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2. Fundamentação Teórica 2.1 Contato e bilingüismo / multilingüísmo: uma relação de causa e efeito. A cada nação uma língua. Eis um ideal político-lingüístico cada dia mais utópico. Raramente uma nação ou uma comunidade lingüística poderá ser considerada inteiramente monolíngüe. A quantidade de línguas existentes no mundo face ao pequeno número de estados nacionais resulta inconteste no uso, por parte da maioria dos indivíduos, de duas ou mais línguas nas suas relações interpessoais. Estima-se que haja hoje cerca de 6.000 línguas distribuídas em 160 estados nacionais. Uma tal multiplicidade de sistemas lingüísticos faz com que as línguas estejam constantemente em contato e “o lugar desses contatos pode ser o indivíduo (bilíngüe ou em situação de aquisição) ou a comunidade”. (Calvet,1993:3) Uma vez que raramente uma língua se encontra isolada no espaço, toda comunidade lingüística estabelece, cedo ou tarde, relações mais ou menos estreitas com outros grupos, com outros falares. Tais relações intergrupais concretizadas pelo viés da língua freqüentemente são complexas e variam no espaço geográfico, social e através do tempo. O contato lingüístico é o termo freqüentemente empregado para designar estas relações interlingüísticas. Weinreich (1970) concebia o contato apenas pela perspectiva do falante bilíngüe. Para ele o contato pressupunha indiscutivelmente o bilingüismo enquanto fenômeno individual, uma vez que é no falante que se processam as influências de uma língua sobre a outra. Todavia, saindo desta abordagem sobretudo lingüística podemos certamente afirmar que o contato pode levar a uma grande variedade de resultados, tanto do ponto de vista lingüístico e do indivíduo quanto do ponto de vista sociolingüístico e da sociedade. Ao tomarmos por referência uma só comunidade em que dois grupos se dividem no uso de línguas distintas, ou ainda, dois grupos interétnicos distintos que guardam suas respectivas línguas e identidades lingüísticas, dividindo espaços locais, regionais ou nacionais contíguos como é o caso das fronteiras, ou ainda um

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2. Fundamentação Teórica 2.1 Contato e bilingüismo / multilingüísmo: uma relação de causa e efeito.

A cada nação uma língua. Eis um ideal político-lingüístico cada dia mais

utópico. Raramente uma nação ou uma comunidade lingüística poderá ser

considerada inteiramente monolíngüe. A quantidade de línguas existentes no

mundo face ao pequeno número de estados nacionais resulta inconteste no uso,

por parte da maioria dos indivíduos, de duas ou mais línguas nas suas relações

interpessoais.

Estima-se que haja hoje cerca de 6.000 línguas distribuídas em 160 estados

nacionais. Uma tal multiplicidade de sistemas lingüísticos faz com que as línguas

estejam constantemente em contato e “o lugar desses contatos pode ser o

indivíduo (bilíngüe ou em situação de aquisição) ou a comunidade”.

(Calvet,1993:3)

Uma vez que raramente uma língua se encontra isolada no espaço, toda

comunidade lingüística estabelece, cedo ou tarde, relações mais ou menos

estreitas com outros grupos, com outros falares. Tais relações intergrupais

concretizadas pelo viés da língua freqüentemente são complexas e variam no

espaço geográfico, social e através do tempo.

O contato lingüístico é o termo freqüentemente empregado para designar

estas relações interlingüísticas. Weinreich (1970) concebia o contato apenas pela

perspectiva do falante bilíngüe. Para ele o contato pressupunha indiscutivelmente

o bilingüismo enquanto fenômeno individual, uma vez que é no falante que se

processam as influências de uma língua sobre a outra. Todavia, saindo desta

abordagem sobretudo lingüística podemos certamente afirmar que o contato pode

levar a uma grande variedade de resultados, tanto do ponto de vista lingüístico e

do indivíduo quanto do ponto de vista sociolingüístico e da sociedade.

Ao tomarmos por referência uma só comunidade em que dois grupos se

dividem no uso de línguas distintas, ou ainda, dois grupos interétnicos distintos

que guardam suas respectivas línguas e identidades lingüísticas, dividindo espaços

locais, regionais ou nacionais contíguos como é o caso das fronteiras, ou ainda um

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mesmo espaço como ocorrem em cidades com diferentes etnias lingüísticas, o

bilingüismo ou multilingüísmo, tanto em nível do indivíduo, quanto da sociedade,

pode ser concebido como um dos primeiros resultados do contato interlingüístico.

O contato entre os povos é uma realidade social e histórica que

caprichosamente e por motivos diversos, colocou frente a frente indivíduos

falantes de línguas diferentes. O intercâmbio sem precedentes entre os povos que

se configura nos dias atuais, impulsionado pelos elementos da vida moderna como

a mídia e a internet, o comércio internacional e o turismo, faz com que o cidadão

de hoje deva ser, por definição, multilíngüe.

A temática do contato tem sido abordada, segundo Couto (2000) a partir

de duas perspectivas, uma sincrônica voltada para as atitudes lingüísticas,

estratégias de comunicação e interferências múltiplas, no âmbito da qual se insere

o estudo da alternância de código, da mistura de línguas, da diglossia, dos

empréstimos e das interferências de toda ordem, e uma diacrônica que considera o

contato em função de seus resultados, dentre os quais podemos incluir desde o uso

de duas ou mais línguas em uma mesma comunidade lingüística até o nascimento

de novos dialetos como é o caso das línguas mistas, pidgins e crioulos

2.2 Bilingüismo & multilingüísmo

Falar de línguas em contato implica falar em bilingüismo ou

multilingüísmo, fenômenos complexos que resultam da coexistência das línguas.

Alguns pesquisadores fazem distinção entre bilingüismo e multilingüísmo,

restringindo o bilingüismo ao uso de duas línguas e o multilingüísmo referindo à

utilização de mais de duas línguas. Compreendendo que o uso de duas ou mais

línguas vai estar condicionado às mesmas condições de uso e pressões sociais

semelhantes, usaremos neste trabalho os dois termos indistintamente, embora em

alguns momentos seja necessário fazer uma diferenciação.

Um outro par conceitual é aquele estabelecido por Hamers & Blanc (1989)

dentro de uma perspectiva social. Eles propõem o termo bilingualidade para

referir-se ao fenômeno individual e bilingüismo para o societal. De acordo com

Savedra (1994) e Heye (1999) a bilingualidade corresponde aos diferentes e

distintos estágios do bilingüismo de um indivíduo, ela retrata a bicompetência

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comunicativa, cultural e lingüística do indivíduo bilíngüe em um dado momento

de sua trajetória social e lingüística.

O bilingüismo é um fenômeno de dimensões múltiplas cujo grau de

variação depende do lugar onde se encontram os bilíngües, da origem do

bilingüismo, da proeminência das línguas e das funções que exercem as línguas no

meio social.

Ao longo dos anos, muitos pesquisadores têm discutido a definição de

bilingüismo/multilingüísmo, porém mesmo em face de uma gama irrestrita de

definições, esse fenômeno está ainda longe de ser consensual. Fthenakis e al.

(1985 apud Heye 2003) apontam que há duas tendências na conceitualização de

bilingüismo. Uma de natureza lingüística que interpreta o bilingüismo enquanto

competência e uma outra de natureza psicolingüística que o considera a partir das

funções que ocupa, dando ênfase ao grau de domínio em ambas as línguas.

As definições da primeira tendência, a lingüística, se estendem em um

contínuo que vai das mais restritivas, como é a definição empregada por

Bloomfield (1933) que concebe o bilingüismo como “o controle nativo de duas

línguas”, até as mais minimalistas como é a de Macnamara (1969), que propõe

que bilingüismo equivale à “mínima competência em uma das quatro habilidades:

ouvir, falar, ler,escrever”.

Na segunda tendência, os conceitos estão baseados em perguntas do tipo

“como e com que objetivo a língua é utilizada”? entre os quais destaca-se o estudo

de Mackey (1968) que considera o bilingüismo como um fenômeno individual e

baseia sua análise num complexo de características inter-relacionadas (grau,

função, alternância e interferência)

Mackey (idem) define o bilingüismo como “a alternância de duas ou mais

línguas pelo mesmo indivíduo”1. Para ele o conhecimento de uma outra língua

implica primeiramente na noção de grau no domínio do código, tanto no plano

fonológico quanto no plano gráfico, gramatical, lexical, semântico e estilístico.

Além do que, o grau de competência do indivíduo bilíngüe depende das funções,

ou seja, do uso que ele faz da língua e das condições nas quais ele as emprega (lar,

escola, trabalho, lazer, etc.). Enfim, para Mackey é importante considerar a

facilidade com que um indivíduo bilíngüe passa de uma língua para outra, o que

1 L’alternance de deux langues ou plus chez le même individu. Tradução nossa.

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ele nomeia de alternância, em função do assunto de que se fala, da pessoa a quem

se dirige e da pressão social a que está sujeito. Todos estes fatores determinariam

a capacidade do indivíduo de manter dois códigos separados sem os misturar.

Grosjean (1982) define bilingüismo em função do papel da dupla

competência na comunicação diária. Para ele “é bilíngüe a pessoa que faz uso

regularmente de duas línguas na vida cotidiana e não aquele que possui

competência semelhante (e perfeita) nas duas línguas”2. Assim concebido, o

bilingüismo é uma competência comum, na medida em que ele caracteriza um

número importante de falantes, ocorre em situações comuns da vida diária e não

se confunde com a adição de mais uma língua com igual domínio e estruturação

da primeira.

Uma vez que o bilingüismo/multilingüísmo não descreve competências

fixas, estanques, acreditamos que é necessário recorrer a definições mais flexíveis

e menos minimalistas. Os indivíduos desenvolvem competências e códigos

lingüísticos diversos por desejo ou por necessidade, para dar respostas às

necessidades comuns de comunicação com outros indivíduos que não

compartilham dos mesmos sistemas lingüísticos. Do mesmo modo é preciso

considerar que o bilingüismo se constrói ao longo da história dos indivíduos, e

reflete obviamente as trajetórias sociais de cada um.

Na verdade, poucos são os indivíduos que ao longo de toda uma vida

jamais utilizaram um outro código lingüístico. Porém, domínio igual de duas ou

mais línguas é um caso particular e bastante raro, que não é facilmente encontrado

nem mesmo nos profissionais de tradução e interpretação, ou ainda nas pessoas

que tiveram o prazer de consagrar uma grande parte de seu tempo ao estudo de

várias línguas.

Consideramos bilingüismo como a capacidade de uma pessoa, de uma

comunidade ou parte dela, de utilizar dois ou mais códigos em diversos domínios

ou atividades de sua vida cotidiana: família, escola, trabalho, lazer, leitura de

documentos, transações comerciais, correspondência formal ou privada,

transmissão de informações, conversa informal etc. O conhecimento lingüístico

em cada uma das línguas é adaptado às exigências práticas inerentes aos domínios

2 Est bilingue la personne qui se sert régulièrement de deux langues, dans la vie de tous les jours, et non qui possède une matière semblable (et parfaite) dans les deux langues. Tradução nossa.

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ou atividades envolvidas e não necessariamente coincidentes com os

conhecimentos equivalentes de um falante nativo ideal.

Quanto à tentativa de classificação, a maioria dos autores leva em

consideração as dimensões lingüísticas e as condições de aquisição da situação de

bilíngüe (Savedra & Heye, 1995)

Weinreich foi o primeiro a tentar uma classificação do bilingüismo. De um

ponto de vista lingüístico, ele distingue três formas de bilingüismo, que se

tornariam posteriormente a base de outras classificações: o bilingüismo composto,

o coordenado e o subordinado.

No bilingüismo coordenado os sinais lingüísticos de ambas as línguas são

mantidos separados, de modo que ocorre o domínio de dois sistemas lingüísticos.

No bilingüismo composto, as estruturas sonoras das línguas são mantidas

separadamente mas não os significados, e no subordinado, a segunda língua é

estruturada com base na primeira.

Erwin & Osgood (1954) fazem distinção apenas entre os tipos composto e

coordenado, considerando o terceiro sugerido por Weinreich apenas como um

caso misto que se incorpora ao coordenado. Para eles é o modo como as línguas

foram adquiridas que é determinante. O bilíngüe coordenado seria aquele cujas

línguas foram adquiridas em meios diferentes, por exemplo, primeiro na família e

depois em um outro país no meio social, todos os outros levariam a casos de

bilingüismo composto.

A distinção entre estes dois tipos de bilingüismo foi reinterpretada diversas

vezes. Alguns autores diferenciam o bilingüismo composto do coordenado

relacionando contexto de aquisição e idade.

Skutnabb-Kangas&Toukomaa (1976) consideram que no bilingüismo

composto a aquisição da segunda Língua (L2) se dá na infância, sem instrução

formal, ambas as línguas são adquiridas simultaneamente. No bilingüismo

coordenado a L2 é adquirida por meio da instrução formal.

Genesse (1977) estabelece outra diferenciação dos tipos de bilingüismo: o

bilingüismo precoce que ocorreria na infância, possuindo características do

bilingüismo composto, e o bilingüismo tardio, que ocorreria em épocas distintas,

alinhando-se ao tipo coordenado.

Outros autores fazem uma distinção baseada no contexto de aquisição:

natural ou formal. Carroll, (1970) por exemplo, distingue entre o bilingüismo

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composto e o bilingüismo paralelo. No primeiro caso a aquisição de outra língua

“ocorre em uma dada situação de aprendizagem em que prevalece o sistema de

significado da língua materna”. No segundo, a criança adquire ambas as línguas

em situações distintas de aprendizagem, e o sistema de uma língua permanece

paralelo e independente de outra. Weiss (1959) apud Savedra & Heye (1985)

introduz o conceito de bilingüismo natural no contexto de aquisição da língua. Por

bilingüismo natural ele entende o imediato uso ativo e passivo de duas línguas,

sem necessidade de tradução. A L2 é adquirida automaticamente e

acumulativamente com a L1 por meio natural. Em oposição ele coloca o

bilingüismo cultural que é a língua adquirida em situação formal de

aprendizagem.

Heye (1999) propõe uma tipologia de bilingüismo que considera a situação

da aquisição das línguas, ou seja, o tipo de bilingüismo varia com relação à idade

do falante e ao contexto em que a aquisição/aprendizado ocorreu. Para ele o termo

aquisição refere-se à internalização das regras gramaticais de forma natural e o

termo aprendizado à internalização das regras por meio de instrução formal. O

termo primeira língua (L1) refere-se à língua adquirida primeiro e segunda língua

(L2) ou Língua estrangeira (LE) à língua adquirida após a L1 por aprendizado

formal ou informal. Temos assim três tipos de bilingüismo:

(1) Bilingüismo do tipo Lab

Resulta da aquisição de duas L1’s (La & Lb) simultaneamente. Estas

línguas podem ser a (s) língua (s) usada(s) na família ou na comunidade.

(2) Bilingüismo do tipo : La + Lb

Este tipo ocorre quando a segunda língua (Lb) é adquirida após a primeira

(La/L1) e antes que esta tenha sido maturacionada. Ambas as línguas são

consideradas como L1’s e podem ser igualmente a(s) língua(s) usada(s) na

família e /ou na comunidade.

(3) Bilingüismo do tipo LA + Lb ou L1 + L2/ LE

Ocorre quando uma língua (Lb/L2/LE) é aprendida após a primeira

(L1/LA) ter sido maturacionada, geralmente após a adolescência. A

segunda língua Lb (LE/L2) é subordinada, estruturada, pela primeira

L1/LA que é dominante no momento da aquisição.

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2.3 Do indivíduo à comunidade bilíngüe

O bilingüismo cobre definições múltiplas, dimensões variadas e pode

descrever ao mesmo tempo tanto o indivíduo, enquanto falante de mais de uma

língua, quanto à sociedade e as instituições que o cercam em um determinado

espaço geográfico.

O contato lingüístico pode ser analisado sob diferentes perspectivas.

Weinreich (1970), que considerava o contato apenas pela via do indivíduo

bilíngüe, adota uma perspectiva psicológica do contato. A perspectiva

sociolingüística nos permite analisar não somente a relação entre os indivíduos e

suas línguas, mas também as relações entre os grupos e colocar em evidência a

questão da política e planificação lingüística dentro da sociedade. É dentro dessa

perspectiva, considerando as línguas e seus falantes em seu meio social, que o

contato interlingüístico, neste trabalho, tem como ponto de partida a comunidade,

as línguas co-presentes, os povos que as utilizam, bem como as causas e

conseqüências das diversas relações etnolingüísticas forjadas entre eles.

Para alguns autores não é possível fazer uma nítida separação entre o

bilingüismo individual e o societal, sobretudo no que se relaciona a alguns

aspectos do comportamento bilíngüe. Outros, em contrapartida, como já citamos,

utilizam o termo bilingüismo apenas para tratar do fenômeno em nível do

indivíduo, enquanto utilizam multilingüísmo para falar do grupo social.

Considerando que nenhum indivíduo utiliza uma língua sozinho, só para

si, e ainda, que em geral se aprende uma segunda língua por razões sociais ou

econômicas, torna-se difícil conceber que as diferentes dimensões do

multilingüísmo (a individual e a social) possam ser inteiramente avaliadas sem

que sejam, em algum momento, relacionadas.

2.3.1 O Indivíduo bilíngüe:

Duas ou mais línguas em presença em um mesmo território ou em

territórios contíguos levam inevitavelmente os indivíduos co-presentes a alcançar

algum grau de bilingüismo. Esse bilingüismo pode ou não abranger toda a

comunidade lingüística. Os indivíduos só se tornam bilíngües quando têm razões

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para sê-lo, uma vez que toda língua precisa ocupar uma função social na vida do

falante sob pena de desaparecer, o bilíngüe em geral faz uso de suas línguas em

situações e funções diversas.

Raramente o indivíduo bilíngüe possui o mesmo grau de conhecimento e

competência em ambas as línguas, ele pode, por exemplo, compreender

igualmente ambas, mas só ser capaz de expressar-se ou de escrever em apenas

uma delas; por outro lado, a extensão do vocabulário pode ser maior em uma

língua do que em outra, ou mesmo só em certos domínios específicos como o do

trabalho, ou do lazer, ou da família.

Na relação língua [+ dominante] ou [– dominante], nada assegura que a

primeira língua será sempre a de maior domínio do falante. Muitas pessoas que se

afastam do país de origem e deixam de usar a língua “materna” acabam por perder

completamente o domínio daquela língua ou ainda, conseguem mantê-la, mas com

um grau de domínio bem menor do que a língua que foi aprendida posteriormente.

Romaine (1989) sugere que o bilingüismo é encorajado e mantido quando

funções diferentes de linguagem são destinadas a línguas diferentes. Os falantes

bilíngües demonstram ter distribuição complementar da proficiência lingüística

com relação a tópico por exemplo. Assim, bilíngües podem se expressar melhor

sobre assuntos domésticos em LA quando essa é a língua da família e expressar-se

melhor em assuntos comerciais na segunda língua (Lb) se esta for a língua da

comunidade ou do trabalho.

Mackey (1976) argumenta que o nível de competência do bilíngüe em

cada uma de suas línguas depende da função que esta ocupa, ou seja, do uso que

ele faz da língua e das condições em que as utiliza, funções estas que podem ser

externas ou internas.

As funções externas estão relacionadas com o número de zonas de contato,

e com as variações de cada uma delas com relação à duração, à freqüência e à

pressão. Nestas zonas de contato que correspondem grosso modo aos domínios de

uso estão incluídos todos os contextos que permitem a aquisição, o uso e a

manutenção das línguas, ou seja, a família, a comunidade, a escola , o trabalho e

os meios de comunicação de massa. Nestes domínios, conforme a dominância da

língua, podemos estar completamente à vontade em um determinado tema e

sermos completamente incapazes de abordar um outro tema de domínio diferente

na mesma língua.

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A família é a primeira das zonas de contato a ser considerada. O indivíduo

bilíngüe pode tanto ser produto de uma família monolíngüe, que promove o uso

de uma língua no lar diferente daquela utilizada pela comunidade, propiciando

assim o bilingüismo, como ser fruto de uma família bilíngüe, em que pai e mãe

usam línguas diferentes, sendo que uma destas pode ser a língua da comunidade e

a outra não. A família pode então se tornar um domínio restrito de uso da língua,

com uma língua sendo utilizada somente no ambiente familiar e a outra somente

na escola ou na comunidade.

Outra área de contato de grande importância na formação e manutenção do

indivíduo bilíngüe é aquele do ambiente social, do grupo, e compreende as línguas

faladas com os vizinhos, com o grupo étnico ou religioso, no trabalho ou no lazer.

Em muitos casos a vizinhança supera a família e determina a influência mais

importante na constituição do falar bilíngüe. Em outros, é a proximidade com o

grupo étnico ou religioso que vai propiciar a aquisição e manutenção da segunda

língua do indivíduo.

O trabalho por sua vez pode levar o falante a entrar em contato com grupos

ou comunidades de línguas diferentes daquela utilizada por ele em casa ou na

comunidade. Migrantes de um país para outro comumente se tornam bilíngües em

função da língua que estes se vêem compelidos a fazer uso no exercício

profissional. Do mesmo modo que as demais áreas de contato, o trabalho pode ser

um domínio restrito de uso ou não da primeira ou da segunda língua.

O lazer também ocupa papel relevante neste sentido. O falante bilíngüe

pode utilizar uma de suas línguas com o grupo de pessoas com as quais ele pratica

esportes, vai ao clube, etc. sem que esta seja a mesma empregada na família ou na

comunidade.

A terceira zona de contato importante é o ambiente escolar. A aquisição de

uma segunda língua na escola dependerá da natureza da mesma. Se for uma

instituição monolíngüe, a língua poderá ser a mesma do lar. Assim sendo, o

indivíduo terá poucas oportunidades de aprender uma segunda língua nesse

ambiente, por outro lado, se for uma outra língua, ele poderá ter muitas chances.

Se a escola for bilíngüe o grau de bilingüismo do indivíduo que a freqüenta

dependerá das matérias que são ensinadas em cada uma das línguas e também do

tempo dedicado a cada língua.

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Na escola é possível entrar em contato com uma outra língua de duas

maneiras diferentes: a língua pode ser ensinada como disciplina ou ela pode ser

utilizada como língua de ensino.

Mackey (1976) avalia que estes dois casos podem ter efetivação através de

três modos diferentes: o único, o duplo e o particular.

Como modo “único” ele caracteriza a prática de países na aplicação de

uma espécie de política lingüística nas escolas de áreas bilíngües que considera

um dos quatro princípios a seguir: nacionalidade, zona geográfica, grupo religioso

ou origem étnica

Pelo princípio da nacionalidade, a criança deve estudar na língua do país

onde se encontra, qualquer que seja sua origem étnica ou língua materna. É a

prática da maioria dos países considerados monolíngües.

Pelo princípio da repartição geográfica, a criança deve ser escolarizada na

língua da comunidade onde reside, caso da Suíça.

Já o princípio da origem religiosa pode ser aplicado aos países cujas

fronteiras lingüísticas coincidem com as fronteiras religiosas. É o que ocorre, por

exemplo, dentro do Canadá. Ali há escolas católicas francesas, escolas

protestantes inglesas e escolas protestantes francesas. Como em algumas regiões

os franceses não são suficientemente numerosos para justificar um sistema escolar

distinto, as famílias protestantes enviam muito mais seus filhos à escola

protestante inglesa do que à escola católica francesa.

E finalmente pelo princípio da origem étnica, a escolarização deve

considerar a língua que a criança fala em casa e com a família como acontece em

muitas regiões da África do Sul.

Mackey (1976) considera como meio duplo as políticas em que o ensino é

feito em duas línguas. Essa prática o autor nomeia de política de paralelismo ou de

divergência. No primeiro caso, ambas as línguas são colocadas em pé de

igualdade, são empregadas com os mesmos fins e em circunstâncias semelhantes.

No segundo, as línguas são utilizadas com fins diferenciados; algumas disciplinas

são ensinadas em uma língua e outras em língua diferente.

O meio particular é aquele em que o ensino ocorre de modo isolado, em

lições individuais ou em pequenos grupos. O ensino pode ser feito em uma língua

que não é a mesma da comunidade, e a língua desta pode ser ensinada como

língua estrangeira. Prática comum na Guiana Francesa em virtude do número de

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filhos de migrantes que precisam ser escolarizados, mas que não dominam a

língua da comunidade.

E finalmente os meios de comunicação representam a última das zonas de

contato a ser considerada. O rádio, a televisão, o cinema, os discos e CDs, os

jornais, os livros e as revistas são importantes elementos para a manutenção do

bilingüismo. A possibilidade de acesso a esses meios pode constituir-se no fator

principal de manutenção de uma das línguas do bilíngüe em determinadas

situações.

Em cada uma das zonas abordadas, segundo Mackey (1976) o contato e o

grau de bilingualidade do indivíduo varia em termos das seguintes variáveis:

duração, freqüência e força.

• Duração: A influência de qualquer das zonas de contato sobre o

bilingualidade do falante varia em função da duração do contato,

ou seja, o indivíduo que viveu 40 anos em um ambiente lingüístico

diferente do seu de origem tem muito mais chances de falar uma

língua estrangeira do que aquele que passou apenas alguns meses.

• Freqüência: Por outro lado, a duração do contato não terá grande

importância se nada se puder dizer da freqüência com que esse

contato foi estabelecido, seja em termos de horas diárias para a

linguagem oral ou em quantidade de palavras para a escrita. Um

indivíduo que fala esporadicamente com falantes de outra língua

não apresentará o mesmo resultado ao final de um período igual de

tempo daquele que interage várias vezes ao dia com indivíduos de

outra língua.

• Pressão: Finalmente, no interior de cada uma das zonas de contato

há uma correlação de forças que pode levar o indivíduo a utilizar

mais uma língua do que outra. Estas forças podem ser de ordem

econômica, administrativa, política, militar, histórica, religiosa ou

demográfica.

Do mesmo modo que fatores externos concorrem na formação do

indivíduo bilíngüe, há fatores internos que devem ser levados em consideração,

entre eles a idade, a aptidão e a utilização interior de uma língua. Questões que,

embora relevantes e que suscitem muitos questionamentos, não pretendemos

discutir no âmbito do presente trabalho.

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2.3.2 A Comunidade bilíngüe ou multilíngüe

Assim como o homem adquire uma língua materna pela comunicação com

outros indivíduos, o ser bilíngüe igualmente não age na língua sozinho. Em geral,

um indivíduo não se torna bilíngüe ao acaso ou por simples capricho, mas na

maioria das vezes por necessidade de comunicar com pessoas que falam uma

outra língua. Quando se deseja aprender uma língua, não se trata de uma língua

qualquer com a qual não tenhamos nenhuma relação, é preciso que seja uma

língua de utilidade. Ora, de modo geral, a língua mais útil é aquela que é falada

pela comunidade com a qual se está em contato. Se toda uma sociedade ou uma

parte importante dela aprende uma segunda ou terceira língua, o fenômeno se

torna social e a comunidade pode ser considerada multilíngüe.

Lembremos ainda que a língua não é somente um instrumento de

comunicação como foi durante longo tempo concebida, mas também um símbolo

de identidade de um grupo, capaz de situar um indivíduo dentro ou fora de uma

determinada comunidade e cultura. Esse pertencimento lingüístico, longe de se

restringir à língua, compreende também aspectos sociais, culturais e mesmo

psicológicos. Nesse sentido, falar uma língua ou outra quando se é bilíngüe nem

sempre é percebido como um fenômeno estritamente instrumental, mas pode ser

considerado como um ato de integração ou de traição social. Razão pela qual, em

muitos casos, é difícil descrever o bilingüismo individual sem fazer referência ao

papel social das línguas.

A comunidade multilíngüe pode ser descrita através de diversas dimensões

que não são independentes, mas que formam um complexo sistema de variáveis

que interagem entre si. Miller (1984) sugere nesse âmbito que um estudo

detalhado de uma situação multilíngüe envolve a avaliação da interação de

diversas variáveis, entre as quais: a espacial, a histórica, a política, a social e

mesmo a psicológica.

As sociedades multilíngües se desenvolvem quando distintos grupos

lingüísticos estabelecem contatos por motivos diversos, entre eles os econômicos

e comerciais, como é o caso de México e Estados Unidos, de França e Espanha,

Alemanha, Suíça e França entre outros inúmeros exemplos presentes na literatura.

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Hamers & Blanc (1983) consideram que para haver uma comunidade

multilíngüe é necessário que pelo menos duas línguas estejam em uso pelos

membros de um determinado grupo social. Eles argumentam ainda que se uma

comunidade é composta por dois grupos falantes de línguas maternas diferentes,

tendo cada uma, um relativo número de bilíngües que falam as duas línguas, ou

ainda, um certo número de ambos os grupos falando uma terceira língua comum,

usada como língua franca, qualquer uma destas línguas pode ser a língua oficial

da comunidade.

Cada comunidade estaria situada entre dois pólos de um contínuo. Em um

extremo, nenhum membro dos dois grupos fala a língua materna do outro nem

possui uma terceira língua em comum. Neste caso não há duas comunidades

bilíngües, mas duas comunidades monolíngües. No outro pólo todos os membros

das comunidades falam as duas línguas, e se as duas línguas preenchem as

mesmas funções, uma delas se torna redundante. Na realidade, toda comunidade

bilíngüe estaria situada em algum ponto entre estes dois pólos, onde uma relativa

parcela de ambos os grupos fala uma a língua da outra ou possuem uma terceira

língua comum entre elas.

Considerando a situação entre os grupos, Hamers & Blanc (1983) apontam

três tipos de comunidades multilíngües:

(1) Os grupos estão divididos territorialmente dentro de um mesmo país. A

maioria de um grupo ocupando um espaço e a maioria do outro ocupando um

outro território. Em alguns casos as duas línguas têm status oficial igual, pelo

menos dentro de cada território. Os autores citam como exemplo o Canadá, a

Bélgica e a Suíça, cujos territórios estão divididos por maiorias e minorias

lingüísticas bilíngües ou não.

(2) Outro tipo de comunidade bilíngüe pode ser encontrado em países

multilíngües da África e da Ásia nos quais não há repartição, nem geográfica, nem

sociológica. Ao lado das línguas nativas dos grupos étnicos ou nações existem

uma ou mais línguas de ampla comunicação, falada por um número variável de

falantes nos diferentes grupos. Esta língua pode ser uma língua franca como o

suaili na África oriental e o tok pisin na Papua Nova Guiné ou uma língua

superposta, imposta por decisão política, em geral uma língua herdada de um

passado colonial e usada somente em certos domínios oficiais, como é o caso do

francês e do inglês em muitos países africanos.

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(3) Finalmente, um terceiro tipo descrito por Hamers & Blanc (1983) é o

da comunidade bilíngüe diglóssica. Ou seja, duas línguas são faladas por uma

variável parcela da população, mas elas são usadas de uma forma complementar

na comunidade, uma língua ou variedade possui um alto status enquanto a outra é

reservada para certas funções e domínios. Exemplos de bilingüismo diglóssico são

o uso do espanhol e do guarani no Paraguai e do francês e do crioulo no Haiti e

nas Guianas. Nestes casos ambas as línguas têm um grupo significativo de

falantes nativos na comunidade.

O conceito de diglossia foi cunhado por Ferguson (1959) para descrever

toda situação societal em que duas variedades lingüísticas, que o autor denomina

de variedade alta e variedade baixa, são utilizadas em domínios e funções

diferentes e complementares dentro de uma mesma comunidade, uma destas

variedades tendo geralmente um status socialmente superior à outra. Fishman

(1967, 1980) estende o conceito de diglossia para o uso complementar

institucionalizado de duas ou mais línguas distintas em uma mesma comunidade,

acrescentando que esses códigos não precisam ter origem comum. Assim sendo

Calvet (1993:61) conclui, “qualquer situação colonial, tendo posto em presença

uma língua européia e uma língua africana, implica diglossia”.

Seguindo nesta mesma perspectiva, porém dando enfoque ao espaço de

convivência dos povos em contato, Leclerc (2002) distingue dois tipos de

sociedades multilíngües: aquelas cujo bilingüismo se conforma na coabitação

social, ou seja, duas comunidades dividindo o mesmo espaço, fazendo uso de duas

línguas distintas que estão em presença e cujo contato lingüístico está inserido no

contexto do contato entre povos; e aquelas cujo bilingüismo se caracteriza pela

não coabitação. Trata-se de uma única comunidade usando duas línguas, sendo

uma a materna e a outra uma língua veicular, que atende as necessidades da

comunicação comercial, sendo que neste caso o contato não implica na coabitação

dos povos.

Um exemplo de bilingüismo sem coabitação social é a sociedade

camaronesa. A maior parte das etnias fala pelo menos duas línguas, a materna e o

inglês que é usado nas transações comerciais e nas comunicações interétnicas.

Essa prática tornou-se comum na maioria dos países atualmente, sobretudo em

determinadas áreas comerciais como é, entre outros, o caso dos agentes de turismo

e da produção tecnológica. Outro exemplo são as pessoas ou grupos que aprendem

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uma língua para participar de comunidades de pesquisa ou para ter maior acesso a

conhecimentos de uma determinada área, compondo também um bilingüismo

social caracterizado pela não coabitação social.

Na maioria dos casos, entretanto, o bilingüismo social é fruto da

convivência de pessoas que dividem o mesmo espaço geográfico, onde um grupo

aprende a língua do outro e muitas vezes acaba por compor um único grupo social

bilíngüe. É o caso da Catalunha, onde se considera que 99% dos catalãos são

bilíngües. Todos teriam o catalão como língua materna e aprenderiam o espanhol,

a língua oficial, como segunda língua. Outro caso é aquele das tribos indígenas do

alto rio Negro, nas quais a obrigatoriedade do ensino da língua do pai aos filhos

faz com que estes acabem por se tornarem bilíngües ao adquirirem também a

língua da mãe.

É importante ressaltar, ainda, que o convívio entre grupos com línguas

distintas pode levar tanto à integração e ao uso compartimentalizado das mesmas

quanto ao desaparecimento de uma delas.

No Brasil, onde ainda resiste a idéia de que falamos uma só língua, mas

que na última constituição foi declarado pais multilíngüe, numerosas comunidades

de migrantes e seus descendentes (italianos, alemães, japoneses, holandeses, etc.),

bem como as diferentes etnias indígenas, tentam preservar ainda hoje suas línguas

de origem e muitas falam o português somente fora da comunidade de fala, na

escola ou no grupo social. Embora o “ideal” lingüístico pareça ser o de conformar

uma nação monolíngüe em um mesmo espaço territorial, uma parcela importante

da população brasileira fala uma outra língua, seja ela uma língua alóctone ou

autóctone.

2.3.2.1 Origens e causas da formação de comunidades multilíngües Historicamente, vários fatores podem ser contados como desencadeadores

da formação de tais grupos. Dentre eles estão os processos de ocupação, as

relações comerciais, a influência econômica, os meios de difusão, a educação, a

migração, entre outros como veremos a seguir:

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a) A ocupação militar e colonização: As mudanças políticas assim como as conquistas militares e os processos

de colonização, seguramente estão entre as principais causas do multilingüísmo.

Spolsky (1998:53) argumenta que “o multilingüísmo tem sido

historicamente criado pela conquista e pela subseqüente incorporação de falantes

de diferentes línguas a uma única unidade política”, colocando as línguas em

contato e não raro colocando-as em conflito.

Ocupação militar e colonização sempre estiveram acompanhadas do

estabelecimento de algum grau de bilingüismo nas regiões dominadas. Foi assim

nas conquistas do Império romano, na incorporação da Bretanha, da Alsácia e da

Provence à França, na ocupação da América Central e Latina pelos espanhóis e

portugueses, cujas minorias nativas, como é o caso no Brasil, ainda hoje guardam

várias línguas e se configuram como comunidades multilíngües.

A constituição do Estado-Nação que preconizava reunir em um único

território uma única nação, ainda que esta “nação” fosse constituída de diferentes

grupos etnolingüísticos, também formou inúmeras comunidades multilíngües

dentro de um mesmo país, incluindo-se aí os Bascos, os Corsas, os Bretões, os

Gauleses, os Catalãos, etc.

Neste contexto também se incluem os processos de multilingüísmo

desencadeados na colonização e descolonização de países africanos

Spolsky (1998:54) relata que:

“Quando os grandes poderes europeus dividiram a África no século XIX, eles estabeleceram fronteiras que deixaram a maioria dos Estados pós-independência sem uma maioria lingüística e normalmente com línguas que tinham muitos falantes tanto dentro quanto fora dos limites dos novos Estados”3. Tradução nossa.

Tais políticas coloniais indiscutivelmente forçaram a adoção de línguas

diferentes em diversos países e a constituição de estados multilíngües, cuja língua

do colonizador freqüentemente acabou por tornar-se a língua majoritária e de

contato em meio a diversidade lingüística.

3 “When the major European powers divided up Africa in the nineteenth century, they drew boundaries that left most post-independence states without a single majority language, and usually with languages that had many speakers outside as well as inside the new state borders”

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b) O Intercâmbio comercial: Outro elemento que provocou o contato lingüístico e culminou em

indivíduos ou sociedades bilíngües foi o intercâmbio comercial. Quantos

indivíduos não deixaram suas regiões unilíngües e foram para outros territórios

realizar transações comerciais, sendo assim “obrigados” a se tornar hábeis em

outros idiomas? As relações comerciais estabelecidas entre povos diferentes têm

sido ao longo da história do homem um dos grandes motivos de deslocamento de

pessoas entre países, regiões ou mesmo entre cidades e vilarejos. O aprendizado

de outras línguas torna-se nestas circunstâncias uma necessidade constante dos

indivíduos. Em função da vocação comercial que desenvolvem determinadas

regiões, comunidades inteiras tornam-se multilíngües pela convivência com

mercadores de diversas partes do mundo.

c) O movimento migratório Outra causa do multilingüísmo está relacionada aos movimentos

migratórios. A imigração colonial, a deportação massiva, o fenômeno dos

refugiados políticos, o êxodo voluntário, a imigração de trabalhadores são alguns

dos tipos de migração considerados em estudos já realizados.

Leclerc (2002) adverte que seguido ao processo de ocupação militar ocorre

a imigração colonial. Os conquistadores se instalam na região e colocam os povos

dominados em situação de dominação. Com freqüência, a língua do conquistador

é imposta e o bilingüismo se instaura para a população que normalmente o efetiva

unilateralmente.

Outro exemplo de movimento migratório que resultou na formação de

comunidades bi ou multilíngües foi a deportação massiva de pessoas de uma

comunidade ou nação para países estrangeiros. Foi o caso dos irlandeses

deportados pelos ingleses para a América e Austrália no século XVIII e XIX; das

pequenas populações acusadas de colaboração com os Balcãs, os chechenos, os

Ingouches, os kalmouks, os alemães da Volga, todos dispersados na Sibéria. Da

mesma forma ocorreu através do tráfico em larga escala de negros africanos

escravizados para exploração das plantações de cana de açúcar e campos de

algodão na América, no Caribe a no sul dos Estados Unidos.

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As conseqüências lingüísticas desta deportação de 9,5 milhões de negros

segundo Leclerc são triplas: Primeiro, nenhuma das línguas originais sobreviveu;

Algumas deram origem aos muitos crioulos ativos ainda hoje para vários milhões

de pessoas (nas Antilhas e no Oceano Índico por exemplo); e finalmente, a grande

massa se fundiu progressivamente e assimilou a língua dominante, no caso dos

Estados Unidos, a inglesa.

Os movimentos migratórios podem ser desencadeados também por

grandes conflitos como o foi por ocasião da primeira e segunda guerra mundiais,

gerando um incontável número de refugiados políticos e de apatriados com o

desmembramento dos impérios da Alemanha, Rússia e Áustria em pequenos

Estados- Nações, colocando em situação de contato cerca de 25 milhões de

falantes de línguas diferentes. Por ocasião da segunda grande guerra estima-se em

30 milhões o número de pessoas que deixaram seus países por repatriamento,

transferências territoriais, êxodo voluntário de populações hostis aos novos

regimes políticos instalados na Europa do Leste, etc.

A fundação do estado de Israel, a descolonização dos anos 60, as guerras

civis instauradas na África, na Ásia e na Europa provocaram o deslocamento de

milhões de pessoas refugiadas. Tais populações inevitavelmente vão instalar-se

em um novo território, em um novo país para o qual levam consigo suas línguas e

seus valores etnolingüísticos, dando origens a novas situações de multilingüísmo.

Por outro lado, a migração voluntária também está presente na formação

das comunidades multilíngües em várias partes do mundo. A busca de melhores

condições econômicas levou milhares de pessoas a migrarem para outros países,

porém na maioria dos casos esses migrantes, embora passem a fazer uso, em

virtude do trabalho e da vida social da língua dominante nos países que passaram

a habitar, eles mantêm suas línguas de origem em uso com a família.

d) A situação geopolítica Do ponto de vista do espaço geográfico e político, como não representar as

áreas de fronteira como um dos locais mais apropriados para a formação de

comunidades multilíngües?

Alguns contextos geopolíticos levam quase que inevitavelmente a

situações de bilingüismo social. É o caso de Luxemburgo, estado comprimido

entre a França e a Alemanha, da Catalunha, localizada no centro do estado

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espanhol e de inúmeras regiões de fronteiras territoriais cujos espaços são

divididos por linhas imaginárias tal qual se observa na fronteira de Brasil e

Uruguai e de muitas outras regiões no mundo. O bilingüismo destas regiões está

relacionado não só com a história dos povos, mas também com o contexto

geográfico no qual eles se encontram inseridos.

Weinreich (1970) chamava a atenção para o fato de que em toda situação

de contato a divisão entre povos que possuem diferentes línguas maternas

normalmente coincide com outras divisões de natureza não lingüística que

abrangem questões de etnias, raças, religiões, status social e espaços geográficos.

A linha geográfica é na verdade um dos mais comuns elementos de convergência

na divisão de povos. Daí o autor considerar que, em se tratando de áreas

fronteiriças, “a não ser que ela coincida com altas montanhas, mares ou outros

obstáculos físicos, há provavelmente contato entre os grupos que atravessam a

linha divisória política e daí nasce o bilingüismo” individual e societal.

e) Superioridade demográfica:

A diferença em termos demográficos de uma comunidade lingüística para

outra e a quantidade de monolíngües em cada uma das comunidades também pode

ser fator importante de bilingüismo. Quanto maior a diferença numérica entre as

comunidades lingüísticas, maior é o número de falantes bilíngües na comunidade

minoritária.

f) Poder e prestígio: A força de uma língua dominante não está representada apenas no fator

numérico, outros elementos a ele se somam para conformar a pressão demográfica

de um grupo lingüístico sobre outro. São elementos ligados à riqueza, ao poder e

ao prestígio de cada um dos grupos. O status atribuído a uma língua é comumente

conseqüência de uma complexa integração de fatores históricos e sociais que

cobrem áreas religiosas, culturais, econômicas e demográficas.

Mackey (1976) argumenta que se houver uma grande diferença entre esses

fatores nos dois grupos, a minoria pode tornar-se a maioria. Vale lembrar que a

relação majoritário minoritário está muito mais relacionada com a correlação de

forças entre os grupos do que aos números. Assim, em uma comunidade onde

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20% da população é formada de senhores e 80% de escravos, serão os escravos

que aprenderão a outra língua e não o contrário.

g) Educação: O ensino de uma língua também pode ser um dos pilares de manutenção e

do domínio de uma língua sobre a outra e do incentivo ao bilingüismo social. O

prestígio e o status de uma determinada língua no mercado lingüístico pode fazer

com que esta seja ensinada como língua estrangeira em grande parte do mundo

instaurando também uma situação de contato lingüístico e bilingüismo. A

necessidade de conhecimento de uma língua de prestigio como é o inglês hoje não

é fato recente. O grego e o latim durante muito tempo também ocuparam esse

papel e o ensino nas grandes nações de antigamente baseava-se largamente na

aprendizagem de uma língua padrão. Desta forma, o fato do ensino superior ou da

formação técnica não ser acessível, senão em outra língua, favorecia a expansão

daquela língua, e quanto mais técnica fosse a formação, maior a necessidade do

bilingüismo.

h) A Influência econômica Outro fator importante no domínio lingüístico de uma língua sobre outra é

o econômico. Em algumas regiões do globo o desenvolvimento econômico

desperta o interesse de populações de origens e línguas diversas. A perspectiva de

trabalho e de uma vida melhor leva as pessoas a aderirem ao uso de uma nova

língua de maior prestígio e de uso mais efetivo economicamente. Por outro lado,

algumas línguas estão mais adaptadas para funções particulares em determinadas

áreas atraindo pessoas onde estas áreas estão em voga e para o aprendizado destas

línguas.

i) A religião A religião também já foi fator determinante na expansão de uma língua. O

Cristianismo favoreceu o desenvolvimento do latim, do grego e do sírio; o

Budismo, o estudo do sânscrito, e o Islamismo, a propagação do árabe. (Mackey,

1976)

O autor (ibid) argumenta ainda que as guerras religiosas foram guerras de

línguas, ou seja, provocadas para que uma classe secular, com recente projeção

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social tivesse o direito e os meios de expressar seus pensamentos e suas

aspirações. É significativo nesse sentido que a Reforma e a Contra-reforma

tenham encontrado maior sucesso nos países onde as línguas eram mais distantes

do latim, vez que naquela época o latim para os italianos instruídos era ainda uma

língua viva.

j) Os meios de difusão: Os meios de expressão que uma língua domina – escrita, publicações,

radiodifusão – são fatores extremamente importantes na propagação de uma

língua majoritária e meios eficazes no desenvolvimento da influência que essa

língua pode obter sobre os povos e sobre as outras línguas.

A invenção da escrita, do papel, da imprensa, do rádio e da televisão

permitiram em proporções sempre maiores a difusão de línguas pelo mundo. Para

corroborar o papel que eles exercem na vida cotidiana das pessoas temos hoje a

internet através da qual podemos ter acesso não só às línguas, mas também ao

conhecimento produzido nelas.

l) Os casamentos exogâmicos: Outro fator que tem levado a formação de comunidades e grupos bilíngües

é o casamento exogâmico registrado no alto Rio Negro entre grupos indígenas.

Neste caso, o casamento entre os índios deve obrigatoriamente ocorrer entre

falantes de línguas distintas, porém, a língua que dá identidade ao grupo

lingüístico é “ao mesmo tempo a língua do pai, a língua de casa e a língua tribal

de casa um dos membros”(Garmadi, 1981). Por definição, essa língua é outra que

não a língua pela qual se identifica o grupo da mãe. Os filhos resultantes desta

união, que obrigatoriamente devem aprender a língua do pai, não raro adquirem

também a língua da mãe, tornando-se então bilíngües.

2.4 O contato lingüístico e as línguas em contato

A história das línguas e das relações humanas tem mostrado que todas as

línguas têm sofrido influência umas das outras e os fenômenos lingüísticos

resultantes do contato entre pessoas que falam línguas diferentes em um mesmo

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território ou em espaço contíguo, como é o caso das fronteiras, são bastante

variados.

Tais fenômenos diferem em função de fatores diversos dentre os quais

estão a duração do contato, a intensidade da relação entre os povos e ou

comunidades lingüísticas, os tipos de relações sociais, econômicas e políticas

estabelecidas entre eles, as funções de comunicação e o status das línguas em

presença.

Em uma situação de línguas em contato, o status de cada língua varia de

acordo com as relações de força existentes entre os grupos que as utilizam, bem

como em função da percepção que os indivíduos têm destas relações. Para

Mackey (1976), as línguas exercem um poder de força umas sobre as outras e as

diferenças de poder se manifestam quando as línguas estão em contato. Elas se

manifestam como uma forma de atração ou de repulsão que uma língua, ou

melhor, aqueles que a utilizam, terão um pelo outro.

Os elementos que conformam o status de uma língua não são apenas

jurídicos, mas estão colocados em termos de força e atração lingüística. A

importância de uma língua está muito mais relacionada com a função que ela

exerce enquanto veículo que permite a comunicação com aqueles que são

importantes nos diversos domínios relacionados (comércio, religião, educação,

ciências, cultura, esporte, lazer) do que com seu valor lingüístico interno, ou seja,

seu maior ou menor grau de complexidade. Porém, ela também possui em si

mesma uma importância que provém dos povos que a utilizam, do número de

pessoas, de suas riquezas, de sua mobilidade, de sua produção cultural e

econômica, fatores cuja soma constitui o que nomeamos de poder inato de cada

língua.(Mackey, 1976)

Em outras palavras podemos dizer que toda língua estabelece uma relação

de poder com as línguas em que está em contato e esta relação dependerá do poder

relativo de cada uma delas, das diferenças lingüísticas existentes e da proximidade

dos povos. Ocorre então em conseqüência que os usos lingüísticos e resultados do

contato podem variar em função do espaço social ou geográfico, ou de acordo

com o grau de diferença e poder entre as línguas. A atração ou repulsão entre elas

seria então, segundo Mackey (1976), função de três distâncias: a distância de

poder, a distância geográfica e a interlingüística.

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• A distância de poder está diretamente vinculada à relação de

motivos que um indivíduo possui para aprender e para utilizar uma determinada

língua. O inglês hoje tem status de língua internacional, importante em todos os

setores da pesquisa científica e tecnológica, entre outros, o que a coloca em um

patamar de poder diferenciado nas sociedades atuais.

• A distância geográfica estabelece que a atração que pode exercer

efetivamente uma língua sobre um povo falante de uma outra língua ou dialeto

dependerá das possibilidades e das probabilidades de contato. Uma língua de alto

poder (como o inglês) não terá nenhuma influência direta sobre um povo que não

tem nenhuma possibilidade de ouvir ou de ler em inglês. Significa dizer que a

força de atração do poder lingüístico é atenuada pela distância e aumenta com a

aproximação.

No passado, a atração da proximidade foi atenuada em certa medida

pela presença de barreiras naturais – as montanhas, os rios, os lagos – fatores que

foram utilizados para justificar a divergência no interior de uma mesma família

lingüística tais como as línguas latinas e as línguas românicas. Atualmente estas

barreiras naturais (na era da internet) não têm a mesma influência. Mas a distância

terrestre ainda é significativa.

• A distância interlingüística está relacionada com as diferenças

internas entre as línguas, que por sua vez não são nada negligenciáveis. A

similaridade entre duas línguas constitui em si uma força de atração. Desta forma,

os brasileiros estariam de modo geral mais propensos ao espanhol que ao inglês

ou ao alemão, enquanto que os alemães teriam maior propensão para o inglês. Da

mesma forma que a distância geográfica, a interlingüística diminui a força de

atração de uma língua para outra.

Destas relações resultam diferentes fenômenos de variações

sociolingüísticas, que tanto podem culminar na efetivação de empréstimos, na

utilização de duas ou mais variedades de uma mesma língua e ou de línguas

diferentes, quanto podem levar à formação de novos falares, como é o caso dos

pidgins e crioulos.

Pidgin corresponderia a toda variedade de língua originada da necessidade

de comunicação entre indivíduos de comunidades que não falam a mesma língua.

O pidgin corresponderia, grosso modo, a um sistema lingüístico dotado de

estruturas rudimentares (léxico reduzido, estruturas gramaticais elementares) e de

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funções sociais limitadas. O crioulo, por sua vez, seria um pidgin que se tornou

língua materna de uma comunidade. A teoria de Bickerton (1984 apud Couto

1996) de nativização do crioulo perdurou durante longo tempo no estudo da

origem destes falares, porém esta definição está ainda longe de ser consensual na

crioulística.

Não são poucos os exemplos de fenômenos lingüísticos e de processos de

hibridização registrados no mundo em função do contato entre povos

“dominados” e “dominantes”, ou entre línguas de maior e menor prestígio

econômico ou cultural.

O português conta hoje um grande número de vocábulos (tais como:

yogurte, chá, cafuné, guerra, cachaça, minhoca, jeans e outros) que foram

emprestados do grego, do árabe, das línguas indígenas, de dialetos africanos,

como resultado do contato. Na maioria dos lugares em que ocorreu a penetração

de mercadores e conquistadores produzindo uma situação de contato lingüístico,

deu-se o nascimento de línguas mistas. Do contato de comerciantes e marinheiros

ingleses com nativos chineses no extremo oriente, nasceu uma língua auxiliar

chamada pidgin-english; o mesmo acontecendo no contato dos colonizadores

britânicos com escravos na costa da Florida, na Geórgia, na Carolina do sul e em

algumas ilhas próximas. No Haiti, nas Ilhas Seychelles e nas Ilhas Maurício

surgiram crioulos de base francesa; que concorrem com as línguas oficiais; em

Curaçao e em Cabo Verde surgiram línguas de base hispano-portuguesa; além de

inúmeros outros casos registrados na literatura.

2.5 Política lingüística e comunidades multilíngües

As situações de multilingüísmo social comumente exigem que o Estado

intervenha no gerenciamento dos conflitos e necessidades sociais que podem

surgir da coexistência das línguas optando pelo estabelecimento de políticas

lingüísticas e pela aplicação das ações por elas definidas.

De acordo com Calvet (1987:154-155) política lingüística “é o conjunto de

escolhas conscientes efetuadas no domínio das relações entre língua e vida

social, e mais particularmente entre língua e vida nacional”. Tais escolhas têm

por objetivo regular sobre o status ou a forma de uma ou mais línguas em uma

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dada sociedade. A planificação lingüística corresponde à aplicação prática da

política estabelecida. (Savedra, 2003).

A política lingüística não é fato recente e sempre que foi aplicada teve

impacto real sobre o desenvolvimento das línguas. De acordo com Martel (2002),

todo movimento de população implica políticas lingüísticas, ainda que nem

sempre elas sejam nem política, nem explicitamente articuladas. Cada vez que um

evento coloca, em um mesmo território, físico ou simbólico (como a internet),

falantes de línguas diferentes, eles procuram encontrar meios de acomodação

através de políticas lingüísticas. Isso aconteceu por ocasião das conquistas, das

guerras religiosas e civis, das cruzadas e missões, de colonizações, da

internacionalização do trabalho, do turismo internacional, dos desastres naturais

etc. (Mackey 2000; Kaplan e Baldauf 1997)

O principal objetivo de qualquer legislação lingüística é resolver, de uma

forma ou de outra, os problemas surgidos de tais contatos lingüísticos, conflitos e

desigualdades, pela determinação e estabelecimento legal do status e uso das

línguas em questão. A preferência é dada para a proteção, defesa e promoção de

uma ou várias línguas designadas através de obrigações lingüísticas legais e

direitos da língua de cima para baixo.

O Estado é o grande interventor do desenvolvimento lingüístico, porém

nem todas as ações político-linguísticas impostas pelo Estado foram totalmente

aceitas pelos povos envolvidos. No contexto de um mundo que intensifica as

relações intergrupais dia a dia, as ações de política lingüística são essenciais na

organização das sociedades, porém, é importante que elas sejam guiadas por

motivos identitários e humanitários, o que nem sempre tem ocorrido.

Em virtude da pluralidade de línguas no interior das fronteiras de um país

várias soluções têm sido dadas com maior ou menor sucesso. Para Hamers &

Blanc (1983) o Estado pode impor uma língua que normalmente é aquela do

grupo dominante ao conjunto da população, suprimindo, desvalorizando ou

negligenciando as demais, e pode também agir através de políticas lingüísticas

definidas considerando as línguas como um recurso humano identitário que

engendra as relações sociais interétnicas.

Spolsky (1998) lembra-nos que as línguas têm sido freqüentemente

utilizadas no exercício do poder político. Os governos podem alcançar o controle

sobre as minorias através da extinção de suas línguas. A incorporação da

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Bretanha, da Alsacia e da Provence à Franca fez submergir as línguas regionais

diante do francês. Por outro lado, a escolha da (s) língua(s) em contextos

multilíngües não raro está ligada à distribuição desigual dos papéis sociais na

sociedade. Servindo-se da língua como um instrumento de poder, a maioria

dominante impõe uma unificação lingüística as minorias.

Podemos tomar o exemplo da França, país oficialmente monolíngüe que

no entanto tem em seu território diversas outras línguas que ali são usadas na vida

diária por inúmeros falantes bilíngües: o alsaciano, o basco, o bretão, o catalão, o

corsa e outros, sem contar as demais línguas faladas pelos migrantes de diversas

partes do mundo. Concluiremos obviamente que a França é um país multilíngüe

mesmo que a maioria de seus cidadãos seja monolíngüe.

O monolingüismo ou o bilingüismo oficial de uma nação é uma das formas

do Estado agir sobre as línguas através da política lingüística. Um país que

oficialmente é monolíngüe não equivale a cidadãos igualmente monolíngües e o

mesmo é válido para o bilingüismo de Estado; ele existe na maioria das vezes

muito mais para assegurar o direito dos indivíduos monolíngües de continuar a sê-

lo do que para incentivar uma prática bilíngüe. (Martel, 2000)

Dentro do campo de ação da política e da planificação lingüística se insere

não apenas o uso institucional da(s) língua(s) oficial /(is) mas também questões

que vão repercutir entre outras coisas diretamente :

(i) Na sobrevivência ou no desaparecimento de línguas minoritárias;

(ii) Na integração ou não das comunidades imigrantes, através do

ensino da língua falada no país ou do ensino das línguas de origem;

(iii) No alargamento ou na restrição do universo de falantes de um

língua; ou

(iv) Na preservação ou no dilapidamento de um patrimônio lingüístico

facilmente perecível.

Em países com minorias lingüísticas, como é o caso do México, do Brasil,

da Índia,etc. nem todos as minorias têm tido seus direitos reconhecimentos. As

políticas lingüísticas estão destinadas a reconhecer esses direitos e proporcionar

caminhos para que eles sejam colocados em prática. Savedra (2003) argumenta

que “a pluralidade lingüística no Brasil delineia situações diversas de

bilingüismo e multilingüísmo, acentuando as problemáticas das minorias

lingüísticas”. É pertinente lembrar que em meio à diversidade de línguas que se

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conta no país, cerca de 180, entre autóctones e alóctones, somente as línguas

indígenas estão contempladas com propostas curriculares de educação bilíngüe na

Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

Retomando as palavras de Martel (2000:91)

“É importante fazer política lingüística e fazê-lo por intermédio do

Estado, mas toda prática lingüística deve sustentar-se em bases justas

e objetivas de divisão, de solidariedade e de valorização consciente

do contexto e do momento histórico na qual ela se insere”.

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