2-Diálogos habermasianos

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    Clvis Ricardo Montenegro de Lima

    Maria Nlida Gonzalez de Gmez(Organizadores)

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    Dilogos habermasianos

    Clvis Ricardo Montenegro de LimaMaria Nlida Gonzalez de Gmez

    (Orgs.)

    Braslia, DFMaio2012

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    2011 Instituto Brasileiro de Informao em Cincia e Tecnologia

    (Ibict)

    Emir Jos Suaden

    Diretor

    Clia Zaher

    Coordenadora de Ensino e Pesquisa, Cincia e Tecnologia da Informao

    Organizadores

    Clvis Ricardo Montenegro de LimaMaria Nlida Gonzalez de Gmez

    Reviso gramatical

    Jeanne Marie Claire Sawaya

    Normalizao dos trabalhos e elaborao de fcha catalogrfca

    Mrcia Feijo de Figueiredo

    CRB-7/ 5893

    C749

    Dilogos habermasianos. Organizado por Clvis RicardoMontenegro de Lima e Maria Nlida Gonzalez de Gmez

    Rio de Janeiro : IBICT, 2010.468 p.

    Verso eletrnica 2012.

    ISBN: 978-85-7013-090-7

    1. Jrgen Habermas. I. Lima, Clvis Ricardo Montenegro, org..II. Ttulo.

    CDD 165

    Ibict

    SAUS Quadra 5, Lote 6, Bloco H70070-912 - Braslia, DF

    www.ibict.br

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    APRESENTAO ................................................................................................6

    APONTAMENTOS SOBRE COOPERAO E CRTICA NASFILOSOFIAS DE R. RORTY E J. HABERMASFlvio Beno Siebeneichler ....................................................................................7

    AS CRTICAS DE HABERMAS AO EMPIRISMO NA MORALGiovani M. Lunardi ..............................................................................................21

    TICA DO DISCURSO: CONTEDO MORAL ERESPONSABILIDADE SOLIDRIA

    Jovino Pizzi ............................................................................................................31

    VERDADE E PODER EM DISCURSOS: REFLEXES SOBRE ASTEORIAS DE HABERMAS E FOUCAULTDanilo Persch e Mrio Antnio da Silva ...........................................................46

    HABERMAS E A PERSPECTIVA METACRTICA DA RAZOINSTRUMENTAL

    Antnio Baslio Novaes Thomaz de Menezes ................................................64

    IDEOLOGIA E CRTICA NA TEORIA DA AO COMUNICATIVAAlessandra Gen Pacheco. ...................................................................................84

    CONTROLE SOCIAL: UMA LEITURA A PARTIR DA AOCOMUNICATIVA DE JURGEN HABERMASNdia Maria do Socorro Chrachar de Oliveira Lima. ....................................106

    SUMRIO

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    PRESSUPOSTOS DA TEORIA SOCIAL HABERMASIANA:TRABALHO E INTERAOClodomiro Jos Bannwart Jnior .....................................................................127

    NOTAS PARA AGENDA DE PESQUISA DO TRABALHOIMATERIAL A PARTIR DA TEORIA DO AGIR COMUNICATIVOClvis Montenegro de Lima ..............................................................................153

    DIREITO ENQUANTO COMPENSAO DA MORAL:RESPONSABILIDADE HABERMASIANA E EXCEES

    ROUSSEAUNIANASJos N. Heck ........................................................................................................169

    RELAES INTERNACIONAIS, COSMOPOLITISMO E DireitosHUMANOS NO PENSAMENTO DE JRGEN HABERMASDavi Jos de Souza da Silva ...............................................................................193

    INDETERMINAO COGNITIVA DOS Direitos HUMANOS ERISCO DE RETORNO DO FANTASMA JUSNATURALISTA EMDISCURSOS DE APLICAO DO DIREITO POSITIVO

    Andr Luiz Souza Coelho. .................................................................................219

    O FUTURO DA HUMANIDADE NUMA ERA BIOTECNOLGICA:ENTRE SLOTERDIJK E HABERMASMurilo Mariano Vilaa ........................................................................................236

    HABERMAS E A SOCIOLOGIA DA SADECharles Feldhaus. .................................................................................................255

    HABERMAS E A EDUCAO: APORIAS SOBRE A PERFORMANCEElaine Conte e Rosa Martini. ............................................................................267

    UM ESTADO PARA O COSMOPOLITISMOFrderic Vandenberghe. .....................................................................................291

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    GESTO MUNICIPAL E COMUNICAO PBLICA: UMAPERSPECTIVA CRTICASilvia R. Costa Salgado .......................................................................................319

    MODERNIDADE EM HABERMAS: ARQUITETURA MODERNA EPS-MODERNAEugnia Vitria Cmera Loureiro ....................................................................344

    INTERAO E INTERSUBJETIVIDADE NO PROJETOFILOSFICO DE AXEL HONNETH

    Herbert Barucci Ravagnani................................................................................368

    O DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL COMPARTILHADONA PERSPECTIVA DO DIREITO COSMOPOLITA, DO AGIRCOMUNICATIVO E DA TEORIA DISCURSIVASrgio Gustavo de Mattos Pauseiro. .................................................................388

    JUDICIALIZAO DA POLTICA: UM ENSAIO SOBRE OPROCEDIMENTALISMO DELIBERATIVO NA JURISDIOCONSTITUCIONAL BRASILEIRAMrcio Renan Hamel .........................................................................................404

    SOBRE JOGO DE LINGUAGEM: HABERMAS E WITTGENSTEINCllia Aparecida Martins ....................................................................................420

    O OUTRO NA INTERSUBJETIVIDADENadja Hermann ...................................................................................................436

    HABERMAS E A QUESTO DO REALISMO MORALAntnio Frederico Saturnino Braga .................................................................449

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    APRESENTAO

    A realizao dos Colquios Habermas tem funcionado comooportunidade privilegiada de interao e discusso entre pesquisadores eestudantes focados ou interessados na obra do lsofo e socilogo alemo

    Jrgen Habermas.

    A recepo da obra de Habermas no Brasil marcada por forteinterdisciplinaridade: lsofos, socilogos, cientistas polticos, educadores,

    operadores do direito, cientistas da informao, comuniclogos,administradores. Os Colquios Habermas reetem esta pluralidade.

    A forma de colquio permite que os participantes do encontro noapenas compartilhem seus trabalhos acadmicos, mas tambm que discutamaspectos controversos da extensa obra do autor da Teoria do Agir Comunicativo.

    Os Colquios Habermas so uma iniciativa de pesquisadores dos

    Departamentos de Filosoa da Universidade Federal de Santa Catarina e daUniversidade Estadual de Londrina. Cabe aqui destacar a participao nesteprocesso dos professores Delamar Jos Volpato Dutra e Alessandro Pinzani.

    O Colquio Habermas em 2010 foi realizado em parceria do InstitutoBrasileiro de Informao em Cincia e Tecnologia com seus pesquisadoresidealizadores. No Colquio de 2010 foram apresentados 38 artigos originais,de pesquisadores de todas as regies do pas. Esta Coletnea contm estestrabalhos.

    Espera-se que sua publicao contribua para a discusso das teorias doagir comunicativo e do discurso, especialmente para as questes da losoaprtica.

    Clvis Ricardo Montenegro de Lima

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    APONTAMENTOS SOBRE COOPERAO E CRTICA NASFILOSOFIAS DE R. RORTY E J. HABERMAS

    Flvio Beno Siebeneichler1

    Gostaria de salientar inicialmente que tomo como ponto de partidauma constatao quase unnime: o fato de que as obras O espelho da natureza(1979) e Contingncia, ironia e solidariedade(1989), de Richard Rorty, bem como oslivros de Jrgen Habermas: Teoria do agir comunicativo (1981) e Verdade e justicao(1999), destacam-se entre as tentativas loscas contemporneas mais radicais

    e inuentes que visam no somente crtica da losoa, mas tambm suareconstruo aps a queda da metafsica (Adorno).Meu principal objetivo consiste em mostrar, mediante enfoque de

    pontos relevantes, que a elaborao dessas duas losoas paradigmticasda atualidade constitui exemplo nico de cooperao e crtica entre doispensadores que, apesar de seguirem caminhos distintos, empenham-se emlevar adiante, cada um sua maneira, o ditame hegeliano segundo o qual

    a tarefa principal da losoa consiste em apreender a contemporaneidademediante pensamentos2. E no desempenho dessa tarefa ambos tentamaprender um do outro, no somente dos pretensos acertos, mas tambmdos erros. E isto equivale a dizer que o nvel terico atingido por um delesinuenciou hermeneuticamente o do outro e vice-versa. Com isto nopretendo armar pura e simplesmente que o pensamento de um modicouessencialmente o do outro!

    A necessidade de mediao e cooperao entre teorias opostas destacada claramente por Habermas. Segundo ele, a crtica losca nose pode reduzir a uma simples negao estril de pontos de vista contrriosconsiderados errneos. Porquanto um trabalho losco fecundo implicano somente inspeo crtica e distanciamento, mas tambm aproximaoe acoplagens. Caso contrrio, no haveria possibilidade de criar elosfecundos com outros princpios e teorias. Habermas pensa que sua teoria faz

    1 Universidade Gama Filho/ Rio de Janeiro.2 Nota: Richard Rorty faleceu em 2007.

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    Nesse texto Rorty se detm basicamente em dois elementosfundamentais da teoria habermasiana e apeliana, a saber, em primeiro lugar,a hermenutica quase-transcendental formulada por Habermas, em 1968,

    no livro Conhecimento e interesse, portanto durante a fase que antecede a guinadapragmtica. Em segundo lugar, ele se manifesta quanto pragmtica universalhabermasiana escrita em 1976, em plena fase de elaborao do paradigma dateoria do agir comunicativo. Esse fato permite aventar a hiptese de que ideiase conceitos de Habermas anteriores publicao da teoria do agir comunicativotiveram inuncia hermenutica no trabalho rortyano, seja na desconstruodo espelho da natureza, seja na construo de uma nova losoa sem espelho.

    E essa inuncia se aprofunda, se alarga e se multiplica no decorrerdos anos 80. Em texto editado por A. Guidens e outros, intitulado Habermasand Modernity, Rorty faz excelente comentrio crtico da obra habermasiana etenta aproximar o pensamento habermasiano do de J. F. Lyotard.5 Entretanto, no pequeno e, ao mesmo tempo, grande e decisivo livro de Rorty intituladoContingncia, ironia e solidariedadeque a presena de Habermas se manifesta commaior intensidade. Ele passa a ser, ao lado de Heidegger, Marx e Dewey, nosomente um contraponto estimulante, mas tambm um foco inspirador paraRorty.6

    Rorty nos textos de Habermas

    Rorty irrompe na obra de Habermas em 1980, um ano antes dapublicao da Teoria do agir comunicativo, em uma Rplicaescrita por Habermasa m de responder a objees contra a teoria do agir comunicativo.7

    Tais menes se limitam, no entanto, ao desconstrutivismo deRorty e fazem referncias aoEspelho da natureza. Habermas se apoia nelaspara armar que a losoa no pode mais, a partir de agora, dirigir-se ao

    5 Cf. Id. Habermas y Lyotard sobre la posmodernidad in: GUIDDENS, A., RORTY, R. et all. Haber-mas y la modernidad. Madrid: Catedra, 1988, 253-276.6 Cf. Id. Contingence, irony, and solidarity. Cambridge University Press, 1989. No presente trabalho uti-

    lizada a terceira edio da verso para o alemo realizada por Christa Krger: Kontingenz, Ironie undSolidaritt. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1995.7 Cf. HABERMAS, J. Vorstudien und Ergnzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt/M.:Suhrkamp,1984,561.

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    mundo, natureza, histria ou sociedade assumindo a posio de umsaber totalizador.8

    No entanto, a irrupo rortyana se torna, a partir da, cada vez mais

    frequente e avassaladora: em 1981, na conferncia intitulada A losoa comointrprete e guardadora de lugar, apresentada em um congresso organizadopela Associao Hegeliana (Hegel Vereinigung)9, Habermas se dedica a umainterpretao aprofundada e discusso de temas rortyanos: pr e contra!

    Convm destacar, todavia, um segundo texto intitulado Verdadee justicao no qual Habermas submete sua teoria do agir comunicativo uma profunda reviso luz de problemas levantados por um naturalismo

    mais severo e pelo realismo epistemolgico. No quinto captulo, intituladoVerdade e justicao, que constitui o tema central da obra, desenvolve-seum dilogo crtico com a guinada pragmtica de Rorty que serve de inspirao,correo e contraponto a Habermas.

    CONVERGNCIAS E DIVERGNCIAS ENTRE RORTY EHABERMAS LUZ DE DUAS QUESTES

    Neste ponto pretendo apresentar alguns resultados da relao dialtica

    entre Habermas e Rorty lanando mo de duas questes que considerocentrais em suas respectivas teorias: o destino da losoa aps a rupturado espelho da natureza e a tenso entre as esferas do privado e do pblico.Gostaria de sublinhar, no entanto, que o fato de orientar as consideraesmuito mais pela teoria habermasiana do que pela rortyana no signica que

    considero os argumentos habermasianos sempre mais convincentes do que osde Rorty. Signica apenas que, devido a limitaes de minha parte, sinto-merelativamente mais seguro em terreno habermasiano.

    8 Id. Theorie des kommunikativen Handelns, Vol. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1981, 15-16. Cf. tambm Op.cit., Vol. 2, 586.

    9 O texto que serviu de base a essa conferncia foi publicado em 1983 in: HABERMAS, J.Moralbewusst-sein und kommunikatives Handeln. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1983, 9-28. Cf. traduo para o portugus(Conscincia moral e agir comunicativo) realizada por Guido A. de Almeida e publicada pela Ed. TempoBrasileiro em 1989.

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    O destino da flosofa aps a ruptura do espelho da natureza

    O pressuposto da crtica rortyana losoa tradicional pode ser

    resumido da seguinte maneira: a maior parte de nossas convices loscas dominada por imagens e metforas, no por frases ou proposies. E alosoa tradicional ca presa imagem de uma conscincia que funcionacomo um grande espelho capaz de reetir diferentes tipos de representaesmais ou menos acuradas. E esse espelho tem de ser analisado com o auxliode mtodos apriorsticos. Por isso, a losoa tem de ser revista.

    Rorty escolhe como ponto de partida para sua reviso da losoaas crticas desenvolvidas por Heidegger, Wittgenstein e Dewey que so,segundo ele, os pensadores mais importantes do sculo XX porque rompemcom a concepo kantiana de losoa, que se caracteriza como uma cinciafundamental baseada em representaes da conscincia. Tal concepo deveser rejeitada, segundo ele. Deve ser abandonada, alm disso, a ideia de que ametafsica e a teoria do conhecimento constituem uma disciplina autnoma.

    Por conseguinte, aos olhos de Rorty a rejeio da losoa especularmoderna proposta por seus mentores lsofos constitui verdadeira demisso

    por justa causa. Porquanto, na sua interpretao, esses trs lsofos, que soos seus preferidos, interessam-se, em primeira linha, em refutar a problemticatradicional da losoa, isto , no se propem como objetivo principal farejarnela proposies falsas ou argumentos no slidos. Isso porque a possibilidadede se pensar uma nova cultura ps-kantiana no implica a necessidade de umademonstrao lgica da falsidade da doutrina kantiana. 10

    interessante observar que Rorty, ao menos na poca da redao

    do Espelho da natureza, no encara a demisso da losoa sistemtica comesprito derrotista. Antes, pelo contrrio, ele pensa que, a partir do momentoem que deixamos de considerar a losoa como um empreendimentode construo sistemtica, possvel desenvolv-la como uma atividadeteraputica, formadora e educativa. E nesse novo contexto a losoa passa adesempenhar dois papis distintos, a saber:

    10 RORTY, R. Der Spiegel der Natur. Eine Kritik der Philosophie. 2a. ed., Frankfurt/M.:Suhrkamp,1984, 16.

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    o papel de um diletante bem informado, de um polipragmticoe de um mediador socrtico capaz de criar mediaeshermenuticas e tradues entre vrios tipos de discurso. Trata-

    se aqui da gura do intelectual formador ou educador que vai,constantemente, em busca de modos mais novos e interessantesde descrever as coisas11;

    a losoa tambm pode assumir o papel de um inspetor dacultura que conhece os fundamentos comuns a todos e que, naqualidade de rei-lsofo, sabe o que os outros fazem na realidadeapesar de eles mesmos no saberem porquanto ele conhece o

    contexto intransponvel (unvordenklich) das formas, da linguageme da conscincia.

    importante destacar que, na concepo de Rorty, o mediadorpolipragmtico no utiliza por via de regra os discursos convencionais dascincias, cujo critrio de validade se estriba unicamente na comensurabilidade.Para entender isso convm lembrar uma distino importante entre discursonormal e discurso no normal que Rorty leva a cabo mediante a generalizaoda distino introduzida por Thomaz Kuhn entre cincia normal e cinciarevolucionria 12:

    o discurso normal comensurvel porque se desenvolve emum sistema de convenes reconhecidas em geral, as quaisestabelecem preliminarmente o que pode e o que no pode

    valer como bom argumento, como boa contribuio, comoboa crtica13. O seu produto sempre cincia (episteme), isto, enunciados que podem ser reconhecidos e aceitos por suaracionalidade;

    j o discurso extraordinrio incomensurvel porquanto deletomam parte pessoas que no reconhecem ou simplesmenteignoram tais convenes. Por isso, seu produto completamente

    11 Ibid., 345.12 Ibid., 348.13 Ibid., 348-349.

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    indeterminado, ou seja, pode conter tudo ou nada, o absurdo, oimprevisvel, uma revoluo, etc.

    Fica claro, pois, o destino de uma losoa demitida, sem espelhoreetor e sem fundamento ltimo: ela constrangida a abandonar a posioprivilegiada que ocupava em um tribunal destinado a julgar a prioria culturaem geral e as pretenses cognitivas das cincias e da prpria metafsica.

    Essa concluso aguou naturalmente a curiosidade de Habermas emrelao losoa de Rorty e o inspirou, certamente, a caracterizar a losoacomo guardi da racionalidade e como intrprete das esferas da vida.

    Habermas formula inicialmente a seguinte questo geral: ser que acrtica ao fundamentalismo, desenvolvida por Rorty, implica necessariamenteo abandono da teoria da modernidade, de Kant, que conara em umaracionalidade procedimental que serve como base da validade de nossasacepes justicadas no campo do conhecimento cientco, das ideias moraise das avaliaes estticas?

    Habermas no formula uma resposta direta a essa questo. Apresenta,em vez disso, uma narrativa das diferentes etapas percorridas pela crtica losoa, as quais culminam na crtica rotyana. Ele pensa que, por essecaminho, possvel claricar algumas pressuposies dessa crtica, mesmoque no se chegue a uma soluo dos pontos controversos.

    Primeira etapa da crtica losoa:A crtica losoa e ao fundamentalismo kantinao tem incio em

    Hegel que substituiu o modo de fundamentao transcendental por outro, decunho dialtico.

    Segunda etapa:Na segunda etapa tomou corpo, segundo Habermas, uma crtica

    dirigida aos modos de fundamentar inerentes losoa de Kant e doprprio Hegel. Ela foi desenvolvida por seguidores kantianos e hegelianos,especialmente por Strawson, Paul Lorenzen e Karl Popper. Strawson, sabido, desenvolve uma posio analtica inspirada em Kant, a qual mantmuma pretenso universalista, ao passo que Paul Lorenzen interpreta Kant

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    em uma perspectiva construtivista. K. Popper, por seu turno, trabalha nalinha de um racionalismo crtico que substitui a ideia de fundamentao pelomtodo do exame crtico. Habermas menciona ainda, na linha da crtica ao

    hegelianismo, a epistemologia dialtica de Lukacs e o negativismo de Adorno.

    Terceira etapa:Na terceira etapa Habermas descobre uma crtica ainda mais radical

    dirigida simultaneamente contra Kant, contra Hegel e contra os seguidoresps-kantianos e ps-hegelianos14. Trata-se de posies hermenuticas epragmticas que questionam simplesmente qualquer tipo de pretenso deracionalidade e isso a um nvel de radicalidade jamais visto15. Habermasconstata que a crtica radical desenvolvida por Paul Feierabend, MichelFoucault, R. Rorty e outros, e que pretende superar o espelho da natureza,coloca em questo as pretenses de fundamentao e autofundamentao dalosoa. Porquanto eles simplesmente abandonam o horizonte no qual semovia a losoa da conscincia.

    Ao apresentar a terceira etapa da histria da crtica dirigida contraa losoa, Habermas levanta uma questo importante: em que sentido as

    novas ideias da hermenutica e do pragmatismo devem ser entendidas?

    No sentido de uma renncia total pretenso da razo inerente losoa, o que equivaleria a uma demisso do papel da losoa?

    Ou no sentido de um novo paradigma, o qual, mesmosubstituindo o jogo de linguagem mentalista da losoa daconscincia, no abrigaria os modos de fundamentao da

    losoa da conscincia?16

    Antes de formular uma resposta, Habermas traa, em grandes pinceladas,os contornos de quatro formas contemporneas de demisso da losoa:

    a) a demisso teraputica ou quietista inaugurada por Wittgenstein.Nessa linha, a losoa teria de ser interpretada no como cura de

    14 HABERMAS, J.Moralbewusstasein und kommunikatives Handeln, 12.15 Ibid., 16.16 Ibid., 18.

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    si dois tipos de discurso ou dilogo: de um lado, o discursonormal ou comensurvel da cincia. De outro, o discurso nonormal, incomum ou dilogo incomensurvel. No discurso

    normal da cincia conhecemos os procedimentos que permitemsolucionar problemas e ordenar questes controversas porqueh medidas que garantem consenso. Ao passo que em dilogosincomensurveis as orientaes bsicas continuam sendocontroversas. Ora, discursos incomensurveis no podem tercomo objetivo a passagem para uma normalidade comensurvelou para o consenso, porquanto se contentam com a esperana

    de que o dissenso seja, pelo menos, fecundo. E nesse sentido,eles so edicantes (edifying)20.

    Habermas avalia esta quarta forma assegurando que a verso rortyanada losoa aglutina todas as qualidades que a losoa adquiriu por meiodas suas sucessivas demisses, especialmente as verses teraputica, hericae salvacionista. Por isso arma textualmente que: Talvez possamos, um dia,comemorar R. Rorty como o Tucdides de uma tradio de pesquisa que setornou possvel aps ter-se iniciado a terapia wittgensteiniana21.

    No meu entender, possvel resumir a crtica de Habermas ao modocomo Rorty interpreta a autodemisso da losoa em dois pontos:

    Primeiro ponto: Habermas est convencido da consistncia dosargumentos elaborados por Rorty.

    Segundo ponto: ele no aceita a concluso de Rorty, segundo aqual a losoa tem de abandonar no somente o papel de indicadora dolugar das cincias e de juza da cultura, mas tambm o de guardi (Hter)da racionalidade. Habermas pensa que a concluso rortyana levaria a umarenncia pura e simples das pretenses racionais que acompanham a losoadesde a sua origem.

    Por essa razo, ao nal de sua narrativa dos principais lances histricosda autocrtica de uma losoa demissionria, Habermas contrape-se a todasas formas de autodemisso ao defender a tese de que a losoa mesmo

    20 Ibid., 21.21 Ibid., 19.

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    Uma aproximao entre essas duas tendncias somente possvelquando consideramos que o objetivo de uma sociedade justa e livreconsiste na permisso que ela concede aos seus cidados de seremirracionais, ou privatizantes ou estetizantes contanto que utilizem o

    tempo que lhes pertence e no causem danos a outros nem lancemmo de recursos utilizados por pessoas menos favorecidas 24.

    Nesse ponto, Rorty chega concluso de que necessrio assumiruma posio na qual nos contentamos em saber que a ideia de autocriaoe de solidariedade tem o mesmo valor. No entanto elas so, denitivamente,incomensurveis. Esta posio caracterizada como a de um liberal irnico

    que est ciente de que suas convices mais profundas so contingentes e deque a esperana que nutre de que o sofrimento, a crueldade e a humilhaoacabem falvel. Alm disso, ele no sabe dar uma resposta questo: por quedevemos deixar de ser cruis? Por que a crueldade perniciosa?

    Segundo Rorty, todo aquele que acredita na possibilidade dessasrespostas , no fundo, um metafsico. Porm existe, segundo ele, outra sada,a da utopia liberal apoiada em uma ironia universal que implica renncia s

    pretenses racionais de uma teoria e a passagem para a narrativa edicante25

    . possvel notar que a concepo de Habermas quanto tensoentre o privado e o pblico provoca mais divergncia do que coincidncias,as quais no podem ser discutidas aqui. Por isto, considero adequado nalizara presente comunicao chamando a ateno para dois pontos presentes nopensamento de Habermas:

    para Habermas, a losoa no pode abandonar a pretenso daracionalidade. Porque a morte, a liquidao ou a demisso pura esimples da losoa implicariam igualmente a morte da convicosegundo a qual as ideias do verdadeiro e do incondicional socondies necessrias, quando se trata de formas humanas deconvivncia que dependem de um jogo entre o privado e opblico.

    24 Ibid., 13.25 Ibid., 16.

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    A teoria do agir comunicativo se caracteriza pela tentativa depensar a subjetividade a partir da intersubjetividade, o queimplica na co-originariedade ou equiprimordialidade do privado

    e do pblico.Concluindo: se verdade que tanto Rorty como Habermas se

    empenham, em seu labor losco, em seguir o ditame hegeliano que osobriga a apreender seu tempo em pensamentos, verdade tambm que existeuma distncia entre ambos, a qual do tamanho da distncia que separa umdiscurso terico comensurvel de outro no comensurvel. Dito de outra

    forma: a distncia que separa um discurso que pretende ser apenas edicantee formador de um discurso losco empenhado em fazer jus a pretensesde validade.

    REFERNCIAS

    GUIDDENS, A., RORTY, R. et all. Habermas y la modernidad. Madrid: Catedra. 1988,253-276.

    HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns, 2 vls., 3 ed., Frankfurt/M.:Suhrkamp, (1981) 1985.

    ______.Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1983.

    ______. Vorstudien und Ergnzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns.

    Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1984.

    RORTY, R. Der Spiegel der Natur. Eine Kritik der Philosophie. Trad. Michael Gebauer. 2ed., Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1984.

    ______. Kontingenz, Ironie und Solidaritt. Trad. Christa Krger. Frankfurt/M.:Suhrkamp, 1992.

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    e os atos motivados espontaneamente. Tambm um propsito umadisposio; mas essa, diferena da tendncia, s se constitui mediante aliberdade do arbtrio, a saber, na medida em que um ator adota uma regra de

    ao. O ator age racionalmente quando o faz a partir de razes, e quando sabepor que est seguindo uma mxima. O empirismo s leva em consideraorazes pragmticas, ou seja, o caso em que um ator deixa vincular seuarbtrio, pela razo instrumental, s regras de destreza ou aos conselhos daprudncia (como diz Kant). Assim, ele obedece ao princpio da racionalidadedos ns: Quem quer um m, tambm quer (na medida em que a razo temuma inuncia decisiva sobre seus atos) o meio imprescindvel para tanto, queest em seu poder (KANT FMC, BA 45)3.

    Habermas enderea suas crticas ao empirismo na moral especicamenteao lsofo escocs David Hume. Da mesma forma que para os outros empiristas,ele arma que os motivos pragmticos expostos pelo empirista escocs paraposicionamentos e atos morais s fazem sentido enquanto pensarmos emrelacionamentos interpessoais em comunidades pequenas e solidrias, comoas famlias ou as vizinhanas. Sociedades complexas no podem manter suacoerncia apenas sobre a base de sentimentos como a simpatia e a conana, mais

    ajustados aos espaos reduzidos. O comportamento moral diante de estranhosexige virtudes articiais, sobretudo disposio para a justia. Em vista dascadeias abstratas de aes, os participantes de grupos primrios de refernciaperdem o controle sobre a reciprocidade entre prestaes e recompensas e, com isso, os motivos pragmticos para a benevolncia. Os sentimentos deobrigao que salvam as distncias entre estranhos no so racionais paramim do mesmo jeito como o a lealdade para com meus aparentados, em

    cuja condescendncia eu posso, por minha vez, conar. Na medida em que asolidariedade o avesso da justia, no h nada que deponha contra a tentativa deexplicar o surgimento dos deveres morais a partir da transferncia de lealdadesde um grupo primrio para os grupos cada vez maiores (ou da transformao deconana pessoal em conana sistemtica). Segundo Habermas, uma teorianormativa no prova sua validade com questes de psicologia moral; antes,ela tem de explicar a prevalncia normativa dos deveres. Em casos de conitosentre, por um lado, um compromisso benevolente dos sentimentos e, por outro,

    3 Ibidem.

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    um mandamento abstrato de justia, a teoria normativa deve esclarecer por que,para os membros de um grupo, deve ser racional preterir sua lealdade para comas pessoas que conhece face a face em favor de uma solidariedade para com

    estranhos. Contudo, quando as dimenses de comunidade de seres racionaisque merecem igual respeito ultrapassam o limite do compreensvel, os sentimentosconstituem uma base evidentemente estreita demais para a solidariedade entre seus membros4.

    A investigao que empreendemos no presente trabalho justamentede examinar a plausibilidade das crticas de Habermas losoa empirista deHume, como explicao do fenmeno moral. Evocamos basicamente duasdiculdades para a plausibilidade das crticas habermasianas:

    primeiro, a relao entre empirismo e a teoria moral na losoahumeana;

    segundo, a concepo de razo prtica e o papel dos sentimentosem sua losoa moral.

    Devido exiguidade do tempo disponvel, vamos nos deter nopresente trabalho em examinar somente a primeira diculdade, qual seja:

    denir claramente qual o mtodo utilizado por Hume em sua losoa morale a relao com a losoa empirista.

    II

    O lsofo escocs dene sua metodologia como uma tentativade introduzir o mtodo experimental de raciocnio nos assuntos morais

    armado no subttulo do Tratado.5

    Hume apresenta esta abordagem como omtodo experimental de raciocnio deduzindo mximas gerais a partir de umacomparao de casos particulares.6 Para os intrpretes tradicionais, o escocscom sua metodologia inscreve-se na histria da losoa na denominadalosoa empirista. Alm disso, a investigao da moral atravs de um

    4 HABERMAS, Jurgen.A incluso do outro. So Paulo: Edies Loyola, 2002. p. 11-60.5 Cf. o subttulo deA Treatise of Human Nature. HUME, David. Tratado da Natureza Humana:uma ten-

    tativa de introduzir o mtodo experimental de raciocnio nos assuntos morais. Traduo de DboraDanowski. So Paulo: Editora Unesp, 2001.6 HUME, David. Investigaes sobre o entendimento humano e sobre os princpios da moral. Traduo de JosOscar de Almeida Marques. So Paulo: Editora Unesp, 2004. p. 231.(EPM 1.10)

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    modelo empirista, ou seja, a observao e anlise das aes morais, e do quemotiva estas aes morais, perseguida por Hume, considerada pelos seuscrticos como fonte de um ceticismo relativista. Este relativismo coloca

    as obrigaes morais, o dever-serdeterminado pelas inclinaes das paixes eemoes. Ou seja, a denominao de empirista losoa de Hume j atribuitambm a denominao de ctico sua losoa moral.

    Mas aqui, j nos deparamos com nosso primeiro problema. SegundoJoo Paulo Monteiro, o termo empirista jamais foi usado por Hume. Pode-se apenas, de acordo com Monteiro, armar que Hume, na mesma linha queBacon, Hutcheson, Locke e Berkeley, apontava a necessidade da experincia,

    em face da incapacidade da razo por si mesma de gerar saber acerca do mundo.H tambm vrios elementos inatistas na losoa de Hume que contrariamuma atribuio de puramente empirista para sua teoria, assegura Monteiro7.

    Outro comentador, Gilles Deleuze, na obra Empirisme et subjectivit,dedicada ao estudo de Hume, assinala que incompleta a denio que apresentao empirismo como uma teoria segundo a qual o conhecimento s comeacom a experincia. Para Deleuze, esta denio insatisfatria: primeiramente,porque o conhecimento no o mais importante para o empirismo, mas apenaso meio de uma atividade prtica; em seguida, porque a experincia no tempara o empirista e para Hume, em particular, esse carter unvoco e constituinteque se lhe empresta. Ainda segundo Deleuze, a experincia tem dois sentidosrigorosamente denidos por Hume, e em nenhum deles ela constituinte:

    De acordo com o primeiro sentido, se denominamos experincia acoleo de percepes distintas, devemos reconhecer que as relaes no

    derivam da experincia; elas so o efeito dos princpios de associao,dos princpios da natureza humana, a qual, na experincia, constitui umsujeito capaz de ultrapassar a experincia. E se empregamos a palavraem seu segundo sentido, para designar as diversas conjunes dosobjetos no passado, devemos ainda reconhecer que os princpios novm da experincia, pois, ao contrrio disso, a experincia que deveser compreendida como um princpio8.

    7 Notas de Joo Paulo Monteiro. HUME, D. Tratado da Natureza Humana. Traduo de Seram da SilvaFontes. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2001.8 Deleuze, Gilles.Empirismo e Subjetividade:ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. Traduode Luiz B. L. Orlandi. So Paulo: Ed. 34, 2001. p. 121.

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    ocasionados que somos capazes de estabelecer a diferena entre os dois(T470). As relaes entre impresses ou sentimentos podem ser descobertasapenas pela experincia, pois somente dessa forma conhecemos sua

    inuncia e conexo; e essa inuncia, no deveramos jamais estend-la paraalm da experincia (T466). Para o lsofo escocs, somente a experincianos proporciona um conhecimento adequado dos assuntos humanos, e tendonos ensinado qual sua relao com as paixes humanas, percebemos que agenerosidade dos homens muito restrita, e, raramente indo alm dos amigose da famlia, ou, no mximo, alm de seu pas natal (T602). Os assuntoshumanos dizem respeito a relaes entre os prprios seres humanos ou com

    objetos externos; so relaes de impresses e sentimentos que no podemser compreendidas, unicamente, por uma razo demonstrativa ou dedutiva quesomente descobre relaes de ideias. Na Sinopsedo Tratado, Hume arma quese um homem comoAdo fosse criado apenas com seu entendimento, mas semexperincia, nunca seria capaz de inferir todos os raciocnios concernentes acausas e efeitos (cf. T650-651). Ento, o mtodo adequado em losoa moral o experimental, ou seja, ao julgar as aes humanas, devemos proceder combase nas mesmas mximas que quando raciocinamos acerca de objetos externos(T403). Pois, segundo Hume, quando consideramos quo adequadamente seligam as evidncias naturale moral, formando uma nica cadeia de argumentos,no hesitaremos em admitir que elas so da mesma natureza e derivam dosmesmos princpios (E 90).

    No entanto, embora utilizando o mesmo mtodo experimental, ocorreimportante diferena: na losoa moral, contrariamente losoa natural,no se pode realizar experimentos com premeditao e exato controle das

    variveis. O lsofo escocs admite que:

    A prpria losoa experimental, que parece mais natural e simplesque qualquer outra, requer um esforo extremo do juzo humano.Na natureza, todo fenmeno composto e modicado por tantascircunstncias diferentes que, para chegarmos ao ponto decisivo,devemos separar dele cuidadosamente tudo o que supruo einvestigar, por meio de novos experimentos, se cada circunstncia

    particular do primeiro experimento lhe era essencial. Esses novosexperimentos so passveis de uma discusso do mesmo tipo; demodo que precisamos da mxima constncia para perseverar em nossa

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    Para realizar esse seu intento, Hume elabora o Tratado da Natureza Humanaexaminando seus aspectos constituintes: o entendimento, as paixes e a moral.O Tratado ento almeja o conhecimento geral, por isso losco, das leis e

    princpios da natureza humana11

    . Ou seja, sua concepo de losoa investigaras operaes e os princpios da natureza humana, segundo um mtodo natural deinvestigao. Isso signica que no um procedimento analtico ou conceitual, poissegundo Hume, mais importante observar as coisas do que as denominaes

    verbais (E 322); no podemos car discutindo acerca de palavras (T297). bvio que o lsofo escocs considera que os conceitos devem ser corretamentedenidos, pois, se algum alterar as denies, no posso pretender discutir com

    ele sem saber o sentido que atribui s palavras (T407)12

    . interessante perceber como Hume pode ser interpretado como umctico radical, segundo o qual ele estaria negando em seu Tratado no s aexistncia dos objetos externos como a do prprio sujeito; o que por si steria implodido qualquer possibilidade de uma cincia da natureza humana, queseu livro prometia apresentar ao leitor, como da cincia em geral. Ele mesmoresponde aos que o acusam de ser um ctico radical:

    (...) se sou realmente um desses cticos que sustentam que tudo incertoe que nosso juzo no possui nenhuma medida da verdade ou falsidadede nada, responderia que essa questo inteiramente suprua,e que nem eu nem qualquer outra pessoa jamais esposou sincera econstantemente tal opinio. A natureza, por uma necessidade absolutae incontrolvel, determinou-nos ajulgar, assim como a respirare a sentir.No podemos deixar de considerar certos objetos de um modo maisforte e pleno em virtude de sua conexo habitual com uma impresso

    presente, como no podemos nos impedir de pensarenquanto estamosdespertos, ou de enxergar os objetos circundantes quando voltamosnossos olhos para eles em plena luz do dia. Quem quer que tenhase dado ao trabalho de refutar as cavilaes desse ceticismo total, naverdade debateu sem antagonista e fez uso de argumentos na tentativade estabelecer uma faculdade que a natureza j havia implantado emnossa mente, tornando-a inevitvel (T183, grifo nosso).

    11 GUIMARES, 2007, p. 207.12 Preferimos a seguinte traduo:HUME, David. Tratado da natureza humana. Traduo de Seram da Silva Fontes. Lisboa: FundaoCalouste Gulbenkian, 2001. p. 474.

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    Ou seja, a natureza forte demais e est pronta para rebater qualquerargumento ctico que possa ser apresentado (cf. T 657). Est claro que opensamento humeano, repetindo MacIntyre, representou uma subverso do

    pensamento da sua poca. No entanto, sua losoa tem uma contrapartepositiva: a losoa moral, ou cincia da natureza humana pode ser de duasmaneiras diferentes, cada uma delas possuidora de um mrito peculiar e capazde contribuir para o entretenimento, instruo e reforma da humanidade (E 5).

    O que nos interessa mais propriamente para os objetivos de nossainvestigao como, segundo a losoa moral de Hume, utilizando ummtodo experimental, podemos estabelecer valores, princpios, critrios e

    a discriminao e justicao de contedos morais a partir de sentimentospresentes na natureza humana? Essa a principal diculdade, conforme asinterpretaes precedentes, de sua losoa moral: como responder tal questosem recair em um ceticismo normativo, um emotivismo, um relativismoaxiolgico ou em um naturalismo descritivista (moralidade psicologizada)?

    Como resposta a essas questes, inicialmente, atribumos losoade Hume a seguinte a concepo de naturalismo moral:os fundamentos damoralidade com um sistema de valores constituem-se, unicamente, em nossanatureza humana. Ou melhor, os sentimentos humanos so a base para osjulgamentos normativos. Escreve o lsofo escocs na Primeira Investigao:

    A natureza moldou a mente humana de tal forma que, to logo certoscaracteres, disposies e aes faam seu aparecimento, ela experimenta[sente] de imediato o sentimento [feels the sentiment] de aprovao ou decondenao, e no h emoes que sejam mais essenciais que essaspara sua estrutura e constituio (E 102)13.

    Para o lsofo escocs, a hiptese mais provvel que a moralidade algo real, essencial e fundado na natureza. Por isso possvel

    13 Ao longo desta segunda parte de nossa investigao, vamos registrar em vrios momentos a utili-zao, pelos tradutores das edies brasileiras do Tratado e das Investigaes, dos termos sentir [to feel]e experimentar [to experience] como sinnimos. Muitas vezes, os tradutores iro acrescentar o termoexperimentar sem o mesmo constar no texto original de Hume (Exemplos: T118, trad. p. 149; T

    469, trad. p. 508; T577, trad. p. 617; T608-609, trad. p. 648;E 20, trad. p. 37). A nossa suspeita queo texto original de Hume mais direto, sem a necessidade do acrscimo do termo experimentar parase referir ao que sentimos de forma imediata (feeling). Mas isso poderia ser objeto de discusso emoutro momento.

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    explicar a distino entre vcio e virtude, bem como a origem dosdireitos e das obrigaes morais, e que, por uma constituio primitivada natureza, certos caracteres e paixes, s de vistos e contemplados,produzem um desprazer, e outros, de maneira semelhante, suscitam

    um prazer. O desprazer e a satisfao no so apenas inseparveis dovcio e da virtude; constituem sua prpria natureza e essncia (T296).

    Hume concede aos crticos que mesmo considerando essa hiptesefalsa, ainda assim evidente que a dor e o prazer, se no so as causas do vcioe da virtude, so ao menos inseparveis destes (T296). Dessa forma, o lsofoescocs deriva os princpios morais do exame da natureza humana, ou seja, deum fundamento naturalista. Hume arma que nosso sistema de moralidade

    resulta diretamente da maneira particular como os seres humanos foram criadosnessa estrutura humana: de fato, quando consideramos quo adequadamenteas evidncias naturais e morais se aglutinam, formando uma cadeia nica deargumentao, no hesitaremos em admitir que tm a mesma natureza e derivamdos mesmos princpios (T404). Segundo ele, essas distines [morais e degosto] esto fundadas nos sentimentos naturais da mente humana (E 103).E esses sentimentos no podem ser controlados ou alterados por nenhuma

    espcie de teoria ou especulao losca (E 103). O lsofo escocsabandona pressupostos sobrenaturais, religiosos, teolgicos e dogmticos elana-se tarefa losca com uma inteno especca distinta dos objetivosdalosoa tericae dalosoa natural14 : realizar na losoa moral uma investigaoda natureza humana. Deleuze arma que, em Hume, a natureza humana em seusprincpios ultrapassa a mente, que nada na mente ultrapassa a natureza humana;nada transcendental15. Ou melhor, o naturalismo humeano, como escrevePaulo Faria, consiste, essencialmente, na disposio de tirar todas as consequnciasdo reconhecimento desse fato acerca da natureza humana: que o que somoscapazes de pensardepende, tambm, do que somos capazes de sentir16. ParaHume, a moralidade mais propriamente sentida do que julgada17.

    14 Ver anexo 3.15 DELEUZE, 2001, p. 14.16 APUD AZEVEDO, Marco Antnio Oliveira de. Biotica Fundamental. Porto Alegre: Tomo Editorial,2002. p. 15.

    17 HUME, D. Tratado da Natureza Humana. Traduo de Seram da Silva Fontes. Lisboa: FundaoCalouste Gulbenkian, 2001. p. 544. HUME, David. Tratado da Natureza Humana:uma tentativa de intro-duzir o mtodo experimental de raciocnio nos assuntos morais. Traduo de Dbora Danowski. SoPaulo: Editora Unesp, 2001. p. 510.

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    TICA DO DISCURSO: CONTEDO MORAL ERESPONSABILIDADE SOLIDRIA

    Jovino Pizzi1

    INTRODUO

    A tica do discurso justica o contedo de uma moralidade quesalienta a simetria entre os sujeitos e a solidariedade entre todos. ParaHabermas a solidariedade a outra face da justia (1999, p. 42), ou seja,

    so duas faces da mesma moeda. Esta uma armao chave em relaoao contedo cognitivo do mbito moral. A validade das normas pressupeuma fundamentao normativa estruturada linguisticamente, de forma a

    vincular a justia com a solidariedade. A nfase est em uma razo prticacapaz de fundamentar princpios igualitrios e universalistas da moral e dodireito (2009, p. 63). A legitimao do estado de direito deve preservar suaneutralidade ideolgica, alicerada em uma moral racional, isto , laica (ou

    secular). Com isso, as exigncias normativas devem ser aceitas por todosem uma sociedade pluralista, formada por cidados de diferentes credos e,inclusive, por no crentes (HABERMAS, 2009, p. 69).

    A teoria do agir comunicativo se insere no horizonte de uma sociedadecom sinais profundos de secularizao. A prospectiva habermasiana parte dofato de que, com o desenvolvimento da sociedade democrtica moderna e aprpria integrao social passa a ser determinada por uma razo comunicativa

    laica. A compreenso moderna do mundo suplantou cosmovises mticas,religiosas e metafsicas (HABERMAS, 1988, p. 101). A dissoluo dasjusticativas mtico-narrativas proporcionou, ao sujeito comunicativo eparticipativo, a assuno discursiva de pretenses de validez suscetveisa crtica (1988, p. 107). O o condutor do entendimento obedece a umprocedimento racional ligado ao mundo da vida. As normas que orientamo agir so fruto desse processo comunicativo intersubjetivo entre sujeitos-

    1 E-mail: [email protected]

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    participantes tendo como base a validez do acordo consensuado entre todosos concernentes. Desse modo, os sujeitos se entendem racionalmente sobrepretenses de validade normativas. E somente podem ter validade as normas

    aceitas por todos os participantes em um discurso prtico.Nessa perspectiva, a razo secular consegue apropriar-se, atravsdos recursos do pensamento ps-metafsico, dos contedos semnticos dastradies, sem renunciar jamais a autonomia que lhe inerente. O ponto de

    vista moral no deriva de asseres do tipo emprico-formais ou ligadas aodeterminismo causal, muito menos se limita a anlise dos aspectos semnticodos proferimentos. A traduzibilidade da razo prtica requer, pois, uma

    conexo com as prticas cotidianas dos sujeitos em dilogo com os demais. possvel, portanto, descrever o processo de fundamentao e explic-lo, massem que isso signique a adoo deste tipo de fundamentao (HOERSTER,1975, p. 150). Nisso parece estar o perigo, pois essa mesma razo secular podeperder-se no momento da defesa solidria de metas coletivas. Em outraspalavras, ela sofre o risco de no chegar a tempo e revelar sua impossibilidadepara aanar laos de solidariedade, seja dentro dos Estados nacionais, nasrelaes interestatais ou supranacionais (KALDOR, 2005).

    Por um lado, isso decorrncia do debilitamento dos aspectosmotivacionais de uma moral racional autnoma e laica, porque propornormas morais no signica, de fato, a assuno de um compromissosolidrio. Embora esse dcit possa ser corrigido dentro dos limites doEstado constitucional democrtico, pelo direito positivo, mesmo assim, elamoral no consegue impulsionar uma ao coletiva solidria, ou seja, umaao moralmente instruda. Por outro lado, a questo se vincula ideia deque os princpios vlidos para todos possam realmente acarretar em umcompromisso prtico, isto , no consequente engajamento efetivo em favorda justia e da solidariedade.

    Esse o foco desta pesquisa: o potencial de uma moral laica ps-metafsica que ainda repousa adormecido. Pois, o delineamento de princpios

    vlidos para todos (consensuados comunicativamente, portanto) no mobilizaos sujeitos para assumirem concretamente as responsabilidades diante desituaes de injustia e da falta de solidariedade. Da, ento, a preocupao emdelinear as consideraes de Habermas a respeito da moral ps-metafsica,

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    cujos fundamentos laicos asseguram tanto os direitos fundamentais como osprincpios do estado de direito. No seu modo procedimental, essa perspectivafundamenta um ponto de vista moral. Todavia, essa razo secular parece

    denhar medida que no consegue superar as debilidades motivacionaise proporcionar a realizao solidria de metas coletivas. Ela ecaz noconcernente observncia individual dos deveres, mas parece ser um tantoincapaz de impulsionar o engajamento coletivo solidrio, ou seja, no seatreve a preceituar uma ao moralmente instruda. Em decorrncia, toleraa resignao dos sujeitos diante de injustias e da no solidariedade; estudare compreender as potencialidades e os possveis dcits dessa moral laica a

    proposta deste trabalho.

    A RAZO PS-METAFSICA SECULARIZADA

    A questo em anlise se vincula prpria autocompreenso darazo ps-metafsica, consolidada a partir do desencantamento das imagensreligioso-metafsicas do mundo e o nascimento das estruturas de conscinciamodernas (HABERMAS, 1988, p. 249). Ao deixar de lado essas imagens, alosoa j no arroga mais fundamentos ontoteolgicos ou cosmolgicospara modelos universalmente vinculantes (HABERMAS, 2006, p. 276). Da,ento, o moral point of viewvinculado aos interesses de todos, renunciando,portanto, a qualquer perspectiva substancial de uma forma de vida exemplar,isto , externa e alheia ao mundo. Nesse sentido, o Iluminismo fomentou umamoral laica secularizada, de forma que a conscincia moral civil ganhouautonomia diante das perspectivas cosmolgicas e religiosas, possibilitandouma tica regida por princpios (HABERMAS, 1988, p. 301). Por isso, oponto de vista moral deve reconstruir uma perspectiva intramundana, ou seja,dentro dos limites de nosso mundo intersubjetivamente compartilhado, semcorrer o risco de afastamento do mundo como um todo e, em decorrncia,da perspectiva universalista (HABERMAS, 1999, p. 33-34).

    Alm disso, h outro aspecto signicativo em relao tica. Trata-sedo fato de que o vigor armativo das ticas clssicas evaporou-se j faz algumtempo (HABERMAS, 2009, p. 217). Nesse sentido, no se justica apenasuma genealogia da tradio moral ocidental e de seus aspectos semnticos, mas

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    em estudar e debater sobremaneira as caractersticas dessa moral ilustrada, isto, de uma razo prtica emancipada (HABERMAS, 1988, p. 302). Em outraspalavras, trata-se de estudar o potencial semntico e simblico dessa moral laica

    e sua particular inuncia na vida prtica das pessoas.O discurso sobre a secularizao sofreu modicaes no decorrerdos anos 80 e 90 do sculo passado. No entanto, foi nos albores do sculoXXI que ele ganhou propores ainda mais abrangentes. Atualmente, existeforte inclinao secularizao da moral, permeando os diferentes discursospblicos e processos polticos. Essa moral secular encontra-se, todavia,constantemente assediada por propostas, s vezes, pertinentes, como o

    caso da relao da complementaridade entre f e saber. Na verdade, no hcomo fugir da discusso a respeito da forma como as cosmovises, sejammetafsicas ou religiosas, so traduzidas simbolicamente por meio da aberturaao tratamento discursivo ou lingustico (MENDIETA, 2001, p. 42).

    Essa temtica abre um leque signicativo de apreciaes, principalmentena contestao do papel e do valor da metafsica (PINZANI, 2009, p. 118). Todavia,o foco deste projeto est em discutir a sensibilidade moral em relao justia e solidariedade. Na verdade, quando Habermas arma que a solidariedade oanverso da justia (1999, p. 42), ele salienta no s um retorno do tema, masuma nova congurao e uma nova atitude diante da questo.

    A preocupao em torno justia varia bastante. Ele faz parte dopensamento losco do sculo XX e do atual. Grande parte do pensamentomoderno abandonou o vnculo entre justia, economia e poltica. O perodomedieval tinha como foco a conexo justia e paz, aspectos consideradosessenciais para o bem viver. Como conhecido, a losoa moderna e, maisrecentemente, o ethical turnintroduziu mudanas signicativas para a reexolosca. Esse giro tico da losoa consagrou um novo impulso para aracionalidade prtica, porm as ressalvas parecem advir de um ponto de vistamoral que no se incorpora nas atitudes das pessoas e garante a superaodas situaes de injustia e de no solidariedade, tanto em relao a aspectosestruturais, como em questes relacionadas ao mundo da vida cotidiana.

    Sem dvidas, isso evidencia que a orientao do agir no se resume resoluo de conitos, mas a uma pragmtica vinculada a polticasdeliberativas. Essas polticas no dependem de interesses particulares

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    ou, ento, de pressupostos metafsicos, pois esto ligadas a princpios ounormas reconhecidas como vlidas para todos. A ampliao signica o norestringimento da moral ao mbito privado ou ao horizonte familiar, muito

    menos ao fato de garantir a cada sujeito individualmente o que lhe devido,mas em um dever moral, pois se trata de um compromisso entre todos.A sociedade medieval, principalmente a francesa, tolerava a vingana

    como meio para a resoluo de conitos, de modo especial em relao aoscrimes contra a honradez (GAUVARD, 2006 II, p. 56). Esse era um tipo desoluo privada, s vezes com a intermediao de um juiz ou rbitro. Noentanto, a justia no se limita ao campo privado, pois apresenta carter

    pblico. Ai nasce uma distino importante: a justia pblica e a ocial. Dessemodo, temos a justia legal, regulada por um poder judicirio, encarregadaprimordialmente de regular os conitos particulares, garantindo os direitosa cada indivduo. Por isso, se, na Idade Mdia, a preocupao se centrava no

    vnculo entre paz e justia (GAUVARD, 2006, II, p. 55), no sculo XX, otema retomado por Rawls, um dos autores renomados na questo da justia.Otfried Hffe, Paul Ricoeur e muitos outros pensadores tambm marcampresena na discusso. Macpherson (1991) fala da ascenso e queda da justiaeconmica. Atualmente, muito se fala sobre responsabilidade social, ticasaplicadas, polticas armativas, etc., embora exista a impresso de haver umdebilitamento da justia e da solidariedade. Nessa linha, o discurso moralse traduz, s vezes, em simples marketing ou em campanhas lantrpicas(espordicas, portanto).

    OS NOVOS DESAFIOS PARA A JUSTIA

    Dos anos 70 para c, a losoa e, consequentemente, a tica,experimentam uma transformao profunda. A nova congurao na ticacoloca em evidncia questes relacionadas fundamentao e aplicao.Neste processo, h uma revalorizao de diversos conceitos, como o casoda justia. Neste sentido, encontramos um leque de concepes relacionadas justia. Diante disso, algumas questes so expressivas:

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    Os ideais da Ilustrao salientam a igualdade jurdica, assim comotambm a igualdade social e econmica. Esse delineamento nos leva a insistirque a justia deixa de ser uma questo apenas vinculada ao aspecto semntico

    (isto , sua denibilidade conceitual), mas ao aspecto pragmtico. Essapragmtica pressupe uma neutralidade do procedimento (HABERMAS,1998, p. 386), porque ningum pode garantir, por si s, sua autonomia moral.Ela depende da interao comunicativa, ou seja, dos esforos cooperativosque ningum pode ser obrigado por meio das normas jurdicas, mas quetodos so conclamados a seguir (ou obedecer). Nesse sentido, a perguntaa quem so os sujeitos da justia nos leva s vtimas da injustia. A

    preocupao em saber quem so os sujeitos da justia remete inclusive sfuturas geraes.Em sntese, a razo ps-metafsica se fundamenta em princpios

    irrenunciveis. Ela presume a mobilizao solidria entre as pessoas, isto ,na participao coletiva. A neutralidade procede na medida em que a inclusode todos realmente acontea. Somente assim possvel garantir os preceitosde justia e laos de solidariedade.

    Todavia, h um problema: essa razo parece enfrenta uma dicotomiainterna. Seus dcits se manifestam no horizonte de um pensamento dividido.Por um lado, permanece a percepo ou a sensibilidade moral em relao injustia, mas, por outro, cresce a des-solidariedade. pertinente referir-se insolidariedade ou, ento, ausncia de solidariedade para salientar esse deixarde lado a responsabilidade por uma sociedade justa e solidria. No fundo,a solidariedade vai escasseando cada vez mais, debilitando o compromissofrente s injustias e aos injustiados, bem como a responsabilidade diantedas futuras geraes e dos riscos que o meio ambiente sofre.

    Essa decincia afeta no apenas as pessoas como tal, mas faz partetambm do jogo poltico, no sentido de manter o status quo de uma sociedadeestruturalmente organizada, instrumentalizando no apenas a relao entreos sujeitos, mas colocando tambm em risco a ideia de uma sociedade globale multicultural. At mesmo os governos inuentes que so sempre osatores polticos mais importantes deste cenrio prosseguem, sem titubear,com seus jogos de poder social-darwinistas (HABERMAS, 2009, p. 219).Em outras palavras, para Habermas, no falta apenas vontade poltica para

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    desejar instituies e processos de ordem mundial reformada, mas inclusive aperspectiva de uma poltica interna global satisfatria (2009, p. 219).

    AS EXIGNCIAS MORAIS EM SINTONIA COM O GIRO APLICADODA FILOSOFIA

    As exigncias normativas esto vinculadas ao querer. Para Hoerster(1975), a possibilidade de formular normas no signica que elas setransformem em atitudes. O objetivo do agente nem sempre pode coincidircom as pretenses de todos. A questo se relaciona ao momento da tomada

    de decises. O que realmente motiva os sujeitos para agir segundo princpios?Quem decide por quem? Garnkel (2006) trata de analisar a tomada dedecises a partir de concernentes situao cotidiana, isto , na motivaoque as pessoas observam ao tomarem decises. Na verdade, a justia e aprpria solidariedade no se limitam ao mbito conceitual (semntico,portanto). Assim, possvel compreender o que signica estar no mundo edistinguir sobre o que os sujeitos podem se entender e em que aspectos elespodem intervir no mundo.

    O nvel ps-convencional dos estgios morais pressupe comovlidas normas que todos possam querer (HABERMAS, 1999). No mbitodas condies concretas, a racionalidade comunicativa conduz a insero dosujeito no mundo (nos diferentes contextos do mundo da vida), de modoa unir e articular falae ao. Esse o horizonte no qual Habermas admiteum espao para o bom na teoria do justo, no como direito positivo, mascomo liberdades de indivduos inalienveis que se autodeterminam (1999, p.70). A pretenso universal de qualquer pretenso de validade deve assegurar,portanto, os direitos e liberdades de cada sujeito de forma a garantir tambmo bem-estar do prximo e da comunidade a que (os sujeitos) pertencem(HABERMAS, 1999, p. 71).

    O ethical turnevidencia mudanas que afetam apenas a tica como tal,mas tambm os diversos mbitos da vida prtica. Como diz Alcira Bonilla,as ticas do sculo XX abordaram em seus objetos caractersticas de ummodo tal que pouco incide nos assuntos prticos que foram aparecendocomo consequncia do desenvolvimento das cincias e da tecnologia ou da

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    dinmica prpria da vida social (2006, p. 78). Sem dvidas, as mudanas soprofundas e, por isso, uma nova congurao ou como dizem os ingleses atica se apresenta com um novo desenho, com o qual a fundamentao exige

    tambm formas de aplicao. A racionalidade prtica passa a se preocuparcom os diferentes mbitos da vida prtica. Essa preocupao tema para alosoa e incluso para os diferentes campos ou mbitos e envolvem a todosos sujeitos.

    Nesse processo, os conceitos tradicionais so retraduzidos e outrosrecebem novas delimitaes, enquanto outros passam por uma revalorizao.Essa exigncia salienta a necessidade de desenhar tambm uma arquitetnica

    conceptual da justia (RICOEUR, 1997, p. 14). Esse delineamento vaialm das denies e nos leva, portanto, fenomenologia da justia, pois apergunta o que justia se encontra confrontada com sua aplicao prtica.Por isso, a discusso evidencia a necessidade de ir alm da questo semnticae visualizar os aspectos pragmticos da justia e dos laos de solidariedade emuma sociedade pluralista.

    Por isso, as exigncias de justia devem responder quem so ossujeitos da justia, de modo que a busca por denies tenha em vista ofuturo da natureza humana e, se desejarmos, do prprio meio ambiente.

    A proposta poderia ser traduzida em uma nova arquitetnica pragmtico-fenomenolgica, modelo que no apenas destaca os possveis dcits da razosecular, mas procura tambm consagrar um dilogo interdisciplinar com osdiferentes campos de aplicao. Na verdade, a arquitetnica pragmtico-fenomenolgica da justia encontra em Kant um elemento imprescindvel,principalmente em seu postulado de que algo pode ser correto em teoria,mas no serve para a prtica (2000, p. 3). O debate atual da tica encontra emHabermas uma reformulao do imperativo categrico kantiano e, atravs dametodologia reconstrutiva, procura fundamentar normas vlidas para todos.Essa metodologia refora o tema da justia.

    Nesse sentido, repetimos mais uma vez: a pergunta o que justia nosleva a pesquisar no somente seu aspecto semntico e realizar uma genealogiada justia na tradio ocidental, mas tambm seu aspecto pragmtico. Emoutras palavras, trata-se de compreender no apenas o que justia, mastambm identicar quem so os afetados e como congurar a justia

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    VERDADE E PODER EM DISCURSOS: REFLEXES SOBREAS TEORIAS DE HABERMAS E FOUCAULT

    Danilo Persch1

    Mrio Antnio da Silva2

    INTRODUO

    As reexes da presente comunicao tm por base as teorias discursivasde Jrgen Habermas e a analtica do discurso de Michel Foucault. Para tanto,

    num primeiro momento, proceder-se- com uma breve abordagem em tornoda relao discurso versusverdade, que permeia grande parte da vasta obrado lsofo alemo Jrgen Habermas, para o qual, a linguagem constituium dos pontos centrais das discusses polticas e ticas de nossa poca. Asegunda parte estar constituda por uma introduo analtica foucaultianado discurso, que parte da relao insolvel entre saber e poder, em que odiscurso constitui importante instrumento para o exerccio do poder. Num

    terceiro momento, sero feitas algumas consideraes nais em que seroapontados alguns aspectos convergentes e divergentes a respeito das teoriasdiscursivas dos lsofos referidos.

    A RELAO ENTRE DISCURSO E VERDADE NOPENSAMENTO DE JRGEN HABERMAS

    Antes de nos referirmos relao existente entre discurso everdade no pensamento de Habermas e relao que Foucault estabeleceentre discurso e poder, considera-se importante fazer alguns brevesapontamentos sobre a questo epistemolgica do realismo. Isso porque naargumentao que pretendemos seguir, baseada nas teorias de Habermas eFoucault, no temos acesso realidade, a no ser por meio do discurso, ou

    1

    Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso Unemat; Doutor em Filosoa pela Universi-dade Federal de So Carlos SP UFSCar. E-mail: [email protected] Professor no Ensino Mdio da Rede Pblica Estadual de Mato Grosso. Mestre em Filosoa Social pelaPontifcia Universidade Catlica de Campinas SP Pucamp. E-mail: [email protected]

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    seja, no existe um mundo real a prioriao discurso. Assim, a crena metafsica3da existncia de uma Realidade Primeira, que antecede a todo e qualquer relatotorna-se problemtica. Acreditar que existe uma realidade que precede o

    discurso signica armar a existncia de um sujeito todo poderoso, capaz deestabelecer a verdade sobre os fatos.Em sua obra Warheit und Rechtfertigung(1999), Habermas, j no segundo

    pargrafo da introduo, nesse sentido, escreve: como conciliar a suposiode um mundo independente de nossas descries, idntico para todos osobservadores, com a descoberta da losoa da linguagem segundo a qualnos negado um acesso direto, no mediatizado pela linguagem, realidadenua4. Mais adiante ao escrever que: aps a virada lingustica, foi-nos vedado

    um acesso a uma realidade interna ou externa, que no fosse mediado pelalinguagem5, Habermas refora o statusconquistado pela losoa da linguagemem relao a losoa da conscincia que ... privilegiara o interior em relao aoexterior, o privado em relao ao pblico, a imediao da vivncia subjetiva emrelao mediao discursiva6. Enm, para Habermas, aps a virada lingustica,houve um nivelamento entre sujeito e objeto na produo do conhecimento.

    A partir desse momento ... a linguagem presta-se tanto comunicao como

    representao; e o proferimento lingustico , ele mesmo, uma forma de agirque serve ao estabelecimento de relaes interpessoais7.

    Por outro lado, Foucault, em sua analtica interpretativa da sociedademoderna, se afasta da tradio losca que utiliza a linguagem pararepresentar a realidade. Seu trabalho caracteriza-se pelo esforo de pensarfora dos dualismos metafsicos que a losoa ocidental herdou dos gregos:as oposies entre essncia e acidente, aparncia e realidade. A linguagem nos

    permite compreender a realidade somente a partir daquilo que as descrieslingusticas nos oferecem. Para o lsofo, a linguagem fundamentalmente

    3 Na tradio losca a metafsica denida como a cincia primeira, por ter como objeto o objeto detodas as outras cincias, e como princpio um princpio que condiciona a validade de todos os outros.4 HABERMAS, Jrgen. Verdade e justicao: ensaios loscos. Traduo de Milton C. Mota. SoPaulo: Loyola, 2004a, p. 8.5 HABERMAS, Jrgen. Verdade e justicao: ensaios loscos. Traduo de Milton C. Mota. SoPaulo: Loyola, 2004a, p. 19.6

    HABERMAS, Jrgen. Verdade e justicao: ensaios loscos. Traduo de Milton C. Mota. SoPaulo: Loyola, 2004a, p. 9.7 HABERMAS, Jrgen. Verdade e justicao: ensaios loscos. Traduo de Milton C. Mota. SoPaulo: Loyola, 2004a, p. 9.

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    discurso, e a realidade sempre realidade discursiva. E, com isso, ele procuraquestionar as pretenses de verdade inerentes prpria linguagem, paraarticular um entendimento da nossa situao que nos leve ao. A linguagem

    no apenas uma forma de se exercer o poder, tambm a possibilidade dese questionar este poder, como se ver na segunda parte do nosso texto.Voltando a Habermas, nota-se que um entendimento (Verstndigung)

    entre duas ou mais pessoas apenas possvel se falante(s) e ouvinte(s) operamno apenas no nvel da intersubjetividade em que falam um com o outro, mastambm no nvel dos objetos ou dos estados de coisas sobre os quais eles secomunicam um com o outro. De forma mais especca, pode-se dizer que,

    para Habermas, pessoas podem entender-se devido a dois fatores: a capacidadeinata que as pessoas tm para o entendimento, ou seja, segundo ele: Se nopudssemos fazer uso do modelo de fala, no seramos capazes de dar sequerum passo na anlise do que signica que dois sujeitos se entendam entre si8;e porque ideias como verdade, racionalidade ou justicao, desempenham amesma funo gramatical em qualquer comunidade lingustica, mesmo que

    venham a ser interpretadas diferentemente e aplicadas de acordo com critriosdistintos9. Isso signica que, por meio do uso da linguagem, as pessoasconseguem fazer a distino entre o que verdadeiro com aquilo que apenasparece ser verdadeiro. No entanto, para Habermas:

    (...) a lngua no uma propriedade privada. Ningum dispe exclusivamentedo meio comum de compreenso, o qual devemos compartilharintersubjetivamente. Nenhum participante individual pode controlar aestrutura ou mesmo o desenrolar dos processos de compreenso e de

    autocompreenso. (...) No logos da lngua, personica-se um poder dointersubjetivo, que anterior subjetividade dos falantes e a sustenta.(...) O logos da lngua escapa ao nosso controle e, no entanto, somosns, os sujeitos capacitados para a linguagem e para a ao, que, poresse meio, nos entendemos uns com os outros10.

    8 HABERMAS, Jrgen. Theorie des kommunikativen Handels. Band I, Frankfurt am Main: Suhrkamp,1981, p. 387.9 HABERMAS, Jrgen. A unidade da razo na multiplicidade de suas vozes. In: ______. Pensamento

    ps-metafsico: estudos loscos. Trad. F. B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 175.10 Idem. Moderao justicada: existem respostas ps-metafsicas para a questo sobre a vida cor-reta? in: O futuro da natureza humana:a caminho de uma eugenia liberal?Trad. Karina Jannini.So Paulo,Martins Fontes, 2004, p. 16.

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    Portanto, para Habermas, todos os sujeitos normais esto capacitadospara a linguagem e para a ao, ou seja, os seres humanos no so determinadospela natureza e por isso a descrio sobre aes de pessoas no se igualam s

    descries de objetos das cincias naturais, de tal forma que:

    Quando descrevemos um processo como a ao de uma pessoa,sabemos, por exemplo, que estamos descrevendo algo que pode noapenas ser explicado como um processo natural, mas que tambm podeserjusticado como tal, se necessrio. Em segundo plano encontra-se aimagem de pessoas que podem prestar contas umas s outras, pessoasque desde o incio envolveram-se em interaes normativamentereguladas e se encontram num universo de razes pblicas11.

    Dessas anotaes e citaes pode-se concluir que, para Habermas,existem regras constitutivas subjacentes aos atos de linguagem, que determinamo teor cognitivo de discursos, e por meio desse uso cognitivo da linguagem,que damos uma forma proposicional s nossas crenas. Isso ca mais clarocom a anlise que Habermas faz da relao entre discurso e verdade.Nesse sentido o autor levanta a seguinte pergunta: do que se pode dizer que

    verdadeiro ou falso?12. Em princpio, para Habermas, verdadeiro ou falsopode ser tanto uma orao, uma emisso ou um enunciado. No entanto, umenunciado sobre algum fato ou alguma coisa verdadeiro (...) s se reeteum estado de coisas real ou um fato e no se limita a ngir um estadode coisas como um fato13. Com isso, Habermas quer dizer que enunciadospredicativos falsos, tambm tm um contedo proposicional, ou seja, anegao um enunciado com o qual se arma um estado de coisas ao invs

    de negar um estado de coisas, ou seja: A no verdade de um enunciado no a negao de um enunciado; no se pode negar um enunciado, seno seu

    11 HABERMAS, Jrgen. F e saber. In: ______. O futuro da natureza humana. Trad. Karina Jannini.SoPaulo: Martins Fontes, 2004. p. 143.12 HABERMAS, Jrgen. Teoria de la accin comunicativa: complementos y estudios previos. Traduo deManuel Jimnez Redondo. Madri: Edies Ctreda, 2001, p. 113. Alm dessa, que a primeira questoque Habermas considera necessria para uma compreenso das Teorias da verdade, aparecem mais duasquestes em seu texto que so: teoria da verdade como redundncia e teoria da verdade como

    correspondncia. Estas duas questes no sero trabalhadas separadamente, pois elas se encontramimplcitas na primeira.13 HABERMAS, Jrgen. Teoria de la accin comunicativa: complementos y estudios previos. Traduo deManuel Jimnez Redondo. Madri: Edies Ctreda, 2001, p. 114.

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    valor de verdade. Porm, quando nego o valor de verdade de um enunciadofao uma armao discursiva: armo que o enunciado p falso14.

    Nessas questes sobre o que pode ser (ou no ser) consideradoverdadeiro num enunciado, e respectivamente num discurso, importanteter presente a diferenciao que Habermas faz entre fatos, que, para ele, soarmados e objetos, com os quais as pessoas fazem experincias. Objetos,por se enquadrarem na ordem da natureza, so, por isso, isentos de qualquertipo de valorao. Coisas e acontecimentos, pessoas e suas manifestaes,so objetos da experincia, que no podem ser considerados verdadeirosou falsos. Em contrapartida, um fato sempre representa algo que pode serarmado e o que por sua vez determina se um enunciado verdadeiro ou

    falso. O que Habermas pretende com essa diferenciao dizer que fatostm um statusdistinto dos objetos da experincia. Enquanto com objetosas pessoas fazem experincias, fatos podem apenas ser armados.

    Como exemplo do que caracteriza um fato, pode-se citar a ocorrnciade um acidente de carro. Tais acontecimentos constituem fatos na medidaem que podem ser armados por diferentes pessoas (jornalistas), e emtais casos so as armaes sobre as ocorrncias que mantm o statusdeserem consideradas verdadeiras ou falsas. No se trata de fundamentardiscursivamente a ocorrncia em si, pois seria muito difcil algum duvidarque tenha ocorrido tal acidente. No entanto, muito comum haver descriesdiferentes sobre o mesmo fato ou acontecimento, e isso muitas vezes dicultaum consenso sobre sua veracidade. De tudo isso Habermas conclui que nose pode experimentar fatos nem armar objetos (ou experincias com osobjetos). E se os objetos da nossa experincia so algo no mundo, ento nopodemos dizer igualmente dos fatos que sejam algo no mundo15.

    Como se pode perceber h, para Habermas, uma interao entre oque armado sobre um fato para com o fato em si. Para ele, isso signicaque por meio da linguagem as pessoas interagem no mundo social, e nessesentido os discursos tm uma tarefa reconstrutiva, pois por meio deles quese estabelece a conciliao entre o paralelo que se d a partir dos fatos em sipara com as armaes sobre tais fatos.

    14 HABERMAS, Jrgen. Teoria de la accin comunicativa: complementos y estudios previos. Traduo deManuel Jimnez Redondo. Madri: Edies Ctreda, 2001, p. 117.15 HABERMAS, Jrgen. Teoria de la accin comunicativa: complementos y estudios previos. Traduo deManuel Jimnez Redondo. Madri: Edies Ctreda, 2001, p. 117.

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    Habermas estabelece a diferenciao entre fatos e objetosunicamente para explicar porque enunciados podem ser considerados

    verdadeiros ou falsos. Mas, um enunciado sobre algo, para ser verdadeiro,

    necessita ser testado de forma comunicativa, isto , por meio de argumentos,aos quais ele d a seguinte denio: Chamo argumentao ao tipo de fala em queos participantes tematizam as pretenses de validez duvidosas e tentam aprov-las ou recus-las por meio de argumentos16. Dessa forma, um enunciado queum sujeito faz sobre algum fato ganha fora quando esse algum consegueo convencimento por parte dos interlocutores de que o dito realmente

    verdadeiro. nesse sentido que Habermas dene verdade como sendo (...)

    uma pretenso de validez que vinculamos aos enunciados ao arm-los17

    . Oque so pretenses de validez, ele explica da seguinte forma:

    No caso de processos de entendimento mtuo lingusticos, os atoreserguem com seus atos de fala, ao se entenderem uns com os outrossobre algo, pretenses de validez, mais precisamente pretenses deverdade, pretenses de correo e pretenses de sinceridade, conformese reram a algo no mundo objetivo (enquanto totalidade dos estadosde coisas existentes), a algo no mundo social comum (enquantototalidade das relaes interpessoais legitimamente reguladas deum grupo social) ou a algo no mundo subjetivo prprio (enquantototalidade das vivncias a que tm acesso privilegiado)18.

    H, para Habermas, conforme se observa nessa citao, trs pretensesde validez que so: verdade, correo e sinceridade. A transgresso dequalquer uma dessas pretenses invalida o consenso que algum pode pleitear

    com sua fala, ao participar de um processo discursivo. Portanto, todos queparticipam de discursos devem estar cientes dessa normatizao, e devidoa esse teor normativo que um discurso nunca pode ser comparado com umaconversa qualquer.

    16 HABERMAS, Jrgen. Teoria de la accin comunicativa II: Crtica de la razn funcionalista. Madrid: Tau-rus, 1988a, p. 37.

    17 HABERMAS, Jrgen. Teoria de la accin comunicativa: complementos y estudios previos. Traduo deManuel Jimnez Redondo. Madri: Edies Ctreda, 2001, p. 114.18 HABERMAS, Jrgen. Conscincia moral e agir comunicativo. Traduo de Guido A. de Almeida. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 79.

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    Alm das pretenses de validez, um discurso tambm deve serpautado em regras que em seu livro Conscincia moral e agir comunicativo sodescritas da seguinte forma:

    (1.1) A nenhum falante lcito contradizer-se.(1.2) Todo falante que aplicar um predicado F a um objeto a, tem

    que estar disposto a aplicar F a qualquer outro objeto que seassemelhe a asob todos os aspectos relevantes.

    (1.3) No lcito aos diferentes falantes usar a mesma expresso emsentidos diferentes.

    (2.1) A todo falante s lcito armar aquilo em que ele mesmoacredita.

    (2.2) Quem atacar um enunciado ou norma que no for objeto dadiscusso tem que indicar uma razo para isso.

    (3.1) lcito a todo sujeito capaz de falar e agir participar de Discursos.(3.2) a. lcito a qualquer um problematizar qualquer assero.

    b. lcito a qualquer um introduzir qualquer assero noDiscurso.c. lcito a qualquer um manifestar suas atitudes, desejos enecessidades.

    (3.3) No lcito impedir falante algum, por uma coero exercidadentro ou fora do Discurso, de valer-se de seus direitosestabelecidos em (3.1) e (3.2)19.

    Sobre essas regras discursivas pode-se dizer, resumidamente, quediscursos acontecem quando todos os participantes tm a mesma chance paraconvalidar seus pontos de vista, ou seja, num discurso no h hierarquia e nemautoridade, de tal forma que o consenso nunca poder resultar de uma convico

    nica, mas deve sempre incluir todos os atingidos. Nesse sentido, para Habermas:

    Com o predicado de verdade referimo-nos ao jogo de linguagem dajusticao (...). medida que armamos p e que reivindicamosverdade para p, assumimos, embora conscientes da falibilidade aobrigao de defender p contra todas as objees possveis20.

    19 HABERMAS, Jrgen. Conscincia moral e agir comunicativo. Traduo de Guido A. de Almeida. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 110 112.20 HABERMAS, Jrgen. A incluso do outro: estudos de teoria poltica. Traduo de Gerige Sperber,Paulo Asthor Soethe e Milton C. Mota. 2a ed. So Paulo: Loyola, 2004, p. 53.

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    Mas diferente das regras, por exemplo, do jogo de xadrez, quesempre determinam um jogo factual, as regras do Discurso so apenas arepresentao de pressuposies pragmticas, feitas tacitamente e sabidas

    intuitivamente, de uma prtica discursiva privilegiada21

    . Isso signica queas regras que devem reger um discurso esto sempre postas, ou seja, elasantecedem qualquer prtica discursiva. So, portanto, a prioriaos discursos,o que no signica que necessariamente determinam as aes comunicativasdos participantes. No raramente as pretenses de verdade, correoe sinceridade, bem como as regras discursivas descritas acima soignoradas pelas pessoas na prtica comunicativa do cotidiano, e Habermas

    est muito ciente disso22

    . Mas por outro lado, ele defende a tese de que asregras discursivas podem ser observadas pelas pessoas, e na construode discursos elas estariam relacionadas muito mais a aspectos regulativosdo que propriamente constitutivos. Quando num discurso todas as regrasso observadas, tem-se o que Habermas denomina de situao idealde fala. Ela entendida como parmetro, ou melhor, como uma ideiareguladora, mas que no necessariamente implica um projeto concreto aser realizado.

    Cabe, nesse contexto, a seguinte pergunta: como Habermas chegoua essas regras que caracterizam uma situao ideal de fala? Uma vez que,para ele, tudo na sociedade est relacionado linguagem, essas regras soderivadas da linguagem. Tanto os traos culturais, como o conhecimento, einclusive as convices morais das pessoas, esto inscritas na linguagem, detal forma que por meio dela que ocorre a interao social.

    Em sntese pode-se dizer que, por discurso, Habermas compreendeum processo argumentativo regulado por regras, por meio do qual possvel

    21 HABERMAS, Jrgen. Conscincia moral e agir comunicativo. Traduo de Guido A. de Almeida. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 114.22 Nessa questo das regras discursivas, que esto pressupostas, mas que no necessariamente so ob-servadas pelos participantes de discursos, Habermas fala que tais regras podem ser caracterizadas, porum lado, como elementos hipotticos e, por outro lado, como elementos impossveis de rejeio.Com isso ele pretende achar um meio termo entre duas teorias ticas concorrentes, respectivamente,

    entre aqueles que, a exemplo de G. F. Gethmann, se recusam a falar em argumentao e aquelesque, a exemplo de Apel, defendem a possibilidade das regras constiturem uma base absolutamentesegura na realizao de Discursos, conforme: HABERMAS Jrgen. Conscincia moral e agir comunicativo.Traduo de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p. 117 118.

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    bibliotecas e dos canais em que so expressos, evidenciando uma poltica dodiscurso na modernidade. Nesse jogo poltico, o discurso no a expressode liberdade e criao, mas, ao contrrio, est submetido s regras de produo

    e circulao denidas em cada momento histrico. Para o autor, portanto, odiscurso forma sujeitos e objetos, que por sua vez esto inscritos em formasregulamentadas de poder e de coero.

    Para Foucault, as estruturas discursivas que atravessam a modernidadeso hegemnicas e dominam o homem com uma normatividade desptica,impondo vrias antinomias, sendo a mais fundamental a que ope razoe loucura. Essa questo abordada em A ordem dodiscurso, onde Foucault

    procura mostrar como o discurso do louco est condenado a no ter existnciareconhecida no campo da razo24. Outra antinomia a que contrape odiscurso da ordem, concebida em termos econmicos, sociais, polticose morais, com o discurso da desordem, entendida como todo e qualquercomportamento contrrio ao que a razo instituiu como normal. Dessaforma, no o sono da razo que produz monstros, como armava Goya,mas a prpria razo que necessita transformar em monstros tudo o que aela se ope.

    Apesar de tratar dos discursos, Foucault no escreveu nenhum textoespecco sobre a mdia. Referncias a ela encontram-se em Vigiar e punir(1987) e em alguns textos dispersos daMicrofsica do poder(1979). Entretanto,ao abordar a historicidade da razo enquanto determinada pelos interesses dopresente, ou em sua analtica, onde o poder tratado em sua articulao comas formas de saber, pode-se realizar uma reexo sobre a mdia. A articulaoentre poder e saber encontra-se, entre outros, em Lordre du discours, 1971 (Aordem do discurso), conferncia proferida por Foucault em sua aula inauguralquando tomou posse na ctedra de Histria dos sistemas de pensamento noCollge de France, em dezembro de 1970. Neste texto, o discurso analisado emsuas regras internas e externas de funcionamento e de controle. O autor parteda hiptese de que:

    24 Para uma anlise mais detalhada de como a loucura silenciada e excluda em nossa sociedade, a par-tir da separao vertical entre a razo e a desrazo, importante a leitura da obra de Foucault,Histriada loucura, de 1961.

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    Em toda sociedade a produo do discurso ao mesmo tempocontrolada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmerode procedimentos que tem por funo conjurar seus poderes e perigos,dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel

    materialidade25.

    No textoA ordem do discurso, Foucault procura mostrar que o discurso, em primeiro lugar, uma produo social. Para o lsofo, o discurso no selimita ao mbito da fala. Em sua compreenso, o discurso difere da lingustica,que reduz a linguagem a um sistema de comunicao de signos. Armatambm, que o discurso no se limita ao sujeito do enunciado. O discurso

    uma prtica26

    e como qualquer