são considerados pela sociedade como anormais, sendo aceitos como naturalmente instituídos. O que se quer afirmar é: o que se convencionou a chamar de “pós-modernidade” caracteriza-se justamente por esse novo modelo inovador de valores e condutas sem fundamento objetivo. Assim, o homem pós-moderno surge exatamente no momento em que o mundo amparado pela exaltação da razão perde seu sentido e desfazendo-se da unidade e logicidade racional, acaba por diluir-se em partes sem fundamento.

Somado a isso, o aparecimento do fenômeno pós-moderno identifica-se com o momento em que o homem se defronta com o aparato tecnológico de sua própria autoria, não concebendo mais a finalidade daquilo que havia criado. Dito de outro modo, o homem passa a não usar o objeto tecnológico ao qual criou para facilitar sua vida, mas deixa-se

94 Para Lipovetsky (2004, p.23), a pós-modernidade representa o momento histórico preciso em que todos os freios institucionais que se opunham à emancipação individual se esboroam e desaparecem, dando lugar à manifestação dos desejos subjetivos, da realização individual e do amor-próprio.

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dominar pela tecnologia. Há uma inversão de papéis, onde os objetos criados é que passam a conduzir a vida humana95. Hartmann (1998), corroborando, afirma que o homem desse atual momento histórico, busca olhar o meio em que vive através das lentes da tecnologia, relacionando-se com o mundo de uma maneira cada vez mais tecnológica-mecanicista. Por isso, faz-se necessário, segundo o autor, o ressurgimento de uma ética que retome os antigos valores e conduza novamente o agir humano a partir da própria humanidade.

Contrariamente, os novos modelos éticos que se apresentam nesse cenário pós-moderno, aspira pelos interesses da sociedade que está posta e que procura reproduzir o comportamento das pessoas segundo os pensamentos e práticas condizentes com essa condição; já que em toda a história o que se observa é que a conduta moral, ou seja, o modo do agir humano está diretamente vinculado com a realidade que se lhe apresenta. O fato é que se o homem contemporâneo deixou-se dominar por aquilo que ele mesmo criou para favorecer o seu modo de vida, temos então uma humanidade que se tornou “mecânica” e conduzida pela tecnologia; e por isso, adota comportamentos e desenvolve relacionamentos tais quais os objetos que cria: frágeis, inconsistentes e insensíveis. É preciso então ao homem retomar seu papel, agindo conforme sua essência, buscando

95 A diferença presente na modernidade entre sujeito e objeto se desfaz no sentido de que, nas técnicas modernas, os objetos ou as máquinas eram dominados pelo homem a fim de que o mesmo pudesse adquirir domínio sobre a natureza. Contudo, nas ciências pós-modernas, com o surgimento da informática e da televisão, principalmente, o suposto objeto criado se volta sobre o sujeito criador e o influencia por dentro recriando-o de certo modo. Isso leva o homem pós-moderno, a mudança de comportamentos, do modo de pensar, dos projetos; de modo que em determinado momento fica de difícil determinação sobre o que pertence ao homem e o que pertence às tecnologias; e isso até mesmo no modo de conceber o mundo e o próprio homem (HARTMANN, 1998, p.16).

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relacionar-se racionalmente com aqueles aos quais naturalmente se sente atraído, conforme assinalava Aristóteles já no período antigo.

No entender de Hartmann (1998), o homem pós-moderno encontra-se desprovido de interesses sólidos, universais e coletivos, substituindo-os por interesses hedônicos, levando a um relativismo cambiante, onde cada conduta ética se fundamenta nos interesses dos próprios indivíduos. Assim, o mundo pós-moderno despreza qualquer forma de ordenamento baseado na meta-narrativa, uma vez que, como já referido, há nesse momento a crise da razão enquanto guia do agir humano, bem como perda das noções de sujeito, totalidade, progresso e verdade. Diferentemente dos princípios antigos, a totalidade do homem contemporâneo significa tudo aquilo que ele pode conquistar para si; em outras palavras, esse mesmo homem entende que o progresso é somente o seu; e a Verdade é aquela que lhe convém na busca dos próprios interesses individuais, substituindo assim o caráter objetivo da verdade por um conceito puramente subjetivo e particular.

Em suma, com o advento da pós-modernidade, a razão se “desuniversaliza” em partes e tudo se torna relativo ao sujeito. Com isso, o homem adota uma atitude superficial e se acomoda, negando a noção de sacralidade e dignidade da vida, que passa a ser vista apenas como objeto de gozo e prazer, uma vez que se volta apenas para o hedonismo e para o consumismo desenfreado. A decadência dos valores éticos ocidentais que primavam a construção do homem na Polis através do exercício da virtude na relação com os seus, leva o homem pós-moderno a um vazio existencial, na busca por um sentido de viver, que só se dará verdadeiramente no comprometimento com as causas do interesse social. O homem pós-moderno deve recuperar sua identidade universal, não reproduzindo em si as características instrumentalizantes carregadas pela cultura da tecnologia.

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Contudo, isso só será possível quando este mesmo homem compreender que sua felicidade não está constituída nos elementos exteriores, fragmentários e plurais, os quais ele mesmo instituiu como princípios de seu agir. 3.2 O INDIVIDUALISMO PÓS-MODERNO E A ERA DO VAZIO SEGUNDO LIPOVETSKY

Como dito alhures, a característica da sociedade pós-

moderna ou contemporânea, centra-se no desaparecimento das instâncias externas ao sujeito enquanto modelos de orientação da vida prática. Segundo Lipovetsky96 (2010), que prefere o termo “Hipermodernidade”, a “Pós-Modernidade97”, a situação em que se encontra a sociedade contemporânea é denominada por ele como o “crepúsculo do dever”, na medida em que a noção do agir humano encontra-se em um dever orientado agora pelo próprio sujeito, que elimina de sua prática qualquer espécie de princípio externo a ele, seja metafísico ou religioso, significando assim o desuso das bases éticas antigas para se fundamentar em princípios

96 Gilles Lipovetsky nasceu em Millau, na França no ano de 1944. Atualmente é filósofo, sociólogo e vive com sua família em Grenoble. É doutor Honoris Causa pela Universidade de Sherbrooke (Canadá) e pela Nouvelle Université Bulgare (Sofia), recebeu a prestigiosa condecoração de Cavaleiro da Legião de Honra do seu país, onde é membro do Conselho Nacional dos Programas Educacionais e do Conselho de Análise Social, organismo de apoio ao Primeiro-Ministro. Seus livros foram publicados e traduzidos em 18 línguas. Atualmente, prepara uma obra sobre a nova sociedade de consumo. 97 Em Lipovetsky o conceito de pós-modernidade é encarado como continuação do processo moderno e elevação exagerada de seus ideais, daí ele preferir usar o termo hipermodernidade para se referir a esse processo. O termo “hiper” faz menção a uma exacerbação dos valores da modernidade, é a cultura do excesso determinada e marcada pelo efêmero em que o sujeito em ritmo acelerado busca a satisfação dos seus desejos (CRUZ; CARDOSO, 2011, p.41).

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subjetivos, que o próprio indivíduo elabora e legitima, segundo sua própria vontade.

Essa espécie de “revolução copernicana” do agir humano na era pós-moderna, que altera os princípios da conduta humana de acordo com a necessidade de cada pessoa, tem como horizonte norteador a ideia de consumo. Dito de outro modo, as ideias de felicidade, de Bem-Supremo, de “vida boa” e de virtude do novo homem são bem diferentes daquelas pregadas pelas éticas antigas. Segundo o autor supracitado, o pressuposto de felicidade almejado pelo homem de nossos tempos desemboca no aspecto materialista da sociedade contemporânea, cujo fundamento é o consumo como forma de preencher o vazio causado pela perca de referenciais de conduta, reduzindo a felicidade naquilo que é material e efêmero, sempre considerando que é a subjetividade a única fonte de discernimento da ação.

Nesse aspecto, ao invocarmos Aristóteles é possível compreender que o vazio do homem contemporâneo que busca ser preenchido por aquilo que é material e prazeroso, centralizando seu ideal de felicidade justamente na possibilidade de consumir, é resultado justamente da falta de um ideal fixo e objetivo do que seja a felicidade. Isso significa que o homem atual, a partir do momento em que se encontra desprovido de referenciais de conduta, entende que sua felicidade se encontra pautada em princípios materialistas e não concebe que suas ações tendem para um fim comum que é almejado por todos, resultado de uma vida virtuosa orientada pela razão, como propunha o estagirita. Desse modo, quando orientado por seus desejos, o homem contemporâneo está agindo contra a sua própria essência, pois não age racionalmente a fim de controlar suas inclinações, e com isso, acaba convertendo aquilo que seriam meios em fins absolutos.

Trata-se, no entender de Lipovetsky (2005a), de um período da história que pode ser chamado de “Era do Vazio”,

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onde a sociedade contemporânea, focada no consumo desenfreado, produz o paradoxo de estar ao mesmo tempo com excesso de oportunidades, de condições, de autonomia, de liberdade; mas também experimenta o vazio de referencial98, pois onde tudo pode, ninguém mais sabe o que é certo e o que é errado, gerando com isso novos tipos de angústias, problemas e expectativas. Assim, o filósofo constata os seguintes aspectos do mundo hipermoderno:

o enfraquecimento da sociedade, dos costumes, do indivíduo contemporâneo da era do consumo de massa, a emergência de um modo de socialização e de individualização inédito, numa ruptura com o que foi instituído a partir dos séculos XVII e XVIII [...] mutação histórica que ainda está se processando, considerando que, de fato, o universo dos objetos, das imagens e da informação, bem como os valores hedonistas, permissivos e psicológicos que estão ligados a ele, geram, simultaneamente uma nova forma de controle dos comportamentos, uma diversificação incomparável dos modos de vida, uma flutuação sistemática da esfera privada, das crenças e dos modos de agir; em outras palavras, uma nova fase do individualismo ocidental. (LIPOVETSKY, 2005a, p. XV)

O homem pós-moderno não age mais pelo dever, e

nem orientado por normas coletivas e pelo compromisso com o todo ao qual está envolvido, mas sua ação está ordenada segundo interesses pessoais, ao gosto de cada indivíduo, ou como metaforicamente cita Lipovetsky (2005b): vivemos numa sociedade “a La carte”. Por isso, o autor afirma que a moral atual é indolor, na medida em que o homem não se sente necessitado de abandonar seus interesses pessoais para

98 A era do consumismo “dessocializa” os indivíduos e correlativamente os socializa pela lógica das necessidades e da informação (LIPOVETSKY, 2005a, p. 88).

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pensar no bem da comunidade, podendo fazer o que quiser; e se por acaso a satisfação de seus interesses em algum momento for de contribuição para a coletividade assim seja, se não, o que prevalecerá será sempre o bem subjetivo. Nesse sentido, a noção de política para esse novo homem já não mais se aplica, pois como propunha Aristóteles, a ideia de homem político (zoon politikon) está justamente fundada na ação do homem com vistas ao Bem Comum; bem este que já não faz mais nenhum sentido para grande parte dos homens dos tempos “Hipermodernos”.

O individualismo tido como fundamento das ações do homem contemporâneo segundo Lipovetsky, pode explicar a atual crise das relações do mundo atual, quando ao estudarmos Aristóteles (1996), percebemos que o mesmo confronta esse tipo de orientação, ao afirmar que é através da união dos múltiplos interesses que se desenvolve o crescimento mútuo dos indivíduos baseado no relacionamento recíproco. Sendo assim, a noção de individualismo nunca promoverá a vida boa na sociedade, pois somente através da relação ativa entre as pessoas, que habitualmente se interagem, é que a ordem e o bem viver social podem ser garantidos. Dito de outro modo, seguindo o ideário aristotélico, o homem pós-moderno só conseguirá executar suas ações com maior excelência e eficácia, quando compreender que a relação com outras pessoas é crucial para o progresso da vida virtuosa.

Se o indivíduo político apresentado por Aristóteles (2009a, p.174), é aquele que procura unir-se ao seu amigo, por compreender que “com os amigos somos capazes de pensar e agir melhor”; e, assim, ser cada vez mais virtuoso na obtenção de melhores resultados em suas escolhas, evitando erros que individualmente seriam corriqueiros; o homem hipermoderno, que se caracteriza como objeto refém do consumo e do prazer, não valoriza a ideia de ser virtuoso e, por isso, não se importa em construir e muito menos manter

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relações duradouras com os seus, menos ainda quando estas se baseiam apenas no caráter e não oferecem nada de útil ou prazeroso como permuta.

O valor fundamental do homem contemporâneo passou a ser o da realização pessoal, devendo acima de tudo ser privilegiado o prazer sobre os princípios universais do dever, com base no respeito da singularidade. Nesse aspecto, o novo ideal de homem que vem sendo gestado nos últimos tempos passa, no entender de Lipovetsky (2005b), a requerer para si o direito de ser absolutamente si mesmo e de aproveitar ao máximo o que pode, independente das consequências provocadas aos que compartilham de sua convivência. Esse modo de ser, está intimamente conectado com a promoção de uma sociedade que institui o indivíduo livre como valor principal; indivíduo este que entende por “causa comum” simplesmente aquilo que corresponde ao seu ideário particular, fomentando assim a elaboração de uma ideologia individualista que põe em cheque os padrões de relacionamento interpessoal.

Todavia, toda a situação em que se encontra o homem contemporâneo e que promove consequências imediatas na sua relação com os seus, subjaz uma explicação plausível. Esclarece-nos Lipovetsky (2005a) que o ideal narcisista de nossos tempos ganha força e se radicaliza, na medida em que as referências exteriores desaparecem, obcecado por si mesmo, busca assiduamente sua liberdade a fim de seguir seu grande destino de autonomia e independência, mesmo que para isso tenha que renunciar ao amor pelo próximo, pois entende que: a valorização de si mesmo, a luta para satisfazer seus ideais e alcançar seus objetivos e a exclusão da necessidade de investir em outras pessoas, são os meios para se alcançar a felicidade. Deve-se investir cada vez mais no Eu para que a satisfação seja imediata, devendo suspender tudo aquilo que venha a ser motivo de espera e dependência.

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De fato, os valores atuais voltados para uma exaltação

da autonomia pessoal e da tolerância ao individual, expressos numa felicidade subjetiva, diverge totalmente da ideia de felicidade formulada por Aristóteles, para quem é inconcebível a busca pela vida boa e pela perfeição, sem uma orientação baseada segundo padrões universais. Nesse contexto, a verdade é que jamais a noção de amizade virtuosa como propunha Aristóteles fará sentido, na medida em que, para o estagirita o amigo é um “outro eu”, e assim sendo, o bem do amigo também se converte em bem para o outro. Ora, numa realidade em que o outro é um risco para que os objetivos individuais sejam alcançados, o amigo já não é mais concebido como “outro eu”, mas como uma “ameaça” para o “meu eu”; e por isso, ser amigo já não faz mais sentido, devendo-se assim evitar tal tipo de relação.

Para Lipovetsky (2005a), a cultura pós-moderna trata, sem sombra de dúvidas, de um vetor da intensificação do individualismo que gera no mundo hodierno a dissolução dos pontos de referência que até então sustentavam a ordem social e o agir moral. Além disso, a mudança do referencial de felicidade que passa agora a se fundamentar no consumo, deixa os homens entregues à volubilidade dos sentidos, criando assim novos princípios que se orientam unicamente a partir da relação do indivíduo consigo mesmo. Isso leva o sujeito a emancipar-se do balizamento disciplinar social, criando assim, o que Lipovetsky propôs chamar de indivíduo narcísico99.

Contudo, considerando o pensamento de Aristóteles, a orientação da vida pautada em princípios individuais tende a levar uma crise da noção de sociedade, pois para o estagirita,

99 O homem hipermoderno ou narcísico, é caracterizado principalmente pela sua desmotivação pela coisa pública e pela descontração e desestabilização de sua personalidade. Desse modo, o indivíduo narcísico não se preocupa em construir relacionamentos interindividuais, quando não, procura solapa-los (LIPOVETSKY, 2005a, p. 88).

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a Polis era o lugar onde o prazer poderia até servir como meio de uma determinada ação, mas nunca como fim último, ou seja, como algo análogo à felicidade verdadeira; quando a ação do homem fosse impulsionada apenas pelo prazer, sua ação era considerada má e acidental. Além disso, Aristóteles entende que através da amizade, enquanto primeira forma de relação entre os cidadãos, a sociedade mantém seus membros unidos, pois a philía desempenha não só função afetiva, mas principalmente educadora, habituando as pessoas para o exercício da virtude e da prudência, no sentido de que, a boa convivência e as conversas com o amigo, formam o cidadão virtuoso que é capaz de agir segundo a excelência, até mesmo na ausência da justiça, pois “quando as pessoas são amigas não tem necessidade de justiça” (ARISTÓTELES, 1996, p. 257-258).

Diferentemente da cidade antiga, temos hoje o que Lipovetsky chama de cultura do narcisismo, onde as questões cruciais que concernem a vida coletiva são consideradas com certa indiferença, sobrevalorizando o hedonismo e a subjetivação de todas as atividades objetivas. Para ele:

é essa destituição e mecanização do que antes era superior que caracteriza o narcisismo, não a pretensa situação de um indivíduo inteiramente desconectado do social e voltado para sua intimidade solipsista [...] o narcisismo é indissociável dessa [...] hipertrofia do ego, tudo isso com certeza pode ser mais ou menos pronunciado de acordo com as circunstâncias, mas a longo prazo o movimento parece ser irreversível porque coroa o sonho secular das sociedades democráticas. (LIPOVETSKY, 2005a, p. XXII)

Todo esse “deserto” hipermoderno, contagiado pelo

espírito da indiferença ao próximo, pela felicidade baseada no consumo e pelo consequente vazio referencial, agrava no homem contemporâneo a angústia, a tristeza e a solidão. Na

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medida em que o homem de nossos tempos demonstra profundo desinteresse pela organização coletiva, Lipovetsky (2005a) argumenta que, concomitantemente a isso, ocorre a submissão dos deveres à configuração do prazer, levando então esse mesmo homem ao repouso, ao desengajamento emocional, ao dever embasado na sua conveniência. Entre o dever e o prazer, o prazer passa a ser a ordem mais importante.

Todo esse cenário solipsista do mundo hipermoderno, onde o homem ao se afastar dos seus semelhantes, produz com isso consequências diretas no seu modo de ser e de agir, podem ser explicadas, ao evocarmos Aristóteles, pela falta de compreensão de que a relação entre as pessoas é algo indispensável para a realização da própria natureza humana. Desse modo, o que podemos inferir é que o homem de nossos tempos parece ter perdido sua dignidade enquanto ser racional, substituindo sua essência por algo efêmero e relativo. O homem político aristotélico, que não se concebe fora da Polis e do convívio com os seus, perde espaço para o homem do consumo, que não se concebe como ser de relações, mas que centrado em seu narcisismo, decide viver isolado, e por isso, vive numa vida de constantes problemas emocionais e de existência, como aponta o filósofo francês.

Assim, movido pelo prazer, o homem contemporâneo assume consequências inevitáveis pela postura que assume. Dito de outro modo, ao tornar o hedonismo como referencial da ação, o homem gera a perda de seu espírito de civilidade e de relação social dependente; o resultado de todo esse egocentrismo é a indiferença pelo bem comum, valorizando apenas a busca de si (LIPOVETSKY, 2005a). A satisfação do Ego próprio exige do homem narcísico o desinteresse cada vez mais acentuado para com o outro, o que promove cada vez mais a cultura do individualismo e da exaltação da subjetividade, enquanto modelo de ação condizente com as possibilidades apresentadas pelo sistema social vigente.

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Rememorando, assim, os tipos de amizade que

Aristóteles elenca na sua Etica a Nicômaco, classificados segundo ao objeto que se ama, podemos verificar que o homem do mundo hipermoderno não considera a amizade como um valor. A única amizade bem-vinda nesse cenário contemporâneo talvez seja aquela que visa simplesmente a utilidade, quando o outro significa para o sujeito não aquilo que ele é de fato, mas aquilo que ele pode fazer. A amizade, assim, é analisada segundo o critério de mensuração do outro por aquilo que ele representa socialmente para seu “amigo”. Segundo Konstan (2005), as práticas de amizade no mundo atual são, em sua maioria, baseadas em transações de interesses e obrigações, eliminando o caráter de afeição desinteressada. Citando Aristóteles, o autor supracitado afirma que o caráter instrumental da amizade não deveria ser o fundamento lógico para o relacionamento humano, uma vez que a amizade por utilidade é tida pelo estagirita como um acidente e não como uma virtude, pois em grande parte pode visar apenas o interesse de uma das partes envolvidas, o que fere o princípio da reciprocidade tão primordial numa relação amistosa efetiva.

Desse modo, o mundo hipermoderno e narcisista100 possibilita ao homem viver sem finalidade e sem sentidos sólidos, comuns e universais. A apatia toma conta da vida do homem. Trata-se de um momento de indiferença pura na qual

100 O conceito de narcisismo proposto por Lipovetsky denota todo o efeito do cruzamento entre uma ótica social individualista e hedonista, impulsionada pelo universo dos objetos e dos sinais, e uma lógica terapêutica e psicológica, elaborada desde o século XIX. Assim sendo, o homem “Narciso” é aquele que concomitantemente se torna o promotor e o principal receptor das consequências de um individualismo puro projetado para a valorização geral do indivíduo. Temos com isso a revolução de uma ética hedonista centrada apenas na satisfação das necessidades subjetivas, atomizando os indivíduos e esvaziando aos poucos as finalidades sociais de seus significados profundos (LIPOVETSKY, 2005a, p. 34-35).

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todos os desejos podem ser escolhidos de acordo com a vontade subjetiva, podendo todos coabitarem juntamente sem se excluírem. Desse modo, o homem organiza sua vida através do princípio do isolamento, focando apenas no seu ego e no seu próprio interesse. Quando o contato humano é sublimado em virtude da preferência pelo consumo desordenado, “o social é desativado, o desejo, o prazer e a comunicação [artificial]101 se transformam nos únicos valores” (LIPOVETSKY, 2005a, p. 25).

Obcecado cada vez mais pelo crescimento próprio e individual, o homem narcísico não dispõe de tempo para relacionar-se com os outros, até mesmo porque o tempo em que se consome em uma relação ou em uma amizade pode ser prejuízo em outros aspectos da vida, como propõe o jargão contemporâneo: “tempo é dinheiro”. Nesse sentido, a amizade proposta por Aristóteles102 pressupõe a convivência e o hábito, ou seja, para ser amigo de verdade e dispor de todas as garantias de um laço mais sólido é necessário intimidade e afinidade. Ora, num mundo em que o tempo é dedicado apenas para a satisfação dos interesses do indivíduo isolado e de forma imediata, tal amizade encontra barreira para ser executada, pois requer tempo e disponibilidade. Talvez faça

101 Corroborando com a análise de Bauman, Lipovetsky (2007, p. 144), assinala que toda a problemática desse movimento sistemático de dessocialização do homem contemporâneo, vem sendo cada vez mais estimulada pelo desenvolvimento das redes e de novas tecnologias da informação que acabaram se convertendo em meios eficazes na substituição das antigas relações humanas baseadas no tête-à-tête, ou seja, físicas, pelas interações virtuais, diminuindo assim o contato próximo e consequentemente promovendo a solidão. Em outras palavras, esse mundo das comunidades virtuais é a causa da destruição da comunidade real, do encontro direto e do laço coletivo. 102 Quando se fala em amizade proposta por Aristóteles, devemos ter em mente o ideal de amizade virtuosa, uma vez que as outras mesmo sendo consideradas amizade, são espécies acidentais, pois podem deixar de existir a qualquer momento, cessado o motivo da atração.

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sentido para o homem narcísico de nossos tempos a orientação aristotélica de que não se é possível viver de modo individualizado, pois quando temos amigos ao nosso lado, a possibilidade da realização de nossos objetivos se torna ainda mais real. Assim, o que o homem contemporâneo entende ser um benefício para alcançar seus ensejos, não passa de um impedimento no entender do estagirita.

Analisando a sociedade hipermoderna, Lipovetsky (2005a) constata que as relações humanas, neste novo cenário narcísico, acabaram se convertendo em relações de domínio e de conflitos, baseados na sedução fria e na intimidação, tornando-se cada vez mais bárbaras à medida que cada pessoa luta, ignorando qualquer tipo de abnegação, pela satisfação de seus próprios e únicos interesses. Nesse sentido, poder-se-ia sustentar a analogia de que a sociedade contemporânea se encontra doente, numa espécie de “epidemia” do desapego emocional, tendo como hospedeiro o homem Narciso e como sintoma basal a instabilidade das relações pessoais, etiologicamente oriunda da falsa ideia da possibilidade de uma independência afetiva.

Como dito alhures, Lipovetsky reconhece que o homem contemporâneo, caracterizado por sua indiferença ao coletivo e ao abrir mão da “coisa pública”, foi conduzindo sua realidade para o advento do indivíduo puro (Narciso), que na busca por si mesmo, acaba tornando-se enfraquecido, na medida em que abandona a relação com o outro103. Esse abandono provocado por essa condição apática, fez com que o sentimento de vazio e a solidão se tornassem um fato na

103 Para Lipovetsky (2005a, p. 89), apesar de sua maneira de ser e agir, movido pelo abandono da culpabilidade moral, o indivíduo narcísico é, apesar de tudo, inclinado à angústia e à ansiedade. Tudo isso porque, segundo o filósofo, o consumismo dinâmico e desenfreado, falseia no indivíduo uma perspectiva de dependência social, produzindo indivíduos flutuantes e cinéticos, permitindo um máximo de singularizarão dos homens.

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vida do homem. Contudo, ao mesmo tempo em que procura o isolamento, querendo estar só, o homem não suporta a si mesmo estando só, o que gera nele uma situação que em certo ponto chega a ser intolerável104.

Nesse aspecto, podemos concordar com Aristóteles que sustenta a ideia de que não se é possível viver sem amigos ou sem relacionamento humano efetivo, pois o homem é um ser de relações por natureza e somente atinge sua finalidade, isto é, somente é feliz, quando mediado pelo amigo, orienta sua conduta agindo racionalmente. Quando o homem entende que sua felicidade é um fim individualista, contrariando a máxima aristotélica de que para ser virtuoso, a ação do indivíduo deve estar orientada não para si mesmo, mas para os outros, ele está apto a aceitar passivamente a solidão e o mal-estar que toda essa escolha traz consigo.

104 Mesmo fazendo essa análise da atual situação do homem contemporâneo, Lipovetsky acaba sendo muito criticado por parte de grandes teóricos, justamente por não apresentar nenhuma solução que pudesse reverter essa disseminação incontrolável do individualismo no mundo hipermoderno. Para Lipovetsky, nada pode ser feito, uma vez que esse é o momento da história e precisa ser vivenciado. Todavia, não se trata de um pessimista, mas talvez de um realista, na medida em que não considera que esse seja o fim da condição humana, pois segundo ele, “chegará o dia em que a procura da felicidade no consumo não terá mais o mesmo poder de atração, a mesma positividade: a busca da realização de si acabará por se desprender da corrida sem fim aos prazeres dos consumidores [...] esse momento, inevitavelmente, chegará. Da mesma maneira que a opção consumista é uma invenção histórica datada, seu futuro não será eterno [...] O hedonismo já não constituiria o princípio axial ou estruturante da vida [...] O Homo consomator não terá desaparecido: terá perdido seu imaginário luxuriante e sua centralidade triunfal (LIPOVETSKY, 2007, p. 368-369). Corroborando com essa discussão, Bauman (2004, p. 90), afirma que o homo oeconomicus e o homo consumens são homens e mulheres sem vínculos sociais, que se dedicam unicamente a satisfação das necessidades de um mundo governado pela economia de mercado.

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Em suma, o homem narcísico apontado por

Lipovetsky, que valoriza o individualismo como garantia de ascensão, opõe-se duramente ao ideal de homem aristotélico que não compreende a sociedade de outra forma, a não ser por aquela composta de povos sociáveis cuja base é a amizade, uma vez que a privação da companhia humana significava o auge do sofrimento, pois a ausência de laços humanos subjaz à deturpação da própria natureza humana. No mundo hipermoderno, a substituição de pessoas por objetos, com vistas à satisfação de prazeres voláteis, é uma das faces desse novo cenário de colapso da comunidade política, que requer intensamente o retorno de laços amistosos duradouros e centrados na virtude. 3.3 ZYGMUNT BAUMAN E A LIQUIDEZ DOS LAÇOS HUMANOS NA SOCIEDADE DO DESCARTÁVEL

A atual situação do homem contemporâneo também

pode ser explicada a partir da análise de Zygmunt Bauman105,

105 Zygmunt Bauman, nasceu na cidade de Posnânia, Polônia, no dia 19 de novembro de 1925. Aos 18 anos, em 1943, se alista ao exército polaco formado na própria União Soviética, sendo que neste ínterim, se dedica ao estudo da Física motivado por um anseio profundo de desvendar as incógnitas do universo. Após o fim da guerra — sendo logo nomeado major do exército polonês, um dos mais jovens da corporação —, Bauman retorna a uma Polônia devastada. É diante deste cenário que, em 1946, Bauman ingressa na Faculdade de Filosofia e Ciência Sociais da Universidade de Varsóvia. Nos anos 80 e no final dos 90, desenvolve a fase moderna do seu pensamento realizando dura crítica a modernidade. Desde de 1971 passou a residir na Inglaterra e atualmente, é professor emérito das Universidades de Varsóvia e Leeds. Consagrou-se como um dos sociólogos contemporâneos mais profícuos e expressivos, dedicando grande parte de seu tempo à análise dos mais variados temas contemporâneos, tais como política, amor, comunidade, trabalho, consumo, identidade, tempo, entre outros. Lançando mão de dados estatísticos, Bauman prefere, geralmente, falar a partir do cotidiano do ser

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para quem, o que houve não foi de fato um rompimento com todo o aparato erigido durante a modernidade, mas sim, uma espécie de dissolução ou derretimento dos valores indeléveis, sólidos e consolidados durante esse período; ou seja, os valores tornaram-se líquidos, inconstantes, fluidos, levando à despersonalização do indivíduo, cujos princípios passaram a ser diluídos segundo o gosto do próprio homem106. Por isso, ao verificar o fenômeno da pós-modernidade e todos os eventuais efeitos que dela decorrem, prefere chamá-la de Modernidade Líquida107, uma vez que o prefixo “pós”, pode indicar sentido cronológico, sugerindo assim certa substituição ou desaparecimento das características modernas.

humano e de um olhar eclético e perspicaz, que vai além dos cânones acadêmicos (SANTOS, 2014). 106 Os termos utilizados por Bauman para descrever os aspectos da sociedade nos tempos contemporâneos, tais como “liquidez”, “fluidez”, “descartável”, etc., é um modo metafórico que o autor utiliza para inferir que o indivíduo pós-moderno surge como resultado da liquefação dos valores da modernidade (CRUZ, 2013). Bauman (2001), especifica-nos o termo “fluidez”, como sendo a qualidade de líquidos e gases que os distingue daquilo que é sólido, onde tais fluídos não são capazes de permanecer intactos quando submetidos a uma força, sofrendo mudanças constantes de forma e posição. Nesse sentido é que Bauman vê na metáfora da fluidez a melhor forma de descrever a natureza do estágio atual da sociedade. 107 Modernidade líquida é o conceito utilizado por Bauman para apresentar as principais características e aspectos do mundo atual. As muitas esferas da sociedade como a vida privada, vida pública, os laços de relacionamentos estão passando por várias mudanças e levando o tecido social a se enfraquecer. Esse enfraquecimento faz com que as instituições percam a solidez. Assim como os líquidos, a modernidade líquida é o tempo de desapego, do provisório e da individualização. Ao mesmo tempo em que é época de liberdade também é tempo de insegurança. Para Bauman, os homens dessa era nas grandes cidades têm a sensação de impotência. O vizinho é o desconhecido, o sujeito pós-moderno tem medo, está ansioso, seu relacionamento para com o outro foi mercantilizado (CRUZ, 2013, p.43).

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Todo esse cenário líquido faz do homem mais um

objeto que tende a ser consumido, imerso numa realidade de indiferença e incerteza, ao mesmo tempo em que sua vida, pautada no consumo, impede que suas relações com seus pares sejam duradouras, se é que ainda se pode dizer que existam relações, no sentido mais estrito do termo. Para Bauman (2001), a vida do homem contemporâneo ao se organizar em torno do consumo desenfreado, faz do indivíduo não mais um ser de relações, mas um ser de competições. Ora, na medida em que a sedução, os desejos e os quereres voláteis e não mais as prescrições normativas se tornam a “bússola” da vida do homem hodierno, esse mesmo homem só se compreende enquanto pertencente a uma sociedade de consumidores, cujo sucesso se encontra em sua aptidão em consumir cada vez mais ilimitadamente, não havendo qualquer outro tipo de relação que lhe possa servir como ponto de referência. Para Bauman (2004, p. 111)

o “relacionamento puro” tende a ser, nos dias de hoje, a forma predominante de convívio humano, na qual se entra “pelo que cada um pode ganhar” e se “continua apenas enquanto ambas as partes imaginem que estão proporcionando a cada uma satisfações suficientes para permanecerem na relação”.

Retomando Aristóteles, podemos perceber, a partir

desse enunciado de Bauman, que o homem destituído de valores sólidos também é um homem destituído de capacidade de relacionar-se de maneira virtuosa. Prova disso é que, segundo o estagirita, o fato de prestar benefício mútuo a uma outra pessoa não constitui necessariamente uma relação de amizade, pois como já exposto anteriormente, isso se caracteriza como um ato de benevolência, que é apenas o princípio de uma amizade. O fato é que nem mesmo a benevolência sugerida por Aristóteles pode ser contemplada

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nos laços humanos do homem contemporâneo, pois no entender do filósofo de Estagira, a benevolência enquanto princípio da amizade consiste na ação do bem ao outro, sem qualquer intenção de retorno proporcional de favores; faz-se o bem porque é virtuoso assim o fazer. Ora, se a amizade virtuosa em Aristóteles não se reduz ao simples fato de responsabilidades contraídas, tal situação dos laços humanos no mundo de hoje se assemelham muito mais a um tipo específico de amizade categorizado por Aristóteles, a saber: a amizade com vistas à utilidade, onde a relação se mantém enquanto a satisfação interesseira permanecer constante.

Nesse sentido, assim como já nos propunha Lypovetsky, ao perder de vista os valores basais que orientavam a vida humana desde os tempos antigos, Bauman (2011a), entende que estamos vivendo numa época onde a moralidade encontra-se líquida, pois o que se preza é o desejo cada vez mais incessante pelo consumo que só pode ser executado de modo exclusivamente individual, isto é, subjetivamente; a fim de que não se corra o risco de se ter qualquer tipo de prejuízo ao consumir. Ora, se assim o é, a consequência mais imediata desse isolamento egoísta é a conversão do outro num estranho que só tem importância na medida em que possa satisfazer esses mesmos objetivos egoístas.

Assim, Bauman (2001) indica que a consequência dessa permuta nas relações, onde o outro não se torna importante pelo que ele é, mas pelo que pode me fazer de útil, é justamente a ruptura de certos vínculos e o cancelamento de certas obrigações, tornando o outro objeto descartável na medida em que as necessidades de cada um possam ser satisfeitas. O “homem líquido”, acreditando que à sua felicidade basta competência pessoal, acrescenta a essa competência a possibilidade de fazer novos amigos segundo sua vontade e necessidade e se desfazer daqueles que não lhe oferece mais atração ou benefício, relativizando as relações

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entre seus semelhantes. Assim sendo, nesse mundo inseguro e imprevisível:

as condições econômicas e sociais precárias treinam homens e mulheres a perceber o mundo como um contêiner cheio de objetos descartáveis, objetos para uma só utilização; o mundo inteiro – inclusive outros seres humanos [...] Como os compromissos de hoje são obstáculos para as oportunidades de amanhã, quanto mais forem leves e superficiais, menor o risco de prejuízos. (BAUMAN, 2001, p. 186-187, negrito do autor)

Reiterando com maior autoridade a reflexão outrora

exposta, vemos nesse aspecto de descartabilidade do sujeito, considerado apenas como objeto, a manifestação mais contundente da amizade por utilidade especificada por Aristóteles na Ética a Nicômaco. Assim como na amizade cujo objeto de amor é unicamente a satisfação de uma necessidade que outra pessoa pode prover ao amigo, os tempos líquidos expressam exatamente essa relação caracterizada pela instabilidade e pela provisoriedade. Dito de outro modo, o que define as atuais relações entre as pessoas, segundo a perspectiva de Bauman, é justamente o aspecto utilitário o qual Aristóteles já havia apontado, onde se conquista a amizade para atender a um interesse momentâneo e, logo em seguida, essa relação é descartada, uma vez que não poderá se conservar, visto que seu fundamento não estava embasado no caráter.

Esse fenômeno de “descartar” o outro, quando não mais apresenta aspectos de utilidade ou benefício, é uma atitude típica, no entender de Aristóteles, de pessoas mercenárias, pois tais pessoas não amam a essência do outro ser (seu semelhante), mas aquilo que ele pode lhe proporcionar. Contudo, seguindo o pensamento do estagirita, não se pode afirmar de modo convicto que o “homem líquido” haja totalmente de modo irracional ao executar tal

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ato, uma vez que, para Aristóteles (1996), os homens desejam, por sua natureza e centrados em seu caráter, realizar ações nobres; todavia, impulsionados pelo desejo acabam escolhendo aquilo que lhes traz alguma vantagem. Mesmo assim, isso só ocorre naquele tipo de amizade em que a utilidade é o fim da ação amiga e, por isso, tais homens continuam sendo qualificados como mercenários.

O fato é que os laços humanos se tornaram tão precários em nossos tempos que acabaram se convertendo em contratos duráveis, até que a satisfação por determinada parte seja alcançada. Desse modo, Bauman (2001) declara que os laços e parcerias de hoje passaram a ser tratados como coisas destinadas a serem consumidas e não produzidas conforme o tempo e o hábito; e justamente por esse motivo tornam-se cada vez mais enfraquecidos e acabam se decompondo e sendo transitórios; ou, em termos do próprio autor, se tornam líquidos e fluidos108.

Por isso, segundo o sociólogo polonês os encontros entre as pessoas tornaram-se cada vez mais breves e superficiais. Há um paradoxo visivelmente presente em nossos tempos, afirma Bauman (2001, p. 114): “por mais cheios que possam estar, os lugares de consumo coletivo não têm nada de ‘coletivo’”. A relação física entre as pessoas que coabitam num mesmo ambiente não significa necessariamente que desenvolvem uma relação moral e cívica enquanto pessoas humanas, tal como propunha os antigos109.

108 Os habitantes desse mundo líquido, são avessos a tudo o que é sólido e durável, pois a única coisa agradável é aquilo que se apresenta como instantâneo e que pode ser usado como barganha. Por isso, o homem pós-moderno não se interessa em manter os laços afetivos vivos e saudáveis, pois isso requer uma luta diária, exigindo vigilância constante, preço este que o homem de nossos tempos não está disposto a pagar (BAUMAN, 2004, p. 46). 109 No entender de Bauman (2004), o mundo de hoje parece estar conspirado contra a confiança, valor este tão imprescindível para se compreender a amizade na visão aristotélica. Para Bauman, o que se

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A liquidez das relações humanas no mundo contemporâneo não permite que os encontros sejam duradouros e muito menos profundos, justamente porque o intento é o da satisfação dos desejos vigentes. É bem verdade que ao se encontrar, as pessoas não estão pensando em conversar ou socializar, o objetivo é outro:

vale a pena ter interesses pelos outros, uma vez que é razoável supor que os outros apreciarão, oferecerão crédito de confiança, e eventualmente retribuirão com cortesia, quiçá com outras vantagens. (BAUMAN, 1997, p. 82)

Todas essas características dos relacionamentos

atuais, apontados pelo sociólogo polonês, vão na contramão do que assinala Aristóteles, para quem a verdadeira amizade, ou seja, os verdadeiros encontros entre as pessoas têm por propósito algo sólido, permanente e definitivo. A conquista da confiança é a base para o desenvolvimento da amizade segundo o filósofo de Estagira; o que requer tempo e disponibilidade de convivência. Por isso, em tempos onde os encontros são esporádicos e instantâneos, torna-se difícil conceber um tipo de relação onde a confiança seja conquistada em seu sentido mais estrito, longe de interesses passageiros ou efêmeros. Os critérios aristotélicos para a solidificação de uma amizade verdadeira, tais como: tempo, convivência, hábito e experiência, parecem ausentes nos espaços atuais que estão ao mesmo tempo cheios de pessoas, mas vazios de laços promotores do bem comum.

observa é uma perpétua inconstância das regras e a fragilidade dos laços, onde o compromisso com as pessoas tornou-se algo a ser evitado a todo custo. No mundo líquido e fluido, o ato de conhecer uma pessoa requer em primeiro lugar vigilância, sendo a confiança conquistada a partir do critério de utilidade, perdendo o sentido quando não traz benefícios, podendo assim ser cancelada qualquer tipo de obrigação e relação entre os envolvidos.

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Na atitude egoísta do “homem líquido”, que pauta sua

vida no consumo, o que se reconhece é a fuga por parte do indivíduo da sua própria existência, abandonando os compromissos duradouros e sólidos, ao entender que são possíveis meios de opressão e de risco para sua dependência110. Dito de outro modo, o homem dos tempos líquidos, conhecendo a atual situação da sociedade e o modo em que se encontram organizados os sistemas, tem medo de se relacionar com os seus semelhantes por supor que pode ser usado no máximo de suas capacidades e, depois, ser meramente descartado quando não mais útil.

Toda essa situação crítica é, ao mesmo tempo, causa e consequência de um distanciamento cada vez mais acentuado das relações íntimas entre as pessoas, que acabam verificando seus pares como estranhos, dos quais pouco se sabe para que se possa haver uma interação mais efetiva e sólida (BAUMAN, 1997). Para o autor, toda essa situação de estranheza fomenta ainda mais a crise de confiança entre as pessoas, pois aqueles com os quais não se mantém uma relação de proximidade não se conhece; e se não se conhece, inexiste a possibilidade de desenvolver confiança e, consequentemente, laços sólidos, como afirma:

110 Bauman trabalha nesse aspecto, os conceitos de mixofobia e mixofilia. Mixofobia é uma espécie de sensibilidade alérgica e febril ao estranho e ao desconhecido; e mixofilia é contrariamente, o desejo de misturar-se com o diverso justamente por achar interessante. Nesse sentido, o sociólogo polonês entende que esses dois aspectos coexistem na sociedade contemporânea; justificando assim o fato de que a ação do mundo líquido (que prefere o individualismo e a fluidez das relações entre as pessoas) sobre o indivíduo (que por natureza busca relacionar-se), faz com que essas duas condições atuem sobre a vida do homem contemporâneo. Para Bauman (2004, p. 139), “os homens e mulheres inseguros de seu lugar, de suas perspectivas de vida e dos efeitos de suas próprias ações, são mais vulneráveis à tentação mixofóbica e mais propensos a caírem em sua armadilha”.

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a “estranheza” dos estranhos significa precisamente nossos sentimentos de estar perdidos, de não saber como agir e o que esperar, e a derivante falta de vontade de comprometimento. Evitar o contato é a única salvação, mas mesmo evitá-lo completamente, se fosse possível, não nos salvaria de grande grau de ansiedade e desassossego causados por uma situação sempre carregada do perigo de passos em falso e de erros custosos. (BAUMAN, 1997, p. 210-211)

A ausência de laços sólidos e recíprocos entre os

indivíduos, resultando numa sociedade onde a característica é a fragilidade ou fluidez dos laços sociais, não passa de um efeito oriundo, segundo Bauman (2001), do esforço que o homem de nossos tempos emprega a fim de manter distante seu semelhante, para evitar a necessidade de comunicação, negociação e compromisso mútuo. Tudo isso porque, na era do descartável, o homem encontra-se pautado num propósito inteiramente interesseiro e subjetivo, tendo medo do espaço público e da relação com o outro; o semelhante é tratado como estranho, como aquele que pode subtrair o que foi conquistado ou impedir que algo seja adquirido. A confiança já não se faz presente, o comprometimento com o coletivo não é mais prioridade e a arte do diálogo converteu-se em risco na busca por oportunidades, deixando de existir. Assim, não havendo reciprocidade entre as pessoas e a moral estando diluída, a justiça legal se torna o meio mais eficiente na organização da ação humana. É o que nos assinala Bauman (1997, p. 86-87):

essa fraqueza da reciprocidade generalizada é convite contínuo para interferência legal e a principal razão pela qual raramente se confia em “decência meramente moral” como fundamentação sólida para qualquer empreendimento coletivo, e certamente nela não se confia como material de construção para estrutura estável da

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sociedade [...]. Em sua capacidade impessoal, as partes não precisam estar, e costumam não estar, interessadas no bem-estar mútuo [...]. Entra-se em contratos para salvaguardar o próprio bem-estar. A entrada tem o propósito explícito, propósito inteiramente interesseiro.

Nesse sentido, ao retomarmos o capítulo VIII da Ética

a Nicômaco, quando Aristóteles (1996, p. 258) postula a máxima de que “as pessoas que são amigas não precisam de justiça”, percebemos em nossa sociedade líquida que a falta de relacionamentos sólidos entre as pessoas torna esse pressuposto aristotélico cada vez mais utópico. Isso significa que, não havendo amizades verdadeiras entre as pessoas, que são a base para os demais tipos de relações humanas, a única forma de garantir o bem-estar social e a ordem devem ser os meios jurídicos. Nesse aspecto, podemos refletir se o ideal de justiça de nossos tempos, formada por homens com valores morais multifacetados e vivendo uma vida sem finalidades concretas, serve de fato para manter a unidade. Aristóteles, já no tempo antigo, contemplou na amizade o meio mais natural da união entre os homens; todavia, o homem contemporâneo, depois de tantos séculos, parece regredir no uso de sua racionalidade, preferindo normas e leis em detrimento de laços afetuosos e muito mais agradáveis e louváveis para se viver.

De fato, a instantaneidade com que o homem contemporâneo trata o tempo do seu dia, muda radicalmente a modalidade do convívio humano. Para Bauman (2001), o homem pautado na ideia de consumo como critério de felicidade, faz com que as relações de curto prazo se sobreponham àquelas de longo prazo, pois entendem que estas últimas possam ser causa de prejuízos ao exigirem tempo demasiadamente extenso para sua manutenção. Desse modo, o outro passa a ser tratado simplesmente como “objeto transitório” e não durável, destinado a ser usado e descartado

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assim que sua participação no processo de consumo for encerrada. Assim, não é somente o convívio humano enquanto modo de relação e afetividade entre as pessoas que muda, mas muda também, e severamente, o modo como os humanos cuidam de seus afazeres coletivos (quando cuidam); ou o modo como transformam certas questões em questões de cunho social.

Ora, se na sociedade líquida a estranheza entre os humanos deve ser preservada a fim de manter a atual condição da vida, atendendo aos interesses de um sistema que cada vez mais se beneficia às custas da diluição das relações para assim poder consumi-las, Bauman (1997), constata então que, a vida do homem hodierno significa justamente o viver com estranhos, não sendo concebível, nas atuais condições em que os valores encontram-se fluídos e dissolvidos, a interação comunitária entre os membros.

Embora seja desejo natural do ser humano viver em comunidade, com pessoas amigáveis e nas quais pudesse confiar, como já havia ratificado Aristóteles, os tempos em que vivemos são tempos de competição, de desprezo, de falta de confiança, e marcados pela decadência de valores altruístas. O conceito de “comunidade” evoca exatamente tudo aquilo de que hoje sentimos falta e de que precisamos para viver seguros e confiantes, mas infelizmente tal estado de unidade e comunhão encontra-se cada vez mais distante de nosso alcance. Para Bauman (2003), o fenômeno contemporâneo da globalização, considerada fundamental causa de aproximação entre as pessoas, antagonicamente, tem levantado ainda mais barreiras a fim de garantir a defesa da singularidade de indivíduos isolados. Contudo, o autor nos exorta que tal estado de vida, isto é, aquele preconizado por Aristóteles, é o estado em que “esperamos ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente os caminhos que podem levar-nos até lá” (BAUMAN, 2003, p. 9).

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Uma sociedade justa e feliz, no entender de

Aristóteles, seria aquela onde o homem virtuoso, orientado por sua razão, compreendesse que a sua realização pessoal só tem sentido se houver também a realização do outro. Por esse motivo, o estagirita compreende que uma sociedade bem alicerçada tem como fundamento a tríade: justiça, felicidade e amizade. Ora, se na sociedade contemporânea os indivíduos buscam o isolamento e o egoísmo, pode-se inferir que o alicerce social se encontra frágil e, assim, não é a globalização a solução para tal problemática. A globalização será capaz de alterar a atual sociedade líquida se, somente se promover a aproximação verdadeira e sólida entre as pessoas; e não um “placebo” de proximidade sem resultados profícuos para a problemática vigente.

Na concepção de Bauman, os únicos princípios morais de que dispomos são aqueles herdados dos tempos pré-modernos e que, de fato, constituem uma moralidade de proximidade. Contudo, na sociedade de nossos tempos tal moralidade se torna inadequada, já que toda ação importante é uma ação à distância. Assim, os ideais e modelos de relacionamentos entre as pessoas ganham traços característicos dessa nova realidade; tal como ocorre com a amizade, onde

você tem uma nova espécie de amizade que é de espécie técnico-racional [...] quando você tem amigos para sua diversão e prazer, você tem uma nova espécie de amizade – uma amizade na qual são os amigos que são para você, em vez de você ser para eles. (BAUMAN, 1997, p. 259)

Para o autor supracitado, a partir do momento em que

os laços humanos se tornam objetos de consumo, e por esse motivo, provisórios, deixam de ser algo a ser trabalhado com grande esforço e sacrifício, levando assim à transitoriedade das parcerias. Desse modo, quando tais laços não se

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convertem em satisfação imediata e instantânea, acabam por serem rejeitados. Esse aspecto apontado por Bauman, subjaz que as relações de amizade, tão prezadas por Aristóteles, não fazem sentido nesse mundo de lutas e competições, pois o consumo se caracteriza como sendo uma atividade solitária, e os seres humanos, ao se tornarem um conjunto de itens de consumo, fazem com que a manutenção de laços amigáveis e profícuos, não passe de um ideal. É bem verdade que essa análise feita pelo autor implica numa referência geral da sociedade, não significando necessariamente uma verdade universal.

De modo concreto, o aspecto comunitário em tempos de liquidez, exclui das relações humanas os compromissos a longo prazo, que se traduzem em responsabilidades éticas. Isso se dá devido à ausência, na modernidade líquida, de um estado final para a qual tendem as ações humanas; e que, por isso, tornam-se transitórias. Para Bauman (2003), a relação comunal atual não oferece garantia de durabilidade sólida, devido justamente a essa ausência de um fim comum estabelecido; e que impede a duração e a estabilidade da manutenção das relações, justamente por que tais fins se pautam em decisões individuais e que facilmente são dissipadas segundo a vontade.

Contudo, se para alguns a atual condição da modernidade líquida se tornou confortável e até mesmo adequada para a preservação de seus interesses, para aqueles indivíduos desprovidos de recursos e cujas decisões pessoais não têm significância impactante para o todo, a coletividade ainda é um abrigo desejado e esperado, sendo considerada um fundamento sólido em detrimento das escolhas individuais que são voláteis e instáveis. Segundo as palavras de Zygmun Bauman:

por mais que prezem sua autonomia individual, e por mais confiança que tenham em sua capacidade pessoal e privada

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de defendê-la com eficiência e dela fazer bom uso, os membros da elite global por vezes sentem necessidade de fazer parte de alguma coisa. Saber que não estamos sós e que nossas aspirações pessoais são compartilhadas por outros pode conferir segurança [...]. O que quer que nos separe e nos leve a manter distância dos outros, a estabelecer limites e construir barricadas torna a administração das tarefas ainda mais difícil. Todos precisamos ganhar controle sobre as condições sob as quais enfrentamos os desafios da vida – mas para a maioria de nós esse controle só pode ser obtido coletivamente. (BAUMAN, 2003, p. 60, 133-134, negrito do autor)

Assim sendo, a durabilidade prolongada das relações

entre os indivíduos passou de um recurso profilático de manutenção da vida comunitária para um risco eminente de preservação da atual condição pós-moderna. Desse modo, o sociólogo polonês declara que entre os principais objetos culturais dessa era da instantaneidade, que têm contribuído significativamente para reduzir a durabilidade das relações entre as pessoas devido ao seu uso negligente, estão os aparelhos que possibilitam as relações virtuais entre os indivíduos (BAUMAN, 2001). Para o autor, tais tipos de relacionamentos intensificam ainda mais o descomprometimento efetivo das partes envolvidas na relação, porque são ainda mais efêmeros e descartáveis, podendo ser desfeitos e retomados com mais facilidade. 3.3.1 A “virtualização” das relações humanas na Era do Descartável

Partindo da análise exposta anteriormente, podemos

constatar que o atual cenário de nossa sociedade pautada no consumo, transferiu para o contexto das relações humanas a ideia de obtenção e utilização de bens num curto período de tempo, tornando assim o homem um objeto de consumo,

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permitindo que as relações entre os sujeitos, assim como as mercadorias, sejam reguladas a partir do custo-benefício. Isso tem como consequência imediata a constituição de uma sociedade marcada muito mais pela fluidez do que pela estabilidade.

Somado a isso, em seus estudos sobre Bauman, Silva e Carvalho (2014) afirmam que diante de toda essa caracterização social contemporânea descrita pelo sociólogo polonês, um tipo especial de relação humana denominada de amizade, encontra-se fragilizada por uma série de fatores que promovem aspectos de descartabilidade, quantificação e hedonismo, de modo que um dos fatores que contribui para essa fragilidade das relações amistosas seja, justamente, as relações oriundas das tecnologias virtuais.

Para o sociólogo polonês, as relações virtuais, triviais em nosso tempo, expressam de modo direto a fragilização dos vínculos humanos. Tais meios que surgiram com o intuito de diminuir distâncias, acabaram tornando-se meios propícios para que os indivíduos se afastassem de conflitos, oriundos propriamente, da maior proximidade física entre as pessoas. O autor compreende ainda que, quanto mais acentuada a distância promovida pelas relações virtuais entre as pessoas, maior será o grau de dificuldade para se estabelecer vínculos duradouros entre elas; como reflexo disso temos o fato de que:

[...] desapareceram o banco local e os escritórios da construtora, substituídos por vozes anônimas e impessoais (cada vez mais produzidas por sintetizadores eletrônicos) do outro lado da linha ou por ‘amigáveis’, embora infinitamente remotos, ícones da web sem nome e sem rosto [...]. Chegaram as lojas de departamentos e cadeias de butiques [...] que trocam de pessoal a uma tal velocidade que reduz a zero a chance de se encontrar duas vezes seguidas o mesmo vendedor [...] foi-se a maioria dos pontos firmes e solidamente marcados de orientação que

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sugeriam uma situação social que era mais duradoura, mais segura e confiável do que o tempo [atual] de uma vida individual. (BAUMAN, 2003, p. 47)

Assim sendo, compreender que “amigos virtuais”

sejam verdadeiramente amigos no sentido mais estrito do termo, torna-se um erro conceitual e semântico no entender de Bauman. Corroborando, ao evocarmos Aristóteles (1996), para quem a amizade era um convite a humanizar-se, não se pode admitir a existência da amizade sem a promoção do convívio. Desse modo, a relação virtual entre duas pessoas não consiste numa relação amiga, pois não suscita a convivência necessária e inexorável para a busca do bem; tal relação se traduz apenas em mais uma forma de facilitar o aspecto descartável dos laços humanos, segundo o binômio “Adicionar – Excluir”, conforme a utilidade.

As relações virtuais têm, na facilidade da proximidade e do distanciamento entre as pessoas, o seu maior atrativo. Segundo Bauman (2011a), o rompimento de relações humanas, principalmente amizades, é sempre um evento muito traumático quando realizado na presença física dos envolvidos; por outro lado, as conexões virtuais permitem esse rompimento relacional de uma forma menos ríspida e com menor crise de consciência.

Ora, as relações online-offline, como destaca Bauman (2011b), funcionam como mecanismos que permitem aos indivíduos deletarem ou adicionarem, num curto período de tempo, o maior número de pessoas em sua vida, a fim de que se possa evitar consequências incômodas que as relações duradouras e profundas possam causar. Nesse aspecto é que o conceito de descartável em Bauman ganha sentido, uma vez que a utilidade do outro passa a ser o fundamento e o critério da manutenção das relações.

Para as relações que desgastam demais o tempo, tais como aquelas que exigem proximidade física, a duração não

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convém ser mantida, uma vez que o tempo é algo precioso e que na atual condição pós-moderna, não é proveitoso ser usado em relações que não visem o desenvolvimento, seja econômico ou de qualquer outra esfera. Por esse motivo, as relações virtuais se tornaram mais proveitosas ao se caracterizarem pela ausência de proximidade moral e de compromissos duradouros, facilitando assim a manutenção do homem fechado em si mesmo, que só consegue manter frágeis, porém, em muitos casos, numerosas relações “interpessoais-virtuais”.

Novamente podemos compreender que nas relações virtuais o que se apresenta é uma espécie de companheirismo, que se afasta do conceito de amizade verdadeira proposto por Aristóteles. Para o estagirita, só podemos supor que duas pessoas são de fato amigas, quando para ambas há o desejo inerente de passarem os dias juntas, por entenderem que o convívio e a partilha da vida comum se constituem na plena realização do ato amigo. Contudo, o fato de ter afeição por uma pessoa, como ocorre nas relações virtuais, segundo Bauman, não se traduz em amizade para Aristóteles, pois o fato de apreciar o outro desprovido da convivência não conduz à verdadeira amizade.

Nesse sentido, o sociólogo polonês afirma que muitos dos termos que se convencionou aplicar no mundo virtual, não condizem com sua essência no mundo real. Dito de outro modo, Bauman (2003) exemplifica seu argumento declarando que o conceito de comunidade adotada para as chamadas “redes sociais” do mundo virtual, não passa de uma falácia, no sentido de que tais comunidades não procuram a unidade e o relacionamento próximo proposto pelo ideal de comunidade que temos. Pelo contrário, tais comunidades existem justamente para garantir a distância íntima entre os indivíduos, sendo comunidades só de nome e jamais na prática efetiva. Esses tipos de relações já surgem com um

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prazo pré-definido de duração, dependendo das vantagens e benefícios que possam dispor ao sujeito.

Do mesmo modo, o conceito de amigo, no mundo virtual, não é o mesmo quando relacionado ao termo amigo no mundo real. Segundo Bauman (2011a), os “amigos” do mundo virtual são, em grande parte, numerosos e, na maioria das vezes, não passam de pessoas com as quais se teve um único contato físico na vida, ou até mesmo, nenhum. Esse tipo de amizade é marcado pela instantaneidade e pela fluidez de sua relação, uma vez que pode ser desfeita quando não mais for útil. Assim, a satisfação imediata é a consequência que se espera das relações amistosas do tipo virtual, caracterizadas acima de tudo pela facilidade com que são criadas e, ao mesmo tempo, desfeitas.

Aristóteles já acenava para o risco de tornar verídica a amizade sem a prática do convívio e do hábito entre os amigos. Para o estagirita “o desejo de amizade nasce depressa, mas a amizade não” (ARISTÓTELES, 2009a, p. 179). Portanto, segundo o pressuposto de Bauman acerca das relações virtuais, podemos supor que os vários “amigos” que um indivíduo possui em uma rede social, na verdade se constituem como um tipo de amizade muito específico da filosofia aristotélica: a amizade por utilidade, pois somente nela é possível que haja uma grande quantidade de amigos, que em suma não precisam de atenção total e dedicação intensa, pois o que visam é apenas satisfazer suas necessidades, sem criar laços duradouros ou estáveis, mas sim provisórios.

É nesse sentido que Bauman tece uma dura crítica à unificação do conceito de “amigo” nesses dois mundos, de modo que não se constituem numa mesma espécie de relação. Para ele, a atual condição das relações amistosas reais no mundo hodierno, marcadas pela liquidez e fragilidade, é justamente o reflexo do que acontece no mundo virtual de relacionamentos frágeis. As relações estabelecidas mediante o

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vínculo virtual, justamente por sua origem e pela ausência de características altruístas, quando comparadas aos laços humanos da vida real, constituem-se como relacionamentos superficiais e, por isso, nada duráveis.

Receando os desafios das relações reais, o “homem líquido” sente-se atraído pelas relações virtuais, na medida em que estas fornecem a ele um conjunto de possibilidades razoavelmente numerosa de contatos. Mas a satisfação mais desejada é a de que, nesses contatos virtuais, a duração pode ser reduzida, enfraquecendo cada vez mais os vínculos relacionais e, com isso, a proximidade moral (BAUMAN, 2011b). Nesse aspecto, esse desejo do homem contemporâneo pela conquista de uma grande quantidade de contatos, porém, provisórios e sem reciprocidade sólida, vai na contramão daquilo que Aristóteles sustentava, a saber: o fato de que amizades verdadeiras devam ser construídas em números limitados, para que possam se aprofundar continuamente mediante o convívio permanente. Por isso, Bauman (2011a) tece uma crítica à soberba daqueles que afirmam ter um grande número de “amigos” no “Facebook”, por exemplo, pois segundo ele, contatos de redes sociais não devem ser confundidos com laços humanos, uma vez que aqueles (por seu caráter de fácil desconexão) são causas de destruição destes.

Da mesma forma como Aristóteles havia elucidado no mundo antigo, Bauman também defende a ideia de que a quantidade de “amigos” que se tem, não configura um tipo de relação que auxiliará o homem a viver uma vida virtuosa. As relações do mundo virtual, além de frágeis e líquidas, exprimem uma falsa ideia de comunidade, pois nelas os indivíduos pertencem à conversa e não àquilo sobre o que se conversa. A união só se mantém na medida em que sintonizamos, conversamos e enviamos mensagens; ao interromper a conversa, o que existe é o silêncio e a solidão profunda:

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existem muitos outros números de telefones na lista, e aparentemente não há limite para o volume de mensagens [...] há sempre mais conexões para serem usadas – e assim não tem grande importância quantas delas se tenham mostrado frágeis e passíveis de ruptura. O ritmo e a velocidade do uso e do desgaste tampouco importam. Cada conexão pode ter vida curta, mas seu excesso é indestrutível em meio à eternidade dessa rede imperecível [...] diante da fragilidade irreparável de cada conexão singular e transitória. (BAUMAN, 2004, p. 79, negrito nosso)

Por isso, a leitura que Bauman realiza das relações

pessoais do mundo virtual é a de que, concomitantemente à proximidade virtual, existe uma distância real. No sentido de que, simultaneamente ao advento da proximidade virtual, as conexões humanas decaíram, tornando-se cada vez mais frequentes, porém, breves. Nessas relações, os contatos se estabelecem e se rompem ao menor esforço e no mais vil intervalo de tempo, simplesmente ao acionar um simples comando eletrônico. Ora, no mundo das relações virtuais a distância não se constitui como um problema para promover o contato humano, contudo é preciso verificar qual a solidez e a efetividade que esse tipo de contato promove para os que estão envolvidos na relação, já que em nossos tempos: “a proximidade não exige mais a contiguidade física; e a contiguidade física não determina mais a proximidade” (BAUMAN, 2004, p. 81).

A contradição das relações humanas no mundo contemporâneo, principalmente aquelas pautadas em redes sociais, se dá justamente neste paradoxo, onde todos se encontram em uma solidão e numa multidão ao mesmo tempo111. Aparentemente tem-se vários amigos, mas no

111 A característica mais marcante das relações virtuais se dá na separação entre comunicação e relacionamento. Diferentemente da antiquada

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sentido próprio do termo, o que há de fato são contatos em grande número, mas que não se consolidam como laço humano efetivo e duradouro. Corroborando com Aristóteles, ao seu modo, Bauman (2004) defende o pressuposto de que precisamos dos outros para viver, pois somente no contato com o outro é que a vida ganha sentido de existência. Contudo, a formação de laços humanos que se caracterizam como sólidos e por isso duradouros, ocorre paulatinamente e ultrapassa os interesses da satisfação imediata, tão buscada em nossos tempos.

Por isso, o autor em questão, exorta ao homem contemporâneo que não se deve permitir, em hipótese alguma, que o mundo real seja substituído instantaneamente e sem qualquer julgamento pela realidade virtual, que teoricamente estaria aproximando as pessoas. Observando o cenário pós-moderno, Bauman (2004) anui que as relações virtuais entre as pessoas convidam a tudo, menos ao encontro e envolvimento. Para ele, a proximidade virtual dos homens tende a ser um traço fundamental e vantajoso para o líquido mundo moderno, na medida em que quanto mais atenção e esforço forem absorvidos pela realidade virtual, menos será o tempo que se precisará dedicar a outros tipos de relações não virtuais; tempo esse que poderá ser destinado ao consumo e produção.

A consequência dessa permuta da relação humana baseada no convívio físico pela relação embasada no contato virtual e descartável é justamente a instabilidade dos laços humanos. Contudo, esse tipo de relação é a que mais parece caracterizar o líquido mundo moderno, onde “a solidão por

proximidade topográfica, a relação virtual entre as pessoas é indiferente a existência ou não de laços estabelecidos de antemão, e também não se interessa pelo seu estabelecimento. Estar “conectado” é menos custoso do que “estar engajado” – mas também consideravelmente menos produtivo em termos de manutenção e construção de vínculos (BAUMAN, 2004, p. 82).

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trás da porta fechada de um quarto com um telefone celular à mão pode parecer uma condição menos arriscada e mais segura do que compartilhar o terreno doméstico comum (BAUMAN, 2004, p. 84). Nesse sentido, o autor entende que essa atual condição de “solidão em meio à multidão”, é a direção em que caminha a sociedade atual em seus traços de liquidez e individualismo, tornando os compromissos a longo prazo pouco numerosos e fazendo da obrigação da assistência mútua no relacionamento uma atividade de pouca significância no âmbito da dignidade humana.

Destarte, Bauman (2004) alerta que ao analisar as relações humanas no mundo virtual, seu intento não é o de negar ou protestar contra as tecnologias que permitem o contato humano (mesmo que seja de modo peculiar). Segundo o autor, o que ele pretende é promover uma reflexão sobre a que ponto essas ferramentas que estão sendo usufruídas em nossos tempos, contribuem para a atual situação dos laços humanos de um modo geral. Como esses tipos de relacionamentos têm interferido na vida cotidiana do povo e no contexto comunitário com vistas à relação altruísta, sólida e de contato íntimo entre as pessoas, é o que instiga o pensamento do sociólogo polonês.

Apesar de toda essa realidade que se verifica no atual mundo da liquidez, da fragilidade, da fluidez e dos laços humanos descartáveis, Bauman (2004) refaz em termos contemporâneos, o que Aristóteles de certo modo já havia constatado e defendido em épocas remotas, ao dizer que: apesar da facilidade e rapidez com que os aparelhos eletrônicos e os meios virtuais possibilitam a comunicação humana, o que de fato observa-se até hoje é a necessidade que as pessoas ainda possuem de se compreenderem por meio de trocas de experiência de vida através do encontro pessoal sensível. Isto significa que a comunicação e, consequentemente, a manutenção dos laços humanos não pode ser reduzida à transferência de informação mediante

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redes sociais virtuais, uma vez que é imprescindível ainda hoje, a fusão de horizontes através do contato físico e do compartilhamento de espaço e experiências.

Em suma, a partir do pensamento de Aristóteles e considerando a análise de Bauman sobre a crise dos laços humanos na contemporaneidade, podemos anuir que a distância entre as pessoas, promovida às vezes pela ilusão de estarem unidas mediante redes virtuais, não são de fato fatores que anulam a amizade entre as pessoas; contudo, impedem a prática de uma amizade virtuosa e sólida. Segundo o estagirita, é justamente essa ausência de conversa e contato entre os amigos que pode promover verdadeiramente o rompimento da relação amigável. Por isso, a amizade para produzir resultados profícuos deve ser aquela que proporciona o convívio e a proximidade, pois se as relações entre os homens são sempre políticas, conforme defende Aristóteles; e a ética é a busca pela justa medida nas relações entre os homens, então, é através do diálogo proporcionado pela amizade que os homens se tornam éticos e justos, conduzindo assim a sociedade na busca da felicidade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS DA SEGUNDA PARTE

Levando-se em consideração os aspectos analisados

nesta pesquisa, é preciso compreender que as relações humanas sofreram diversas modificações ao longo de o todo processo histórico, agregando características peculiares em determinadas épocas. Contudo, no âmago de todas as relações humanas, a amizade se destaca como a promotora do bem-estar e do convívio humano de modo mais profícuo, garantindo a unidade entre as pessoas. Para muitos autores, a primeira forma de amizade é a que brota do seio familiar e, a partir desta, as outras se assemelham buscando sempre a harmonia da humanidade.

Ao estudarmos os principais autores do período antigo que dedicaram parte de sua filosofia para estudar o tema da amizade, conseguimos avaliar que de um modo geral, as relações amistosas eram consideradas fundamentais enquanto modo de vida, fomento da unidade entre as pessoas, símbolo de ordenamento social, forma fundamental da comunidade humana, condição para a felicidade. Assim, podemos observar que desde os tempos antigos a amizade se constitui como elemento essencial na organização da própria comunidade humana, pois a partir do contato humano entre duas pessoas que são amigas, a estrutura social se alicerça e se constitui enquanto modelo de vida feliz.

Todavia, ao abordarmos o pensamento de Aristóteles, principal referência desta pesquisa, nosso intento foi o de demonstrar que embora já fosse considerada importante por autores anteriores, a amizade ganha status de excelência e necessidade vital para a vida humana no pensamento do estagirita. Como abordado anteriormente, ao elevar a amizade à categoria de virtude e não mera afetividade ou sentimento, Aristóteles evoca uma questão nevrálgica nesse tipo de relacionamento, a saber: ser amigo envolve uma atitude

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racional na busca da felicidade. Enquanto necessidade vital e fenômeno natural ao homem, não se pode conceber que alguém, mesmo que desejasse, pudesse viver sem amigos.

Com efeito, como os homens acidentalmente possuem características diversas, Aristóteles procurou elencar três principais tipos de amizades que em sua época, encontravam-se presentes na Grécia. Assim, alguns homens são amigos por simples utilidade, outros o são por prazer de estar na presença dos amigos; e os amigos virtuosos são aqueles que se dedicam ao amigo unicamente por aquilo que são, porque amam sua essência, mesmo que a utilidade e o prazer possam estar presentes, estes nunca serão o fim da relação amistosa, mas apenas aspectos secundários. Porém, mesmo que acidentais, esses tipos de amizade baseada no interesse e no prazer são também considerados amizades, embora sua principal consequência seja o aspecto transitório e instável.

Contudo, a amizade por excelência, ou em si, é a mais original forma de relação humana, pois é ação do homem que se orienta unicamente mediante sua razão. A amizade, que tem como fim o outro pelo que ele é, somada à justiça e à felicidade constituem o alicerce da sociedade no pensamento aristotélico. Por isso, a amizade não se constitui apenas num bem para os amigos que se relacionam, mas seus efeitos engendram ações que beneficiam toda a comunidade política reunida.

Nesse sentido, no decorrer de nossa pesquisa, ao fazermos as principais inferências sobre as condições das relações humanas no mundo hodierno, considerando de modo peculiar os pensamentos de Lipovetsky e Bauman, observamos de que modo as relações humanas em pleno século XXI ganharam traços totalmente divergentes daqueles que eram tidos como referências essenciais no mundo antigo. O que se percebe é que houve um declínio na qualidade da amizade na sociedade contemporânea, justamente como

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Considerações finais... 215

consequência da alienação e do caráter utilitário das relações pessoais.

Num cenário onde o individualismo é preconizado em detrimento da vida coletiva, podemos nos questionar de que modo o princípio vital da vida humana proposto por Aristóteles poderá ser executado, a saber: o de que nenhum homem se basta a si mesmo; e que somente na relação altruísta com o outro é capaz de exercitar sua virtude para a vida feliz; uma vez que no mundo dito pós-moderno, o que há é uma espécie de repúdio pela proximidade entre as pessoas. Contudo, em determinadas situações, as relações são permitidas se, somente se trouxerem algum benefício como permuta, pois assim como se move o sistema capitalista, move-se também a mente do homem de nossos tempos.

Nessa perspectiva, o que podemos constatar é que em grande parte das relações humanas desse cenário pós-moderno, o que encontramos são relações de amizade tipificadas, nos moldes aristotélicos, segundo a utilidade. Prova disso é o que se observa na vida cotidiana, onde os raros diálogos entre as pessoas, quando existem, são insensatos e limitados a questões de caráter consumista, sem trazer nada de construtivo para a vida pessoal ou social.

Assim, o que pretendemos demonstrar com esse trabalho é que o sentimento individualista do homem hodierno, que busca unicamente a satisfação de seu interesse, independente se tenha que usar o outro como meio para alcançar seus objetivos, vai diretamente na contramão das boas e virtuosas relações que mantinham as pessoas e as cidades unidas no mundo antigo. Se antes a amizade pautada na virtude era a mais desejada, embora fosse rara devido a aridez de homens virtuosos, hoje a amizade com base na utilidade domina os cenários das relações, pois tudo se constitui movido pelo interesse. Nem mesmo a amizade por prazer, que também é tida como acidental por Aristóteles, não se faz presente como se faz com base na utilidade, uma vez

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que as pessoas não estão mais sentindo prazer ao estarem ao lado das outras, mas pelo contrário, a dedicação de tempo numa conversa amiga tornou-se sinônimo de atraso econômico.

Diante do exposto, somos levados a acreditar que os critérios apontados por Aristóteles na constituição de uma amizade virtuosa, duradoura e persistente, tais como: confiança, reciprocidade e convivência estão, cada vez mais, descartados das relações amigáveis de nossos tempos. Enquanto fruto do hábito, a confiança entre os amigos só pode ser conquistada mediante tempos prolongados de convivência, de modo que a confiança permitirá que os amigos sejam recíprocos uns com os outros, na medida em que quanto mais próximos juntos, os amigos entendem que o bem de um constitui-se essencialmente no bem do outro; e o bem de ambos, reflete no bem para toda sociedade.

Nesse sentido, o que podemos inferir é que a atual situação vivenciada em nossa sociedade, caracterizada pela injustiça, maus tratos, desumanização, atentados, perseguições, entre outras realidades, são resultado da ausência de relacionamentos amigáveis entre as pessoas e até mesmo entre nações. Aristóteles já dizia que em uma sociedade onde as pessoas são amigas, a justiça não se faz necessária, pois a própria relação de reciprocidade e confiança impedem que os homens se rebelem uns contra os outros. O poder da amizade se estende e gera efeitos positivos em todas as dimensões da vida humana.

Acreditamos que a partir do momento em que a humanidade se libertar dos referenciais que o atual sistema econômico nos impõe, através de ideais de dominação, exclusão, consumismo e individualização; e assumir novamente os valores que permearam por grande parte da história da humanidade e que foram dissipados principalmente a partir da centralidade do sujeito enquanto modelo de ação, deixando o social em segundo plano,

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Considerações finais... 217

poderemos contemplar um novo horizonte de benefícios para todas as pessoas. Quando as relações humanas forem novamente retomadas, sem medo e sem qualquer receio, talvez grande parte dos problemas oriundos dos sofrimentos causados pela depressão, pelo isolamento e pela solidão possam encontrar uma solução.

Pretendemos com esse trabalho não esgotar o assunto em questão, visto os grandes desafios que ainda teremos que enfrentar, principalmente na contramão daquilo que de certo modo ousam chamar de “amizades virtuais”, onde no fundo não passam de uma falácia relacional a fim de atenuar os riscos que o convívio humano físico e verdadeiro podem, segundo alguns, causar ao sistema. Não se pode conceber que tais tipos de relações descartáveis e transitórias se constituam como laços humanos efetivos e reais, pois lhes falta a base fundamental da amizade conceitualmente verdadeira: o convívio e a reciprocidade.

Destarte, talvez Aristóteles estivesse certo em afirmar que o problema do convívio social possa ser resolvido pela educação, mediante o treinamento do homem para o desempenho da ação virtuosa. Quiçá se os membros da sociedade fossem orientados por uma educação que não exaltasse o consumismo e o individualismo, mas intensificasse a promoção da coletividade, do altruísmo e do bem-comum como valores nobilitantes para a vida feliz, essa sociedade líquida que está posta, pudesse progredir em termos de virtuosidade e manutenção de laços humanos efetivos e duráveis, tão importantes para a garantia da vida em sociedade e para o melhor convívio humano.

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Referências da segunda parte 225

OS ORGANIZADORES ADEMIR MENIN é Mestre em Filosofia pela Pontificia Universidade Gregoriana de Roma-PUG (2013). Especialista em Letras (Estudos Linguìsticos e Literàrio) pela Universidade Estadual do Norte do Paranà-UENP (2010). Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná-UNIOESTE (1995). Graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma-PUU (1999). Atualmente é professor de Filosofia Moderna e Contemporânea na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.

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José Francisco de Assis Dias, é Professor Adjunto da UNIOESTE, Toledo-PR; professor do Mestrado em Gestão do Conhecimento nas Organizações, na UNICESUMAR; pesquisador do Grupo de Pesquisa “Educação e Gestão” e do Grupo de Pesquisa “Ética e Política”, da UNIOESTE, CCHS, Toledo-PR. Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália; Doutor em Filosofia também pela mesma Pontifícia Universidade; Mestre em Direito Canônico também pela mesma Pontifícia Universidade Urbaniana; Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade; Especialista em Docência no Ensino Superior pela UNICESUMAR; Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo – RS; Bacharel em Teologia pela UNICESUMAR. Pesquisador do Instituto Cesumar de Ciência, Tecnologia e Inovação (ICETI). E-mail: [email protected]

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Referências da segunda parte 227

Prof. Pe. Leomar Antonio Montagna possui Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR; Curso de Especialização, ênfase em Ética, também, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR; Pós-Graduação em História do Pensamento Brasileiro pela Universidade Estadual de Londrina UEL; Reconhecimento de Graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE; Graduação em Teologia pelo Instituto Teológico Paulo VI de Londrina; Graduação em Ciências: Licenciatura de 1º Grau pela Fundação Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Mandaguari FAFIMAN e Curso de Graduação em Filosofia pelo Instituto Filosófico Arquidiocesano de Maringá IFAMA. Presbítero da Arquidiocese de Maringá, Pe. Leomar Antonio Montagna, atualmente, é membro e Coordenador do Conselho de Presbíteros, Diretor e Professor do Curso de Licenciatura em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Câmpus Maringá; Foi Professor convidado da Faculdade Missioneira do Paraná (FAMIPAR) de Cascavel; Assessor e Professor da Escola Teológica Para Cristãos Leigos da Arquidiocese de Maringá. Membro do Conselho Editorial da Editora Humanitas Vivens LTDA – Editora On-line, nesta, publicou a sua principal obra: “A Ética como Elemento de Harmonia Social em Santo Agostinho”. Autor de vários artigos para revistas e jornais, palestras e cursos de breve duração. Na área de Filosofia, atua, principalmente, nos seguintes temas: Filosofia, Ética, Filosofia Política, Santo Agostinho, História da Filosofia e História do Pensamento Brasileiro e Latino-americano.

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Na área de Teologia tem experiência em Moral Social e Doutrina Social da Igreja.

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Referências da segunda parte 229

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