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2 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade · Livro I intitulado O Reconhecimento dos Novos Direitos da Personalidade, fruto ... sujeito de direito e sua dignidade

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2 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

IMAGEM DA CAPA: Unicesumar – Centro Universitário Cesumar de Maringá

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CLEIDE APARECIDA GOMES RODRIGUES FERMENTÃO ZULMAR FACHIN

(Organizadores)

ALUTORES: Ana Cleusa Delben / Andréa Silva Albas Cassionato / Andréia Colhado Gallo Grego Santos / Bruno Martins Moutinho / Camila Vieira Castro / Caroline Christine Mesquita / Cleide Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão / Daniela Menengoti Ribeiro / Diogo Basilio Vailatti / Felipe Rangel da Silva / Fernanda Roberta Sasso Mello / Fernando Cézar Lopes Cassionato / Fernando Peres / Jaime Leônidas Miranda Alves / Jaqueline da Silva Paulich / Jonatas Cesar Dias / Josafar Augusto da Silva Guimarães / Jose Francisco de Assis Dias / Leda Maria Messias da Silva / Marcelo Benacchio / Marcelo Vinícius Dressler / Marco Antônio César Villatore / Maria Beatriz Colafatti / Martinho Martins Botelho / Mayara Fernanda Perim Santos / Osmar Gonçalves Ribeiro Junior / Perla Savana Daniel / Ricardo da Silveira e Silva / Roberson Costa / Sérgio Saes / Taís Zanini de Sá Duarte Nunes / Tatiana Manna Bellasalma e Silva / Thiago Alessandro Corbari / Thomaz Jefferson Carvalho / Valéria Silva Galdino Cardin / Vitor de Medeiros Marçal

O RECONHECIMENTO DOS NOVOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Primeira Edição E-book

Editora Vivens O conhecimento a serviço da Vida!

Maringá – PR – 2015

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4 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Copyright 2015 by Cleide Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão

Zulmar Fachin EDITORA:

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL:

Dr. Celso Hiroshi Iocohama - UNIPAR Dr. Ivan Dias da Motta - UNICESUMAR

Dr. Lorella Congiunti – PUU - Roma REVISÃO ORTOGRÁFICA:

Prof.a Malu Romancini CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Bruno Macedo da Silva Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados com exclusividade para o território nacional. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou banco de

dados sem permissão escrita da Editora.

Editora Vivens, O conhecimento a serviço da Vida! Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro

Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (44) 3056-5596 http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

O reconhecimento dos novos direitos da

R311 personalidade. / organizadores Cleide

Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão,

Zulmar Fachin; autores, Ana Cleuza

Delben ... [et al]. – 1. ed. e-book –

Maringá, PR: Vivens, 2015. 328 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN: 978-85-8401-058-5

1. Direito. 2. Direitos da personalidade. I.

Título.

CDD 22. ed. 346.013

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO...................................................................................... I = A POSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO DO DIREITO AO ESQUECIMENTO VERSUS DIREITO À INFORMAÇÃO Ana Cleusa Delben...................................................................................... II = A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO E O DIREITO AO PRÓPRIO CORPO Andréa Silva Albas Cassionato Fernando Cézar Lopes Cassionato Jose Francisco de Assis Dias...................................................................... III = COLISÃO ENTRE A INVIOLABILIDADE DA VIDA PRIVADA E O DIREITO À INFORMAÇÃO: UM CRÍTICA À EXPOSIÇÃO MIDIÁTICA DA CRIMINALIDADE E SEUS AGENTES Perla Savana Daniel.................................................................................... IV = CRISE MIGRATÓRIA: RADICALISMO POLÍTICO E O DISCURSO MULTICULTURAL Marcelo Vinícius Dressler............................................................................. V = DA LEI MARIA DA PENHA E DO TRATAMENTO JURÍDICO-PENAL DO ASSÉDIO MORAL NO ÂMBITO FAMILIAR E AFETIVO Valéria Silva Galdino Cardin Andréia Colhado Gallo Grego Santos......................................................... VI = DANO EXISTENCIAL NO DIREITO DO TRABALHO: LESÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Leda Maria Messias da Silva Sérgio Saes................................................................................................ VII = DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA À LUZ DA LEI DE CRIMES TRIBUTÁRIOS Jonatas Cesar Dias....................................................................................

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VIII = DIREITO À SAÚDE E A INEFETIVIDADE DA TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL SOB A ÓTICA DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA: A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO IMPERATIVO Felipe Rangel da Silva Thomaz Jefferson Carvalho........................................................................ IX = DIREITO AO ESQUECIMENTO: EVOLUÇÃO DOS DIREITOS PERSONALÍSSIMOS NA BUSCA DA PRESERVAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Cleide Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão Tatiana Manna Bellasalma e Silva Ricardo da Silveira e Silva....................................................................... X = DO TRATAMENTO DO EMBRIÃO CRIOPRESERVADO NA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA Maria Beatriz Colafatti Jaqueline da Silva Paulich..................................................................... XI = FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 COMO GARANTIA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Osmar Gonçalves Ribeiro Junior Fernanda Roberta Sasso Mello.............................................................. XII = MUDARAM AS ESTAÇÕES, NADA MUDOU? PONTAMENTOS SOBRE OS “NOVOS DANOS” INJUSTOS Camila Vieira Castro Josafar Augusto da Silva Guimarães Vitor de Medeiros Marçal........................................................................ XIII = O ABANDONO AFETIVO À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PARA PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Taís Zanini de Sá Duarte Nunes Thiago Alessandro Corbari...................................................................... XIV = O DIREITO AO ESQUECIMENTO COMO DIREITO DA PERSONALIDADE Jaime Leônidas Miranda Alves Mayara Fernanda Perim Santos..............................................................

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Prefácio 7

XV = O DIREITO DE PERSONALIDADE NO AMBIENTE DO TRABALHO: O RECONHECIMENTO DE NOVOS DIREITOS E DEVERES AOS SUJEITOS EMPREGADO E EMPREGADOR Marco Antônio César Villatore Martinho Martins Botelho......................................................................... XVI = O SER HUMANO ENQUANTO SUJEITO DE DIREITO E SUA DIGNIDADE COMO VETOR DO RECONHECIMENTO DOS NOVOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Diogo Basilio Vailatti Fernando Peres Marcelo Benacchio.................................................................................. XVII = POR UMA JUSTIÇA QUE RESGUARDE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Caroline Christine Mesquita Daniela Menengoti Ribeiro Roberson Costa....................................................................................... XVIII = RECONHECIMENTO DO DIREITO AO ESQUECIMENTO COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL Bruno Martins Moutinho.........................................................................

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APRESENTAÇÃO A honra nos aflorou a alma ao sermos convidados para organizar o

Livro I intitulado O Reconhecimento dos Novos Direitos da Personalidade, fruto do II CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITOS DA PERSONALIDADE, realizado pelo Programa de Mestrado em Direito da Unicesumar- Centro Universitário de Maringá, com os artigos classificados e defendidos. A análise dos artigos defendidos nesse grupo faz-nos vislumbrar que os autores trouxeram em suas pesquisas, cujas leituras enriquecerão a consciência jurídica dos cientistas do Direito, temas sobre o Direito da Personalidade, apresentando argumentação crítica e raciocínio lógico. Os artigos remetem à interpretação do Direito à luz da hermenêutica constitucional filosófica e contemporânea, onde aflora a defesa da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra, da imagem das pessoas, e, principalmente da dignidade humana.

Entre tais artigos, encontram-se A análise da possibilidade da aplicação do direito ao esquecimento versus direito à informação; Direito ao esquecimento: evolução dos direitos personalíssimos na busca da preservação da dignidade da pessoa humana; Reconhecimento do direito ao esquecimento como um direito fundamental; e O Direito ao esquecimento como direito da personalidade. Estes artigos tratam do direito ao esquecimento como direito da personalidade, no sentido de que a pessoa tem direito à sua história de vida, mas também de não querer ser lembrada em razão de seu passado, ou algum fato dele. A análise do artigo sobre O ser humano enquanto sujeito de direito e sua dignidade como vetor do reconhecimento dos novos direitos da personalidade e do artigo Por uma justiça que resguarde o princípio da dignidade da pessoa humana; traz a lume os direitos da personalidade enquanto espécie dos direitos dos homens, o que revela a sua importância. Os artigos A responsabilidade civil do médico e o direito ao próprio corpo; O direito à saúde e a inefetividade da teoria da reserva do possível sob a ótica da Constituição brasileira: a dignidade da pessoa humana como imperativo

apresentam uma análise crítica sobre o direito ao próprio corpo e a responsabilidade civil do médico, assim como trazem o direito à saúde como um direito fundamental, tendo como proteção o princípio da dignidade humana. O artigo Mudaram as estações, nada mudou? apontamentos sobre os “novos danos” injustos possui o escopo de analisar de forma filosófica os “novos danos” surgidos a partir da revolução social e jurídica ocorridas nas últimas décadas. O artigo Dignidade da pessoa humana à luz da lei de crimes tributários traz a análise da utilização do direito penal tributário pelo Estado visando a arrecadação, ferindo a dignidade humana. O artigo As novas tecnologias e as afrontas aos direitos da personalidade: será o fim da privacidade e da dignidade humana? traz a reflexão sobre as novas tecnologias que estão alterando a forma de pensar e de agir no mundo, revelando que tal conduta social está levando a pessoa a desnudar-se, a

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Apresentação // 9

desvalorizar a sua própria dignidade. O artigo Colisão entre a inviolabilidade da vida privada e o direito à informação: um crítica à exposição midiática da criminalidade e seus agentes traz a análise crítica da utilização da mídia (televisiva, escrita, oral), a informação como necessária, e a proteção ao direito à informação. O artigo Crise migratória: radicalismo político e o discurso multicultural traz a análise crítica do atual momento, levando o leitor a pensar no momento atual, onde se vive em uma sociedade cada vez mais individualista e discriminatória. O artigo sobre a Função social da propriedade na constituição federal de 1988 como garantia da dignidade da pessoa humana, traz a análise do uso da propriedade privada para garantir a proteção à dignidade da pessoa humana. O artigo O abandono afetivo à luz dos princípios constitucionais para a promoção da dignidade da pessoa humana; e o artigo Da Lei Maria da Penha e do tratamento jurídico-penal do assédio moral no âmbito familiar e afetivo apresentam uma análise do princípio da afetividade que tem transformado o direito de família, assim como os danos causados quando do abandono afetivo. O artigo Personalidade no ambiente do trabalho: o reconhecimento de novos direitos e deveres aos sujeitos empregado e empregador traz uma análise crítica sobre a atual crise econômica, fruto do sistema capitalista, que necessita urgentemente de transformação. O artigo Do tratamento do embrião criopreservado na reprodução humana assistida trata do biodireito, do avanço da ciência e o respeito à vida.

Todos os textos que compõem o livro proporcionam uma análise crítica dos Direitos da Personalidade e remetem à consciência a à importância de tais direitos, estabelecendo a necessidade de defesa da eficácia do princípio da dignidade humana.

Cleide Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão

Zulmar Fachin

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= I =

A POSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO DO DIREITO AO ESQUECIMENTO VERSUS DIREITO À INFORMAÇÃO

Ana Cleusa Delben*

1.1 INTRODUÇÃO

Até quando ou até que ponto uma informação interessa? Um crime

cometido, uma aliança celebrada, um desastre ocorrido, uma publicação em um jornal ou mesmo em um Diário Oficial. A quem interessa? E, por quanto tempo?

São indagações como esta que levam muitas pessoas a procurar o silêncio trazido pelo esquecimento, a pleitear administrativamente, contra buscadores como o Google a retirar “do ar” links que tragam notícias sobre determinado fato que querem manter no passado.

Talvez a dor de reviver aquela situação seja maior do que a relevância da publicidade daquela informação.

O apenado já cumpriu a pena, e, tem o direito da ressocialização. O viúvo já superou a dor do óbito. O devedor já quitou sua dívida. Então porque, rememorar tal situação?

E o direito à informar e ser informado não confrontará com o direito à intimidade daquele que busca o direito ao esquecimento? O direito à informação não é superior a este?

São as respostas a estas indagações que ora se busca.

1.2 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

1.2.1 da personalidade Alguns conceitos preliminares são importantes para assegurar um

direito tão íntimo, como o direito ao esquecimento. Assim, ele é dado apenas à pessoa física ou à jurídica, e, porque não

permitir à sociedade? Afinal, uma empresa pode ser considerada em dado momento de sua história como poluidora, como desrespeitadora das normas de conduta trabalhista, e, em passo seguinte se enquadrar nas legislações ambientais e laborais e querer que aquela mácula seja apagada da biografia.

* Mestre em Direito da Personalidade pelo Centro de Ensino Superior de Maringá – CESUMAR. Especialista em Gestão Pública Municipal pela UNICENTRO - Universidade Estadual do Centro-Oeste. Especialista em Direito Empresarial com ênfase em tributário pela UEL – Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Metodologia Inovadora da Educação pela FACINTER - Faculdade Internacional de Curitiba. Advogada. Professora do Curso de Direito da FACNOPAR - Faculdade do Norte Novo de Apucarana.

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A possibilidade da aplicação do direito ao esquecimento... // 11

Esta pesquisa atem-se à pessoa física, muito embora considere-se

importante e relevante também a aplicação da benesse trazida pelo direito ao esquecimento às sociedades empresariais.

A personalidade é intrínseca à pessoa, sendo que é aquilo que a torna indivíduo, diferenciando-a de outra.

Na legislação pátria, a personalidade encontra guarida no art. 2° do Código Civil: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (SILVA, R. 2012, (epub) Parágrafo 15:15).

Para analisar a personalidade de cada ser, há que se verificar seu comportamento, o meio em que vive, seus valores, suas experiências e a cultura que tem. Os direitos da personalidade estão ligados à pessoa sem interferência estatal e relacionados à proteção da dignidade humana (RAMOS, 2012, (epub), Parágrafo 9:215).

A respeito do termo personalidade, Orlando Gomes esclarece que: A personalidade é um atributo jurídico. Todo homem, atualmente, tem aptidão para desempenhar na sociedade um papel jurídico, como sujeito de direito e obrigações. Sua personalidade é institucionalizada num complexo de regras declaratórias, nas condições de sua atividade jurídica e, nos limites a que se deve circunscrever. O conhecimento dessas normas interessa a todo o Direito Privado, porque se dirige à pessoa humana considerada na sua aptidão para agir juridicamente (GOMES, 2002, p. 141).

Semelhante é o raciocínio de Paulo Nader (1987, p. 348) sobre o

tema que relata que: “Personalidade jurídica, atributo essencial ao ser humano, é a aptidão para possuir direitos e deveres, que a ordem jurídica reconhece a todas as pessoas”.

Assim, ao ser humano, “[...] cabe o dever a cumprir ou o poder de exigir, ou ambos, é que se denomina sujeito de direito” (REALE, 1987, p. 223). Neste sentido, para Miguel Reale, trata pessoa e personalidade estabelecendo:

A ideia de pessoa é fundamental tanto no domínio da Ética como no campo estrito de Direito. A criatura humana é pessoa porque vale de per si, como centro de reconhecimento e convergência de valores sociais. A personalidade do homem situa-o como ser autônomo, conferindo-lhe dimensão de natureza moral. No plano jurídico a personalidade é isto: a capacidade genérica de ser sujeito de direitos, o que é expressão de sua autonomia moral (REALE, 1987, p. 223.).

Ao tratar de personalidade, tem que se ter em mente, que de acordo

com o inciso X, do art. 5º da Carta Magna, são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Tanto que, segundo Celso Ribeiro Bastos:

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12 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

[…] oferece guarida ao direito à reserva da intimidade assim como ao da vida privada. Consiste ainda na faculdade que tem cada indivíduo de obstar a intromissão de estranhos na sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhe o acesso a informações sobre a privacidade de cada um, e também impedir que sejam divulgadas informações sobre esta área da manifestação existencial do ser humano (BASTOS apud MARQUES, 2010).

Assim, por ser a personalidade algo inerente à pessoa, deve-se ter

cuidado com a informação, a postagem, posto que caso não sejam verdadeiras, ou mesmo que sejam, a pessoa pode pleitear indenização por danos morais, se abusiva.

1.2.2 Da dignidade da pessoa humana

A dignidade humana é consagrada com os direitos da personalidade,

tanto que Gilmar Ferreira Mendes (1999) estatui que a Constituição Federal consagrou:

[…] o princípio da dignidade humana como postulado essencial da ordem constitucional, estabelecendo a inviolabilidade do direito à honra e à privacidade e fixando que a liberdade de expressão e de informação haveria de observar o disposto na Constituição, especialmente o estabelecido no art. 5°, X (BRASIL, 1998, web).

Assim, verifica-se que a dignidade da pessoa humana é o norte que

se deve seguir para um bom trabalho de informação, posto que, para Zulmar Fachin (2006, p. 191):

A dignidade da pessoa é o princípio fundamental da República Federativa do Brasil. É o que chama princípio estruturante, constitutivo e indicativo das ideias diretivas básicas de toda a ordem constitucional. Tal princípio ganha concretização por meio de outros princípios e regras constitucionais formando um sistema interno harmônico, e afasta, de pronto, a ideia de predomínio do individualismo atomista do Direito. Aplica-se como leme a todo o ordenamento jurídico nacional compondo-lhe o sentido e fulminando de inconstitucionalidade todo preceito que com ele conflitar. É de um princípio emancipatório que se trata.”

Desta forma, a violação à imagem, honra, nome de um sujeito, causa-

lhe danos à dignidade, que é o que de mais consagrado na Carga Magna, sendo que, a liberdade de expressão e de informação, deve tomar cuidado com o que está sendo abordado, e, até que ponto não causará danos a outrem.

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A possibilidade da aplicação do direito ao esquecimento... // 13

1.2.3 Dos direitos fundamentais

Deste norte, além de conhecer a personalidade e a dignidade da

pessoa humana, para após chegar ao direito à informação e ao esquecimento, importante conceituar direitos fundamentais, que

[...] sao direitos publicosubjetivos de pessoas (fisicas ou juridicas), contidos em dispositivos constitucionais, e portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do Estado […] em face da liberdade individual (DIMOULIS, 2012, p. 40).

A grosso modo, são os direitos consagrados na Carta Magna, ao

passo que os direitos humanos são supranacionais. Para Canotilho, (a, 1993, p. 541) os direitos e garantias individuais,

assumem a função de: […] direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).

Os direitos fundamentais são cláusulas pétreas ante a sua

imutabilidade, e, a impossibilidade de abolição do ordenamento jurídico, conforme art. 60, §4º, IV da Constituição Federal de 1988.

Por outro norte, há que se falar dos direitos da personalidade, qual sejam, direitos da intimidade e da personalidade, vez que, de acordo com o art. 21 do Código Civil: “Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.” E assim:

Inviolabilidade da vida privada: O direito à vida privada da pessoa contém interesses jurídicos, por isso seu titular pode impedir ou fazer cessar invasão em sua esfera íntima, usando para sua defesa: mandado de injunção, habeas data, habeas corpus, mandado de segurança, cautelares inominadas e ação de responsabilidade civil por dano moral e/ou patrimonial (SILVA, R, 2012, Parágrafo: 15.294.).

O direito à privacidade é um dos direitos da personalidade, ao lado

do nome, da imagem, da honra, direito autoral, entre outros, como a liberdade, e a intimidade. Deste modo:

O direito à imagem pode ser definido como o direito de não exposição pública do retrato, através de qualquer meio, sem a devida e prévia autorização, cuidando-se, portanto, de um não fazer. No mesmo sentido, a intimidade significa aquela parcela mínima de existência particular do indivíduo,

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14 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

indevassável pelo público […]. Nesse sentido, o constituinte resolveu preservar a vida íntima do indivíduo, impedindo intromissões espúrias do Poder Público ou de quem quer que seja (PENTEADO FILHO, 2012 (epub), Parágrafo: 11.82.).

E ainda, de acordo com Paulo José da Costa Júnior: “Na expressão

‘direito à intimidade’ são tutelados dois interesses, que se somam: o interesse de que a intimidade não venha a sofrer agressões e o de que não venha a ser divulgada” (COSTA JÚNIOR apud PENTEADO FILHO, 2012, (epub), Parágrafo: 11.82).

Assim, há importância no cuidar da fonte da informação, do que dizer, posto que, pode violar o que há de mais íntimo na pessoa, sendo que estes direitos da personalidade estão consagrados ao lado do direito à informação na Constituição Federal, devendo ser ponderado, o que é mais relevante o direito de informar e ser informado ou sobre quem informar.

1.3 A INFORMAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

A Constituição Federal apregoa a liberdade de expressão, bem como,

a liberdade de expressão e o acesso à informação, conforme depreende-se do art. 5º, incisos IV, IX e XIV:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; […] IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; […] XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; (BRASIL, 1998, web).

Neste sentido, tanto a liberdade de expressão quanto a de

informação são imprescindíveis para a democracia. Compreendem a faculdade de expressar livremente ideias e opiniões bem como a faculdade de comunicar e receber livremente informações sobre determinados fatos (PANTALEÃO, 2003).

A liberdade de pensamento nesta esteira seria o: […] direito de exprimir, por qualquer forma, o que se pense em ciência, religião, arte, ou o que for; trata-se de liberdade de conteúdo intelectual e supõe contato com seus semelhantes; inclui as liberdades de opinião, de comunicação, de informação, religiosa, de expressão intelectual, artística e científica e direitos conexos, de expressão cultural e de transmissão e recepção do conhecimento (SILVA, J., b, 2007, p. 241).

Já o direito à informação está garantido dentro do título que fala sobre

os direitos e garantias fundamentais, sendo este um direito fundamental de

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A possibilidade da aplicação do direito ao esquecimento... // 15

quarta geração (BONAVIDES, 2006, p. 571-572), que, de acordo com Flávia Piovesan (2012, (epub), Parágrafo 19.34):

[…] os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos consagram que o direito à informação compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha (ver artigo 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e artigo 13 da Convenção Americana dos Direitos Humanos). A jurisprudência da Corte Interamericana tem realçado que o direito à informação é pressuposto e condição para a existência de uma sociedade livre, enfatizando que “una sociedad que no está bien informada no es plenamente libre”. A Corte ainda destaca que o direito à informação apresenta uma dimensão individual e coletiva.

Já Tatiana Stroppa (2006) esclarece que o direito de informar destina-

se a: […] assegurar às pessoas a disponibilidade e acessibilidade às informações que possibilitem a efetividade da cidadania (Art. 1º, inc. II, CF/88) e da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, inc. III, CF/88) e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (Art. 3º, inc. I, CF/88) apta a promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Art. 3º, inc. IV, CF/88), na qual sejam respeitados os valores éticos e sociais da pessoa e da família (Art. 221, inc. IV, CF/88).

Isto é, o exercício do direito de informar resguarda o interesse público,

quando bem praticado pela atividade jornalística desempenhada, sendo ele relacionado “[...] com o direito à comunicação, entendido este como direito de procurar, receber, compartilhar e publicar informações” (LÔBO, 2001).

José Afonso da Silva (a, 2002, p. 259) sobre o direito à informação, estabelece que este se trata de:

[…] liberdade de manifestação de pensamento, revela-se um direito individual, mas já contaminado no sentido coletivo, em virtude das transformações dos meios de comunicação, que especialmente se concretiza pelos meios de comunicação social ou de massa; a CF acolhe essa distinção, no capítulo da comunicação (220 a 224). Preordena a liberdade de informar completada com a liberdade de manifestação do pensamento (5º, IV).

Este direito de informar-se é garantido constitucionalmente e, por ser

cláusula pétrea, nenhuma norma infraconstitucional poderá ser editada com a finalidade de extinguir ou mitigar este direito.

Ao mesmo tempo, a Lei n° 5.250/67 trata sobre a liberdade de manifestação de pensamento e de informação, porém, não se pode sob o manto dela cometer abusos nas matérias a serem publicadas. Tanto que estipula o seu primeiro artigo: “É livre a manifestação do pensamento e a procura, o recebimento, a difusão de informações ou ideias, por qualquer

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meio, e sem dependência de censura, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer” (BRASIL, 1967, web).

A necessidade de diferenciar a liberdade de expressão e direito à informação é importante para limitá-los e determinar a responsabilidade de quem exerce estes direitos fundamentais, posto que, os fatos podem ser provados, já o juízo de valor não, justamente por isso, que a proteção da liberdade de expressão é maior que o do direito à informação (CANOTILHO, b, 2003, p. 1077).

Passadas estas considerações, faz-se mister analisar como enfrentar a privacidade e a obtenção da informação.

1.4 COLISÃO DE DIREITOS DE INFORMAÇÃO E DA VIDA PRIVADA

Ao tratar do tema ‘vida privada’, tem-se também que esclarecer que

a informação muitas vezes é importante para resguardar interesse de terceiros, até porque o fato pode ser público e notório e atentar contra a ordem pública.

Em caso de conflito entre normas de direito interno ou internacional que não protejam o ser humano, André de Carvalho Ramos (2012, (epub), Parágrafo 9.267) esclarece que, na ordem supranacional consagrou-se o que se chama de “princípio da primazia da norma mais favorável ao indivíduo”. Para Cançado Trindade (apud RAMOS, 2012, (epub), Parágrafo: 9.264), isto significa que,

[...] no domínio da proteção dos direitos humanos interagem o direito internacional e o direito interno movidos pelas mesmas necessidades de proteção, prevalecendo as normas que melhor protejam o ser humano. A primazia é da pessoa humana.

E continua André de Carvalho Ramos (2012, (epub), Parágrafo

9.268): Entretanto, nos casos de conflito entre direitos de indivíduos distintos (o choque entre o direito à intimidade e a liberdade de expressão jornalística, entre outros) fica clara a impossibilidade da aplicação do princípio da primazia da “norma mais favorável. Como diria Gilmar Mendes (2012, (epub), Parágrafo 14.100): […] a regra da publicidade comporta exceções, tendo em vista o interesse público ou a defesa da intimidade. A questão torna-se mais bem posta como mais um quadro de colisão de direitos fundamentais, em que de um lado se apresentam o direito constitucional à informação e ao conhecimento dos processos existentes em razão da publicidade, e de outro a intimidade, a privacidade e, em diversas ocasiões, o direito à segurança e à realização da justiça criminal.

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James Eduardo Oliveira cita Gilmar Mendes (OLIVEIRA, 2013, p. 57)

trata da colisao de direitos fundamentais nestes termos: Embora o texto constitucional brasileiro nao tenha privilegiado especificamente determinado direito, na fixacao das clausulas petreas (art. 60, § 4o), nao ha duvida de que, tambem entre nos, os valores vinculados ao principio da dignidade da pessoa humana assumem peculiar relevo (CF, art. 1o, inc. III). Assim, devem ser levados em conta, em eventual juizo de ponderacao, os valores que constituem inequivoca expressao desse principio (inviolabilidade de pessoa humana, respeito a sua integridade fisica e moral, inviolabilidade do direito de imagem e da intimidade).

Na opinião do magistrado Luis Martius Holanda Bezerra Júnior

(2008): […] verificada uma aparente colisão entre o direito de informar e o direito à privacidade da pessoa que seria o objeto da notícia, não haveria falar-se, de plano, em eventual preponderância de um princípio sobre o outro, vez que ambos devem subsistir, com igual valor, dentro da ordem constitucional, cabendo ao julgador o exame casuístico da hipótese submetida, realizada a necessária ponderação entre os interesses e valores em testilha, de modo a permitir que, mesmo com eventual e pontual mitigação do grau de abrangência de um deles, ambos sejam tutelados.

Na era atual, as informações são obtidas com um simples acesso no

buscador da internet os dados são obtidos em uma velocidade de frações de segundos. Isso se dá por conta da globalização, sendo que,

[…] no meio ambiente da sociedade da informação o respeito aos valores da tolerância, da convivência solidária, do respeito às diferenças. A apologia de um discurso de circulação do bem, de estímulo de ideias. Sobretudo, que relevem, o respeito aos outros, e ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Há que se haver respeito às diferenças, e, ser tolerante, contudo,

ante ao fato da liberdade de expressão ser constitucionalmente consagrada, não raras vezes, quem decidirá sobre a colisão entre a publicidade ou não da informação, à expressão e a possível mácula à dignidade humana será o juiz.

1.4.1 Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade

Princípio nada mais é do que a base, a viga mestra, o pilar de

sustentação de um modelo, de um padrão, alicerçado em um juízo de valor, axiológico, sendo que Celso Antônio Bandeira de Mello o conceitua como:

[…] mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, dispositivo fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente

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por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. [...] Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada (MELLO, 2000, p. 747 e 748).

Quando existe conflito entre os direitos fundamentais, há que se

resolver, utilizando os princípios da proporcionalidade e o da razoabilidade, sendo que, Karl Larenz (apud MARINONI, 1999) relata que:

O princípio da proporcionalidade, como explica Larenz, exige uma ‘ponderação’ dos direitos ou bens jurídicos que estão em jogo conforme o ‘peso’ que é conferido ao bem respectivo na respectiva situação. Como diz o jurista alemão, ‘ponderar’ e ‘sopesar’ são apenas imagens; não se trata de grandezas quantitativamente mensuráveis, mas do resultado de valorações que – nisso reside a maior dificuldade – não só devem ser orientadas a uma pauta geral, mas também à situação concreta em cada caso concreto, uma vez que não existe uma ordem hierárquica de todos os bens e valores jurídicos em que possa ler-se o resultado como numa tabela.

Já Weida Zancaner (1997, p. 619-625) disserta sobre a finalidade e

a importância do princípio da razoabilidade: Desde os primórdios das civilizações o homem tem lutado contra o arbítrio. [...] Controle dos atos exercidos pelos detentores do poder. [...] Necessidade da sua observância pelo Poder Legislativo, como critério para reconhecimento de eventual inconstitucionalidade da lei, ora o apresenta como condição de legitimidade dos atos administrativos, ora aponta sua importância para o Judiciário quando da aplicação da norma ao caso concreto. [...] O princípio da razoabilidade propicia, portanto, a fiscalização da obediência a todos os demais princípios e regras albergados pelo sistema.

Por seu turno, Humberto Ávila (2005, p. 101) estabelece que: O postulado da proporcionalidade pressupõe a relação de causalidade entre o efeito de uma ação (meio) e a promoção de um estado de coisas (fim). Adotando-se o meio, promove-se o fim. E, quanto à razoabilidade, explica que entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada há uma relação entre qualidade e a medida adotada, enfatizando que uma qualidade não leva a medida, mas é critério intrínseco a ela.

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Há que se ater ao equilíbrio das normas para se trazer uma melhor

harmonia à solução do fato em si, nem que para isso, se sobreponha um princípio sobre um direito. 1.5 DO DIREITO AO ESQUECIMENTO

No conhecimento de senso comum esquecimento vem a ser o ato de

esquecer, quando se falta à memória. Já o direito, como é sabido, é dividido em público e privado, objetivo

e subjetivo, positivo e natural. Conceitualmente, entende que, o direito poderá ser positivado, que é

o encontrado nas normas jurídicas (CUNHA, 2012, p. 63, (e-pub)), vigentes em determinada sociedade (DINIZ, 2007, p. 7, (epub)), como também, o direito natural que é independente das normas escritas, vez que “[...] é um desenvolvimento histórico e particularizado” (DINIZ, 2007, p. 121, (epub)), que se encontram na consciência de um povo (GONÇALVES, 2012, p. 18, (epub)).

Já como público e privado, é encarado dependendo se regulamenta relações entre o Estado ou entre particulares (GONÇALVES, 2012, p. 23, (epub)).

De outro norte, existe também a diferenciação entre o direito objetivo e o subjetivo, que segundo Fábio Ulhoa Coelho (2012 p. 120, (epub)):

O direito subjetivo pode ser compreendido de duas maneiras: como algo inerente à condição humana, que o ordenamento jurídico (direito objetivo ou positivo) se limita a reconhecer e declarar; ou como simples reflexo do direito positivo, isto é, uma outra forma de descrever o conteúdo das normas jurídicas.

Se unir os termos direito ao esquecimento tem-se que este é um ramo

do direito privado, sendo ele relacionado à vida privada, vez que qualquer pessoa tem o direito de estar só, de ter sua intimidade resguardada, de ter respeitada a sua dignidade, e, por fim de que determinado fato que pese sob seu passado seja esquecido. Assim:

Não somente a divulgação de fatos inéditos pode atingir o direito de intimidade das pessoas. Muitas vezes, mesmo os fatos já conhecidos publicamente, se reiteradamente divulgados, ou se voltarem a ser divulgados, relembrando acontecimentos passados, podem ferir o direito à intimidade. Fala-se, nesses casos, no chamado direito ao esquecimento (GRECO apud RODRIGUES, V. 2014).

Estabelece-se que, […] sempre o interesse público na divulgação de casos judiciais deverá prevalecer sobre a privacidade ou intimidade dos envolvidos, pode violar o próprio texto da Constituição, que prevê solução exatamente contrária, ou

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seja, de sacrifício da publicidade (art. 5º, LX) (INSTITUTO BRASILEIRO DE ALTOS ESTUDOS DE DIREITO PÚBLICO, 2013).

Além de que, deve se preservar a pessoa, restringindo à publicidade

do processo, sendo que a sentença deste, pode ser publicada, conforme verifica-se nos arts. 155 do Código de Processo Civil1 e art. 93, IX, da Constituição Federal (INSTITUTO BRASILEIRO DE ALTOS ESTUDOS DE DIREITO PÚBLICO, 2013).

O direito ao esquecimento em nada tem relação com a censura até porque, de acordo com Alexandre de Moraes (2003. p. 72), “[…] o Estado democrático defende o conteúdo essencial da manifestação da liberdade, que é assegurado tanto sob o aspecto positivo, ou seja, proteção da exteriorização da opinião, como sob o aspecto negativo, referente à proibição de censura”.

Já censura: [...] não é ato de repreensão, porquanto a própria Constituição Federal, no mesmo art. 220, que, no § 2º, proibiu a censura, no § 3º, II, delegou à legislação federal a criação de meios para estabelecer a possibilidade de defesa social contra programas televisivos que contrariem o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa ou da família. Portanto, a censura, do ponto de vista jurídico […] ato de proibição de divulgação de conteúdo político, ideológico e artístico, de forma concomitante (analisando o conteúdo no momento de sua divulgação, porém, como requisito prévio desta) ou prévia (sem qualquer análise de conteúdo do que será divulgado) (CERQUEIRA, 2012, Parágrafo 25.187-25.188, (epub)).

Há diferença entre o direito de ser esquecido, de não se vincular algo

desabonador de sua conduta, como por exemplo, uma pessoa que cumpriu pena restritiva de liberdade, e, após sua extinção de punibilidade, o crime ainda é noticiado. Isto que deve ser repelido, porque a pessoa tem direito a esquecer e ser esquecido, de ter uma nova vida. Diferente da censura, que seria uma proibição à divulgação de conduto político ou ideológico.

1 Correspondente ao art. 189 do Novo Código de Processo Civil – Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: I - em que o exija o interesse público ou social; II - que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes; III - em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade; IV - que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo. § 1o O direito de consultar os autos de processo que tramite em segredo de justiça e de pedir certidões de seus atos é restrito às partes e aos seus procuradores. § 2o O terceiro que demonstrar interesse jurídico pode requerer ao juiz certidão do dispositivo da sentença, bem como de inventário e de partilha resultantes de divórcio ou separação.

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1.5.1 O direito comparado

Em 13 de maio de 2014, um espanhol teve o direito de ser esquecido

assegurado pelo TJUE - Tribunal de Justiça da União Europeia, em razão de que, no ano de 1998, o mesmo teve seus dados pessoais associados a um leilão “de imóveis para o pagamento de dívidas à Segurança Social em que ele era um dos devedores” (HENRIQUES, 2014), e, passados mais de 10 anos, em 2010, solicitou junto à Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD) que o jornal "La Vanguardia" e o Google, eliminasse ou modificasse duas páginas na internet da publicação, nas quais anunciava o leilão de 1998 e ao Google "que eliminasse ou ocultasse seus dados pessoais" (JUSTIÇA EUROPEIA DIZ QUE GOOGLE DEVE APAGAR DADOS PESSOAIS DE USUÁRIOS, 2014), respectivamente. A exigência de Mario Costeja González se deu em virtude que, para ele, a informação estava infringindo seu o direito à privacidade (HENRIQUES, 2014).

Julgada a ação, o TJUE considerou que o Google é responsável pelos dados e como tal encarregado de tratá-los, e esclareceu também, que os usuários tem direito, a exceção se forem pessoas de vida pública, de que suas informações não sejam exibidos nas listas de buscas do hospedeiro. Excetuou as pessoas de vida pública, face ao interesse público que pode preponderar sob o privado, e, ai o direito à informação é superior ao do esquecimento (JUSTIÇA EUROPEIA MANDA GOOGLE APAGAR LINKS RELATIVOS A USUÁRIOS, 2014).

Já no Chile, os senadores querem reformular o sistema legislativo, para albergar o direito ao esquecimento online, e, assim, os sites de buscas, deverão eliminar de seus bancos notícias equivocadas, desnecessárias ou prejudiciais sobre os cidadãos. Com a alteração, se aceito, o projeto de lei mudará o artigo 1 º da Lei 19.628, que trata a respeito da proteção da privacidade da vida privada (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE INTERNET, 2014). Este artigo, teria o seguinte parágrafo acrescentado:

Todo mundo tem o direito de exigir dos programas de busca ou sites a remoção de seus dados pessoais. A falta de pronunciamento sobre a solicitação do requerente ou a negação da mesma por parte da administração das empresas de busca ou sites, dará ao titular o direito ao exercício do recurso previsto no artigo 16 (recurso de amparo aos tribunais de justiça). (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE INTERNET, 2014)

Já na Itália: Segundo Gustavo Binembojm, uma saída para balancear o direito ao esquecimento e ao de acesso à informação foi encontrada recentemente pela Justiça da Itália. “A corte de cassação italiana chegou à conclusão que não seria possível eliminar as informações dos sites de notícias, mas que poderia se exigir que os jornalistas atualizassem as informações para passar ao público a verdade daquele momento”, disse. Para o advogado, a decisão atende o interesse da pessoa, que deixa de ser vítima de uma

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informação incorreta ou desatualizada, ao mesmo tempo que a imprensa fornece uma informação mais completa.

No direito comparado, vê-se as formas de direito ao esquecimento,

que devem se levar em conta, a intimidade da pessoa, bem como, a exatidão da informação, para que, tal não seja inverídica e mesmo macule a dignidade da pessoa humana.

1.5.2 Enfoque brasileiro

João Gabriel Lemos Ferreira elencou alguns dispositivos contidos em

leis nacionais, que de forma ainda que implícita, trazem o direito ao esquecimento, sendo eles por exemplo: a) a anistia contemplada no art.107, inc.II, do Código Penal2; b) um outro seria a reabilitação prevista no art. 748, do Código de Processo Penal, uma vez cumprida a pena, não se fala mais desta3; c) um outro, contudo, na seara do consumidor, seria o do art. 43, § 1º, da Lei n º8.078/904, que traz a possibilidade do consumidor ter seu nome extirpado do rol dos órgãos de proteção, após cinco anos, e, por fim, traz o art. 137, da Lei nº 8.112/905, que fala do delito cometido por servidor público federal e, que deve ser esquecido, após cinco anos (FERREIRA, 2013).

Conforme preceitua o art. 202 da Lei de Execuções Penais: Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei” (BRASIL, 1984, web).

De acordo com Renato Marcão 2012, p. 137, (epub)):

A interpretação do referido artigo permite concluir que também não poderão constar dos documentos sobreditos quaisquer anotações que se refiram a inquéritos policiais arquivados ou trancados; ações penais trancadas; processos em que tenha ocorrido reabilitação criminal etc.

2 Art. 107 - Extingue-se a punibilidade: […] II - pela anistia, graça ou indulto; 3 Art. 748. A condenação ou condenações anteriores não serão mencionadas na folha de antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros do juízo, salvo quando requisitadas por juiz criminal. 4 Art. 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes. § 1° Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos. 5 Art. 137. A demissão ou a destituição de cargo em comissão, por infringência do art. 117, incisos IX e XI, incompatibiliza o ex-servidor para nova investidura em cargo público federal, pelo prazo de 5 (cinco) anos.

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As consequências decorrem automáticas, e em caso de

descumprimento do comando legal é cabível mandado de segurança com vistas à correção do ato violador do direito assegurado.

Diante disso, a repercussão de um crime cometido no passado, pelo qual inclusive já cumpriu pena, não é recomendada, para que não se macule a vida e mesmo a imagem de uma pessoa, que já está em dia com a Justiça.

O que se sabe é que uma pessoa que cumpriu pena restritiva de direitos já tem dificuldades em recolocar-se no mercado de trabalho, e, a divulgação de fatos cometidos no passado, podem ainda mais atrapalhá-lo em seu intuito, seria uma dupla punição, e como se sabe nullum crimen sine culpa6.

Pondera Luís Roberto Barroso, que deve ser reconhecida a “[…] existência, na vida das pessoas, de espaços que devem ser preservados da curiosidade alheia, por envolverem o modo de ser de cada um, as suas particularidades” (BARROSO, 2005, p. 96).

Entre 11 e 12 de março de 2013, na VI Jornada de Direito Civil organizada pelo Centro de Estudos Judiciário (CEJ), do Conselho de Justiça Federal, foi aprovado o enunciado de número 531 da VI Jornada de Direito Civil, que reza: “Enunciado n. 531 - A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Artigo: 11 do Código Civil” (ENUNCIADOS APROVADOS NA VI JORNADA DE DIREITO CIVIL, 2013). A justificativa encontrada para tal pronunciado foi de que:

Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados (ENUNCIADOS APROVADOS NA VI JORNADA DE DIREITO CIVIL, 2013).

Na prática, no Brasil já começaram a ser julgados casos pleiteando o

direito ao esquecimento, como no caso de um inocente que teve seu nome atrelado a possíveis réus no crime da Chacina da Candelária, e, mesmo tendo sido absolvido, a Rede Globo divulgou programa Linha Direta – Justiça, como, partícipe no delito. Os ministros do Superior Tribunal de Justiça decidiram que deveria ser respeitada a personalidade daquele inocentado, em detrimento à informação. Outro caso que também foi trazido à tona pela mesma emissora foi o caso Aida Curi, uma jovem, que foi molestada sexualmente e morta, crime este ocorrido em 1958. Os seus familiares, ingressaram com ação de reparação de danos, contudo, tal direito foi negado inclusive em última instância, posto que, para os ministros, a imagem da vítima não foi utilizada de maneira desrespeitosa (CARVALHO, 2013).

6 Não há crime sem culpa in OLIVEIRA, João Luiz Bentes De; Oliveira, Quiéria M. A. De. Dicionário de Latim Para Universitários. 2.ed. Belo Horizonte: Líder: 2003. Parágrafo: 2.1076.

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Quanto à região sul do Brasil, cita-se três julgados sobre o direito ao esquecimento, sendo o primeiro paranaense, que buscando apoio em decisão da ministra Nancy Andrighi, foi julgado recentemente no Tribunal de Justiça do Paraná:

Não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação de conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade à informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a garantia da liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1º, da CF/88, sobretudo considerando que a Internet representa, hoje, importante veículo de comunicação social de massa." (REsp 1316921/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/06/2012, DJe 29/06/2012)” (PARANÁ. Tribunal de Justiça. Processo: 1305371-1 (Acórdão), 2015).

Já em casos, como em relação de consumo e dívida quitada, pode

ser invocado o direito ao esquecimento, em casos de manutenção indevida de nome em cadastros de restrição ao crédito, como recentemente, decidido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

A concessão de crédito ao consumidor constitui faculdade do fornecedor de bens e serviços e/ou da instituição financeira, cuja conduta, num ou noutro sentido (concedendo-o ou negando-o), situa-se no âmbito da autonomia privada. Entretanto, ao exercer tal faculdade o fornecedor não pode ferir direitos da personalidade do consumidor ou violar as normas do CDC. O chamado "direito ao esquecimento" tem por finalidade evitar o armazenamento de informações relativas ao consumidor por tempo indeterminado, de forma a impedir que uma dívida continue a gerar efeitos extrajudiciais após a sua prescrição e/ou quitação. Utilização de informações acobertadas pelo direito ao esquecimento que acarreta a responsabilidade civil solidária do fornecedor de produtos ou serviços e do órgão arquivista, acaso a inviabilização do acesso do consumidor ao crédito cause danos materiais ou morais. Caso concreto em que os elementos de convicção encartados aos autos revelam que a parte autora teve o crédito negado por algumas das empresas codemandadas com base em informações relativas a dívidas já quitadas. DEVER DE INDENIZAR. DANOS MORAIS "IN RE IPSA" (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Processo: 70054612916 (Acórdão), 2014).

Também casos como restrições indevidas, baixas não dadas, lapsos

das serventias judiciais ou extrajudiciais, também podem ser invocado o direito ao esquecimento, conforme julgado recente catarinense:

Processo: 2011.071196-3 (Acórdão) Relator: Gilberto Gomes de Oliveira Origem: Lages Orgão Julgador: Segunda Câmara de Direito Civil Julgado em: 12/07/2012 Juiz Prolator: Joarez Rusch Classe: Apelação Cível

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Ementa:

DECLARATÓRIA DE PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. FALTA DE ELEMENTOS PARA LASTRAR A ALEGAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE AFERIÇÃO. PEDIDO IMPROCEDENTE. ANULAÇÃO DE PENHORAS. FALTA DE ORIGEM PARA LEGITIMAR AS CONSTRIÇÕES. PENHORAS ACÉFALAS. EXECUÇÃO DESCONHECIDA. DIREITO AO ESQUECIMENTO. A permanência de uma penhora acéfala, sobre cuja execução não se tem mais notícia ha décadas, não pode ser lastro para a perenização da "Espada de Dâmocles" sobre as cabeças dos devedores, sem saber qual o destino que terão os imóveis constritados e, pior ainda, sem deles poder usufruir na qualidade de proprietários. RECURSO PROVIDO.

Assim, os julgados brasileiros tem sido de enorme importância para

que impulsionem os legisladores a criar leis que tratem sobre o direito ao esquecimento, que é o que se verá a seguir.

1.5.3 A legislação brasileira

No Brasil ainda carece de legislações sobre o tema, porém, há em

trâmite dois projetos no Congresso Nacional: O Congresso Nacional se vê às voltas com dois projetos que procuram transformar o direito ao esquecimento em lei. O PL nº 7881/2014, de autoria do deputado Eduardo Cunha, merece destaque. A sua exposição de motivos, por sinal, é composta quase que integralmente pela reprodução de uma reportagem do jornal O Globo sobre

a decisão europeia. O projeto de lei em si possui dois artigos. O primeiro determina que "[é] obrigatória a remoção de links dos mecanismos de busca da internet que façam referência a dados irrelevantes ou defasados, por iniciativa de qualquer cidadão ou a pedido da pessoa envolvida." O segundo esclarece que a lei entra em vigor na data de sua publicação. […] Já o Projeto de Lei nº 1676, de 2015, é mais abrangente. Além de criminalizar a realização de foto ou vídeo de terceiro sem autorização ou finalidade lícita, ele visa à institucionalização do direito ao esquecimento para muito além da Internet. Esse direito, nos contornos traçados pelo artigo 3º do PL, diria respeito à "garantia de desvinculação do nome, da imagem e demais aspectos da personalidade relativamente a fatos que, ainda que verídicos, não possuem, ou não possuem mais, interesse público." O parágrafo único do referido artigo esclarece que "[o]s titulares do direito ao esquecimento podem exigir dos meios de comunicação social, dos provedores de conteúdo e dos sítios de busca da rede mundial de computadores, internet, independentemente de ordem judicial, que deixem de veicular ou excluam material ou referências que os vinculem a fatos ilícitos ou comprometedores de sua honra" (SOUZA, 2015).

Contudo, deve ter-se critério para o direito ao esquecimento, posto

que, “Imagine então a quantidade de informações que poderia ser removida das chaves de busca com base em critérios tão vagos e inconclusivos. E,

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ainda, removidas não apenas da internet no Brasil, mas sim de todo o mundo” (SOUZA, 2015).

Nestes termos, verifica-se que há necessidade de uma melhor análise dos projetos até porque, retirar do ar, apenas por vontade única da pessoa envolvida, pode ser o mesmo que apagar registros que são de interesse maior, ou seja, deve-se levar em conta o interesse geral sobre o privado.

1.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito embora notícias possam ser divulgadas, e, impactem direitos à

intimidade, honra e imagem, o direito à informação e o de ser informado deverá ser ponderado.

Algumas informações são tão relevantes que, mesmo que se passem anos, é natural que sejam repassadas a terceiros, até mesmo por conta de ser fato ser notório e público, mesmo que seja um fato dão doloroso como relembrar um crime.

Este direito ao esquecimento pode ser clamado, em virtude de fatos que são desabonadores da conduta de alguém, como por exemplo, o fato de em certa ocasião ter tido seu nome levado ao cadastro de órgãos de proteção ao crédito, com a dívida paga, tal restrição deve ser baixada, ou ter cumprido uma sanção penal.

Assim, foi importante tratar da pessoa, da personalidade, da colisão entre o direito fundamental a imagem e da informação, trazer que o confronto deste deverá ser decidido com base nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, para então verificar o direito ao esquecimento tanto no campo comparado e na seara nacional.

Verificou-se que pode ser pleiteada administrativamente a retirada da informação do ar, em sites de buscas, e, também de transmissão de emissoras de televisão, ou órgãos de restrição ao crédito, porém, se tal não for considerado, poderá ser ajuizada ação de reparação de danos morais, que, em alguns casos são in res ipsa, ou seja, pelo próprio ato. Assim, como se vê, os tribunais têm sido justos e equilibrados ao julgar, posto que muitas vezes a informação tem sido mais relevante do que resguardar a intimidade, ou mesmo, o fato é de grande notoriedade e relevância, e, faz parte da história.

Deste modo, o esquecimento deve ser legislado para que casos relevantes sejam bem tratados, e, não fiquem obrigados os servidores a retirar todos os tipos de informação, para que fatos importantes não sejam apagados da história.

Favoravelmente a isso, tem-se que, a imagem, a honra, o nome é algo de mais íntimo, e, se a pessoa não é pública não deve ter sua personalidade sempre trazida a baila.

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1.7 REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE INTERNET. Senadores chilenos propõe que direito ao

esquecimento seja inserido na lei. Disponível em: <http://www.abranet.org.br/Noticias/Senadores-chilenos-propoe-que-direito-ao-esquecimento-seja-inserido-na-lei-42.html#.U8G2pPldXCs>. Acesso em: 12 jul. 2014.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Malheiros: São Paulo, 2005. BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional – tomo III. Rio de Janeiro:

Renovar, 2005. BEZERRA JÚNIOR, Luis Martius Holanda. Considerações sobre os direitos da

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28 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Justiça europeia manda Google apagar links relativos a usuários. Gigante de buscas deve atender a pedido de cidadãos, decide Tribunal. Exceção ocorre quando informações forem de "interesse público". Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/vida-digital/justica-europeia-manda-google-apagar-de-seus-servidores-dados-de-um-usuario> Acesso em: 12 jul. 2014.

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A possibilidade da aplicação do direito ao esquecimento... // 29

12.376/2010, n. 12.398/2011, n. 12.399/2011, n. 12.424/2011, n. 12.441/2011 e n. 12.470/2011. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2012 (epub).

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= II =

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO E O DIREITO AO PRÓPRIO CORPO

Andréa Silva Albas Cassionato*

Fernando Cézar Lopes Cassionato** José Francisco de Assis Dias***

2.1 INTRODUÇÃO O instituto da responsabilidade civil é responsável pela tentativa de

proporcionar à vítima de determinado dano, mensurável ou não, alguma reparação pelos transtornos sofridos.

Um dos meios mais utilizados pelo Judiciário como reparação aos danos é a recomposição patrimonial, cujo objetivo é restabelecer o status quo ante. Entretanto, quando não for possível esta reparação, a vítima deverá ser indenizada.

Ocorre o mesmo face ao Código de Defesa do Consumidor e, mais especificamente, nas relações que envolvem prestação de serviços. Concernente aos profissionais liberais, existem as obrigações de meio e de resultado. Na primeira, basta o profissional provar que os meios utilizados durante a prestação do serviço foram adequados ao caso apresentado para eximir-se de qualquer responsabilidade patrimonial. Na segunda, contudo, deverá demonstrar que utilizou dos meios adequados e que o resultado não ocorreu pela ocorrência de caso fortuito ou força maior.

Passou a existir uma regra entre os aplicadores do Direito de que sempre o médico estará sujeito à obrigação de meio, eis que nunca terá como garantir de forma indubitável a cura. O profissional terá sempre a obrigação de utilizar todos os meios possíveis e adequados ao caso, sem sofrer qualquer sanção, caso o resultado esperado pelos pacientes - a cura - não ocorrer.

* Especialista em Direito Civil e Processo Civil e mestranda em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá/PR. Endereço eletrônico: <[email protected]>. ** Graduado em Direito pela Associação Educacional Toledo (2004). Atualmente é oficial/tabelião do REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS E TABELIONATO DE NOTAS DE NARANDIBA. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Notarial e Registral. Especialista em Direito Imobiliário, Direito Notarial e Registral e Direito Público. Estudante regular do curso intensivo válido para doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, Argentina. *** Professor doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano (2003-2005); doutor em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade (2006-2008). Atualmente é professor de Filosofia e Ética, no Mestrado em Gestão do Conhecimento nas Organizações, no UNICESUMAR; professor efetivo da Unioeste, CCHS, Toledo-PR; membro do Grupo de Pesquisa Educação e Gestão nas Organizações, Unicesumar e do grupo de pesquisa Ética e Política, Unioeste, Toledo-PR.

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A responsabilidade civil do médico... // 31

Posteriormente, com o assombroso crescimento da realização de

cirurgia plástica estética, passou-se a entender que, nesses casos, assim como a obrigação, que era de meio, passará a ser de resultado. Isso porque o profissional se compromete a um resultado, qual seja, a modificação de traços ou formas previamente estabelecidas entre o médico e seu paciente.

Entretanto, há casos em que uma suposta obrigação de meio se vê, na verdade, diante de uma obrigação de resultado, e vice-versa. Como fixar o tipo de obrigação diante da prestação de serviços do médico? Estabelecer qual o tipo de obrigação do médico é de extrema importância, uma vez que interferirá de forma decisiva na produção de provas durante o processo de indenização por danos materiais e/ou morais.

Associado à responsabilidade civil do médico no exercício de suas atividades, esta a ser determinada pela espécie de obrigação, há o direito do paciente a determinar o que deve ocorrer em seu próprio corpo.

A autodeterminação e a autonomia dão ao indivíduo condições plenas de determinar o que acontecerá a si mesmo, direito esse personalíssimo reconhecido por todo o ordenamento jurídico. Obviamente que haverá sempre possíveis confrontos entre direitos personalíssimos, o que somente poderá ser solucionado após uma profunda análise do caso concreto.

Entretanto, a proposta do presente trabalho é atentar-se à importância do consentimento informado nas relações médico-pacientes como meio de garantir ao paciente o exercício pleno do direito ao próprio corpo, e de garantir ao médico segurança no exercício da medicina, sem a possibilidade de se ver responsabilizado civilmente por supostos danos causados pela falha na prestação de serviços.

2.2 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO

2.2.1 Breve histórico da responsabilidade civil do médico

Até mesmo antes da legalização da profissão médica, já existiam

indivíduos que se dedicavam a tratar de doenças e fraturas dos seres humanos, tais como os curandeiros, feiticeiros, sacerdotes, magos, etc.

A origem da responsabilidade civil do médico confunde-se com a da própria profissão, uma vez que antes mesmo de se legalizar a medicina já haviam indivíduos que "cuidavam" da saúde da população.

Em sua primeira fase, a responsabilidade civil teve como marco histórico a Lei de Talião, incluída na Lei das Doze Tábuas, prevista na tábua VII, lei 11ª1, introduzindo na sociedade a idéia de proporcionalidade. Isso porque, até então existia apenas a vingança privada, segundo a qual a preocupação era apenas punir o suposto agente causador do dano a fim de aliviar de alguma maneira a dor da vítima.

1“Se alguém fere a outrem, que sofra a pena Talião, salvo se houver acordo;”

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Não era diferente com a responsabilidade civil do médico: a ele incidiam as normas, primeiramente, da vingança privada e, depois, da Lei de Talião.

Tamanha sempre foi a importância da profissão médica, e tão peculiar é sua atividade, que a responsabilidade do médico despertou interesse do meio jurídico e surgiu, então, a necessidade de se criar normas especiais à esse profissional da saúde.

Por essa razão, o Código de Hamurabi (1687-1750 a.C.) tipificou sanções específicas aos médicos em seus artigos 218 a 2262.

Extremamente severas, algumas dessas penas eram: amputação das mãos dos cirurgiões cuja intervenção cirúrgica causasse a morte ou a cegueira de uma pessoa livre, ou se o médico causasse a morte de um escravo, estaria obrigado a reparar seu dano, pagando-lhe o valor que lhe era devido.

A responsabilidade civil do médico evoluiu, então, juntamente com o instituto da responsabilidade civil. Os romanos criaram a primeira distinção entre sanção (punição pelo ato ilícito praticado) e reparação do dano (não possui qualquer caráter punitivo, referindo-se apenas a restituição do prejuízo). Neste último a finalidade precípua é a volta ao status quo ante.

2.2.2 O código de defesa do consumidor

No Código de Defesa do Consumidor, o médico possui, a princípio, o

status de profissional liberal. Nessa circunstância, o profissional da medicina deverá exercer suas

atividades como autônomo. Assim, ele estará amparado por todas as proteções legais dirigidas ao profissional liberal. A proteção legal que merece destaque é que a responsabilidade do médico, profissional liberal que é, será subjetiva, conforme o artigo 14, §4º.

A vítima, portanto, deverá comprovar a existência de culpa na prática da atividade médica. Importante é apenas a ocorrência da inversão do ônus da prova, que será discutida separadamente.

Entretanto, se o médico exercer seu trabalho como empregado de hospitais ou qualquer empresa prestadora de serviços de saúde, o quadro é diferenciado.

2 Transcrição do texto original: § 218. Se um médico fez em um awilum (homem livre com todos os direitos de cidadão) uma operação difícil com um escapelo de bronze e causou a morte do awilum ou abriu a nakkaptun de um awilum com um escapelo de bronze e destruiu o olho do awilum, eles cortarão a sua mão. § 219. Se um médico fez uma operação difícil com um escapelo de bronze no escravo de um mskênum e causou-lhe a morte, ele deverá restituir em escravo como o escravo (morto). § 220. Se ele abriu a sua nakkaptum com um escapelo de bronze e destruiu o seu olho, ele pesará a metade de seu preço. § 221. Se um médico restabelecer o osso quebrado de um awilum ou curou um músculo doente, o paciente dará ao médico 5 siclos de prata. § 222. Se foi um muskenum 3 siclos de prata. § 223. Se foi o escravo de um awilum, o dono do escravo dará 2 siclos de prata.

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A responsabilidade civil do médico... // 33

Com relação ao empregador, a responsabilidade será objetiva. É o

que prevê o art. 932, inciso III, c.c. o art. 933, ambos do Código Civil3. Isso não impede que o empregador promova ação regressiva contra

o seu empregado, no caso, o médico. Contudo, este deverá necessariamente comprovar a conduta culposa, vez que a responsabilidade do empregado em relação ao empregador é subjetiva.

Assim, se o paciente acionar a empresa empregadora, visando a reparação do dano, e não houve culpa do médico, a mesma deverá arcar com a indenização individualmente. Basta ao paciente comprovar a conduta do médico, o dano que ele causou e o nexo causal entre ambas.

Todavia, o empregador não conseguirá reaver seus gastos perante o profissional, vez que o mesmo não agiu com culpa.

Nesse momento, é importante esclarecer que o paciente figura, perante do Código de Defesa do Consumidor, como consumidor.

O art. 2º do referido diploma legal conceitua consumidor: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (BRASIL, 1990, web).

O paciente enquadra-se nessa situação, eis que é o destinatário final da prestação de serviços médicos.

Diante disso, não há dúvidas da relação de consumo existente entre as partes, quais sejam, médico e paciente.

2.2.3 ônus da prova

Via de regra, no que concerne a incumbência da prova, o Código de

Processo Civil, em seu artigo 333, estabelece que: Art. 333. O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II – ao réu, quanto a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Desse modo, o paciente lesado é que, a princípio, deverá comprovar

o fato que alega constituir seu direito. Não obstante a isso, o Código de Defesa do Consumidor, prevê em

seu artigo 6º, inciso VIII, a inversão do ônus da prova quando o consumidor for hipossuficiente.

O paciente é possuidor da hipossuficiência técnica, uma vez que é impossível a qualquer paciente que não seja médico ter conhecimentos acerca das providências a serem tomadas de acordo com o quadro clínico apresentado pelo paciente.

3Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.

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34 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

O procedimento a ser seguido pelo profissional da medicina é uma incógnita a todos os cidadãos que não exercem a mesma atividade profissional.

Logo, o Código de Defesa do Consumidor primou por impedir que a reparação de um dano deixe de ocorrer em decorrência da ignorância do consumidor quanto ao procedimento médico que deveria ser adotado pelo prestador de serviços.

Entretanto, é importante ressaltar que a arguida inversão do ônus da prova não se confunde com a ocorrência da responsabilidade objetiva.

Nesta hipótese, o causador do dano deverá repará-lo independentemente da existência da culpa. Basta a prática da conduta lesiva, a caracterização do dano e o nexo causal entre ambas.

Já na inversão do ônus da prova, a culpa deve, de forma imprescindível, ser comprovada. O que ocorre é a necessidade do causador do dano provar que não agiu com negligência, imprudência ou imperícia, ficando a vítima livre dessa incumbência probatória.

Esse é o ensinamento de NETO (2002, p. 149): Não há, assim, qualquer incompatibilidade que, em sendo a responsabilidade subjetiva, seja determinada a inversão do ônus da prova. A conseqüência disso será que, ao invés de o consumidor provar que a culpa pela ocorrência do evento que lhe causou prejuízo foi do fornecedor (profissional liberal), tal ônus passa a ser deste, que, in casu, deverá demonstrar que houve-se com

perícia, prudência ou zelo, não tendo, dessa forma, incidido em nenhuma modalidade de culpa.

Em assim sendo, é clarividente a necessidade da inversão do ônus

da prova quando se tratar de prestação de serviços médicos por profissional liberal.

Sua responsabilidade não deixa de ser subjetiva, via de regra, mas é imprescindível a inversão sobredita para prover a verdadeira justiça.

2.3 O SERVIÇO MÉDICO COMO OBRIGAÇÃO DE MEIO OU DE RESULTADO

2.3.1 Utilização de meios adequados

Na atualidade, é pacifico o entendimento jurídico de que incide sobre

a atividade médica, como regra, a obrigação de meio. O profissional deverá comprometer-se a utilizar todos os meios adequados para que o paciente receba o tratamento ideal à sua enfermidade.

Quase que a totalidade das atividades médicas constituem obrigação de meio. Isso porque essa atividade está sujeita à circunstâncias aleatórias que não permitem ao profissional da saúde comprometer-se a atingir o resultado pretendido por ele, pelo paciente e/ou sua família. É a chamada álea do resultado, vez que as partes estão revestidas pela incerteza de como e quando vai se atingir o objetivo por elas intencionado.

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Pode ser citado como exemplo da álea do resultado as reações do

organismo humano à aplicação de determinada substância anestésica, ou complicações no desenvolvimento de algum pós operatório.

A álea de resultado é um fator decisivo para determinar a obrigação de meio do médico.

NETO (2002, p. 235) sobre o assunto leciona que: Mas, principalmente no Brasil, é inegável que os tribunais sempre trataram os médicos com elevada compreensão. Entende-se que os galeanos, em quase todas as especialidades, assumem essa obrigação de meios (de prudência, diligência ou atividade). Somente se obriga a aportar os meios conducentes à obtenção da cura ou da prestação prometida ao credor (paciente). Admite-se que interferem na atuação do médico fatores aleatórios, que o impedem de assegurar, previamente, o atingimento do objetivo colimado.

E, ainda, Fugie (2002, p. 89), ao referir-se à álea do resultado,

discorre: Dessa forma, se certos elementos fogem ao controle do devedor, como, por exemplo, as reações do organismo humano na obrigação de cuidados médicos, a execução da prestação é aleatória e é razoável que o devedor não tenha assumido um resultado que seja aleatório. O resultado é desejado, mas não constitui o objeto da prestação. Considera-se tal obrigação de meio.

A teoria do risco do desenvolvimento pode, inclusive, ser

entendida como uma álea do resultado, vez que este risco é uma das consequências naturais do avanço tecnológico.

Questão controversas a esse respeito é se o profissional seria responsável por defeitos na prestação de serviços que, no momento em que foram efetivados, não poderiam ser detectados pelo estágio da ciência.

A interpretação mais correta seria entender o risco do desenvolvimento como uma excludente da responsabilidade civil. Afinal, o profissional executou, ao tempo da prestação do serviço médico, todos os procedimentos disponibilizados pela ciência.

O importante, em casos como tais, é sempre informar ao paciente e a família quais as opções de tratamento médico mais avançados oferecidos pela ciência médica.

A prestação de serviços médicos, materiais e/ou intelectuais, constitui uma obrigação de fazer realizada em três etapas: diagnóstico, prognóstico e tratamento.

Pelo diagnóstico o médico, através da verificação de sintomas, sinais e/ou exames, determinará a doença que atinge o paciente.

Posteriormente, o profissional, com base no diagnóstico, irá prever a evolução da doença. Esse é o prognóstico.

Por fim, disponibilizará o tratamento que será poderá ser utilizado para curar, aliviar ou prevenir aquele mal diagnosticado.

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36 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Nota-se que dentre as obrigações do médico não está prevista a obrigação do médico de curar. O compromisso do profissional é de empregar todos os seus esforços e todo seu preparo e capacidade intelectuais e materiais – local, instrumentos e medicamentos adequados – para que o paciente atinja a cura ou o alívio.

2.3.2 hipóteses de cabimento nas especialidades médicas

Via de regra, como exposto, a obrigação do médico será de meio.

Entretanto, apenas para melhor elucidação do tema em análise, faz-se interessante analisar algumas especialidades médicas nas quais há a possibilidade de se constatar a incidência da obrigação de resultado. É o que se passa a analisar.

2.3.2.1 Angiologia e Cirurgia Vascular

Trata-se de uma especialidade médica voltada ao tratamento de

doenças vasculares. Varizes são veias dilatadas, tortuosas e alongadas, de localização subcutânea. São encontradas, por exemplo, nos membros inferiores, veias pélvicas e esôfago.

Sua retirada é considerada, a princípio, um procedimento estético, vez que visa melhorar a aparência do paciente. É o que ocorre com paciente que possuem veias dilatas nos membros inferiores, o que dá uma péssima aparência sob o ponto de vista estético.

Todavia, há casos em que as varizes causam sintomas extremamente inconvenientes, tais como dor, cansaço, sensação de peso e desconforto. Além disso, não estão livres de complicações como odor, prurido, formigamento, inchaço e cãibras.

Assim, o tratamento das varizes não é sempre estético. Este visa também a cura e a prevenção de maiores problemas.

Em suma, quando o paciente é submetido a um tratamento cirúrgico, a atividade médica será considerada obrigação de meio, uma vez que há possibilidade de ocorrerem complicações durante o procedimento. É o que ocorre no caso de aneurisma arterial, estenose de carótida ou grangrena.

2.3.2.2 Anestesiologia

A anestesiologia refere-se à especialidade médica voltada à indução

de pacientes a um estágio de letargia, ou a isentá-lo de sensações no local em que ocorrerá o procedimento invasivo, ao passo que normalmente a obrigação do médico anestesista será de resultado, afinal a sua obrigação será sempre de evitar que o paciente sinta dores.

No entanto, há circunstâncias em que o anestesista terá a obrigação de meio. Isso quando é impossível garantir os efeitos do anestésico aplicado. É o que ocorre, por exemplo, quando o paciente possui um afastamento ou desvio na medula óssea e faz-se necessária a aplicação de anestesia geral.

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A responsabilidade civil do médico... // 37

A natureza da obrigação médica é alterada em decorrência da

situação peculiar do paciente. 2.3.2.3 Cirurgias Ortopédicas

A submissão do paciente a tratamento cirúrgico a doenças ou

deficiências de origem óssea enseja em uma obrigação de meio. Principalmente em casos de grandes traumas, como ocorre em acidentes automobilísticos e em grandes quedas, o médico irá comprometer-se apenas em utilizar-se dos meios adequados para curar ou prevenir maiores complicações.

Mais uma vez, faz-se importante ressaltar a possibilidade da obrigação médica ser de resultado, se a finalidade do procedimento for estética.

2.3.2.4 Cirurgia Plástica Reparadora

A cirurgia plástica tornou-se popular nas últimas décadas. A

facilidade para submeter-se a tratamentos estéticos fez com que aumentasse consideravelmente o número de procedimentos dessa natureza e, consequentemente, o número de ações judiciais em caso de erros médicos.

O fator decisivo para essa realidade é justamente o tipo de obrigação nessa área médica: a obrigação de resultado.

Entretanto, há casos em que a cirurgia plástica não visa apenas a beleza e a melhor aparência do paciente.

Como é comum em casos de acidentes, principalmente automobilísticos, ou outros em que envolvam substâncias corrosivas (Por exemplo: fogo, soda caustica, etc.), a cirurgia plástica visa tentar diminuir os danos causados ao paciente.

Assim, o médico irá comprometer-se a utilizar de todos os meios adequados para corrigir as deficiências físicas do paciente, atingindo o resultado máximo que a Ciência Médica permitir. 2.3.2.5 Radiologia

Via de regra a prestação de serviços ligados à radiologia constituem

obrigação de resultado. Afinal, a finalidade desse serviço é a produção de imagens do corpo humano. Mas, como em todas as especialidades medidas citadas, também há exceção.

É possível que a radiologia constitua obrigação de meio se essa atividade puder incorrer em riscos para o paciente. É o que ocorre, por exemplo, em caso de pacientes super obesos, gestantes ou lactantes. Se imprescindível a prestação desse tipo de serviço médico com absoluta certeza, a obrigação do profissional ser de meio.

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38 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

2.3.2.6 Patologia O exercício da medicina patológica também, na maior parte dos

casos, será obrigação de resultado, posto que culmina na constatação de resultado proveniente da coleta de material biológico do paciente. No entanto, o médico responsável pela laboração do exame depende da coleta correta de outro profissional para atingir o resultado pretendido, de tal sorte que poderá, conforme análise do caso concreto, caracterizar uma obrigação de meio.

2.4 O CONSENTIMENTO INFORMADO

O desenvolvimento da doutrina do consentimento informado ocorreu

nos Estados Unidos da América, a partir do caso Schloendorf c/ Society of New York Hospital, de 1914, onde o magistrado declarou que a pessoa, capaz civilmente, deve saber e determinar o que acontecerá com seu corpo.

Este instrumento tem como finalidade precípua cumprir um dos deveres mais importantes do médico, bem como um dos direitos de maior relevância do paciente: o direito à informação.

A inobservância desse direito é a grande causador das ações judiciais movidas em face de médicos e hospitais.

Sobre o assunto, é interessante acrescentar a importância da relação médico-paciente.

O paciente, por geralmente encontrar-se em uma situação extremamente frágil, sente a necessidade de confiar em seu médico, em seu diagnóstico e tratamento.

Quando, de alguma forma, o médico não corresponde a essa expectativa natural do paciente e/ou de seus familiares, surge um impasse entre ambos. Os sujeitos “passivos” dessa relação, após o resultado sinistro, com a morte ou sérias sequelas do paciente, atribuem a responsabilidade do ocorrido ao médico e/ou ao hospital onde prestou os serviços.

Por outro lado, por pior que seja o desenrolar dos fatos, se o médico fornece ao paciente e seus familiares todas as informações necessárias, o tratamento aplicado passo a passo, bem como a possibilidade de haver maiores complicações, dificilmente ensejará em alguma ação de responsabilidade civil.

Entretanto, muitos profissionais entendem que devem desenvolver suas atividades sem prestar informações ao paciente e seus familiares. Se, posteriormente, ocorre algum problema natural, que todo doente naquela situação está sujeito, por mais simples que possa parecer, com certeza irá culminar em processos judiciários.

O consentimento informado vem sendo utilizado no Brasil com muita frequência principalmente com o objetivo de avisar a todos os envolvidos da exata situação em que se encontra o paciente. Com isso, o médico pretende eximir-se da obrigação de resultado.

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A responsabilidade civil do médico... // 39

Toda intervenção cirúrgica, por exemplo, possui uma margem de

risco. A decisão de assumir estes riscos deve ser do paciente, se capaz. Se incapaz, a escolha caberá a seus responsáveis legais.

Dessa forma, o consentimento informado prima por esclarecer o paciente desses riscos, e livrar-se de futuras ações judiciais.

Uma vez assinado esse consentimento, o paciente firmou com seu médico um compromisso: aceitar todo o tratamento médico recomendado de acordo com seu diagnóstico, e o médico irá proporcionar o seu regular desenvolvimento dentro das limitações da Ciência Médica contemporânea.

Alguns médicos, principalmente os cirurgiões plásticos, justamente com o objetivo de excluir a obrigação de resultado de sua atividade, além da assinatura do consentimento informado têm se utilizado de filmagens das consultas. Essas filmagens mostram claramente que o médico informou ao paciente todos os riscos, vantagens e desvantagens da cirurgia a que seria submetido.

O termo de consentimento informado pode ser realizado, basicamente, de duas formas: oral e escrita. A oral é a mais comum. Todavia, dificulta sobremaneira, se não tornar impossível, a comprovação de todas as informação prestadas ao paciente em uma consulta.

Assim, para que o termo de consentimento informado atinja sua finalidade e torne-se um forte elemento probatório, deverá ser escrito. Não se faz, a princípio, necessária a forma pública. Ou seja, são prescindíveis requisitos como reconhecimento de firma das assinaturas, ou o registro do consentimento como instrumento público ou particular.

Basta um documento particular produzido em algumas vias e assinado pelas partes: paciente, familiares e/ou responsável legal e médico.

Não obstante isto, é preciso atentar para a possibilidade do consentimento informado ter seu caráter probatório diminuído ou anulado.

A assinatura do termo de consentimento informado, por vezes ou sempre, irá condicionar a prestação de serviços médicos.

Diante disso, conclui-se pela possibilidade de existir coação psicológica em relação ao paciente. Afinal, se o tratamento não tiver como objetivo apenas a estética, o paciente desejará incessantemente a cura. Poderá, nessas circunstâncias, se submeter a qualquer tipo de cláusula contratual, sem preocupar-se com as possíveis consequências.

Este comportamento é o reflexo da busca constante do homem ao bem estar. Em momento algum o ser humano deseja sentir dores ou sofrer restrições.

Em troca de sua saúde assinará qualquer contrato, com quaisquer informações sem atentar para essa circunstância.

Nesse sentido já houve parecer do Conselho Federal de Medicina nos autos do processo-consulta CFM n. 4.678/2000:

PC/CFM/Nº 30/2000 INTERESSADO: Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e

Obstetrícia ASSUNTO: Consentimentos pós-informados

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RELATOR: Cons. Evilázio Teubner Ferreira EMENTA: O CFM mantém uma postura respeitosa e compreensiva com os

médicos sociedades de especialidades que adotem o consentimento pós-informado, mas não recomenda o seu uso como norma.

Para melhor avaliação, transcrever-se-á integralmente o texto das fls.

87 e 88, de autoria do dr. Hugo Miyahira, presidente da Comissão de Defesa Profissional da FEBRASGO e presidente da SGORJ, que contém os principais argumentos principais que embasam o projeto encaminhado ao CFM:

CONSENTIMENTO PÓS-INFORMADO Hugo Miyahira

Presidente da Comissão de Defesa Profissional da FEBRASGO Presidente da SGORJ (...) No bojo desta situação surgiu o ‘consentimento informado’, que prefiro nomear ‘consentimento pós-informado’. Um documento que, nas cidades do Primeiro Mundo se imiscuiu na relação médico-paciente e que agora nos chega para, vez por outra, em pendengas judiciais nos auxiliar ruim e bom. Ruim quando soa como ameaça, coação, manipulação e distorção das informações. Ruim também quando omite (Lembro-me de um dos sermões do Padre Vieira: ‘A omissão é o pecado que se faz não fazendo’).”

Desse modo, não é novidade no meio da Ciência Médica a

possibilidade do entendimento acerca da invalidade probatória do termo de consentimento informado.

2.5 DO DIREITO AO PRÓPRIO CORPO

Não obstante as inúmeras polêmicas sobre o tema proposto, tais

como as cirurgias de mudança de sexo, as tatuagens, os piercings e o body modification4, se são permitidos ou não em face do impedimento previsto no artigo 13 do Código Civil5, este trabalho se restringirá à recusa do tratamento médico e a responsabilidade civil do médico.

Uma vez clara a responsabilidade civil do médico, é necessário para sua segurança, respeitar o direito do paciente de decidir plenamente o que acontecerá consigo.

Tanto o direito do paciente quanto o dever do médico estão previstos em inúmeras disposições constitucionais e legislativas.

4 O body modification é toda e qualquer alteração realizada no corpo, sem razão médica, motivadas por razões estéticas, culturais ou espirituais, sendo ou não reversível. 5 Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.

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A responsabilidade civil do médico... // 41

O paciente possui plena e absoluta condição de optar pelo tratamento

oferecido pelo profissional da saúde ou não. Essa possibilidade de escolha está fundamentada em um dos direitos da personalidade do indivíduo humano: o direito ao próprio corpo.

Este direito é o que justifica a necessidade do consentimento informado ao tratamento médico e/ou intervenção cirúrgica oferecido pelo médico como solução para determinada enfermidade.

O direito ao próprio corpo está previsto na Constituição Federal no artigo 5º, caput, incisos III, XLVII e XLIX6, e no artigo 199, § 4º7. No Código Civil encontra-se disposto nos artigos 13 a 158.

Apesar destas disposições legais específicas, Roxana Cardoso Brasileiro Borges leciona que este direito se sustenta na combinação de três artigos da Constituição Federal: na proteção à dignidade humana (art. 1º, III), na inviolabilidade do direito à vida e do direito à liberdade (art. 5º, caput) e na disponibilidade de partes do corpo humano (art. 199, § 4º)9.

Assim, não há dúvidas quanto ao direito do indivíduo humano sobre o próprio corpo.

Nesse contexto é interessante tratar dos princípios da alteridade e da autonomia importados da bioética.

O princípio da alteridade consiste no respeito às diferenças e, consequentemente, às decisões de cada um, enquanto que o princípio da autonomia trata justamente do direito a decidir sobre seu próprio corpo e no respeito à liberdade do indivíduo humano.

6 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis; XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; 7 Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização. 8 Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo. Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. 9 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de personalidade e autonomia privada. 2ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007.

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Em ambos os princípios nota-se a busca pelo respeito a cada um. Independentemente do que se pensa e se espera dos outros há de se respeitar sempre a autonomia do indivíduo humano. E nisso também se fundamenta o direito do paciente de recusar tratamento médico.

Portanto, o médico está OBRIGADO a sempre obter o consentimento do paciente ao tratamento médico proposto, sob pena de absoluto desrespeito à sua dignidade.

Essa obrigação está prevista no artigo 22 do Código de Ética Médica, que prescreve:

É vedado ao médico:

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

No entanto, toda regra possui exceções e, nesse caso, não seria diferente.

O médico possui responsabilidade ética e penal de sempre prestar auxílio médico a quem dele necessite.

No Código Penal o artigo 135 pune aquele que deixa de prestar socorro a quem dele necessitar10. Nesse sentido, a obrigação do médico é ainda maior, já que possui plena capacidade técnica para prestar os primeiros socorros.

No Código de Ética Médica o inciso VI, do Capítulo I, prevê que: VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.

Assim, em caso de emergência médica, se o paciente estiver

inconsciente ou não puder manifestar sua vontade, o médico terá que prestar assistência independentemente do consentimento do paciente. Em casos como tais, o direito à vida obviamente se sobressai ao direito ao próprio corpo.

Situação polêmica é a recusa à transfusão de sangue em pacientes adeptos da religião denominada “Testemunhas de Jeová”. Há, nesse contexto, conflito entre três direitos da personalidade: direito à vida, direito ao próprio corpo e direito à liberdade religiosa.

10 Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.

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Se houver perigo de morte e o paciente, como dito, estiver impedido

por qualquer motivo de manifestar sua vontade, é costumeiro que os médicos realizem a transfusão de sangue com o objetivo de salvar sua vida. Caso o paciente seja menor de idade, e a negativa for de seus representantes legais, esta poderá facilmente ser substituída por ordem judicial. Sobre o assunto, é importante destacar o entendimento recente do Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.391.469 - RS (2013/0202052-0) RELATOR: MINISTRO HERMAN BENJAMIN; RECORRENTE: UNIÃO; RECORRIDO: A F S M (MENOR) REPR. POR: A L S M; ADVOGADO: ALEXANDRE MARIN RAGAGNIN; INTERES.: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA REPR. POR: PROCURADORIA-GERAL FEDERAL DECISÃO. Trata-se de Recurso Especial interposto, com fundamento no art. 105, III, a e c, da Constituição da República, contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região assim ementado (fl. 908, e-STJ): DIREITO À VIDA. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. DENUNCIAÇÃO DA LIDE INDEFERIDA. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA E DIREITO À VIDA. IMPOSSIBILIDADE DE RECUSA DE TRATAMENTO MÉDICO QUANDO HÁ RISCO DE VIDA DE MENOR. VONTADE DOS PAIS SUBSTITUÍDA PELA MANIFESTAÇÃO JUDICIAL.

(...) A prova produzida demonstrou que a medicação cujo fornecimento foi requerido não constitui o meio mais eficaz da proteção do direito à vida da requerida, menor hoje constando com dez anos de idade. Conflito no caso concreto dois princípios fundamentais consagrados em nosso ordenamento jurídico-constitucional: de um lado o direito à vida e de outro, a liberdade de crença religiosa. A liberdade de crença abrange não apenas a liberdade de cultos, mas também a possibilidade de o indivíduo orientar-se segundo posições religiosas estabelecidas. No caso concreto, a menor autora não detém capacidade civil para expressar sua vontade. A menor não possui consciência suficiente das implicações e da gravidade da situação para decidir conforme sua vontade. Esta é substituída pela de seus pais que recusam o tratamento consistente em transfusões de sangue. Os pais podem ter sua vontade substituída em prol de interesses maiores, principalmente em se tratando do próprio direito à vida. A restrição à

liberdade de crença religiosa encontra amparo no princípio da proporcionalidade, porquanto ela é adequada à preservar à saúde da autora: é necessária porque em face do risco de vida a transfusão de sangue torna-se exigível e, por fim ponderando-se entre vida e liberdade de crença, pesa mais o direito à vida, principalmente em se tratando não da vida de filha menor impúbere. Em conseqüência, somente se admite a prescrição de medicamentos alternativos enquanto não houver urgência ou real perigo de morte. Logo, tendo em vista o pedido formulado na inicial, limitado ao fornecimento de medicamentos, e o princípio da congruência, deve a ação ser julgada improcedente. Contudo, ressalva-se o ponto de vista ora exposto, no que tange ao direito à vida da menor. Contra essa decisão, opuseram-se Embargos Infringentes, os quais foram providos pelo Tribunal de origem, cuja ementa é a seguinte (fl. 975, e-STJ): EMBARGOS INFRINGENTES. ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PARA TRATAMENTO ONCOLÓGICO. LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA. MEDICAMENTO DE EFICÁCIA NÃO-COMPROVADA. SUBSTITUIÇÃO DE TRANSFUSÃO SANGÜINEA. 1. Em razão da demora da medicação

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44 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

requerida em surtir efeito como alternativa à transfusão de sangue, não se inibe o risco na fase aguda de comprometimento medular, nem se afasta a necessidade de transfusão sangüínea, não sendo recomendável a utilização de medicamento do qual a eficácia não está comprovada, adotada somente como terapêutica alternativa, quando há alguma restrição clínica ao uso de hemoderivados. 2. Não cabe ao Poder Judiciário, no sistema jurídico brasileiro, autorizar ou ordenar tratamentos médico-cirúrgicos e/ou hospitalares, salvo casos excepcionalíssimos e quando envolvidos os interesses de menores. 3. A pretensão merece amparo no que pertine ao fornecimento do medicamento Eritropoetina, o qual, em que pese não afaste a necessidade de transfusão de sangue na fase aguda da anemia, pode minimizar a necessidade do tratamento com hemoderivados, sendo aplicável como terapêutica coadjuvante e alternativa, com eficácia comprovada nesses casos. (...) Diante do exposto, nos termos do art. 557, caput, do CPC, nego seguimento ao Recurso Especial. Publique-se. Intimem-se. Brasília (DF), 05 de novembro de 2014. MINISTRO HERMAN BENJAMIN Relator. (STJ - REsp 1391469 RS 2013/0202052-0, Relator(a) Ministro HERMAN BENJAMIN, Publicação: DJ 28/11/2014) - original sem grifo.

Sem qualquer possibilidade de solução pacífica dessa importante

controvérsia, é indubitável a necessidade do consentimento informado como respeito ao direito do paciente ao próprio corpo e, também, para segurança do médico, que, como profissional que é, poderá ser responsabilizado por supostos erros ocorridos no exercício de suas atribuições.

2.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reparação de danos no campo da medicina merece atenção

especial do jurista, uma vez que esta reparação pode até mesmo ser impossível. Caso o dano seja irreparável, caberá apenas uma compensação pelos transtornos causados.

A relação médico-paciente envolve vários direitos de ambos, mas àquele que envolve a aceitação ou não do tratamento médico pelo paciente diz respeito ao direito da personalidade referente à disponibilidade do próprio corpo.

Inobstante o médico ser titular da obrigação de prestar assistência ao que dele necessita, há o direito do paciente sobre o próprio corpo e, portanto, com fundamento legal na dignidade da pessoa humana, na inviolabilidade do direito à vida e à liberdade, e nos princípios da alteridade e da autonomia, provenientes da bioética, poderá aceitar ou recusar qualquer tratamento médico e/ou cirúrgico.

Por óbvio que há entendimento recente do Superior Tribunal de Justiça que exclui essa possibilidade se a escolha for dos responsáveis legais sobre a vida de menor de idade. Afinal, o direito ao próprio corpo é decorrente da personalidade do incapaz, e não de seus responsáveis. Nesse caso, o médico poderá, mediante autorização judicial, submeter o incapaz ao tratamento que entender mais eficaz para a enfermidade diagnosticada.

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A responsabilidade civil do médico... // 45

O direito ao próprio corpo, como dito, está repleto de polêmicas.

Entretanto, na relação médico-paciente, o consentimento informado é um instrumento eficaz para evitar responsabilização civil do profissional da saúde por suposto desrespeito ao direito à informação e ao próprio corpo do paciente.

2.7 REFERÊNCIAS

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= III =

COLISÃO ENTRE A INVIOLABILIDADE DA VIDA PRIVADA E O DIREITO À INFORMAÇÃO: UM CRÍTICA À EXPOSIÇÃO MIDIÁTICA DA

CRIMINALIDADE E SEUS AGENTES

Perla Savana Daniel* 3.1 INTRODUÇÃO

Depois de muita luta durante séculos, o ser humano pode afirmar que

vive numa era de garantias fundamentais, pelo menos quanto à garantia expressa, ainda que na prática, sua efetividade não seja tão simples e justa.

Todavia, discute-se muito ainda acerca da necessidade de aproximar o cidadão da Constituição e garantir a plena satisfação de todos os seus direitos ali expressos.

É certo, porém, que o princípio fundamentador de todo e qualquer direito/garantia do ser humano é o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, e dentro do sistema jurídico mundial é o foco de trabalho pela verdadeira justiça. Notório, também, que os direitos da personalidade são aqueles essenciais à pessoa humana, que visam sempre resguardar o princípio supracitado, sendo que os mesmos só irão desaparecer com a morte do indivíduo.

Interessante pontuar que tais direitos surgiram da necessidade de proteção não só da dignidade da pessoa humana como da igualdade e solidariedade entre todos, e não apenas contra atuação do Estado como, principalmente, do particular.

Dentro destes, o presente trabalho busca o foco nos direitos à integridade moral do indivíduo, ou seja, a preservação do seu direito à imagem, à honra, etc., observando-se ainda, que com o desrespeito a estes pode chegar-se a problemas que invadem até mesmo os direitos à integridade física.

A problemática ora apresentada está na colisão do direito à inviolabilidade da privacidade do indivíduo, como sendo um direito particular, frente ao direito de informação e livre manifestação do pensamento, como sendo um direito público. Ainda, a estipulação de que a luta pela proteção quanto à privacidade da pessoa do indiciado, acusado e condenado é uma forma de censura à liberdade de informação e expressão.

* Advogada graduada pela Faculdade de Direito de Jaú (FIJ), com especialização em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Superior de Advocacia de São Paulo (ESA-SP). Atualmente é mestranda em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Professora de Direito Penal I e II na Faculdade de Direito de Jaú. E-mail: [email protected].

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Já dizia algum sábio que, para se ter a solução é preciso descobrir o problema, e este é um ponto delicado do presente trabalho.

Delimitado os conceitos e indicado o problema, este trabalho fixa-se na busca por uma solução plausível e mais perto possível de ser justa. Esta, diante do envolvimento de garantias tão especiais, não será encontrada facilmente, não algo com efetividade plena aos casos concretos. Afinal, aqui mora a genealogia do direito: modificação constante diante da sociedade em pleno desenvolvimento.

3.2 DIREITOS DA PERSONALIDADE: GARANTIA À INVIOLABILIDADE DA VIDA PRIVADA

Atrocidades inesquecíveis marcaram a história da humanidade

quanto à valoração do indivíduo como um todo e merecedor de direitos a serem respeitados por todos e pelo Estado. A Constituição Federal Brasileira é um exemplo claro e sólido do basta ao tratamento desigual e irracional ao ser humano que os separavam por classes inapropriadas, idealizando pessoas como coisas ou animais, sem direitos, sem voz, sem controle da própria vida, muitas vezes.

Delimitando o assunto ao cenário brasileiro, a Constituição Federal de 1988 trouxe inovações de extrema importância, comparada às suas versões anteriores, mudanças mais que significativas e sobretudo quanto aos direitos fundamentais de cada ser humano. Pode-se concluir que, com ela houve a redemocratização brasileira.

Nas palavras de Sarlet (2012, p. 65), a Carta Magna foi uma marca do pluralismo reunindo uma grande gama de direitos sociais e principalmente direitos de liberdade, direitos políticos, que até então eram suprimidos ou limitados.

A maior vitória foi ser a primeira constituição a considerar e valorizar o respeito à dignidade da pessoa humana e ter isso como fundamento do Estado Democrático de Direito. Ainda, fincou os objetivos da República Federativa do Brasil na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sendo que a partir desses valores, é que todo e qualquer operador do direito deve desenvolver seu trabalho e estudos.

Considerações quanto aos avanços constitucionais à parte, e entrando numa definição de personalidade, tem-se que esta é o primeiro e maior bem que toda e qualquer pessoa adquire com o nascimento, e é através desta que advém outros bens e direitos também. Aqui tem-se os Direitos da Personalidade que revertem em uma tutela da vida, integridade física, psíquica, emocional, direito à intimidade, à honra, à imagem, entre outros.

Os direitos inclusos à personalidade refletem seu real valor ao analisar-se que todos são absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis, inexpropriáveis e extrapatrimoniais.

Delimitando os vários direitos ligados à personalidade, o direito à inviolabilidade da vida privada é o foco do presente, passando-se a trabalhar

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com os conceitos de privacidade e intimidade, que ligar-se-ão mais tarde à imagem de pessoas envolvidas com o crime e sua utilização pela mídia.

Samuel D. Warren e Louis Brandeis, juristas americanos, publicaram em 1890, na “Revista de Direito de Harvard”, um artigo intitulado “The Right of Privacy” (DALLARI, 2001). Foi desse estudo que passou a ser reconhecido os termos “privacidade” e “intimidade”.

Desde então, e cada dia com mais força, o direito à intimidade tem sido discutido, analisado e priorizado, diante da sua real e completa importância.

Tão importante que vem devidamente expresso no artigo 12 da Declaração dos Direitos Humanos de 1948:

Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência nem a ataques à sua honra e à sua reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. Ainda, em 1969, a Convenção Americana dos Direitos do Homem

(Pacto de San Jose da Costa Rica) também ofereceu lugar à esta garantia em comento no artigo 11.

Tem-se que, mesmo a partir somente dessas duas ilustrações, a importância do direito à intimidade.

Para a maioria dos estudiosos e operadores do direito, os conceitos de intimidade e privacidade se confundem em um único. Porém, a palavra “privacidade” deriva do latim privat que significa vida privada, próprio de alguém e só dele. E da concepção de Manuel Pinto Teixeira e Victor Mendes (apud SALOMÃO, 2004) tem-se que:

A intimidade denotaria o nível de espaço fechado da própria pessoa, enquanto a privacidade diria respeito aos atos da vida pessoal não secreta, que devem ser subtraídos da curiosidade pública. Com esse parâmetro, pode-se delimitar uma diferenciação como se

intimidade e privacidade fossem duas esferas onde a intimidade estaria dentro da privacidade. Aquela dizendo respeito ao mais íntimo da pessoa, algo que só o indivíduo realmente sente e conhece, diferentemente da privacidade que acaba por integrar uma esfera onde a família e os amigos podem adentrar mas que ainda constitui algo de propriedade tão somente do indivíduo.

Ada Pellegrini Grinover (apud SALOMÃO, p. 02) explicita seu entendimento sobre o direito à imagem:

[...] é que o direito à intimidade integra a categoria dos direitos da personalidade e suas manifestações são múltiplas, o direito à imagem, a defesa do nome, a tutela da obra intelectual, a inviolabilidade do domicílio, o direito ao segredo são apenas algumas de suas expressões, não se tratando

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de um rol taxativo, uma vez que a intimidade poderá ser estendida a novos atributos da personalidade.

Como mero conteúdo informativo, porém, algo que acrescenta muito

ao conceito do direito à intimidade, Paulo José da Costa Junior publicou livro cujo título é o direito “[...] de estar só: tutela penal da intimidade”. Este consegue expressar a verdadeira dimensão do que é a intimidade e o que nela está contida.

Todo ser humano tem direito à sua privacidade. Por esta entendendo a intimidade (sentimentos, pensamentos, dores, medos, etc.) e a vida particular que envolve a família, os amigos, o trabalho, convicções políticas e religiosas. Observando a delimitação do direito em tela tem-se que ele está intimamente ligado a outros direitos também protegidos expressamente pela Constituição Federal.

3.3 DIREITO À INFORMAÇÃO

Todo ser humano só se conhece realmente e passa a exercer alguns

direitos intrínsecos à sua personalidade, na verdade à sua pessoalidade, quando aprende a comunicar-se.

O dom divino da vida está em receber informação e conseguir passar informações. É, na verdade, o que todo ser humano necessita e espera: ser ouvido, observado, notado e, em contrapartida, ouvir, observar e notar outras pessoas. Algo inerente à espécie humana.

Informar nasce do latim informare que significa “dar conhecimento”. Daí extraímos o seguinte conceito: o que existe consubstanciado na Carta Magna é o direito de Comunicação Social que se subdivide em procurar e receber informações de toda e qualquer espécie (considera-se o direito à informação) e na liberdade de expressão de pensamento (implica a liberdade de expressão).

Melhor explicação nas palavras de Sérgio Ricardo de Souza (2013, p. 12-13):

A informação é uma necessidade humana e, sob esse prisma, a liberdade de informação jornalística, na contemporaneidade, não se limita à liberdade de externar o pensamento, consolidando-se como direito fundamental de participação da sociedade e travestindo-se no direito de informar (veiculando as informações livremente), no direito de ser informado (receber livremente informações) e no de se informar (buscar informações do seu interesse), constituindo-se como base para a democracia [...] [...] Eis aí a importância da liberdade de informação jornalística, como revelação do direito de liberdade a que o povo receba informações acerca da atuação de seus representantes e de outros membros da sociedade, que através de suas ações e omissões possam influir direta ou indiretamente no modo de vida de cada um, possibilitando, assim, que através da correta informação o ser humano alcance um nível satisfatório de conhecimento das coisas e fatos que o cercam enquanto membro da comunidade.

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Entretanto, esse direito tem uma influência ampla e ligeira sobre o ser

humano e acaba por influenciar no comportamento e até mesmo no discernimento e escolha das pessoas.

Acontece que no uso e gozo do direito à informação e à liberdade de expressão profissionais acabam por passar informações incorretas, muitas vezes inverídicas, e totalmente parciais. Aqui nasce uma guerra onde muitos podem figurar em ambos os pólos.

Sérgio Gardenghi Suiama, no artigo “A voz do dono e o dono da voz”, trabalhando sobre o tema, cita, pertinentemente, palavras de Kant:

No conhecido artigo de Kant sobre o movimento, a liberdade de fazer uso público da própria razão perante a totalidade do público do mundo de leitores (“a mais inofensiva das liberdades”, acrescenta o grande filósofo de Königsberg) é condição para que o homem saia de seu estado de minoridade, caracterizado pela incapacidade de servir-se do próprio entendimento, sem a direção de um outro (SUIAMA, web).

É certa que a necessidade de estar bem informado é uma questão de

sobrevivência não só do cidadão como da sociedade como um todo. Só há democracia a partir da existência de todas as liberdades

previstas na Carta Magna, entre elas da liberdade de informação e de expressão. Isso porque, além de conhecimento através de sua atuação há uma transmissão de segurança à sociedade que tem na comunicação, como um todo, um órgão fiscalizador do Estado e dos representantes eleitos. Portanto, conclui-se que sua importância é dupla e essencial à manutenção de todo e qualquer Estado livre.

Todavia, tem-se observado com o desenvolvimento acelerado da tecnologia midiática uma utilização desvirtuada desta sob a argumentação única do exercício do direito à informação, com a alegação de que toda e qualquer forma de contê-la resultaria em censura.

Ocorre que, essa utilização desmedida com o intuito divergente de fornecer a informação correta, verídica, séria, implica na supressão de outros direitos e garantias individuais. Ou seja, há uma invasão de uma garantia constitucional de âmbito público prevalecendo sobre garantias e direitos individuais.

Mas, analisando o contexto, extrai-se que, tanto o direito à informação como os direitos da personalidade, em especial quando da violação da vida privada, são públicos, afinal, este último protege individualmente uma sociedade por completa, onde todos formam a sociedade e todos devem ter respeitadas suas garantias individuais.

Ainda há de considerar-se que, diante de uma comunidade consumista em todas as áreas possíveis, não deixaria a mídia de explorar essa possibilidade. No entanto, acaba por aguçar outros aspectos alheios ao consumismo material, tornando-se muitas vezes uma fomentadora do ódio, da vingança, utilizando-se do princípio de fornecer informação, porém, sobrecarrega aquela com sensacionalismo, desenvolvendo nos cidadãos

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uma sensação de insegurança total, o que nem sempre condiz com a realidade vivida.

Aqui nasce a necessidade da discussão do limite da liberdade de informação, como um todo, quando sua utilização sensacionalista invade o direito à privacidade da vida de cidadãos.

3.4 EXPOSIÇÃO MIDIÁTICA DA CRIMINALIDADE E SEUS AGENTES

A existência do Estado corresponde à tentativa de se efetivar a paz

social dentro do âmbito criminal, da aplicação de uma lei que prevê uma sanção àqueles que praticam condutas incriminadoras, proibidas pela norma.

No entanto, até mesmo o Estado tem suas limitações impostas pela Constituição Federal no intuito de não exercer o jus puniendi de forma errada ou exagerada, principalmente abrindo possibilidade a tribunais de exceção.

Adentrando à penalização e considerando toda a história sobre o assunto, correto é que a pena possui um caráter retributivo, mas educativo ao mesmo tempo, na busca incansável da ressocialização do condenado, que antes de tudo, continua sendo um ser humano cuja dignidade humana deve ser respeitada.

O artigo 5º da Constituição Federal é repleto de garantias àquele que pratica uma conduta prevista como criminosa, na tentativa de restringir toda e qualquer atuação incorreta sobre o mesmo, seja pelo Estado sob a forma do Judiciário, do Legislativo, ou mesmo pela própria sociedade, proibindo-se a justiça pelas próprias mãos.

Contudo, a sociedade hoje possui um quarto poder que atua paralelamente ao Executivo, Legislativo e Judiciário: a Mídia.

Incontestável a luta incansável pelo fim da censura durante décadas, séculos e nos dias atuais temos uma livre manifestação de pensamentos, opiniões e exposição de ideias e notícias. No entanto, a mídia tem exercido, em vários momentos, um trabalho não de enriquecimento cultural ou educacional como deveria.

A mídia, principalmente a telejornalística, tem atuado de forma a utilizar do fascínio pelo crime (morte, estupro, sangue) de todo ser humano visando uma audiência massificada.

Nesse diapasão, surge uma mídia justiceira, popularizando algo extremamente errado: o crime e a lei como vilões que devem ser banidos sob a forma de exceção.

Nas palavras de Miguel Reale citado por VIEIRA (2003, p. 210) a imprensa investigativa é o “Ministério Público da sociedade civil”, mas ressalta que aquela deve ter “os mesmos critérios de prudência e comedimento conaturais àquela instituição, para a salvaguarda dos valores éticos da pessoa humana, que não pode ser acusada com bases em indícios que só possam dar lugar a meras conjecturas”. Atuar como fiscalizadora e defensora de situações que causam comoção tudo bem, não pode a mídia, utilizando-se de sua função, e ao mesmo tempo do trunfo de ser formadora de opinião pública, esquecer-se de que o crime deve ser analisado e

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penalizado pelo Estado, através de seus competentes funcionários que irão aplicar, em final decisão condenatória, uma pena com o intuito correto.

Os meios de comunicação acabam por ingressar numa disputa com a Polícia na tentativa de desvendar crimes, todavia, utilizam-se, na maioria das vezes, de fontes próprias que podem ser inverídicas. Trazem aos telespectadores informações sigilosas que assim o são por motivos de assegurar não só a verdade real dos fatos como a integridade física e psíquica de todos os envolvidos.

Num outro momento, a incitação da população pelas imagens distorcidas trazidas pela mídia acabam por jogar aquela contra o Judiciário. Inúmeros têm sidos os casos de aglomeração de pessoas em frente aos Fóruns quando do julgamento de crimes amplamente e incessantemente explorados pela mídia que esperam ansiosamente pela condenação, sendo inaceitável a possibilidade de uma absolvição.

São multidões enfurecidas que gritam palavras de ordem de condenação, demonstrando fúria, intolerância até mesmo às provas contrárias à condenação e as regras legais.

A busca dessa sociedade é por penas duras, vingativas, cruéis, de sofrimento, e não com um fim retributivo/educativo, visando o retorno desses indivíduos à sociedade como membros da mesma. E como entende ZAFFARONI (2011), jogamos os “criminosos” às margens da sociedade, pois são os nossos “bodes expiatórios”.

Luiz Flávio Gomes (2014), em artigo publicado no site do Instituto Avante Brasil, disse que “No século XXI a prisão, nos países cuja política criminal caminha pelos trilhos da crueldade e da vingança, consolidou sua função proeminente, dentro da máquina estatal exterminadora, de locus privilegiado do profundo gozo social vingativo.”. Ou seja, tem-se uma sociedade que possui uma noção desvirtuada sobre o Sistema Penal e sua revolta com a criminalidade tem recaído especificamente sobre o Direito Penal.

O parco conhecimento sobre as leis e seus intuitos leva cidadãos de bem a possuírem um discurso de ódio (ódio este estimulado pela mídia) sobre os criminosos, o que respinga, evidentemente, sobre o Legislativo e sobre o Judiciário. Como sabiamente dito por VIEIRA (2003), “o indivíduo acredita na mídia e não na polícia”.

A necessidade de achar-se um culpado e de penalizá-lo de forma a levá-lo ao sofrimento faz com que a população volte-se contra os poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), gritando por atuações rápidas e severas que acabam se demonstrando contraditórias e confrontantes à Constituição Federal. Ademais, tem-se o número de leis que são declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal e as demais que se adjetivam de “ineficazes”.

As pessoas não conseguem desvincular o fato criminoso da pessoa do agente. Não se lembra do crime e sim do seu produtor. O criminoso deve receber a devida sansão de acordo com o fato praticado e não ser estigmatizado como uma aberração a ser banida da sociedade. O dever do

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Direito Penal é proteger os bens jurídicos tutelados pela norma e aplicar a devida sanção àquele que infringir essa proteção. E não de aplicar a pena capital ou qualquer outra sanção cruel de caráter puramente vingativo, estabelecendo o chamado “Direito Penal do Inimigo”.

É notório que a população tem sido manipulada por uma parcela considerável dos meios de comunicação que utilizando-se de sensacionalismo puro e grotesco, com o fim específico de atingir seus objetivos econômicos e políticos, e não de levar conhecimento e instigar os cidadãos ao pensamento correto.

Nas palavras de Luigi Ferrajoli citado por VIEIRA (2003, p. 215) “[...] nem sempre a sanção mais temível é a pena, mas a difamação pública do acusado, que tem ofendidas, irreparavelmente, sua honra e suas condições e perspectivas de vida e de trabalho.”.

Todos são contra a censura, que retornaria o Brasil à ditadura, no entanto, diante de tanta exposição midiática do crime e da errada visão do Sistema Penal como um todo, há uma necessidade de regulamentação e contenção da má utilização do fundamento de liberdade de expressão para invadir esferas de igual ou maior importância aos olhos constitucionais.

Isso porque tem-se feito história de terror diante da grande exposição de informações e de imagens de crimes de forma errada e inverídica, principalmente pelo telejornalismo.

As cenas de vingança pelas próprias mãos tem-se espalhado de forma absurda pelo Brasil e pelo mundo.

Em curto tempo, pode-se ver pela televisão o linchamento de pessoas que nem mesmo eram suspeitas de crimes mas que por divulgação de informações e imagens via televisão ou internet, e acabaram sendo vítimas da sociedade enfurecida e amedrontada.

Inúmeros os casos nos quais essas pessoas, são rotuladas como escória, mesmo antes de uma sentença penal condenatória, de perda de empregos, apedrejamento de seus lares, prática de calúnias e difamações contra suas famílias.

A necessidade da mídia é certa. A sua má atuação não. Michel Sandel (2012, p. 139), em sua obra Justiça quando explica o

filósofo Kant traz as seguintes palavras: Kant diz que somos merecedores de respeito, não porque somos donos de nós mesmos, mas porque somos seres racionais, capazes de pensar; somos também seres autônomos, capazes de agir e escolher livremente.

Ainda, completa (p. 143) que “Para Kant, o respeito à dignidade

humana exige que tratemos as pessoas como fins em si mesmas”. Em artigo apresentado no 2º Congresso Internacional de Direito e

Contemporaneidade, a pesquisadora Helena Schessl Cardoso trouxe uma pesquisa da ILANUD muito esclarecedora:

A discrepância entre o "retrato simbólico da criminalidade" na mídia e a ocorrência dos fatos criminosos de acordo com os registros oficiais4 no Brasil

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fica evidente em pesquisa realizada pelo ILANUD que analisou a programação de 27 telejornais das sete emissoras de televisão aberta (SBT, Globo, Record, Manchete, CNT, TV Cultura), no período de 2 a 8 de agosto de 1998. No espaço temporal pesquisado, foi possível assistir, nas palavras dos pesquisadores, "a 1211 cenas de crime nos noticiários nacionais, dos quais 714 (59%) foram homicídios, 153 (12,6%) lesões corporais e 141 (11,6%) estupros"5. A comparação da quantidade e qualidade das notícias-crime com os dados oficiais indica uma evidente distorção, pois das ocorrências registradas no mesmo período apenas 1,7% eram homicídios, 27,3% se referiam a lesões corporais e 0,4% se enquadravam como estupros6.

Com essa pesquisa, há de se considerar o abuso da criminalidade,

da imagem distorcida que a mídia faz do crime e do criminoso para obter altos índices de visualização sem considerar a verdade.

O problema é que essa exposição distorcida leva a sociedade à uma insegurança e ao medo de uma criminalidade real, pelo menos não nos números e condições apresentadas.

O medo e a insegurança geram na população um grito de endurecimento das leis penais e de punição excessiva aos praticantes de crimes como os acima citados. Acabam por construir uma imagem da Polícia, do Judiciário e do Legislativo que não condizem com a realidade.

A tragédia utilizada pela mídia traz duas partes: o mocinho e o bandido. O mocinho, no caso a vítima (estando a sociedade por trás também) é sempre bom e trabalhador e deve ser vingado e o bandido, o então bode expiatório da sociedade, deve ser extirpado da sociedade, afinal é ruim, cruel e sem escrúpulos.

O discurso telejornalístico criou a figura de um inimigo público sobre o qual aquela explora e induz a população a se revoltar contra. Em uma comparação chula, é como se o criminoso fosse o “Judas” a ser malhado em sábado de “Aleluia”.

Surge uma conclusão de que a solução para essa problemática é única: a formulação de novas leis incriminando novas condutas, o endurecimento de penas para as condutas criminosas já existentes, cumprimento de penas de formas mais graves, etc., todavia, a história penal brasileira e mundial virou uma estatística una que demonstra a ineficácia de leis e penas duras.

Exemplos são a Lei 8.072/90 (Crimes Hediondos) que não fez com que o número de homicídios qualificados ou de estupros, por exemplo, diminuíssem; assim como a Lei 11.343/06 que majorou as penas (privativa de liberdade e de multa) ao crime de tráfico, inovou no crime de associação ao tráfico, aumentando consideravelmente até mesmo a pena de multa (muito superior à regra dos crimes comuns), mas que não fez com que o número de casos de tráfico diminuísse.

Outro exemplo é a existência de uma discussão amplamente divulgada e também solicitada pela mídia (enraizada no sentimento de insegurança da sociedade que implicará em maior audiência), enfurecendo a

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sociedade e esta cobrando do Legislativo a diminuição da menoridade penal de 18 para 16 anos. O enfoque dado pela mídia é mais uma vez errôneo. E a população a segue: diminuição da menoridade é a solução.

Não há como a diminuição da menoridade diminuir a criminalidade. Só haveria a troca do termo “interno” para “preso”. A criminalidade continuaria existir, pois o foco a ser trabalhado está em outro lugar, diverso de um maior rigor na punição ou na diminuição da menoridade.

O problema é que esse discurso criminológico coloca em questão a garantia de direitos constitucionais dos então intitulados “criminosos”, “bandidos”, “pervertidos”, etc.

E diante da exposição incorreta pela mídia da realidade e dos corretos procedimentos legais, o Judiciário vê-se encurralado entre aplicar a lei e enfurecer a sociedade ou acalmar a sociedade e “fazer vista grossa” à lei.

Uma situação emblemática foi o caso “Nardoni” onde mesmo preenchidos todos os requisitos para permanecerem soltos o juiz decretou a prisão do casal acusado de matar a filha e enteada Isabella Nardoni. A justificação:

[...] a prisão processual dos acusados se mostra necessária para garantia da ordem pública, objetivando acautelar a credibilidade da Justiça em razão da gravidade e intensidade do dolo com que o crime descrito na denúncia foi praticado e a repercussão que o delito causou no meio social [...] Assim, correta a interpretação de que a prisão do casal foi em

decorrência de um pedido da sociedade que fora devidamente enfurecida pelo bombardeio de notícias sem fontes fidedignas de que o casal seria realmente culpado. Mas, de acordo com a lei, os mesmos faziam jus à liberdade.

Não há como não dizer que a mídia, através de seu discurso criminológico desvirtuado, é fomentadora de situações ilegais como a supra narrada.

Diante da atual realidade, é necessária a busca por medidas de contenção, mesmo que sejam alternativas, para a diminuição de situações onde privilegia-se o direito à informação em detrimento de direitos ligados à dignidade da pessoa humana, direitos à personalidade de todo e qualquer cidadão, criminoso ou não.

3.5 A MÍDIA E A VIOLAÇÃO À VIDA PRIVADA

Muito já foi colocado no presente trabalho sobre o desenvolvimento

da mídia e o seu ganho de espaço não só dentro da área de comunicação, mas também sobre a sua invasão a direitos e garantias individuais.

Há de ser reforçada a sua atuação de fiscal dos três Poderes e legítimo apresentador dos erros do Estado para com seus representados, todavia, em contrapartida, não há como fechar os olhos à atuação

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extremamente especulativa e sensacionalista quando da exposição de crimes e criminosos.

A mídia, em grande parte do tempo de sua atuação, substitui o poder-dever de informar, transmitir informações necessárias, corretas e imparciais pela prática oportunista, mediante sua capacidade de formação de opinião pública, por angariar pessoas que busquem sangue, fofocas, diversão com a desgraça alheia.

No entanto, a desgraça alheia tem nome, tem família, tem trabalho, tem direitos.

A exposição não é apenas do crime, são fotos, arquivos, que deveriam ser sigilosos, são suposições jogadas à sociedade que devidamente ludibriada por informações da vida pregressa, da vida familiar, da vida social do investigado, acusado já o condenam. Todavia, essa condenação social recai também sobre a família, sobre os amigos, sobre o trabalho, devastando anos atrás que não serão recuperados pelos anos futuros.

Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, “[...] quem tem poder para difundir notícias tem poder para manter segredos e difundir silêncio; tem, sobretudo, o poder para decidir se seu interesse é mais bem servido por notícias ou por silêncios”.

Cada indivíduo possui sentimentos e pensamentos tão íntimos que às vezes não são remexidos nem por ele próprio. Coisas que se quer esquecer, apagar, que magoam ou entristecem. Quem pode reavivar algo que lhe faz mal.

A rede midiática é instantânea e voraz. O vazamento de uma informação, de um nome, é capaz de gerar a foto do indivíduo, informações sobre seu passado e sua família em minutos, a qual milhões de outras pessoas acessarão e repassarão a outros milhões. Mas, e se a informação não era verídica, ou se mera suposição? A foto ou fala lançada na mídia não tem volta, não tem retorno, ninguém mais esquece.

O que se vê é um aglomerado de erros jurídicos com o passar dos séculos em decorrência de uma exposição de fatos e pessoas, ou a busca por um culpado independente de culpa. Porém, essas pessoas, vítimas de erros nunca serão as mesmas, suas famílias nunca terão a mesma vida.

Citando casos emblemáticos poder-se-ia perguntar: após o cumprimento de suas penas (paga a dívida com a sociedade e com o Estado) pessoas como o casal Nardoni, Suzanne Von Richthofen e o goleiro Bruno terão suas vidas de volta? Poderão sair às ruas sem interpelações, sem palavras de raiva e indignação? Conseguirão empregos? E seus familiares, conseguiram ter uma vida tranquila e normal após a exposição midiática? Os filhos são indivíduos com nomes próprios ou são apenas o filho do criminoso?

A resposta sempre foi não. Não há ressocialização sem a abertura pela sociedade de entender o crime como algo a ser retribuído, trabalhado e esquecido quando do cumprimento da dívida para com a comunidade.

Mas a mídia não esquece, sempre é bom para ela relembrar casos já adormecidos e trazer o novo rosto do antigo criminoso, trazer os familiares

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que estão tentando refazer suas vidas. Mas em um gesto de egoísmo e maldade, não há direito ao esquecimento pela mídia.

3.6 TÉCNICA DE PONDERAÇÃO ENTRE DIREITOS CONFLITANTES

A ausência de uma legislação específica sobre eventual, porém

certeiro, conflito entre o direito à informação e à privacidade, vida íntima do indivíduo, seja ele criminoso ou não, é algo que assombra operadores do direito em geral. Na verdade, a existência de lacunas, que não são preenchidas com qualquer dispositivo constitucional, e muito menos infraconstitucional, oferece ampla oportunidade para decisões contraditórias dentro do Poder Judiciário. São inúmeros os casos semelhantes com decisões totalmente diversas.

Difícil estabelecer parâmetros a serem seguidos, todavia, num primeiro momento concentra-se numa resposta à pergunta se a informação sobre determinado fato ou pessoa seria importante ao interesse público. Sendo, o interesse público justifica a liberdade de informação como direito fundamental? Há ainda, que considerar-se que interesse público não é o mesmo que interesse para o público.

Schreiber (2013, p. 14) descreve um episódio interessante acontecido na Alemanha onde uma emissora de televisão anunciou que exibiria um documentário baseado num crime onde sentinelas de um depósito de munição do exército alemão foram assassinados. Frisa-se que isso quatro anos após o fato criminoso.

Um dos acusados, preso, moveu ação judicial na tentativa de impedir a exibição do documentário alegando que o mesmo exporia seu nome e imagem violando não só a sua privacidade como à sua ressocialização após o cumprimento da pena.

A grande problemática: o grau de realização de um direito justifica o grau de sacrifício imposto ao outro? Como ponderar dois interesses de tão grande valia?

O tribunal alemão considerou neste caso que o fato havia ocorrido há algum tempo e que não mais havia interesse atual de informação ao público em geral. Todavia, o direito à privacidade e principalmente à possibilidade de ressocialização e reintegração do criminoso à sociedade após o cumprimento de sua pena deveriam ser preservados.

Nesta linha, pondera Schereiber que não se pode dar aos meios de comunicação um poder ilimitado, criando-se os chamados “órgãos de imprensa” e em contrapartida não ter como oferecer um poder equivalente aos particulares.

Por mais que a própria Constituição Federal preveja a possibilidade de aplicação de indenizações aos casos que extrapolem o limite do direito à informação e liberdade de expressão esta não pode ser a única e exclusiva medida. Isso em decorrência de alguns danos morais serem irreparáveis. Afinal, o dito popular já diz “é melhor prevenir do que remediar”.

O estudioso supracitado traz a seguinte solução:

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A solução há de ser buscada, portanto, na ponderação, por meio não de uma hierarquização abstrata, mas, sim, da determinação de uma relação de prevalência à luz das circunstâncias fáticas. Mais à frente enfatiza que os parâmetros utilizados não são rígidos

mas “derivam de uma compreensão mútua e dialética das controvérsias surgidas a partir do exercício da liberdade de informação e de outros direitos fundamentais em face de novas tecnologias comunicativas” (SCHEREIBER, p. 16).

É notório o argumento utilizado principalmente pelos operadores da mídia, de que imagens e fatos captados em locais públicos podem ser divulgados livremente. Mas, como dito por Helder Galvão (DIREITO E MÍDIA, p. 31) isso reduziria o direito à imagem do ser humano a quatro paredes, o que realmente não é nunca foi o intuito da Constituição Federal.

Ele ainda traz o fato totalmente indigno de Glauber Rocha, amigo de Di Cavalcanti que, em meio ao velório deste, começou a gravar cenas do rosto do falecido e da tristeza de sua filha que o velava. Seu argumento era de que o falecido era pessoa pública e o interesse em sua vida e morte era maior que a tristeza “privada” da herdeira.

É certo que pessoas públicas assumem uma renúncia à intimidade de algumas situações em decorrência de seu trabalho, função, etc. Mas não se trata de uma renúncia absoluta.

Em exposição sobre o tema Eduardo Cambi (2012) explica que não é correto dizer que direitos coletivos devem prevalecer sobre direitos individuais haja vista isso caracterizar um sistema totalitário. Assim como o contrário estabeleceria a anarquia.

A busca deve ser sempre por uma compensação menos gravosa possível sempre tentando um sacrifício menor possível de um bem jurídico por outro. Isso utilizando-se dos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Nesse caminho, chega-se à Lei do Balanceamento de Robert Alexy esclarecidamente tratado pelo professor Cambi. Esta leva em consideração a) a avaliação do grau de não satisfação ou de afetação de um dos princípios; b) exame da satisfação do princípio colidente; c) consideração da importância da satisfação do princípio colidente justifica a afetação ou não satisfação do outro princípio.

Alexy apresenta uma fórmula do peso que por mais que seja realmente uma fórmula matemática baseia-se nos pesos abstratos de cada princípio envolvido, no grau de interferência de um princípio em outro e nas evidências. Aqui entra não só provas como a devida argumentação sobre a interferência de um direito sobre o outro.

Não podendo faltar críticas à ponderação de Alexy, Habermas diz que a mesma ameaça à certeza dos direitos pela falta de critérios racionais para a aplicação dessa regra.

Certo é que as garantias constitucionais não podem se anular diante de um conflito entre liberdade de expressão (direito à informação) e

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intimidade (privacidade). Mas o operador do direito tem que estar ciente de que precisa dosar, equilibrar o máximo possível ambos os direitos sempre levando em consideração o princípio maior que é da dignidade da pessoa humana.

Abaixo, traz-se um julgado do STJ quanto a necessidade da ponderação dos direitos ora estudados:

STJ. PONDERAÇÃO. IMAGEM E INTIMIDADE X INFORMAÇÃO. DANO MORAL. DIVULGAÇÃO. NOME NOTICIÁRIO. Trata-se de ação de indenização por dano moral pela divulgação, em noticiário de rádio, do nome completo e do bairro onde residia a vítima de crime de estupro. Ressalta a Min. Relatora que há limites ao direito da imprensa de informar, isso não se sobrepõe nem elimina quaisquer outras garantias individuais, entre as quais se destacam a honra e a intimidade. Afirma que, no caso dos autos, a conduta dos recorrentes não reside na simples divulgação de um fato verídico criminoso e de interesse público, vai muito além, ao divulgar o nome da autora: sua intimidade e honra foram violadas. Por isso, foram condenados a compensá-la pelos danos morais no valor de R$ 40.000,00. Outrossim, o prazo prescricional em curso quando diminuído pelo novo Código Civil só sofre a incidência de sua redução a partir de sua entrada em vigor. Assim, a decisão a quo está de acordo com a jurisprudência deste Superior Tribunal. Com essas considerações, entre outras, a Turma não conheceu do recurso. Precedentes citados: REsp 717.457-PR, DJ 21/5/2007; REsp 822.914-RS, DJ 19/6/2006; REsp 818.764-ES, DJ 12/3/2007; REsp 295.175-RJ, DJ 2/4/2001, e REsp 213.811-SP, DJ 7/2/2000. REsp 896.635-MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 26/2/2008. Nas palavras de Hanna Arendt, defensora árdua dos direitos e

garantias fundamentais de cada ser humano (apud Celso Lafer, p. 241-242): É o que ocorre quando surgem situações por força das quais distintos direitos humanos podem ser vistos não apenas como complementares, mas também como contraditórios. É isto o que sucede com o direito à intimidade, que freqüentemente se choca com o direito à informação e com a prática dele derivada do jornalismo de investigação, que tem "sido considerado um ingrediente importante da liberdade de imprensa. O direito à informação, que no Direito das Gentes, como o direito à intimidade, tem como objeto a integridade moral do ser humano, é precipuamente uma liberdade democrática, destinada a permitir uma adequada, autônoma e igualitária participação dos indivíduos na esfera pública. [...] O direito à informação, como se vê pela leitura do texto da Declaração Universal dos Direitos do Homem, está ligado à liberdade de opinião e de expressão. Estas envolvem tanto uma neutralidade por parte dos Outros — a liberdade negativa de não se ver molestado pelas suas opiniões — quanto a liberdade positiva de expressar publicamente suas idéias. [...] Ocorre, no entanto, que o direito à intimidade estabelece um limite ao direito de informação ao impor o respeito ao segredo da vida privada. É por essa razão que, na dialética do conflito e da complementaridade da tutela desses dois direitos, é preciso ponderar o interesse público de se procurar,

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receber e difundir uma informação. Daí a importância de se arrematar esta reflexão sobre a contribuição arendtiana aos direitos humanos tomando como ponto de partida, para o exame da possível antinomia entre o direito à intimidade — que ela afirma como um direito privado essencial — e o direito à informação — que é uma das condições para o adequado exercício do direito de associação, por ela considerado um direito público por excelência —, sua análise sobre a distinção entre o público e o privado. Assim, conclui-se que diante da inexistência de uma regra, uma

norma específica que norteei a atividade jurisdicional diante de um conflito de porte tão grande como o direito à imagem versus o direito à intimidade, imperiosa a utilização da técnica de ponderação para a solução mais justa possível.

3.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito embora conste do ordenamento jurídico brasileiro hodierno

uma profunda modificação no olhar sobre a colisão entre os direitos à intimidade e à informação e, consequentemente, um profundo estudo da técnica da ponderação na busca de uma decisão mais justa possível, isso não implica uma solução permanente. Isso, principalmente, porque onde há conflito de interesses nunca haverá uma solução que agrade totalmente ambas as partes.

Os conflitos sempre existirão. As dúvidas também. Isso porque o direito não é algo estático, na verdade vive em conste modificação e amplo desenvolvimento. Afinal, o direito deve seguir o caminhar da sociedade.

Conforme devidamente explorado, a necessidade de informação é inerente a todo e qualquer ser humano. Hoje é questão de pura sobrevivência e isso não se discute. No entanto, saber até onde vai o limite do uso e gozo desse direito, seja por um cidadão comum ou pela mídia em geral, é característica que implica democracia.

Vivendo em um Estado Democrático de Direito, e isso é defendido com “unhas e dentes” pela Constituição brasileira, não pode um conflito entre garantias previstas pela mesma deixar espaço para a implantação da desordem, da insegurança jurídica, correndo-se o risco de um retrocesso democrático.

Como exposto no presente estudo, a ponderação é a solução para uma resolução mais próxima do justo. Contudo, são situações concretas que aparecerão no dia-a-dia do operador do direito e que, mesmo versando sobre os mesmos direitos, implicaram fatos e circunstâncias diferentes, atribuindo, assim, um poder de decisão responsável e imparcial do juiz, sempre.

3.8 REFERÊNCIAS

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= IV =

CRISE MIGRATÓRIA: RADICALISMO POLÍTICO E O DISCURSO MULTICULTURAL

Marcelo Vinícius Dressler*

4.1 INTRODUÇÃO

A Europa passa pela maior crise humanitária da história

contemporânea. Milhares de imigrantes fogem da guerra civil e da fome nos países africanos e tentam entrar clandestinamente em solo europeu em busca de melhores condições de vida, trabalho e dignidade. Contudo, a travessia do mar Mediterrâneo em embarcações pequenas e improvisadas tem se mostrado muito perigosa. Milhares acabam perdendo a vida nesta empreitada incerta.

Estima-se que somente em 2015, 2.500 pessoas já teriam morrido na tentativa de atravessar o Mediterrâneo. Estas mortes representam as falhas das políticas migratórias da Europa, e demonstram que são necessárias reformas urgentes para evitar esta tragédia. Os problemas são mais graves na Itália e Grécia, porta de entrada do velho mundo.

Neste contexto, falar em direitos humanos não é o suficiente para resolver a questão, por se tratar de um fato complexo que envolve os interesses políticos não só dos países europeus, mas também daqueles que aceitam receber imigrantes para ajudar na situação, como Brasil e Estados Unidos, e envolve os ânimos da população autóctone, em acolher bem ou repudiar os imigrantes. As frequentes crises econômicas reacendem os discursos autoritários que vêm à solução desta crise no nacionalismo e na xenofobia, reacendendo o ódio e a violência.

A postura do primeiro ministro britânico David Cameron, em nada auxilia a questão. Ao oferecer navios e helicópteros para vigiar a costa europeia, condicionou a ajuda exigindo que nenhum refugiado seja levado à Inglaterra. A situação é de extrema urgência e exige cooperação internacional imediata.

Da forma como essa imigração esta ocorrendo, é sempre uma migração forçada. Essas pessoas são deslocadas contra a sua vontade, fugindo de guerras civis e da miséria, que sonham em fugir das condições precárias em que se encontram.

Para chegar a Europa, os imigrantes têm de passar pelas mãos de atravessadores, isto é, traficantes de pessoas, que cobram até o equivalente a dez mil reais por pessoa, fazendo disso um negócio milionário. Contudo,

* Mestrando em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário Cesumar - Unicesumar, graduado em Direito pelo Centro Universitário Cesumar – Unicesumar e em História pela UEM- Universidade Estadual de Maringá. Endereço Eletrônico: [email protected]

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nenhum deles tem a certeza ou garantia que realmente chegará ao destino, e ao chegar, são largados à própria sorte nos portos e praias sem o mínimo de condições básicas de sobrevivência, ou são mandados de volta a seus países de origem.

O tráfico de imigrantes faz parte de um fenômeno próprio do capitalismo contemporâneo: A “coisificação” de seres humanos, ou a mercantilização de pessoas, aonde os traficantes vêm nas pessoas à oportunidade de lucro. Diferente do século XIX, em que pessoas eram vendidas legalmente, hoje apesar de ser uma pratica inaceitável e ilegal, ainda é cotidiana.

Este comércio que transforma pessoas em objetos, não respeita raça, sexo, idade ou nacionalidade, trata os seres humanos como meio para o lucro e a exploração. A essas pessoas não cabe nenhuma tutela jurídica, pois esta não existe na prática. São objetos de um processo de coisificação cruel e desumano.

A Alemanha é o país que mais recebe imigrantes, conforme dados a seguir: No ano passado recebeu 202.700 requisições, ou 32% do total. A Suécia veio logo em seguida com 81.200, ou 13%. Seguem Itália, com 64.600, ou 10% do total, França, 62.800, ou 10%, e a Hungria, 42.800, ou 7%1.

Todas as pessoas têm o direito de buscar as oportunidades que desejam na vida, neste sentido, migração é um direito, enquanto tráfico de pessoas é um crime. É necessário que todos os países tenham uma política migratória definida, inclusive o Brasil, de como tratar os grandes fluxos de imigrantes que se deslocam entre países, pincipalmente das pessoas que fogem de guerras, condições precárias, degradantes em sua terra de origem, e buscam o sonho e realização de sua vida. Isto é um direito que precisa ser protegido e administrado por políticas públicas para integrar essas pessoas.

Este é o fenômeno da mobilidade humana. É um direito que deve ser acompanhado por uma série de providências e mecanismos de atenção. Nestes trajetos de migração, as redes de tráfico exploram essas pessoas.

Podemos definir a barbárie como a não aceitação de que outros seres humanos são como nós. Vê-se esse mundo regido pelo poder, a encarnação da barbárie.

Para piorar a situação, esta crise acirra os ânimos dos conservadores da direita radical na Europa, fazendo proliferar dezenas de partidos ultranacionalistas e xenófobos que pregam o ódio aos imigrantes e põem em risco toda a estrutura democrática que, pela constituição, garante direitos humanos e a dignidade a todo ser humano.

Este trabalho tem o objetivo de analisar o discurso contrário à muticulturalidade e o discurso a favor, analisando a ascensão da direita radical e propostas de integração dos migrantes. As políticas públicas referentes à migração Europeia protegem de forma eficaz as massas de

1 Dados extraídos do website: <http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2015-08-29/entenda-a-crise-migratoria-na-europa.html>. Acesso em: 14 set. 2015.

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migrantes que diariamente tentam entrar no continente? Protegem a dignidade humana das minorias que tradicionalmente são segregados? Quais propostas poderiam ajudar a amenizar a situação da maior crise migratória pós-segunda Guerra Mundial? Essas são as questões que pretende-se responder com este trabalho.

4.2 FUNDAMENTAÇAO TEÓRICA

O filósofo e historiador búlgaro Tzvetan Todorov (2012), em sua obra,

“Os inimigos íntimos da democracia”, afirma que, com a queda do regime soviético em 1991, os regimes democráticos saíram vitoriosos do conflito com as demais formas de governo, e hoje parecem ser o modelo que inspira liberdade e igualdade em todo o mundo. Nem mesmo o terrorismo islâmico se apresenta como um rival que poderia substituir as democracias. Contudo, para o autor, a democracia produz em si mesma as forças que a ameaçam.

Nos governos democráticos, o poder pertence ao povo, e todos os cidadãos são iguais em direitos e dignidade. Vive-se em democracias liberais, isto é, o indivíduo não deve impor sua vontade à comunidade, e esta não deve interferir nos assuntos de seus cidadãos, diferente das teocracias e de regimes autoritários. Busca-se uma ideia de “progresso” que consiste em melhorar as condições de vida e a ordem social de todos. A população é protegida por leis contra as arbitrariedades do governo, e este é limitado pela separação dos poderes. A constituição dos regimes democráticos traz ainda um rol de princípios como a dignidade humana, a liberdade, igualdade e solidariedade que representam o núcleo valorativo de toda sociedade.

Contudo, para Todorov (2012. p. 18), “[...] os perigos inerentes à própria ideia democrática surgem quando um dos ingredientes dela é isolado e absolutizado”. As democracias guardam princípios essenciais que devem estar em equilíbrio como a ideia de povo, liberdade, igualdade, progresso, enfim, e quando um desses princípios é supervalorizado frente aos demais, ocorre uma distorção nos regimes democráticos que pode abalar sua estrutura e derivar para populismos, ultraliberalismos, messianismos, fascismos.

A soberania dos povos é o primeiro princípio das democracias. Contudo, se for inflado e supervalorizado, pode conduzir a democracia a um regime populista. Os movimentos migratórios na Europa estão acendendo as chamas do radicalismo político e ganhando cada vez mais força os partidos populistas nacionalistas xenófobos e islamófobos.

O autor enumera uma série de partidos de extrema direita que estão se fortalecendo em toda a Europa, inflamados pelos velhos discursos populistas de superioridade racial e xenofobia como se verá. Nos Países Baixos, Pim Fortuyn liderava em 2002 um movimento contra a islamização da cultura europeia. Em 2010, Geert Wilders produziu um filme com propaganda anti-islâmica e reivindicou a proibição do corão. Desde 2010 seu partido cresce em marchas públicas e demonstrações de violência.

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Na Dinamarca, o partido de extrema direita “Partido do povo

Dinamarquês”, dirigido por Pia Kjaersgaard reivindica “a Dinamarca para os dinamarqueses” e descreve o Islã como um câncer que corrompe a Europa.

Na Bélgica, o líder do partido “Interesse Flamengo”, Vlaams Belang, afirma que o Islã é o inimigo de todo o mundo. Todorov traz ainda casos recentes de tortura de prisioneiros muçulmanos no mesmo país. Na Suíça, existe a “União Democrática do Centro”, partido xenófobo de Christophe Blocher, que compara estrangeiros à ovelhas negras que devem ser expulsas do país. Na Suécia, outro partido nacionalista, xenófobo e islamófobo ganhou maioria no parlamento em 2010.

Na França, Jean Marie Le Pen, líder da “Frente Nacional” declara que o islamismo era a religião mais imbecil do mundo e em 2011 teve 20 por cento das intenções de voto para presidência.

Os líderes desses movimentos se reuniram em Budapeste, em 2009, para formar uma aliança dos Movimentos Nacionais Europeus, destinada a coordenar as ações de todos; seu presidente é um francês. Segundo Todorov (2012, p. 155),

[...] por enquanto esses partidos populistas e xenófobos não dirigem o governo em nenhum lugar; mesmo assim participam dele, como a Liga Norte da Itália, ou constituem um apoio indispensável a um governo minoritário. Segundo o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, em sua

obra “Os fascismos”: Não podemos tratar o fascismo como um movimento morto, pertencente à história e sem qualquer papel político contemporâneo. (…), sabemos que não é um fenômeno aprisionado no passado. Assim torna-se impossível compreender o fascismo histórico, sem ter em mente o neofascismos e suas possibilidades (SILVA, 2000).

No mesmo sentido, o professor Theodor Adorno, nos diz que: [...] para a educação, a exigência de que Auschwitz não se repita é primordial. Mas o fato de a exigência e os problemas decorrentes serem tão subestimados, testemunha que os homens não se compenetraram da monstruosidade cometida. Sintoma esse de que subsiste a possibilidade da reincidência, no que diz respeito ao estado de consciência e inconsciência dos homens (ADORNO, 1986).

Por sua vez, o professor Norbert Elias verifica que: [...] em vez de se ficar consolado com a ideia de que eventos recordados pelo julgamento de Eichmann foram exceções à regra, seria mais proveitoso investigar as condições nas civilizações do século XX, as condições sociais, que propiciaram barbarismos desse gênero e que poderiam favorecê-los de novo no futuro (ELIAS, 1997).

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Os imigrantes são as maiores vítimas desse processo de transição. Para Jaques Julliard:

A xenofobia provoca reações de ódio bem próximas da fobia. Georgianos na Rússia, turcos na Alemanha, Indonésios nos países baixos, indianos e paquistaneses na Grã-Bretanha, argelinos na França, mexicanos e porto-riquenhos nos Estados Unidos: o ódio pelo outro não tem escrúpulos (...). Não sabemos como enfrentar o vento de ódio que se levantou (JULLIARD, 1997, p. 17).

Todavia, busca-se pesquisar os movimentos migratórios que estão

ocorrendo na Europa, e como este fenômeno migratório pode levar à radicalização da política e a ascensão de partidos de extrema direita que pregam o nacionalismo e a xenofobia.

Com relação à atuação desses grupos tenta-se responder essas questões: Que tipos de consequências os regimes democráticos podem sofrer com esta radicalização? As políticas de migração europeia são suficientes para combater a xenofobia e promover o multiculturalismo dos povos? Protege a dignidade humana das minorias que tradicionalmente são segregadas?

4.3 RADICALISMO POLÍTICO E O MULTICULTURALISMO

Para Todorov (2012), [...] a extrema direita já não se define pelo anticomunismo nem pelo racismo explícito, baseado em diferenças físicas visíveis: este se comprometeu demais durante a história contemporânea recente, aquele já não tem razão de ser. A extrema direita de hoje se define por sua prevenção xenófoba e nacionalista: tudo é culpa dos estrangeiros, daqueles que são diferentes de nós; vamos expulsá-los.

Sobre a lei que proibiu o uso da burca na França, o filósofo e

psicanalista Slavoj Zizek (2012, p. 17), em sua obra “Vivendo no fim dos tempos”, traz que: “Em outubro de 2009 o Presidente Nicolas Sarkozy convocou um “debate sobre a identidade nacional” e afirmou que a burca é “contra a cultura francesa” (...) A ideia subjacente é que a burca ou o niqab são contrários à tradição de liberdade da França e às leis relativas aos direitos femininos, ou, segundo Copé, pode-se avaliar a modernidade de uma sociedade pelo modo como ela trata e respeita suas mulheres.

Para Sarkosy, buscando despertar o espírito populista entre seus pares, os véus não são bem vindos porque em um país secular como a França, eles “intimidam e alienam a população não muçulmana”. Esse discurso em defesa da dignidade e dos direitos humanos, na verdade defende apenas o modo de vida francês. Uma vez que, para as mulheres muçulmanas, o não uso do véu é uma condição humilhante, não poderão mais sair de suas casas, ficando mais isoladas da sociedade, e subordinadas a uma autoridade patriarcal violenta.

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Esta proibição revela o medo e ansiedade do povo francês, pois “[...]

intimidam e alienam os não muçulmanos”. Para Zizek (2012, p. 18): É por isso que o rosto coberto provoca tanta angústia: porque nos confronta diretamente com o abismo da coisa-outro, o próximo em sua dimensão misteriosa. (...) devemos lembrar que a burca tem uma fenda estreita na altura dos olhos: não vemos os olhos, mas sabemos que existe um olhara ali.

Encontra-se aqui outro aspecto da proibição dos véus em público.

Refere-se à ideologia das sociedades de controle total como na obra 1984 de George Orwell (ORWELL, 2005), em que todas as ações dos indivíduos são observadas e registradas o tempo inteiro, onde o “Big Brother” tudo vê, tudo sabe e a todos controla.

Tzvetan Todorov, em sua obra supracitada analisa a postura dos líderes das nações europeias desde 2010, contra o discurso do multiculturalismo, isto é, a coexistência de várias culturas dentro de uma sociedade. Para ele, a política do multiculti fracassou plenamente.

O autor traz as palavras infelizes de David Cameron, primeiro ministro da Grã-Bretanha: “Em nome de um multiculturalismo de Estado, nós estimulamos as diferentes culturas a levar vidas separadas, isoladas umas das outras e afastadas da cultura principal” (TODOROV, 2012, p. 165). Traz ainda que Mark Rutte (TODOROV, 2012, p. 165), primeiro ministro dos países baixos, evoca o “fracasso do multiculturalismo” e a necessidade de “fechar as fronteiras aos deserdados”. Por fim, acrescenta a infeliz declaração do presidente francês, Sarkozy, que afirma que “[...] o multiculturalismo é um fracasso. É preciso obrigar os imigrados a fundirem-se na comunidade nacional” (TODOROV, 2012, p. 165).

No caso da Alemanha, Todorov cita a grande adesão da população a teses xenófobas expressas no livro “A Alemanha extingue a si mesma”, de Thilo Sarrazin, publicado em 2010. Este autor rejeita o multiculturalismo por duas razões principais. Primeiro, é que os alemães de origem têm poucos filhos, enquanto os imigrados muçulmanos têm muito mais. E por segundo, afirma que o nível intelectual dos primeiros é bem mais elevado que os segundos. Em suas palavras: “Não se consegue descobrir nenhum potencial intelectual entre os imigrados muçulmanos. (...) Os imigrados do oriente próximo sofrem de taras genéticas”. “É preciso deter a imigração proveniente do Oriente Próximo e do Oriente Médio, assim como da África” (TODOROV, 2012, p. 166). Para ele, a adesão ao islamismo é uma prova de idiotismo. Defende ainda a saída dos imigrados que já entraram na Alemanha. Em 2011, este livro vendeu cerca de 1,2 milhão de exemplares.

Discursos de ódio como esses inflam a hostilidade em relação às mulheres que usam um lenço na cabeça. Todorov (2012) questiona se

[...] a educação superior é a única qualidade desejável para o bem-estar de uma sociedade? Não se deveria favorecer também a eclosão de outras qualidades, tais como a bondade, a doçura, a compaixão, ou ainda o espírito de equidade, a coragem, o questionamento da autoridade?

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A primeira reação de Angela Merkel frente a essas teses foi de rejeição. Mas, frente a sua baixa popularidade, e aproximação das eleições, ela mostrou rejeição ao multiculti, assumida pela maioria da população. Nas palavras de Merkel: “Nós nos sentimos ligados aos valores cristãos. Quem não aceita isso não tem lugar aqui” (TODOROV, 2012, p. 167). Este argumento não encontra fundamento uma vez que aproximadamente 40% da população alemã não são cristãos ou não tem religião alguma (TODOROV, 2012, p. 167).

Todorov (2012) inclui o discurso de David Cameron, na perspectiva da luta global contra o terrorismo, liderada pelos Estados Unidos da América. O primeiro ministro desenvolveu uma análise psico-sociológica do fato de alguém se tornar terrorista baseado no ressentimento das nações humilhadas por um grupo próximo, como por exemplo, a dominação colonial do exército britânico nos países muçulmanos como Iraque e Afeganistão.

Para Todorov (2012, p. 171): “Percebe-se, em suma, que a única “cultura” na qual se pensa ao recusar o multiculturalismo é o islã; as comunidades judaica, chinesa, vietnamita, embora mais organizadas, nunca são mencionadas”.

O autor esclarece ainda que: Quando passamos assim em revista os argumentos invocados contra o multiculturalismo- que aqui é acusado de prejudicar as mulheres, ali de alimentar o terrorismo, acolá de reforçar a estupidez-, percebemos que essa palavra é utilizada no lugar de uma ou de várias outras. Muitas vezes tem-se a impressão de que os políticos da Europa, homens e mulheres, aprenderam bem a lição dos profissionais da manipulação política. Os termos do debate não são escolhidos em função das necessidades vitais da população, mas com o intuito de atrair a simpatia de certos eleitores. Assim vimos as controvérsias públicas nos Estados Unidos se concentrarem nos problemas de costumes, tais como o aborto ou o casamento homossexual, e não o desemprego ou nos empréstimos bancários irresponsáveis. O debate em torno do multiculturalismo, tanto quanto aquele sobre a identidade nacional, aparece por sua vez como um recurso para desviar a atenção de outros problemas bastante reais (sociais e econômicos), só que mais difíceis de resolver. A verdade é que, dessa maneira, obtém-se sem grandes esforços a fidelidade de uma parte da população, que encontra na pessoa dos imigrados um confortável bode expiatório. Mais uma vez, é a democracia que sai perdendo (TODOROV, 2012, p. 175).

Percebe-se que os líderes políticos, para angariar votos de parte da

população, aderem a discursos populistas que encontram soluções simples para questões complexas, buscando um adversário que arque com a responsabilidade pelos problemas estruturais do país.

Todorov afirma: “Hoje, com a utilização dos meios de comunicação em massa, os lideres populistas têm mais facilidade de obter o apoio do público aos seus “remédios miraculosos”, por mais ilusórios que sejam”, e o autor continua: “Embora invoquem o povo a cada instante, eles desviam a democracia de seu verdadeiro rumo e, assim como os adeptos do

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Crise migratória... // 71

messianismo e do neoliberalismo, fazem-na correr um grave perigo (TODOROV, 2012, p. 188)”.

4.4 EM DEFESA DO MULTICULTURALISMO

Segundo o professor Edgar Morin (2011), em sua obra “Rumo ao

abismo?”, vive-se em um tempo de incertezas e de crises de instituições. Ele afirma que, com o fim do século XIX e começo do século XX, os ideais iluministas foram retomados com força e o progresso seria provocado pelo desenvolvimento da razão, da ciência e da educação. Após a Segunda Guerra Mundial, constatou-se que todas essas soluções continham problemas em si e revelavam-se em ambivalências de bem e de mal.

Mesmo na égide do pós-positivismo, a tortura e a guerra reaparecem, seja por motivos religiosos, de etnias, entre nações ou civis, retornam com todo o ódio, desprezo, destruição e mortes. Trata-se do colapso da concepção iluminista da racionalidade.

Neste sentido, Morin (2011) propõe a ideia de que é necessário ultrapassar o Iluminismo, ou ir mais além. Faz-se necessário assim, ultrapassar a racionalidade abstrata, identificar as patologias da razão e ultrapassar a ideia da Razão Pura, pois segundo ele, “[...] não há racionalidade sem afetividade”. Esta tarefa demanda uma reforma na organização social por meio de uma revolução no conhecimento, na ética e na vida.

O globo hoje está dividido em “Varias Sociedades Humanas”. Para Morin, apenas uma revolução no conhecimento poderia metamorfoseá-la para “Uma Sociedade-Mundo” e, somente assim, mudar seu destino para além do abismo. Segundo o referido professor:

É preciso saber que o universalismo se tornou concreto na concretização da Era Planetária, na qual se pode descobrir que todos os seres humanos têm não apenas uma comunidade de origem, uma comunidade de natureza, por meio de sua diversidade, mas também uma comunidade de destino. O humanismo abstrato pode, então, tornar-se concreto (MORIN, 2011, p 44).

Para Morin (2011), o avanço das democracias ganhou impulso com

a queda dos regimes totalitários soviéticos e com a expansão dos mercados na égide do liberalismo econômico globalizado, que ganha força com as novas tecnologias. Dessa forma,

[...] a globalização dos anos 1990 opera uma mundialização tecnoeconômica ao mesmo tempo em que favorece outra mundialização, certamente inacabada, vulnerável, de caráter humanista e democrático, que se vê contrariada pelas sequelas dos colonialismos, pelas desvantagens das graves desigualdades, bem como pela exploração do lucro (MORIN, 2011, p 64-65).

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Essa globalização tecno-econômica é a última fase da planetarização, da emergência de uma sociedade-mundo. E esta sociedade precisa de uma civilização: “Ao incluir múltiplas culturas em seu interior, uma sociedade cria também uma cultura própria. Existem múltiplas correntes transculturais que consistem uma quase cultura planetária” (MORIN, 2011, p 64-65).

No mesmo sentido, o autor passa a expor exemplos de estilos musicais e artísticos que só foram possíveis por uma mistura de gêneros de culturas diferentes que difundiram e tramaram um:

[...] folclore planetário se constituiu e se enriqueceu por meio de integrações e reencontros. Ele propagou pelo mundo o Jazz, que se ramificou em diversos estilos a partir de Nova Orleans, o Tango nascido no bairro portuário de Buenos Aires, o mambo cubano, a valsa de Viena, o Rock americano, que por si só produziu variedades diferenciadas no mundo inteiro. Ele integrou a cítara indiana de Ravi Shankar, o flamengo andaluz, a melopeia árabe de Oum Kalsoum, o huayno dos Andes. O rock apareceu nos Estados Unidos, aclimatou-se a todas as línguas do mundo, assumindo a cada vez uma identidade nacional. Hoje, em Pequim, Cantão, Tóquio, Paris e Moscou, dança-se, festeja-se, participa-se coletivamente do rock, e a juventude de todos os países vai flanar no mesmo ritmo no mesmo planeta. Por outro lado, a difusão mundial do rock suscitou, um pouco por toda parte, novas originalidades mestiças, como o raï, e elaborou, afinal, nesse rock-fusão, uma espécie de caldeirão rítmico na qual as culturas musicais do mundo inteiro vêm se entreunir (MORIN, 2011, p 66-67).

Contudo, frente à imaturidade dos Estados-nação, o autor afirma ser

a soberania absoluta das nações o maior obstáculo para a emergência de uma sociedade mundo: “Emancipadora e opressiva, a nação torna extremamente difícil à criação de confederações, que responderiam às necessidades vitais dos continentes, e serve de obstáculo ao nascimento de uma confederação planetária” (MORIN, 2011, p. 69).

Concluindo, para Morin (2011, p. 72): “A sociedade civil mundial ainda não existe, e a consciência de que somos cidadãos da Terra Pátria é dispersa, embrionária”.

4.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O dever de reconhecer e defender o Estado democrático de direito, a

igualdade entre homens e mulheres perante a lei, a liberdade de expressão, a rejeição da violência e a proteção da dignidade de minorias em situação de risco são princípios inscritos em todas as Constituições das nações democráticas europeias.

O que causa perigo à vida nas cidades é justamente o processo de desculturação, a ideia de que todo imigrante é um criminoso em potencial, e as expulsões em massa. Ignoram-se os princípios constitucionais. Toda sociedade é pluricultural e diversos grupos podem conviver juntos, desde que

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Crise migratória... // 73

respeitem as leis e instituições locais. Contudo, querer controlar a identidade cultural dos outros contraria os preceitos constitucionais democráticos.

Neste sentido, o papel do folclore global e da educação seria de promover a aproximação e a coexistência de diversos grupos étnicos religiosos, enfim, que abitem o mesmo solo, criando uma base cultural em comum e o conhecimento das leis que vigoram nas sociedades.

Para Todorov (2012), a língua é um elemento essencial para permitir a convivência entre diversos povos. Ele propõe tornar gratuito e obrigatório o ensino do idioma para todos que não sabem falar.

Outra proposta é criar uma memória em comum aos povos ensinando a história dos países de onde vieram e de onde chegaram, com uma abordagem crítica sobre o papel da comunidade.

Outro benefício que a imigração traz aos países da Europa é o rejuvenescimento de sua população, que possui alta faixa etária e baixos índices de natalidade.

Concluindo nas palavras de Todorov (2012, p. 187): De fato, é pela maneira de perceber e de acolher os outros diferentes de nós que podemos medir o grau de nossa barbárie ou de nossa civilização. [...]ser civilizado não significa ter feito estudos superiores, ou ter lido muitos livros, e, portanto possuir uma grande erudição. [...] ser civilizado significa ser capaz de reconhecer plenamente a humanidade dos outros, mesmo quando estes têm rostos e hábitos diferentes dos nossos; e também saber colocar-nos no lugar deles para nos enxergarmos de fora para dentro.

4.6 REFERÊNCIA

ADORNO, Theodor. A educação após Auschwitz. São Paulo: Ática, 1986. ELIAS, Norbert. 1997. Os alemães. Rio de Janeiro, Zahar. JULLIARD, Jaques. O fascismo está voltando? Rio de Janeiro: Vozes, 1997. MORIN, Edgar. Rumo ao abismo: ensaio sobre o destino da humanidade. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2011. ORWELL, George. 1984. 29. ed. São Paulo: Ed. Companhia Editora Nacional, 2005. SILVA, Francisco C.T. da. Os fascismos. In: REIS FILHO, Daniel Aarão. Século XX. Vol. II. O

tempo das crises. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. TODOROV, Tzvetan. Trad. Joana Angélica d`Avila Melo. Os inimigos íntimos da

democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012.

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= V =

DA LEI MARIA DA PENHA E DO TRATAMENTO JURÍDICO-PENAL DO ASSÉDIO MORAL NO ÂMBITO FAMILIAR E AFETIVO

Valéria Silva Galdino Cardin*

Andréia Colhado Gallo Grego Santos* 5.1 INTRODUÇÃO

A Lei 11.340/2006, popularmente chamada de Lei Maria da Penha,

foi um marco na história da violência de gênero intrafamiliar. Todavia, a mesma carece de algumas complementações, na medida em que não aborda de maneira satisfatória todas as situações de violência, como é o caso do assédio moral.

Tradicionalmente, o assédio moral se relacionava somente ao ambiente laboral. A identificação da referida figura no âmbito intrafamiliar é recente, apesar de ser um problema muito antigo e que, atualmente, não encontra amparo na legislação penal pátria. Diante da importância do assunto e em razão da gravidade da conduta, demonstrar-se-á a necessidade de sua criminalização.

Será analisado o conceito de assédio moral intrafamiliar, demonstrando, a partir disso, o enquadramento da proteção da integridade moral das mulheres como direitos humanos. Outrossim, tornar-se-á evidente como o assédio moral viola o princípio da dignidade da pessoa humana e, para tanto, tal princípio será conceituado a fim de que seja integrado no tema.

Em outro momento, as consequências geradas por essa modalidade de assédio serão analisadas, demonstrando-se os possíveis problemas físicos e psicológicos, os sentimentos, as sensações, bem como as perturbações sofridas pela vítima.

Ademais, a fim de se evidenciar a gravidade da conduta, abordar-se-á o princípio da parentalidade responsável como base da estruturação familiar, demonstrando-se como a prática do assédio moral desrespeita tal princípio, gerando danos nefastos para a vítima da agressão e para aqueles que assistem a violência.

* Pós-doutora em Direito pela Universidade de Lisboa; Mestre e Doutora em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professora da Universidade Estadual de Maringá e do Centro Universitário de Maringá-PR - UNICESUMAR; Advogada no Paraná. Endereço eletrônico: [email protected] * Discente do programa de Mestrado em Ciências Jurídicas com ênfase em Direitos da Personalidade do Unicesumar - Centro Universitário de Maringá. Bolsista da CAPES pelo Projeto PROSUP. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Professora da Faculdade Metropolitana de Maringá. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Advogada em Maringá.

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Da lei Maria da Penha... // 75

O aparecimento da violência moral na Lei Maria da Penha será

abordado, intentando-se demonstrar as lacunas existentes na citada Lei, assim como a perspectiva de solução para essa ausência de tratamento jurídico-penal, expondo-se, para tanto, as figuras que integram os crimes contra a honra – citados na Lei 11.340/2006 – e demonstrando como elas divergem do assédio moral.

Ao final, concluir-se-á pela necessidade de discussão e análise mais aprofundada em relação aos problemas advindos da violência de gênero intrafamiliar, visto que, especialmente no que tange ao assédio moral, há uma flagrante violação à integridade moral e, muitas vezes, à integridade psíquica e física da mulher, ferindo, por conseguinte, a sua dignidade. A prática do assédio moral intrafamiliar ainda é uma realidade invisível, de difícil comprovação, seja pelo medo da reprimenda do agressor ou pela vergonha de tornar pública a sua situação de agredida, quanto pelo sentimento de culpa, incutido pelo próprio agressor e que, anulando a sua ação, faz com que a vítima desenvolva um sentimento de autopunição.

Diante disso, propor-se-á uma reflexão objetiva sobre o tema, desenvolvendo-se, para tanto, pesquisas pelo método teórico, tendo como recursos bibliografias, literaturas e documentos, utilizando-se assim, doutrinas, livros, periódicos e documentos eletrônicos.

5.2 DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ESTABELECIDAS PELA LEI MARIA DA PENHA

A Lei 11.340/2006, chamada de Lei Maria da Penha, estabelece de

maneira bastante ampla não somente os locais em que a violência contra a mulher pode acontecer, mas também as formas de ocorrência dessa violência.

O rol – não taxativo – instituído pela referida Lei integra em seu art. 7º a violência física, psicológica, sexual, moral e patrimonial como formas de violência.

A violência física, elencada no art. 7º, inciso I, da Lei 11.340/2006, compreende “[...] qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal.” Com efeito, tal espécie de violência não exige que a agressão deixe marcas aparentes, mas se caracteriza simplesmente pela ofensa ao corpo ou à saúde da mulher pelo uso da força física (DIAS, 2007, p. 46).

Pela análise do art. 7º, inciso II da referida Lei, entende-se por violência psicológica,

[...] qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (BRASIL, 2006, web).

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O inciso III, do art. 7º da Lei Maria da Penha, dispõe sobre a violência sexual, que se caracteriza por

[...] qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos (BRASIL, 2006, web).

A violência patrimonial, inserida no art. 7º, inciso IV, da mesma Lei,

pode ser entendida “[...] como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidade”.

Finalmente, a Lei Maria da Penha, no art. 7º, em seu inciso V, traz a figura da violência moral, percebida, tão-somente, “[...] como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”. Como se verá a seguir, o dispositivo mostra-se equivocado, eis que a violência moral não se limita aos crimes contra a honra. Verifica-se, inclusive, tratar-se de bens jurídicos distintos, eis que a violência moral visa proteger a integridade moral da mulher que pode não coincidir com a honra.

Saliente-se, novamente, que embora essas formas de violência estejam bem destacadas pela Lei Maria da Penha, outras formas não expressas na referida Lei podem ser consideradas. Ademais, há que se ressaltar que independentemente da maneira como a violência se materializa, ela tem potencial para gerar danos trágicos, não somente à mulher, mas à toda a família, ferindo o bem mais precioso do ser humano: a sua dignidade.

5.3 DO ASSÉDIO MORAL NO ÂMBITO FAMILIAR E AFETIVO

Entre as formas de violência doméstica e familiar elencadas na Lei

Maria da Penha, a violência moral – equivocadamente vinculada aos crimes contra a honra – tem como bem jurídico a integridade moral e é revestida de características específicas que a distinguem da calúnia, da difamação e da injúria. Trata-se de uma prática comum em muitas famílias e que pode gerar danos nefastos para as mesmas. 5.3.1 Conceito

Na concepção de Maria Amélia de Almeida Teles e Mônica de Melo,

o termo “violência”, além de se caracterizar pelo uso da força física, psicológica ou intelectual com o fim de forçar outrem a realizar algo contra sua vontade, também “[...] é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar seu desejo e sua vontade, [...] é um

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Da lei Maria da Penha... // 77

meio de coagir, de submeter outrem ao seu domínio, é uma violação dos direitos essenciais do ser humano” (TELES, 2003, p. 15).

A violência se revela em variadas formas, devendo-se considerar a violência moral como parte integrante do seu conceito. Nesse contexto, surge a violência intrafamiliar especialmente aquela que provoca um dano à integridade moral da pessoa, que quando realizada de forma reiterada, é denominada de assédio moral. Tal figura, mais conhecido no âmbito do trabalho, pode se estender também ao meio escolar, bem como, ao ambiente familiar, trazendo danos nefastos não somente à vítima, mas à toda a família. Isso porque a prática reiterada das humilhações é mais grave do que uma única ofensa, o que aumenta o potencial de dano.

De acordo com as professoras Érika Mendes de Carvalho e Gisele Mendes de Carvalho,

“Assediar” significa estorvar, perseguir, hostilizar, importunar, molestar. O adjetivo “moral” situa essa forma de assédio como algo relacionado à ética e oposto, em princípio, às moléstias físicas, adquirindo o significado de causação de sentimentos humilhantes, aviltantes e degradantes no sujeito assediado (CARVALHO; CARVALHO, 2011, p. 5462).

No mesmo sentido, Maria Aparecida Alkimim afirma que a expressão

“assédio” representa o ato de perseguir com insistência ou, ainda, importunar, molestar, com pretensões insistentes. A expressão “moral”, por sua vez, compreende-se em seu aspecto filosófico, na sua relação ao agir ético, isto é, em consonância com as regras morais que regulam a conduta na sociedade (ALKIMIM, 2009, p. 39).

Destaca-se que o dano à integridade moral não coincide com o dano psíquico ou psicológico, gerado pela violência psicológica, na medida em que este somente ocorrerá naqueles casos em que a agressão cause na vítima um sentimento que requeira tratamento psiquiátrico, o que nem sempre ocorre no assédio moral. Além disso, há que se ressaltar que a integridade psíquica encontra-se devidamente tutelada no Código Penal, diferentemente da integridade moral que não encontra amparo na legislação penal (CARVALHO; CARVALHO, 2011, p. 5463).

No âmbito intrafamiliar, a agressão que constitui a figura do assédio moral visa degradar a mulher, é o “[...] exercício de uma violência compulsiva de uma pessoa ou um grupo de pessoas contra outra com o fim de subjuga-la e humilhá-la, perseguindo-a continuamente e submetendo-a a um grave e constante atentado à sua dignidade e integridade moral” (CARVALHO; CARVALHO, 2011, p. 5461), de modo que a mesma tenha prejudicado o seu desenvolvimento pessoal.

É uma violência frequente que se manifesta através de “[...] comportamentos abusivos por meio de gestos, palavras, atitudes, que ameaçam a integridade física ou psíquica da pessoa [...]” (MELO; TELES, 2003, p. 27). No mesmo sentido, afirma-se que o “[...] assédio moral, também conhecido como terrorismo psicológico ou psicoterror [...] consiste na prática de atos, gestos, palavras e comportamentos vexatórios, humilhantes,

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78 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

degradantes e constrangedores, de forma sistemática e prolongada (ALKIMIM, 2009, p. 38).

Nessa esteira, a psicóloga francesa Marie-France Hirigoyen, pioneira no estudo acerca do tema, afirma que o assédio moral se constitui em “[...] toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras, gestos, escritos que possam trazer dano à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa [...]” (HIRIGOYEN, 2008, p. 65).

A autora acima citada acrescenta que este tipo de violência é fria, verbal, depreciativa, na qual prevalecem subentendidos hostis, a falta de tolerância e injúrias. O efeito destruidor ocorre da repetição de agressões aparentemente inofensivas, mas contínuas, e que não cessam nunca (HIRIGOYEN, 2008, p. 134).

Logo, o assédio moral é marcado pela bilateralidade, em que de um lado tem-se o assediado e, de outro, o assediador, ambos conectados por uma relação de dominação e hierarquia deste último e de subordinação daquele sobre este.

Trata-se de uma maneira contínua e repetitiva de agir, com o intuito de humilhar, perseguir, lesar a moral da ofendida, tornando-a dependente. Assim, as

[...] palavras duras ou sabiamente falsas, literalmente expelidas no “momento certo”, soam como chicotadas, arrasam o ânimo de qualquer pessoa. Principalmente quando esse momento se repete e se repete, sem chance para outro recobrar, respirar ou pensar (PARREIRA, 2007, p. 55-56). O art. 5º da Lei Maria da Penha, enquadra o assédio moral, assim como as outras formas de violência, em três ambientes distintos, vejamos: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (BRASIL, 2006, web).

Ademais, o parágrafo único do citado artigo estabelece que “[...] as

relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”, o que significa que, de forma inovadora, tentou-se abarcar e, consequentemente, proteger integralmente as situações conflitantes, eis que tratou a Lei de forma ampla os locais abarcados pela violência familiar, bem como abrangeu todos os tipos de famílias – que atualmente vão além do tradicional casamento entre homem e mulher, podendo-se falar em união estável, união homoafetiva, dentre outras.

De fato, se de um lado houve um avanço, de outro, permanece o difícil quadro de identificação e investigação dessa violência, vez que o núcleo familiar como um instituto inviolável, só faz aumentar a violência, eis

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Da lei Maria da Penha... // 79

que a torna invisível, abrigada pelo segredo. O pacto de silêncio firmado pela agredida e pelo agressor o livra da punição e faz com que a mulher não se sinta vítima. Assim, a ausência de reação da mulher atacada exacerba a agressividade e os danos são infindáveis (DIAS, 2008, p. 20).

Infelizmente, a prática do assédio moral é sutil e se perpetra aos poucos, mas perdurando no tempo, muitas vezes de forma invisível, sem levantar qualquer suspeita; “[...] a agressão não se dá abertamente; ela é praticada de maneira subjacente, na linha da comunicação não verbal: suspiros seguidos, erguer ombros, olhares de desprezo, ou silêncios subentendidos, alusões desestabilizantes ou malévolas, observações desabonadoras [...]” (HIRIGOYEN, 2008, p. 134). Enfim, trata-se de conduta de difícil comprovação, porém, que pode trazer terríveis danos à vítima.

Diante do exposto, estabelece-se que o assédio moral intrafamiliar se constitui em uma violência reiterada, porém sutil, que visa degradar e humilhar a vítima, destruindo a sua autoconfiança e ferindo a sua dignidade.

5.3.2 consequências

A violência moral pode afetar imediatamente a saúde da mulher ou

se consolidar posteriormente. O fato é que a prática do assédio moral é devastadora, porquanto constrói na mulher um sentimento de confusão, depressão, tensão e medo. Ademais, na vítima podem se desenvolver sintomas como ansiedade, nervosismo, irritabilidade, mudanças no sistema endócrino, problemas digestivos, psíquicos e psicológicos, falta de ar, palpitações, dentre outros. Somado ao histórico de preconceito e, por vezes, sua natural fragilidade, a mulher se sente insegura e mais predisposta a aceitar o atributo de inferioridade como parte de sua condição de mulher.

Salienta Margarida Maria Silva Barreto que “[...] o assédio moral gera grande tensão psicológica, angústia, medo, sentimento de culpa e autovigilância acentuada. Desarmoniza as emoções e provoca danos à saúde física e mental [...]” (BARRETO, 2000, p. 157). Destarte, tal forma de violência pode ser traduzida como um trauma na vida da pessoa, eis que pode ocasionar sequelas físicas e psicológicas, que, em razão de sua intensidade, ficam marcadas na sua história como se cicatrizes fossem. Percebe-se que, muitas das pessoas ofendidas passam a sofrer das mais graves formas de tensão, ansiedade e depressão.

Tem-se percebido atualmente a ocorrência de uma evolução dos quadros clínicos de depressão endógena – de caráter biológico – provenientes dessa violência moral. Isso porque, a agressão moral se funda no bloqueio do inconsciente do indivíduo agredido, fazendo com que o mesmo se sinta responsável pela violência, que o deixa submisso ao agressor e sem possibilidades psicológicas de reagir1.

Acerca do tema Marie-France Hirigoyen assevera que

1 Estudo intitulado “Depressão uma Abordagem Iridológica”. Disponível no site: <http://www.batello.med.br/ort/ trabalhos/depressao.pdf.> Acesso em 20 de outubro de 2011.

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[...] diante de uma situação estressante, o organismo reage pondo-se em estado de alerta, produzindo substâncias hormonais, causando abatimento do sistema imunológico e modificação dos neurotransmíssores cerebrais (HIRIGOYEN, 2007, p. 172). Prossegue a autora alegando que, Se a situação se prolonga, ou repete-se com intervalos próximos, ultrapassa a capacidade de adaptação do sujeito e a ativação dos sistemas neuroendócrinos perdura. E a persistência de elevadas taxas de hormônios de adaptação acarreta distúrbios que podem vir a instalar-se de forma crônica. Os primeiros sinais de estresse são, segundo a suscetibilidade do indivíduo, palpitações, sensações de opressão, de falta de ar, de fadiga, perturbações do sono, nervosismo, irritabilidade, dores de cabeça, perturbações digestivas, dores abdominais, bem como manifestações psíquicas, como ansiedade (HIRIGOYEN, 2007, p. 173).

O sofrimento moral e emocional causado pela violência introjeta na

vítima um sentimento de baixa estima e auto depreciação. Com isso, consequentemente a mulher passa a acreditar que a culpa pela situação de agressão é sua e automaticamente ocorre a autopunição. Esse processo cíclico gera o isolamento da vítima e o silêncio – que pode ocorrer também por medo ou vergonha.

Assim, muitas vezes a mulher sequer tem consciência de que é vítima de assédio moral, o que dificulta a denúncia dessa prática tão recorrente na sociedade atual.

Ressalte-se, porém, que em relação ao estresse sofrido pelas vítimas, a vulnerabilidade do mesmo é variável em cada indivíduo. De fato, a fragilidade do agredido pode ser adquirida progressivamente diante das agressões repetidas, todavia, existem pessoas mais resistentes ao stress e que podem não sofrer os danos causados por ele (HIRIGOYEN, 2007, p. 173).

Isto posto, verifica-se que muitas são as consequências causadas pelo assédio moral e, tendo em vista a gravidade das lesões geradas por essa figura é que se mostra necessária a devida proteção das vítimas.

5.3.3 A dignidade da pessoa humana como princípio norteador da proteção da integridade moral

A violência quando exercida com o escopo de ferir a integridade

moral, desrespeita os direitos essenciais do ser humano, já que, diminuindo a autoestima da vítima, consequentemente, retira a sua dignidade. Assim, o assédio moral constitui uma violação dos direitos humanos, bem como das liberdades essenciais – direitos esses inalienáveis do ser humano –, de modo que atinge a cidadania das mulheres, impossibilitando-as de tomar decisões de forma autônoma, impedindo-as de expressar suas opiniões e desejos

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livremente e, dessa forma, viver em paz em suas comunidades (HIRIGOYEN, 2007, p. 173).

A integridade moral do indivíduo integra a noção de dignidade humana que pode ser considerada como um “[...] valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas” (MORAES, 2002, p. 25).

Sob o mesmo prisma, a dignidade da pessoa humana pode ser compreendida como uma qualidade intrínseca e irrenunciável da própria condição humana, devendo a mesma ser reconhecida, reverenciada, promovida e resguardada, não podendo ser retirada do ser humano já que existe como algo que lhe é inerente (SARLET, 2008, p. 44).

O assédio moral intrafamiliar fere as três máximas que constituem os direitos humanos, ou seja, a liberdade, a igualdade e a solidariedade. Tratando-se, portanto, de clara violação aos direitos humanos, a violência de gênero foi discutida na Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena (1993), ocasião em que se estabeleceu que a mesma é incompatível com a dignidade e o valor da pessoa humana, devendo ser eliminada.

Posteriormente, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, adotada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos em 1994, ratificada pelo Brasil em 1995 e promulgada em 1996, determina a definição de violência de gênero e o âmbito de aplicação da mesma, os direitos protegidos, os deveres dos Estados e os mecanismos interamericanos de proteção.

Com o advento da Lei 11.340/2006, chamada de Maria da Penha, possível verificar que a menção da Convenção acima em seu preâmbulo e o conteúdo de seu art. 6º que estabeleceu que a violência de gênero intrafamiliar constitui uma das formas de violação dos direitos humanos, evidencia a sua preocupação e desígnio em resguardar os direitos humanos das mulheres. Além disso, destacam-se outros dispositivos da Lei que tratam da proteção dos direitos humanos, como os artigos 3º, §1º e 8º, incisos V e IX.

Assim, a proteção que o princípio da dignidade humana representa é a implicação de que a cada indivíduo sejam atribuídos direitos que assegurem essa dignidade na vida social e que possibilitem a criação de um espaço no qual cada ser humano seja capaz de desenvolver adequadamente a sua personalidade (ASCENSÃO, 2005, p. 49-50), e especialmente, no caso das mulheres, para que as mesmas detenham autonomia e liberdade em suas ações de modo que possam alcançar a paz e o equilíbrio. 5.3.4 A violação do princípio da paternidade responsável em razão da prática do assédio moral

Tendo em vista a necessidade de que a convivência familiar seja

pautada no respeito entre os seus membros, sobretudo, seja constituída de

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carinho e responsabilidade dos pais em relação aos filhos, é que se destaca a obrigatoriedade de observância do princípio da parentalidade responsável. Este princípio estabelece a ideia da obrigação que os pais têm de prover a assistência moral, afetiva, intelectual, material, espiritual e de orientação sexual aos filhos (ROSA, 2012).

Assim, a base da família deve ser construída a partir da parentalidade responsável, de modo que haja equilíbrio e o regular desenvolvimento de todos os seus integrantes. Com efeito, o próprio poder familiar decorre dessa parentalidade responsável, caracterizando-se tal poder como munus público, imposto aos pais pelo Estado, a fim de que cuidem do futuro de seus filhos (GONÇALVES, 2012, p. 413). Ressalte-se que:

Na sociedade moderna, em que os direitos e obrigações do casal foram constitucionalmente igualizados não há mais espaço para uma maternidade responsável senão e, igualmente, uma paternidade do mesmo sentido responsável. O dever de formar cidadão no seio da família, não é tarefa relegada exclusivamente destinada a mãe geradora do filho, senão no mesmo sentido, ao pai que foi a causa de sua geração – dupla responsabilidade, em que as tarefas diárias decorrentes dos cuidados e educação do filho devem ser repartidas entre os consortes (REIS, 2008).

Reforçando a ideia, a Convenção sobre os Direitos da Criança

(BRASIL, 1990, web), determinou que fossem assegurados alguns direitos básicos como o regular desenvolvimento da família e, especialmente das crianças em um ambiente digno, repleto de amor, felicidade e compreensão, com a promoção da saúde física e mental, o direito de não discriminação no âmbito familiar, entre outros.

Note-se, a partir do exposto, que a prática do assédio moral no âmbito familiar compromete o desenvolvimento saudável dos filhos, uma vez que afasta dos pais a responsabilidade de estruturação da família, o que fere, por conseguinte, o princípio da paternidade responsável.

Ademais, a prática do assédio moral não gera danos apenas para a vítima da agressão, mas para os espectadores dela também. Sabe-se que os filhos tendem a reproduzir durante a vida aquilo que aprenderam com os seus pais. Ora, “[...] sempre se deve enfatizar que o comportamento do indivíduo é fortemente influenciado pela situação, pelas expectativas e por forças grupais e sociais (a pessoa tende a reproduzir aquilo que dela se espera)” (FIORELLI; FIORELLI; MALHADAS JUNIOR, 2006, p. 176).

Como a violência empregada na figura do assédio moral é constante, os filhos a veem como algo natural, podendo eventualmente repetir essa violência. Nesse interim, verifica-se que cada membro da família, especialmente a prole, “[...] guarda uma parte desse sofrimento, que irá reproduzir em outro lugar se não encontrar em si mesmo uma solução. Trata-se de um deslocamento do ódio e da destruição” (HIRIGOYEN, 2012, p. 48). Como afirmou Muskat, a família e, consequentemente, os lares são como laboratórios, onde se aprende a violência (MUSZKAT, 2005). Disso, constata-

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se que os filhos são um reflexo dos pais e diante da situação de agressão mergulham em um “círculo vicioso” de violência.

Cabe destacar que “[...] a perversão causa um desgaste considerável nas famílias. Ela destrói os laços e anula toda individualidade, sem que se tenha consciência disso” (HIRIGOYEN, 2012, p. 56). Ora, sentimentos como o amor e o afeto devem imperar no recôndito do lar, eis que são condições essenciais:

[...] para entender o outro e a si, respeitar a dignidade, e desenvolver uma personalidade saudável. Assim, é na interação com o outro, inicialmente na família, por meio do amor, que se desenvolvem na personalidade as qualidades eminentemente humanas de pensamento, auto-reflexão e empatia. É também na família que se desenvolve fundamentalmente a capacidade ética, de empatia, e os valores morais em maior ou menor sintonia com o resto da personalidade (GROENINGA, 2007, p. 111). Diante do exposto, constata-se a gravidade da prática do assédio

moral e a real necessidade de proteção das vítimas. Tal conduta fere o princípio da parentalidade responsável, afetando diretamente o desenvolvimento de todos os membros da família e afastando dos indivíduos o seu bem mais precioso, qual seja, a sua dignidade.

5.4 DO BEM JURÍDICO TUTELADO NOS CRIMES CONTRA A HONRA

Conforme já exposto acima, a Lei Maria da Penha, em seu art. 7º,

inciso V, vinculou a violência moral a qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. Todavia, perceber-se-á que o bem jurídico tutelado nos crimes contra a honra nem sempre coincide com o bem jurídico tutelado no assédio moral. Para tanto, realizar-se-á uma exposição acerca de cada tipo penal.

Inserido no art. 138 do Código Penal, o crime de calúnia se configura pelo ato de imputar a alguém, falsamente, fato definido como crime. Ora, tal como exposto no Capítulo V do mesmo Códex, o bem jurídico tutelado no referido tipo penal é a honra. Citando Gomez De La Torre, Luiz Regis Prado expõe que:

A honra está constituída pelas relações de reconhecimento entre os distintos membros da comunidade, que emanam da dignidade e do livre desenvolvimento da personalidade. Essas relações atuam como pressupostos da participação do indivíduo no sistema social e precisamente parte de seu conteúdo será consequência direta de sua participação no sistema. Estas relações de reconhecimento devem derivar-se da verdadeira participação do indivíduo no sistema social. Outra solução não seria possível em um ordenamento jurídico democrático (TORRE, 2013, p. 275-276).

Ao tratar do tema, a doutrina faz uma relevante distinção entre a

honra subjetiva e a honra objetiva, sendo esta a reputação que o indivíduo goza em certo meio social, ou seja, a estima que lhe é aferida; de outro lado,

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sob o prisma subjetivo, a honra se configura como o sentimento da própria dignidade ou decoro (PRADO, 2013, p. 276).

No mesmo sentido, Cezar Roberto Bitencourt assevera que “[...] enquanto a honra subjetiva representa o sentimento ou a concepção que temos a nosso respeito, a honra objetiva [...] é um valor ideal, a consideração, a reputação, a boa fama de que gozamos perante a sociedade em que vivemos” (BITENCOURT, 2010, p. 315).

Verifica-se então, que a calúnia atinge a honra objetiva da pessoa, ou seja, a sua reputação que seria “[...] o conceito que os demais membros da sociedade têm a respeito do indivíduo, relativamente a seus atributos morais, éticos, culturais, intelectuais, físicos ou profissionais” (BITENCOURT, 2010, p. 315).

Assim como no tipo anterior, o bem jurídico tutelado na difamação – inserido no art. 139 do Código Penal – é a honra objetiva, caracterizando-se o referido dispositivo pela imputação a terceiro de fato ofensivo à sua reputação. Note-se que no presente caso, é ainda mais claro o enquadramento da honra objetiva, pois o artigo é expresso no sentido de que ocorre uma ofensa à reputação do indivíduo, isto é, ao reconhecimento da pessoa em relação à sociedade que o cerca.

Por fim, o art. 140 do Código Penal apresenta a injúria como o ato de ofender a dignidade ou decoro de outrem. Enquanto na dignidade se reconhece o sentimento que o próprio indivíduo possui acerca de seu valor social e moral, o decoro é representado pela sua respeitabilidade (PRADO, 2013, p. 299).

Em que pese que o bem jurídico protegido seja a honra, no caso em tela, trata-se da honra no seu sentido subjetivo, ou seja, a “[...] pretensão de respeito à dignidade humana, representada pelo sentimento ou concepção que temos a nosso respeito” (BITENCOURT, 2010, p. 346). Destarte, percebe-se que a proteção da honra subjetiva tem por escopo o respeito ao bem maior dos seres humanos, qual seja, a sua dignidade.

Observa-se que a figura da injúria pode se aproximar do assédio moral na medida em que “[...] a nota característica da injúria é a exteriorização do desprezo e desrespeito, ou seja, consiste em um juízo de valor negativo, apto a ofender o sentimento de dignidade da vítima” (PRADO, 2013, p. 299). Acrescente-se que algumas diferenças merecem ser destacadas, como é o caso do elemento temporal exigido no assédio, isto é, a humilhação reiterada, o que não é exigido na injúria.

Logo, os crimes contra a honra são revestidos de características próprias que em muitos pontos se afastam da figura do assédio moral. Sendo assim, a necessidade de construção de um tipo penal diverso é premente. 5.5 DA INTEGRIDADE MORAL COMO BEM JURÍDICO DIVERSO

O assédio moral se concretiza mediante a reiterada humilhação e

aviltamento da mulher no âmbito familiar, identificando-se, assim, “[...] com um tratamento degradante na medida em que o agressor empreende ações

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humilhantes e hostis, contrárias à autoestima de sua vítima, e dirigidas à sua aniquilação psicológica e moral” (CARVALHO; CARVALHO, 2011, p. 5461).

Conforme salientado anteriormente, a Lei 11.340/2006 surgiu com o objetivo de proteger as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, assegurando o seu desenvolvimento digno, além de auxiliar no combate ao histórico de discriminação e subordinação pelo qual as mulheres foram submetidas desde os tempos mais remotos.

No art. 7º da referida Lei, a violência é definida de forma variada como sendo a física, a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. Em que pese a amplitude de tipos de violência, bem como ter o legislador incluído a categoria de “violência moral” no inciso V, note-se que a mesma se restringiu às figuras da calúnia, difamação ou injúria, isto é, dos crimes contra a honra, que já encontram abrigo no Código Penal vigente. Observa-se, portanto, que a Lei Maria da Penha não faz menção específica ao assédio moral, que tem como característica primordial o seu elemento temporal, ou seja, a violência repetida, frequente, que agrava a conduta, pois destrói a integridade moral da pessoa humana.

Com efeito, “[...] a integridade moral aproxima-se dos conceitos de dignidade humana e de incolumidade anímica, entendida esta como ausência de submissão a humilhações e vexações, enquanto que a integridade psíquica é sinônimo de saúde mental ou de ausência de doenças psíquicas” (CARVALHO; CARVALHO, 2011, p. 5466). E nesse sentido, o art. 5º, inciso III da Constituição Federal que dispõe que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante se aproxima mais à figura do assédio moral que a violência moral de que trata a Lei Maria da Penha.

Considerando a não identificação do assédio moral com os tipos penais existentes, especialmente os delitos contra a honra, é premente a necessidade de um dispositivo que criminalize o assédio moral, eis que, trata-se de um problema frequente e que gera danos nefastos às suas vítimas.

Vale relembrar que a figura do assédio moral pode não gerar necessariamente um dano físico ou psíquico, mas apenas – que não é pouco – o dano à integridade moral da vítima, de modo que a mesma tenha a sua dignidade lesada. Disso decorre a possibilidade de criação de um tipo autônomo, que englobe em seu texto a habitualidade da ação violenta, na medida em que analisando os tipos penais existentes não há algum que se identifique com a definição do assédio moral.

Outrossim, a importância da criminalização do assédio moral e consequente proteção dos assediados se deve em razão de ser essa forma de violência praticada por meio de ações perversas, intencionais, e por motivo banal (PARREIRA, 2007, p. 50).

Deve-se observar que os tipos expostos no Capítulo V do Código Penal, ou seja, os crimes contra a honra não coincidem com o assédio moral, portanto, não podem ser vinculados à referida figura, como pretendeu a Lei Maria da Penha. Verifica-se, a partir disso, a necessidade de criação de novo Capítulo apto a tratar do assédio moral, com todas as suas particularidades.

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De tal modo, em face da violação dos direitos humanos e, por conseguinte, da dignidade da pessoa humana, pela conduta do assédio moral no âmbito familiar, a criação de um tipo penal autônomo, que regulamente satisfatoriamente a ação reiteradamente violenta, se coloca como uma garantia de proteção à vítima.

5.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verifica-se que a violência, sobretudo aquela praticada contra a

mulher, é um fenômeno complexo que é fruto de vários fatores. Sua origem coincide com a adoção de um sistema patriarcal e, portanto, machista, que motiva o preconceito até os dias atuais.

A luta das mulheres por respeito, liberdade, igualdade e dignidade somente ganhou força com os movimentos feministas no século XIX e XX, e por essa ocasião houve um avanço dos seus direitos no campo do trabalho, da educação e da política. Verifica-se que a legislação brasileira atual, baseada nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos que estabeleceram a necessidade de proteção das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, ainda não trata suficientemente do assunto, como é o caso do assédio moral.

Apurou-se que essa violência moral reiterada é uma prática insidiosa e muito frequente no âmbito familiar ainda nos dias de hoje. Trata-se de uma forma de humilhação e degradação continuada, com o fim de tornar a pessoa submissa, concretizando a dominação masculina e mantendo uma relação de dependência da assediada para com o agressor.

Percebe-se que a família evoluiu – inclusive no seu conceito e abrangência –, as mulheres conquistaram e conquistam cada dia mais o seu espaço na sociedade, porém, a ideia de superioridade masculina ainda é uma realidade. Tal fato se comprova pela discriminação sofrida pelo gênero feminino nos vários setores sociais – trabalho, política, família etc.

Das consequências verificadas, observa-se que a lesão à integridade moral da vítima, pode ou não trazer problemas de ordem psíquica. Porém, quando se constata a existência dessas sequelas, a questão se agrava ainda mais, na medida em que o rebaixamento e diminuição da mulher através de ofensas e humilhações atinge profundamente a personalidade da mesma e, por conseguinte, a sua dignidade. Essa prática é devastadora, porquanto instala na mulher um sentimento de confusão, depressão, tensão e medo. Ademais, na vítima podem se desenvolver sintomas como ansiedade, nervosismo, irritabilidade, mudanças no sistema endócrino, problemas digestivos, psíquicos e psicológicos, falta de ar, palpitações, entre outros.

A ofensa à integridade moral causada pelo assédio moral introduz na vítima um sentimento de auto depreciação, que consequentemente, faz com que ela acredite verdadeiramente ser culpada pela situação de agressão, ocorrendo então, a autopunição. A decorrência disso é o isolamento e o silêncio com a concludente anulação da figura do agressor. Assim, não raras

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Da lei Maria da Penha... // 87

as vezes que a mulher sequer tem consciência de que é vítima de assédio moral.

A partir disso, perceber-se que como a prática do assédio moral desestrutura toda a família, evitando que haja o saudável desenvolvimento da prole, bem como ocorra a violação de princípios primordiais para a boa convivência familiar, como o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da parentalidade responsável.

Concluiu-se que a Lei Maria da Penha, nascida com o objetivo de proteger as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, assegurando o seu desenvolvimento digno, ainda possui algumas lacunas, entre elas, a ausência do assédio moral, que tem como característica diferenciadora o seu elemento temporal, ou seja, a violência reiterada.

Ademais, constatou-se que os crimes contra a honra não se identificam com a figura do assédio moral. Assim, é urgente a elaboração de um dispositivo que criminalize a referida prática, em novo Capítulo do Código Penal.

De tal modo, em face do desrespeito à dignidade não somente da vítima do assédio moral, mas de toda a sua família, a criação de um tipo penal autônomo, que regulamente satisfatoriamente a ação repetidamente violenta, se coloca como uma garantia de proteção à vítima e àqueles que a rodeiam, assegurando o regular desenvolvimento da sua personalidade, bem como da sua dignidade.

5.7 REFERÊNCIAS

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DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

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homoparental por meio da utilização da reprodução humana assistida. In: XXI Encontro Nacional do CONPEDI, Uberlândia, 2012.

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= VI =

DANO EXISTENCIAL NO DIREITO DO TRABALHO: LESÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Leda Maria Messias da Silva*

Sérgio Saes* 6.1 INTRODUÇÃO

O tema do presente estudo versa sobre o dano existencial nas

relações de trabalho. Nesse cenário, foca em compreender a evolução histórica do trabalho, sob o viés constitucional, doutrinário e jurisprudencial, abordando o tema correlacionando ao princípio da dignidade da pessoa humana como proteção ao trabalhador, dando suporte na fundamentação jurídica para o reconhecimento do dano existencial.

Ademais, o estudo define os elementos do dano existencial, observando como ele afeta a saúde do trabalhador, ocasionando doenças físicas e psíquicas, as quais impossibilitam a vida e o trabalho saudável, com vistas aos possíveis prejuízos no projeto de vida e no contexto laboral.

Dessa forma, foi possível obter elementos que auxiliaram no entendimento dos princípios e normas que regem a relação trabalhista de proteção ao trabalhador. Ademais, permitiram compreender o descumprimento das normas trabalhistas, aliado à sobrecarga de tarefas e à jornada de trabalho, abordando os fatores que influenciam a ocorrência do dano existencial.

O estudo visa compreender a relação existente entre as precárias e abusivas condições oferecidas pelo empregador ao trabalhador e a forma como isso afeta as suas atividades, de maneira a observar os prejuízos causados tanto para a existência do trabalhador quanto para o próprio empregador.

O dano existencial consistente no efetivo prejuízo ao arcabouço de relações que ajudam no desenvolvimento normal do sujeito, abarcando a

* Pós-doutora em Direito do Trabalho, pela Universidade de Lisboa – Portugal; Doutora e Mestre em Direito das Relações Sociais, Subárea de Direito do Trabalho, pela PUC-SP; Docente do curso de Graduação em Direito da Universidade Estadual de Maringá-UEM; Docente da Graduação e do Mestrado em Ciências Jurídicas do Centro Universitário de Maringá - UNICESUMAR; ex-membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e da Sociedade Brasileira de Bioética; sendo desta última, ex-membro da Diretoria, no Paraná; Ex-Docente da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro; Pertenceu, ainda, ao Comitê Permanente de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do UNICESUMAR (COPEC); pesquisadora em grupo de pesquisa junto ao CNPQ e bolsista da FUNADESP. * Mestrando na área de Direitos das Personalidades (UNICESUMAR – Maringá-PR); Formado pela Universidade Estadual de Maringá em 1994; Pós Graduação 1993/94 Pelo Ministério Público do Estado do Paraná-PR; Especialista no Direito do Estado – Área de Conc. do Direito Tributário (UEL); Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário (IDCC).

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ordem pessoal e irradiando seus efeitos no seio social, que é o objeto do presente estudo e foi feito utilizando-se, principalmente, do método indutivo.

6.2 AS PRECÁRIAS CONDIÇÕES DE TRABALHO AO LONGO DA HISTÓRIA

Ao considerar a concepção humana, percebe-se que o trabalho

possui caráter pessoal, constituindo um ato de vontade livre do homem. Apresenta uma forma específica, na medida em que expressa o valor e a personalidade de quem o executa. Constitui, assim, um meio de subsistência, e cumpre um conjunto de funções sociais.

Na Antiguidade utilizava-se do trabalho escravo, especialmente entre gregos e romanos. A ideia do trabalho como mercadoria foi o fator responsável pela inclusão laboral no contexto da propriedade. O escravo se assemelhava a um objeto que pertencia ao seu amo ou senhor, o escravo era considerado objeto de direito de propriedade, e em nenhuma hipótese era considerado sujeito de direito, estava ausente a relação jurídica de empregador e empregado.

Na economia Medieval, o trabalho escravo enfraqueceu e no período feudal predominou a economia agrária, o trabalho era exercido pelo servo.

Na época medieval, as relações jurídico-laborais que se desenvolviam nas corporações de ofício enquadravam-se dentro de uma orientação heterônoma. A regulamentação das condições de trabalho era estabelecida por normas alheias a vontade dos trabalhadores [...] (BARROS, 2010, p. 60).

Os abusos praticados pelos mestres nas corporações de ofício

geraram protestos e revoltas entre os trabalhadores, o que redundou na transição da sociedade artesanal para o capitalismo mercantil. Com a inovação tecnológica ocorreu a crise do regime artesanal e foi dado início à Revolução Industrial, que consagrou a liberdade para as livres contratações e para o exercício das profissões, artes ou ofícios. Nesse sentido, tem-se o seguinte entendimento doutrinário:

As corporações de ofício foram suprimidas com a Revolução Francesa, em 1789, pois foram consideradas incompatíveis com o ideal de liberdade do homem [...] Outras causas da extinção das corporações de ofício foram a liberdade de comércio e o encarecimento dos produtos das corporações. Com a Revolução Francesa, de 1789, e sua Constituição, foram reconhecidos os primeiros direitos econômicos e sociais – o direito ao trabalho. Já a Revolução Industrial transformou o trabalho em emprego e os trabalhadores começaram a trabalhar por salário. Esses, contudo, começaram a se reunir e se associar para reivindicar melhores condições de trabalho e de salários, diminuição das jornadas excessivas e contra a exploração de menores e mulheres. O empregador preferia o trabalho de menores e de mulheres, pois esses trabalhavam mais horas e ganhavam menores salários (MARTINS, 2014, p. 05).

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O panorama da época revelava que o trabalhador, que nada possuía,

era vítima dos abusos do patrão que detinha o capital. Em função da desigualdade, o Estado começou a interferir nas relações de trabalho, visando o bem-estar social e a melhoria das condições de trabalho.

A legislação do trabalho, portanto, é fruto da reação contra a exploração dos trabalhadores pelos empregadores. Além de limitar os abusos do empregador, esta legislação também visou modificar as condições de trabalho.

6.3 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA DIANTE DO VALOR SOCIAL DO TRABALHO

Os princípios são orientadores da construção do ordenamento

jurídico, e têm função sistêmica, ou seja, sustentam os seus sistemas, são as vigas mestras do seu ordenamento, norteiam a elaboração da regra, embasando-a e servindo de forma para a sua interpretação. Ademais, nivelam valores e interesses, de acordo com o seu peso e a ponderação de outros princípios conflitantes.

No que tange à Ciência Jurídica, além de preservar a validade, os princípios se destacam pela contribuição da compreensão global e integrada de qualquer universo normativo. Além disso, orientam a correta percepção do sentido do instituto e da norma no conjunto do sistema normativo em que se integra.

Relata (ALVES, 2001, p. 133), que é imperioso reconhecer que existe uma unidade sistêmica relativamente aos direitos fundamentais no constitucionalismo aberto, tendo como raiz central a dignidade da pessoa humana e vai além, descrevendo que na atual Carta Magna, a pessoa humana tornou o epicentro do constitucionalismo brasileiro (ALVES, 2001, p. 140).

Quando a Constituição Federal elencou no seu art. 1.º, III, a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais da República, consagrou a obrigatoriedade de proteção máxima à pessoa por meio de um sistema jurídico-positivo formado por direitos fundamentais e da personalidade humana, garantindo assim o respeito absoluto ao indivíduo, propiciando-lhe uma existência plenamente digna e protegida de qualquer espécie de ofensa, quer praticada pelo particular, ou pelo Estado.

Sem embargos, o Doutor Elimar Szaniawski, deixa claro o que representa a dignidade da pessoa humana, perante um ordenamento jurídico:

O princípio da dignidade da pessoa humana constitui-se em um verdadeiro supraprincípio, a chave de leitura e da interpretação dos demais princípios fundamentais e de todos os direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição (SZANIAWSKI, 2005, p. 141).

Trilha o doutrinador supra,

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92 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

[...] que o ser humano é possuidor de dignidade, anterior ao direito, não necessitando por conseguinte, ser reconhecida juridicamente para existir e por fim relata que a dignidade da pessoa humana é uma cláusula geral de garantia da personalidade do ser humano, tutelando-a em todas as dimensões (SZANIAWSKI, 2005, p. 141 e 143).

O professor Ingo Wolfgang Sarlet (SARLET, 2012, p. 90) cita a

exortação de Paulo Bonavides, no prefácio da primeira edição de sua obra, relativo a dimensão que deve-se dar a dignidade da pessoa humana.

Sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser portanto máxima e se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senão em que todos os ângulos ético da personalidade se acham consubstanciados.

Doutrinariamente, tem-se que: O ordenamento jurídico não pode permitir que o indivíduo seja espoliado daqueles direitos que, por corresponderem aos bens mais elevados, têm um caráter de essencialidade da pessoa: (OLIVEIRA, 2002. p. 24 apud DE CUPIS, 1982. p. 88) Os poderes jurídicos que incidem unitária e globalmente sobre a personalidade física ou moral de certo homem “não podem ser cedidos, alienados ou sub-rogados a favor de outrem, pois, dada aquela inseparabilidade, qualquer negócio a esse respeito seria contrário à ordem pública (OLIVEIRA, 2002. p. 24 apud SOUZA, 1995. p. 403).

A garantia da dignidade da pessoa humana está intimamente

relacionada com a preservação dos valores sociais do trabalho, a ver: Interpretando-se sistematicamente os direitos fundamentais previstos nos arts. 1º. e 3º. Da Constituição Federal, sob a ótica da pessoa humana do trabalhador, de acordo com o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais (Canotilho), conclui-se que a preservação dos valores sociais do trabalho é uma das formas de se garantir a dignidade da pessoa humana, bem como propiciar ao ser humano uma sociedade mais justa, como igualdade de oportunidades, para o seu pleno desenvolvimento físico e intelectual (SHIAVI, 2009. p. 111).

Complementando, a doutrinadora Leda Maria Messias da Silva,

expõe: O princípio da dignidade da pessoa humana é elemento fundante da República Federativa Brasileira, servindo como alicerce a todos os demais. Destarte, “abarca em seu âmago, em última análise, o respeito que há de merecer todo o ser humano, na mais profunda de sua concepção material e moral, e alcança o acesso de todos não apenas às chamadas liberdades formais, mas, sobremaneira, às liberdades reais”. (SILVA, 2015. p. 43 apud MINASSA, 2012. p. 133-134). Menciona que é importante delinear tal princípio:

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Dano existencial no direito do trabalho... // 93

[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração que o faz por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venha a lhe garantir as condições existências mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SILVA, Leda; SILVA Lanaira, 2015. p. 43-44 apud SALET, 2006. p. 56-60).

Em relação ao valor da pessoa humana, Kant consegue ser exato em

sua colocação, conforme descreve-se: No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade...Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse preço, sem de qualquer modo ferir sua dignidade (SARLET, 2012. p. 41 apud KANT, 1980. p. 140).

A dignidade da pessoa humana deve ser vista como o valor fonte a

ser respeitado em toda ordem social e econômica, ou seja, nas relações humanas, em especial, nas relações de trabalho, nas quais já sendo inata a existência da subordinação, impõe-se um cuidado especial quanto ao respeito a esse direito, para não se chegar ao cúmulo de transformar o trabalhador em um mero objeto de propriedade do empregador.

6.4 O TRABALHO E A PROTEÇÃO AO TRABALHADOR

As normas e princípios trouxeram garantias trabalhistas, valorizando

o trabalhador como indivíduo, como homem, e não somente como profissional. Os princípios específicos auxiliam na elaboração de leis e na sua própria interpretação quando a dúvida persistir e o hipossuficiente se vir prejudicado.

Na definição de Arendt, é demonstrada a relevância do valor da atividade laboral na vida do trabalhador:

O trabalho é atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimentos espontâneos, metabolismo e resultante declínio estão ligados às necessidades vitais produzidas e fornecidas ao processo vital pelo trabalho e a própria vida (ARENDT Hannah, 2014. p. 08).

A melhoria das condições do trabalhador deve ser feita por meio da

legislação que, antes de tudo, tem por objetivo protegê-lo, em decorrência de ser considerado o polo mais fraco da relação entre o obreiro e o empregador.

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94 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Com a evolução social, econômica e política surgiu a necessidade de definir garantias mínimas para o trabalhador, uma vez que a hiper-exploração da mão de obra humana tomava conta dos centros industriais, causando prejuízos, tanto físicos como psicológicos aos subordinados dos empregadores. Considerando que:

A velha empresa, organização vertical centrada no poder diretivo, na hierarquia e na subordinação dos assalariados, sempre teve a competição como regra. A empresa pós-moderna, leve, enxuta que executa trabalho por rede elevou a competição interna e externa a uma verdadeira guerra, sem compaixão pelo vencido (GUEDES, 2008).

As normas instituíram uma barreira protetora com intuito de garantir

condições dignas para que o trabalhador exerça suas atividades. Apesar dos inúmeros avanços, contudo, ainda existem pessoas trabalhando em condições precárias, em situações análogas às de escravos, sem nenhum respeito à dignidade humana. Assim, para que essa realidade continue mudando, é necessário haver a conscientização dos empregadores, principalmente com relação à valorização do ser humano e do trabalho digno, e um meio ambiente de trabalho saudável, possibilitando a criação de normas que visem promover o desenvolvimento econômico, sem necessidade de explorar o trabalhador ou considerá-los ou tipificá-los como uma mera máquina produtiva.

Quando se fala em escravidão contemporânea pelo trabalho, não se quer restringir à defesa da aplicação dos direitos trabalhistas, tais como o direito ao salário e demais verbas que são devidas aos trabalhadores, à anotação em carteira de trabalho e previdência social, ao direito de se ter um ambiente de trabalho adequado às suas necessidades, dentre outros. Trata-se, sobretudo, da necessidade de garantir e efetivar o respeito aos direitos humanos e sociais que são inegavelmente por ela atingidos.

A Constituição de 1988, ao tratar da questão do meio ambiente, fala em “ambiente ecologicamente equilibrado”, em seu art. 225. O art. 200, inciso VIII, faz referência específica ao ambiente de trabalho, ao estabelecer que compete ao Sistema Único de Saúde “[...] colaborar com a proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”. A doutrina estende, também, ao ambiente de trabalho esta proteção, sem contar que a Organização Internacional do Trabalho, ao usar a expressão “emprego decente”, na Recomendação 193, o faz com a conotação de que o trabalho seja decente em todos os seus aspectos, inclusive do ambiente digno ao trabalhador.

Raimundo Simão de Melo expõe apropriadamente que o bem ambiental envolve também a saúde do trabalhador e que cabe ao empregador, primeiramente, a obrigação de “[...] preservar e proteger o meio ambiente laboral e, ao Estado e à sociedade, fazer valer a incolumidade desse bem” (CARVALHO et al., 2013. p. 89-90 apud MELO, 2006. p. 71). E, para tanto, relembra o autor, estabelece a Constituição de 1988, como fundamentos do estado Democrático de Direito e da ordem econômica, os

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valores sociais do trabalho, a dignidade da pessoa humana e o respeito ao meio ambiente.

Na obra Docência Indigna, descreve a Professora Dra. Leda Maria Messias da Silva (SILVA; TAQUES, 2013, p. 25), “que o meio ambiente do trabalho não é só o local de trabalho, mas todos os fatores internos e externos que exercem influência recíproca com o trabalho”. Grifo nosso

Constata-se as influências internas e externas ao trabalhador noturno e em contrapartida, este meio ambiente de trabalho, deve trazer em seu arcabouço a dignidade da pessoa humana, conforme bem aduz o professor Ingo Wolfgang Sarlet, em relação à integridade física: “Da mesma forma, não restam dúvidas de que a dignidade da pessoa humana engloba necessariamente respeito e proteção da integridade física e emocional (psíquica) em geral da pessoa [...] (SARLET, 2012, p. 105). Grifo nosso

A figura do meio ambiente equilibrado, descrito no art. 225 da CF/88, e sob a ótica da Dra. Leda Maria Messias da Silva (SILVA, 2013, p. 47/48) traduz-se de forma ímpar para o sistema cientifico doutrinário:

Ao Analisar o ambiente de trabalho, sob a óptica do Direito da Personalidade, constatou que o ambiente, em geral, está intimamente ligado à integridade física da pessoa, principalmente o ambiente do trabalho, sendo que este pode provocar danos a personalidade, à dignidade, à integridade física ou psíquica de uma pessoa, bem com à honra e ao nome. Grifo nosso

A repercussão das consequências que o ambiente do trabalho pode

provocar, reflete em danos à personalidade e dignidade da pessoa humana, podendo tirar uma pessoa do convívio social, causando a alteração na integridade psíquica do trabalhador.

Atualmente, reconhece-se que todo e qualquer dano causado à pessoa deve ser indenizado. Os princípios neminem laedere, e honeste vivere, alterum non laedere et suum cuique tribuere – devem ser observados em sua abrangência máxima, de forma a conceder uma eficaz proteção ao bem-estar do homem. Essa macro visão da responsabilidade civil, ou da defesa do direito à incolumidade absoluta do homem, é a postura mais consentânea com a realidade dos nossos dias. Não mais se tolera outro entendimento a não ser o de que o homem deve ser protegido de toda ação ou omissão culposa lato sensu, não importa de quem ou como provenha, que lhe cause um deficit econômico, físico, psíquico, psicofísico ou psicossomático, exatamente porque o indivíduo, o ser humano, é um complexo de tudo isso, de todos esses bens, valores e interesses que formam o seu patrimônio existencial.

6.5 DANO EXISTENCIAL

A hiper-exploração da mão de obra humana, acompanhada ou não

de contraprestação em pecúnia, causa ao trabalhador um tipo de prejuízo que vem sendo doutrinariamente chamado de dano existencial.

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96 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Entende-se por dano existencial o conjunto de repercussões de tipo relacional marcando negativamente a existência mesma do sujeito que é obrigado a renunciar às específicas relações do próprio ser e da própria personalidade (GUEDES, 2008. p. 128 apud RAUSEI, 2002, p. 55).

O dano existencial está ligado aos direitos fundamentais e de personalidade, assentados na dignidade humana. Por esse motivo, não constituem expressão econômica imediata, mas são direitos subjetivos não patrimoniais. Estão relacionados à satisfação das necessidades de ordem física ou moral, pois afetam o equilíbrio da pessoa, atingindo a sua essência e [...] a sua dignidade, tornando conveniente a atuação da responsabilidade civil para cessar a desarmonia ocasionada pelo ofensor (SOARES, 2009, p. 37).

Existem pontuais distinções entre dano moral e dano existencial. O dano moral consiste na lesão sofrida pelo indivíduo no tocante à sua personalidade. Portanto, a reparação por dano moral visa compensar, ainda que por meio de prestação pecuniária, o desapreço psíquico oriundo da violação do direito à honra, liberdade, integridade física, saúde, imagem, intimidade e vida privada, a sua dimensão é subjetiva e não exige prova. Já no dano existencial refere-se a um dano que decorre de uma frustração que obsta a realização pessoal do obreiro, com prejuízo da qualidade de vida e de sua personalidade, impõe a reprogramação e obriga um relacionar-se de modo diferente no contexto social, é passível de constatação objetiva.

A doutrina sabiamente interpreta o dano existencial como uma ação negativa:

Em defesa da tese do dano existencial, todavia, argumenta-se que o dano moral deriva, geralmente, de uma conduta de tipo penal relevante; por outro lado, o dano moral implica sofrimento, resultado de uma grande dor interior, inexprimível do ponto de vista material, enquanto o dano existencial implica um “não fazer” e se caracteriza pelo fato de obstaculizar a atividade na qual a pessoa se sente realizada (GUEDES, 2008. p. 129).

No Brasil, a ressarcibilidade do dano existencial encontra suporte

legal nos arts. 1º, inciso III e art. 5º, incisos V e X da CF/88: Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

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[...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Na relação empregatícia poderá ocorrer a acumulação do dano

existencial e do dano moral, mesmo que derivados do mesmo fato. Várias são as consequências causadas pelo dano existencial e que

nem sempre prejudicam somente a saúde e o patrimônio da vítima, veja-se: O dano existencial pode decorrer de atos ilícitos que não prejudicam a saúde nem o patrimônio da vítima, mas a impedem de continuar a desenvolver uma atividade que lhe dava prazer e realização pessoal. No mundo do trabalho essa perda pode decorrer da dispensa injusta, do rebaixamento de função, da obrigação de trabalhar em condições desconfortáveis e inseguras, da preterição na ascensão profissional, e, especialmente, da perda da paz interior decorrente do assédio sexual ou da vexação e humilhação insidiosa próprias do mobbing, ainda que de natureza leve (GUEDES, 2008, p. 129).

Para que exista o dano existencial, é necessário um dano

reconhecido juridicamente, uma ação ou omissão, a conduta em si, juntamente com o nexo de causalidade entre ambos e o nexo de imputação sobre o responsável. Materializa-se com a renúncia involuntária das atividades cotidianas, comprometendo as próprias esferas de desenvolvimento pessoal, caracterizado por sacrifícios, abnegações e o prejuízo do cotidiano, perdendo o vínculo com as pessoas, coisas ou até mesmo interesses, por um período provisório ou definitivo.

Importante ressaltar que o dano existencial impede a efetiva integração do trabalhador à sociedade, impedindo o seu pleno desenvolvimento enquanto ser humano.

6.5.1 Origem do dano existencial e a evolução no Brasil

O Dano Existencial é recente, sendo inicialmente apurado pelo Direito

Italiano, em meados da década de 1970. Naquele período, o Código Civil italiano já emitia pronunciamentos judiciais.

A partir da década de 1970, começaram a ser emitidos mais pronunciamentos judiciais, determinando a necessidade de proteger a pessoa contra atos que, em maior ou menor grau, atingissem o terreno de sua atividade realizadora.

Simultaneamente, a justiça italiana entendeu o direito à saúde como norma de direito fundamental, emergindo o direito à reparação independente da constatação de um ilícito penal, uma vez que tal regra verificava-se também nas relações civis.

A partir desse ponto, o dano à saúde também entendido como dano à vida ou dano biológico, desenvolveu-se rapidamente, desdobrando-se em outras espécies de direitos imateriais que necessitavam de proteção através

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98 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

da tutela jurisdicional do Estado, contudo não se enquadravam nos preceitos preexistentes.

Pela sentença prolatada em junho de 2000, foi reconhecido o direito ao ressarcimento do dano existencial que coroou o processo evolutivo de proteção à dignidade da pessoa humana. A ver:

A tese do dano existencial ganhou fôlego depois da sentença [7713 de 7 junho de 2000] proferida pela Corte de Cassação, a qual, examinando o pedido de reparação de uma mãe (em seguida substituída no processo pelo filho que atingiu a maioridade) numa ação de família, concluiu que o comportamento omissivo e negligente do pai (divorciado da mãe) implicou lesão dos direitos do filho (à época, menor), inerentes à qualidade de filho e de menor e que referida lesão resultante da conduta negligente e desinteressada do genitor resultava em verdadeiro dano existencial (GUEDES, 2008. p. 129 apud Corte Costituzionale, n. 184/1986).

Aquela Corte Superior rejeitou o recurso e manteve a condenação ao

argumento de que o autor da ação era vítima de um dano causado pelo comportamento injusto do genitor, que obstinadamente, retardou o adimplemento da obrigação alimentar enquanto pode. Essa ação caracterizou, segundo os magistrados, uma ofensa a um direito fundamental da pessoa, o direito do autor de ser tratado com dignidade, quer por sua condição de filho quer por se tratar de menor.

Viu-se assim proclamada a ampla e integral tutela à dignidade da pessoa humana, com o ingresso no mundo jurídico do dano existencial, uma nova categoria de ressarcimento do injusto no campo da responsabilidade civil, que surgiu para preencher uma lacuna no sistema de ressarcimento do dano injusto causado à pessoa.

Emergia o novo instituto, consolidado na jurisprudência e cada vez mais difundido no direito Italiano, que aos poucos acabou por transpassar suas fronteiras, chegando ao Brasil.

No Brasil, diante do influxo do novo instituto jurídico, e o término do regime militar posteriormente, retomando um Estado democrático de direito, fez surgir um movimento de tutela aos direitos fundamentais, dentre eles os da personalidade, a Constituição Federal de 1988 recepcionou tal anseio popular (em especial no disposto no artigo 5º), e posteriormente na Lei Civil de 2002.

Dessa forma, o direito brasileiro, acabou por abarcar tal hipótese como tutelável, aplicando-o com fundamento na escassa doutrina e jurisprudência, considerando a não previsão legal específica, contudo, elevando o dano existencial como norma de direito fundamental à dignidade da pessoa humana, a qual se reveste, ou deveria revestir-se, de especial proteção.

Dessa forma, em um primeiro momento, a Constituição Federal de 1988, no Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, art. 5.º, V, assentou que “[...] é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”, bem como

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Dano existencial no direito do trabalho... // 99

dispôs no inc. X, do mesmo artigo, que: “[...] são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Consagrou-se, assim, a independência da indenização do dano imaterial.

Logo em seguida, foi editada a Súmula 37 do STJ, que dispôs: “São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”, e, finalmente, o novo Código Civil, que entrou em vigor no dia 11.01.2003 e consolidou a questão, assim dispondo no art. 186: “[...] aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, cuja norma foi completada com a do art. 927, in verbis: “[...] aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”, com o que se firmou a reparabilidade do dano imaterial, tanto isolada como cumulativamente com o dano patrimonial.

Por fim, a jurisprudência confirma a legislação com as Súmulas 37 do STJ e 491 do STF.

Assim sendo, em conclusão, pode-se afirmar que também no Brasil, como já consagrado na Itália, um ato, doloso ou culposo, que cause uma mudança de perspectiva no cotidiano do ser humano, provocando uma alteração danosa no modo de ser do indivíduo ou nas atividades por ele executadas com vistas ao seu projeto de vida pessoal, prescindindo de qualquer repercussão financeira ou econômica que do fato da lesão possa decorrer, deve ser indenizado como um dano existencial, um dano à existência do ser humano.

6.5.2 Elementos do dano existencial

Além dos elementos inerentes à qualquer forma de dano, como a

existência de prejuízo, o ato ilícito do agressor e o nexo de causalidade entre as duas figuras, o conceito de dano à existência é integrado por dois elementos, quais sejam: a) o projeto de vida; e b) a vida de relações.

O dano ao projeto de vida é aquele que fulmina metas e objetivos de importância vital à autorrealização. Doutrinariamente expõe-se o seguinte:

Júlio César Bebber associa a tudo aquilo que determinada pessoa decidiu fazer com a sua vida. Como bem discorre o referido autor, o ser humano, por natureza, busca sempre extrair o máximo das suas potencialidades, o que o leva a permanentemente projetar o futuro e realizar escolhas visando à realização do projeto de vida. Neste toante, afirma que qualquer fato injusto que frustre esse destino, impedindo a sua plena realização e obrigando a pessoa a resignar-se com o seu futuro, deve ser considerado um dano existencial (BOUCINHAS FILHO; ALVARENGA apud BEBBER, 2009, p. 28).

Autorrealização é a tendência de um organismo de desenvolver todas

as suas possibilidades de crescimento; o termo se aplica, sobretudo, ao desenvolvimento de si mesmo, designando a tendência do indivíduo de desenvolver-se e crescer como pessoa (WIKIPÉDIA, 2014).

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100 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

O prejuízo à vida de relações consiste em uma ofensa física ou psíquica, total ou parcial, que impede determinada pessoa a realizar qualquer atividade que possa reativar e renovar as energias do trabalhador.

Quanto à vida de relação, o dano resta caracterizado, na sua essência, por ofensas físicas ou psíquicas que impeçam alguém de desfrutar total ou parcialmente, dos prazeres propiciados pelas diversas formas de atividades recreativas e extralaborativas tais quais a prática de esportes, o turismo, a pesca, o mergulho, o cinema, o teatro, as agremiações recreativas, entre tantas outras. Essa vedação interfere decisivamente no estado de ânimo do trabalhador atingindo, consequentemente, o seu relacionamento social e profissional. Reduz com isso suas chances de adaptação ou ascensão no trabalho o que reflete negativamente no seu desenvolvimento patrimonial (BOUCINHAS FILHO; ALVARENGA apud ALMEIDA NETO, 2005, p. 52).

O projeto de vida está cercado de múltiplos fatores externos que

influenciam a escolha pessoal. É convivendo socialmente que se constrói a personalidade e se amadurece enquanto ser humano. Não basta apenas existir como um ser individualizado. Assim como a vida de relação que é caracterizada pelo relacionamento com terceiros. Neste contexto, se busca assegurar os direitos fundamentais do indivíduo.

Não é demasiado ressaltar que a Constituição de 1988 expressamente estatui que “[...] a entidade familiar, base da sociedade, tem especial proteção do Estado" (art. 226, caput) e que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar” (art. 227).

6.5.3 O dano existencial nas relações de trabalho

O trabalho passou por diversas transformações ao longo da História,

a principal delas foi reconhecer o trabalhador como tal, deixando de ser escravo, servo ou propriedade de seu amo. Houve conquistas gradativas que acompanharam a evolução industrial, em que se considerou o equilíbrio entre os limites físicos e a demanda de serviços.

Com o passar dos tempos, em virtude de princípios, normas e danos reconhecidos, o empregador está defrontando com limitações dentro de seu poder diretivo e em função de estar hierarquicamente acima em relação ao trabalhador.

A relação de trabalho está ligada ao lucro da empresa, dessa forma, o fruto do desenvolvimento econômico não vê barreiras para alcançar o máximo resultado de seus serviços ou produtos. A estratégia gerencial, cumulada com a ganância de muitos empregadores resulta em certas questões à ofensa à dignidade do obreiro. E, por mais que essas atividades sejam quitadas corretamente, com concordância do empregado, que

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Dano existencial no direito do trabalho... // 101

necessita desse salário, ou porque teme a demissão, nada substitui a paz de espírito.

O dano moral não afeta de forma significativa o cotidiano da pessoa, mas pode tornar mais penosa a prática de determinados atos.

O dano existencial no Direito do Trabalho, também chamado de dano à existência do trabalhador, decorre da conduta patronal que impossibilita o empregado de se relacionar e de conviver em sociedade por meio de atividades recreativas, afetivas, espirituais, culturais, esportivas, sociais e de descanso, que lhe trarão bem-estar físico e psíquico e, por consequência, felicidade, ou que o impede de executar, de prosseguir ou mesmo de recomeçar os seus projetos de vida, que serão, por sua vez, responsáveis pelo seu crescimento ou realização profissional, social e pessoal.

Neste contexto, configura-se o Dano Existencial como um dos possíveis danos nas relações de trabalho, sendo “[...] danos morais trabalhistas as ofensas individuais aos direitos da personalidade do trabalhador ou do empregador e as ofensas coletivas causadas aos valores extrapatrimoniais de certa comunidade de trabalhadores” (BELMONTE, 2009, p. 556).

Fica, porém, explícito no art. 5º, inciso X da CF/88, a garantia da indenização por dano moral:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

A preocupação com a eficácia dos direitos trabalhistas é tema

recorrente no universo jurídico. A análise dos direitos sociais consolidados na Constituição Federal de 1988, bem como dos princípios básicos que norteiam as relações de trabalho, evidenciam a necessidade de proteção de uma classe que emprega sua força de trabalho como meio de sobrevivência.

O reconhecimento do dano existencial revela-se imprescindível para a completa reparação do dano injusto extrapatrimonial cometido contra o trabalhador, compensando-o contra as ofensas aos seus direitos fundamentais.

O dano existencial consiste na atitude do empregador, mediante exigência de jornadas excessivas e em horários não condizentes com o ser humano (jornada noturna, sem absoluta necessidade), suprimir projetos pessoais e sociais do empregado, tais como a participação em atividades espirituais, comunitárias, de lazer, familiares, descanso, culturais. A consequência natural disso é a frustação do bem-estar psíquico, o que conduz ao desfalque da felicidade.

A impossibilidade de autodeterminação que o trabalho “escravizado” acarreta bem como as restrições severas e as privações que ele impõe,

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modificam, de forma prejudicial, a rotina dos trabalhadores a ele submetido, principalmente, no horário em que estão diretamente envolvidos na atividade laboral para a qual foram incumbidos.

O dano existencial constitui espécie de dano imaterial que acarreta ao trabalhador, de modo parcial ou total, a impossibilidade de executar, dar prosseguimento ou reconstruir o seu projeto de vida (na dimensão familiar, intelectual, artística, desportiva, científica, educacional ou profissional, dentre outras) e a dificuldade de retomar sua vida de relação.

Em decorrência das necessidades da sociedade de consumo, nem sempre há harmonização com as regras que protegem o trabalhador. Quando progresso experimentado pelo capitalismo, se dá às custas do trabalhador, certamente colide com os ditames legais criados para atenuar a fragilidade da relação de trabalho.

As jornadas de trabalho, em algumas situações, aumentam e se tornam desgastantes, desaguando em notável prejuízo à saúde do trabalhador, frustrando os seus projetos de vida, obstando o direito ao lazer, ao convívio familiar e à dignidade, dentre outras garantias fundamentais.

Nessa perspectiva, tem-se a ocorrência do dano existencial, à medida que as condutas ilícitas praticadas pelos empregadores causam prejuízos aos projetos de vida e relações sociais do trabalhador, de forma a lesar direitos fundamentais à existência humana.

6.5.4 O dano existencial e a saúde do trabalhador

O homem construiu diversas garantias, entre elas o direito à

dignidade da pessoa humana, que inclui a existência digna do indivíduo, exigindo proteção máxima e inegociável, concedida pelo legislador constitucional. Veja-se:

A integridade da pessoa humana envolve todos os seus aspectos, quer físicos, constituído uma unidade, a integridade psicofísica. Considerando a integridade psicofísica da pessoa com uma unidade problemática, na expressão de Perlingieri (SZANIAWSKI, 2005, p. 469).

A CF/88 demonstra a importância de implementar uma política de

saúde no trabalho, relacionada com a jornada e a duração laborativa, exposto no seu dispositivo legal:

Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

O direito fundamental à saúde está diretamente relacionado à

qualidade de vida dos trabalhadores no ambiente de trabalho e visa promover a sua incolumidade física e psíquica durante o desenvolvimento da sua atividade profissional, de modo que o trabalho possa ser executado de forma

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Dano existencial no direito do trabalho... // 103

saudável e equilibrada e que possa de lá sair em condições de desenvolver outras atividades, desfrutando assim dos prazeres de sua existência enquanto ser humano.

Fundamentada na doutrina tem-se que “O direito à saúde envolve tanto o perfil psíquico do indivíduo, como o perfil físico. A saúde não é, tão somente, um perfil estático e individual, mas se relaciona ao livre desenvolvimento da pessoa constituindo um todo com a mesma” (SZANIAWSKI, 2005, p. 469).

O dano existencial se constitui de diversas espécies, entre elas, uma se desenvolve nas relações de trabalho. Constitui, portanto, um dano à existência da pessoa, de modo a não permitir que seja feliz, impedindo as suas escolhas e decisões. Os desgostos e as decepções oriundas do trabalho fazem com que o empregado fique preso à situações e condições que impossibilitam a execução do seu projeto de vida, tanto pessoal quanto profissional.

Quanto maior a agressão à saúde do trabalhador no ambiente de trabalho, maior também será a agressão ao seu sistema imunológico, ficando este cada vez mais vulnerável a doenças decorrentes do trabalho.

Leda Maria Messias da Silva, citando Raimundo Simão Melo, na obra “Direito Ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador: responsabilidades legais, dano material, dano moral, dano estético, perda e uma chance”, (2º Ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 24), explica que quando a Constituição garante o meio ambiente ecologicamente equilibrado, no art. 225, abrange o Meio Ambiente do Trabalho:

O meio ambiente natural diz respeito ao solo, à água, ao ar, à flora e a fauna; o artificial, ao espaço urbano construído; o cultural, à formação e cultura de um povo, atingindo a pessoa humana de forma indireta. O meio ambiente do trabalho, diferentemente, está relacionado de forma direta e imediata com o ser humano trabalhador no seu dia-a-dia, na atividade laboral que exerce em proveito de outrem.

Quando as atividades realizadas pelo trabalhador em seu emprego

ultrapassam o nível suportável, existem grandes chances de desencadearem transtornos pessoais, profissionais, familiares e sociais. Tais atividades excessivas comprometem a saúde do trabalhador, possibilitando o aparecimento de doenças ocasionadas pelo trabalho, pondo em risco a sua saúde física e mental.

Boucinhas Filho e Alvarenga (2013, p. 251) afirmam nesse sentido que, quanto maior a agressão à saúde do trabalhador no ambiente de trabalho, maior também será a agressão ao seu sistema imunológico, ficando este cada vez mais vulnerável a doenças decorrentes do trabalho.

Jornadas de trabalho exaustivas, com prestação de labor em sobrejornada acima do limite estabelecido pela lei (art. 59, caput, da CLT), constitui causa de danos não apenas patrimoniais ao trabalhador, mas, principalmente, importa violação a direitos fundamentais e o aviltamento da saúde e bem-estar do empregado. Ampliação da jornada, inclusive com a

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prestação de horas extras excessivas, acentua, drasticamente, as possibilidades de ocorrência de doenças profissionais, ocupacionais ou acidentes do trabalho, ao passo que sua redução diminui de maneira significativa tais probabilidades.

A submissão de determinado trabalhador a exaustivo regime de trabalho, culmina na formação do dano ao projeto de vida e à sua existência, pois priva-lhe de tempo para o lazer, para a família e para o seu próprio desenvolvimento pessoal, cultural, artístico e intelectual, afetivo, entre outros. Pode também resultar em prejuízo para a saúde do trabalhador, motivo pelo qual deverá ser duplamente combatido. No que tange à proteção à saúde do trabalhador:

A sobrecarga de trabalho além dos prejuízos na vida de relação e ao projeto de vida, há repercussões ao fim e ao cabo que acarretam danos patrimoniais, diminuindo a capacidade econômica da vítima e prejuízo direto a sua saúde. “O reflexo dos danos causados pela agressão à vida do trabalhador se desencadeia na sua saúde, sendo a duração da jornada de trabalho uma das principais causas” (DELGADO, 2007, p. 26).

Assim, quando as atividades laborativas ultrapassarem o seu fim, que é a prestação de serviço, bem como ignorarem a integridade do obreiro, resultarão em prejuízos à sua saúde, que se confirma quando o empregado se sente prejudicado pelas condições expostas pelo trabalho, modificando fisicamente a forma como produz ou realiza suas atividades. As alterações físicas e psicológicas ocasionadas pela necessidade de adaptação para continuar realizando as atividades no mesmo ritmo, quantidade e qualidade, afetam não só o desgaste no ambiente laborativo, mas também refletem nas relações pessoais, familiares e, consequentemente, no projeto de vida.

Verifica-se, que quanto maior a quantidade de serviço prestado em determinado tempo, maior será o lucro da empresa, porém, a saúde do trabalhador correrá riscos, sendo a falta de um ambiente adequado um ponto negativo, que agrava o quadro de doenças, levando-o a se ausentar do trabalho. Neste aspecto, o empregador deveria entender que a sociedade é prejudicada, com mais concessões de licenças médicas, mas, também, depois de certo tempo, até mesmo os próprios empregadores, que não cuidando da saúde de seus trabalhadores e os expondo aos danos existenciais e à sua saúde, não terão este trabalhador à sua disposição por motivos de muito mais doenças.

Resta claro, portanto, que as condições degradantes impostas pelo empregador no ambiente de trabalho, principalmente físico, acarretam danos irreparáveis à vida de relações, refletindo diretamente na sua esfera pessoal, invadindo e impossibilitando a realização de pequenos desejos, por conta de uma doença ocasionada pelo labor e, inclusive, causa danos à sociedade e ao próprio empregador, depois de certo lapso de tempo. O dano existencial não deve ser tratado simplesmente como mais um dano imaterial, mas um causador de prejuízos, muitas vezes irreversíveis para o empregado, considerado frágil frente às prerrogativas do empregador.

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Dano existencial no direito do trabalho... // 105

Conclui-se que o responsável pelo aparecimento de doenças do

trabalho que poderão colocar em risco a saúde física e mental do empregado, é a violação à existência do trabalhador. Não sendo respeitado enquanto ser humano dotado de projetos de cunho pessoal e profissional. 6.5.5 Precedentes judiciais do dano existencial

É perceptível que o dano existencial gerado ao trabalhador pela

inobservância das leis trabalhistas constitui graves consequências cumulativas à vítima. Os empregados constrangidos pela exigência compulsória de longas jornadas de trabalho, por acúmulo de ação laboral superior à suportável, por falta de equipamentos que lhes facilitem ou lhes tornem menos sofríveis, diante desse panorama, os Tribunais vêm reconhecendo a figura do dano existencial.

Destaca-se ainda, a fim de bem ilustrar a aplicabilidade da dano existencial, na seguinte decisão oriunda do Tribunal Regional do Trabalho do Estado do Paraná:

TRT-PR-11-10-2013 DANO EXISTENCIAL. DANO MORAL. DIFERENCIAÇÃO. CARGA DE TRABALHO EXCESSIVA. FRUSTRAÇÃO DO PROJETO DE VIDA. PREJUÍZO À VIDA DE RELAÇÕES. O dano moral se refere ao sentimento da vítima, de modo que sua dimensão é subjetiva e existe in re ipsa, ao passo que o dano existencial diz respeito às alterações prejudiciais no cotidiano do trabalhador, quanto ao seu projeto de vida e suas relações sociais, de modo que sua constatação é objetiva. Constituem elementos do dano existencial, além do ato ilícito, o nexo de causalidade e o efetivo prejuízo, o dano à realização do projeto de vida e o prejuízo à vida de relações. Caracteriza-se o dano existencial quando o empregador impõe um volume excessivo de trabalho ao empregado, impossibilitando-o de desenvolver seus projetos de vida nos âmbitos profissional, social e pessoal, nos termos dos artigos 6º e 226 da Constituição Federal. O trabalho extraordinário habitual, muito além dos limites legais, impõe ao empregado o sacrifício do desfrute de sua própria existência e, em última análise, despoja-o do direito à liberdade e à dignidade humana. Na hipótese dos autos, a carga de trabalho do autor deixa evidente a prestação habitual de trabalho em sobrejornada excedente ao limite legal, o que permite a caracterização de dano à existência, eis que é empecilho ao livre desenvolvimento do projeto de vida do trabalhador e de suas relações sociais. Recurso a que se dá provimento para condenar a ré ao pagamento de indenização por dano existencial. (Paraná, TRT, ACO 40650-2013, Relatora: Ana Carolina Zaina, 2013).

Em outro julgado do Tribunal Regional do Trabalho do Estado do

Paraná, também: TRT-PR-15-05-2015 TRABALHO EM SOBREJORNADA. DANO EXISTENCIAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. O dano existencial, na lição de Júlio César Bebber, se caracteriza por lesões que comprometem a liberdade de escolha e frustram o projeto de vida que a pessoa elaborou para sua

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realização como ser humano, que esclarece haver optado por assim qualificá-lo porque o impacto por ele gerado "provoca um vazio existencial na pessoa que perde a fonte de gratificação vital" (Danos extrapatrimoniais (estético, biológico e existencial): breves considerações. Revista LTr, São Paulo, v. 73, n. 1, jan. 2009, p. 28). Todavia, o labor além da jornada legal ou contratual, ainda que extenso, não afronta a honra, dignidade, autoestima, reputação pessoal e/ou profissional do trabalhador, já que o trabalho, em nosso sistema social, é considerado um valor, de forma que um indivíduo que trabalha em momento algum é atingido em qualquer dos seus valores personalíssimos, não se cogitando, por isto, de indenização por danos morais unicamente em razão do fato de o cidadão ter trabalhado, ainda que além dos limites estabelecidos legal ou contratualmente, o que apenas suscita o direito ao percebimento das verbas trabalhistas fixadas no ordenamento jurídico (horas extras, pagamento em dobro do labor dominical ou em feriados, etc.). A cultura que vige nas sociedades modernas é a da dignificação do indivíduo pelo trabalho, e não sua desqualificação, sendo estigmatizada de forma pejorativa a pessoa que não trabalha, e não a que labuta. Não se pode inferir, assim, que o fato de o Reclamante ter praticado sobrelabor no decorrer de seu pacto laboral tenha lhe tisnado a honra, a dignidade, a autoestima, a imagem, a boa-fama, a reputação, ou qualquer outro bem extrapatrimonial, não se cogitando, assim, de qualquer lesão ao seu patrimônio imaterial e, portanto, tem-se por inexistente qualquer dano de natureza moral. Recurso do Autor a que se nega provimento, no particular. (Paraná, TRT, ACO 13777-2015, Relator: Ubirajara Carlos Mendes, 2015).

Dentro da acepção constitucional acima, insere, sobremaneira como

direito social fundamental, o convívio familiar, o convívio social, bastando o exame da decisão abaixo, do Tribunal Regional do Trabalho da Décima Quinta Região, in verbis:

DANO MORAL (DANO EXISTENCIAL). JORNADAS EXCESSIVAS E EXTENUANTES. INDENIZAÇÃO DEVIDA. A submissão de trabalhador a jornadas excessivas e extenuantes prejudica a vida normal, reduzindo drasticamente a possibilidade de lazer (direito social, previsto no artigo 6º da CF), o convívio social e familiar, além de culminar com a exposição a riscos diversos, inclusive à saúde. Com efeito, a prestação habitual de sobrejornadas estafantes acaba por configurar dano existencial, porquanto ofende o princípio constitucional de respeito à dignidade humana. Indenização por danos morais devida. Precedentes do regional. (SÃO PAULO, TRT, Ac. 9241/2015; Relatora: Eleonora Bordini Coca, 2015).

Abaixo, uma decisão do TRT paulista, sobre a configuração do dano

existencial, a qual transcreve-se por completo, dada a importância do seu conteúdo para o tema em questão, in verbis:

(TRT02-0128921) DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXAUSTIVA. RESTRIÇÃO SISTEMÁTICA AO DESCANSO E LAZER. OFENSA A DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL. DANO MORAL. Desponta na moderna doutrina uma nova abordagem segundo a qual a imposição de jornadas exaustivas no curso do contrato de trabalho possui aptidão para gerar dano

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Dano existencial no direito do trabalho... // 107

extrapatrimonial, na modalidade de "dano existencial". Isto porque a ampliação do tempo de alienação com redução das pausas intervalares e prorrogação sistemática de jornada, implica em contraponto, a subtração de parcela substantiva do tempo que o empregado deve ter para si, ocasionando dano à própria existência do trabalhador, vez que importa confisco irreversível de tempo que poderia destinar ao descanso, convívio familiar, lazer, política de classe ou em geral, estudos, reciclagem profissional, práticas esportivas, música, e tantas outras oportunidades de enriquecimento do corpo e do espírito. Neste sentido conceitua Hidemberg Alves Frota: "O dano existencial constitui espécie de dano imaterial que acarreta à vítima, de modo parcial ou total, a impossibilidade de executar, dar prosseguimento ou reconstruir o seu projeto de vida (na dimensão familiar, afetivo-sexual, intelectual, artística, científica, desportiva, educacional ou profissional, dentre outras) e a dificuldade de retomar sua vida de relação (de âmbito público ou privado, sobretudo na seara da convivência familiar, profissional ou social). Subdivide-se no dano ao projeto de vida e no dano à vida de relações. Em outras palavras, o dano existencial se alicerça em 2 (dois) eixos: de um lado, na ofensa ao projeto de vida, por meio do qual o indivíduo se volta à própria autorrealização integral, ao direcionar sua liberdade de escolha para proporcionar concretude, no contexto espaço-temporal em que se insere, às metas, objetivos e ideias que dão sentido à sua existência; e, de outra banda, no prejuízo à vida de relação, a qual diz respeito ao conjunto de relações interpessoais, os mais diversos ambientes e contextos, que permite ao ser humano estabelecer a sua história vivencial e se desenvolver de forma ampla e saudável, ao comungar com seus pares e experiência humana, compartilhando pensamentos, sentimentos, emoções, hábitos e reflexões, aspirações, atividades e afinidades, e crescendo, por meio do contato contínuo (processo de diálogo e de, culturas e valores ínsita à humanidade". (Hidemberg Alves da Frota, Noções Fundamentais Sobre o Dano Existencial, Revista Latino Americana de Derechos Humanos, Vol. 22 (2): 243, Julio-diciembre, 2011 (ISSN: 1659-4304 pgs. 251/dialética) em torno da diversidade de ideologias, opiniões, mentalidades, comportamentos 252). In casu, o Juízo firmou o seu convencimento no sentido de que o trabalhador estava efetivamente sujeito a jornadas exaustivas, conforme a descrição contida na petição inicial, que não foi elidida por nenhum elemento apto em sentido contrário, nos termos da Súmula nº 338, I, c. TST. Nesse contexto, ficou apurado que, muitas vezes, o trabalhador cumpria jornada excessiva durante o dia, retornando a noite para trabalhar no serviço de "valet", deixando o posto de trabalho no meio da madrugada e retornando na manhã seguinte. Ora, a longa faina contínua se traduz em cansaço e maior probabilidade de acidentes do trabalho, implicando ofensa a direitos basilares da pessoa humana. São de conhecimento público as consequências negativas do trabalho sem intervalo e sem descanso adequado, merecendo repúdio tais imposições. Ademais, a ausência de adequado descanso impossibilita o pleno exercício do direito ao trabalho, já que restringe as potencialidades do trabalhador ao afetar profundamente a sua saúde e capacidade físico-mental. Assim, restando provada a insólita conduta patronal, com a prática de abuso do poder diretivo ao exigir jornadas exaustivas (ainda que pelo mecanismo perverso da "compra" do direito irrenunciável) e restrição dos direitos ao descanso/lazer, com óbvias consequências à saúde do obreiro, que se via na contingência de ter que

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108 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

produzir sem poder refazer as energias dispendidas, resultaram ofendidos direitos humanos fundamentais, atingindo-se a dignidade, a liberdade e o patrimônio moral do demandante, de tal resultando a obrigação legal de reparar. (SÃO PAULO, TRT, RO nº 00013672220125020046 (20140724529); Relator Ricardo Artur Costa e Trigueiros, 2014).

O Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, em decisão

relatada pelo Desembargador Federal do Trabalho José Felipe Ledur, estabeleceu o pagamento de indenização à trabalhadora que fora vítima de dano existencial, por ter trabalhado sobrejornada excedente ao limite de tolerância. Veja-se:

DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXTRA EXCEDENTE DO LIMITE LEGAL DE TOLERÂNCIA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. O dano existencial é uma espécie de dano imaterial, mediante o qual, no caso das relações de trabalho, o trabalhador sofre danos/limitações em relação à sua vida fora do ambiente de trabalho em razão de condutas ilícitas praticadas pelo tomador do trabalho. Havendo a prestação habitual de trabalho em jornadas extras excedentes do limite legal relativo à quantidade de horas extras, resta configurado dano à existência, dada a violação de direitos fundamentais do trabalho que integram decisão jurídico-objetiva adotada pela Constituição. Do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana decorre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade do trabalhador, nele integrado o direito ao desenvolvimento profissional, o que exige condições dignas de trabalho e observância dos direitos fundamentais também pelos empregadores (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). Recurso provido. (Rio Grande do Sul, TRT, RO 105-14.2011.5.04.0241; Relator: José Felipe Ledur, 2011).

O Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, bem como

os demais Tribunais ora citados, demonstram claramente a preocupação dos nossos Tribunais em caracterizar o dano existencial, que fere um dos princípios mais sagrados para as relações de trabalho, qual seja, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

6.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que o trabalho como um meio de subsistência, destinado,

inicialmente, apenas para atender as necessidades essenciais da sobrevivência humana, em seguida, destacou-se por sua função social. Assim, as relações de trabalho foram amadurecendo com o passar dos séculos, desde o período em que o trabalhador era escravo e não tinha direito algum até os dias de hoje, quando está mais protegido pelo nosso ordenamento jurídico, porém, ainda não o suficiente.

Foi possível identificar uma valorização cada vez maior da pessoa humana diante daquele que exercia a função laboral. Constatou-se que os direitos fundamentais exerceram um papel relevante nessa evolução,

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Dano existencial no direito do trabalho... // 109

porquanto a importância concedida aos elementos essenciais à formação e à preservação da pessoa.

Há necessidade de evitar que os direitos constitucionais e garantias máximas dos trabalhadores não sejam cumpridos, e fazer com que, caso ocorra a ofensa, a mesma seja suprimida ou, pelo menos, mitigada, através do reconhecimento da figura do dano existencial. Assim, passou-se a conferir grande importância aos danos imateriais, concebidos como lesões que atingem negativamente interesses sem natureza e expressão econômica imediata e que podem afetar pessoas.

O reconhecimento da figura do dano existencial exsurge como a consagração jurídica da defesa plena da dignidade da pessoa humana. Essa defesa se fez necessária devido à desigualdade da relação empregatícia, pois o empregado está em um plano inferior, subordinado aos mandos do empregador, além de ser, geralmente, a parte mais fraca economicamente.

Verificou-se, que os referidos danos decorrem, fundamentalmente, da afronta aos direitos de personalidade. Destarte, a análise de diversos casos extraídos da jurisprudência evidenciou a possibilidade de ocorrência da aplicabilidade do dano existencial. Por outro lado, destacou-se que a valorização da pessoa fez com que seus elementos “periféricos”, relacionados ao seu bem-estar também fossem considerados em maior relevância. A qualidade de vida, então, passou a receber atenção maior, passando a ser reconhecida como um interesse imaterial juridicamente relevante, visando a proteção do meio ambiente de trabalhado.

Os empregadores, embora muitas vezes inconscientes, podem causar danos irreparáveis ao projeto de vida e a própria saúde do trabalhador, resultado das extensivas jornadas de trabalho, ou jornadas no período noturno, sem a absoluta necessidade, apenas visando o lucro, cumulado com a imensa quantidade de serviço e com menor quantidade de funcionários, sobrecarregando o empregado, ou cerceando de seus objetivos pessoais, sociais e profissionais. Não raro isso leva o empregado à doenças e, consequentemente, ao afastamento do empregado do trabalho, prejuízo não só para o empregado, mas também para a sociedade, com o maior número de licenças médicas e gastos sociais, e também para o empregador que, muitas vezes, nem percebe.

Na esfera do texto constitucional brasileiro, o dano existencial é previsto no art. 1º, inciso III e art. 5º, inciso V e X da Constituição Federal de 1988 e nesse contexto, com o reconhecimento doutrinário e aplicação dos danos existenciais pelo poder judiciário poder-se-á coibir tal prática, aplicando sanções reparatórias que persigam a plena reparação, e a prevenção destas atitudes nefastas ao mundo do trabalho. Visa-se, ao menos, recompor os prejuízos sofridos pela vítima, e, ao mesmo tempo, servir como sanção pedagógica a fim de dissuadir tal prática por parte dos empregadores.

6.7 REFERÊNCIAS

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São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 6, n. 24, out./dez. 2005.

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= VII =

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA À LUZ DA LEI DE CRIMES TRIBUTÁRIOS

Jonatas Cesar Dias*

7.1 INTRODUÇÃO

A lei de crimes tributários no Brasil ainda gera muita controvérsia

acerca de sua real utilidade, vez que este diploma prevê em seu conteúdo, a possibilidade de suspensão e até mesmo extinção da punibilidade em razão do pagamento do tributo ou das multas realizado pelo autor do crime.

Assim, a Lei 8137/90 possui um problema de ordem estrutural que necessita ser resolvido, vez que aparentemente, nada mais é do que um instrumento de cobrança Estatal.

Considerando que a lei que define os crimes tributários permite a suspensão e até mesmo a extinção da punibilidade, quando realizado o pagamento da quantia devida pelo infrator, chega-se a um questionamento. Seguindo o mesmo liminar, seria possível deduzir que, se um sujeito matar alguém, tendo dinheiro para indenizar a família ou o Estado, poderia ser solto? Logo, conclui-se que não seria possível. Assim, percebe-se que neste diploma, o Estado, independente de seus deveres, a pretexto de arrecadar, permite ingressar no ordenamento uma norma que possivelmente fere princípios e direitos personalíssimos. Com isso, fica evidente o despreparo do legislador acerca da formatação e alteração das leis, sobretudo em razão do despreparo educacional de seus membros, ou, ainda, dos membros e agentes das Comissões de Constituição e Justiça, o que culmina no descumprimento de princípios constitucionais.

7.2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio da dignidade da pessoa humana está esculpido na

Constituição Federal brasileira, do que seria hoje uma pessoa dotada de dignidade, sobretudo através do pensamento cristão e a figura do Pai, Filho e Espírito Santo. Assim, chegou-se ao pensamento de que, se os indivíduos

* Mestrando em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de Maringá-

PR. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal, com ênfase em Direito Penal Tributário, pela Universidade Estadual de Londrina. Bacharel em Direito pela Faculdade Paranaense - Faccar - Rolândia - PR. Licenciatura em Geografia pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-graduado em Filosofia Jurídica e Política pela Universidade Estadual de Londrina. Advogado em Londrina - PR. Assessor Jurídico do Município de Porecatu - PR. Endereço eletrônico: [email protected]

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são semelhantes a Deus, obviamente a pessoa humana merece proteção. Assim explica Diógenes Júnior:

Na época dos povos antigos, não havia a definição de pessoa como hoje se vê presente em vários ordenamentos jurídicos do mundo em geral. No âmbito da filosofia grega, o homem era um animal político ou social. A dignidade da pessoa humana tem origem tanto no pensamento clássico como nas idéias trazidas pelo Cristianismo. De acordo com este movimento, o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, sendo sua dignidade ligada à criação divina. Por outra vertente, de acordo com o pensamento clássico, a dignidade reflete a noção de natureza individual racional. Trilhando o pensamento cristão, podemos afirmar que o ser humano possui posição singular, uma vez que ele foi feito à imagem e semelhança de Deus, ocorrendo uma igualdade entre todos os seus filhos, despertando os sentimentos de solidariedade e piedade diante de uma ocorrência miserável do próximo (DIOGENES JÚNIOR, web).

Para Sarlet, o conceito de dignidade da pessoa humana é

necessariamente polissêmico e difícil de ser obtido. Assim, sabe-se que dignidade é algo real, uma vez que vivenciado concretamente por cada ser humano. Basta pensar o quão fácil é identificar situações em que ela é violada (SARLET, 2009. p. 18).

Neste sentido, a dignidade é a qualidade intrínseca à toda pessoa humana, vez que todos os homens têm um denominador comum que os torna iguais: ser dotado de razão e consciência. Este elemento é o que qualifica o ser humano e, portanto, não pode ser destacado de nenhum homem, sendo irrenunciável e inalienável (SARLET, 2009. p. 20).

Com filiação Arendtiana, Sarlet afirma que a ordem jurídica tem o dever de zelar para que todos recebam igual respeito do Estado e da comunidade (dimensão política da dignidade), pois todos possuem dignidade. A dignidade é, assim, a condição da ação humana e da política. Sarlet explica que:

[...] a sua intangibilidade resulta justamente das relações interpessoais marcadas pela recíproca consideração e respeito, de tal sorte que apenas no âmbito do espaço público da comunidade da linguagem, o ser natural se torna indivíduo e pessoa dotada de racionalidade. Assim, como bem destaca Hasso Hofmann, a dignidade necessariamente deve ser compreendida sob perspectiva relacional e comunicativa, constituindo uma categoria da co-humanidade de cada indivíduo (Mitmenschlichkeit des Individuums (SARLET, 2009. p. 25-26)). Grifos do autor

Assim, para Sarlet, o fato de todo ser humano ser igual em dignidade,

permite que os homens se comuniquem com todos os demais seres humanos do planeta e entrem em uma relação moral com eles, impondo, ainda, um dever de que todos abstenham-se de violá-la (SARLET, 2009. p. 26).

Mesmo diante das concepções ontológica e intersubjetiva, é preciso esclarecer que a dignidade continua sendo categoria axiológica aberta

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(conceito vago). Isso porque, embora tenha proteção constitucional, algumas vezes surgem aberrações legislativas que acabam sendo convalidadas pelo Judiciário, de forma que o princípio da dignidade é deixado de lado para atender outros interesses.

Paolo Ridola, ao tratar acerca de dignidade humana na constituição, afirma que deve-se ter cautela quanto ao tema dignidade da pessoa, sobretudo em razão de fatores históricos e peculiaridades de cada povo. A ver:

Aos estudiosos da dignidade humana como "problema constitucional" se impõe o dever de enfrentar o tema com cautela, evitando-se as tentações de um abstrato dogmatismo, recorrente entre juristas, e com a consciência de que o significado da dignidade humana se relaciona com diferentes imagens do ser humano, de acordo com as épocas e lugares, e que são, por sua vez, nutridas por múltiplas e diversas concepções de mundo (RIDOLA, 2013, p. 20).

Assim, para Ridola, “[...] o tema da dignidade habita o interior de

diferentes paisagens discursivas, fazendo alusão a culturas de referências e de tradições estratificadas, ou seja, a diferentes antropologias[...] (RIDOLA, 2013, p. 20).”

Nessa toada, pode-se afirmar que alguns dispositivos da Lei 8137/90 – Lei de crimes tributários – não respeitam o princípio da dignidade da pessoa. Isso porque, o Estado criou o diploma para efetivar cobranças fiscais. Assim, o que se percebe é que, por meios coercitivos, a questão da dignidade da pessoa fica devidamente afastada para considerar que o que interessa neste caso é arrecadação.

Alguns doutrinadores afirmam que a questão centra-se no bem jurídico tutelado, de forma que os tributos são necessários para a manutenção da função estatal e para manutenção de suas obrigações. Todavia, o próprio conceito de bem jurídico e sua indefinição doutrinaria enfraquecem tal argumento, conforme aduz Prado:

Apesar de o postulado de que o delito lesa ou ameaça de lesão bens jurídicos ter a concordância quase total e pacificados doutrinadores, o mesmo não se pode dizer a respeito do conceito de bem jurídico, onde reina grande controvérsia. Aliás, a falta de clareza do significado do bem jurídico (termo equívoco) encontra correspondência na ausência de precisão de seu conceito (PRADO, 2011. p. 44).

Assim, o que se percebe é que a “desculpa” utilizada pelo Estado

acerca do bem jurídico não possui força para se sustentar.

7.3 NOÇÕES DE DIREITOS DA PERSONALIDADE

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Outra questão relevante na discussão do tema, é aquela acerca da tutela da personalidade, que também encontrou há séculos seus primeiros passos para evolução e proteção do homem, conforme explica Szaniawski:

Na antiga Grécia do período clássico, vigiam diversos ordenamentos jurídicos, possuindo cada cidade-estado seu próprio estatuto. Em muitas destas legislações, já era conhecido o princípio da personalidade do direito, sendo este aplicado nas relações mantidas entre os cidadãos e, principalmente, nas relações mantidas com pessoas de outra cidade-estado e com os estrangeiros.2 No entanto, a noção de um direito geral de personalidade somente floresceu entre os séculos IV e III a.C, por influência da filosofia que conhecia, então, seu apogeu. Neste período, o direito vigente reconhecia ser cada ser humano possuidor de personalidade e de capacidade jurídicas definindo-se a capacidade abstratamente (SZANIAWSKI, 2005. p. 23-24).

Já naqueles tempos procurava-se garantir mecanismos que

pudessem garantir ao povo um equilíbrio na vivência social. Szaniawski afirma que a proteção da personalidade humana se assentava sobre três idéias centrais:

A primeira formulava a noção de repúdio à injustiça; a segunda vedava toda e qualquer prática de atos de excesso de uma pessoa contra outra e a última proibia a prática de atos de insolência contra a pessoa humana- A tutela da personalidade da pessoa humana era exercida através da hybris e mediante

repressão à prática de atos de injúria e sevícias, destacando-se as aixias (SZANIAWSKI, 2005. p. 24-25).

Em que pese naqueles tempos haver os primeiros sinais de proteção

da tutela da personalidade, é possível identificar resquícios de comportamentos daquela época que ocorrem nos dias atuais, apesar de se viver em tempos modernos.

A ausência do status libertatis poderia decorrer do próprio nascimento, o filho de escravo já nascia escravo, ou poderia ocorrer a perda do status libertatis através da capitis diminutio máxima, como na hipótese de punição para o

devedor insolvente, para o ladrão, no caso de prisão em flagrante, para quem deixasse de se inscrever no census, ou, ainda para o soldado desertor (SZANIAWSKI, 2005. p. 26).

Atualmente, ao identificar comportamentos Estatais que revelam

ofensas à pessoa humana e sua personalidade, é de se pensar se não estaria ocorrendo algum tipo de retrocesso ou, se o Estado está deixando de lado a garantia da dignidade e dos direitos da personalidade. Consequentemente, os indivíduos passam a ser considerados apenas um objeto, sem qualquer “valor humano”. MARREIRO cita Kant que contextualiza essa abordagem, explicando a diferenciação entre os seres irracionais e racionais:

Segundo esse filósofo, os seres irracionais são destituídos de razão e por assim dizer, são denominados de coisa, o que os fazem ter um valor relativo,

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susceptíveis de serem avaliados como objetos das inclinações. Já os seres racionais, que são chamados de pessoas, caracterizam-se com fim em si mesmo, ou seja, algo que não pode ser empregado como simples meio desta ou daquela vontade. Neste universo finalista, Kant (1986:77) explica que: No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade (MARREIRO, 2013, web).

Em suma, sustenta-se que a dignidade da pessoa humana, na

condição de valor fundamental – e princípio normativo – “atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais” (SARLET, 2004. p. 94), exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões – ou gerações.

A dignidade da pessoa humana engloba necessariamente o respeito e a proteção da integridade física e emocional ou psíquica em geral da pessoa. Dessa premissa decorrem, por exemplo, a proibição da pena de morte, da tortura e da proibição de penas corporais e até mesmo a utilização de pessoas para experiências científicas (SARLET, 2004. p. 97).

7.4 A CONSTITUIÇÃO E OS DIRITOS PERSONALISSIMOS

A Constituição de 1988, na esteira da evolução constitucional pátria,

desde a Proclamação da República e amparada pelo espírito da IX Emenda da Constituição Norte Americana, consagrou a ideia da abertura material do catálogo constitucional dos direitos e garantias fundamentais. Em outras palavras, isto quer dizer que para além daqueles direitos e garantias expressamente reconhecidos como tais pelo Constituinte, existem direitos fundamentais assegurados em outras partes do texto constitucional – fora do Título II. Assim, são também acolhidos os direitos positivados nos tratados internacionais em matéria de Direitos Humanos, nos chamados “Blocos de Constitucionalidade”, previsto no artigo 5º, § 2º da Carta Magna brasileira.

A tarefa de identificar e justificar posições fundamentais em outras partes da Constituição, bem como a possibilidade de reconhecer a existência de direitos fundamentais implícitos, e/ ou automaticamente desenvolvidos a partir do regime e dos princípios da nossa lei Fundamental, passa necessariamente pela construção de um conceito material de direitos fundamentais.

Assim, com relação às normas de direitos fundamentais integrantes do Título II, observa-se que vigora uma presunção de que estas sejam normas constitucionais em sentido material. No entanto, em relação à identificação e fundamentação de direitos implícitos e/ou direitos positivados em outras partes da constituição, não poderá ser dispensado exame apurado. Isso porque, estas normas devem ser erguidas à condição de direitos fundamentais, compartilhando do regime reforçado do qual eles gozam na ordem constitucional.

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Todavia, convém ressaltar que, apenas posições jurídicas implícita ou expressamente consagradas que efetivamente sejam relevantes no que tange ao seu conteúdo e significado, merecerem o status de direitos fundamentais, em sentido material e formal, ou mesmo apenas material, quando for este o caso (SARLET, 2004. p. 110).

Há a necessidade de uma política da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais. A própria eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares – ainda que em condição de tendencial igualdade e, portanto, de igual liberdade – encontra importante fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. Sustenta-se, neste contexto, que – pelo menos no que diz respeito ao conteúdo em dignidade – os direitos fundamentais vinculam também diretamente os particulares nas relações entre si. Dessa forma, na esfera deste conteúdo, são irrenunciáveis, já que, em termos de uma eficácia vinculante da dignidade, não importa de quem é a bota que desferiu o chute no rosto do ofendido.

Dessa maneira, da dignidade da pessoa humana, na condição de princípio fundamental, decorrem direitos subjetivos à sua proteção, respeito e promoção, seja pelo Estado ou pelos particulares, seja pelo reconhecimento de direitos fundamentais específicos, seja de modo autônomo. Assim, igualmente haverá de se ter presente a circunstância de que a dignidade implica também, em ultima ratio, por força de sua dimensão intersubjetiva, a existência de um dever geral de respeito por parte de todos – e de cada um isoladamente – os integrantes da comunidade de pessoas para com os demais e, para, além disso, e de certa forma, até mesmo um dever das pessoas para consigo mesmas (SARLET, 2004. p. 125).

7.5 OS DIREITOS DA PERSONALIDADE FRENTE AO ESTADO DE DIREITO

Para se alcançar a plenitude dos direitos da personalidade, a

intervenção estatal deve ser mitigada, de forma que preservem os direitos e valores ali contidos.

Considerando que os direitos de personalidade são os que mais se aproximam da liberdade de concretização da própria dignidade, conclui-se que esses formam um campo jurídico sobre o qual a intervenção pública, social ou estatal, deve ser mínima. Se assim não for, o espírito de liberdade, presente desde o preâmbulo do texto constitucional, fortemente presente nos arts. 1º e 3º, será negado e estaremos diante de um dirigismo jurídico inconstitucional da vida privada das pessoas (BORGES, 2007, p. 130).

Com a eleição da dignidade da pessoa humana como valor fundante

de toda a ordem jurídica, a pessoa passou a ser o centro referencial do ordenamento, e consequentemente, os direitos ligados à sua personalidade tomaram posição de destaque. A pessoa não é mais tida apenas "como sujeito de direitos, categoria abstrata, elemento da relação jurídica". Agora, ela passa a ser considerada "como bem jurídico tutelável: não como objeto

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de direito, mas como valor expresso na tutela das situações subjetivas existenciais". A pessoa vale pelo que é, e não apenas pelo que ela possui (CANTALI, 2009, p. 204).

Não é possível a compreensão do que é dignidade da pessoa sem que se estude o conteúdo de conhecimento que a humanidade adquire ao longo dos anos.

Tal como afirma Cantali, “[...] o próprio conceito de dignidade está sempre em processo de construção e desenvolvimento, já que, para além de sua dimensão ontológica ou natural, que é considerada como qualidade inata da pessoa humana, a dignidade conta com uma dimensão histórico-cultural” (CANTALI, 2009, p. 228). Assim, Sarmento aduz que,

[...] cumpre lembrar que os direitos fundamentais não constituem entidades etéreas, metafísicas, que sobre pairam o mundo real. Pelo contrário, são realidades históricas, que resultam de lutas e batalhas travadas no tempo, em prol da afirmação da dignidade humana. Como afirmou Hannah Arendt, em célebre passagem sempre citada, "os direitos humanos não são um dado, mas um construído". É natural, portanto, que as mutações políticas, sociais e culturais que se desenrolam na sociedade moldem a forma com que estes direitos são encarados (SARMENTO, 2006. p. 18-19).

Logo podemos concluir que a evolução do extrato social de um

determinado povo é a base fundante para a construção dos direitos, dependendo, sobretudo das intempéries social e da forma como esse povo se organiza e se relaciona entre si.

7.6 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO COMO MEIO DE GARANTIR OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A Constituição deve ser a regra matriz que vai garantir que as normas

infraconstitucionais sejam fundadas nos princípios nela consagrados. Com constitucionalização do direito, deve-se entender a irradiação

dos efeitos das normas constitucionais aos outros ramos do direito – leis infraconstitucionais. O principal aspecto dessa irradiação revela-se na vinculação das relações entre particulares a direitos fundamentais, denominada de efeitos horizontais dos direitos fundamentais (SILVA, 2005. p. 18).

Importante destacar que, quando se fala em constitucionalização do direito, a ideia central é a irradiação dos efeitos das normas constitucionais à outras áreas do direito (SILVA, 2005. p. 38).

Virgílio Afonso da Silva, baseado no pensamento de Schuppert e Bumke, afirma que, no início do processo de irradiação do direito constitucional para outros ramos do direito, um dos objetivos principais era simplesmente a solidificação da submissão desses ramos aos ditames constitucionais. Após, também foram identificados três atores principais que dão impulso à constitucionalização do direito: o legislador, o judiciário e também a doutrina jurídica (SILVA, 2005. p. 41-43).

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118 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Ainda nesse sentido da força normativa da constituição, Sarmento afirma que:

Mas, para que a Constituição tenha como desencadear a sua força normativa, ela não pode se desvincular dos seus condicionamentos materiais, nem ignorar as leis espirituais, sociais e econômicas da sua época, senão não logrará efetivar-se. Além disso, o ingrediente essencial para a força normativa é o que Hesse chamou de "vontade de 'Constituição". Deve haver o anseio de realização concreta da Constituição, e é importante que a sociedade se mobilize neste sentido. Quanto maior a vontade de Constituição, menores serão os limites que a realidade social poderá lhe impor. Mas os limites sempre existirão, e será preciso respeitá-los. Não é recomendável, portanto, que o constituinte se entregue a devaneios, e confira direitos cujo atendimento não seja possível, sob pena de descrédito da Constituição, com a consequente erosão da sua força normativa (SILVA, 2005. p. 76).

Em relação ao alcance da regra constitucional, ela reflete aquilo que

foi construído pela comunidade e que é aceito por todos. Dessa forma, todos se submetem ao seu regramento.

A dimensão objetiva dos direitos fundamentais liga-se ao reconhecimento de que tais direitos, além de imporem certas prestações aos poderes estatais, consagram também os valores mais importantes em uma comunidade política, constituindo, como afirmou Konrad Hesse, "as bases da ordem jurídica da coletividade". Nesta linha, quando se afirma a existência desta dimensão objetiva pretende-se, como registrou Vieira de Andrade "fazer ver que os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares, antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se propõe a prosseguir (SARMENTO, 2006, p. 134).

Nesse sentido, ainda que esses direitos sejam vistos pelo prisma da

individualidade, necessário que esses valores tenham reconhecimento pela sociedade, assim preservando sua eficácia e aplicabilidade.

7.7 DOS CRIMES TRIBUTÁRIOS PREVISTOS NA LEI 8137/90 E A QUESTÃO DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE

Antes da lei 8137/90, a Lei 4729/65 regulava a matéria em questão,

e em seu artigo 2º que assim previa: Extingue-se a punibilidade dos crimes previstos nesta lei quando o agente promover o recolhimento do tributo devido, antes de ter inicio, na esfera administrativa, a ação fiscal própria. Parágrafo Único. Não será punida com as penas cominadas nos artigos 1º e 6º a sonegação fiscal anterior à vigência desta lei (BRASIL, 1965, web).

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Dignidade da pessoa humana... // 119

Com a edição deste artigo, houve, pela primeira vez, a previsão

acerca da possibilidade de extinção do crédito tributário. Dessa forma, o Direito Penal passou a ser instrumento do Estado para cobrança e recebimento dos tributos, vez que através da ameaça de um procedimento penal prestes a se iniciar, o contribuinte poderia, antes de iniciado o procedimento, efetuar o pagamento dos tributos devidos.

Cumpre destacar que, a Lei 4729/65 foi posteriormente revogada pela Lei 8137/90, entretanto, mantendo a possibilidade de extinção do crédito tributário, previsão contida no artigo 14 da lei 8137/90, que assim definia:“Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1° a 3° quando o agente promover o pagamento de tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.” Por fim, esse artigo foi revogado com a promulgação do artigo 98 da Lei 8383/91.

Posteriormente, já no ano de 1995, ingressou no ordenamento a Lei 9249/95, que voltou a trazer a previsão de possibilidae de pagamento do tributo, desde que fosse antes da denúncia, conforme preceitua o artigo 34:

Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia (BRASIL, 1995, web).

Depois adveio a Lei 9964/2001, também conhecida por Lei do Refis,

que acabou por fazer a manutenção do dispositivo da Lei 9249/95. Dessa forma, passou a admitir a extinção da punibilidade pelo pagamento, desde que fosse antes do recebimento da denúncia, todavia, inovou ao estabelecer suspensão da punibilidade para quem efetuasse o parcelamento, ficando definido:

Art. 15. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e no art. 95 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no Refis, desde que a inclusão no referido Programa tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal (BRASIL, 1965, web).

Neste caminhar, surgiu a Lei 10.684/2003 que dispôs sobre a

manutenção da suspensão da pretensão punitiva no decorrer do parcelamento:

Art. 9. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento (BRASIL, 1965, web).

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120 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

A modificação significativa trazida pela referida lei supra foi a possibilidade de se efetuar o pagamento ou parcelamento mesmo após o recebimento da denúncia.

No ano de 2006, adentrou ao ordenamento pátrio o PAEX, ou parcelamento especial, através da Medida Provisória 303/2006. Nesta MP, não havia referências aos crimes tributários, todavia, durante o período em que foi concedido tal parcelamento manteve-se a suspensão da pretensão punitiva.

Posteriormente, ingressou no ordenamento, a Lei 11.941/2009, desta feita, voltando a estabelecer como regra o parcelamento, desta vez, novamente até antes do oferecimento da denúncia, conforme prevê o artigo 67 e seguintes:

Art. 67. Na hipótese de parcelamento do crédito tributário antes do oferecimento da denúncia, essa somente poderá ser aceita na superveniência de inadimplemento da obrigação objeto da denúncia. Art. 68. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, limitada a suspensão aos débitos que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento, enquanto não forem rescindidos os parcelamentos de que tratam os arts. 1o a 3o desta Lei, observado o disposto no art. 69 desta Lei. Parágrafo único. A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva. Art. 69. Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no art. 68 quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento. Parágrafo único. Na hipótese de pagamento efetuado pela pessoa física prevista no § 15 do art. 1o desta Lei, a extinção da punibilidade ocorrerá com o pagamento integral dos valores correspondentes à ação penal (BRASIL, 1965, web).

A referida lei, por sua vez, sofreu duas alterações. A primeira delas

foi feita por meio da Lei 12.865/2013, e a segunda, pela Lei 12.996/2014, também conhecida como Lei do Refis da Copa. Tais leis vieram para prorrogar o prazo de adesão ao disposto na Lei 11.491/2009.

Cumpre destacar que a Lei 12382/2011 veio trazer modificações significativas, ou seja, a partir da vigência desta lei, apenas se extinguiria a punibilidade nos crimes tributários mediante o pagamento e desde que este fosse realizado até o dia do recebimento da denúncia.

Por se tratar de uma inovação negativa ou desfavorável, ocorrida em 25 fevereiro de 2011, e por tratar de matéria penal, esta norma passou apenas a ter vigência a partir desta data, não havendo efeitos retroativos, como se observa a seguir:

Art. 83. [...]

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Dignidade da pessoa humana... // 121

§ 1o Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento. § 2o É suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput, durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal. § 3o A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva. § 4o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento. § 5o O disposto nos §§ 1o a 4o não se aplica nas hipóteses de vedação legal de parcelamento. § 6o As disposições contidas no caput do art. 34 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo juiz” (NR) (BRASIL, 1965, web).

Como se pode notar, o legislador está preso em um círculo vicioso,

ora diz um coisa, ora diz outra, demonstrando que está totalmente despreparado para legislar. Assim, fica evidente que este despreparo educacional do legislador culmina no surgimento de outras doutrinas, tal como a utilitarista, que se contrapõe aos princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana, bem como desrespeita os direitos personalíssimos dos indivíduos.

7.8 INTERVENÇÃO MÍNIMA

O direito Penal só deverá intervir quando for extremamente

necessário para a sociedade, ou seja, como ultima ratio. Assim, só deverá fazê-lo na medida em que for capaz de ter eficácia. Posto que, o uso excessivo da sanção penal não garante uma maior proteção de bens, mas ao contrário, condena o sistema penal a uma função meramente simbólica e negativa (PRADO, 2013, p. 171).

O poder Estatal deve ser regido pelo princípio da intervenção mínima. Assim, o Direito Penal somente deve intervir nos casos de ofensas aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações mais leves do ordenamento jurídico devem ser objeto de outros ramos do Direito (MUÑOZ CONDE, 1975, p. 59-60).

A proteção de bens jurídicos não se realiza somente por meio do Direito Penal, sendo este inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas. Isto quer dizer que, somente se pode intervir utilizando-se do direito penal se, e somente se, falhem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, as sanções administrativas

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e não penais etc. Por isso, denomina-se a pena como a ultima ratio da política social e se define a sua missão como a proteção subsidiária de bens jurídicos (ROXIN, 1997, p. 65).

O princípio da intervenção mínima orienta o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se, por outro lado, outras formas de sanções ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização será inadequada e desnecessária. Se, por ventura, para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas, excetuando as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade (BITENCOURT, 1995, p. 32).

No caso do Direito Penal Tributário, o Estado, na função de suas atribuições, não deve se fazer valer da cobrança forçada, pois ao tomar tal atitude, estaria afrontando direitos irrenunciáveis relativos à proteção do homem e que lhe são assegurados constitucionalmente.

7.9 DO BEM JURÍDICO PENAL

Vivenciando uma democracia plena, a tutela penal não pode estar

separada do pressuposto do bem jurídico, sendo considerada legítima, sob a ótica constitucional, quando socialmente necessária. Isso significa dizer que, quando imprescindível para assegurar as condições de vida, o desenvolvimento e a paz social, tendo em vista o postulado maior da liberdade – verdadeira presunção de liberdade – e da dignidade da pessoa humana (PRADO, 2013, p. 73).

Assim, a missão do Direito Penal é tutelar os bens jurídicos mediante a proteção dos valores ético-sociais da ação mais elementares (HASSEMER; MUÑOZ CONDE; 1989, p. 102). Outrossim, bem jurídico é, objetivamente, o bem considerado vital, da comunidade ou do indivíduo, que por sua significação social, é protegido juridicamente. O bem jurídico é “o orifício da agulha pelo qual tem que passar os valores da ação: nenhuma reforma do Direito Penal pode ser aceitável se não se dirige à proteção de algum bem jurídico, por mais que esteja orientada aos valores da ação”1.

O bem jurídico, tido como ponto central da estrutura do delito, constitui, antes de tudo, uma realidade válida em si mesma, cujo conteúdo axiológico não depende do juízo do legislador. Trata-se, pois, de dado social preexistente. Desta forma, a norma não cria o bem jurídico, mas sim o

1 Segundo a concepção dos valores ético-sociais da ação de Welzel, a ameaça penal deve contribuir para assegurar os interesses individuais e coletivos fundamentais, através do valor-ação. Daí ser o delito formado de um desvalor da ação e de um desvalor do resultado. Ver mais em: WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Trad. Bustos Ramíres e Yánez Pérez. Santiago: Jurídica de Chile, 1970. p. 15.

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Dignidade da pessoa humana... // 123

encontra, daí seu aspecto restritivo. Isso porque, o fim do direito não é outro além de proteger os interesses do homem, e estes preexistem à intervenção normativa. Assim, não podem ser, de modo algum, criação ou elaboração jurídica, mas se impõem a ela. Dito de outra forma, o ordenamento jurídico não cria o interesse, cria-o a vida, mas a proteção do direito eleva o interesse vital a bem jurídico (LISZT, s.d., p. 6).

Dessa forma, sem a presença de um bem jurídico de proteção prevista no preceito punitivo, o próprio Direito Penal, além de resultar materialmente injusto e ético-socialmente intolerável, careceria de sentido (POLAINO NAVARRETE, 1974. p. 21-22). Note-se que, a idéia de bem jurídico é de extrema relevância, já que a moderna ciência penal não pode prescindir de uma base empírica nem de um vínculo com a realidade que lhe propicia a referida noção. Também não pode renunciar a um dos poucos conceitos que lhe permitem a crítica do direito positivo (PRADO, 2013, p. 21).

7.10 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todos os argumentos elencados, nada pode ser mais

importante para uma sociedade democrática de Direito, senão garantir aos seus filhos que tenham educação, pois ela é transformadora, e pode ser geradora de segurança, sobrevivência, abundância e igualdade, bem como as demais qualidades que fazem com que uma sociedade seja feliz.

Dessa forma, o Estado deve estar preparado para a manutenção desta sociedade, sendo ele inclusive membro desta, pois se não existisse a sociedade, ele também não poderia existir.

No mesmo sentido, o legislador deve estar apto educacionalmente para elaborar leis que garantam a harmonia entre os poderes, harmonia entre o Estado e sociedade. E, isto apenas pode ser efetivado com o preparo do legislador. Nesse sentido, é necessário destacar o papel da educação do membro do legislativo e/ou de suas assessorias.

Em relação às equivocadas intervenções do legislador na Lei 8.137/90, a fim de que não venha ferir princípios, ao legislador caberia abolir a pena desse diploma legal, pois tratar-se de instrumento de arrecadação tributária que pode ser suprida por outras penas administrativas e de confiscos.

Cabe ao Estado então, buscar meios alternativos de cobranças, ou mesmo dar efetividade aos diplomas que já possui, pois essa é a solução para a manutenção de seu status enquanto ente Estatal. Ademais, o Estado deve utilizar-se mais de outros ramos do direito para a consecução de seu fim precípuo, deixando para o direito penal somente a ultima ratio. Em não fazendo desta maneira, o ente corre o risco de atingir direitos personalíssimos que são irrenunciáveis, inerentes a todo homem que foi dotado de inteligência, capaz de pensar e produzir seu futuro com dignidade.

Nesse sentido, é preciso que se eduque a sociedade para que se possa ter no futuro próximo, no legislativo e executivo, pessoas preparadas, que, ao elaborarem um determinado projeto de lei, analisem os princípios

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constitucionais positivados, a fim de não ocorrer colisão entre a lei e esses princípios.

Ainda, no sentido de suprir momentaneamente a necessidade de preparo educacional lesgislativo, é possivel a disponibilização de assessorias com o fim de orintar os parlamentares acerca de determinados desvios técnicos legislativos, rompendo dessa maneira, com o feitio equivocado de determinados diplomas legais.

7.11 REFERÊNCIAS

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1976. Coimbra: Almedina, 1998. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos, liberdades e garantias no âmbito das Relações

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postulado pela jurisprudência brasileira. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 101, jun 2012. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11766&revista_caderno=9>. Acesso em: 15 ago 2014.

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da tutela. Coimbra: Almedina, 2008. HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminologia y al

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no atual contexto da Constituição brasileira. Teresina, ano 18, n. 3476, 6 jan. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/23382>. Acesso em: 25 ago 2014.

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Dignidade da pessoa humana... // 125

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral - artigos. 1º a 120. 12. ed.

v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. ROXIN, Claus. Derecho penal – parte general. Madrid: Civitas, 1997. SARLET. Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma

compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: SARLET. Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito constitucional. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2009.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2009.

SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

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WELZEL, Hans. Derecho Penal alemán.Trad. Bustos Ramíres e Yánez Pérez. Santiago: Jurídica de Chile, 1970.

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= VIII =

DIREITO À SAÚDE E A INEFETIVIDADE DA TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL SOB A ÓTICA DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA: A

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO IMPERATIVO.

Felipe Rangel da Silva* Thomaz Jefferson Carvalho**

8.1 INTRODUÇÃO

A saúde pública, constantemente noticiada pelos veículos de comunicação por sua precariedade, é um direito que não tem sido concretizado de forma plena 22 anos após a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil.

Verdade que muitos avanços foram alcançados e estes graças ao reconhecimento do ser humano como centro da tutela legislativa e a dignidade humana como pilar deste Estado Democrático de Direito.

Tal direito após ter sido erigido pela Constituição Federal como sendo fundamental e social, fez com que o entendimento fosse alterado no sentido de que todos, indiscriminadamente, possuíssem garantia de ter sua saúde preservada.

Porém, não em raros momentos em que o cidadão utilizando desta prerrogativa vê seu direito vilipendiado e esquecido pelos órgãos estatais, quando da propositura de ações, mandados de segurança e outras medidas,

* Pós-graduando lato sensu em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Instituto Brasileiro de

Direito Constitucional e Cidadania de Londrina em convênio com a Universidade Estadual Norte Pioneiro. Pós-graduado lato sensu em Direito e Processo Civil pelo Instituto Paranaense de Ensino em Maringá. Graduado em Direito pela Faculdade Maringá. Tem experiência em Direito Civil, Eletrônico e Administrativo, tendo atuado na Procuradoria Geral do Município de Maringá. Atualmente é vice-presidente da Comissão de Direito Eletrônico e Crimes Virtuais da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Maringá, Seccional do Paraná. Advogado-sócio da Carvalho & Rangel Advogados Associados, responsável pelas áreas de Direito Civil, Eletrônico e Administrativo. ** Mestre em Ciências Jurídicas pela UNICESUMAR. Pós-graduando lato sensu; em Direito

Eletrônico pela Universidade Estácio de Sá, Pós-graduado lato sensu; em Direito do Trabalho pela Universidade Castelo Branco, Pós-graduado lato sensu; em Metodologia do Ensino Superior pela UNOPAR - Universidade Norte do Paraná, campus Londrina/PR e graduado em Direito pela UNOPAR - Universidade Norte do Paraná, campus Arapongas/PR. Possui experiência no magistério superior nas áreas de Direitos Humanos, Direito Constitucional, Administrativo, Direito Internacional Público, Estágio Supervisionado em Trabalho e Civil, Teoria Geral do Estado e da Constituição e Direito e processo do Trabalho. Atualmente é sócio da Carvalho & Rangel Advogados Associados de Maringá/PR e Professor Titular de Direito Empresarial II na UNICESUMAR, bem como integra o corpo docente do Instituto Paranaense, Faculdade América do Sul no Departamento de Pós-graduação e da Faculdade Integrado da Campo Mourão, FACNOPAR e Preside a Comissão de Direito Eletrônico e Crimes Virtuais da OAB/PR, subseção Maringá.

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Direito à saúde... // 127

as fundamentações quase sempre se reduzem à teoria da reserva do possível, impossibilidade orçamentária. O presente estudo, longe de encerrar qualquer questão a respeito da matéria, pretende trazer a baila do meio acadêmico que o direito à saúde é um dos direitos pertencentes ao elemento nuclear da dignidade da pessoa humana, é direito fundamental e fomentar debates acerca da temática.

8.2 DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

8.2.1 Direito fundamental

Os direitos fundamentais é tema recorrente nos debates de Direito

Constitucional, tema tão antigo quanto atual e que certamente desperta maior interesse devido às experiências ainda recentes de violação a tais direitos cometidos no Brasil no período ditatorial.

Acerca da origem dos direitos fundamentais, Bruno Galindo aporta que “[...] é possível vislumbrar a origem dos direitos fundamentais no mundo antigo” (GALINDO, 2006. p. 34). E isso por que:

A origem dos direitos individuais do homem pode ser apontada no antigo Egito e Mesopotâmia, no terceiro milênio a.C., onde já eram previstos alguns mecanismos para proteção individual em relação ao Estado. O Código de Hammurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes (MORAES, 1998. p. 24-25).

Se for verdade que os direitos e garantias individuais são tão antigos

quanto às primeiras normas, certo também é que na Grécia de forma mais ordenada houve “[...] um maior desenvolvimento de um humanismo racional”, sendo que este “[...] foi um grande avanço dos gregos no pensamento político e filosófico acerca dos direitos fundamentais, principalmente a respeito da liberdade e da igualdade do homem” (GALINDO, 2006. p. 34/35).

Em que pese, existia naquele momento uma clara separação que propiciava a desigualdade, visto que do conceito de cidadão estavam excluídos crianças, estrangeiros, mulheres e escravos, dentre os pertencentes a status de cidadão buscava-se a igualdade.

Apesar de não contrapor aos feitos da civilização grega, principalmente ateniense, Alexandre de Moraes expõe que:

[...] a forte concepção religiosa trazida pelo Cristianismo, com a mensagem de igualdade de todos os homens, independentemente de origem, raça, sexo ou credo, influenciou diretamente a consagração dos direitos fundamentais, enquanto necessários à dignidade da pessoa humana. (MORAES, 2010)

Assim, entende-se que o nascedouro dos direitos fundamentais pode

até ter sido com o Código de Hammurabi, porém com a filosofia Cristã se

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propagou e lançou novos conteúdos, tornando-se mais igualitária em relação aos sujeitos de direito.

Mas direitos fundamentais, reconhecidos pelo direito positivo, só pode ser vislumbrado a partir do século XIII, com a Magna Charta Libertatum do Rei João Sem-Terra, embora garantisse apenas o direito dos nobres ingleses, neste documento é que se encontra fundamento para alguns direitos e liberdades existentes hoje. (Cf. THEODORO, 2008. p. 25.)

Para o estudioso italiano Luigi Ferrajoli: “[...] ao menos no Ocidente, desde o direito romano, sempre existiu direitos fundamentais, se bem que a maior parte fora limitado a classes bastante restritas de sujeitos” (FERRAJOLI, 2001. p. 23) (Tradução livre).

Ao fazer esses breves comentários a respeito da história, urge definir necessariamente o que são direitos fundamentais.

Luigi Ferrajoli também assevera que: “[...] são direitos fundamentais todos aqueles direitos subjetivos que correspondem, universalmente, a todos os seres humanos enquanto dotados do status de pessoa, de cidadão ou pessoas com capacidade de agir” (FERRAJOLI, 2001. p. 19). Desse entendimento, tem-se como características básicas de ser direitos voltados ao ser humano, subjetivos, universais, pois são para todos os seres humanos e não apenas para os que possuam vínculo com aquele país.

Marcelo Antonio Theodoro, ao realizar uma releitura acerca do tema dos direitos fundamentais na dimensão natural, estabelece como sendo: “direitos absolutos, imutáveis e intemporais, inerentes à qualidade de homem de seus titulares, e constituem um núcleo restrito que se impõe a qualquer ordem jurídica” (THEODORO, 2008. p. 25).

Em sentido contrário, leciona Cláudia Maria da Costa Gonçalves: “[...] não existe, em geral, direitos absolutos - nem mesmo os fundamentais -, haja vista que esses podem estar em conflito entre si ou em colisão com outros bens constitucionalmente protegidos” (GONÇALVES, 2006. p. 205.) De maneira acertada, aduz a escritora sobre os conflitos existentes que, de certa forma, relativizam os direitos fundamentais, na medida em que haverá uma prevalência de um sobre o outro.

Para o constitucionalista José Afonso da Silva, a expressão correta deveria ser direitos fundamentais do homem: “[...] é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantia de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas” (SILVA, 2006. p. 178).

Conforme se denota pelo conceito acima transcrito, os direitos fundamentais deverão ser positivados e, de certa forma, são os direitos essenciais à vida humana, o que garante a dignidade. Dentre este rol de direitos fundamentais, é de salutar importância citar que compõe o catálogo deste o direito à saúde.

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Direito à saúde... // 129

8.2.2 Direito fundamental social à saúde

A saúde é preceituada como direito fundamental, inicialmente, pela

Constituição Federal em vários artigos. E tal postura não é apenas uma preocupação da Constituição vigente.

Isso porque o Brasil possui tradição em tutelar o direito à saúde, vez que é possível encontrar remanescentes históricos desde a Constituição Imperial de 1824, a citar o inciso XXIV do artigo 179.1 Contudo, inicialmente seu trato constitucional foi de maneira sutil, estatuindo que nenhuma atividade fosse proibida se não contrariasse os costumes públicos, a segurança e a saúde dos cidadãos. Ou seja, tudo que não contrariasse tais direitos era permitido nesta época.

Fazendo um pequeno cotejo com a democracia ateniense, vale a pena ser salientado que o direito à saúde, tutelado pela Constituição Imperial, excluía os escravos que, até então, existiam no país. Portanto, tal direito possuía limitações e não era universalizado.

A conotação utilizada na época para direito à saúde não carregava a mesma significação atual, portanto, vale frisar que o conceito de direito à saúde ao longo dos anos sofreu uma evolução gradativa.

Em suma, desde muitos anos, a ideia de saúde está atrelada à integridade física e psíquica, ou seja, como no ditado latino “mens sana in corpore sano”2. Portanto, a saúde desde remotas épocas era visto como um conjunto de integridade física e psíquica.

Para Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de Sousa a relação entre este é um pouco distinta, já que preleciona que são elementos básicos do corpo: o somático, a psique e a saúde. Poderia transparecer que são dissociados, porém o que se percebe, inclusive na obra deste renomado doutrinador, é que cada um destes elementos possui intrínseca relação (SOUSA, 1995. p. 211). Pois, não há como falar em saúde se não falar em condições físicas e psíquicas.

Neste sentido, José Renato Nalini afirma que “[...] por saúde entende-se a integral higidez física e mental da pessoa. É o estado de incolumidade perante doença ou mal-estar. Saúde integral seria ausência de qualquer desconforto” (NALINI, 1997. p. 236).

Um conceito que vale ser mencionado de saúde é de José Afonso da Silva, vez que já analisa sob o enfoque constitucional e o disposto na Constituição Federal. Afirma que a saúde:

[...] é concebida como direitos de todos e dever do Estado, que deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos. O direito à saúde rege-se pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperam (SILVA, 2006. p. 831).

1 XXIV. Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou commercio póde ser prohibido, uma vez que não se opponha aos costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos. (sic)

2 Tradução livre: “Mente sã e o corpo saudável”.

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A Constituição cidadã apresenta logo em seu artigo 6º que um dos direitos sociais que todo trabalhador possui é o direito à saúde. E sendo direito social pertencente ao rol dos direitos e garantias fundamentais, pode-se pela melhor exegese que é um direito fundamental humano e social.

Mas poder-se-ia afirmar que o direito à saúde já está previsto antes mesmo do artigo 6º, através do preâmbulo do texto constitucional em que preceitua que o Estado Democrático de Direito visa assegurar os direitos sociais3. E não se pode olvidar que também poderia ser entendido como tutelado o direito à saúde tão somente em razão do respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Mas como prefacialmente aduzido, o direito a saúde é um direito social, e a esse respeito José Afonso da Silva define:

[...] direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade (SILVA, 2006. p. 286/287).

Como pode ser observado, os direitos sociais servem como

corolários do princípio da isonomia, buscando minimizar as desigualdades jurídicas existentes. Neste contexto, há que asseverar que além do próprio texto constitucional fazer clara menção desta tutela, a lei infraconstitucional também eleva o direito à saúde ao rol de fundamental, conforme a Lei n.º 8.080 de 19 de setembro de 1990 dispõe expressamente tal status em seu art. 2º 4.

Quando o legislador infraconstitucional adotou o direito à saúde como sendo pertencente ao rol de direitos fundamentais, isto é, essenciais ao ser humano, fez opção por seu tratamento de forma integral, ampla e universalista, tanto que no artigo supracitado vincula o Estado não apenas a prover condições indispensáveis ao pleno exercício da saúde.

E neste ponto, cumpre asseverar que não basta ações paliativas e remediadoras de agravos e doenças apenas, mas trata-se de algo mais, abarca desde o tratamento preventivo, como também o saneamento básico, alimentação de qualidade, educação, ou seja, tudo que influenciará no amplo e irrestrito direito à saúde. Pois, como foi opção do legislador, não existe um

3 PREÂMBULO na íntegra: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. 4 Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

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Direito à saúde... // 131

rol taxativo do que significa saúde, portanto, engloba todos os demais direitos.

Em linhas gerais, possuir direito à saúde significa dizer que a pessoa é reconhecida como ser humano, independe de sua nacionalidade e origem, mas, tão somente, tratar a pessoa como detentora de dignidade.

8.3 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO À SAÚDE

Inicialmente, insta mencionar que a Constituição da República

Federativa do Brasil foi promulgada após anos de ditadura militar de extrema violência, fazendo com que criasse uma verdadeira preocupação, em nível nacional, pela prevalência aos direitos fundamentais.

Como salienta o professor Zulmar Fachin, a Constituição Federal brasileira é, certamente, a que teve maior participação popular já vista, tendo em vista os inúmeros projetos de lei e visitas à Assembleia Constituinte, tal fato se deve basicamente ao sentimento de mudança propiciada pelo fim do regime e início do período democrático (FACHIN, 2009).

A inserção da dignidade humana se deve, em linhas gerais, pela transição ocasionada com a queda do regime ditatorial. E se levar para o plano mundial após a segunda guerra mundial, houve uma tentativa de maior humanização dos textos legislativos.

E com essa ruptura houve uma quebra de paradigma, se antes no regime militar poderia ser explicado como sendo baseado em um sistema em que o cidadão servia ao Estado/nação, com a Constituição Federal de 1988 ocorreu a inversão, o Estado passa a servir ao cidadão.

Tutelando o homem, nessa visão, pode-se dizer que é garantido o princípio previsto no inciso III, do artigo 1º da Constituição Federal, qual seja: Dignidade da Pessoa Humana, pois tratar o homem dignamente importa dizer que esse detentor de direito tenha uma sadia qualidade de vida, abarcando o direito à saúde.

Não é possível pensar em um “Estado democrático de Direito” sem garantir a plena eficácia da dignidade da pessoa humana, portanto, primeiro há que delimitar tal instituto, compreendê-lo para que possa ser devidamente respeitado e efetivado.

Para Maria Aparecida Alkimin, a dignidade compreende os três princípios iluministas da Revolução Francesa, que são os objetivos, também, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: liberdade, igualdade e fraternidade, sendo que devem balizar todas as relações sociais existentes (ALKIMIN, 2006. p. 16).

Marilena Chauí aborda as três máximas morais de Kant como sendo precursoras do princípio em tela:

2. Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio; [...] A segunda máxima afirma a dignidade dos seres humanos como pessoas e, portanto, a exigência de que sejam tratados como fim da ação e jamais como meio ou como instrumento para nossos interesses (CHAUÍ, 2000. p. 445).

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132 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Estabelecendo que o ser humano deve ser tratado como fim em si

mesmo e não como meio de obtenção de algum bem. O conceito de dignidade humana mesmo já explica, de certa forma,

o motivo de ser elencado como fundamento do Estado Democrático de Direito, como aporta Alexandre de Moraes:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (MORAES, 2003. p. 50).

Ingo Wolfgang Sarlet, um dos grandes expoentes no tema, conceitua

o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como sendo: a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida (SARLET, 2003, p. 67).

E um princípio moral acima de tudo, arraigado de valores éticos, que

obriga a todo indivíduo tratar o outrem com a devida urbanidade. O que resta claro a demonstração pela prevalência do ser humano

como fim do Estado, que nas palavras de Gustavo Tepedino é “[...] uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento” (TEPEDINO apud. REIS, 2007. p. 188).

Segundo o Constitucionalista Alexandre de Moraes: [...] a dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento

afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a

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necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos; (MORAES, 2003. p. 50).

Sendo inerente à condição humana, a dignidade se impõe de forma

imperativa, cujo conteúdo sempre deverá ser albergado por todos e que jamais poderá ser olvidado em detrimento de nenhum outro direito individual ou coletivo, pois esse é intrinseco ao ser e sua violação acarreta grave lesão a ordem constitucional estabelecida.

Mas qual é o conteúdo da dignidade da pessoa humana? Ingo Wolfgang Sarlet preleciona que o conteúdo da dignidade da

pessoa humana “[...] acaba por ser identificado como constituindo o núcleo essencial dos direitos fundamentais” (SARLET, 2003. p. 130).

Segundo Ana Paula Barcelos, o núcelo essencial da dignidade da pessoa humana é:

[...] formado pelo mínimo existencial, entendido esse como prestações positivas estatais sem as quais o ser humano não alcança um patamar mínimo de vida digna, compreendido pelo direito à educação fundamental, o direito à saúde, o acesso à justiça e à assistências aos desamparados (BARCELOS apud JACINTHO, 2008. p. 140).

Sempre que o desprezo a dignidade estiver presente, a pessoa será

utilizada como objeto, será entendido como meio de obtenção de algo e não como fim, portanto, não reconhecendo naquele indíviduo um ser humano, uma pessoa. Assim, se a máxima Kantiana prevê que as pessoas possuem dignidade e não valor econômico, estas sempre deverão ser tratadas com dignidade, pois uma pessoa não é quantificada, valorada.

O princípio da dignidade da pessoa humana ocupa tamanha importância no rol de princípios no ordenamento, que por acaso foi previsto como fundamento do Estado Democrático de Direito. Aliás, se apresenta como o principal princípio, ou como prefere Rizzato Nunes é:

[...] um verdadeiro supraprincípio constitucional que ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais. E por isso não pode o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas. (NUNES, 2007. p. 50/51)

É em outras palavras: [...] princípio orientador da hermenêutica constitucional se consubstancia como superprincípio, encarregado de prover a unidade material da Constituição. Como direito material, tem como elementos integradores do seu núcleo essencial as prestações consideradas imprescindíveis a uma existência digna (JACINTHO, 2008. p. 206).

Diante destas ponderações, pode-se afirmar que a dignidade humana

como princípio orientador da hermenêutica constitucional e fundamento do

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Estado Democrático de Direito tem como fatos que justificaram a inserção no texto Constitucional em seu art. 1.º, inciso III, foi uma valorização do homem como indivíduo ao longo dos anos, principalmente pós duas grandes guerras mundiais e principalmente no continente americano, regime ditatorial tardio em relação aos demais países do globo.

O que culminou em uma maior preocupação em afirmar o homem como um ser sujeito de direitos. Elimar Szaniawski aporta que:

A dignidade da pessoa humana constitui-se em uma conquista que o ser humano realizou no decorrer dos tempos, derivada de uma razão ético-jurídica contra a crueldade e as atrocidades praticadas pelos próprios humanos, uns contra os outros, em sua trajetória histórica (SZANIAWSKI, 2005. p. 141).

Desta forma, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ganhou

imensa importância frente à criação de todas as normas, pois sua incidência está presente em todo ordenamento. Ademais, contrariar tal princípio traz, como via de consequência, a violação de um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Isso pode transparecer que a violação de tal princípio não seja algo grave ou de grande aplicabilidade, tendo em vista que o princípio possui grande abstração, sua subjetividade muitas vezes pode ser confundido e não respeitado.

A esse respeito, há de se recordar que tal princípio não é um “[...] enfeite, um valor abstrato de difícil captação. Só que é bem ao contrário: não só esse princípio é vivo, real, pleno e está em vigor, como deve ser levado em conta sempre, em qualquer situação” (NUNES, 2007. p. 51).

Destarte, que o fim da premissa da dignidade traz como consequência o caos, o fim de um Estado Democrático de Direito e, assim, o fim das instituições políticas e sociais, como também o desfacelamento das garantias fundamentais do indivíduo. Dentre essas garantias destacam-se os direitos sociais, como o direito à saúde.

Em especial atenção ao direito fundamental à saúde e sua vinculação à dignidade pode-se afirmar que não há como se cogitar em dignidade sem vida saudável, ou seja, na integralidade, em seus aspectos físicos e psíquicos.

Quando o legislador inseriu em seu rol de direitos fundamentais o direito à saúde, o fez com o objetivo de resguardar a vida humana em sua totalidade, mas com acurada análise pode observar que tal intento já estava de certa forma tutelada tanto no que concerne ao direito à vida quanto ao direito à integridade, visto que por ilação lógica o indivíduo só possuirá saúde se estiver vivo e íntegro, ou seja, com o devido resguardo de sua integridade em seu duplo caráter: físico e psíquico.

Maria Aparecida Alkimin ao abordar o tema, aporta que: A vida e a saúde são direitos fundamentais, cellula mater da dignidade humana, logo, numa amplitude bem maior, ou seja, envolvendo todos os seres vivos (ecossistema), deve haver proteção ao meio ambiente global, para se permitir a vida com qualidade de vida, implicando esta a saúde e o

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bem-estar ( ALKIMIN, 2006. p. 25).

Destarte, se a dignidade da pessoa humana é um super princípio

existente, sua cellula mater, ou seja, no núcleo de seu conteúdo está presente o direito à vida e à saúde. O problema que surge ao definir que um direito está presente no rol de direitos fundamentais, certamente, reside no modo de concretização deste.

8.4 EFETIVIDADE/ EFICÁCIA DO DIREITO À SAÚDE

Se fosse questionado a uma pessoa leiga o que significa concretizar

direito, certamente a visão que esta possui não seria dispare distorcida da visão jurídica utilizada neste artigo. Isso porque, a ideia de concretização de direito indica para efetividade, concretizar é tornar efetivo de certa forma.

A par de qualquer outra definição semântica que possa induzir a um equívoco ou distorções dos reais significados colimados. No presente estudo, utiliza-se o sentido apenas jurídico da palavra efetividade como meio de concretização de direitos.

Preliminarmente, antes de adentrar ao tema propriamente dito, insta conceituar e diferenciar alguns conceitos necessários para melhor compreensão deste tema, principalmente diferenciar eficácia de efetividade.

Miguel Reale define eficácia como sendo: [...] a aplicação ou execução da norma jurídica, ou por outras palavras, é a regra jurídica enquanto momento da conduta humana. A sociedade deve viver o Direito e como tal reconhecê-lo. Reconhecido o Direito, é ele incorporado à maneira de ser e de agir da coletividade (REALE, 2004. p. 112).

Ou, como o mesmo doutrinador simplifica: A eficácia [...] tem um caráter experimental, porquanto se refere ao cumprimento efetivo do Direito por parte de uma sociedade, ao "reconhecimento" (Anerkennung) do Direito da comunidade, no plano social, ou, mais particularizadamente, aos efeitos sociais que uma regra suscita através de seu cumprimento (REALE, 2004. p. 114).

Efetividade por outro lado, “[...] atende mais ao plano pragmático,

podendo haver uma norma eficaz (possibilidade de produzir efeitos) que não seja, de fato, obedecida e aplicada” (DINIZ, 2004. p. 179).

Assim, eficácia é entendida como a possibilidade de produzir efeitos, enquanto efetividade são os efeitos produzidos de acordo com a norma, ou seja, a obediência à norma posta.

Ao abordar o assunto, em relação ao direito à saúde, Joaquim José Canotilho assevera que direito à saúde “[...] é um direito social, independentemente das imposições constitucionais destinadas a assegurar a sua eficácia” (CANOTILHO, 1993. p. 667).

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Robert Alexy, por sua vez, afirma que “[...] sempre que alguém possui um direito fundamental, existe uma norma válida de direito fundamental que lhe outorga este direito” (ALEXY, 1997. p. 47)5. Então, acerca da questão da validade não será discutida, até mesmo a eficácia não poderá ser alvo de debate, vez que esta poderá ensejar efeitos em sua aplicação.

Em relação a este, alguns seguidores da famosa teoria adotada por José Afonso da Silva entendem ser uma norma programática quando envolver direitos sociais, possuir sua eficácia de forma limitada e depender de outras ações institucionais, que podem ou não ser legislativas, mas que, obrigatoriamente, dependerão destas para ganhar plena executoriedade. E a maioria dos direitos sociais estão a estas vinculadas (SILVA, 1998. p. 117-140).

Como conceitua Jorge Miranda, as normas programáticas: são de aplicação diferida, e não de aplicação ou execução imediata; mais do que comandos-regras, explicitam comandos-valores; conferem elasticidade ao ordenamento constitucional; têm como destinatário primacial - embora não único - o legislador, a cuja opção fica a ponderação do tempo e dos meios em que vêm a ser revestidas de plena eficácia (e nisso consiste a discricionariedade); não consentem que os cidadãos ou quaisquer cidadãos as invoquem já (ou imediatamente após a entrada em vigor da Constituição), pedindo aos tribunais o seu cumprimento só por si, pelo que pode haver quem afirme que os direitos que delas constam, máxime os direitos sociais, têm mais natureza de expectativas que de verdadeiros direitos subjectivos; aparecem, muitas vezes; acompanhadas de conceitos indeterminados ou parcialmente indeterminados (MIRANDA apud MORAES, 2003. p. 43).

Embora necessite de ato posterior, há que se recordar que o

legislador Constituinte pátrio, ao definir no art. 5º, § 1º tem aplicação imediata, quis, de certa forma, expelir a utilização da norma programática e conceder o direito a quem possui tal direito subjetivo6.

Uma questão que poderia ser suscitada é que o direito à saúde está previsto no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, poderia não ser abrangido pela norma supramencionada. Contudo, como já alhures expendido, o direito à saúde possui previsão desde o texto preambular, cita-se que o art. 1º, inciso III, art. 6º e art. 196 são alguns dos dispositivos que fazem referência ao direito à saúde.

Como esclarece Zulmar Fachin, alguns direitos fundamentais não estão no catálogo de direitos fundamentais que compreende do art. 5º ao 17º, mas o critério principal que define se tal direito é ou não fundamental é seu conteúdo e não em que local está inserido (FACHIN, 2008. p. 220-221).

Portanto, é de salutar necessidade que os direitos fundamentais sejam vistos mais por seu conteúdo de essencialidade à vida humana do que

5 Tradução livre.

6 Art. 5º. [...] § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

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qualquer outro critério imposto por conceitos já ultrapassados. Para que, assim, os direitos fundamentais sejam consolidados e concretizados.

Em especial, o direito à saúde possui óbices para sua concreta efetivação como direito fundamental, que são observados pelo conhecimento empírico como sendo de ordem econômica, política/institucional e social. Isto porque, devido ao elevado grau de miserabilidade da população brasileira, que se vê obrigada a subsistir de forma precária, torna-se propício o surgimento de doenças e agravos, aliado ao baixo investimento em setores básicos como a educação, saúde, saneamento básico, levam a criar um grande e decisivo óbice para a plena concretização deste direito.

Sendo um direito fundamental, logo será um direito líquido e certo, o que poderá ser resguardado via Mandado de Segurança, inclusive com medida cautelar ou mesmo antecipação de tutela. São casos típicos o fornecimento de medicamentos que, devido à gravidade de muitos casos, o paciente se vê obrigado recorrer via judicial para ter concretizado este direito.

8.5 RESERVA DO POSSÍVEL VERSUS PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Existem inúmeros obstáculos que impedem a concretização do direito

à saúde, por exemplo, a falta de medicamentos, a ausência de profissionais qualificados na rede básica de saúde. Em muitos casos, a reserva do possível é a única justificativa para a Administração Pública não prestar o direito, constitucionalmente, assegurado, tornando o sistema vigente falho e ineficaz.

Como leciona José Renato Nalini, “[...] a escassez de recursos, a indigência educacional e o patamar crescente da miséria interferem na ineficiência dos serviços de saúde, quadro ainda inalterado mesmo diante do texto progressista do constituinte de 1988” (NALINI, 1997. p. 238).

Como observado, a concretização dos direitos fundamentais, geralmente, esbarra em alguns óbices dentre os quais vale destacar a reserva do possível e, como já afirmado no início deste item, é uma das justificativas mais utilizadas pelo Poder Público.

A reserva do possível é de maneira clara ilustrada quando o “[...] Poder Público não pode efetivar ou desenvolver direitos sem que existam meios materiais para tanto” (THEODORO, 2008. p. 119). Ou melhor, fundamentam a ausência ou ineficácia de uma prestação de serviços de saúde devido à falta de recursos financeiros.

Porém, a alegação de insuficiência orçamentária, sem a comprovação, não pode ser aceita e neste sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal no AgRg-RE 271286/RS e em outras cortes deste país.

Para Marcelo Antonio Theodoro, a reserva do possível encontra-se como verdadeiro limite para a “[...] concretização dos direitos fundamentais no que se refere a prestações materiais” (THEODORO, 2008. p. 119). E salienta que “[...] dispõe a reserva do possível que o juiz, ou mesmo o Poder Público, não pode efetivar ou desenvolver direitos sem que existam meios materiais para tanto” (THEODORO, 2008. p. 119).

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138 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

A seu turno, Cláudia Maria da Costa Gonçalves não vê a reserva do possível apenas como a vilã da concretização, limitadora dos direitos fundamentais, ela entende que apresenta-se “[...] com as configurações de um princípio instrumental, ou seja, constitui-se mecanismo jurídico de aferição de constitucionalidade das políticas dos direitos fundamentais sociais” (GONÇALVES, 2006. p. 198).

Ressalta-se que o professor Oscar Valente Cardoso explica que a reserva do possível segue “[...] conforme as possibilidades orçamentárias e financeiras do ente federativo (binômio necessidade do beneficiário/possibilidade do Poder Público)” (CARDOSO, 2010).

E esse binômio tem razão de existir, visto que, muitas vezes o Poder Público se vê obrigado a custear procedimentos que não estão caracterizados como essenciais. Portanto, deve haver uma acurada análise na disponibilização do direito à saúde, sim. Alguns procedimentos estéticos, exceto os reparadores/restauradores não se justificam ser financiados pelo sistema único de saúde e este é apenas um exemplo.

Porém, o que é objeto de análise deste estudo é o direito à saúde como sendo fundamental ao ser humano, o que sugere que a análise seja voltada a enfocar apenas cuidados e tratamentos para o restabelecimento da saúde, intimamente ligado ao direito à vida, mais que isso, ao direito à vida digna.

Sendo essencial, o direito subjetivo tutelado, será albergado pelo ordenamento pátrio, e mesmo em casos de enquadrar-se na reserva do possível, essa não será aplicada.

Nesse sentido, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, em ADPF n.º 45, ressaltou que “[...] não pode alegar a reserva do possível para se eximir de qualquer obrigação na efetivação dos direitos fundamentais, tendo o Judiciário legitimidade para apreciar e julgar os casos concretos” (CARDOSO, 2010).

Nota-se que o entendimento jurisprudencial brasileiro é tutelar o direito à saúde de maneira integral, universal e de forma efetiva.

Diferente ocorre com a África do Sul, cuja própria Constituição prevê a reserva do possível quando aponta que “[...] dentro da sua disposição de recursos, para promover as condições necessárias à efetivação dos direitos” (CARDOSO, 2010). Mas como visto, tal entendimento foge completamente do brasileiro.

Cláudia Maria da Costa Gonçalves, diferenciando de outros posicionamentos, entende que os direitos fundamentais sociais, a qual denomina em sua obra necessidades humanas básicas, estabelecem “[...] o limite mínimo da reserva do possível, abaixo do qual podem se configurar situações de inconstitucionalidade. Assim, limitações de recursos não podem justificar que o Estado deixe de prestar serviços básicos de saúde aos que não podem pagar” (GONÇALVES, 2006. p. 199).

De outro norte, a reserva do possível entra em colisão com o mínimo existencial ou, como muitos preferem, mínimo vital que, como o nome sugere, é o mínimo para a manutenção do direito à vida.

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Direito à saúde... // 139

Dessa forma, o orçamento público não pode ser obstáculo para

concretização de um direito essencial à vida humana. Aliás, nem “não pode ser absoluta, intransponível. O esforço concretizador do intérprete não pode ser fadado ao fracasso em face de uma lei orçamentária que nem sempre é justa” (THEODORO, 2008.p. 119). Certamente, o contrário não foi a mens legis que inspirou o Constituinte quando elevou o direito à saúde a categoria de direito social.

Assim, quando da colisão do mínimo vital, como por exemplo, o direito à saúde e a reserva do possível, o princípio da proporcionalidade será o solucionar desta colisão de interesses.

Por derradeiro, quando existir a presença de dois direitos fundamentais em colisão, “[...] de modo que não for possível proteger a ambos, um deverá ser sacrificado. Deve-se fazer um sopesamento, colocando frente a frente os bens colidentes e escolher qual dos dois, diante do caso concreto, será sacrificado e qual será preservado” (FACHIN, 2008. p. 138).

Malgrado a regra seja que o direito fundamental sempre deverá ser respeitado, quando existir colisão deste com outro direito fundamental, será permitida a opção por um determinado. E neste ponto também haverá utilização do princípio da proporcionalidade.

A este respeito, Zulmar Fachin entende que “[...] em circunstâncias excepcionais, sacrifica-se um bem para que outro, igualmente ou mais valioso, possa ser salvo” (FACHIN, 2008. p. 138).

Como sugere Marcelo Antonio Theodoro na conclusão de seu estudo, como forma de estimular os operadores do Direito, estes devem “[...] pautar suas decisões privilegiando o mínimo vital em detrimento da reserva do possível, sempre observando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade” (THEODORO, 2008.p. 119).

O que acarreta o uso de meios razoáveis, da moderação e da proporcionalidade na decisão de qual direito terá a prevalência.

Principalmente neste estudo, adota-se o princípio da proporcionalidade, Paulo Bonavides entende que é através deste que “[...] os juízes corrigem o defeito da verdade da lei” (BONAVIDES, 2003. p. 393).

Neste ínterim vale citar que a proporcionalidade, principalmente em sentido estrito, “[...] busca a proporção entre o objetivo perseguido pela norma e o ônus imposto ao atingido, resultado este que só poderá ser obtido mediante a ponderação realizada no caso concreto” (THEODORO, 2008.p. 119). Ou como nas lições de Robert Alexy, decorre “[...] da relativização com respeito às possibilidades jurídicas” (ALEXY apud THEODORO, 2008, p. 119).

O princípio da proporcionalidade, portanto, pode ser vislumbrado como a verdadeira balança, símbolo da justiça, pois, no caso em estudo, fará um sopesamento, uma ponderação de interesses e direitos.

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8.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Se o direito à saúde compõe a gama de direitos fundamentais sociais,

possuindo íntima relação com o princípio maior do Estado brasileiro, logo sua afronta viola, também, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, colocando em risco toda a ordem posta.

Ademais, o direito à saúde reside no conteúdo nuclear da dignidade humana e, talvez, seria um dos principais direitos tutelados pelo Estado, vez que seu campo de abrangência é amplo. Visto que, o direito à saúde, de certa forma, abrange outros direitos acessórios, como o direito à educação, à cultura, ao saneamento, ao fornecimento de remédios e aos cuidados profissionais, dentre outros.

Embora o direito à saúde seja um direito fundamental, encontrando amparo no art. 5º, §1º da Constituição, observa-se no cotidiano que não possui aplicação imediata como aspirou o Constituinte.

Além disto, como fundamentação para a manutenção de um sistema de saúde que não promove o intento para qual foi criada, de maneira satisfatória, surge a reserva do possível, ou melhor, a ausência de orçamento como justificativa para o não atendimento ao indivíduo.

Destarte, neste estudo conclui-se que os direitos fundamentais sociais independem de previsão orçamentária, de condições financeiras para a plena concretização. Pois, um direito fundamental de relevante importância para o ordenamento como o direito à saúde não pode ser desprezado pela Poder Público. Caso contrário, a ordem constitucional estaria ameaçada e o ser humano perderia o centro de tutela constitucional.

8.7 REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés.

Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. ALKIMIN, Maria Aparecida. Assédio moral na relação de emprego. Curitiba: Juruá, 2006. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. CARDOSO, Oscar Valente. Direito à saúde é princípio constitucional fundamental, mas o

Estado não pode atender a todos, nem o Judiciário pode suprir falhas legislativas a respeito. Disponível em: <http://revistavisaojuridica.uol.com.br /advogados-leis-jurisprudencia/37/artigo141530-3.asp>. Acesso em: 22 fev. 2010.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 16. ed. São Paulo:

Saraiva, 2004. FACHIN, Zulmar Antônio. Aulas da disciplina de Fundamentos constitucionais dos direitos da

personalidade. In: Revista Jurídica Cesumar. nov. 2009. ______. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Método, 2008. FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Editorial

Trotta, 2001. GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional.

Curitiba: Juruá, 2006. GONÇALVES, Cláudia Maria da Costa. Direitos fundamentais sociais: releitura de uma

constituição dirigente. Curitiba: Juruá, 2006. JACINTHO, Jussara Maria Moreno. Dignidade humana: princípio constitucional. Curitiba:

Juruá, 2008.

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Direito à saúde... // 141

MORAES, Alexandre de. Direito ao silêncio e Comissões Parlamentares de Inquérito. In: Jus

Navigandi. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2427>. Acesso em: 26 fev. 2010.

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jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2007. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. REIS, Clayton; VAZ, Wanderson Lago. Dignidade da pessoa humana. In: Revista Jurídica

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do Advogado, 2003. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo:

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Coimbra: Coimbra Editora, 1995. SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: RT, 2005. THEODORO, Marcelo Antônio. Direitos fundamentais & sua concretização. Curitiba: Juruá,

2008.

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= IX =

DIREITO AO ESQUECIMENTO: EVOLUÇÃO DOS DIREITOS PERSONALÍSSIMOS NA BUSCA DA PRESERVAÇÃO DA DIGNIDADE

DA PESSOA HUMANA

Cleide Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão* Tatiana Manna Bellasalma e Silva**

Ricardo da Silveira e Silva*** 9.1 INTRODUÇÃO

O advento das novas tecnologias alterou os paradigmas da

sociedade, modificando a forma de viver. Atualmente experimenta-se a mais importante e significativa evolução social apresentada por toda a história. A par de todos os benefícios e avanços trazidos, a revolução tecnologia traz consigo problemas que suscitam solução.

A facilidade com que se obtém dados e informações de cada indivíduo, propiciada pelas novas tecnologias, mostra-se como um incentivo a afrontas cometidas contra a pessoa humana, em especial atingindo os direitos da personalidade e a dignidade da pessoa. Os dados e informações que antes eram guardados na memória de cada envolvido hoje é exposto a revelia de seus atores.

Hodiernamente, o tempo e o espaço não se revestem de obstáculo ou dificuldade para a afronta aos direitos da personalidade, sequer o passado da pessoa está a salvo da curiosidade alheia. Sendo assim, o direito ao esquecimento apresentar-se-ia como uma evolução aos direitos personalíssimos e serviria como mecanismo eficiente na proteção do passado da pessoa humana? O direito é conclamado a dar solução a esses conflitos trazidos pela sociedade superinformacional, uma vez que, o processo de evolução tecnológica se desenvolve de forma irreversível.

Utilizou-se, o método teórico no presente trabalho, em especial a análise bibliográfica, cujo escopo é o estudo do direito ao esquecimento como evolução dos direitos da personalidade e mecanismo de garantia a dignidade

* Doutora em Direito das relações sociais pela UFPR – mestre em Direito pela UEM, graduação

pela UEM; professora no programa de Mestrado da UNICESUMAR, especialização e graduação; membro do IBDFAM, membro do Instituto dos Advogados do Paraná; advogada no Estado do Paraná. ** Mestranda em Ciências Jurídicas pelo UNICESUMAR – Maringá. Especialista em Direito

Processual Civil pela UNIVEM – Faculdade Eurípedes Soares da Rocha. Professora e Professora/advogada do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade Metropolitana de Maringá – FAMMA. Advogada em Maringá/PR. *** Mestrando em Ciências Jurídicas pelo UNICESUMAR – Maringá. Professor e

Professor/advogado do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade Metropolitana de Maringá – FAMMA. Advogado em Maringá/PR.

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Direito ao esquecimento... // 143

da pessoa humana, destacando-se sua importância face a sociedade atual e avanços tecnológicos.

9.2 BREVES COMENTÁRIOS ACERCA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Personalidade refere-se a parte intrínseca de cada indivíduo, ou seja,

refere-se ao complexo de caracteres de cada pessoa. Tratam-se de bens inerentes a pessoa humana, dentre eles, a vida, liberdade, honra, intimidade, privacidade, dentre outros. Desta forma, a tutela a esses bens ínclitos a cada indivíduo denomina-se direitos da personalidade (SZANIAWSKI, 2005, p. 70).

Segundo Orlando Gomes Sob a denominação de direitos de personalidade, compreendem-se os direitos personalíssimos e os direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana que a doutrina moderna preconiza e disciplina no corpo do Código Civil como direitos absolutos, desprovidos, porém, da faculdade de disposição. Destinam-se a resguardar a eminente dignidade da pessoa humana, preservando-a dos atentados que pode sofrer por parte de outros indivíduos (GOMES, 1998, P. 131).

Os direitos personalíssimos dizem respeito aos direitos que

constituem a medula da personalidade, ou seja, são determinados direitos sem os quais a personalidade estaria desprovida de valor. Assim, os direitos da personalidade adquirem um valor jurídico positivo essencial não só por ocuparem lugar no ordenamento jurídico, mas também por se revestirem de mecanismo apto a garantir os direitos inerentes a pessoa humana (CUPIS, 2008, p. 24).

Os direitos da personalidade apresentam-se como um mecanismo de resistência às ofensas cometidas contra os atributos mais íntimos e inerentes a cada pessoa. Trata-se, portanto, de um instrumento que serve de escudo de defesa permanente para repelir ofensas à qualidade mais sagrada do indivíduo: sua dignidade. Assim, não há como se fixar uma lista destes direitos, uma vez que eles são moldados de acordo com as necessidades da pessoa humana e de cada sociedade e seu grau de evolução (FERREIRA, 2013, p. 97).

No entender de Anderson Schreiber, Os direitos contemplados no Código Civil não encerram ou restringem a proteção ao fenômeno humano. São apenas alguns dos atributos imprescindíveis à dignidade do Homem, expressa e especificamente reconhecidos como merecedores de tutela pelo ordenamento, jurídico brasileiro. Não se esgotam aí os direitos da personalidade. Da prática judicial, da produção legislativa, da reflexão doutrinária emergem, a cada dia, novos direitos da personalidade que vêm clamar pelo reconhecimento de sua essencialidade (SCHREIBER, 2011, p. 218).

Para João Gabriel Lemos Ferreira

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Isso significa que os direitos relacionados à personalidade não podem constar de uma plataforma imutável e insensível ao tempo. A evolução humana deve ajustar esses valores para melhor ampara a volatilidade das relações sociais com o decurso do tempo (FERREIRA, 2013, p. 98).

Os direitos personalíssimos constituem-se em direitos subjetivos que

buscam a proteção de valores essenciais à pessoa humana nos aspectos físico, moral e intelectual, ou seja, conferem a seus titulares o poder de agir em defesa de seus direitos. Protegendo seus direitos mais íntimos dos ataques e afrontas sofridos nos mais diversos aspectos: vida e corpo humano, honra, liberdade, imagem, nome, à própria identidade, bem como o direito de exigir o respeito a esses direitos (FERMENTÃO, 2006, p. 258).

Segundo Elymar Szaniawski

A evolução social é constante e rápida. A tecnologia progride com descobertas diárias de aparelhos que põem em risco o indivíduo e sua personalidade, que é atacada a cada minuto. Não podemos, por isso, esperar o legislador para nos outorgar proteções não previstas anteriormente. É necessária a evolução direitos da personalidade e sua tutela, e esta só pode ser plenamente garantida pelo trabalho constante da jurisprudência que utiliza a analogia e os princípios gerais do direito para amplamente proteger dos ataques os direitos inerentes à pessoa humana, mesmo os não tipificados nem classificados pelos doutrinadores (SAZNIAWSKI, 2005, p. 241)

9.3 A PRIVACIDADE E A INTIMIDADE NA SOCIEDADE SUPERINFORMACIONAL

Hodiernamente a vida privada e íntima do indivíduo está sendo

encenada para um público indeterminado nas redes sociais e aplicativos, como se fosse uma novela a ser seguida. A questão da superexposição da intimidade e da privacidade que ocorrem nos dias de hoje remetem a uma análise histórica e nada se refere com a espetacularização que sucede hodiernamente.

De acordo com María Álvarez Caro (2015, p. 30), Ainda que obviamente seja a partir de uma ótica do ponto de vista religioso, um dos primeiros símbolos da intimidade foi a própria parreira com a qual Adão e Eva cobriram suas zonas corporais íntimas. É dizer, o ser humano vem ao mundo sem cobrir-se nem se guardar de nada e conforme evolui delimita de algum modo sua esfera de intimidade, muito provavelmente como um mecanismo de sobrevivência e para a conquista de uma qualidade de vida mínima. Por tanto, nas civilizações ancestrais, tudo era público e com o tempo foi-se conquistando parcelas de intimidade. Portanto, se pode chegar a conclusão de que quanto mais sofisticada ou refinada seja uma sociedade, mais valor tem a intimidade e, pelo contrário, quanto mais primitiva, mais

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valor tem a vida comunitária e menos valor tem o indivíduo isoladamente1. Tradução nossa

Pode-se dizer que a intimidade é “[...] o modo de ser da pessoa que

consiste na exclusão do conhecimento pelos outros daquilo que se refere a ela só” (CUPIS, 2008, p. 157), situação desconhecida das sociedades antigas, já que a vida perpassava em espaços públicos (FARIAS, 2000, p. 137).

Ao se sopesar a evolução social bem como a vida da pessoa humana, conclui-se que ambas se iniciam de forma pública, e com o passar do tempo e de acordo com o grau de evolução e desenvolvimento da sociedade e do indivíduo passam a buscar a intimidade e a reclusão. “{...}. Por tanto, a intimidade é algo que se atinge com a evolução, a maturidade e o desenvolvimento, tanto se referindo a própria civilização e espécie humana como a vida de um indivíduo isolado” (CARO, 2015, p. 30)2. Tradução nossa

É inegável que são necessários para o desenvolvimento e construção da pessoa humana um pouco de recolhimento e resguardo (SILVA, 2003, p. 66), já que a exposição desmedida de fatos e situações pretéritas poderão trazer enormes prejuízos de diversas ordens ao indivíduo, inclusive impedindo o convívio pacífico entre os homens, ou seja, a individualidade da pessoa deve fazer parte do conceito de bem comum (LEONARDI, 2012, p.120).

Ainda nos dizeres de Marcel Leonardi (2012, p. 121): A privacidade, entretanto, tem valor social: ela molda as comunidades sociais e fornece proteção necessária aos indivíduos contra diversos tipos de danos e intromissões, possibilitando que desenvolvam sua personalidade e devolvam à sociedade novas contribuições.

Em que pese o valor incomensurável que o recolhimento tem para o

desenvolvimento do indivíduo assiste-se atualmente o descortinar da intimidade e da privacidade humana, em busca de aceitação. A facilidade com que a vida íntima e a privada são expostas alterou por completo os padrões do comportamento humano (LANIER, 2012, p. 18).

A sociedade superinformacional alterou a maneira do indivíduo interagir com o mundo, aliás criou outro mundo: o virtual, substituindo a

1[…] Aunque obviamente sea desde uma óptica o punto de vista religioso, uno de los primeiros símbolos de la intimidad fue la parra com la que Adán y Eva se tapaban sus zonas corporales íntimas. Es decir, el ser humano viene al mundo sin taparse ni guardarse nada y conforme evoluciona delimita de algún modo su esfera de intimidad, muy probablemente como um mecanismo de supervivência y para el logro de uma calidad de vida mínima. Por tanto, em las civilizaciones ancestrales, todo era público y com el tiempo se fueron conquistando parcelas de intimidad. Por tanto, se pude llegar a la conclusión de que cuanto más sofisticada o refinada sea uma sociedade, mas valor tiene en ella la vida comunitária y menos valor tiene el individuo como tal de forma aislada. 2[…] Por lo tanto, la intimidad es algo que se logra con la evolución, el crecimiento, la madurez y el desarrollo, tanto referido a la propia civilización y especia humana como a la vida de um individuo cualquiera aislado.

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escrita pelo dígito, o mundo de imagens pelo mundo de conceitos; onde o espaço público apresenta-se como um palco para a encenação de um verdadeiro show (FERRAZ JUNIOR, 2014, p. 75).

É inegável que a democratização das novas tecnologias apresenta-se como uma novidade histórica de dimensões inimagináveis, alterando a face do mundo. Sendo inegável também que o que se expõe nestas redes sociais, quase como palcos de uma confissão virtual, pouco valor tem, tratam-se de relatos e experiências da vida cotidiana e que em nada irá acrescer no desenvolvimento da pessoa humana. A sociedade superinformacional apresenta este paradoxo: de um lado a exposição exacerbada e desmedida da vida íntima e privada e do outro a busca pelo respeito a vida já encenada. Ocorre que o incentivo a superexposição não apresenta a ressalva de que estes fatos e dados hoje expostos se perpetuarão na rede e esquecê-los será uma tarefa quase impossível (DOMINGUES, 2010. P. 53). Uma informação postada na internet pode ser lida simultaneamente em qualquer ponto do mundo e alguns segundos depois pode ser comentada e compartilhada por vários usuários, multiplicando-a em escala geométrica (DOMINGUES, 2010. p. 55).

O embate entre o privado e o público, na atualidade, ganha nova roupagem, vestindo-se das modernidades/avanços tecnológicos, inunda do espaço público com fatos e situações privadas, causando a invasão da intimidade e da privacidade da pessoa humana por terceiros, mas também, apresenta uma nova forma, quando o indivíduo lança voluntariamente bens tão preciosos (intimidade/privacidade) à arena pública (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2013).

As recordações e memórias da pessoa humana que há não muito tempo restringiam-se a arquivos físicos, de papel, fotos e objetos hodiernamente encontram-se digitalizados, disponíveis e ao alcance de todos, ignorando a territorialidade e o tempo (SOARES, 2015. p. 2). O indivíduo não pode apagar seu passado ou reescrever parte de sua história, entretanto o direito ao esquecimento, proporciona à pessoa humana, que sofre com o mal-uso das novas tecnologias, a possibilidade de retomar o curso normal da existência, deixando adormecidos fatos pretéritos (SOARES, 2015, p. 12).

9.4 ENUNCIADO 531 DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO DO DIREITO AO ESQUECIMENTO

A transformação que as novas tecnologias trouxeram com seus

avanços e facilidades alterou a forma de vida das pessoas e apresentou ao Direito questionamentos e conflitos que carecem de solução. Assim, o Direito tem que se preocupar em responder os anseios da sociedade que vê seu passado sendo descoberto e revivido. O direito ao esquecimento surge, portanto, da necessidade de garantir a pessoa humana o domínio e a autonomia sobre sua vida não só presente, mas também a pretérita.

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O Direito foi afetado pelas novas tecnologias, em especial pelo

advento da internet, uma vez que nada está a margem da rede virtual. Apesar do Direito incorporar essas modificações e avanços de forma lenta e gradativa, ele sempre se encontra um passo atrás dos progressos tecnológicos, na busca incessante de adaptar-se as transformações (CARO, 2015, p. 17).

A velha expressão não há mal que dure para sempre, nem bem que nunca se acabe, não pode ser aplicada de forma absoluta nos dias atuais, uma vez que as informações e dados da pessoa humana perpetuam-se na rede, podendo causar enormes transtornos, sofrimentos e prejuízos para o indivíduo. Na sociedade superinformacional todas as informações e dados encontram-se disponíveis na internet para saciar a curiosidade alheia. Assim, “não há memória que se esconda – sigilosa é apenas a memória nunca revelada” (SOARES, 2015.). Os meios tecnológicos tornaram o passado e as informações contidas na internet eternos e perenemente disponíveis.

A vida e toda a história do indivíduo exposta para quem quiser buscá-la, bastando um simples click para que se descortine o tempo e traga à tona fatos já esquecidos é causa, na maioria das vezes, de sofrimento e dor à pessoa humana, retirando-lhe o direito à privacidade. E atento a essa necessidade o Direito apresenta como solução a aplicabilidade do Direito ao Esquecimento, admitido pelos Tribunais pátrios e reconhecido pelo Enunciado 531 do Conselho da Justiça Federal brasileira:

ENUNCIADO 531 – A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Artigo: 11 do Código Civil Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados (Superior Tribunal de Justiça, 2013).

Ao avançar no passado da pessoa humana, atinge-se sua dignidade,

pois não se respeita o direito à sua privacidade, revivendo fatos pretéritos já adormecidos pelo tempo. A dignidade assenta-se sobre o pressuposto de que cada indivíduo possui um valor intrínseco, destacando das demais coisas (BARROSO, 2013, p. 14). Assim, não pode a pessoa ser tratada pelas novas tecnologias como simples dados que são colocados à disposição do interesse alheio e injustificado.

Segundo Ingo Wolfgan Sarlet (2007, p. 62): Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como

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venham a lhe garantir condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

A dignidade coloca a pessoa humana um papel central no universo,

como carecedor de proteção e garantias, bem como lhe conferindo capacidade de fazer escolhas e de determinar seu próprio futuro (BARROSO, 2013, p. 61). Em que pese a ideia de dignidade tenha sido construída ao longo dos tempos, ela se apresenta como um valor supremo e indissociável da pessoa humana (NUNES, 2002, p. 46).

A história da humanidade apresenta vários episódios de lutas e conquistas na intenção de preservar a dignidade da pessoa humana, sendo que o holocausto constitui o marco histórico significativo para o delineamento da atual noção de dignidade, uma vez que os horrores cometidos durante a Segunda Guerra Mundial provocaram enorme reação em todo o mundo, que repudiou todas as barbáries e afrontas cometidas com a pessoa humana (BARROSO, 2013, p. 18).

A ideia de dignidade acompanha a evolução social e se amolda as necessidades do indivíduo no transcorrer do tempo, nascendo como um valor supremo construído pela razão jurídica. Assim, conceituar ou definir dignidade apresenta-se como uma tarefa árdua e inglória tornando-se mais satisfatório apontar e relevar o que não é dignidade do que apresentar um conteúdo ou fixar um conceito rígido do que ela seja (LIMA JUNIOR, 2015, p. 324).

O conceito de dignidade apresenta-se de tal forma que muitas vezes pode ser confundido com o próprio conceito de personalidade, por ser fluído, multifacetado e multidisciplinar (SZANIAWSKI, 2005. p. 140). Toda pessoa humana nasce com dignidade, sendo todos iguais, não havendo qualquer distinção ou gradação ou escala de merecimento e tampouco se perde a qualidade de merecedor de dignidade, uma vez que ela é inerente a pessoa (JABUR, 2000, p. 210). “A dignidade nasce com a pessoa. É-lhe nata. Inerente a sua essência” (NUNES, 2002, p. 49). Desta forma esta qualidade protetiva acompanha o indivíduo desde o nascimento até a morte, por todos os momentos da vida.

[…] Não há gradação na dignidade, como não há escala de merecimento ou diferenciação. O indivíduo não perde a qualidade de ser digno ou merecedor de dignidade porque empobreceu, perdeu a compostura, desonrou ou sofreu desonra, foi preso ou desterrado.” (SZANIAWSKI, 2005. p. 208)

A dignidade, para Kant (2007, p. 77), possui um valor íntimo e não

um valor relativo, assim, No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.

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Diferenciando as pessoas das coisas, em virtude dos ensinamentos

kantianos a filosofia alçou o indivíduo como um ser único, inestimável, devendo ter todos os seus direitos respeitados (LIMA JUNIOR, 2015, p. 321), reconhecendo-lhe, inclusive, autonomia para dirigir sua vida. Desta forma, a dignidade humana não depende do Estado ou de lei regulamente, nem tampouco de um contrato que lhe estabeleça, ou de qualquer função ou atividade desempenhada pelo indivíduo, bem como não tem relação com sua capacidade, assim, o pressuposto para a dignidade é a condição humana (BORGES, 2007, p. 23).

A dignidade, por sua vez, apresenta-se como uma diretriz para o Direito, ditando, informando e conduzindo o operador na direção segura na busca da proteção e bem-estar da pessoa humana (JABUR, 2000. p. 206). O direito a escolha de quais caminhos seguir, dentre as opções que a vida oferece ao indivíduo, na busca pelo seu desenvolvimento e construção é em última análise reconhecer-lhe a dignidade que o diferencia das coisas e objetos. O poder de autodeterminação e a liberdade de fazer escolhas é de suma importância para que a pessoa humana se realize na busca constante e incansável pela sua edificação.

Para Cleide Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão (2015, p. 62): A liberdade é a capacidade de escolher os melhores meios para a própria realização como pessoa. Diante da pessoa, a vida coloca um leque de valores, e ela tem a liberdade de optar por aquele ou aqueles que mais se sintonizam com a sua vida pessoal. Exercer a liberdade, para a opção de valores interiores, é o momento em que o homem se transmuda e escreve seu destino.

A pessoa humana se diferencia e aparece como um ser superior do

universo material, uma vez que é dotado de inteligência e liberdade. A liberdade, portanto, pertence a essência do indivíduo e o diferencia das coisas, eis que o homem tem um fim próprio que é exercer sua própria determinação. A pessoa humana não se reduz a sua existência física, biológica, mas também é conhecimento e amor (PÉREZ, 2012, p. 25).

Reconhecer o direito que o indivíduo tem em ver adormecidos fatos pretéritos, como opção e escolha própria, em virtude de sua autonomia e liberdade inerentes, lhe confere dignidade. O passado revela-se como elemento importante no desenvolvimento da pessoa humana, devendo-se respeitar, portanto, a história de vida do indivíduo, concedendo-lhe autonomia para decidir se eles devem ou não ser relembrados.

O indivíduo tem, portanto, o direito de não pertencer a uma determinada memória, seja esta coletiva ou individual, ou seja, é reconhecer o direito de autodeterminar-se, permitindo que a pessoa se proteja dos avanços à sua intimidade, privacidade e a própria honra, “[...] uma vez que ninguém é obrigado a conviver para sempre com um passado que não representa mais a condição atual da pessoa” (LIMA, 2014). Segundo Edson Ferreira da Silva, “[...] é inata no homem a aspiração de ser amado e

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respeitado pelos seus semelhantes, donde a tendência de querer velar dos demais os fatos, aspectos ou situações pessoais ou familiares que possam gerar censura, desprezo ou reprovação” (SILVA, 2002, p. 68).

A pessoa humana tem direito de preservar os fatos e acontecimentos de sua vida. “[...] Experiências, lutas, paixões pessoais, estão-lhe intimamente ligadas, não podendo, por isso conceder-se livre acesso à curiosidade do público” (CUPIS, 2008, p. 156). E também tem o direito de ter resguardadas suas experiências, uma vez que a vida humana não é um livro para ser lido e reeditado pelos leitores, mas sim cabe essa decisão somente ao seu autor.

Segundo Mixilini Chemin Pires e Riva Sobrado de Freitas (2015), o direito ao esquecimento tem profunda ligação com a ideia de dignidade

Denota-se que “não ser lembrado”, “ser esquecido” faz parte do conceito de dignidade humana, eis que muitas vezes, as lembranças e as recordações trazem sofrimento e dor, e nem sempre possuem justificativas aceitáveis ou perdoáveis pelo próprio “eu”, e tudo o que se quer, é o direito de recomeçar, melhor dizendo, “começar de novo”, pois o recomeço parte daquilo que já passou e o começar anula o passado que possa ter existido, mesmo que apenas na mente, mas não na alma de seus partícipes.

Desta forma, reconhecer o direito ao esquecimento, respeitando o

direito de autogovernar-se, bem como, repudiando a perpetuação das penas, mesmo que de ordem social, oportunizando a pessoa a possibilidade de recomeço é em última análise respeitar a pessoa humana, em toda a sua dignidade.

9.5 O DIREITO AO ESQUECIMENTO COMO DIREITO PERSONALÍSSIMO

O passado e as experiências da pessoa apresentam-se como um

elemento importante na sua formação. O homem é fruto de sua vivência. Assim, o transcurso do tempo é relevante não só para o Direito enquanto constituí, modifica e até mesmo extingue direitos, mas também para a pessoa humana que nunca se banha no mesmo rio, ou seja, encontra-se em constante evolução.

A pessoa humana ao longo de sua existência edificava sua memória a partir de fatos positivos e negativos e tinha a capacidade e o “direito” de esquecer, descartar e não rememorar determinadas situações que não era efetivamente relevantes ou traziam demasiado sofrimento (SOARES, 2015. p. 4). Assim, aquilo que era fadado ao esquecimento, com as novas tecnologias, perpetuou-se na internet, não se resguardando do interesse alheio a vida pretérita do indivíduo, ou seja, a memória pessoal contida em objetos físicos e lembranças foi transferida para a memória virtual (REIS, 2013, p. 294).

O passado que antes era regido pelo interesse e autodeterminação de seu ator, que decidia se, e quando determinados fatos deveriam ser reencenados, agora queda-se vulnerável e frágil, diante de apenas um click.

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Assim, os fatos pretéritos pertenciam a pessoa humana, que figurava no controle da sua exposição, até o surgimento das novas tecnologias, em especial, a internet, que retirou do indivíduo o controle sobre os fatos e dados de sua vida.

A proteção da pessoa humana em todas as suas potencialidades, necessidades, amores e dores impõe ao Direito o dever de tutelar todos os fatos e situações que constroem a vida do indivíduo, quer estejam no passado longínquo ou no presente remoto. A tutela do direito ao esquecimento apresenta-se, por sua vez, como uma resposta a essa necessidade imperativa, ou seja, trata-se de verdadeira evolução dos direitos da personalidade.

É inegável que os avanços trazidos pelas novas tecnologias também atingem negativamente o homem. Retirar da pessoa humana o direito de reger-se é reduzi-la a coisificação, despindo-a de sua dignidade.

Na sociedade atual as informações são consideradas os mais valiosos bens, e são buscados com facilidade ímpar, de tal modo, que é compreensível e natural que a pessoa humana busque a proteção de seus dados e sua vida pretérita, como um patrimônio próprio, reafirmando sua autodeterminação normativa (SIERRA, 2013, p. 9).

Segundo Anderson Schreiber (2011, p. 170): A internet não esquece. Ao contrário dos jornais e revistas de outrora, cujas edições antigas se perdiam no tempo, sujeitas ao desgaste do seu suporte físico, as informações que circulam na rede ali permanecem indefinidamente. Pior: dados pretéritos vêm à tona com a mesma clareza dos dados mais recentes, criando um delicado conflito no campo do direito. De um lado, é certo que o público tem direito a relembrar fatos antigos. De outro, embora ninguém tenha direito de apagar os fatos, deve-se evitar que uma pessoa seja perseguida, ao longo de toda a vida, por um acontecimento pretérito.

A tutela do direito ao esquecimento encontra sem dúvida limites,

respeitando outros direitos fundamentais também dignos de proteção, como a liberdade de expressão, de imprensa, questões de ordem pública e informações socialmente relevantes (CARO, 2015, p. 133). Uma vez que não se pretende com a tutela do Direito ao Esquecimento apagar da memória fatos socialmente relevantes que não podem e não devem ser olvidados, eis que se reconhece o valor e a importância de tais fatos para a história e evolução da sociedade.

A memória coletiva ou também chamada de memória social desempenha importante função na formação e manutenção da identidade de toda e qualquer sociedade (PAZ, 2014, p. 60). Sendo imperiosa a lembrança de erros cometidos no passado para que eles não voltem a acontecer, como por exemplo as barbáries cometidas durante as guerras e estado de exceção que lamentavelmente maculam a história da humanidade. Ocorre que fatos em que há interesse ou relevância pública e social são diferentes de fatos que provocam interesse do público. “O conceito de notícias de relevância pública enfeixa as notícias relevantes para decisões importantes do indivíduo

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na sociedade” (MENDES, 2003, p. 373). O Direito deve proteger a pessoa humana da curiosidade banal, sem motivação e desrespeitosa.

O passado, desta forma, pertence a pessoa humana quando a motivação que leva a relembrá-lo é espúria e injustificada, ou seja, não se tratando de fato relevante socialmente há que se respeitar o direito de deixar adormecidos fatos que o tempo já tratou de esquecer, preservado o indivíduo da curiosidade alheia.

O interesse atroz e desmedido pela vida do outro transforma a pessoa humana no algoz virtual de seu semelhante, impingindo a ele uma pena perpetua e cruel, uma vez que não se pode negar que valer-se de fatos pretéritos desprovidos de interesse público e historicidade, impõe aos envolvidos grande sofrimento (RAMOS FILHO, 2014, p. 60). As informações e dados disponíveis virtualmente, quando se concede o direito ao esquecimento, não são apagados, mas sim são removidos dos sites de busca, porém continuam disponíveis em suas fontes originais (SANTANA JÚNIOR; LIMA; NUNES, 2015), ou seja, o fato não pode ser encontrado através de busca na internet, porém não é apagado da sua fonte primária.

Há, portanto, a necessidade de proteger os fatos pretéritos do indivíduo, como desdobramento do direito da personalidade, que pretende tutelar a pessoa humana das afrontas cometidas contra seus direitos mais íntimos e essenciais. Reconhecer que o passado pertence a pessoa e impedir o avanço à vida do indivíduo é imperioso para a sua construção e desenvolvimento.

Segundo Ricardo da Silveira e Silva e Tatiana Manna Bellasalma e Silva (2015, p. 129),

Imaginando-se a vida como uma peça teatral em que cada indivíduo é autor e ato de sua própria peça, cabe a cada um decidir se determinado ato deve ser reencenado, pois somente ele poderá mensurar a dor ou o constrangimento que aquele ato encenado fora de seu contexto irá causar. Proteger o passado da pessoa contra o ataque e investidas de outrem é, em última análise, conceder-lhe dignidade.

A pessoa humana deve ter seu direito ao recolhimento respeitado e

garantido. O indivíduo não deve ser obrigado a estar sob os holofotes por toda a vida, eis que os direitos a privacidade e intimidade lhes são conferidos. Assim, não se tratando de fatos que justifiquem interesse, a pessoa humana deve ser respeitada e os direitos a vida intima e privada reverenciados.

9.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As mudanças que a sociedade tem experimentado apresentam-se

também como um desafio à garantia e tutela dos direitos da personalidade, uma vez que necessitam proteger a pessoa humana das mais diversas ofensas. O direito, hodiernamente, é suscitado a preservar o indivíduo de forma integral contra aos avanços aos seus direitos mais íntimos e essenciais.

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A vida íntima e privada tornou-se um show a ser encenado a um

número ilimitado de espectadores, eis que as novas tecnologias não encontram obstáculos espaciais ou temporais para a propagação das informações. Assim, os direitos personalíssimos à intimidade e privacidade sofrem afrontas e são alvo da curiosidade alheia, desnudando a pessoa humana, expondo sua vida a curiosidade alheia.

O direito ao esquecimento apresenta-se como uma evolução aos direitos personalíssimos, na medida em que protege a pessoa humana do ataque a sua vida pretérita. Ao garantir ao indivíduo a preservação de sua vida pretérita, propicia, em última análise, o reconhecimento aos seus direitos natos e essenciais, ou seja, respeita-se sua dignidade.

A tutela do direito ao esquecimento não infere a destruição do passado, posto que se trata de elemento importante para a caracterização e identificação de uma sociedade, assim a história de um povo deve ser preservada. Porém, fatos que não tenham relevância social não devem ser acordados sem a autorização de seus protagonistas. O direito ao esquecimento não pretende censurar ou limitar a liberdade de expressão conquistada. Apenas, justifica-se o direito ao esquecimento como o legítimo direito de cada pessoa ser dona de seu passado, uma vez que foi em razão dos fatos e situações vivenciadas que cada um se construiu. Assim, o passado é de suma importância para o desenvolvimento e construção da pessoa humana.

Indubitavelmente o passado pertence à pessoa humana que vivenciou todas as experiências nele contidas. A pessoa que se é hoje é resultado dos fatos e situações vividas, assim tais informações devem ser respeitadas e recolhidas ao altar da memória de cada indivíduo, uma vez que santas ou profanas, serviram de aprendizado e desenvolvimento para a pessoa humana.

O passado constitui-se, dessa forma, de elemento de suma importância para a construção humana, devendo ser protegido da curiosidade mórbida e da espetacularização desmedida, como condição de uma vida digna. A vida humana é como se fosse um retalho que é costurado pelo homem e pouco a pouco se transforma em um manto que lhe edifica e protege, ele é fruto de suas experiências, assim como o manto que lhe faz o que é.

O poder de decidir quais fatos serão esquecidos cabe a pessoa humana, somente ela sabe o que lhe causa dor e pesar. Nenhuma revolução tecnológica associada a curiosidade desmedida e injustificada pode se sobrepor à vontade do indivíduo. Desta forma, a preservação do passado da pessoa humana apresenta-se também como uma evolução dos direitos da personalidade, uma vez que, se busca o respeito a história de cada indivíduo, pela relevância que possui na construção e desenvolvimento de cada pessoa humana. 9.7 REFERÊNCIAS

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= X =

DO TRATAMENTO DO EMBRIÃO CRIOPRESERVADO NA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

Maria Beatriz Colafatti*

Jaqueline da Silva Paulichi** 10.1 INTRODUÇÃO

Serão apresentadas nesta pesquisa as práticas utilizadas para se

criopreservar o embrião humano após a realização das técnicas de reprodução humana assistida.

Ocorre que o embrião criopreservado se encontra em situação de vulnerabilidade, pois após a reprodução assistida, os embriões excedentários ficam congelados na clínica, podendo ser abandonados pelos idealizadores do projeto parental.

Outra questão pertinente é acerca de seu descarte, pois a Resolução 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina e a Lei de Biossegurança não discorrem acerca do método adequado para se realizar esse descarte.

Defende-se que o embrião possui uma potencialidade de vida, podendo vir a ser tornar um ser humano, e dada a sua potencialidade, esse também possui proteção jurídica, aplicando o princípio da dignidade da pessoa humana à ele.

Dessa forma, o embrião deve ser protegido para que não seja efetuado descarte de forma irresponsável, ou ainda que os idealizadores do projeto parental não deixem o material genético congelado por muito mais tempo que o previsto na Resolução 2013/2013 do CFM.

10.2 DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

As técnicas de reprodução assistida são asseguradas aqueles que

desejam realizar a parentalidade mas não conseguem pelo método natural. Dessa forma, a medicina aliou-se à tecnologia para criar os métodos de reprodução assistida homóloga e heteróloga, com suas diferentes técnicas e aplicações.

Walsir Edson Rodrigues Junior e Janice Silveira Borges definem a reprodução assistida: “[...] conjunto de técnicas que favorecem a fecundação

* Mestranda no Programa de Mestrado em Direitos da Personalidade do Centro Universitário

Cesumar (UNICESUMAR); Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná (EMAP); Advogada em Maringá-PR. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Especialista em Direito Tributário. Bolsista pela Unicesumar no programa de Mestrado. Endereço eletrônico: [email protected] ** Advogada, pós-graduanda pela UEL. Endereço eletrônico: [email protected]

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humana a partir da manipulação de gametas e embriões, objetivando principalmente combater a infertilidade e propiciando o nascimento de uma nova vida humana” (RODRIGUES JUNIOR, 2008, p.228.)

A reprodução assistida homóloga consiste no uso do material genético de ambos os pais, idealizadores do projeto de parentalidade, e a heteróloga se utiliza de material genético de um doador anônimo, podendo ser o sêmen, ou o óvulo, ou ainda a cessão temporária do útero.

Tycho Brahe Fernandes conceitua a reprodução assistida heteróloga: [...] por fecundação heteróloga entende-se o processo pelo qual a criança que vier a ser gerada por qualquer das técnicas de reprodução assistida for fecundada com a utilização de gametas de doadores, dividindo-se a fecundação heteróloga “a matre”, quando o gameta doado for feminino, “a patre”, quando se tratar de doação de gameta masculino, ou total, quando os gametas utilizados na fecundação, tanto os masculinos quanto os femininos, são de doadores (FERNANDES, 2000, p. 58.).

Independente da técnica utilizada, quando se faz necessário a

fecundação em laboratório, há a criação do embrião de forma não natural, caracterizando-se a fecundação n vitro. Quando ocorre a fecundação in vitro

os embriões que são formados ficam congelados, aguardando a implantação no útero da mãe. Porém, um número muito grande de embriões ficam criopreservados nas clínicas de reprodução humana assistida, e a destinação desses embriões é questão preocupante.

O relatório SisEmbrios, realizado pela Anvisa todos os anos, demonstra o número de embriões que são armazenados nessas clínicas.

No quadro colacionado abaixo há o resumo dos dados informados pelas clínicas do país no ano de 2013, em que constata-se o número de 38.062 embriões congelados, e apenas 1.231 embriões enviados à pesquisa com células tronco no país.

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Já, no quadro colacionado abaixo apresentam-se os números

relativos ao envio de embriões criopreservados para pesquisa com células tronco desde o ano de 2007, até 2013, ano em que foi feita a última pesquisa. Constata-se que 5.131 embriões foram enviados para pesquisa com células tronco.

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Assim, indaga-se qual a destinação de todos esses embriões

criopreservados, e qual a responsabilidade dos idealizadores do projeto parental ao deixar esses embriões congelados por mais tempo que o previsto em lei, abandonando-os, ou os descartando.

10.3 DO CONGELAMENTO DE EMBRIÃO

Há no país a prática de criopreservação de embriões. O Conselho

Federal de Medicina editou resolução que regulamentou essa prática para os médicos e clínicas, além de reconhecer que a infertilidade é um problema de saúde que merece ter atenção especial dos órgãos de classe profissional, visando um cuidado maior nos procedimentos.

A criopreservação representa a prática do congelamento de embriões, onde estes ficam aguardando uma futura utilização. No entanto, após o término das etapas da reprodução humana assistida, os embriões excedentários ficam congelados, ou seja, criopreservados.

Em relação à criopreservação dos ovócitos excedentes, Maria Helena Diniz explica:

Nos dias posteriores à inseminação de nossos ovócitos, todo pré-embrião será congelado. A equipe de laboratório o transferirá a uma solução especial que contém o composto crioprotetor. Os pré-embriões serão resfriados até

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150ºC negativos em um aparelho desenhado para controlar cuidadosamente o grau e o tempo de congelamento. Após isso, serão mantidos a uma temperatura de 196ºC negativos, até que se decida descongelá-los. ( p. 615-616.)

Deste modo, é necessária a preservação dos embriões, seguindo

rigorosamente os critérios estipulados a sua manutenção, possibilitando assim, caso haja o descongelamento, o uso de um embrião viável para a implantação através da reprodução humana assistida.

Porém, é importante informar aos genitores que a criopreservação, por si só, poderá ocasionar um aumento na possibilidade dos riscos de anomalias fetais, além de declararem conhecimento expresso sobre a incidência da não continuidade do desenvolvimento do embrião in vitro em 50% dos que tiverem sido congelados (CAMBIAGHI, 2006).

O processo de congelamento do embrião requer manutenção periódica e cuidados especiais. Os embriões ficam estocados em recipientes contendo nitrogênio líquido, os quais necessitam de constante supervisão, além da reposição de tal substância (SILVA, 2014).

O congelamento do embrião então é uma alternativa colocada à disposição dos pais, a fim de poderem utilizar futuramente tais embriões, destarte, é cobrado destes uma taxa de manutenção periódica para a conservação do material (BAUER, 2002, p.154).

Em 2005, com o advento da Lei nº 11.105 (Lei de Biossegurança) foi estabelecido alguns critérios referentes ao congelamento dos embriões, em especial o artigo 5º da referida Lei, senão vejamos:

Art. 5º - É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. § 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997 (BRASIL, 2005).

Nota-se que a referida Lei apresenta um lapso temporal de 3 (três)

anos de congelamento para que possam ser utilizados em pesquisas. Porém, o prazo supracitado oferece um mínimo de segurança, sendo baseado apenas no quesito tempo percorrido, haja vista ser diminuída a probabilidade de êxito na reprodução assistida com embriões já congelados (GALDINO, 2014).

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No entanto, é correta a afirmação do mínimo de segurança ao passo

de que existe possibilidade de ser viável o embrião congelado, como ocorreu em Ribeirão Preto – SP, onde houve o nascimento de uma criança após 6 (seis) anos de congelamento do embrião.1

Com o advento da Resolução 2013/2013 houve o aumento do tempo mínimo da crioconservação de embrião para 5 (cinco) anos, como se segue:

V-CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES ... 4-Os embriões criopreservados com mais de 5 (cinco) anos poderão ser descartados se esta for a vontade dos pacientes, e não apenas para pesquisas de células-tronco, conforme previsto na Lei de Biossegurança.

Deste modo, o material preservado só pode ser descartado após o

término do tempo mínimo determinado no ato normativo. É importante destacar que o Conselho Federal de Medicina foi além da Lei de Biossegurança, resguardando assim uma maior proteção para que não sejam utilizados embriões que ainda são viáveis.

10.4 DO DESCARTE DE EMBRIÕES EXCEDENTÁRIOS

A constituição de uma família formada entre os pais e filhos, mesmo

com a modernidade da sociedade, em que há diversas formas de entidades familiares, as pessoas ainda desejam ter filhos.

Um casal, quando procura uma clínica especializada em reprodução humana assistida certamente já tentou já pensou em outras formas procriação.

Na técnica de fertilização in vitro, é comum a prática de inserção de um número significativo de ovócitos maduros em prol de um resultado mais satisfatório da técnica, porém, nem todos os embriões serão implantados no útero materno, implicando na existência de embriões excedentários.

É baixa a probabilidade de que uma mulher engravide nas primeiras tentativas, razão está utilizada como justificativa das clínicas para fecundar diversos óvulos, evitando assim que o casal pratique diversas sessões (EUGÊNIO, 2014).

Deste modo, para que haja sucesso com o procedimento da reprodução humana assistida, é necessária a fecundação de um número maior de embriões.

Dentre dos embriões obtidos, alguns não são implantados, visto que não se desenvolveram de forma normal (inviáveis), ou ultrapassaram o número recomendável de implantação, evitando assim a múltipla gestação com risco de aborto e outras complicações.

Embriões inviáveis são aqueles sem potencial de desenvolvimento celular. Cerca de apenas 30% a 40% dos embriões excedentes

1 Gêmeos com 6 anos de diferença. FioCRUZ. Disponível em: <http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/sites/default/files/radis_35.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2014.

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criopreservados de pacientes que conseguiram engravidar tem bom potencial reprodutivo. (MEIRELLES, Jussara Maria Leal. 2000.p.221)

Sobre a destinação dos embriões excedentários, a Resolução 2013/2013 do Conselho Federal de medicina dispõe:

V-CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES [...] 3-No momento da criopreservação os pacientes devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos embriões criopreservados, quer em caso de divórcio, doenças graves ou falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los. 4-Os embriões criopreservados com mais de 5 (cinco) anos poderão ser descartados se esta for a vontade dos pacientes, e não apenas para pesquisas de células-tronco, conforme previsto na Lei de Biossegurança.

A presente resolução inovou ao dar liberdade aos pacientes da

reprodução humana assistida sobre os excedentes dos embriões, permitindo o descarte destes.

A Lei da Biossegurança (nº 11.105/2005), em seu artigo 5º, apresenta outro posicionamento, destinando os embriões excedentes as pesquisas de células-tronco.

Há uma discussão sobre a inconstitucionalidade de tal artigo, tratada pela Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510 afirmando ter como início da vida a fecundação, de acordo com a teoria aplicada pelo Código Civil de 2002 e a destruição do embrião humano vai contra os preceitos do art. 5º da Constituição Federal, o qual garante o direito à vida.

Em pensamento contrário, Luis Roberto Barroso afirma que ao aplicar a tese da inconstitucionalidade da pesquisa em células-tronco é negar a possibilidade até mesmo da fertilização in vitro (BARROSO, 2007, p.245).

A própria utilização da fertilização in vitro, apresenta-se como uma forma mecânica, ou seja, é um procedimento que sofre modificações do homem, deste modo, Barroso defendeu ser inconstitucional esta prática se for aceita a tese da Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Considerar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) da Lei de Biossegurança pelo Supremo Tribunal Federal seria um retrocesso para a ciência, descartando todo o material pesquisado e os avanços medicinais até o presente momento.

É necessário analisar os princípios regentes a Dignidade da Pessoa Humana, considerando assim o embrião detentor desses direitos, ao passo de que ao seguir os novos preceitos dos julgados do STJ, a vida se inicia com a fecundação, não podendo o embrião ser descartado como objeto.

Com a ausência de legislação específica sobre o tema, a questão da criopreservação consubstancia-se apenas na divisão de embriões viáveis e inviáveis, restando aos embriões inviáveis quatro possíveis soluções: o descarte, o congelamento eterno, a doação ou a utilização em pesquisas.

É importante ressaltar que, de acordo com a Resolução 2013/2013 cabem aos doadores a decisão sobre o que será feito com o seu embrião

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excedente, no entanto é necessária a expressa autorização de qual for a vontade destes, que deverá fuçar arquivada na clínica responsável pela criopreservação.

Das soluções apresentadas aos embriões excedentários, o descarte é a forma mais drástica, pois é a destruição por completa do embrião, não sendo aproveitado para nenhum outro campo. É jogar fora os embriões que não serão utilizados, mas e a dignidade destes?

Como apresentado no capítulo sobre as teorias de início da vida, deve ser considerado a forma mais aplicável, qual seja a teoria utilizada pelos novos julgados do STJ, que melhor se aplica ao caso, defendem a origem da vida no momento da fecundação. Desta maneira, tornar plenamente inútil um embrião in vitro é desprezar a vida humana em sua forma mais primitiva.

O embrião não é coisa para ser descartado e a falta de legislação corrente sobre o tema está muitas vezes tornando-o objeto, capaz de ser destruído por completo.

Ao ser inserido o descarte dos embriões na resolução 2013/2013, o Conselho Federal de Medicina questionou-se sobre o número de embriões congelados. Segundo dados da ANVISA, em 2013 foram congelados 38.062 embriões no Brasil (BRASIL, RELATÓRIO, web).

Como tratado, o congelamento de embriões é uma prática muito utilizada, permitindo que se estoquem os embriões não utilizados no processo de fertilização, no entanto, há um número expressivo se considerarmos a grande quantidade de embriões já estocados nas clínicas.

A questão mais complexa é; e depois do prazo estipulado de 5 anos, o embrião pode ser descartado?

A obscuridade legal deve ser desfeita, visto que pela Lei de Biossegurança, os embriões apenas poderão ser destinados às pesquisas cientificas, e a nova Resolução do Conselho Federal de Medicina permite o descarte de embriões.

Estas disposições trazem insegurança aos profissionais da área. Em entrevista ao Jornal Gazeta do Povo, diretores de centros de fertilizações afirmam que a prática do descarte não é comum, e que não realizam a mesma, visto não haver legislação cogente, bem como ir contra os princípios éticos que utilizam (POMPEU, 2014).

Como se vê, mesmo com a prática sendo autorizada pela Resolução do Conselho Federal de Medicina, esta não tem força de lei, gerando dúvidas quando a sua aplicação.

O principal problema relacionado à reprodução humana assistida é a inércia legislativa, que se mantém omissa em relação aos ditames a serem seguidos não apenas pelos profissionais da área, mas por todos os interessados as práticas de fertilização assistida.

Como outra solução aos embriões excedentários é apresentada a possibilidade da doação.

Para que a doação ocorra, há também necessidade de expresso consentimento dos responsáveis pelo material genético, bem como dos que irão receber os embriões doados.

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Importante salientar que não existe vínculo biológico, ou seja, a doação é anônima e de terceiros, já que o material genético é totalmente estranho ao casal receptor.

A possibilidade de doação de embriões é considerada uma solução eficaz, visto que se consiste na entrega dos embriões que não serão utilizados por um casal a outro casal, que não irá ser submetido às técnicas da reprodução humana in vitro, pois irá receber os embriões prontos, evitando assim que haja mais embriões excedentários.

Vale ressaltar que, além de total sigilo sobre os doadores do embrião, bem como dos receptores, a prática da doação dos embriões serão mediante cessão gratuita, visto que é vedada a comercialização destes.

O procedimento de doação, também é conhecido como adoção do embrião ou adoção pré-natal de embriões in vitro, pois se trata de transferência concedida pelos pais biológicos, aplicando analogicamente as regras de adoção legal estipuladas pelo ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo que o embrião doado se desenvolverá como se fosse filho legítimo dos pais, ou seja, que possui a mesma carga genética, preservando em caráter absoluto a igualdade entre os demais filhos.

No entanto, Ana Thereza Meirelles Araújo leciona: Não parece plausível legitimar a prática da reprodução artificial e imputar a quem a ela se submeta o ônus da doação obrigatória de seu excedente para a reprodução de outros casais. Ademais, é a solução que não pode funcionar, tendo em vista que a grande maioria dos casais inférteis ou estéreis optará por utilizar seus próprios gametas, seu próprio material genético (seja de ambos, seja de apenas um deles). Assim, submeter o excedente embrionário à imposição de adoção futura terminará por expô-lo aos riscos do congelamento ou descongelamento, conforme o aparecimento dos pais (ARAÚJO, 2007, p.13).

Ao expor o embrião ao congelamento e descongelamento, irá

diminuir sua viabilidade, tornando assim o embrião incapaz de tornar-se um feto saudável.

A doação de embriões pode sim ser uma solução aos embriões excedentários, no entanto a aplicação deste método é um tanto quanto ilusória.

Os casais, ao procurarem as clínicas de reprodução humana assistida, anseiam por um grande desejo de procriação, de terem filhos que carreguem sua carga genética e transmitam suas características. Ao aceitar a doação de genes de terceiros, o projeto da disseminação de seus genes é interrompido, pois o embrião carrega carga genética diversa.

Nos dados da ANVISA, onde houve o congelamento de mais de 38 mil embriões, não há nenhum apontamento sobre a doação de embriões a outros casais, o que mostra que a tese, mesmo prática, não é utilizada.

No entanto, quando há um desinteresse do casal pelos seus embriões, ou seja, o abandono destes, as clínicas os enviam as pesquisas, adotando o mesmo lapso temporal de 5 (cinco) anos de congelamento, não

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havendo nenhuma manifestação dos genitores, os próprios médicos destinam os embriões as pesquisas (CÔRREA, 2014).

As pesquisas científicas com seres humanos só podem ser realizadas mediante o parecer favorável dos Comitês de Ética em Pesquisa (FREITAS, 2014).

Para a destinação de embriões crioconservados as pesquisas, novamente o tema do efetivo início da vida apresenta posicionamentos diferentes, pois para os adeptos da corrente concepcionista, defendem que os embriões têm direitos como pessoa, devendo ser tratados com respeito, sendo assim uma violação à sua dignidade a submissão dos mesmos as pesquisas.

Sobre o tema, aduz Maria Helena Diniz: Toda prática experimental em embrião vivo, intra ou extra-uterino, deverá ser reprimida judicialmente, salvo se estiver voltada a fins terapêuticos que o beneficiem de imediato. Dever-se-á considerar como crime a manipulação de genes humanos (Lei nº. 11/105/2005, arts. 24, 25 e 26) para alterar o genótipo com o objetivo diverso da eliminação ou diminuição de moléstias hereditárias graves, por estarmos diante de um ser humano com direito de reclamar sua identidade genética violada (DINIZ, 2014, p. 498.).

Os embriões, por serem considerados por alguns doutrinadores como

efetivo possuidor de direitos inerentes à vida, seriam violados ao serem submetidos às pesquisas científicas, salvo se estas visarem o resultado imediato para a eliminação de doenças hereditárias graves (HIGA, 2014).

Em sentido oposto, os favoráveis as pesquisas científicas se baseiam no artigo 5º, IX, da Constituição Federal, invocando a liberdade cientifica, defendendo as experiências em embriões humanos, alegando que através dos estudos realizados podem ser encontradas ou desenvolvidas terapias que auxiliem na cura de doenças degenerativas e hereditárias, trazendo um caráter nobre as pesquisas realizadas com embriões (SOUZA, 2014).

É vedado, na Resolução 2013/2013 a fecundação de ovócitos humanos para qualquer outra finalidade que não seja a reprodução humana. Deste modo, as pesquisas científicas só podem ser utilizadas com embriões excedentários, por ser proibida a criação de embriões para este fim.

Como já citado, a Lei de Biossegurança (Lei nº. 11.105/2005) permite a pesquisa para fins terapêuticos desde que os embriões sejam inviáveis ou congelados a mais de 3 (três) anos.

Ao passo de que é necessária a proteção do embrião in vitro, por ser este o primeiro estágio da vida humana, é de grande importância os avanços tecnológicos ligados às pesquisas realizadas em laboratório.

Por não haver consenso legal de que embriões tenham direito à vida, logo, não é razoável proibir de forma absoluta a pesquisa com embriões de laboratório.

É necessário que se estabeleçam limites as estas pesquisas, como tem ocorrido, por exemplo, fato da utilização de embriões inviáveis ou congelados por certo período de tempo.

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166 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

As células-tronco trazem esperança de milhares de pessoas que necessitam de tratamento de doenças como: diabetes, males cardíacos, mal de Parkinson, etc, pois elas assumem as funções das células que foram destruídas ou pararam de funcionar por algum motivo, servindo como novas peças, fazendo com que as pessoas que possuem estas doenças tenham as células regeneradas, podendo assim ter uma vida digna, conforme os ditames da Lei Maior (DOMINGUES, 2014).

10.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reprodução humana é assunto de interesse público, visto que

grande parte da população tem o desejo da procriação, bem como esta é uma das funções do ser humano.

Devido aos problemas do dia a dia dos cidadãos, o estresse da rotina, algumas doenças foram se desenvolvendo, impedindo que algumas pessoas fossem barradas do planejamento de ter filhos.

A reprodução humana assistida veio com o intuito de ajudar estas pessoas a realizarem o desejo de terem filhos, criando assim novas possibilidades de se reproduzir.

Ao se tratar da reprodução humana assistida, os tratamentos para que possam ser eficazes, é necessária a implantação de embriões dentro do útero da mulher, no entanto, para a melhor garantia do método são feitos embriões em número maior aos que serão implantados.

Os embriões excedentários são a “sobra” dos procedimentos realizados em laboratório. No entanto, estes merecem proteção jurídica.

Inicialmente, é importante destacar que o embrião crioconservado tem a mesma natureza jurídica do embrião in vitro, pois sua origem se dá da fusão entre óvulo e esperma, igual acontece em uma reprodução natural, ou seja, através de relações sexuais.

O ordenamento jurídico brasileiro apresenta uma falha ao ser inerte quanto a reprodução humana assistida, principalmente pela falta de regulamentação sobre o embrião crioconservado.

A lei n. 11.105/2005, a Lei da Biossegurança, se faz útil ao estabelecer critérios relacionados a utilização do embrião crioconservado, bem como estabelece prazo mínimo de congelamento de três anos para poder o embrião ser destinado as pesquisas.

No entanto, o Conselho Federal de Medicina, ao elaborar a Resolução 2.013/2013 trouxe posicionamento diretamente ligado ao uso destes embriões. Porém tal resolução não tem força normativa, sendo apenas um aconselhamento aos médicos e profissionais da área.

Quanto as inovações trazidas pela Resolução 2.013/2013, destaca-se os tempo de congelamento do embrião, aumentando-o para cinco anos. Tal lapso temporal fora estendido para que não houvesse risco de serem utilizados embriões viáveis, ou seja, aqueles com capacidade de se tornarem fetos.

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Outra inovação se deu na questão do descarte de embriões. Pela Lei

da Biossegurança – Lei 11.105/2005, os embriões seriam destinados somente às pesquisas, caso fossem autorizados pelos doadores do material genético. No entanto, com a resolução, foi permitido o descarte dos embriões, ou seja, os que não forem utilizados podem ser jogados fora, sem serem reaproveitados seja para doação a outros casais ou para serem utilizados em pesquisas.

A falta de legislação própria causa diversos danos, pois o que não é proibido por lei não é ilegal. Descartar embriões deveria ser considerado prática desrespeitosa com a vida humana. O embrião criopreservado, pode se tornar uma pessoa, devendo ser respeitado, haja vista a primeira forma de vida.

A partir da concepção sinais vitais já são visíveis através da divisão celular que ocorre, e se forem descartados faz-se uma interrupção da vida em sua origem.

Outrossim, em relação ao abandono dos embriões nas clínicas de reprodução humana assistida fere a dignidade do embrião, a qual deve ser regulamentada através da utilização da teoria concepcionista.

O embrião deixado em laboratório está criopreservado, pronto para ser utilizado em uma possível gestação, fazendo com que seja a primeira forma de vida humana, devendo ser respeitado e tratado com dignidade.

Os doadores são os responsáveis por estes embriões, e ao se esquecerem dos mesmos dentro dos laboratórios agem com completo descaso ao seu próprio material genético, bem como com o embrião criopreservado. As clínicas, por medida de ética e segurança, seguindo os princípios da Resolução 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina, aguardam o tempo considerado legal de 5 anos de congelamento, ressaltando que neste tempo não houve nenhum interesse por parte dos doadores, descartam os embriões, ou os encaminham as pesquisas.

As pesquisas com células-tronco, diferentemente do descarte, apresentam possibilidades de salvar vidas, pois são utilizadas para regenerar tecidos e até mesmos órgãos debilitados, dado aos que sofrem de algum mal, possibilidade de reestabelecer uma vida digna.

Por isso, uma lei que proteja o embrião criopreservado é de extrema importância no cenário atual brasileiro, onde ocorre um avanço médico-tecnológico no que tange a reprodução humana assistida, no entanto, não havendo o acompanhamento do judiciário, que se faz inerte em questões como a utilização dos embriões, seu manejo e principalmente sua destinação após o término do processo da fertilização.

Importante se faz a conscientização das pessoas acerca do tema, elevando o grau de responsabilidade, sendo necessário o planejamento familiar, para que casos em que os pais não se encontram preparados para a filiação sejam reduzidos e consequentemente os problemas relacionados aos descuidos familiares.

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168 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

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= XI =

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 COMO GARANTIA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Osmar Gonçalves Ribeiro Junior* Fernanda Roberta Sasso Mello**

11.1 INTRODUÇÃO

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil entra

em uma nova era de direitos, o Estado Democrático de Direito, tardiamente é verdade, mas em um período propicio a mudanças.

Como a nova Constituição Federal o Brasil saiu de uma era de vários anos de uma ditadura militar que descumpria diversas normas referentes aos direitos humanos, para uma era democrática, elegeu o princípio da dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos.

Tendo como fundamento a dignidade humana, a Constituição brasileira elegia o ser humano como um dos fundamentos de sua existência e isso foi de essencial importância para os fins buscados.

A positivação da dignidade da pessoa humana na Constituição Federal eleva o poder mandamental do princípio que agora deixa a de conter apenas um valor axiológico para se transformar em norma cogente, e afetar a todos, até mesmo e principalmente o Estado.

A dignidade humana é o princípio constitucional formador dos direitos individuais e coletivos da sociedade, assim, é ele também o formador do princípio da função social da propriedade.

Então, analisar-se-á em separado os princípios da dignidade da pessoa humana e o princípio da função social da propriedade, para por fim, fazer uma análise conjunto dos dois institutos jurídicos, para com base nos mandamento constitucionais entender a finalidade de tais mandamento e como os mesmo interagem e se unem na busca de um fim comum na busca de uma vontade constitucional.

11.2 A TUTELA JURÍDICA DA DIGNIDADE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

A partir do período pós-Segunda Guerra Mundial, entendeu-se pelos

Estados a necessidade proteção mais efetiva do ser humano, que não protegesse apenas o direito das pessoas, mas a própria condição humana. Assim, em 1948, é apresentada a Declaração Universal dos Direitos

* Mestrando no Programa de Mestrado em Direitos da personalidade da Unicesumar. ** Mestranda no Programa de Mestrado em Direitos da personalidade da Unicesumar.

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Função social da propriedade... // 171

Humanos, que em seu preâmbulo assevera: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (ONU, 1948, web), bem como prevê em seu artigo primeiro: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (ONU, 1948, web).

De difícil definição concreta, a Dignidade da Pessoa Humana encontra-se prevista na Constituição Brasileira de 1988 como um dos fundamentos da República1.

Conforme Sarlet (2013), a consagração da dignidade humana como fundamento constitucional do estado no artigo 1º, “[...] além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do próprio Estado e do exercício do poder estatal, reconheceu categoricamente que o Estado existe em função, da pessoa humana e não o contrário”.

Assevera José Afonso da Silva (2007): “Quando o art. 1º põe a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito faz uma proclamação de valor universal, aí sim, abrangente do ser humano”.

No mesmo sentido, Mendes afirma que [...] o que importa é tornar claro que dizer pessoa é dizer singularidade, intencionalidade, liberdade, inovação e transcendência, o que é impossível em qualquer concepção transpersonalista, a cuja luz a pessoa perde os seus atributos como valor-fonte da experiência ética pata ser vista como simples "momento de um ser transpessoal" ou peça de um gigantesco mecanismo, que, sob várias denominações, pode ocultar sempre o mesmo "monstro frio": "coletividade", "espécie", "nação", "classe", "raça", "ideia", "espírito universal", ou "consciência coletiva" (MENDES, 2009).

Scheriber (2013), ao tratar da definição do termo dignidade humana,

salienta que mais importante que o conceito do que seria a dignidade humana em termos teóricos, seria compreender a proposta do legislador ao inseri-lo no ordenamento jurídico, que seria a proteção da “[...] condição humana, em seus mais genuínos aspectos e manifestações, tomando a pessoa sempre como um fim e nunca como um meio”. A ver:

Seu conceito pode ser formulado nos seguintes termos: a dignidade humana é o valor-síntese que reúne as esferas essenciais de desenvolvimento e realização da pessoa humana. Seu conteúdo, não pode ser descrito de modo

1 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana;

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172 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

rígido; deve ser apreendido por cada sociedade em cada momento histórico, a partir de seu próprio substrato cultural (SCHERIBER, 2013).

Em relação à definição do que seria concretamente a dignidade

humana Gilmar Mendes comenta a dificuldade em se definir o termo, aponta questões de ordem cultural, que retirar a possibilidade de uma universalidade do tema, refere-se a dificuldade de países carentes de recursos, que mesmo comprometido com os direitos humanos, não possuem condições de efetivá-los, tendo em vista os vários aspectos da proteção da dignidade humana, desde a proteção e respeito a pessoa como um valor em si mesma, até “[...] até à satisfação das carências elementares dos indivíduos – e. g., alimentação, trabalho, moradia, saúde, educação e cultura —, sem cujo atendimento resta esvaziada a visão antropológico-cultural desse princípio fundamental” (MENDES, 2009).

Sobre soberania popular, Nery adverte: A soberania popular possui na dignidade humana seu último e primeiro fundamento; o povo não constitui uma grandeza mística, senão uma coordenação de diversos homens dotados, cada qual com dignidade própria. A dignidade humana possui uma dupla direção protetiva, isso significa que “ela é um direito público subjetivo, direito fundamental do indivíduo contra o Estado (e contra a sociedade) e ela é, ao mesmo tempo, um encargo constitucional endereçado ao Estado, no sentido de um dever de proteger o indivíduo em sua dignidade em face da sociedade (ou de seus grupos). O Estado deve criar as condições para levar isso a cabo, de tal sorte que a dignidade humana não seja violada por terceiros (integrantes da sociedade) (NERY, 2009).

Destaca-se que a dignidade humana é multidimensionada, que se

completam, não possuindo apenas uma dimensão natural, ontológica, conforme explicita Sarlet (2013), mas também possui uma dimensão histórico-cultural em processo permanente de construção pela humanidade. A ver:

[...] dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor ,do mesmo respeito e consideração por parte do Estado, implicando, neste sentindo, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e a vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2013).

A partir do momento que há inserção da dignidade humana como

fundamento da República no bojo da Constituição Federal o mesmo torna-se um princípio, um mandamento, um dever-ser juridicamente vinculante a toda esfera jurídica, não possuindo mais apenas carga de valor axiológica, possuindo assim mais força (BORGES, 2007).

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Função social da propriedade... // 173

Para Bulos, o conteúdo jurídico da dignidade humana é interligado às

liberdades públicas em um sentido amplo do termo, envolvendo os “[...] aspectos individuais, coletivos, políticos e sociais do direito à vida, dos direitos pessoais tradicionais, dos direitos metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), dos direitos econômicos”, sendo inata, inicia sua proteção desde o ventre materno, conservando-se desde o nascimento até a morte (BULOS, 2009).

Mendes (2009), ao tratar da importância de tal princípio destaca não haver bens, valores ou princípios capazes confrontar o fundamento da dignidade humana, sendo superior a todos os outros, pode apenas ser confrontado por ele mesmo em circunstâncias concretos, em que a o choque de lesões a dignidade entre dois indivíduos.

Assim, a Dignidade da Pessoa Humana, apesar de não possuir uma definição que a exprima concretamente, dada a complexidade e multifacetação do termo, pode ser entendida como princípio fundamental da República, que dá ao ser humano a posição mais elevada no ordenamento jurídico, sendo um dever do Estado a sua garantia e proteção a todo ser humano, por ser direito inato intrínseco, jamais se dissociando e protegendo a condição humana que qualquer lesão a esta condição.

11.3 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O artigo 5º da Constituição Federal que trata dos direitos individuais

traz em seu inciso o XXIII o ditame que a propriedade “atenderá sua função social”. Já o artigo 170 do mesmo texto, em seu inciso III, trata a função social da propriedade como um princípio da ordem econômica brasileira.

A Constituição trata ainda da questão da função social da propriedade no artigo 182, §2º quando trata da função social da propriedade urbana quando diz que “[...] propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.

O capítulo III da Constituição Federal que trata da política fundiária e da reforma agraria trás no caput do artigo 184 o mandamento de “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”, bem como no artigo 186 enumera os critérios para averiguação da função social da propriedade rural, os quais serão regulamentado por lei posterior sendo eles: aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

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174 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

A Lei 8629/93 veio para regulamentar os critérios avaliadores da função social da propriedade e em seu artigo 9º2 estabelece os critérios para a análise do atendimento da função social da propriedade rural.

Apesar do artigo 170 da Constituição tratar a função social da propriedade como um princípio da ordem econômica brasileira o fato dele está inserido no artigo 5º constituição dá a ele força e importância muito maiores que apenas gerir a organização econômica do país.

O artigo 5º da Constituição Federal traz em seu bojo os direitos individuais e coletivos, os direitos fundamentais escolhidos pelo legislador para gerir a vida em sociedade. No caput do artigo 5º garante-se entre outros direitos a inviolabilidade do direito à propriedade, assim, quando o legislador insere uma norma como a do inciso XXIII do artigo 5º da Constituição ele claramente demonstra que a garantia ao direito de propriedade contida no caput e inciso XXII não é absoluta.

Nesse contexto, Cretella afirma: Desse modo, o direito de propriedade, outrora absoluto, está sujeito, em nossos dias, a numerosas restrições, fundamentadas no interesse público e também no próprio interesse privado, de tal sorte que o traço nitidamente individualista, de que se revestia, cedeu lugar a concepção bastante diversa, de conteúdo social, mas do âmbito do direito público (CRETELLA, 1992).

Para Moraes (2013), a função social é um elemento estrutural do

conceito de direito à propriedade privada e um limitação a esse direito, bem como traz uma substituição ao conceito do direito apenas subjetivo da livre disposição da propriedade.

Na concepção de Nelson Nery Junior, “[...] a propriedade privada é um direito fundamental do cidadão desde que manifeste sua função social”. Não podendo seu exercício ter como limites apenas a vontade de quem possui seu domínio, devendo encontrar-se harmonizada ao interesse coletivo “[...] sendo a função social da propriedade a capacidade de impor um poder-dever ao proprietário sancionável pela ordem jurídica” (NERY, 2009).

Nas palavras de Eugenio Facchini Neto, o termo função social pode ser explicado da seguinte forma:

2 § 1º Considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização da terra e de eficiência na exploração especificados nos §§ 1º a 7º do art. 6º desta lei. § 2º Considera-se adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade. § 3º Considera-se preservação do meio ambiente a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas. § 4º A observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais. § 5º A exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel.

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Função social da propriedade... // 175

Numa primeira abordagem, pode-se dizer que função significa uma atividade

que se desenvolve para determinado fim, fim esse que ultrapassa o interesse do próprio agente. Quanto ao vocábulo social, da referida expressão, relembre- -se que o homem, caso vivesse sozinho, disporia de urna liberdade absolutamente ilimitada - poderia apropriar-se de qualquer coisa, poderia destruí-la, usá-la ou se abster de qualquer uso; ao seu bel prazer. Todavia, Sendo o homem um animal social por excelência, ao conviver com outros homens tem necessidade de harmonizar o exercício de seus direitos com o dos demais membros da sociedade: Assim, assegurar a "coexistência das liberdades", na dicção kantiana, seria a função essencial do Direito (FACCHINI, 2013).

Tem-se aqui que, a função social tratada nos citados artigos

constitucionais tratam diretamente da propriedade privada em vista que a propriedade pública tem por finalidade o cumprimento de uma função social, conforme Graus “a ideia da função social como vínculo que atribui à propriedade conteúdo específico, de sorte a moldar-lhe um novo conceito, só tem sentido e razão de ser quando referida à propriedade privada” (GRAUS, 2014).

Para Luiz Edson Fachin a função social tem relação com uso que dá a propriedade, sendo que a função social da propriedade é uma limitação fixada no interessa público, de caráter anti-individualista, com o fundamento de eliminar da propriedade privada o que há de eliminável (FACHIN, 1988).

Já Jose Afonso da Silva (SILVA, 2007) aponta que a função social da propriedade não vem trazer uma limitação ao direito de propriedade, mas sim uma nova roupagem ao conceito de propriedade. Para o autor a função social encontra-se inserida dentro da estrutural de propriedade sendo um elemento qualificante dos modos de aquisição, uso gozo e utilização do bens.

O titular da propriedade não mais possui livre poderes sobre sua propriedade, não pode mais guiar-se apenas por suas vontades particulares devendo levar em consideração o fim social daquele empreendimento. Facchini complementa:

Em outras palavras, preserva-se o direito subjetivo do proprietário somente enquanto o seu uso contrário ao interesse social não ocorrer. Assim é porque, para a propriedade contemporânea, é mais importante a atividade do que a titularidade do sujeito proprietário, em função do interesse social (FACCHINI, 2013).

Segundo Santos (2009), para além de ser uma limitação ao direito de

propriedade a função social da propriedade transforma-se em instituto de dever, aplicado independentemente de regulamentação positiva.

Graus (2014) assevera que a natureza jurídica da função social da propriedade constante no artigo 5º diverge do mesmo termo apresentado como princípio da ordem econômica do artigo 170, indo além afirmando não haver a necessidade de garantia da função social da propriedade constante do artigo 5º, XXIII. Para tanto o autor faz uma análise de várias constituições

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176 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

de países socialista que também possuíam a proteção da propriedade individual em seus textos. Segue o autor demonstrando que o artigo 5º de nossa constituição trata dos direitos individuais das pessoas, assim a propriedade lá protegida seria a propriedade individual.

Como a propriedade sempre tem o condão de assegurar a vida e subsistência das pessoas, protegendo-as contra as necessidades materiais, o direito à propriedade sempre foi necessário a garantia de uma vida digna, entretanto em nossos tempos deixa a propriedade de ser o único ou o melhor modo de garantir a subsistência familiar, assim a propriedade utilizada para fins de subsistência tem natureza jurídica de direito individual prevista no artigo 5, XXII.

Dessa forma, Graus entende que a função social da propriedade justifica-se na propriedade de bens de produção em vista de que a propriedade individual não necessita de função social para seu gozo, ficando a cargo do proprietário sua fruição. “Posso assim, sopesando as ponderações que venho desenvolvendo, concluir que fundamentos distintos justificam a propriedade dotada de função individual e propriedade dotada de função, social” (GRAUS, 2014).

Assim, os direitos individuais, ai incluídos o artigo 5º da Constituição, não podem ser exigidos que exerçam sua função social, por serem direitos individuais cabem ao titular do direito realizar o que de bem entender, desde que não lesione direito alheio, mas não poderá ser dele exigido o cumprimento de uma função social.

O que mais releva enfatizar, entretanto, é o fato de que o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário — ou a quem detém o poder de controle, na empresa — o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte da imposição de comportamentos positivos — prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não fazer — ao detentor do poder que deflui da propriedade. Vinculação inteiramente distinta, pois, daquela que lhe é imposta mercê de concreção do poder de polícia (GRAUS, 2014).

Engana-se quem entende ser a função social da propriedade um

termo de natureza socialista, a função social da propriedade exerce uma função dentro do sistema capitalista.

A função social da propriedade não tem inspiração socialista, antes é um conceito próprio do regime capitalista, que legitima o lucro e a propriedade privada dos bens de produção, ao configurar a execução da atividade do produtor de riquezas, dentro de certos parâmetros constitucionais, como exercida dentro do interesse geral. A função social da propriedade passou a integrar o conceito de propriedade, justificando-a e legitimando-a (SANTOS apud BERCOVIEL).

Dentro do regime capitalista, a qual nos encontramos inseridos, a

necessidade de produção incessante é necessária para o abastecimento do

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consumo e consequente manutenção do sistema, assim, empresas e propriedade que não se encontram produzindo não estão cumprindo sua função social dentro do sistema capitalista.

A consagração do princípio da função social da propriedade em si, tomada isoladamente, pouco significa, ao par de instrumentar a implementação de uma aspiração autenticamente capitalista: a de preservação da propriedade privada dos bens de produção — à função social está assujeitada porque é privada. Sua maior relevância se manifesta em sua concreção nas regras do § 22 do art. 182 - política urbana — e do art. 184 — reforma agrária, esta, seguramente, tão indispensável à realização do fim da ordem econômica quanto à integração e modernização do capitalismo nacional (GRAUS, 2014).

Portanto, ao positivar constitucionalmente o princípio da função social

da propriedade, o legislador busca uma nova concepção ao direito da propriedade, uma concepção moderna, necessária ao capitalismo moderno a qual o Brasil encontra-se inserido. Ao inserir um dever ao proprietário, modifica-se a estrutura clássica de poderes absolutos ao dominador, relativizando tal direito para que o mesmo se coadune com o Estado Democrático que visa a dignidade de todas as pessoas e a propriedade tem sua parcela na concretização dessa dignidade.

11.4 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 COMO GARANTIA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O artigo 170 da Constituição Federal3, que trata da Ordem Econômica

no Brasil, traz em seu texto a finalidade de assegurar “a todos existência digna”. Assim, o inciso terceiro do mesmo artigo que trata da função social da propriedade na ordem econômica nacional encontra-se afinada com a nova visão principiológica da Constituição Brasileira de 1988.

Além disso, a função social da propriedade encontra-se no bojo dos direitos individuais fundamentais do artigo e como fundamento da republica é do princípio da dignidade humana dele que emana os demais direitos fundamentais.

O que importa frisar, ainda neste contexto, é que a relação entre dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais é uma relação sue generis, visto que a dignidade opera simultaneamente como elemento constitutivo (quando for o caso) e medida dos direitos fundamentais. Em regra, portanto, uma violação de um direito fundamental poderá estar vinculada a uma ofensa da dignidade da pessoa humana. Por outro lado, não se pode olvidar que, mesma dignidade serve como elemento limitador dos direitos fundamentais, pois serve como justificativa para a imposição de restrições á estes, como,

3 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

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por exemplo, para a limitação da liberdade individual em prol da dignidade. Além de atuar como limite, a dignidade da pessoa humana opera como limite aos limites dos direitos fundamentais, ao exercer restrições à atividade limitadora no âmbito dos direitos fundamentais, com o objetivo de coibir eventual abuso que pudesse levar ao seu esvaziamento ou até mesmo à sua supressão (SARLET, 2013).

Conforme Eros Graus aduz, “[...] embora assuma concreção como

direito individual; a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio, constitui, ao lado do direito à vida, o núcleo essencial dos direitos humanos” (GRAUS, 2014).

A dignidade da pessoa humana é adotada pelo texto Constitucional concomitantemente como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III) e como fim da ordem econômica (mundo do ser) (art. 170, caput - "a ordem econômica ... tem por fim assegurar a todos existência digna") (GRAUS, 2014).

O princípio da função social da propriedade vem para ser um dos

garantidores do cumprimento da dignidade da pessoa humana no Estado Democrático brasileiro. Para tanto, o legislador optou por consagrá-lo no mais importante dos artigos constitucionais - o artigo 5º, que protege o cidadão de lesões cometidas em seus direitos fundamentais. Previu também como um princípio da ordem econômica, levando-se conta ser um Brasil um país capitalista que garante a propriedade privada dos meios de produção, sendo a economia a base estrutura de qualquer sociedade moderna.

Conforme Medina, citando Jorge Miranda, podem ser extraídas certas característica da dignidade da pessoa humana:

[...]a) a dignidade da pessoa humana reporta-se a todas e cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta; b) cada pessoa vive em relação comunitária, mas a dignidade que possui é dela mesma, e não da situação em si; c) o primado da pessoa é o do ser, não o do ter; a liberdade prevalece sobre a propriedade; d) a proteção da dignidade das pessoas está para além da cidadania portuguesa [ou brasileira,-acrescentamos nós] e postula urna visão universalista da atribuição de direitos, e) pessoa pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao estado, às demais entidades públicas e às pessoas.” (MEDINA apud MIRANDA, 2012)

Roxana Borges cita Renan Latufo para explicar que a dignidade da

pessoa humana seria um dos fundamentos dos direitos da personalidade ao vinculá-los ao respeito a dignidade humana, sendo tais direitos imprescindíveis para o desenvolvimento do ser humano.

No entendimento de Sarlet (2013) a “[...] dignidade da pessoa humana atua como uma espécie de mandado de otimização, ordenando a proteção e promoção da dignidade da pessoa, a ser realizada na maior

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Função social da propriedade... // 179

medida possível considerando as possibilidades táticas e jurídicas existentes”.

Para José Afonso da Silva, pelo Brasil encontrar-se inserido em um sistema econômico capitalista em que garante a propriedade privada dos mesmo de produção “[...] que a vigente Constituição tenta civilizar, buscando criar, no mínimo, um capitalismo social, se é que isso seja possível, por meio da estruturação de uma ordem social intensamente preocupada com a justiça social e dignidade da pessoa humana” (SILVA, 2007).

O Brasil, como um Estado Democrático de Direito, busca a proteção da dignidade da pessoa humana, assim, como está inserido em um regime capitalista, onde a desigualdade se fundamenta, o princípio da função social da propriedade vem para assegurar o bom uso dos meios de produção, tanto como forma de assegurar a manutenção do sistema capitalista, mas também com o fim de garantias sociais, busca a proteção da sociedade contra abusos advindos do mau uso da propriedade.

A noção de função social, aplicada à propriedade, torna-se clara, quando se estuda a desapropriação por interesse social. O Estado desapropria imóveis por interesse social, quando esses imóveis, por improdutivos, ficam inertes, deixando de servir a grande número de pessoas, ou quando, mesmo não

inertes, poderão servir a maior número de pessoas, [...] (CRETELLA, 1992).

Esse é o entendimento do princípio da função social ante a dignidade

da pessoa humana. A propriedade deve servir à sociedade, não há uma socialização dos meios de produção, muito longe disso, o proprietário continua exercendo os direitos que lhe são afetos, entretanto seus atos e disposições em relação à sua propriedade devem estar em consonância com o desenvolvimento da humanidade.

Como bem explicita Roberta Mauro: [...] mesmo no mais capitalista dos sistemas, o direito de propriedade não poderá ser visto como a simples possibilidade de excluir terceiros do uso e das escolhas relativas à disposição dos bens. Embora a sua destinação econômica seja uma decisão conferida ao proprietário em virtude do direito de dispor, isso jamais significará que os interesses sociais e os valores eleitos pelo legislador não são capazes de interferir na vontade do titular de um determinado bem (MAURO, 2008).

Não poderá o empresário produzir produtos que não estejam

compatíveis com o bem estar social, nem utilizar-se da propriedade para fins degradantes. Da mesma forma, não poderá o proprietário de terras deixar de produzir ou adquirir terras apenas para fins de especulação pois há a necessidade da produção para seus fins sociais, como geração de empregos e produção necessários para sociedade e para o sistema econômico.

A ordem econômica reforça o respeito e proteção da dignidade humana como dever (jurídico) fundamental do Estado constitucional, que constitui a premissa para todas as questões jurídico-dogmáticas particulares. Dignidade

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humana constitui a norma fundamental do Estado. A proteção da dignidade humana constitui um dever fundamental do Estado Constitucional, mais precisamente, um dever jurídico-fundamental (NERY, 2009).

De extrema importância é a inserção de tal princípio no artigo 170 da

Constituição Federal, que trata dos fundamentos da ordem econômica, por ser um de seus princípios visa a garantia da ordem econômica por meio da garantia de uso, senão com finalidade, com função social.

O Estado Brasileiro, capitalista, busca na função social, não só um apaziguamento das tensões causadas pela luta de classes, mas também um aperfeiçoamento do capitalismo, que ocorreu tardiamente no Brasil. Não pode um proprietário de terras produtivas não produzir, quando há pessoas aptas ao trabalho e necessidade de produção. Ninguém ganha com uma propriedade improdutiva, e é isso que busca a função social, a otimização da propriedade com o atendimento tanto do sistema capitalista como a sociedade que necessita daquela propriedade produzindo, seja para o consumo, seja pela criação de postos de trabalho.

Portanto, o princípio da função social da propriedade visa garantir a dignidade da pessoa humana no Estado brasileiro, não podendo o titular de um direito de propriedade, principalmente os possuidores de meios de produção, utilizar de seu poder de proprietário para realizar vontades contrárias ao interesse social, em especial, contrários ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

11.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A finalidade primeira do princípio da dignidade da pessoa humana é

a garantia de vida dignidade e desenvolvimento do ser humano. A propriedade privada sempre foi um dos institutos mais importantes ao direito. Após as revoluções burguesas do século XVIII, o direito à propriedade tornou-se ainda mais importante como forma de garantir ao sistema capitalista e garantir aos proprietários os meios de produção. Ocorre que, com o desenvolvimento da sociedade do próprio sistema capitalista, o direito de propriedade também precisou de uma nova concepção. Algo que não fosse mais absoluto, que não garantisse apenas o direito individual e dignidade dos poucos proprietários em detrimento a massa social, uma concepção que garantisse os direitos de propriedade, mas que o fosse esse direito utilizado em prol da sociedade e é com essa visão que surge o princípio da função social da propriedade.

Visando dar um novo conceito ao direito fundamental da propriedade privada, o princípio da função social da propriedade visa a utilização da propriedade privada por meio de uma função social. Tal função social seria a utilização da propriedade privada para fins de desenvolvimento de toda a sociedade, seja por meio do aperfeiçoamento e funcionamento do sistema econômico capitalista, seja por ações que visem o desenvolvimento do ser humano.

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Desta forma, não terá mais o proprietário um direito absoluto sobre o

bem, não podendo dispor dele da forma que o desejar, deverá sempre observar a função social empregada naquele bem com vistas a concretização da dignidade humana.

Essa dignidade como fundamento estatal deve ser buscada por todos e garantida pelo Estado brasileiro, não havendo qualquer direito que seja absoluto ante o conflito com a dignidade da pessoa humana. Dessa forma, não poderia o direito de propriedade ser absoluto, não sofrendo qualquer restrição por parte do Estado.

A visão individualista da propriedade, na qual o dono era o senhor absoluto de seus domínios não existe mais. Tais domínios estão adstritos ao cumprimento de uma função social, baseadas na dignidade humana e no desenvolvimento da sociedade, com a finalidade proteção do indivíduo e de assegurar uma vida digna a todos.

11.6 REFERÊNCIAS BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional

Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos da Personalidade e

autonomia privada. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. São

Paulo: Saraiva, 2009. FACCHINI NETO, Eugenio; CANOTILHO, J. J. Gomes; SARLET, Ingo

Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; MENDES, Gilmar Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

CRETELLA, José, Jr. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992.

FACHIN, Luiz Edson. A Função Social da posse e a propriedade contemporânea (uma perspectiva da usucapião imobiliária rural). Porto Alegre: Fabris, 1988.

FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

GRAUS, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

MAURO, Roberta. A propriedade na Constituição de 1988 e o problema do acesso aos bens. In: TEPENDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Orgs.). Diálogos sobre direito -Civil – Volume II. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 33 – 60.

MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

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182 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2013.

NERY, Nelson, Jr; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e legislação constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

SANTOS, Anderson. Função Social da Propriedade Urbana: regularização fundiária. Sorocaba: Crearte, 2009.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

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= XII =

MUDARAM AS ESTAÇÕES, NADA MUDOU? APONTAMENTOS SOBRE OS “NOVOS DANOS” INJUSTOS

Camila Vieira Castro*

Josafar Augusto da Silva Guimarães** Vitor de Medeiros Marçal***

12.1 INTRODUÇÃO

O rompimento dos paradigmas estabelecidos no âmbito social, em

função da evolução tecnológica, a consagração da força normativa dos princípios, em especial aqueles relacionados com a solidariedade e a dignidade da pessoa humana, ocasionou uma verdadeira revolução na orbita jurídica, alterando, sobremaneira, a responsabilidade civil. Anteriormente possuidora de uma teoria consistente e altamente rígida, balizada por elementos muito bem definidos que filtravam as demandas de uma sociedade adepta da cultura da sentença, isto é, propensa a resolver seus interesses de forma adjudicada, atualmente, parece perdida em seus próprios fundamentos, sem estabelecer o que seja a regra e a exceção, imputando ao magistrado que, especialmente nos danos extrapatrimoniais, resolva as demandas utilizando-se de seu prudente arbítrio e subjetivismo quando da análise do caso concreto, mas sempre lastreando suas decisões nos princípios e regras norteadoras da responsabilidade civil, se é que eles ainda existem.

Em outros tempos, o elemento mais charmoso do instituto, a culpa, era aplicado em casos passíveis de se contar com somente uma das mãos, pois, se comparado com a importância que possuía no passado, foi renegado ao esquecimento, sendo uma figura vista de passagem pelos que, hodiernamente, sentam nos bancos das graduações. No mesmo tom, o elemento mais seguro de um passado recente, o nexo etiológico de causalidade, transita com suas mais diferentes vestimentas, como se o direito fosse um baile que, a depender do caso concreto, se deve vestir uma ou outra roupa. A prova disso é que, a depender do caso, adotar-se-á a teoria da

* Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. Aluna Especial do

Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina. Advogada. Email: [email protected] ** Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Complexo de Ensino Superior de

Santa Catarina. Aluno Especial do Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina. Advogado. E-mail: [email protected] *** Graduado em Direito pelo Centro Universitário “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente

Prudente. Mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]

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causalidade adequada, do dano direto e imediato, que em muito se diferencia da causalidade alternativa, isso quando, pelo risco exacerbado, não se adere a contestável teoria do risco integral.

Assim, percebe-se que o estudo do dano injusto ganhou especial relevância, visto que da sua verificação no caso concreto surge o dever secundário de reparação, no caso de danos que afrontam o patrimônio material, e a compensação, quando decorrer de danos ao patrimônio ideal, extrapatrimoniais.

Ocorre que, da mesma maneira que os demais requisitos (culpa e causalidade) perderam espaço por acontecimentos históricos, quase sempre ligados à injustiça causada àquele que suporta os danos, ou seja, a vítima, o dano injusto passa por situação semelhante. O necessário ressarcimento integral, bem como a visão dita “despatrimonializada”, que acrescenta maior atenção às situações existenciais, faz com que surjam novos interesses e direitos, ocorrendo, em sentido lógico, novos danos.

Dessa forma, o presente trabalho objetiva verificar, utilizando-se de obras específicas sobre responsabilidade civil, as diretrizes básicas do dano injusto, bem como especificamente os fundamentos dos novos danos e suas características específicas, sendo analisados de forma estanque e particular.

No primeiro capítulo, a pesquisa trata dos institutos do Préjudice d´agrément e do Loss of amenities of life, figuras que refletem a nova tendência de valorizar aspectos ligados ao ser humano, intimamente ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana, reprimindo condutas que causam danos ligados ao cerceamento da felicidade, alegria e possibilidade de lazer.

Posteriormente, de forma breve e concisa, analisar-se-á as teorias que buscam situar os danos extrapatrimoniais, seja como gênero, que engloba diversas espécies, dentre ela os danos morais, ou como sinônimo dos danos morais, restando os demais danos incluídos no instante da quantificação.

Por fim, com o terceiro capítulo se busca fazer uma detida e ponderada análise dos “novos danos”, são eles: (i) dano biológico; (ii) dano existencial; (iii) dano estético; (iv) dano moral; (v) dano psicológico; (vi) dano nos meios de comunicação modernos; (vii) danos a privacidade, abordando sua caracterização, conceituação e aplicabilidade prática.

12.2 AS FIGURAS DO PRÉJUDICE D’AGRÉMENT E DO LOSS OF AMENITIES OF LIFE

O préjudice d’agrément (adotado em França), ou o prejuízo do lazer

e o loss of amenities of life, igualmente identificada como loss of enjoyment of life ou hedonic damages, (corrente no Direito americano e australiano), tratam da diminuição dos prazeres da vida, ocasionada pela impossibilidade ou dificuldade de realização de atividades usuais de lazer.

De início, restringiam-se ao ressarcimento dos danos observados por atletas ou artistas que efetivamente se dedicavam a atividades dentro de sua

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Mudaram as estações... // 185

área de atuação e competência. Todavia, referido conceito se ampliou para a sociedade em geral, de modo que se constitui na ofensa sofrida injustamente, a qual impede a pessoa lesada de continuar a manter condutas, atitudes ou rotinas especialmente prazerosas para ela, tolhendo-lhe a possibilidade de continuar a desfrutar e de desenvolver atividades normais e habituais de lazer, como passeios, viagens, esportivas, culturais, ou mesmo as demais da vida em si, como um jantar, por exemplo. (SEVERO, 1996).

Na jurisprudência brasileira, contudo, as figuras do préjudice d’agrément e loss of amenities of life ainda não tem grande expressão, sendo meramente citada em parcos julgados, na medida em que não são tidos como danos autônomos, mas entendidos como dano moral.

No julgamento da apelação 0000185-85.2012.8.26.0400, a 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo invocou referidos institutos para majorar a indenização por danos morais a policial militar que, convocado para ser figurante de determinado treinamento, foi alvejado por projétil de borracha, o que resultou na perda do olho esquerdo, do olfato, da mobilidade do lado esquerdo da face, tratando-se de sequelas definitivas.

Em que pese não ter-se observado uma indenização específica e independente para o préjudice d’agrément e loss of amenities of life, os julgadores utilizaram-se dos indigitados institutos para majorar a indenização por danos morais, sob o fundamento de que ficou caracterizado no caso concreto que o policial sofreu limitação no exercício dos prazeres ordinários da vida: recreativos, contemplativos, culturais ou de mero e descompromissado lazer, incluso, ainda, sua inevitável repercussão no plano profissional e ocupacional.

Entrementes, na jurisprudência brasileira, onde se nota uma maior expressão das figuras ora debatidas é na Justiça do Trabalho, onde se busca reparação de danos causados à pessoa quando há sobrecarga de trabalho, por exemplo, privando o trabalhador de usufruir das demais atividades de sua cotidianidade, como o lazer, família, aperfeiçoamento profissional e cultural e o próprio descanso.

12.3 DANOS MORAIS E DANOS EXTRAPATRIMONIAIS – UTILIDADE PRÁTICA DA DISTINÇÃO

Impossível negar que os danos morais são os mais visados quando,

por ato ilícito, ocorre um dano. A justificativa parece caminhar para a compensação monetária, nem sempre esperada, de um montante em dinheiro. Ou seja, quando consumados os danos patrimoniais não haverá, necessariamente, um ganho, pois, na ocorrência dos danos emergentes, somente aquilo que fora objetiva e comprovadamente perdido deverá ser objeto de reparação. No mesmo norte, caso se busque ainda no âmbito patrimonial material, lucro cessante, somente será reparado aquilo que razoavelmente a vítima deixou de ganhar, isto é, aquilo que se não tivesse sido lesada por um ato ilícito, ganharia.

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186 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Em sentido inverso, no caso de danos extrapatrimoniais, sabemos, eles não possuem valoração econômica, são, portanto, impassíveis de reparação, somente de compensação, ou seja, pela mal cometido, o autor do ato ilícito (ou quem seja responsável) devolve o “bem estar” perdido, em regra, através de um montante financeiro arbitrado prudentemente pelo magistrado.

A questão é saber se o dano extrapatrimonial é sinônimo de dano moral, ou seja, se ambos coexistem como gênero, ou, caso contrário, se o dano moral, tal como o dano estético, psíquico, existencial, etc., se constitui uma espécie do primeiro.

Em termos práticos, caso adotada a primeira vertente, todos os danos serão tratados como danos morais, sendo que, no momento da fixação do quantum, o juiz deverá observar a extensão da lesão, agravando ou mitigando o valor.

Por outro lado, caso seja o dano moral espécie do gênero dano extrapatrimonial, ocorrendo os mais diversos tipos de dano, ambos serão passíveis de reconhecimento e ressarcimento1.

Em que pese algumas divergências doutrinárias, parece ser correto afirmar que o dano moral se constitui espécie do dano moral, mesmo que, infelizmente, toda compensação, na prática, tenha natureza de dano moral, salvo raras exceções, como ocorre, pacificamente entre o dano moral e o dano estético.

Adotando, portanto, a teoria que defende a diversidade de espécies dos danos extrapatrimoniais, dentre eles o dano moral, passa-se a analisar, em espécie, os diversos tipos de “novos danos”.

12.4 NOVOS DANOS EM ESPÉCIE

Com as modificações sociais, filosóficas e axiológicas ocorridas nos

últimos anos, o direito civil tradicional não saiu ileso, pois, constitui-se um verdadeiro reflexo da sociedade, e, portanto, alterando-se suas bases, aquele se modifica.

A transformação social é visível, seja pela revolução tecnológica que nas últimas décadas presenciamos, ou mesmo pelos novos valores aceitos pela sociedade, com uma geração cada vez mais disposta a romper os paradigmas estabelecidos e consagrados por uma mentalidade social que hoje não encontra mais guarida, v.g., casamento entre pessoas do mesmo sexo, igualdade entre os filhos, mudança de sexo, entre outros.

O direito civil do século XXI dialoga com a sociedade complexa em que se insere. Não tenta negar essa complexidade, nem virar as costas para as

1 Exposto bem a discussão posta Cavalieri Filho (2014, p.136) afirma “Embora tenha acolhido esse entendimento (autonomia dos danos morais e estéticos) como julgador para evitar desnecessários recursos especiais, em sede doutrinária continuo convicto de que o dano estético é modalidade do dano moral e que tudo se resume a uma questão de arbitramento”.

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profundas mudanças em curso - que repercutem intimamente na interpretação jurídica e na aplicação de suas normas. Ampliam-se, em nosso século, os espaços de liberdade no que diz respeito às situações subjetivas existenciais (BRAGA NETTO, 2014, p. 30).

No âmbito legal, as modificações não se mostraram somente

aparentes, visto que as alterações foram iniciadas no ápice da pirâmide, isto é, os princípios constitucionais não possuem, como em outros tempos se pensava, somente força política e filosófica, muito pelo contrário, possui normatividade, fato que exala seus mandamentos para os mais diversos âmbitos, sejam eles dominados por relações iminentemente privadas ou públicas.

No mesmo tom, a responsabilidade civil tornou-se uma disciplina altamente dinâmica, alterando seus consagrados princípios em benefício do pragmatismo, da vida social, daquele cidadão que corre riscos, da vítima que suporta o dano, do vulnerável, hipossuficiente, etc. Isto é, da evolução social e tecnológica derivam novas configurações de relações interpessoais, que se pautam em valores éticos e morais vigentes na sociedade no tempo em que se desenvolvem2, o que atrai necessariamente a atuação do Direito a fim de regular tais situações. Neste sentido, na medida em que os conflitos jurídicos encontram seu respaldo legal, onde se delimitam os direitos e deveres, o homem, entendido como fim em si mesmo3, avança na caminhada para o alcance pleno da paz e da justiça, que por sua vez demandam um ambiente jurídico favorável para tanto4, para tutela de seus interesses, os quais não se restringem à seara patrimonial.

2 Notadamente, os valores éticos e morais nascem e morrem com a dinamicidade social. Como exemplo, a humanidade presenciou a escravidão, aceita em sua contemporaneidade, e sua abolição. 3 Ideia tratada por Immanuel Kant: “Compreende-se onde o nosso filósofo quer chegar: ele quer evidenciar a excelência do homem sobre os outros seres da natureza; e nisto justamente consiste o principal aspecto da influência rousseauniana. 'O homem - ele escreve - e em geral todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio, do qual tal ou qual vontade possa dispor arbitrariamente; antes, ele deve ser considerado, sempre, em todas as suas ações - tanto naquelas volvidas a si mesmo, como naquelas volvidas a outros seres racionais ao mesmo tempo, como fim. (...) Nós sentimos que não poderíamos nos tornar instrumentos de nenhuma lei que nos comandasse completamente de fora, e se não podemos ser instrumentos de ninguém, porque isso nos repugna pelo fato de nos sentirmos espíritos - ou, se preferir, pessoas e não coisas - é claro que não devemos considerar como instrumentos nem aos nossos semelhantes. Daí a nova formulação do imperativo prático, nos seguintes termos: Age de maneira a tratar a humanidade, tanto na tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre, ao mesmo tempo, como fim, nunca como simples meio”. GALEFFI, R. A filosofia de Immanuel Kant. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986. p. 150 e 151. 4 Neste sentido, destaca-se a evolução dos direitos fundamentais, divididos em dimensões ou gerações, como denomina BOBBIO. Os de primeira geração referem-se aos direitos fundamentais construídos em oposição aos governos absolutistas e visavam a proteção à vida, liberdade e igualdade. Os de segunda geração, decorrem das lutas de classes e em meio à revolução industrial, onde necessária era a proteção ao trabalho, educação, saúde, moradia. Os de terceira geração, ligam-se, na visão de Bobbio, à preservação ao meio ambiente e do consumidor. Por derradeiro, referido autor trata de direitos fundamentais de quarta geração, que compreenderiam a proteção ao patrimônio genético, preocupação com a bioética, dentre outros. Contudo, há autores que dividem tais gerações, até mesmo definindo-as como dimensões dos

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188 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

É o que se tem observado na contemporaneidade, quando se revela evidente a expansão das demandas por ressarcimentos de danos não exclusivamente patrimoniais, mas, principalmente, danos mais específicos da personalidade. Neste diapasão, pertinente a lição de SCHREIBER (2013):

[...] verifica-se, em todo mundo, e de modo ainda mais marcante, uma expansão qualitativa, na medida em que novos interesses, sobretudo de natureza existencial e coletiva, passam a ser considerados pelos tribunais como merecedores de tutela, consubstanciando-se sua violação em novos danos ressarcíveis. De fato, o reconhecimento da necessidade de tutela dos interesses existenciais [...] vieram exigir o repensar da estrutura individualista e eminentemente patrimonial das ações de reparação.

Neste sentido, grande parte da doutrina admite a existência de uma

categoria de direitos que consistem no reconhecimento de que o ser humano é dotado de um conjunto de prerrogativas que decorrem da própria existência humana. Isso se deu em virtude da evolução dos direitos fundamentais, entendidos como direitos inerentes ao homem, como se infere da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Por exemplo, os quais possuem a denominação de direitos da personalidade, que se resumem no conjunto de caracteres próprios do indivíduo, sendo que por meio da personalidade, a pessoa pode adquirir e defender os demais bens inerentes à pessoa humana, como a vida, liberdade, honra, e outros (SZANIAWSKI, p. 28, 1993).

Assim, como a Galatea de Esferas de Salvador Dali, o homem é formado por esferas, das quais emanam interesses diversos com implicações igualmente diversas. Neste sentido é que ganha vulto a análise do ser humano como partes que formam um todo, de modo que no âmbito jurídico, mais especificamente da responsabilidade civil, onde se tratam dos direitos e deveres contratuais e extracontratuais, e a configuração do dever de indenizar, não basta à mera proteção ao patrimônio, porquanto não é só o dinheiro que constitui a inteireza do homem, donde exsurge a necessidade de estudo dos danos extrapatrimoniais, aqueles que não detém natureza econômica, embora possam, de algum modo, gerar consequências econômicas.

Inobstante, ainda que se tenha evoluído no estudo dos danos extrapatrimoniais, observa-se que ainda é frágil e carente de apreciação todas as esferas do ser humano, até mesmo porquanto ainda não conhecidas e totalmente delimitadas. Diante do atual cenário social, por conseguinte, se constata que há situações as quais anteriormente não tidas como passíveis de causar dano, hoje são objeto de estudo e enfrentadas como novos danos.

Nesse contexto, Braga Netto aduz que [...] cabe lembrar que a humanidade, ao longo dos séculos, nem sempre vê os danos do mesmo modo. Aquilo que era dano, numa sociedade, pode não ser em outra, presentes as variáveis histórico-culturais. Definir, portanto,

direitos fundamentais em até cinco dimensões. (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004).

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quais danos devem ser reparados ou compensados é postura que não pode ser feita em abstrato, mas dentro de determinada sociedade especificamente considerada (BRAGA NETTO, 2015, p. 53).

Brevemente realizadas as ponderações introdutórias a respeito do

surgimento dos novos danos5, chega o momento oportuno para, detidamente, analisa-los em espécie, sua definição, aplicação na órbita jurídica pátria, caracterização e polemicas que possivelmente os envolve.

12.4.1 Dano psicológico

O dano psicológico pode ser entendido sob seu caráter de lesão

eminentemente física, decorrente de acidente, que culmine no comprometimento de reações mentais e higidez psicológica, dos sentidos ou comprometimento das funções orgânicas. Nesta situação, em que pese poder denomina-lo de “dano psíquico”, mais vincula-se ao caráter de dano físico, ao passo em que se exprime em reparação de ordem patrimonial, seja indenizando a vítima em razão da diminuição ou supressão de sua capacidade laborativa, através de pensionamento mensal, de trato sucessivo, seja compondo danos emergentes e despesas de tratamento (STOCO, 2013).

Todavia, o dano psicológico não decorre exclusivamente de acidente, mas de traumas, de uma situação originária de um dano patrimonial, etc. Em suma, observa-se que o dano psíquico pode ser originado ou estar acompanhado de outros danos, tendo consequências patrimoniais ou não.

Um meio, então, de se conceber a ideia do dano psicológico não decorrente de acidente é justamente sua comparação com o dano moral. Isso porque, na concepção clássica do dano moral, como causativo de dor, sofrimento, encontra pontos de contato com o dano psíquico, haja vista ambos terem constatação eminentemente subjetiva. Contudo, inegável a diferença destes, porquanto o dano psíquico caracteriza-se pela presença do fator patológico, o que pode ser averiguado por perito da área de saúde mental. É como define Hernán Daray:

Podría decirse que es la perturbación transitória o permanente del equilibrio espiritual preexistente, de carácter patológico, producida por um hecho ilícito, que genera em quien la padece la possibilidad de reclamar uma indemnización por tal concepto a quien la haya ocasionado o debe responder por ella. (...) De acuerdo com esto, corresponde considerar el campo denotado por la expresión perturbación del equilibrio espiritual, dado que esta

5 Lamentável, contudo, não ter se concretizado o ideal de Clayton Reis (2001, p.132) “Antevemos dias em que não mais serão necessários mecanismos do Estado para defender o patrimônio moral de ninguém, visto que os homens haverão de, educados que o foram para esta postura, respeitar os direitos alheios. O homem consciente e civilizado não necessitará de freios sociais ou estatais para reprimir suas ações. Elas serão frutos de um elevado grau de consciência individual e coletiva.”

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última noción constituiría el bien jurídico protegido. En la definición p y estol o hemos señalado al diferenciar el dano psicológico del agravio moral- se incluye el carácter patológico del detrimento (DARAY, 1995).

Neste sentido, para que o dano psicológico seja efetivamente

indenizável, mister que a vítima tenha experimentado algum prejuízo em sua potencialidade de prosseguir com suas atividades que lhe proporcionem o devido sustento, ou em sua vida de relações (termo citado alhures), bom como seja possível identificar a lesão reclamada e seu caráter patológico por meio de análise médica (DARAY, 1995).

O mesmo autor ainda elenca como orientações para fixação do dano psicológico a extensão do dano, o custo do tratamento médico necessário, resíduo psicológico do dano, além de dever configurar-se elemento que aumente a compensação por dano moral (DARAY, 1995).

Na jurisprudência brasileira, o dano psicológico não se vislumbra, em grande parte, como dano autônomo, sendo utilizado, não raras vezes, como motor para caracterização do dano moral. É citado nos julgados principalmente relativo a crimes contra a liberdade sexual. O ponto que revela a não adoção do dano psicológico como autônomo é a ideia de impossibilidade ou ausência da exigência de comprovação de que se trataria de patologia.

12.4.2 Dano genético

O dano genético parece representar, exemplarmente, o estágio da

evolução tecnológica que foi conquistado pela ciência no decorrer dos anos. Fatos que somente eram observados em filmes de renomados cineastas, hoje se mostram reais, passíveis de concretude e, como toda novidade, também de causar danos (im)previstos.

Antes de prosseguir com a análise da responsabilidade civil pelos danos gênicos, genômicos e genéticos, vale frisar que a simples impossibilidade de prever os riscos que da atividade desenvolvida, por ex. engenharia genética, não exime os fornecedores e prestadores dos serviços pelos danos imediatos e futuros que o procedimento ocasionar.

O direito brasileiro, em que pese à divergência doutrinária6, parece ter adotado o posicionamento no sentido de que o risco do desenvolvimento7 não exclui o dever de ressarcir8. Em sentido inverso, se pode observar que:

6 Reconhecendo a teoria do risco do desenvolvimento como excludente temos Fabio Ulhoa Coelho (2005, p.276). 7 “Que é o risco que não pode ser cientificamente conhecido no momento do lançamento do produto no mercado, vindo a ser descoberto somente após um certo período de uso do produto e do serviço. É defeito que, em face do estado da Ciência e da técnica à época da colocação do produto ou serviço em circulação, era desconhecido e imprevisível”. (CAVALIERI FILHO apud HERMAN DE VASCONCELOS E BENJAMIN, 2014, P. 232). 8 O enunciado 43 da I jornada de Direito Civil assim estabelece: “a responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento”.

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“A União Europeia, através da Diretiva 85/374, aceita o risco do desenvolvimento como excludente de responsabilidade, tendo os países europeus, como linha de tendência, adotado a referida excludente” (BRAGA NETTO, 2015, p. 188).

Para que seja possível discutir as possíveis consequências, em linha lógica, se mostra necessário apresentar o tema para que, então, se possa compreender a gravidade e a extensão do dano genético, justificando, por isso, a intervenção da responsabilidade civil. Contudo, se mostra necessário, desde já, alerta o leitor que noções básicas de biologia necessariamente serão tratadas, sendo importante o conhecimento prévio para a boa compreensão da matéria.

Sendo assim, o primeiro dano que merece análise no presente tópico é o chamado dano gênico, que tem como principal característica, nas palavras de Rosaldo Jorge de Andrade (2003, p.202 usque 203) “o dano causado ao gene. Ou seja, o dano causado à unidade hereditária ou genética, situada no cromossomo, que determina as características de um indivíduo”. Ou, em outras palavras, o dano “a unidade funcional do ácido desoxirribonucleico envolvida na síntese de uma cadeia polipeptídica” (ANDRADE, 2003, p. 202).

A extensão do dano gênico dependerá do gene atingido, pois, conforme exposto por Ana Célia de Julio Santos e Valkiria Aparecida Lopes Ferraro (2006, p. 46):

Este poderá ou não interferir no processo natural de reprodução e desenvolvimento genético, ou no processo original de transmissão dos caracteres hereditários de um indivíduo. Então, se o dano for causado em gene de células germinativas, ele será transmitido para outras futuras gerações o que, destarte, o transformará em dano genético.

Portanto, o dano gênico não constitui, em regra, um dano genético,

mas pode vir a ser, caso o gene atingido seja o de células germinativas. A título de esclarecimento, o dano gênico, a priori, nasce e morre com o indivíduo, não se constitui um dano genético, muito menos um dano genômico, mas também é passível de ressarcimento.

Talvez um exemplo seja necessário para um melhor entendimento: Noticia o jornal “O Estado do Paraná” de 06/05/2001, que dois bebês americanos de mais ou menos um ano têm “três pais” [...] em suas células geneticamente modificadas, há DNA de três pessoas. [...] O procedimento que viabilizou a inusitada situação “consiste em injetar parte do citoplasma de uma mulher jovem no óvulo de outra mulher com dificuldades para ter filhos”. [...] Ao receber o citoplasma de uma mulher jovem, portanto, o óvulo degenerado teria uma mitocôndria sadia, devolvendo a fertilidade à mulher mais velha. Ao fazer testes de identificação genética em duas crianças nascidas nos EUA por aquele método, os pesquisadores constataram que as células dos bebês tinham três DNAs diferentes: Um vindo da mãe, um do pai e o outro da mitocôndria da doadora.

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Rosaldo Jorge de Andrade (2003, p. 205), analisando o exemplo acima afirma que a responsabilidade civil poderia, por exemplo, incidir:

[...] caso reste constatado que a criança receptora do DNA mitocondrial (da doadora) venha a apresentar características físicas pessoais totalmente diferentes dos seus pais biológicos, ou até uma enfermidade transmitida geneticamente, pela mãe doadora, fatos estes que não teriam sido muito bem esclarecidos aos pais biológicos, por ocasião da tomada do seu consentimento para a realização do procedimento (consentimento des informado).

Além do dano gênico, que, como verificado, atinge um gene,

imprescindível tecer comentários sobre o dano genômico, aquele que atinge o genoma9. Por genoma compreende-se “a constituição genética total” de um indivíduo ou zigoto (ANDRADE, 2003, p. 206). Por conseguinte, enquanto o dano gênico atinge somente um gene, o dano genômico “seria, pois, um dano poligênico; uma subespécie do dano genético, já que altera a constituição genética total de um indivíduo, necessariamente interferindo em células germinativas, afetando assim o processo original de reprodução” (SANTOS; FERRARO, 2006, p. 48).

Assim, a título de síntese, enquanto o dano gênico atinge somente um gene, o dano genômico afeta toda a constituição genética de um indivíduo ou zigoto, sendo, diferentemente do primeiro, necessariamente um dano genético.

Por sua vez, o dano genético, gênero que comporta as espécies dano genômico e o dano gênico (desde que o dano advenha de gene de células germinativas), é compreendido como aquele “[...] dano causado ao processo original de transmissão dos caracteres hereditários, quer resultantes do manuseio e da aplicação das técnicas de engenharia genética; quer de outros fatores que interfiram de algum modo neste processo” (ANDRADE, 2003, p. 208).

Realizadas as conceituações necessárias para o entendimento do conteúdo, necessário que as atenções se voltem para os aspectos principais da responsabilidade civil em casos de dano genético.

Primeiramente, mesmo que a lei 11.105/05, em seu artigo 2010, caput, não adotasse, expressamente, a responsabilidade objetiva, a responsabilidade sem culpa deveria ser aplicada, seja pela relação consumerista que, usualmente, se instala em casos de dano genético,

9 Diz a Declaração Universal do Genoma Humano, em seu artigo 8°, que: Cada indivíduo terá direito, conforme a legislação nacional ou internacional, à justa indenização por qualquer dano sofrido resultante, direta ou indiretamente, de intervenção sobre seu genoma. 10 Art. 20. Sem prejuízo da aplicação das penas previstas nesta Lei, os responsáveis pelos danos ao meio ambiente e a terceiros responderão, solidariamente, por sua indenização ou reparação integral, independentemente da existência de culpa.

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especialmente ante as clínicas de engenharia genética, ou pela atividade de alto risco11 que exercem.

Todavia, a discussão não encontra termo com a afirmação de que se aplica a responsabilidade objetiva, pois, atualmente, além da responsabilidade ser objetiva, prevalece que deve ser aplicado nas clínicas de reprodução assistida, espaço propício para a consumação do dano genético, pelo risco exacerbado da atividade desempenhada, a teoria objetiva agravada12, ou seja, a teoria do risco integral.

Em face da adoção legal da teoria da responsabilidade objetiva, fundamentada no princípio do risco, para que haja a socialização do risco, em atendimento aos princípios da solidariedade e da beneficência, que informam o paradigma bioético necessário a ser adotado, o critério mais adequado é filiar-se à teoria do risco integral, adotando a teoria da equivalência dos antecedentes (ANDRADE, 2003, p. 194).

Com a adoção da perigosa teoria da equivalência dos

antecedentes13, a atuação do juiz deverá ser destacada, pois, como lembra Rosaldo Jorge de Andrade, citando Francisco Vieira Lima Neto (2003, p.186), “[...] a conhecida inconveniência da teoria causal – o regresso ao infinito – será afastada pelo prudente arbítrio do magistrado”.

Como presumível, a melhor saída para as clínicas e os profissionais que labutam na área de engenharia genética ou mesmo outras atividades que, potencialmente, podem ocasionar danos genéticos, devem se preocupar e trabalhar com as ideias de prevenção e precaução14, até mesmo instituindo seguros de responsabilidade civil, privados ou obrigatórios, seja para assegurar o ressarcimento à vítima ou para que os altos montantes indenizatórios não levem o agressor a insolvência ou falência.

Antes de concluir o presente tópico, importante discutir a natureza dos danos causados, seria patrimonial ou extrapatrimoniais? Em princípio, o

11 Frise-se que tais atividades vão desde a manipulação de simples células, sem qualquer caráter perigoso eminente ao homem e ao meio ambiente, como também a de vírus altamente letais e patogênicos, para ambos. (SANTOS; FERRARO, 2006, p.53). 12 Neste sentido, Annila Carine da Cruz e Rita de Cássia Resquetti Tarifa Espolador, afirmam: Na seara do dano genético que pode ensejar a responsabilização civil das clínicas de reprodução humana assistida, conclui-se pela possibilidade da aplicação da teoria da responsabilidade objetiva agravada, pelo fato de sua configuração ser a mais congruente com as exigências de cuidado próprias da área de Biossegurança. (2014) 13 Para a teoria, todas as condutas conduzem ao prejuízo, de vez que, na cadeia causal, suprindo um dos antecedentes, não se verifica o resultado danoso. Em consequência, a causa do dano seria constituída, individualmente, por qualquer uma das condutas. (NADER, 2014, p.116) 14 O certo é que precaução, prevenção e todas as técnicas de administração de risco partem do princípio de que a potencial lesão a um interesse tutelado dever ser objeto de controle, tanto quanto a lesão em si. A rigor, a preocupação com os riscos de lesão já, há muito, ocupa o pensamento do direito civil-constitucional, para o qual a tutela dos interesses fundados em valores constitucionais não se limita a uma tutela de tipo negativo clássico, destinada a reprimir a lesão, mas abrange também uma tutela negativa preventiva ou inibitória, no sentido de evitar situações potencialmente lesivas a tais interesses, bem como uma tutela positiva, comprometida em promover a sua máxima realização. (SCHREIBER. 2013, p.229).

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dano gênico, genômico e genético, somente seriam passíveis de compensação moral, visto que o gene, in natura, não atingiria o patrimônio alheio, porém, Ana Célia de Julio Santos e Valkiria Aparecida Lopes Ferraro (2006, p.48), afirma que:

O dano genético é, por sua natureza, classificado como dano subjetivo, ou seja, dano à pessoa; aquele que atenta contra o ser humano, em qualquer etapa do seu desenvolvimento existencial. Mas também podem ocorrer situações em que o dano genético possa ser classificado como dano patrimonial ou material. (...) ressalta-se que o genoma, quer seja animal ou vegetal, em seu estado natural, pode ser apenas objeto de dano moral. Entretanto, se esse mesmo genoma for modificado geneticamente, pode ser objeto também de um dano material, posto que sujeito de apreciação financeira, até mesmo alvo de patenteamento, sendo então de estado variável conforme seja natural ou modificado.

Agasalhando o mesmo posicionamento, o sempre citado Rosaldo

Jorge de Andrade (2003, p.210) diz que os dano advindos de lesões aos genes poderão “[...] em uma segunda análise, ter caráter patrimonial, passível de apreciação, quantificação e valoração econômica, quando se tratar de um Organismo Geneticamente Modificado (OGM)”.

Assim sendo, percebe-se que o dano genético possui diversas peculiaridades, demandando conhecimentos interdisciplinares para sua efetiva compreensão, além de possuir questões pouco debatidas e, por isso, ainda não sedimentadas no âmbito jurídico, campo fértil, portanto, para novas pesquisas.

12.4.3 Dano existencial

Figura semelhante ao dano existencial é o dano à vida de relação

(danno in rapporto alla vita di relazione), que advém do Direito italiano, e pertence à seara do ressarcimento do dano à pessoa. Significa o complexo das repercussões econômicas desfavoráveis, oriundas da redução à integridade pessoal, não relativa à perda da capacidade laborativa em sentido estrito. Investiga o indivíduo sob o ponto de vista de sua eficiência social, não somente em sua atuação profissional, mas também cuida das relações vividas fora do ambiente de trabalho, interrompendo um processo para alcance de um status na sociedade (MONTENEGRO, 1999, p. 98).

Nos mesmos moldes, porém mais amplo o dano existencial se caracteriza quando o indivíduo é injustamente privado de sua liberdade de expressar sua vivência em todos os setores da vida, por meio da interrupção, extinção ou alteração da continuação ou desenvolvimento de um projeto de

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vida15 ou por meio do dano à vida de relações16. Destarte, pode ser definido como a lesão ao “complexo de relações que auxiliam no desenvolvimento normal da personalidade do sujeito, abrangendo a ordem pessoal ou a ordem social”. É uma ofensa “negativa, total ou parcial, permanente ou temporária”, a uma ou mais atividades que “a vítima do dano, normalmente, tinha como incorporado ao seu cotidiano, e que, em razão do efeito lesivo, precisou modificar em sua forma de realização, ou mesmo suprimir da sua rotina” (SOARES, 2009, p. 44).

Neste sentido, Flaviana Rampazzo Soares (2009, p. 44): O dano existencial materializa-se como uma renúncia involuntária às atividades cotidianas de qualquer gênero, em comprometimento das próprias esferas de desenvolvimento pessoal. (...) pode atingir setores distintos: a) atividades biológicas de subsistência; b) relações afetivo-familiares; c) relações sociais; d) atividades culturais e religiosas; e) atividades recreativas e outras atividades realizadoras, porque qualquer pessoa tem o direito à serenidade familiar, à salubridade do ambiente, à tranquilidade no desenvolvimento das tarefas profissionais, ou de lazer, etc.

O dano existencial encontra seu fundamento basilar na dignidade da

pessoa humana, assim como os demais danos de ordem imaterial, o princípio da solidariedade social e, por se tratar de espécie de dano extrapatrimonial, dentro da responsabilidade civil, no princípio do neminem laedere (SOARES, 2009).

Importante destacar que o dano existencial não se confunde com o dano moral, na medida em que aquele se vincula diretamente aos interesses e projeto de vida da vítima, de modo que sua constatação é objetiva, externa, enquanto o dano moral se refere ao sentimento da vítima, abalo da honra, angústia, de modo que sua dimensão é subjetiva.

Assim, da mesma forma que o dano moral pode ou não ter implicações patrimoniais, o dano existencial não necessariamente reflete no âmbito econômico, podendo decorrer de atos ilícitos que não prejudiquem a saúde nem o patrimônio da vítima, porém culmina na interrupção do desenvolvimento de uma atividade que proporcionava ou poderia proporcionar prazer e realização pessoal (GUEDES, 2008, p. 128).

De igual sorte, não há que se confundir o dano existencial com a perda de uma chance. Neste caso, vislumbra-se a perda de uma oportunidade concreta e o prejuízo se revela quantificável. Há, por conseguinte, probabilidade de êxito na chance perdida em razão do dano. Já no dano existencial, a interrupção, modificação, supressão dos hábitos e cotidianidade relaciona-se com o convívio e relações sociais, projeto de vida.

15 O projeto de vida se traduz nas possibilidades concretas de o ser se realizar na sociedade por meio de suas escolhas. Refere-se à possibilidade de levar a cabo seus planejamentos a fim de alcançar a vida ansiada, seja por meio cultural, profissional, familiar, etc. 16 O dano à vida de relações diz respeito aos relacionamentos travados pelo indivíduo na seara profissional, social, familiar, enfim, no meio em que vive, que por meio de conduta danosa, são abalados, interrompidos ou extintos.

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Trata-se de situação não passível de quantificação, inobstante também tenha caráter objetivo.

No que tange aos elementos a serem levados em consideração para a aferição do dano existencial, Júlio César Bebber destaca:

a) a injustiça do dano. Somente dano injusto poderá ser considerado ilícito; b) a situação presente, os atos realizados (passado) rumo à consecução do projeto de vida e a situação futura com a qual deverá resignar-se a pessoa; c) a razoabilidade do projeto de vida. Somente a frustração injusta de projetos razoáveis (dentro de uma lógica do presente e perspectiva de futuro) caracteriza dano existencial. Em outras palavras: é necessário haver possibilidade ou probabilidade de realização do projeto de vida; d) o alcance do dano. É indispensável que o dano injusto tenha frustrado (comprometido) a realização do projeto de vida (importando em renúncias diárias) que, agora, tem de ser reprogramado com as limitações que o dano impôs (BEBBER, 2009).

Diante das ideias apresentadas, inferem-se como exemplos de danos

existenciais: a) a lesão causada no trabalhador quando submetido à mobbing (assédio laboral, no ambiente de trabalho); b) perda de um familiar ou abandono parental em momento crucial do desenvolvimento da personalidade; c) assédio sexual; d) bullyng (assédio no ambiente escolar); e) prisões arbitrárias ou resultantes de erro judiciário, etc.

A doutrina italiana considera a Decisão nº 7713 da Suprema Corte italiana, datada de 7 de junho de 2000, é tida como o marco jurisprudencial de reconhecimento do dano existencial. O caso girava em torno do pedido de indenização contra um pai que teria sido acusado de não prestar assistência material ao filho, o que foi julgado improcedente, pois este conseguiu evidenciar que a mãe sempre assistiu materialmente o filho. No entanto, fora também movida contra o pai ação em nome do filho que entendeu ter sido lesado afetivamente pela ausência do pai. Esta foi à decisão que considerou, na Itália, pela primeira vez o dano existencial, nos termos alhures expostos, e sedimentou a indenização sob tal título.

Outro exemplo jurisprudencial emblemático se encontra na Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Caso Benavides vs Peru. O estudante de biologia: Luis Alberto Cantoral Benavides foi preso ilegal e arbitrariamente pela Polícia do Peru. Foi reconhecido o dano existencial em razão da prisão ilegal e a República do Peru foi condenada ao pagamento de bolsa de estudo e custeio da graduação à vítima.

Na jurisprudência brasileira, nota-se a consideração do dano existencial principalmente em relação à não assistência familiar em relação à criança, mas ainda sem consubstanciar-se autonomamente do dano moral17.

17 STJ - AREsp: 654453 RJ 2015/0012018-0, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Publicação: DJ 25/03/2015

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12.4.4 Dano moral

Se analisado comparativamente com os “novos danos”

extrapatrimoniais, o dano moral não poderia ser considerado, essencialmente, um novo dano. Porém, se mostra válido frisar que, em termos de teoria jurídica, vinte e sete18 anos não significa que o dano seja “velho”, especialmente em função de suas novas vertentes, como, por exemplo, o dano moral coletivo.

A ilicitude da conduta daquele que causa dano à outra pessoa sempre foi motivo de atenção jurídica, entretanto, não seria excessivo afirmar que o dano patrimonial, aquele que atinge direitos ou interesses passíveis de aferição econômica, sempre tiveram o privilégio da reparação, em sentido inverso, o dano que não pode ser, a priori, valorado e mensurado, como não podem os danos extrapatrimoniais, durante muito tempo foram renegados. Abordando os fundamentos da teoria negativista do dano moral, Teresa Ancona Lopez (2004, p.33 usque 34) afirma que os principais argumentos no sentido da irreparabilidade do dano moral eram: “(i) A falta de efeito penoso durável; (ii) A incerteza, nesta espécie de danos, de um verdadeiro direito violado; (iii) A dificuldade de descobrir a existência do dano; (iv) A indeterminação do número de pessoas lesadas; (v) A imoralidade de compensar uma dor com dinheiro; (vi) O ilimitado poder que se é obrigado a conferir ao juiz; (vii) A impossibilidade de uma rigorosa avaliação em dinheiro”19.

Mesmo assim, não era o dano moral completamente impassível de ressarcimento antes da CF/88, já que diversas leis especiais20 disciplinavam

18 O dano moral sempre foi objeto de diversas divergências quanto a sua ressarcibilidade, porém, conforme noticia Clayton Reis (2001, p.133) “com a promulgação da Constituição de 1988, a tese do dano moral no Brasil consolidou-se definitivamente em nosso estatuto legal”. O art. 5°, incs. V e X, da Carta Magna, assegurou ao cidadão “o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente da sua violação”. 19 Logo em seguida a autora apresenta os contra-argumentos para cada uma das objeções, sendo que (i) a primeira objeção não pode prosperar, pois a sensação dolorosa só pode ter influencia na avaliação e nunca no reconhecimento do dano; (ii) Da mesma forma, a segunda objeção é facilmente refutada, já que o conceito de dano é único e corresponde a uma lesão de direito. (iii) A terceira objeção é afastada com o contra-argumento no sentido de que o dano moral é consequência irrecusável do fato danoso, isto é, este se prova per se. No caso do (iv) argumento seguinte, quanto ao número de pessoas lesadas, o mesmo pode ser facilmente verificado e constatado pelo juiz no caso concreto. Quanto a (v) quinta objeção, o contra-argumento vai ao sentido de que “para os que tem sentimento de justiça, esta reparação é necessária, fazendo com que se transija com a fórmula de reparação pecuniária, ao menos até que se estabeleça processo mais idôneo. Caminhando para o fim, o (vi) sexto contra-argumento afirma que o magistrado possui o mesmo poder de diversos outros casos, ou seja, não se trata de uma peculiaridade do ressarcimento por danos morais. Por fim, o último argumento (vii) é combatido com a afirmação de que “não é razão suficiente para não indenizar e assim beneficiar-se o responsável com o fato de não ser possível estabelecer um equivalente exato. (LOPEZ, 2004, p. 34 usque 35). 20 Por exemplo: Lei 5.250/67 (lei de imprensa); 4.117/62 (Código Brasileiro de telecomunicações), entre outros.

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e asseguravam sua existência21, inclusive com a maior parte da doutrina a favor da teoria positivista. Todavia, a resistência dos tribunais impedia que o dano moral puro se transformasse em regra. Em contundente crítica a tendência dos tribunais de não aceitarem o dano moral, Clayton Reis (2001, p.118) afirmou:

Essa tendência, que é marcante em nossas Cortes de justiça, representa uma corrente tradicionalista de eminentes julgadores, que não ousam inovar, aguardando que outros o façam. Na realidade, com essa postura, perdemos uma grande oportunidade de produzir um grande avanço na jurisprudência e na indenizabilidade do maior patrimônio do homem, tão carente de valores espirituais, em uma época de graves transformações que vêm ocorrendo na sociedade mundial.

Porém, após a Constituição Federal de 1988, o Código de Defesa do

Consumidor e o Código Civil de 2002, nenhum impedimento ou dúvida existe para que o magistrado decida pelo dano moral isolada ou cumulativamente22 com os demais danos injustos existentes, sejam eles patrimoniais ou outras espécies de danos extrapatrimoniais.

Atualmente, o maior erro não é a impossibilidade de indenizar o dano moral, essa questão se apresenta, nos dias de hoje, pacífica, mas sim as teorias que buscam aferir o dano moral, pois são permeadas de equívocos. Dentre os erros mais comuns, está a aferição da consumação do dano moral utilizando-se o critério da dor. Aqui, inegavelmente, o equívoco se qualifica, visto que equipara as consequências com as causas. Em outras palavras, a dor, bem como a magoa e a aflição não se apresentam como critérios adequados e corretos de avaliação do dano, eles nada mais são do que consequências do dano suportado pela vítima, esse sim passível de ressarcimento (SCHREIBER, 2014, p. 131-134).

No mesmo tom, Sergio Cavalieri Filho (2014, p. 107): O dano moral não está necessariamente vinculado a alguma reação psíquica da vítima. Pode haver ofensa à dignidade da pessoa humana sem dor, vexame, sofrimento, assim como pode haver dor, vexame e sofrimento sem violação da dignidade. Dor, vexame, sofrimento e humilhação podem ser consequências, e não causas. Assim como a febre é o efeito de uma agressão orgânica, a reação psíquica da vítima só pode ser considerada dano moral quando tiver por causa uma agressão à sua dignidade.

21 A reparação do dano moral na realidade nada repara e sim compensa, o que por si só basta para reprimir a ilicitude do ato e propiciar à vítima uma sensação de bem-estar pela penalidade do lesionador e, pelas possibilidades compensatórias que a quantia paga haverá de oferecer-lhe, em nosso mundo. (REIS, 2001, p.123). 22 A súmula 37 do STJ, afirma: São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato. O teor da súmula 387 do STJ é o seguinte: É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral.

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A título de esclarecimento, caso o critério da dor se mostrasse

correto, impossível seria afirmar a possibilidade de pessoa jurídica, pois é isenta à dor e ao sofrimento, sofrer danos morais23. No mesmo sentido, inaplicável seria o debatido dano moral coletivo, que, nos dizeres de Anderson Schreiber (2013, p.88) “[...] pressupõe [...] que seja possível causar dano moral de forma difusa, afetando-se uma comunidade de pessoas, para além da individualidade de cada um”. E, após intensa defesa do instituto, afirma que “os obstáculos que lhe são impostos são obstáculos de construção dogmática, influenciada pela visão individualista do dano e, consequentemente, do dano moral” (SCHREIBER, 2013, p. 90).

Se o dano moral, como corriqueiramente afirmado, não se constitui da dor, sofrimento, aflição e demais sentimentos negativo, o que, então, o caracteriza?

Certamente não há uniformidade na doutrina a respeito do conceito de danos morais. Na visão de Paulo Nader (2014, p. 87-90).

Há valores humanos que, uma vez atingidos, provocam sofrimento, angústia, desespero e impõem reparação. Quando o ato ilícito atenta contra os direitos da personalidade, como o nome, a honra, a liberdade, a integridade física, a imagem, a intimidade, têm-se danos morais suscetíveis de indenização. [...] Somente haverá dano moral quando a conduta do agente atentar contra a dignidade inerente à pessoa, causando-lhe efetiva dor material ou psíquica.

Por seu turno, Orlando Gomes (2011, p. 51) afirma que “[...] o dano é

imaterial quando se verifica um bem jurídico insuscetível de apreciação de apreciação econômica, como, como exemplo, quando são lesados direitos personalíssimos. Usa-se, entre nós, de preferência, a expressão dano moral”.

Partindo do princípio que nem todos os vilipêndios a personalidade afrontam a dignidade humana, Cavalieri Filho (2014, p. 108), subdivide o dano moral em duas vertentes, diz ser “[...] dano moral em sentido amplo a violação de algum direito ou atributo da personalidade”. Sendo, por outro lado, dano moral em sentido estrito “a violação do direito à dignidade” (2014, p. 106).

Teresa Ancona Lopes (2004, p. 26-27) afirmando ser o dano moral gênero e, portanto, sinônimo de danos extrapatrimoniais, “pois os danos morais podem ser efetivamente diferentes, dependendo do bem jurídico, ou melhor, do aspecto ou aspectos da personalidade atingidos”, diz, ainda, que “[...] um mesmo evento danoso pode dar origem a diversas indenizações, cada uma a um título, levando à cumulação de várias verbas e protegendo melhor a vítima, além de servir de exemplo no meio social”. Assim, divide o

23 Súmula 227 do STJ: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.

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dano moral nas seguintes espécies de avaliação24: 1) Danos morais objetivos25; 2) dano moral subjetivo26; e 3) dano moral à imagem social27.

Além das classificações e definições apontadas nas linhas subsequentes, se mostra importante apontar o posicionamento de Antônio Jeová Santos (2003, p. 92 ss), que de forma categoria afirma o contrário do que foi defendido até o momento, afirmando que “[...] o que determina o dano moral indenizável é a consequência, o resultado que do ato dimana. Não é o dano em si que dirá se ele é ressarcível, mas os efeitos que o dano provoca”.

Se o que vai definir o dano é a própria lesão, é o atingimento de direito da personalidade, a indenização deveria ser praticamente idêntica para cada lesão. (...) Afirmar que o dano moral é aquele que lesiona os direitos da personalidade, é desconhecer que a vida, a honra, a intimidade, a liberdade e outros direitos personalíssimos nada representam em termos econômicos. (...) A pá de cal sobre essa teoria é que somente aferindo a repercussão do dano verificada no ânimo da vítima e analisando as circunstâncias particulares e peculiares do caso concreto, é possível buscar reparação que seja adequada. Indenizar todo ataque a direito da personalidade da mesma forma e de maneira harmônica, sem a consideração das situações pessoais da vítima e ofensor, levaria ao descabido tarifamento da indenização.

E ainda pondera (2004, p.94) que: Considerando o dano em si mesmo, de forma abstrata, ainda não se pode falar em lesão passível de originar ressarcimento. Para ser indenizável, não basta à incidência do dano, tão só. É necessário que haja um resultado que afete a vítima em seu bem-estar psicofísico para que a indenização procure compensar a perda dessa tranquilidade, surgida em decorrência do que o dano provocou.

Portanto, para o citado autor, impossível afirmar, a priori, que o dano

seja automático, que derive inexoravelmente do ato ilícito, pois somente “a repercussão da ação daninha no ânimo do sujeito, que causa dano moral suscetível de indenização” e essa verificação somente poderá ser realizada no caso concreto, após a exteriorização dos efeitos da afronta a personalidade, por exemplo.

24 “Alguém que sofra dano à saúde, como parte da integridade física, poderá pedir, além dos danos patrimoniais, a indenização pelo dano físico (dano moral de avaliação objetiva) cumulada com indenização por dano à imagem social (dano moral social)” (LOPES, 2004, p.31) 25 “São aqueles que ofendem os direitos da pessoa tanto no seu aspecto privado, ou seja, nos seus direitos da personalidade, quando seu aspecto público, assim como nos direitos de família. Ademais, o dano moral objetivo é presumido, decorre in re ipsa”. (LOPES, 2004, p.28) 26 “É o pretium doloris propriamente dito, o sofrimento d´alma, pois a pessoa foi ofendida em seus valores íntimos, nas suas afeições.” (LOPES, 2004, p.29) 27 Quando da promulgação da Carta Magna, causou-nos espécie a classificação do art. 5, V, pois coloca três espécies de dano: o Patrimonial, o moral e o à imagem. Evidentemente, o legislador constituinte quis fazer diferença entre esses tipos de dano, não incluindo o dano à imagem dentro do dano moral. (LOPES, 2004, p.29)

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Pontuadas as questões que ainda suscitam acaloradas discussões

doutrinárias e jurisprudenciais, sejam quanto a sua valoração, possibilidade (dano moral coletivo, por exemplo) ou modos de aferição do dano moral, se mostra necessário continuar o estudo dos diversos outros “novos danos” que se apresentam na atualidade.

12.4.6 Dano estético

A constante valorização do corpo perfeito torna ainda mais evidente

à problemática existente quando do dever de reparar um dano físico causado, eis que difícil se faz conceituar o belo e feio ante as mais variadas formas de se diferir tais atributos.

Condutas culposas ou não, por vezes podem atingir as pessoas causando-lhes deformação corporal capaz de causar imenso sofrimento psíquico passível de ressarcimento.

A responsabilidade civil, caminhando ao encontro de tal demanda, segue em constante avanço, objetivando o efetivo ressarcimento dos danos sofridos pelas pessoas, permitindo concluir que o artigo 949 do Código Civil de 2002 elenca variadas formas de danos indenizáveis, em especial, o dano estético, objetivo do presente estudo.

O Código Civil de 1916 abordava o presente tema em seu artigo 1.53828, de modo que se observa a existência de uma ligação direta ao Código Penal. Porém, na novel legislação civilista, tal não se repetiu, visto que não há no atual código a correspondência com o artigo supracitado, o que não significa que inexiste previsão para ressarcimento do mencionado dano.

Muito questionou-se, inclusive, a respeito da possibilidade de não recepção pelo novo código, do dano estético, fato este inaceitável, não se podendo deixar de olvidar, no entanto, que o dano estético também se faz espécie de dano extrapatrimonial sendo, face a isso, ressarcível com amparo nas formas genéricas.

Vislumbra-se, portanto, que o dano estético facilmente se amolda à parte final do artigo 949 que abarca de forma genérica os danos imateriais, bem como nos artigos 186 e 927 do Código Civil de 2002.

Mário Pogliani (p. 421, 1969) lecionava que o dano estético era “qualquer modificação pejorativa de natureza mórbida no indivíduo, não limitada à face, podendo ser estendido a outros órgãos e funções”. René Chapus (p. 426, 1954), situa o dano estético no plano da sensibilidade moral sendo este:

28 No caso de ferimento ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de lhe pagar a importância da multa no grau médio da pena criminal correspondente. § 1º - Esta soma será duplicada, se do ferimento resultar aleijão ou deformidade. § 2º - Se o ofendido, aleijado ou deformado, for mulher solteira ou viúva, ainda capaz de casar, a indenização consistirá em dotá-la, segundo as posses do ofensor, as circunstâncias do ofendido e a gravidade do defeito.

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[...] um sentimento de constrangimento ou de humilhação e desgosto que prova uma pessoa vendo certas feridas ou de uma maneira mais geral, certas lesões corporais que prejudicam a estética do corpo e sobretudo a harmonia dos traços. É enfim, o dano estético um sentimento de desgraça física.

Para Teresa Ancona Lopez (1999), dano estético seria “[...] qualquer

modificação duradoura ou permanente na aparência externa de uma pessoa, modificação esta que lhe acarreta um ‘enfeamento’ e lhe causa humilhações e desgostos dando origem, portanto, a uma dor moral”.

Ao contrário do prelecionado na codificação anterior onde o referido dano limitava-se ao denominado “aleijão” ou amputações, na atual abrangência, o dano seria “qualquer modificação” na aparência capaz de produzir o sofrimento moral que, para sua caracterização, deveria ainda preencher alguns requisitos.

Portanto, temos que o primeiro dos elementos necessários à configuração do dever de ressarcir é a existência da modificação física do indivíduo. O segundo requisito seria relacionado aos efeitos no tempo do referido dano, podendo ser este permanente ou mesmo prolongado, entendendo-se, ainda, que o dano não duradouro seria passível de indenização via dano material, face a real possibilidade de reparação por meio de medicamentos ou tratamentos. Portanto, a indenização referir-se-ia aos custos decorrentes do tratamento.

Conforme o entendimento de Teresa Ancona Lopez (1999), a utilização de disfarces, ou artifícios hábeis a ocultar a deformidade não seriam capazes de elidir a condenação por dano estético eis que, por mais perfeitos que sejam, não seriam iguais à parte do corpo modificada. Portanto, para referida autora, mesmo a cirurgia plástica restauradora não se faz hábil a elidir a indenização caso ainda assim persista a condição modificatória pejorativa. Não se deixando de frisar que também segundo a referida autora, para haver dano moral deve a alteração ter sido para pior, ou seja, se após a reparação o aspecto físico da pessoa tornar-se melhor do que era, não há que se falar em dano estético.

O terceiro elemento necessário à configuração do dever de ressarcir seria a aparência da modificação pejorativa ocorrida na pessoa. Porém, tal requisito deve ser analisado com cautelas eis que não há necessidade que a lesão deformante seja visível a todo instante, bastando existir, ainda que nas íntimas partes ou naquelas não frequentemente expostas da pessoa. Portanto, tem-se que a lesão externa é aquela que pode ser vista mesmo além das circunstâncias sociais cotidianas.

Por derradeiro requisito, temos a necessidade de acarretar o dano estético um dano moral, face a gerar humilhações, tristezas, desgostos, constrangimentos ou seja, infelicidade e, face a isso é que se afirma estar o dano estético abrangido pelo dano moral.

No que concerne à gênese do dano estético, diversas são suas situações originadoras, podendo se dar por via de dano delitual, contratual, em meio a uma obrigação de meio e de resultado, ou seja: acidentes, atos

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criminosos, atos dos agentes do poder público, acidentes de trabalho, dano estético em consequência do transporte de passageiros, dano estético resultante de cirurgia plástica, dentistas, cabeleireiros etc.

A respeito do quantum indenizatório, o ressarcimento do dano moral de forma pecuniária se faz necessário eis que, "muito mais imoral seria deixar o dano irresarcido" (LOPEZ, 1999).

Difícil, todavia, será aferir um quantum a indenizar a cada uma das diferentes pessoas que tiveram sua aparência modificada de forma prejudicial, na medida em que este irá variar conforme a intensidade do dano, em virtude da idade da pessoa, do sexo, da beleza anterior, posição social etc.

O importe indenizatório, portanto, ficará a cargo do entendimento do magistrado em análise a vários aspectos do que unicamente uma análise objetiva do dano e atribuição de um valor a ele correspondente, tal como se existisse uma tabela eis que atinge o ínfimo das pessoas, seus sentimentos pessoais de difícil aferição, o que nos faz entender que o dano estético sempre será um dano moral.

12.4.6.1 Dano moral e dano estético

O dano moral se insere na categoria de danos extrapatrimoniais, ou

seja, o dano moral é aquele que, independentemente de prejuízo material, atinge direitos personalíssimos, sendo esses quaisquer atributos individualizadores das pessoas, como, por exemplo, a imagem, liberdade, a honra, a reputação social, entre outros.

Neste sentido, destaca-se entendimento de Maria Celina de Bodin de Moraes:

O dano é ainda considerado moral quando os efeitos da ação, embora não repercutam na órbita de seu patrimônio material, originam angústia, dor, sofrimento, tristeza ou humilhação à vítima, trazendo-lhe sensações e emoções negativas. (MORAES, p. 157-158, 2003).

Já o dano estético, pode ser conceituado como sendo toda alteração

física da pessoa que abrange deformidades, marcas e defeitos, ainda que mínimos, e que causem sob qualquer aspecto um afeamento da vítima, consistindo numa simples lesão desgostante, ou num permanente motivo de exposição ao ridículo, ou ainda, de complexo de inferioridade, exercendo ou não influência sobre sua capacidade laborativa (DINIZ, p. 80, 2000).

Portanto, conclui-se que o Dano Estético se revela abrangido pelo Dano Moral, pois aquele consubstancia-se em espécie deste e, conforme atual entendimento, o Dano Estético é considerado forma autônoma de dano não patrimonial. Face a isso, tem-se que o Dano Moral seria a ofensa à pessoa passível de causar-lhe dor e sofrimento desrespeitando sua dignidade e, por outro lado, o Dano Estético seria a ofensa direta à integridade física do indivíduo que venha a causar os mesmos sentimentos negativos.

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204 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Não se deixando de olvidar que o Dano Moral pode ser causado à pessoa jurídica sendo que o Dano Estético somente pode atingir à pessoa física.

Com base no entendimento que aduz serem os danos estéticos e morais autônomos, entendeu o STJ, ao editar a súmula 387, que podem coexistir, em virtude da ocorrência de um mesmo evento, danos diversos, razão pela qual possível se faz a cumulação das duas espécies supra-aludidas.

Embora a existência do Dano Estético esteja atrelada à do Dano Moral, temos que se tratam de diferentes espécies e, face a isso, entendem nossos tribunais superiores que o Dano Estético é concreto e físico, ao contrário do Dano Puramente Moral. Outrossim, o Dano Moral atingiria a ordem psíquica da pessoa, ou seja, seu foro íntimo, não sendo visível como o é o dano estético, mas que, porém, causa na pessoa os mesmos efeitos íntimos.

12.4.6 Dano biológico

O dano biológico caracteriza-se pela diminuição da integridade

psicofísica do indivíduo, de modo que qualquer ofensa à saúde, e não necessariamente à composição morfológica da vítima, gera o chamado dano biológico. Desta forma, não é essencial para sua caracterização que transpareça no aspecto externo da vítima.

Neste cariz, insta salientar que não se restringe à limitação da capacidade laboral ou de gerar riqueza, mas abrange a totalidade das funções naturalmente exercidas pela vítima dentro de seu ambiente social, de modo que sua implicação pode ser econômica, social, estética, etc.

Não se confunde com as demais espécies de danos aqui tratados, tampouco com o dano moral, na medida em que o próprio evento danoso se consubstancia no dano biológico, mas se aproxima ao dano psicológico na medida em que deve ser passível de estimação ou apreciável do ponto de vista médico-legal (LORENZON, 2009).

A doutrina italiana, nascedouro da ideia do referido dano, o subdivide em estático e dinâmico. O primeiro caracteriza-se pela mera diminuição da integridade física, enquanto o segundo consiste nas consequências incidentes sobre as atividades laborais ou extralaborais da vítima (FACHINI NETO, 2008).

Além da diferenciação supracitada, importa consignar que o dano biológico se revela menos amplo que o dano à saúde, por isso, igualmente, não se confunde com aquele. O dano biológico, assim tomado em sentido estrito, consignar que o dano biológico se refere à lesão infligida à integridade psicossomática considerada em si mesma, enquanto sua repercussão no estado de saúde do sujeito, a alteração no seu “estado de bem-estar integral”, configuraria o dano à saúde (CAPPELARI, 2007).

No que tange ao Direito brasileiro, o artigo 5.º, X da Constituição Federal, sob interpretação ampla, permitiria o embasamento de indenização

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sob a rubrica de dano biológico, o que pode ser reforçado pela generalidade prevista no artigo 949 do Código Civil de 2002.

A jurisprudência brasileira, em maioria, não trata da espécie dano biológico como autônoma, mas a engloba no conceito de dano à saúde, como se observa nos casos de pedido de indenização por exposição a pesticidas, por exemplo. Contudo, ainda não se observa a consideração autônoma deste tipo de dano, sendo absorvido, em termos de indenização, pelo dano moral.

12.4.7 Dano a privacidade

A vida privada, que também é entendida como vida particular da

pessoa natural recebeu irrestrita proteção do inciso X do artigo 5º da Constituição Federal, tratando-se de um direito da personalidade, cuja tutela jurídica também veio a ser consagrada no artigo 21 do atual Código Civil que aduz, ser “a vida privada da pessoa natural inviolável”.

A exigibilidade de respeito ao isolamento de cada ser humano faz-se o principal elemento do direito à intimidade, que é a manifestação do direito a vida privada que outorga a todos, o denominado direito de estar só e de não ter divulgado certos aspectos de sua vida.

A privacidade seria, portanto, conforme Victor Drummond (p. 18, 2003): “A distância confortável que a pessoa mantem espontaneamente desde sua mais profunda individualidade até o mundo exterior”.

O avanço tecnológico bem como a evolução dos atuais meios de comunicação modernos são fatores predominantes para que haja uma maior incidência de violações à intimidade e a vida privada das pessoas.

Parte da doutrina entende haver certa diferenciação entre intimidade e privacidade sendo esta última mais abrangente do que a Intimidade.

Conforme Tercio Sampaio Ferraz (1993) “A intimidade é o âmbito do exclusivo que alguém reserva para si, sem nenhuma repercussão social, nem mesmo ao alcance de sua vida privada que, por mais isolada que seja é sempre um viver entre outros”.

Houve inovação pelo Código Civil de 2002 também neste aspecto eis que disciplinou a Privacidade no Diploma Privado, não se esquecendo, contudo, que não houve esgotamento da matéria nesta esfera, eis que constitui um direito humano e fundamental.

O direito à Privacidade é, portanto, um direito fundamental devidamente tutelado assim como também se faz um direito da personalidade sendo indisponível, extrapatrimonial, absoluto, intransmissível, imprescritível, impenhorável, vitalício, irrenunciável e ilimitado.

O atual código ao positivar em seu artigo 21 a Privacidade, ressaltou o caráter de essencialidade dos direitos da personalidade visando à preservação da dignidade da pessoa humana. Além disso, a lei civil prevê mecanismos de proteção, que legitimam o ofendido a solicitar medidas com esse intuito, permitindo assim, sua utilização tanto na prevenção quanto na cessação da lesão, bem como na reparação dos possíveis danos causados.

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12.4.8 Danos ocorridos nos meio de comunicações modernos Nas últimas décadas nossa sociedade passou por significativas

mudanças em seus hábitos, bem como, em especial, na forma de comunicar-se entre seus pares. Nunca houve tanta facilidade e rapidez na realização de comunicação proporcionado pelo surgimento e recente popularização da internet, além da criação de variados meios de comunicação como, por exemplo, Facebook, Whattsapp, Instagram, dentre outros.

Antes luxo de poucos, hoje, ferramenta indispensável à vida em sociedade e disponível até mesmo às classes sociais mais abastadas financeiramente graças aos benefícios oriundos da livre concorrência de mercado que, ao reduzir os custos, acabou por popularizar a internet.

Faz-se evidente que o crescimento e popularização da internet, caminho pelo qual trafegam informações com o espaço de tempo de um click, também traria incômodos face ao não acompanhamento de regramentos necessários ao convívio social.

O pseudo anonimato existente entre usuários, serve como escudo às condutas espúrias passíveis de causar danos com proporções irreparáveis ante a imensa possibilidade de disseminação das informações ali veiculadas.

O ritmo dos avanços tecnológicos é tamanho que o direito não consegue acompanhá-lo com a devida regulamentação ora necessária, deixando ao desamparo o cidadão por acaso lesado.

Não se pode deixar de olvidar que danos causados à Privacidade, Patrimônio e etc., em meios de comunicações modernos, possuem a mesma natureza dos danos causados por outros meios sendo que, o único diferencial seria o meio ora utilizado.

Ofensas irrogadas nos atuais e modernos meios de comunicação como WhattsApp, Instagram e Facebook, em nada diferem daqueles realizadas pelos meios convencionais eis que, também neste ponto, a liberdade de expressão de um não deve suplantar os direitos à honra e imagem do outro.

Assim, necessário se faz analisar os aspectos atinentes à responsabilidade civil dos usuários geradores de dano moral, bem como a eventual responsabilidade dos sites das redes sociais que viabilizam a ocorrência dessa lesão no meio virtual.

Nosso ordenamento assegura a liberdade de expressão como um dos direitos fundamentais, sendo que nossa Constituição Federal, em seu artigo 5º, IV aduz ser livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato e, concomitante à proteção da liberdade de expressão, o art. 5°, X da Constituição da República afirma que “[...] são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Com o advento das Redes Sociais e da rápida ascensão de novos meios de comunicação que podem, caso mal utilizados, disseminar injúrias, difamações, calúnias e demais ofensas com a rapidez de um click, temos que devem as pessoas que atuarem com excessos ou abusos no exercício da

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liberdade de expressão, que venham a ofender a moral, a reputação, a dignidade, imagem ou nome de algum indivíduo, serem compelidos a cessar sua atividade bem como repará-la com os meios cabíveis.

12.4.8.1 A eventual responsabilidade civil dos sites/provedores

Outro aspecto causador de divergências refere-se à possibilidade dos

sites serem responsabilizados pelo conteúdo publicado pelos usuários que porventura venham a atingir terceiros, eis que, neste caso, muito se falou em responsabilidade objetiva, subjetiva e solidária do site, não se deixando de aclarar o fato de que alguns doutrinadores entendem se tratar de relação consumerista ainda que não haja pagamento direto do internauta ao site, pois este aufere lucros com publicidade dirigida aos usuários.

A responsabilidade civil em nosso ordenamento se faz direta e, sendo assim, o indivíduo que pratica uma conduta voluntária, negligente ou imprudente, que acarrete dano à terceiro, responderá pelo prejuízo causado.

Na responsabilidade indireta, há possibilidade de se responder sem se ter causado o dano. É o que ocorre nas relações de consumo onde há aplicação do Código de Defesa do Consumidor, que atribui responsabilidade civil objetiva aos fornecedores de serviços, ou seja, conforme Sérgio Cavalieri Filho (p. 44 usque 45, 2008):

Em suma, para quem se propõe a fornecer produtos e serviços no mercado de consumo, a lei impõe o dever de segurança; dever de fornecer produtos e serviços seguros, sob pena de responder independente de culpa pelos danos que causar ao consumidor. Esse dever é imanente ao dever de obediência às normas técnicas de segurança. O fornecedor passa a ser o garante dos produtos e serviços que oferece no mercado de consumo. Aí está, em nosso entender o verdadeiro fundamento da responsabilidade do fornecedor.

Logo, a responsabilidade civil das redes sociais nesse caso é direta,

ou seja, responderia o provedor de forma objetiva por sua omissão. Entretanto, em conformidade com o atual entendimento jurisprudencial, somente nos casos de inércia dos provedores que, após instados a retirar determinadas imagens ou expressões tornam-se omissos, é que responderá também pelos danos causados. Respondem, portanto, em razão de sua própria conduta omissiva ou lenta quanto à retirada do material.

Ademais, a partir do início da vigência do Marco Civil da Internet, a proteção dos dados pessoais, bem como a privacidade dos usuários, são garantias estabelecidas em Lei, significando que estas empresas não poderão mais repassar suas informações para terceiros sem o seu consentimento expresso e livre.

Facebook, Whattsapp, Instagram, dentre outros, são os atuais meios de comunicação que tornaram os antigos meios de comunicação como jornais impressos e telejornais, defasados a ponto de, ao irem ao ar, ou ao público, estarem divulgando notícias já veiculadas anteriormente ante a

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208 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

velocidade das informações, bem como da dissipação das mesmas à sociedade.

Face a isso, esta facilidade e rapidez dos atuais meios de comunicação trouxeram grandes consequências ao direito, fato que ainda padece de maiores regramentos aptos a conter, e até mesmo reparar possíveis danos causados pelos aludidos e atuais meios de comunicações.

Existe, porém, grande dificuldade em se encontrar soluções práticas e eficientes ante a atual realidade global.

É fato que os principais direitos afetados pela rapidez e facilidade na comunicação, são aqueles relativos à Privacidade, eis que frente a uma superexposição das vidas privadas, criou-se a sensação de liberdade de agir que, aliada a sensação de impunidade acaba por criar uma série de problemas que ainda padecem de solução.

12.4.8.2 Da violação de e-mails e da responsabilidade dos provedores

No que tange a violação de e-mails, os provedores que possibilitam

o acesso dos usuários em manifesta relação de consumo, respondem objetivamente pela qualidade e segurança da conexão.

A ausência legislativa específica, suprida pela recente Lei 12.965/14, também denominada de “Marco Civil da Internet”, obrigava os magistrados a aplicarem os conceitos e diretrizes gerais da responsabilidade civil, sendo este o ordenamento aplicável à matéria digital, devendo apenas observar-se as particularidades do meio virtual ou dos demais meios convergentes.

12.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, possível traçar observações conclusivas, no

sentido de que, inegavelmente, em razão da dinamicidade social decorrente das inovações tecnológicas, filosóficas e axiológicas, as demandas indenizatórias extrapatrimoniais ganharam relevo e pululam sob os mais diversos fundamentos, vinculados à uma nova ótica existencial, os quais não se revelam ilegítimos, mas estão destituídos uma norma jurídica específica.

Os danos elencados acima evidenciam a tendência mundial da valorização da dignidade da pessoa humana, o que torna imprescindível a tutela destes interesses existenciais, vinculados à personalidade, de cunho extrapatrimonial. Tal evolução resulta da constitucionalização do direito civil, não em sua totalidade, mas, fortemente no que tange à responsabilidade civil vinculada aos interesses extrapatrimoniais.

Destarte, em especial no Brasil, tendo em vista a aplicação direta da norma constitucional às relações privadas cada vez mais frequente, mormente no que concerne à dignidade da pessoa humana, ponto demasiadamente aberto e até hoje sem uma definição inquestionável, abriu-se espaço para a tutela de interesses que, então, podem ser invocados sob a justificativa do citado valor constitucional.

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Foi possível concluir que a relevância dos novos danos abrange

desde danos passíveis de serem originados em razão da manipulação genética, até aqueles que resultariam da morte do pai de uma criança, que poderia sofrer danos existenciais, psíquicos, etc.

A desvinculação dos rubricados “novos danos” do dano moral poderia consubstanciar-se em alternativa para mais adequado. Contudo, indispensável seria a delimitação e diferenciação do que seria cada espécie, cenário que, ao menos no Brasil, revela-se distante. Ademais, por não estarem devidamente delimitados, confundem-se facilmente com o dano moral. O que se observa, em verdade, é a mescla com o dano moral, que por sua é invocado no que tange à indenização a toda hipótese de dano extrapatrimonial, sendo, em grande parte, entendidos como sinônimos.

Entrementes, inexoravelmente a demonstrada tendência mundial converge no sentido de tratar cada esfera do ser humano de modo independente, o que demandará a delimitação da esfera do dano, do que é considerado efetivamente o dano que se pretende indenizar, sua extensão, se é relevante para o Direito e passível de indenização e os limites para ressarcimento ou compensação. O que não pode ser ignorado, todavia, é a grande probabilidade de referidos danos serem incorporados ao Direito, em razão da atual configuração social e das novas relações desta originadas.

12.6 REFERÊNCIAS

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= XIII =

O ABANDONO AFETIVO À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PARA PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Taís Zanini de Sá Duarte Nunes* Thiago Alessandro Corbari**

13.1 INTRODUÇÃO

O abandono afetivo é uma triste realidade que aos poucos vem sendo

encarada pelos nossos juristas e operadores do direito, no entanto, percebe-se que a primeira barreira para enfrentar o problema não está nos tribunais – é muito mais grave –, ela se encontra em nossa cultura, pois esta arraigado o entendimento de que é aceitável a omissão e/ou negligência das prerrogativas inerentes ao dever paterno para com o filho. Todavia, verifica-se que o problema se ampliou, frente à cultura de irresponsabilidade hodierna, abarcando também o abandono materno, que, nos tempos atuais, tem se tornado cada vez mais comum, transmutando-se em uma dura realidade que deve ser enfrentada e combatida.

Assim sendo, o presente artigo busca, na medida do possível, apresentar os princípios previstos em nosso ordenamento jurídico que visam dar proteção à criança e ao adolescente como embasamento para a ação de indenização por danos morais, em virtude da obrigação dos pais de dar afeto aos filhos, que, em razão da própria natureza humana, são carentes de amparo econômico e afetivo para um desenvolvimento sadio; bem como expor quais são os danos suportados pelas pessoas que buscam a ação reparativa como amparo ao abandono subido; a fim de elucidar e fazer entender, a quem desconhece tais danos, porque os tribunais nacionais vêm acatando ações do gênero.

13.2 A FAMÍLIA E SUA EVOLUÇÃO NO CONTEXTO DO DIREITO BRASILEIRO

A análise histórico-jurídica da família brasileira demonstra que, ao

longo do tempo, ela sofreu uma série de alterações em sua concepção, sobretudo após o advento da Constituição Federal de 1988. Neste viés, faz-se necessário efetuar uma rápida e progressiva tessitura acerca das

* Mestranda em Ciências Jurídicas, linha de pesquisa: Problemas da jurisdição contemporânea

e as tendências dos instrumentos de efetivação dos direitos da personalidade, no Centro Universitário Cesumar- Maringá/PR. Especialista em direito do Estado e Relações Sociais pela PUC de Campo Grande/MS e em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera de Campo Grande/MS. Docente no Curso de Direito da Faculdade Maringá. ** Acadêmico do curso de Direito da Faculdade Maringá.

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principais mudanças em sua composição, natureza e função desde a colonização portuguesa até os dias atuais.

A priori, cabe ressaltar que a família, compreendida como um reflexo das condições morais e sociais predominantes no seio de uma sociedade, está sujeita a todas as vicissitudes e transformações que fulminam os paradigmas e fundamentos deste organismo vivo e ‘metamórfico’ que é a própria sociedade.

Com intenção de se estabelecer as primeiras linhas gerais a respeito da temática, assim como desenlear uma reflexão acerca dos marcos norteadores para o debate, faz-se pertinente trazer à baila a divisão do Direito de Família brasileiro em três importantes momentos, conforme apresenta Paulo Lôbo:

I – do direito de família religioso, ou do direito canônico, que perdurou por quase quatrocentos anos, período que abrange a Colônia e o Império (1500-1889), de predomínio do modelo patriarcal; II – do direito de família laico, instituído com o advento da República (1889) e que perdurou até a Constituição de 1988, de redução progressiva do modelo patriarcal; III – do direito de família igualitário e solidário, instituído pela Constituição de 1988 (LÔBO, 2011, p. 41). Nesse contexto, faz-se mister dar relevo ao fato de que a conquista

da autonomia legislativa brasileira não ocorreu concomitantemente à proclamação da Independência, pois, embora o texto constitucional de 1824 desse guarida para a elaboração de um Código Civil Próprio1, tal mandamento só foi concretizado com a promulgação do Código Civil de 1916, já sob a égide da Constituição Republicana. Portanto, até então, o Estado brasileiro funcionou sob o fulcro das ordenações portuguesas e/ou canônicas.

Neste viés, observa-se que a regulamentação do Direito de Família no Brasil foi, por muitos séculos, remetida ao Direito Canônico, isto porque tanto aqui, quanto nos demais territórios pertencentes ao Império Português, essa temática era considerada uma “matéria reservada ao controle da Igreja Católica, religião oficial tanto na Colônia quanto no Império”. (LÔBO, 2011, p. 41).

Cumpre ressaltar que não só as matérias estritamente familiares eram remetidas ao Código Canônico, mas também, boa parte daquelas civis, tendo em vista que “os atos e registros de nascimento, casamento e óbito eram da competência do sacerdote. Os cemitérios estavam sob controle da Igreja” (LÔBO, 2011, p. 42).

Assim sendo, vigia o entendimento paternalista, formal e hierarquizado de família, onde o homem era alçado à categoria de chefe da família e a mulher à de subordinada relativamente incapaz, ademais, só eram reconhecidos os vínculos advindos de cerimônias religiosas e estes, por sua vez, eram indissolúveis, relegando qualquer outra forma de união à margem

1 Art. 179, XVIII.

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O abandono afetivo... // 213

da sociedade e consagrando o entendimento de que tanto as ‘concubinas’ quanto “[...] os filhos eventualmente nascidos dessas relações eram ilegítimos e todas as referências legais, nesse sentido, visivelmente discriminatórias, tinham por finalidade o não reconhecimento de direitos” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 71), numa clara manifestação de um exacerbado ideal conservador que indubitavelmente refletiu na elaboração do Código Civil de 1916.

Somente com o advento da República foram subtraídas do Direito Canônico as prerrogativas de ditar o direito na seara da família, em uma tentativa estatal de diminuir a influência da entidade religiosa tida como oficial até então. Esta conjuntura pode ser observada na Seção II do Título IV – destinada à declaração de Direitos – da Constituição de 1889, onde expressamente se declarava o reconhecimento exclusivo do casamento civil (art. 72, § 4º), em detrimento daquele religioso, vedava-se a criação de qualquer vínculo, aliança ou subvenção por parte do Estado com qualquer forma de culto ou religião (art. 72, § 8º), abandonando o modelo constitucional prévio de Estado confessional, assim como estabelecia que tanto os cemitérios quanto o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos teriam caráter secular (art. 72, §§ 5º e 6º), instituindo, pelo menos formalmente, um ordenamento jurídico laico.

Entretanto, os princípios e sustentáculos da acepção vigente até então continuaram a fundamentar o Direito de Família no Brasil em virtude dos reflexos culturais e sociais que influenciaram o Código Civil de 1916, isto é, o poder marital e o pátrio poder, a exclusividade do matrimônio como requisito de legitimidade a qualquer ato ou demanda na esfera pública e a impossibilidade da sua dissolução, assim como a desigualdade entre os filhos, foram conceitos extraídos do alóctone Direito Canônico que não sofreram exorbitantes alterações e, tão somente, passaram a incorporar a legislação pátria, perpetuando o despotismo e as desigualdades, por ele consagradas, no direito de família brasileiro (LÔBO, 211, p. 43).

Nesse ambiente, foi somente ao longo do século XX, na vigência do revogado Código Civil de 1916, que a acepção de família patriarcal passou a perder consistência, isto é, a família passa a ser não apenas uma entidade em si, mas, também, um modo de olhar e interpretar as relações intersubjetivas e sociais, devendo, portanto, se sujeitar às alterações e exigências advindas da própria evolução da sociedade, assim como às premissas jurídicas e ideológicas dos incipientes direitos humanos – em sua busca por se consagrar como metodologia formal e axiológica para a elaboração e aplicação de leis no cenário mundial. (MOREIRA, 2008, p. 26).

Em decorrência da mudança do próprio paradigma social, novo tratamento jurídico foi dado à família. Assim, em uma tentativa de acompanhar esta nova era para a sociedade brasileira e para o Direito, os legisladores trataram de efetuar algumas implementações normativas no ordenamento jurídico pátrio, principalmente por meio de alguns diplomas legais autônomos.

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Paulo Lôbo se propôs a efetuar uma análise cronológica a respeito dos principais diplomas legais que alteraram o status quo ante do Direito de Família desde o início da segunda metade do século XX até o advento da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, listou três grandes alterações no campo legislativo, a saber:

I) a Lei n. 883/49, que permitiu o reconhecimento dos filhos ilegítimos e conferiu-lhes direitos até então vedados; II) a Lei n. 4.121/62, conhecida como Estatuto da Mulher Casada, que retirou a mulher casada da condição de subalternidade e discriminação em face do marido, particularmente da odiosa condição de relativamente incapaz; III) a Lei n. 6.515/77, conhecida como Lei do Divórcio, que assegurou aos casais separados a possibilidade de reconstituírem suas vidas, casando-se com outros parceiros, rompendo de uma vez a resistente reação da Igreja, além de ampliar o grau de igualdade de direitos dos filhos matrimoniais e extramatrimoniais (LÔBO, 2011, p. 43).

Em que pese o fato dessas alterações legislativas terem por intenção

diminuir a influência do sistema religioso e patriarcal, foi somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que o Direito de Família adquiriu um caráter verdadeiramente igualitário e solidário, abolindo de uma vez por todas a desigualdade entre os filhos – legítimo ou não - e cônjuges – homem e mulher.

Luiz Edson Fachin também traz à luz importantes alterações conceituais no parâmetro social e familiar provocadas, principalmente, pela influência dos novos moldes da contemporaneidade, asseverando que:

Da família patriarcal, matrimonializada e hierarquizada, os moldes contemporâneos abrem a noção para além de casamento civil ao do religioso com efeitos civis, apreendendo a união livre, a união estável e a monoparentalidade. Elasteceu o conceito impulsionado pelas mudanças históricas (FACHIN, 1999, p. 40).

Como consequência desta progressiva visão sobre o Direito de

Família, urgia a necessidade de se elaborar um novo diploma legal, que cingisse os inúmeros princípios promulgados pela Constituição Federal, principalmente aqueles elencados em seu Título VIII, capítulo VII – destinado à Família, à Criança, ao Adolescente, ao Jovem e ao Idoso – e, então, viesse a endossar a nova roupagem outorgada à entidade familiar.

Assim sendo, além de impor o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, a matéria agora compreendida entre os artigos 226 a 230 da Constituição Federal, implantou numerosos outros princípios axiológicos e objetivos a serem observados pelo legislador, no momento em que se enveredar a algum labor que verse sobre Direito de Família.

A família, portanto, passou a ser compreendida como uma entidade igualitária, solidária, afetiva e ética, neste aspecto, de forma sucinta e não

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O abandono afetivo... // 215

taxativa, pode-se elencar como princípios primordiais alçados à categoria Constitucional (FARIAS, 2007, p. 21):

I) Função Social da Família, enquanto núcleo e sustentáculo da sociedade; II) Igualdade, compreendendo tanto a ampliação das formas de constituição da entidade familiar que, antes limitada ao casamento, agora passou a abranger também aquelas oriundas da união estável e as monoparentais, reconhecendo, assim, a pluralidade de núcleos familiares presentes nas sociedades contemporâneas. Seguindo esta linha progressiva, reconheceu-se a imprescindível igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres na sociedade conjugal, estendendo-se, também, aos filhos, que passaram a usufruir dos mesmos direitos, independentemente de sua origem, seja ela matrimonial ou extramatrimonial, biológica ou adotiva; III) Possibilidade de divórcio, podendo ocorrer, inclusive, extrajudicialmente; IV) Boa-fé objetiva V) Planejamento Familiar VI) Paternidade Responsável VII) Solidariedade Familiar

VIII) Melhor Interesse da Criança e do Adolescente. Seguem nesse sentido as reflexões da Justificativa do Projeto de Lei

nº 2.285/07: Nenhum ramo do Direito foi tão profundamente modificado quanto o direito de família ocidental nas três últimas décadas do século XX. A partir da Constituição de 1988 operou-se verdadeira revolução copernicana, inaugurando-se um paradigma familiar inteiramente remodelado, segundo as mudanças operadas na sociedade brasileira, fundado nos seguintes pilares: comunhão de vida consolidada na afetividade e não no poder marital ou paternal; igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges; liberdade de constituição, desenvolvimento e extinção das entidades familiares; igualdade dos filhos de origem biológica ou socioafetiva; garantia de dignidade das pessoas humanas que a integram, inclusive a criança, o adolescente e o idoso (GAGLIANO; PLAMPONA FILHO, 2014, p. 75).

Acrescentam-se nessa reflexão as relevantes considerações feitas

por José Sebastião de Oliveira, que acabam por culminar nesse mesmo sentido:

A família passou, ao longo dos tempos, principalmente no final do século passado e durante o transcorrer deste século, pelas maiores mudanças jamais vistas e que acabaram por lhe conferir a sua atual, constitucional e contemporânea estrutura. Assim, a evolução econômica trouxe, também, a evolução social e, via de consequência, a alteração na concepção de família (OLIVEIRA, 2002, p. 77).

Não obstante as contradições e conflitos inerentes à própria natureza

da entidade familiar, assim como as recapitulações e mudanças ocorridas, é

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216 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

indiscutível que a família ainda se constitui em um elemento imprescindível para o desenvolvimento pleno do ser humano, interferindo na sua sociabilidade, afetividade, realização pessoal e, inclusive, em seu desenvolvimento físico e psíquico.

À vista disso, conclui-se que “a família atual busca sua identificação na solidariedade (art. 3.º, I, da Constituição), como um dos fundamentos da afetividade, após o individualismo triunfante dos dois últimos séculos” (LÔBO, 2008, p. 12) e vem adquirindo uma nova dimensão jurídica, por meio da filtragem constitucional, tendo em vista que “é preciso ter em mente que o direito à constituição da família é um direito fundamental, para que a pessoa concretize a sua dignidade” (TARTUCE, 2014, p. 22).

Ainda neste viés, segue o pensamento de Flávio Tartuce, asseverando que:

Diante de todas essas alterações históricas e estruturais, pode-se afirmar que há um Novo Direito de Família. Mais do que nunca, vale repetir, deve-se estudar esse ramo jurídico tendo como parâmetro os princípios constitucionais encartados no Texto Maior. Isso é amplamente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência contemporâneas (TARTUCE, 2014, p. 22).

Dando prosseguimento a este raciocínio, extraem-se duas

importantes conclusões: Primeiramente, a de que os próprios sustentáculos e princípios que regiam e davam sentido à entidade familiar foram alterados e, portanto, esta nova modalidade de funcionamento deve ser compreendida e levada em consideração ao se tecer qualquer reflexão acerca do tema. Enquanto que, secundariamente, é possível observar que o Direito, como um todo, passou a sofrer reformas, como efeito do fenômeno do constitucionalismo contemporâneo, em busca de uma maior realização do ser humano, a fim de proporcionar o seu desenvolvimento pleno e o exercício de sua dignidade de forma integral.

13.3 O DIREITO DE FAMÍLIA E SEU RESPECTIVO AMOLDAMENTO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS EM PROTEÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Inicialmente, é importante salientar que a Constituição Federal de

1988 foi a primeira na história do constitucionalismo brasileiro a consagrar expressamente o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do próprio Estado, situando-o já na parte inaugural do texto, subitamente após o preâmbulo, e, assim, dotando-o de grande relevância para a interpretação de todas as normas jurídicas.

Deste modo, pode-se afirmar que tal princípio passa a impor-se de forma cogente, como uma espécie de “premissa básica”, fundamental, a ser levada em consideração por todo e qualquer jurista e/ou interprete da lei.

Neste viés, levando-se em consideração o fato da norma fundamental se constituir na norma jurídica de maior nível hierárquico no ordenamento

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O abandono afetivo... // 217

jurídico nacional, “[...] poderia se pensar que o simples fato de ser promulgada uma Constituição fundada na dignidade da pessoa humana seria suficiente para provocar uma verdadeira revolução no Direito Civil e, como parte deste, nas relações familiares” (LAURIA, 2002, p. 23). Entretanto, na prática, verifica-se que a “[...] manutenção de certos conceitos e institutos construídos sob o império do paradigma liberal” (LAURIA, 2002, p. 24), ainda se impõem como obstáculo para uma interpretação expansiva e ampla das leis, desacelerando, quando não barrando absolutamente, vários avanços na seara civil.

Nota-se que, embora sejam muitas as conquistas promovidas pela Constituição Federal de 1988, ainda vige, de forma tácita, o entendimento de que “[...] as relações privadas são reguladas por leis, com base em técnica legislativa fundada em tipos, casuísticas e, via de regra, excluídos os princípios, sendo inaplicáveis as normas constantes da Constituição da República” (LAURIA, 2002, p. 24). Trata-se de uma abordagem errônea e atemporal, resquício do positivismo puro predominante em épocas passadas e que acaba por desfigurar a verdadeira finalidade do Direito.

As causas e consequências desse resistente fenômeno devem ser interpretadas sob a luz de inúmeros aspectos filosóficos, jurídicos e sociais, dignos de dissertações por si só, portanto, optar-se-á por expor tão somente a conclusão proposta por esta linha argumentativa, isto é, a de que o modelo adotado pela Constituição não tem como função exclusiva limitar o legislador infraconstitucional, mas, também, visa “[...] conformar todo o ordenamento aos valores e princípios consagrados em seu texto, atribuindo, a par do aspecto formal, um aspecto substancial a implicar na releitura do Código Civil [...] à luz da Constituição da República” (PERLINGIERI, 1997, p. 10).

Assim sendo, rejeita-se a premissa base de que o Direito Civil não se constitui num campo fértil e habilitado para a aplicação de princípios, aliás, muito pelo contrário, defende-se a ideia de que negar a sua aplicação às relações privadas, em um cenário no qual se apresenta uma Constituição eivada de princípios, constitui vitupério à própria supremacia constitucional, subvertendo a ordem jurídica a um entendimento de que as normas constitucionais não gozam de eficácia, na contramão de qualquer interpretação contemporânea de Direito.

Num primeiro momento, aderindo-se a uma interpretação constitucional e contemporânea do Direito, a primeira tarefa com a qual nos deparamos ao tentar fazer uma exegese do direito brasileiro diz com o significado e alcance do vocábulo “princípio”. Etimologicamente, a palavra deriva do termo latino Principium, traduzindo-se no “[...] ponto de partida e fundamento de um processo ou procedimento qualquer” (DELGADO, p. 803) ou, ainda, como sendo “[...] o primeiro momento da existência de algo” (HOUAISS, 2001, p. 2299).

Nesta medida, os princípios atuam como “[...] proposição elementar e fundamental que serve de base a uma ordem de conhecimentos” (HOUAISS, 2001, p. 2299), entretanto, seu significado não se esgota nesta noção de causa primeira ou incipiente que dá base a algo, mas, sim, se

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218 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

relaciona e é complementado pela ideia de “[...] proposição lógica fundamental sobre a qual se apoia o raciocínio” (HOUAISS, 2001, 2299). Deste modo, os princípios adquirem um papel fundamental na “[...] compreensão, reprodução ou recriação de determinada realidade” (DELGADO, 2011, p. 180). Além de se perfazerem em proposições fundamentais e ideais – resultantes de determinado contexto político, cultural ou religioso – que se reportam à realidade como diretrizes de condutas, os princípios seriam elementos componentes da visão de mundo essencial que caracteriza as pessoas e grupos sociais, resultando de suas práticas cotidianas e sobre elas influindo (DELGADO, 2011, p. 180).

13.3.1 Princípio da igualdade

Deve-se reconhecer que o princípio da igualdade trouxe as mais

profundas transformações no direito de família, pois, com a consagração deste princípio, estabeleceu-se, entre outras coisas, a isonomia entre homens e mulheres, assim como a impossibilidade em se estabelecer qualquer tipo de tratamento diferenciado entre filhos biológicos, sejam eles oriundos do casamento ou não, e adotivos.

A ascensão deste princípio à categoria constitucional também estendeu benefícios a todas as relações afetivas, tendo em vista que o casamento, seja ele civil ou religioso, já não se constitui em um elemento imprescindível para que seja aplicado o devido tratamento jurídico às pessoas que compartilham suas vidas entre si e colaboram no atendimento às necessidades do grupo familiar.

A esse respeito, Paulo Lôbo discorre com lucidez: Após a Constituição de 1988, que igualou de modo total os cônjuges entre si, os companheiros entre si, os companheiros aos cônjuges, os filhos de qualquer origem familiar, além dos não biológicos aos biológicos, a legitimidade familiar desapareceu como categoria jurídica, pois apenas fazia sentido como critério de distinção e discriminação. Neste âmbito, o direito brasileiro alcançou muito mais o ideal de igualdade do que qualquer outro (LÔBO, 2011, p. 66).

Assim sendo, o princípio da igualdade representa o respeito às

diferenças, ao mesmo tempo em que afasta das políticas públicas os aspectos morais e doutrinários da fé cristã para legitimação das relações sociais, aproximando o Estado de uma composição laica, onde se proporciona maior relevância aos aspectos afetivos frente àqueles formais. Portanto, são legalmente extintas quaisquer distinções quanto à origem do vínculo filial, bem como entre as entidades familiares e seus componentes, consubstanciando uma verdadeira conquista em busca da igualdade material para a sociedade brasileira.

Seguem nesse viés as reflexões de Maria Berenice Dias, ao afirmar que:

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O abandono afetivo... // 219

É imprescindível que a lei em si considere todos igualmente, ressalvadas as desigualdades que devem ser sopesadas para prevalecer a igualdade material em detrimento da obtusa igualdade formal. É necessária a igualdade na própria lei, ou seja, não basta que a lei seja aplicada igualmente para todos (DIAS, 2009, p. 64).

Enfim, “[...] o conceito de família se abriu, indo em direção a um

conceito mais real, impulsionado pela própria realidade e pelos avanços da contemporaneidade” (PEREIRA, 2003, p. 8), onde a igualdade e a solidariedade entre seus membros adquirem uma importância primordial na consecução e promoção da dignidade da pessoa humana e, em decorrência disto, observa-se a ocorrência de um redimensionamento das funções da entidade familiar – que será agora objeto de análise (LISBOA, 2012, p. 24).

13.3.2 Princípio da função social da família

A Constituição Federal de 1988 consagrou o princípio da função

social da família, tendo em vista o reconhecimento de que sendo a base da sociedade, indubitavelmente, possui grande influência na vida dos indivíduos que dela advém, conforme observa Paulo Roberto Monteiro do Prado: “[...] a família é um dos principais organismos responsáveis pela fixação de valores sociais, sendo berço incontestável da sociedade, este que talvez seja o mais antigo organismo social” (PRADO, 2015, p. 66).

As mudanças na formação e conceituação da família, abandonando-se a acepção tradicional, hierárquica e patriarcal para um modelo “[...] descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado” (FARIAS, 2004, p. 59), provocam o reconhecimento de princípios como o da mútua assistência, do afeto, do amor e da cooperação.

Desta forma, além da sua composição, a família sofreu alterações em seu escopo e atuação, entendendo-se que seus membros “[...] trabalham em igualdade de direitos, princípios, valores e oportunidades, em uma atmosfera que visa ao crescimento e à fortificação da unidade familiar” (MADALENO, 2007, p. 116), retratando um processo que busca promover a igualdade e a dignidade entre seus membros, em um “[...] espaço para a realização pessoal afetiva, no qual os interesses patrimoniais perderam seu papel de principal protagonista” (LÔBO, 2009, p. 12).

É nesse contexto que a função social da família deve ser analisada, no sentido de que, após a Constituição brasileira de 1988, ela passou a ser uma entidade que “[...] tem deveres perante seus membros, e por eles pode responder em juízo” (BITTAR,1989, p. 77).

Assim, numa perspectiva constitucional, o princípio da função social da família manifesta o entendimento de que o ambiente familiar se constitui em um espaço onde cada um dos seus membros “[...] busca a realização de si mesmo, [...], seu próprio bem-estar” (VILLELA, 1997, p. 72), adquirindo um importante papel social, pois, “[...] em seu seio, opera-se o segundo nascimento do homem, ou seja, o seu nascimento como personalidade

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sociocultural, depois do seu ‘primeiro nascimento’ como indivíduo físico” (COELHO, 2008, p. 101 apud GAGLIANO, 2014, p. 112).

A família, portanto, se consiste no primeiro elo de integração entre os aspectos subjetivos do indivíduo e o mundo exterior, ou melhor, a própria sociedade. O devido respeito à dimensão existencial de cada um dos seus integrantes deriva da aplicação direta dos princípios e direitos fundamentais esculpidos na Constituição Federal e do decorrente processo de repersonalização do direito, tendo em vista que a família contemporânea já não pode ser concebida como um fim em si, mas, sim, como uma entidade responsável pela garantia e promoção da dignidade humana, tal como o Estado (GAMA, 2008, p. 29).

Adotando-se uma abordagem ainda mais ampla, pode-se considerar que a dignidade da pessoa humana se caracteriza como “[...] um parâmetro que eleva alguns direitos elencados entre os artigos 226 a 230 à categoria de fundamentais, principalmente quando envolvem direitos das crianças e dos adolescentes” (GAMA, 2007, p. 37), tendo em vista a fragilidade e hipossuficiência destes sujeitos de direito.

Portanto, de fato, além de instituição, a família passou a ser um instrumento, “[...] um meio para a realização de nossos anseios e pretensões” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 113), exercendo a “[...] função de locus de afetividade e da tutela da realização da personalidade das pessoas que as integram” (LÔBO, 2002, p. 22).

Desta forma, diante dessa nova abordagem jurídico-política consagrada pela Constituição Federal, a família “[...] deve ser protegida na medida em que atenda à sua função social, ou seja, na medida em que seja capaz de proporcionar um lugar privilegiado para a boa vivência e dignificação de seus membros” (GAMA, 2007, p. 36).

Nesse contexto, é possível concluir que tem ocorrido um processo de ‘humanização’ do Direito, onde estão sendo cromatizadas uma série de princípios éticos e morais que buscam oxigenar as gélidas relações individualistas oriundas do abismo humano e filosófico da pós-modernidade.

É, portanto, em face desse escopo que a função social da família foi alçada à categoria de princípio constitucional2, como forma de integração social, ou melhor, uma maneira de promover a solidariedade nos indivíduos desde o seio familiar, possibilitando que tal acepção se refletisse em toda a ordem social e fizesse com que “[...] a consciência do povo tomasse um traço irrevogável de permanência e destinação comum” (BONAVIDES, 2001, p. 90) rumo à uma sociedade justa e fraterna.

13.3.3 Princípio da solidariedade

O reconhecimento da importância da solidariedade social no seio da

sociedade civil e a consequente conclusão de que todas as pessoas são responsáveis umas pelas outras, em uma nítida negação ao individualismo,

2 Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre justa e solidária.

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fez com que a Constituição Federal de 1988 elencasse-o como um nobre objetivo à sociedade brasileira. Nesse sentido, cumpre ressaltar que o anseio pela construção de uma sociedade solidária faz parte da lista de objetivos mais prementes da República Federativa do Brasil, de modo tal que a solidariedade vem alçada à categoria de princípio constitucional, como um dos primeiros objetivos, ainda abstratos, a serem alcançados.

Esse processo de valorização dos vínculos sociais e afetivos permeia as normas jurídicas de um conteúdo ético do qual o Direito outrora se encontrava despido – principalmente durante as fases estritamente positivistas – e reflete o entendimento atual de que “[...] a pessoa só existe enquanto coexiste” (DIAS, 2007, p. 63).

Neste viés, importa consignar que, além de possuir assento em nosso direito constitucional positivo, o princípio da solidariedade se constitui em um preceito ético universal “[...] umbilicalmente ligado aos direitos fundamentais, [...], com vista à proteção de outros direitos” (SARLET, 2012, p. 79), fundamentando diversas demandas jurídicas.

Do mesmo modo, aponta Maria Berenice Dias: O princípio da solidariedade tem assento constitucional, tanto que seu preâmbulo assegura uma sociedade fraterna. Também ao ser imposto aos pais o dever de assistência aos filhos (CF 229), consagra-se o princípio da solidariedade. O dever de amparo às pessoas idosas (CF 230) dispõe do mesmo conteúdo solidário. A lei civil consagra o princípio da solidariedade ao dispor que o casamento estabelece plena comunhão de vidas (CC 1.511). Igualmente a obrigação alimentar dispõe deste conteúdo (CC 1.694) (DIAS, 2007, p. 63).

Na concepção adotada por Fabiola Albuquerque, deve-se entender

que “[...] como corolário da dignidade da pessoa humana tem-se o princípio da solidariedade, o qual enfeixa as relações familiares e como tal serve de base fundante ao chamado fenômeno da repersonalização” (ALBUQUERQUE 2006, p. 348).

Assim sendo, pode-se dizer que o reconhecimento do princípio da solidariedade enseja o escopo estatal de buscar o equilíbrio entre interesses sociais, coletivos e individuais, possibilitando com que a dignidade da pessoa humana seja promovida em todos os estratos da sociedade.

Em face da complexidade do princípio em trato, faz-se oportuna a definição de Rolf Madaleno no que pertine à sua aplicabilidade no Direito de Família:

A solidariedade é princípio e oxigênio de todas as relações familiares e afetivas, porque esses vínculos só podem se sustentar e se desenvolver em um ambiente recíproco de compreensão e cooperação, ajudando-se mutuamente sempre que se fizer necessário (MADALENO, 2011, p. 90).

Destarte, haja vista os diversos desdobramentos operados pela

Constituição Federal de 1988, pode-se concluir que

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222 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

[...] o princípio da solidariedade propôs o abandono de tal visão individualista para, em seu lugar, ser empregado um modelo que representa a solidariedade, a cooperação solidária, de ambos os pais na formação e no desenvolvimento físico, psíquico e intelectual do filho comum (GAMA, 2008, p. 75).

Seguindo esta linha de raciocínio, tem-se que “[...] a feição e o

respeito, como elementos integrantes do princípio da solidariedade familiar, são os vetores que indicam o dever de cooperação mútua entre os membros da família [...] para os fins de assistência imaterial e material” (LISBOA, 2006, p. 61). Desta maneira, a assistência material ou patrimonial, assim como a psicológica ou afetiva, constituem elementos imprescindíveis para a caracterização da solidariedade familiar.

Com base no exposto, verifica-se que a entidade familiar contemporânea não pode ser reduzida à simples união entre pessoas, ela deve contemplar aspectos muito mais amplos e subjetivos, que devem ser construídos e mantidos reciprocamente, tais como o zelo, o cuidado e a dedicação de todos os seus membros em proporcionar autonomia e liberdade aos seus integrantes, ofertando, principalmente aos mais vulneráveis, os requisitos mínimos para a sua subsistência e desenvolvimento psicofísico, englobando muito mais do que a prestação de alimentos, vestuário e moradia, mas, também, carinho, educação escolar e moral, atenção e afeto.

Roberto Lisboa partilha deste mesmo entendimento e considera que, independente dos padrões culturais e morais de cada entidade familiar, existem elementos indispensáveis que não podem ser negligenciados, nesse sentido, posiciona-se:

Há um mínimo a ser preservado: os direitos personalíssimos de cada integrante da família, sua subsistência e a concessão de auxílio para que se possa ter a oportunidade de se atingir o nível de desenvolvimento esperado pelo interessado. Enfim, a assistência material e imaterial entre os membros da entidade familiar devem sempre se fazer presentes nas relações jurídicas existentes” (LISBOA, 2006, p. 47).

Em última análise, partindo de uma perspectiva solidária, percebe-se

que não há dúvidas de que a responsabilidade familiar envolve especial atenção às dificuldades psicológicas, econômicas e sociais de seus membros, principalmente quando ocorrer alguma espécie de evento traumático no seio familiar que possa pôr em risco a integridade psicofísica destes.

13.3.4 Princípio do planejamento familiar, da paternidade responsável e da boa-fé objetiva

Ao se atentar ao princípio do planejamento familiar, observa-se que

se trata, primariamente, de uma norma constitucional de prestação negativa, tendo em vista que é um direito à não intervenção estatal, ou, ainda, privada

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O abandono afetivo... // 223

na liberdade e autonomia do casal em optar por reproduzir-se ou não, garantindo-se, ao mesmo tempo, que este direito seja exercido de forma livre e independente por estes, bem como inibindo qualquer política pública que anseie, tácita ou abertamente, promover alguma espécie de controle demográfico ou étnico que possa caracterizar uma postura eugênica ou, ainda, incidente no crime de genocídio.

Nesse sentido, como bem salienta Valéria Silva Galdino Cardin, o princípio do planejamento familiar implica na possibilidade de se exercer “[...] um ato consciente de escolher entre ter ou não filhos de acordo com seus planos e expectativas” (CARDIN, 2009, p. 06).

Segundo Hegel, para defender o homem se precisa extrair, da sua experiência contemporânea e da observação da história, alguns princípios dedutivos básicos e estes, por sua vez, devem nortear as políticas públicas para que a liberdade, tanto em sua dimensão individual como coletiva, não seja comprometida. Em prol desta ideia, o filósofo assevera: “A família é o lugar em que, graças a seu ambiente específico, a personalidade se constitui. Isso significa que plena independência deve ser concedida a ela, livrando-a de regulamentações estatais que interfeririam no seu modo de funcionamento” (HEGEL, 2010, p. 12).

Entretanto, cumpre ressaltar que o caráter essencial desse princípio não se resume a esta impossibilidade de intervenção por parte do Estado ou agentes privados, requer-se também, para a sua concretização, que sejam tomadas medidas positivas pela entidade estatal no sentido de dotar os indivíduos de informações sobre o tema, assim como de aspectos científicos, farmacêuticos e práticos que possibilitem que a escolha ocorra de forma consciente e responsável (REIS, 2008, p. 427).

Paralelamente à liberdade e proteção dada ao exercício do planejamento familiar, “[...] é possível extrair da ratio constitucional uma opção pela responsabilidade familiar como princípio norteador das relações familiares” (FARIAS, 2011, p. 55), pois, por mais que a Constituição tenha optado por uma política de não intervenção no controle de natalidade, ela estipulou3, contundentemente, que o planejamento familiar deve ser fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, estimulando, assim, uma postura mais madura por parte dos genitores com relação à sua prole.

Assim sendo, é possível afirmar que estas diretrizes estipuladas pelo Estado brasileiro visam evitar com que núcleos familiares sejam formados sem nenhuma espécie de base ou condição, tanto econômica quanto psicológica, que garanta seu sustento e manutenção.

A adoção desta concepção também decorre da nova abordagem jurídica dada à família e aos seus membros, principalmente às crianças, que deixaram de figurar como meros objetos de seus pais para adquirirem o status de ‘sujeitos de direito’; uma verdadeira pessoa em desenvolvimento, vulnerável e digna de proteção integral.

3 Art. 126, § 7º, CF.

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Atualmente, portanto, a responsabilidade dos pais não se limita à concepção, tampouco ao mero fornecimento dos subsídios materiais necessários à manutenção da vida, mas ampara, também, todos os demais aspectos psicofísicos imprescindíveis para o desenvolvimento pleno e integral dos filhos. Assim sendo, frente à evolução moral e ética da sociedade, “[...] o direito da dignidade se projeta para a pessoa concebida” (LOURENZON, 2010, p. 109), suscitando a gênese de uma interpretação extremamente revolucionária no que se refere à procriação humana, se comparada àquela de poucos séculos atrás.

À sua vez, o princípio da paternidade responsável também se relaciona ao objetivo geral de proteção integral da criança, tendo em vista que ele busca resguardar o convívio familiar, visando colocar a criança a salvo de qualquer espécie de negligência, discriminação, exploração, violência ou crueldade, impondo aos pais a devida responsabilidade para com seus filhos.

A previsão legal do princípio sob análise aparece no § 7º do art. 226 da Constituição Federal, muito embora ele possa ser inferido no art. 229 deste mesmo documento, vez que se estabelece o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, o que, em ultima ratio, é a dimensão ontológica desta cláusula normativa. Não se trata, pois, de limitar a quantidade de filhos havidos pelo casal, mas, sim, de assegurar com que os pais atentem a todas as necessidades materiais e psicológicas da criança e do adolescente (FACHIN, 1999, p. 241).

Com relação ao termo “paternidade responsável”, dando-se especial relevância ao princípio da igualdade de direitos e deveres entre o homem e a mulher na sociedade conjugal, entende-se que deva sofrer uma interpretação extensiva, diluindo-se entre ambos os pais, e, não apenas ao “pai”, como muitos acreditam, pois, o ofício deve ser exercido de forma diárquica (OLIVEIRA, 2002, p. 122).

Conclui-se, portanto, que o planejamento familiar e a paternidade responsável constituem direitos-deveres imprescindíveis para a manutenção de núcleos familiares saudáveis e, in lato sensu, da própria sociedade, visto que a família, como já assertava Nélson Hungria, é a Instituição Fundamental do Estado (HUNGRIA, 1954, p. 377), a célula mater de qualquer sociedade, o seio no qual seus integrantes se desenvolvem, convivem e aprendem as primeiras noções de respeito, direito, dever, amor e equidade, em suma, todas as virtudes morais, éticas e cívicas que possibilitarão sua convivência na sociedade de forma construtiva.

Ainda nesse contexto, impera ressaltar que não se pode conceber o Direito sem que se leve em consideração a boa-fé e, sob este influxo, este princípio deve ser aplicado precipuamente às relações familiares. Desta forma, mesmo abstraindo todas as significações que poderiam ser atribuídas à perspectiva subjetiva do conceito de família, o fato dela constituir o ligame essencial entre o indivíduo e a sociedade já seria, por si só, motivo suficiente para que seus integrantes atentassem fielmente ao princípio da boa-fé. Trata-se do apanágio, um princípio geral, tanto da Constituição quanto do Código Civil, assim como das demais normas jurídicas.

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O abandono afetivo... // 225

13.3.5 Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente

A incorporação do princípio do melhor interesse da criança e do

adolescente no ordenamento jurídico nacional passou pela adoção da doutrina de proteção integral da criança, que busca, em linhas gerais, promover uma efetiva proteção da dignidade e da personalidade dos menores, motivada, em especial, pela condição de vulnerabilidade, fragilidade e dependência incidente nestes agentes, sobretudo devido ao período de desenvolvimento pelo qual perpassam (AMIN, 2010, p. 11).

Assim sendo, verifica-se enorme lucidez nas palavras de José Sebastião de Oliveira ao afirmar que o direito de família contemporâneo se conformou à uma nova interpretação jurídica, vez que a família aderiu a um papel funcional, e passou a “[...] potencializar o pleno desenvolvimento educacional, sentimental, afetivo e profissional do indivíduo” (OLIVEIRA, 2002, p. 69). Aboliu-se, portanto, aquela “[...] subordinação estanque dos filhos aos pais” (RIZZARDO, 2004, p. 15), advinda do Direito Romano, para se assimilar a uma “[...] completa inversão de prioridades, nas relações entre pais e filhos, seja na convivência familiar, seja nos casos de situações de conflitos, como nas separações de casais. O pátrio poder existia em função do pai; já o poder familiar existe em função e no interesse do filho” (LÔBO, 2011, p. 75).

É, portanto, em vista desta proteção integral que a responsabilidade pela proteção dos interesses dos infantes e dos jovens atinge a esfera familiar, assim como a transcende e passa a ser, também, um dever do Estado e da sociedade civil.

Dito isso, faz-se imperioso desconstruir qualquer argumentação que verse no sentido de que tem ocorrido um processo de “endeusificação” da criança e do adolescente, verdade seja dita, a proteção integral à criança e ao adolescente nada mais é do que um fenômeno de coadunação dos mais variados princípios constitucionais, dado que, inicialmente, com todos os métodos anticoncepcionais disponíveis, se pressupõe que esta pessoa seja fruto de um planejamento familiar e, assim sendo, deve receber todos os cuidados necessários para o seu desenvolvimento e amadurecimento. Ora, a criança não optou autonomamente por seu nascimento e não deve pagar pela suposta irresponsabilidade de seus genitores com a negligência, displicência, falta de interesse e indiferença dos mesmos.

Além disso, a partir do momento em que se dá o parto com vida, ela se torna sujeito de direitos, devendo receber o devido amparo estatal e familiar, tal como qualquer outro cidadão. É atemporal qualquer argumento que vise tolher da criança o seu estado de incapacidade, inocência e incompletude, a criança é um ser que requer atenção, cuidado e carinho, dotado de dignidade, e não pode ser vista como um mero dissabor oriundo de uma relação sexual impulsiva sob a qual não se implicam responsabilidades.

Para além disso, tão significante quanto refletir sobre os direitos e deveres dos pais com relação à criança, impera dar realce ao fato de que

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226 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

nenhum princípio possui caráter de absolutividade e, apesar do tema ser notório, é imprescindível assegurar que não se busca, com a defesa da norma jurídica em comento, abrir espaço para injustiças ou violações de direitos de outras pessoas, o que ocasionalmente pode ser arguido nos tribunais. O que se busca é estabelecer certa proporcionalidade e equidade nas relações familiares.

A criança e suas necessidades devem ser levadas em consideração de forma primordial, mas, ao mesmo tempo, “[...] o princípio é de prioridade e não de exclusão de outros direitos ou interesses” (BRUÑOL, 1997, p. 8), assim sendo, não se advoga aqui que os pais devem renunciar à própria comida para que possam proporcionar ao filho o acesso ao lazer, mas, sim, que muitas vezes, como, por exemplo, nos casos de separações, os pais levem mais em consideração os interesses e necessidades dos filhos – que vão além das materiais – do que seu orgulho ou apatia pelo ex-cônjuge.

Superada esta interposição, faz-se pertinente ressaltar que o princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente não consiste em uma mera recomendação ética no que tange às relações havidas entre pais, filhos e o Estado, mas sim, em uma diretriz objetiva que deve funcionar como “[...] critério significativo na decisão e na aplicação da lei” (FACHIN, 1996, p. 125), “[...] determinando a primazia das necessidades da criança e do adolescente como critério de interpretação da lei, deslinde dos conflitos, ou mesmo para elaboração de futuras regras” (AMIN, 2010, p. 28).

Já no que se refere à sua positivação e reconhecimento jurídico, conforme apontam as assertivas de Paulo Lôbo:

No direito brasileiro, o princípio encontra fundamento essencial no art. 227, que estabelece ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente “com absoluta prioridade” os direitos que enuncia. Por sua vez, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, com força de lei no Brasil desde 1990, estabelece em seu art. 3.1 que todas as ações relativas aos menores devem considerar, primordialmente, “o interesse maior da criança”. Por determinação da Convenção, deve ser garantida uma ampla proteção ao menor, constituindo a conclusão de esforços, em escala mundial, no sentido de fortalecimento de sua situação jurídica, eliminando as diferenças entre filhos legítimos e ilegítimos (art. 18) e atribuindo aos pais, conjuntamente, a tarefa de cuidar da educação e do desenvolvimento. O princípio também está consagrado nos arts. 4º e 6º da Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) (LÔBO, 2011, p. 76-77).

Portanto, considerando as naturezas formais dos documentos que

reconhecem o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, verifica-se que sua implicação “[...] irradia para todo o ordenamento jurídico pátrio, a orientar tanto as decisões judiciais, quanto a atividade legislativa” (LAURIA, 2002, p. 35). Assim sendo, “[...] não se pode admitir que qualquer dispositivo normativo infraconstitucional ou decisão judicial pretenda dar a uma questão envolvendo interesses de crianças solução que não atenda à prioridade posta no princípio” (LAURIA, 2002, p. 35).

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O abandono afetivo... // 227

Conclui-se que o princípio do melhor interesse da criança e do

adolescente resulta em um dever por parte do Estado, da sociedade e, principalmente, da família de prestar a devida assistência material a estes sujeitos, mas, também, implica na responsabilidade de contribuir para a promoção da dignidade humana dos mesmos, englobando aspectos intelectuais, morais, afetivos e psicológicos imprescindíveis para a construção de seres saudáveis e íntegros.

Assim sendo, “[...] os cuidados especiais que recaem sobre a criança decorrem do peculiar momento de sua formação, cujas consequências podem ser irreversíveis e vão influenciar seu comportamento durante toda a vida” (LAURIA, 2002, p. 32).

Na seara jurídica contemporânea, o afeto conquistou o status de preceito jurídico juntamente com a evolução da família e da sociedade, haja vista que ele passou a ser o principal elemento de formação e manutenção da entidade familiar, em um viés antagônico àquela formação religiosa, econômica, com fins estritamente procriativos de outros tempos. Hodiernamente, portanto, conforme aduz Paulo Lôbo, o afeto é “[...] o único elo que mantém pessoas unidas nas relações familiares” (LÔBO, 2009, p. 462).

Deste modo, no percalço de Maria Berenice Dias, a nova ordem jurídica familiar atribui ao afeto um valor fundamental, tão imprescindível às relações familiares quanto a vontade recíproca que dá base aos contratos (DIAS, 2015, p. 90).

De maneira mais incisiva, José Sebastião de Oliveira afirma que “[...] a família só tem sentido enquanto unida pelos laços de respeito, consideração, amor e afetividade” e conclui sua assertiva dizendo que “[...] não havendo mais afetividade, não existe razão para a manutenção, aos olhos da sociedade, de uma estrutura meramente formal e vazia de fundamento” (OLIVEIRA, 2002, p. 242-243).

Neste diapasão, é possível afirmar que a família contemporânea é “[...] alicerçada sob as fortes bases do diálogo e da mútua compreensão” (OLIVEIRA, 2002, p. 268), onde o afeto possui um distinto papel, dado que a união e integração entre os membros do núcleo familiar ocorre por meio dele, trata-se do nexo que une as pessoas “[...] com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo” (DIAS, 2015, p. 90).

Ao se demarcar o conceito de afetividade, verifica-se que ele “[...] é o princípio que fundamenta o direito de família” (LÔBO, 2009, p. 456) juntamente com os princípios da solidariedade e da igualdade, vez que permitem o desenvolvimento integral das pessoas e a devida preservação de sua dignidade (FARIAS, 2011, p. 5-11).

13.3.5.1 Das implicações do abandono afetivo na vida da pessoa em desenvolvimento físico e psíquico

Superadas as questões doutrinárias implícitas ao princípio, resta-nos

analisar quais seriam as possíveis implicações práticas do mesmo.

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228 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Desta forma, a primazia pela afetividade nas relações familiares não implica na obrigação de amar, sentimento este tão personalíssimo e subjetivo que, caso fosse obrigatório, tolher-se-ia boa parte de sua composição essencial, isto é, a liberdade e faculdade de amar; entende-se, portanto, que “[...] o afeto não pode ser traduzido em amor e sim em cuidado” (CARDIN, 2015, p. 781), cuidado este essencial principalmente para a criança, por se tratar de um dos principais propulsores que integram os campos funcionais nos quais a atividade infantil se desenvolve.

Urge salientar que o Direito, como responsável pela organização e regência da sociedade, deve levar em consideração a multidisciplinariedade que incide sobre os seres humanos, valendo-se da contribuição das mais variadas áreas do conhecimento para elaborar e interpretar as normas jurídicas.

Nesse sentido, cabe trazer à baila os esforços da Psicologia, no que tange a importância da afetividade no desenvolvimento humano, para que se possa melhor compreender porque o Direito tem adquirido esta posição protetora no que se refere a este aspecto da subjetividade humana.

Ao se abordar as etapas do desenvolvimento infantil por um viés psicológico, observa-se a incidência do princípio da alternância funcional, que consiste na alternância de dominância entre as formas de atividade infantil (afetividade, motricidade, inteligência) a depender do estágio de desenvolvimento em que a criança se encontra (GALVÃO, 1995, p. 22). Importante ressaltar que apesar da dominância se alterar, estas fases são complementares, visto que, “[...] ao reaparecer como atividade predominante num dado estágio, a criança incorpora as conquistas realizadas pela outra, no estágio anterior, construindo-se reciprocamente, num permanente processo de integração e diferenciação” (GALVÃO, 1995, p. 31).

A fim de enfatizar a importância da afetividade, o psicólogo Zeno Germano de Souza Neto, afirma que:

A inteligência, por sua vez, não é o elemento mais importante do desenvolvimento humano, mas esse desenvolvimento depende de três vertentes: a motora, a afetiva e a cognitiva. Assim, as dimensões biológica e social são indissociáveis, porque se complementam mutuamente. A evolução de um indivíduo não depende somente da capacidade intelectual garantida pelo caráter biológico, mas também do meio ambiente que também vai condicionar a evolução, permitindo ou impedindo que determinadas potencialidades sejam desenvolvidas (SILVA; SOUZA NETO, 2012).

Assim, um dano advindo em um estágio inicial, seja ele oriundo da

negligência, indiferença ou ausência dos genitores, acaba por influenciar e afetar todos os estados subsequentes do desenvolvimento infantil. A afetividade, portanto, “[...] se nutre pelo olhar, pelo contato físico e se expressa em gestos, mímica e posturas” (GALVÃO, 1995, p. 32), numa correspondência entre os atos da criança e os do ambiente, determinando as emoções (sentimentos e desejos), bem como a vida afetiva da criança. Em face dessas constatações, é visível que a afetividade atua de forma

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O abandono afetivo... // 229

fundamental no desenvolvimento psicofísico da criança e do adolescente, posto que orienta desde as primeiras reações do bebê às pessoas até o modo como o adolescente enfrenta as questões pessoais, morais e existenciais durante a puberdade (GALVÃO, 1995, p. 30-33).

Charles Nelson, Doutor em pediatria e pesquisador da faculdade de medicina de Harvard, traz dados empíricos que ajudam a embasar e compreender a alegação de dano psicológico por falta de afeto, a saber:

Crianças manifestam níveis de moderada a severa estagnação cognitiva, física e emocional quando não é demonstrada atenção, afeto, carinho ou cuidado por um responsável. A situação dos órfãos da Romênia, trazida à luz com a queda do comunismo e do reinado do ditador Nicolae Ceausescu em 1989, dramaticamente ilustrou os efeitos da severa negligencia emocional sobre o desenvolvimento de uma criança. Tal privação mostrou ter profundas implicações no desenvolvimento infantil; tanto no cérebro, quanto em seu crescimento físico e na saúde mental em longo prazo. [...] Nelson afirma que crianças que vivenciam a falta de afeto consequentemente formam vínculos com qualquer adulto, indiscriminadamente, e não são capazes de processar apropriadamente rejeições afetivas. O desenvolvimento cerebral nas crianças está diretamente ligado à qualidade de carinho recebida. Nelson notou que o desenvolvimento cerebral após o nascimento é moldado pela interação de genes e experiência. Fatores em nosso ambiente e experiências podem afetar diretamente o desenvolvimento cerebral, incluindo fatores como: cuidador responsável, alimentação adequada e estimulações sensoriais e linguísticas. Desenvolver níveis apropriados de afeto com os seus responsáveis é essencial para a saúde mental, presente e futura, de uma criança. O afeto apropriado se refere à qualidade da conexão estabelecida entre a criança e os seus responsáveis durante os primeiros anos de vida. Crianças que não possuem a segurança desta conexão costumam não desenvolver as habilidades necessárias para construir relações saudáveis. Podem ter dificuldade em se relacionar e confiar nas pessoas, costumar ter baixa autoestima, temem iniciar relações, podem ser controladores e apresentar explosões de raiva. Crianças com problemas afetivos comumente se sentem isoladas e inseguras. (QUICK, 2014).

A afetividade, portanto, tem um papel crucial no processo de

aprendizagem do ser humano, porque está presente em todas as áreas da vida, influenciando profundamente o desenvolvimento cognitivo. As relações e laços criados pela afetividade não são baseados somente em sentimentos, mas também em atitudes. Isso significa que em um relacionamento, existem várias atitudes que precisam ser cultivadas, para que o relacionamento prospere.

Assim, pode-se depreender que a presença e a atuação dos genitores durante o desenvolvimento do infante e do adolescente se manifesta na forma de estímulos e orientação, determinando, de forma crucial, suas reações, expressões e até a capacidade de aprender e se relacionar.

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230 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

O abandono afetivo, portanto, não se fundamenta na faculdade de dar amor ao filho, mas, sim, no dever de cuidado, como assevera Giselda Hironaka:

O dano causado pelo abandono afetivo é antes de tudo um dano à personalidade do indivíduo. Macula o ser humano enquanto pessoa dotada de personalidade, sendo certo que esta personalidade existe e se manifesta por meio do grupo familiar, responsável que é por incutir na criança o sentimento de responsabilidade social, por meio do cumprimento das prescrições, de forma a que ela possa, no futuro, assumir a sua plena capacidade de forma juridicamente aceita e socialmente aprovada (HIRONAKA, 2015).

Não se trata, pois, de amor, mas, sim, de cuidado; estar lá nos

momentos necessários, estimular e reprimir nas horas necessárias, orientar e dirigir a criança a atingir as potencialidades e habilidades necessárias para viver uma vida plena e feliz.

13.4 DA AÇÃO DE REPARAÇÃO DOS DANOS PROVOCADOS PELO ABANDONO AFETIVO

A respeito do dano moral, cerne do presente artigo, cumpre

inicialmente expor considerações acerca do dano indenizável. Nesse viés, faz-se interessante o conceito analiticamente exposto por Cíntia Helena Zwetsch:

Dano é a lesão causada aos interesses do prejudicado, cujos efeitos podem ser de ordem moral (em que se atinge a dignidade, honra, boa-fama e liberdade, causando à pessoa sentimentos de dor, tristeza, sofrimento, vergonha, humilhação, frustração, angústia) ou material (em que se atingem os bens econômicos do lesado) (ZWETSCH, 2014).

O dano patrimonial ocorre toda vez que o evento danoso importar em

um dano com reflexos no patrimônio da vítima, um prejuízo material, suscetível de avaliação pecuniária, o qual deve ser devidamente comprovado, estabelecendo-se nexo causal com o suposto causador do dano, para fins de ressarcimento. Já o dano extrapatrimonial é mais complexo, devido a sua natureza abstrata; sendo este, nas palavras de Sergio Cavalieri Filho:

O dano extrapatrimonial, especificamente o dano moral, considerado “in re ipsa”, ou seja, que independe de comprovação, possui caracterização vasta na doutrina, importando ressaltar as mais comumente abordadas, tais como: a ideia de violação aos direitos personalíssimos; a afronta à dignidade da pessoa humana; bem como a apuração de sensações e emoções negativas tais como a angústia, o sofrimento, a dor, a humilhação, sentimentos estes que não podem ser confundidos com o mero dissabor, aborrecimento, que fazem parte da normalidade do dia-a-dia (CAVALIERI FILHO, 2006, p. 105).

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A completar o conceito de dano moral extrapatrimonial, é interessante

o ensino de Carlos Alberto Bittar, onde encontramos a seguinte definição: Qualificam-se como morais os danos em razão da esfera da subjetividade, ou do plano valorativo da pessoa na sociedade em que repercute o fato violador, havendo-se, portanto, como tais aqueles que atingem os aspectos mais íntimos da personalidade humana (o da intimidade e da consideração pessoal), ou o da própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua (o da reputação ou da consideração social) (BITTAR, 2000, p. 1).

Já Yussef Said Cahali, por sua vez, pondera que: Parece mais razoável, assim, caracterizar o dano moral pelos seus próprios elementos; portanto, ‘como a privação ou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz, a tranquilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade individual, a integridade física, a honra e os demais sagrados afetos (CAHALI, 1998, p. 20).

Vale ressaltar que a Constituição Federal brasileira assegura o direito

à indenização por danos morais e materiais, logo, é possível inferir que, caso o dano despoje a pessoa de seus direitos básicos, respaldados pelos princípios fundamentais por ela defendidos, cabe ao Estado impor-se em favor do ofendido.

Neste viés, traçadas as considerações a respeito dos reflexos que o afeto tem sobre a criança, torna-se fácil perceber que a ausência de afeto e cuidado podem gerar terríveis sequelas psicológicas. Assim, a omissão por parte dos genitores no que se refere aos encargos oriundos da parentalidade responsável não pode ser tolerada pelo Direito.

Ao se avaliar o papel admoestativo da ação de danos morais, deve-se levar em consideração a realidade brasileira, onde o abandono é recorrente. Assim, o aspecto educativo desta ação pode ser de grande ajuda a fim de se prevenir eficazmente que a atual postura se perpetue. No Brasil, como já se detecta em números, esta realidade tem sua gênese a partir da concepção, estendendo-se ao nascimento e desenvolvimento da criança. Neste sentido:

O CNJ instituiu o “Programa Pai Presente”, por meio dos Provimentos 12/2010 e 16/2012. No registro de nascimento de quase cinco milhões de crianças e adolescentes matriculados nas escolas brasileiras, consta somente o nome da mãe. Os números mais do que impressionam. Assustam. (DIAS, 2014).

O Direito à presença dos pais não pode ser negligenciado à pessoa.

O fato é que o Estado não pode esquecer que tem o dever de cumprir o preceito constitucional de dar proteção especial, com absoluta prioridade, às crianças, adolescentes e jovens. É, portanto, elucidativo o entendimento exposto por Maria Berenice:

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232 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Mais uma vez evidencia-se o exacerbado protecionismo ao homem, que acaba sendo o grande beneficiado. Afinal, sempre teve direito ao livre exercício da sexualidade, como prova de virilidade, alvo da admiração e inveja de todos. Ou seja, a sociedade é conivente com sua postura irresponsável, pela qual paga o próprio Estado; que precisa cumprir o comando constitucional de assegurar a crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, todos os direitos inerentes à cidadania (DIAS, 2014).

Com efeito, é inegável a importância da participação ativa de ambos

os genitores na vida de uma criança, tanto para com a sua saúde mental quanto para com a própria inteligência prospectiva. A omissão por parte de qualquer dos genitores é um ataque feroz ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, omissão essa que deveria ser aceita como o próprio nexo causal do dano subido por este indivíduo.

No que concerne ao abandono afetivo, a responsabilidade civil é subjetiva, já que ao optar pela completa omissão de suas responsabilidades, o genitor se sujeita ao artigo 186 do CCB/02, assim sendo, torna-se necessário, para configuração do dano, aferir a existência de uma conduta, nexo de causalidade e culpa, portanto, comprovada a responsabilidade civil, surge o dever de repará-la, conforme previsão do artigo 927, referindo-se ao artigo 944 para estabelecer-se o valor pecuniário da ação, ambos do CCB/02.

Com a indenização busca-se recolocar a vítima, tanto quanto possível, na situação anterior à lesão. A indenização é proporcional ao dano sofrido pelo lesado já que o objetivo da indenização – tornar indene – é reparar o dano o mais completamente possível. Contudo, a ação de danos morais não busca mero ressarcimento de danos, como ocorre na esfera dos danos materiais. Há uma dupla função na indenização por dano moral: ressarcimento e prevenção.

Carlos Alberto Bittar, por sua vez, afirma: De fato, não só reparatória, mas ainda preventiva é a missão da sanção civil, que ora frisamos. Possibilita, de um lado, a desestimulação de ações lesivas, diante da perspectiva desfavorável com que se depara o possível agente, obrigando-o, ou a retrair-se, ou, no mínimo, a meditar sobre os ônus que terá de suportar. Pode, no entanto em concreto, deixar de tomar as cautelas de uso: nesses casos, sobrevindo o resultado e à luz das medidas tomadas na prática, terá que atuar para a reposição patrimonial, quando materiais os danos, ou a compensação, quando morais, como vimos salientando (BITTAR, 1999, p. 76).

A respeito, Maria Berenice explica: A indenização por abandono afetivo poderá converter-se em instrumento de extrema relevância e importância para a configuração de um direito das famílias mais consentâneo com a contemporaneidade, podendo desempenhar papel pedagógico no seio das relações familiares (DIAS, 2015, p. 409).

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Existem diferenças nos critérios que são levados em consideração

para se estipular o quantum pecuniário a ser pago e o intuito por trás da sanção, conforme explica Daniela Vasconcellos Gomes, a saber:

O critério para a fixação do dano material é o cálculo de tudo aquilo que o lesado efetivamente perdeu; além daquilo que deixou de lucrar. Vê-se, assim, que o critério da extensão do dano aplica-se perfeitamente à reparação do dano material, que tem caráter ressarcitório. No entanto, na reparação do dano moral não há ressarcimento, já que é praticamente impossível restaurar o bem lesado, que, via de regra, tem caráter imaterial. O dano moral resulta, na maior parte das vezes, da violação a um direito de personalidade: vida, integridade física, honra, liberdade, etc. De modo que não basta estipular que a reparação mede-se pela extensão do dano. Os dois critérios que devem ser utilizados para a fixação do dano moral são: a compensação do lesado pelo dano sofrido e o desestímulo ao lesante, para que este não continue cometendo danos da mesma espécie. Inserem-se nesse contexto fatores subjetivos e objetivos, relacionados às pessoas envolvidas, como a análise do grau da culpa do lesante, de eventual participação do lesado no evento danoso, da situação econômica das partes e da proporcionalidade ao proveito obtido com o ilícito (GOMES, 2014).

Necessário salientar que os tribunais brasileiros, percorrendo longo,

árduo e tímido caminho, vem decidindo favoravelmente pela reparação de danos morais ao filho lesado, como exemplo a decisão do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, em abril de 2012, ao julgar o Recurso Especial n. 1.159.242, sob Relatoria da Ministra Nancy Andrigui e, recente julgado, do Juiz Francisco Câmara Marques Pereira da 1ª Vara de Família da comarca de Ribeirão Preto (TJSP), nos autos n. 1032795-91.2014.8.26.0506.

Assim, a reparação do dano moral, além de possibilitar ao lesado uma satisfação compensatória, deve também exercer função de desestímulo a novas práticas lesivas, de modo a inibir comportamentos antissociais similares por qualquer outro membro da sociedade, traduzindo-se em montante que represente advertência ao lesante e à sociedade de que não se aceita o comportamento assumido ou o evento lesivo. Adquirindo assim um cunho educativo.

13.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise dos princípios e normas legais que fundamentam o

direito de família, em especial os que tangem direitos da criança e adolescente, e dos resultados danosos causados à saúde física e psíquica do menor frente ao abandono afetivo parental, torna-se impossível alegar incoerência na ação de danos morais por abandono afetivo.

As lesões, e, portanto, o nexo causal entre a negligência afetiva do genitor para com o filho e o sofrimento e danos psicológicos gerados na criança e adolescente, já são comprovados cientificamente por meio de

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estudos empíricos realizados na área médica, respaldando o direito do filho à reparação por danos morais.

De qualquer forma, lamenta-se a existência de tais casos, em que filhos demandam os pais judicialmente em busca de vínculos afetivos que lhes foram sonegados e que causaram imensa dor, mágoa, sofrimento. Todavia, cabe também aos operadores do direito buscar a responsabilização e a conscientização dos pais a fim de que essa cultura de abandono afetivo, principalmente na separação dos genitores, deixe de ser uma realidade assustadora em nosso país.

Diante da ausência de normas expressas e, ainda com divergências, os tribunais brasileiros tem se inclinado – timidamente – a decidir pela procedência da reparação civil por abandono afetivo, reconhecendo que aos genitores não cabe apenas o sustento material, mas, tão essencial quanto esse, incumbe-lhes prover o amor e carinho por meio da participação presente na educação, formação e vida dos filhos.

13.6 REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Fabiola Santos. Adoção à brasileira e a verdade do registro civil. In: Família

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= XIV =

O DIREITO AO ESQUECIMENTO COMO DIREITO DA PERSONALIDADE

Jaime Leônidas Miranda Alves* Mayara Fernanda Perim Santos**

14.1 INTRODUÇÃO

O direito é o fenômeno social por excelência. Nas palavras de

Ulpiano, ubi societas ibi jus – onde há sociedade, há o Direito, e esse se caracteriza por ser volátil, líquido, modificando seus institutos e as compreensões sobre seus institutos no mister de melhor regular a sociedade, que caminha a largos passos.

Hoje descabe a compreensão do Direito como ramo do conhecimento estático, impossível de ser modificado. Noutro giro, a mutabilidade funciona como condição de perpetuação da ciência jurídica e, nesse sentido, cada vez mais novas teorias vão surgindo, como respostas aos desafios e novidades implementados pela pós-modernidade, a exemplo do direito espacial, do direito advindo da evolução da engenharia genética, dentre outros.

Prova da ressignificação de postulados experimentada pelo Direito, refere-se à teoria do direito ao esquecimento, tópico da doutrina internacional, originado na jurisdição constitucional norte-americana e alemã, e que hoje já ganha respaldo nos tribunais pátrios, vindo a ser, em determinada senda, considerado inclusive direito da personalidade.

Nesse diapasão, necessário se faz realizar uma leitura sob a ótica da hermenêutica constitucional, sob a construção doutrinária e jurisprudencial em torno do direito ao esquecimento, perfazendo sua origem, sob uma perspectiva de direito comparado, até o momento de sua consagração no direito pátrio, com o entendimento de direito o esquecimento como direito da personalidade.

Questiona-se o atual desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial a respeito da clássica dicotomia entre o direito à privacidade e a liberdade de expressão, dando enfoque principal ao exercício da jurisdição constitucional nesse tocante, especialmente no que se refere às novas dimensões dos direitos da personalidade, que passam a ser sentidos como respostas ao desafios contidos na pós-modernidade.

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia, campus Cacoal. Secretário de

Gabinete substituto do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, lotado no gabinete da 3ª Vara Cível da Comarca de Cacoal. ** Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia, campus Cacoal. Assistente de

promotoria no Ministério Público de Rondônia.

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14.2 DIREITO AO ESQUECIMENTO: APRECIAÇÃO INTERNACIONAL E CONTORNOS INICIAIS DE UMA NOVA TEORIA DO DIREITO À PRIVACIDADE

De forma simplória, o direito ao esquecimento representa a

prerrogativa que possui o indivíduo em apagar ou fazer apagar dados a seu respeito. Antes de iniciar a análise de como esse novo paradigma está sendo tratado pelos Tribunais Superiores, cumpre analisar o seu surgimento e, com isso, tecer, para fins didáticos, uma linha histórico-epistemológica.

Nesse sentido, tem-se que, talvez, a primeira manifestação do direito de ser esquecido data-se de 1931, no julgamento do caso Melvin vs Reid, pela Corte de Apelação da Califórnia.

Conforme explana Sierra (2013, p. 29) o caso em apreço remete-se à exposição pública em torno da figura de Melvin no lançamento de filme – sem consentimento, insta salientar – baseado em sua vida. Explana-se: Melvin, quando jovem, era meretriz e acabou por ser acusada, em 1918, pela prática de homicídio, caso este que teve termo com a comprovação de sua inocência.

Anos depois, quando Melvin já se encontrava casada e levando nova vida, foi lançado o filme “The Red Kimono”, com filmagens do julgamento de 1918 e, inclusive, fazendo menção a sua condição de meretriz. Além da imagem, em todo o filme foi utilizado o nome de Melvin, havendo, assim, ofensa cristalina à sua privacidade.

Lesada, Melvin propôs ação contra os responsáveis pela produção e veiculação do filme, fundamentando no direito à privacidade, bem como no direito de propriedade sobre a vida, o nome e a imagem.

Segundo Serra (2013, p. 29), esse caso paradigmático representa, em termos de posicionamento jurisprudencial, a primeira manifestação do direito ao esquecimento, tendo em vista que, não obstante não se reconheceu expressamente a lesão ao direito à privacidade, na época, embrionário, a Corte de Apelação do Estado da Califórnia reconheceu a Melvin o direito de buscar e de alcançar a felicidade, “[...] sendo ilício, portanto, que se adentrasse sua vida pessoal, como feito quando da divulgação do filme e da utilização de seu nome real”.

Avançando na construção teórico-jurisprudencial acerca do direito ao esquecimento, tem-se o caso Lebach, julgado em 1973 pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão.

Nesse diapasão, Dantas e Carvalho (2013, p. 339) traçam uma síntese fática e decisória do caso Lebach, afirmando que se trata do momento primeiro de consagração do direito ao esquecimento. Nesse sentido, mister se faz o comentário acerca do contexto que deu azo ao julgamento desse leading case.

Com efeito, em 1973, dois homens, auxiliados por um terceiro, se deslocaram a um armazém de munições, localizado na comunidade de Lebach e, com o intuito de subtrair o poderio bélico, e assassinaram, com requintes de crueldade, os soldados que guardavam o local.

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O direito ao esquecimento... // 239

Julgados, os dois homens que protagonizaram a conduta delituosa

forma condenados à prisão perpétua, enquanto aquele que atuou como partícipe foi condenado à pena de seis anos de reclusão.

Ocorre que, faltando pouco para o cumprimento integral da pena e, com isso, liberação daquele condenado à pena de seis anos, o ZDF – Zweites Deutches Fernehen produziu documentário acerca do crime em tela, focando em questões, tais como o relacionamento entre os criminosos e os atos de crueldade que caracterizaram a execução do delito, mostrando imagens reais, bem como os nomes verdadeiros dos culpados.

O material produzido deveria ir ao ar momentos antes do partícipe ser posto em liberdade, o que o levou a recorrer ao Poder Judiciário com um pedido liminar que proibisse o material de ser veiculado.

Tendo seu pedido liminar indeferido nas duas primeiras instâncias, o autor da demanda propôs Reclamação Constitucional junto ao Tribunal Constitucional Federal Alemão, que julgou procedente a demanda sob o fundamento de que “[...] os tribunais inferiores haviam incorrido em grave ameaça à dignidade e ao livre desenvolvimento da personalidade do reclamante (artigo 1, e artigo 2, da Constituição Alemã” (CARVALHO; DANTAS, 2013, p. 341), ao se levar em conta os danos que, por ventura, seria ocasionados da exibição do documentário.

Pode-se perceber que, in casu, a liberdade de expressão e veiculação de informação viu-se limitada pelo caráter protetivo da Grundgesetz, como produto de uma hermenêutica fundada na ponderação e razoabilidade.

Nos termos da lição de Schwab (2006, p. 492), o Tribunal Constitucional Federal Alemão entendeu por bem proteger o direito do reclamante em desenvolver sua personalidade, assim também como o seu direito de ressocialização que, fatalmente, viria a termo com a divulgação do documentário.

Outro caso que ajudou na construção fático-decisória em torno do direito ao esquecimento diz respeito ao caso Societé Suisse, de 1983, no qual o Tribunal Constitucional Suíço decidiu acerca do direito de um filho de criminoso, sentenciado à morte e condenado, e impediu que fosse lançado documentário contando a história da vida e execução do pai.

O que se pretendia, era defender o direito à privacidade e imagem do filho, proponente da ação, que seria afetado pela via oblíqua. Nesse sentido (LIMA, 2013, p. 276):

O Tribunal Federal Suíço, em que pese reconhecer que não há direito absoluto ao esquecimento que possa impedir a pesquisa histórica e científica, decidiu que o esquecimento naturalmente poderia ser reduzido ou eliminado pelas mídias eletrônicas.

Outra manifestação jurisprudencial que auxiliou na construção em

torno da teoria do direito ao esquecimento, refere-se ao acórdão de 2001, lavrado pelo Tribunal Civil de Bruxelas, na Bélgica. A esse respeito, Lima

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240 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

(2013, p. 276) ensina que o Tribunal proibiu a veiculação de um programa de televisão produzido pela rede RTL-TVI.

Vale dizer, o filme tinha por objeto a reconstrução da tentativa fracassada de fuga, com reféns, de Pedro C., criminoso condenado à prisão perpétua.

O material continha imagens autênticas da tentativa de fuga, além de cenas reconstruídas, e foi transmitido, sem autorização, pela RTL-TVI, em 1993, o que levou Pedro C. a pleitear indenização por danos morais, fundada na violação ao direito de personalidade, além de requerer a vedação judicial de que o filme fosse retransmitido.

O Tribunal se manifestou entendendo que a autorização era prescindível apenas nos casos em que o fato relatado era de interesse social, o que não era o caso. Reconheceu, ainda, o direito do preso em atuar da defesa de seus direitos que escapem da esfera patrimonial, e o direito de ser esquecido, por exemplo, retirando-se da esfera pública e reintegrando-se na sociedade (BÉLGICA, 2001).

Fala-se, ainda, no caso que veio como reflexo da condenação de Wolfgand Werlé e Manfred Lauber pela prática de homicídio, na década de 90. Tendo em vista que a vítima foi um conhecido ator alemão, o caso teve grande repercussão midiática e, após o cumprimento integral da pena, em 2009, Wolfgang Werlé propôs ação junto ao Tribunal de Hamburgo pleiteando que todas as referências ao seu nome relacionadas ao crime praticado fossem excluídas da Wikipedia.

Conforme aponta Lima (2013, p. 275), Werlé fundamentou o pleito na decisão de 1973 do Tribunal Constitucional Federal Alemão, já comentada, que reconhecia os direitos de privacidade do cidadão após o cumprimento integral da pena.

A ação foi julgada procedente, tendo a Corte alemã enviado ofício para que a Wikipedia retirasse as informações relativas ao nome de Werlé, sob pena de aplicação de multa não inferior a €5.100,00. Ocorre que, “a medida se mostrou um tanto inócua, já que a Wikipedia não tinha filial de negócios na Alemanha, e estava hospedado e amparado na primeira emenda da Constituição norte-americana, sobre a liberdade de expressão” (LIMA, 2013, p. 246).

Julgado recente que tratou do direito ao esquecimento é o Processo C-131/23, ajuizado por cidadão espanhol em face da Google Spain. Nesse sentido, Sierra (2013, p. 37) explana que o requerente tenciona retirar da página de pesquisas Google notícia referente à uma matéria de jornal antiga, que mencionava a venda judicial de uma propriedade sua, em razão de um inadimplemento.

Instado a se manifestar nos autos, o Advogado Geral da União Europeia proferiu parecer nos seguinte sentido:

A constelação de direitos fundamentais, particularmente complexa e difícil, que este processo apresente impede a justificação do reforço da posição jurídica das pessoas em causa ao abrigo da diretiva e da atribuição a essas pessoas deum “direito de ser esquecido”. Isso implicaria o sacrifício de

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O direito ao esquecimento... // 241

direitos essenciais, como a liberdade de expressão e de informação. Também dissuadiria o Tribunal de concluir que estes interesses em conflito poderiam ser satisfatoriamente ponderados nas situações individuais, caso a caso, deixando a decisão ao prestador do serviço de motor de pesquisa na Internet. Tias procedimentos de informação e de supressão, caso sejam exigidos pelo Tribunal, podem conduzir à remoção automática de hiperligações a quaisquer conteúdos contestados ou a um número incontrolável de pedidos recebidos pelos prestadores do serviço de motor de pesquisa na Internet (JÄÄSKINEN, 2013, web).

Como se pode perceber, o parecer do Advogado Geral da União foi

no sentido da impossibilidade de se determinar a retirada de informações do provedor de buscar quando a informação é pública, ou nasceu pública, sob pena de estar-se produzindo uma verdadeira falsificação da história. Não obstante, o acórdão proferido em 2014 julgou procedente a demanda, tendo em vista que o fato, ocorrido que se buscava fazer esquecer não era de interesse público1, havendo apenas m prejuízo sensível aos direitos de personalidade do requerente.

1 1) O artigo 2.°, alíneas b) e d), da Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, deve ser interpretado no sentido de que, por um lado, a atividade de um motor de busca que consiste em encontrar informações publicadas ou inseridas na Internet por terceiros, indexá-las automaticamente, armazená-las temporariamente e, por último, pô-las à disposição dos internautas por determinada ordem de preferência deve ser qualificada de «tratamento de dados pessoais», na acepção do artigo 2.°, alínea b), quando essas informações contenham dados pessoais, e de que, por outro, o operador desse motor de busca deve ser considerado «responsável» pelo dito tratamento, na acepção do referido artigo 2.°, alínea d). 2) O artigo 4.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 95/46 deve ser interpretado no sentido de que é efetuado um tratamento de dados pessoais no contexto das atividades de um estabelecimento

do responsável por esse tratamento no território de um Estado‑Membro, na acepção desta disposição, quando o operador de um motor de busca cria num Estado‑Membro uma sucursal ou uma filial destinada a assegurar a promoção e a venda dos espaços publicitários propostos

por esse motor de busca, cuja atividade é dirigida aos habitantes desse Estado‑Membro. 3) Os artigos 12.°, alínea b), e 14.°, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 95/46 devem ser interpretados no sentido de que, para respeitar os direitos previstos nestas disposições e desde que as condições por elas previstas estejam efetivamente satisfeitas, o operador de um motor de busca é obrigado a suprimir da lista de resultados, exibida na sequência de uma pesquisa efetuada a partir do nome de uma pessoa, as ligações a outras páginas web publicadas por terceiros e que contenham informações sobre essa pessoa, também na hipótese de esse nome ou de essas informações não serem prévia ou simultaneamente apagadas dessas páginas web, isto, se for caso disso, mesmo quando a sua publicação nas referidas páginas seja, em si mesma, lícita. 4) Os artigos 12.°, alínea b), e 14.°, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 95/46 devem ser interpretados no sentido de que, no âmbito da apreciação das condições de aplicação destas disposições, importa designadamente examinar se a pessoa em causa tem o direito de que a informação em questão sobre a sua pessoa deixe de ser associada ao seu nome através de uma lista de resultados exibida na sequência de uma pesquisa efetuada a partir do seu nome, sem que, todavia, a constatação desse direito pressuponha que a inclusão dessa informação nessa lista causa prejuízo a essa pessoa. Na medida em que esta pode, tendo em conta os seus direitos fundamentais nos termos dos artigos 7.° e 8.° da Carta, requerer que a informação em questão deixe de estar à disposição do grande público devido à sua inclusão nessa lista de resultados, esses direitos prevalecem, em princípio, não só sobre o interesse económico do operador do

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242 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Foi com fulcro na vasta jurisprudência que se construiu uma teoria em torno do “right to be forgotten” (Mayer-Schönberger, 2007), tendo como primeira consequência, em sede de normativas internacionais, a revisão da Diretiva de Proteção de Dados nº46/1995, pela Comissão Europeia.

Nesse sentido, em 2012 “[...] o Conselho e o Parlamento propuseram a codificação do direito ao esquecimento em uma Diretiva e um Regulamento” (LIMA, 2013, p. 274). A essa Diretiva, nomeada de COM/2010/010.

14.3 O DIREITO AO ESQUECIMENTO EM TERRAES BRASILIS E SUA COMPREENSÃO COMO DIREITO DA PERSONALIDADE

Em tempos em que a sociedade brasileira, ao acompanhar a era da

informação, globaliza-se no sentido de comunicar-se, torna-se interessante pensar na amplitude dos direitos frente às novas realidades sociais. Nesse sentido, levando em conta a inspiração internacional de um novo desenho que limita a liberdade de expressão e de informação em prol de um esquecimento opcional do detentor de uma verdade vinculada, um novo direito parece vigorar também no Brasil.

O chamado direito ao esquecimento traz uma nova roupagem de interpretação na qual o conflito da liberdade de imprensa e de comunicação desagua no raciocínio de que a imprensa é incensurável, entretanto, “[...] encontra barreiras em princípios como a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas”, declarou um representante da associação dos magistrados mineiros, em 2014.

Assim, arquiteta-se um teoria subjetiva que tem, segundo Casado (2014, online), um efeito jurídico que “[...] permite e impulsiona a superação dos acontecimentos contrários ao ordenamento bem como a ressocialização do agente infrator, inclusive na esfera penal”. Nesse sentido, tendo o acontecimento, até mesmo quando ilícito, atingido o status de superado e entrelaçado com as raízes do Direito Civil e Direito Constitucional que cercam o tema, o mesmo ganha o direito de não ser vinculado de forma desenfreada pelos mecanismos de comunicação da sociedade contemporânea.

Muito embora não haja uma legislação específica tratando sobre o assunto, a 4º turma do Supremo Tribunal de Justiça assegurou por meio do Recurso Especial 1.334.097 de 2013 o direito ao esquecimento para um homem inocentado da acusação de envolvimento na chacina da Candelária e posteriormente retratado pelo programa Linha Direta, da Rede Globo, anos depois de ser absolvido de todas as acusações.

À época, segundo a Associação dos Magistrados Mineiros (2014, p. 6) ocorreram dois recursos de ações ajuizadas contra reportagens distintas

motor de busca mas também sobre o interesse desse público em aceder à informação numa pesquisa sobre o nome dessa pessoa. No entanto, não será esse o caso se se afigurar que, por razões especiais como, por exemplo, o papel desempenhado por essa pessoa na vida pública, a ingerência nos seus direitos fundamentais é justificada pelo interesse preponderante do referido público em ter acesso à informação em questão, em virtude dessa inclusão. (ESPANHA, 2014, online)

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O direito ao esquecimento... // 243

oferecidas pela Rede Globo. O primeiro tratava-se do fato mencionado acima e o segundo foi ajuizado pela família de Aída Curi, estuprada e morta em 1958 por um grupo de jovens. Nesse caso, as personagens envolvidas no processo de Aída sentiram que não havia necessidade de resgatarem as suas histórias, como pretendia a emissora. Quanto ao primeiro caso disse taxativamente o STJ:

EMENTA: RECURSO ESPECIAL: DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE IMPRENSA VS. DIREITOS DA PERSONALIDADE. LITÍGIO DE SOLUÇÃO TRANSVERSAL. COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DOCUMENTÁRIO EXIBIDO EM REDE NACIONAL. LINHA DIRETA-JUSTIÇA. SEQUÊNCIA DE HOMICÍDIOS CONHECIDA COMO CHACINA DA CANDELÁRIA. REPORTAGEM QUE REACENDE O TEMA TREZE ANOS DEPOIS DO FATO. VEICULAÇÃO INCONSENTIDA DE NOME E IMAGEM DE INDICIADO NOS CRIMES. ABSOLVIÇÃO POSTERIOR POR NEGATIVA DE AUTORIA. DIREITO AO ESQUECIMENTO DOS CONDENADOS QUE CUMPRIRAM PENA E DOS ABSOLVIDOS. ACOLHIMENTO. DECORRÊNCIA DA PROTEÇÃO LEGAL

E CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DAS LIMITAÇÕES POSITIVADAS À ATIVIDADE INFORMATIVA. PRESUNÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DE RESSOCIALIZAÇÃO. (Grifo nosso).

A prerrogativa jurisprudencial sobre o tema dota-se, portanto, de

extremo significado tendo em vista o nível hierárquico do órgão que decidiu sobre o tema. Na Suprema Corte, noticia-se que o STF julgará diversos Recursos Extraordinários sobre o tema. Assim anuncia o site do Supremo Tribunal Federal em notícia de 22 de julho de 2015:

O Supremo Tribunal Federal analisará a aplicação do chamado “direito ao esquecimento” na esfera civil, quando for alegado pela vítima de crime ou por seus familiares para questionar a veiculação midiática de fatos pretéritos e que supostamente já teriam sido esquecidos pela sociedade. A matéria é objeto de Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 833248 e teve repercussão geral reconhecida pelo Plenário Virtual da Corte.

Nesse quadrante, o direito ao esquecimento vem sendo pensado e

legitimado perante os mais altos tribunais. É nesse momento que se começa a pensar na vinculação de tal prerrogativa a ideia de um novo direito no passo em que se interliga tal demanda a searas íntimas do Direito Constitucional e do Direito Civil em solo brasileiro. No Direito Constitucional, esquecer liga-se com a dignidade da pessoa humana, e no Direito Civil, motivo pelo qual o presente artigo se dispõe, há o esboço de uma ideia de que o direito ao esquecimento é um novo direito da personalidade.

Ao manifestar-se pelo reconhecimento da repercussão geral do tema, o ministro Dias Tóffoli reconheceu que “[...] o tema é relativo à harmonização de importantes princípios dotados do status constitucional” (2015, p.1). Ainda, o ministro ligou diretamente o tema com a dignidade da pessoa humana ao ponderar que há, “[...] de um lado, a liberdade de expressão e o direito à

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244 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

informação, de outro, a dignidade da pessoa humana e vários de seus corolários, como inviolabilidade da imagem, da intimidade e da vida privada”.

Na linha dessa ligação do direito ao esquecimento e a dignidade da pessoa humana, e, no passo de criar um novo direito de forma contundente, o Enunciado 531 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF) de 2013 endossa o posicionamento de Dias Tóffoli de ligar intimamente o direito ao esquecimento com os Direitos Fundamentais e com as regras do Código Civil atual no tocante a proteção a intimidade e a imagem.

Segundo o Casado (2014, web): O enunciado ajudará a definir as decisões judiciais acerca do art. 11 do Código Civil, o qual regulamenta que os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, assim como o art. 5º da Constituição Federal, como o direito inerente à pessoa e à dignidade, entre eles a vida, a honra, a imagem e a intimidade.

O promotor de justiça do Rio de Janeiro Guilherme Magalhães

Martins, autor do Enunciado 531, ainda no sentido de relacionar o direito ao esquecimento como um novo direito da personalidade, esclarece que apesar de não ter força normativa “[...] o Enunciado 531 remete a uma interpretação do código Civil referente aos direitos da personalidade ao afirmar que as pessoas têm o direito de ser esquecidas pela opinião pública e pela imprensa”.

Ao se considerar a lição de Rocha (2006, p. 196) onde: A racionalidade adquirida na modernidade não é mais suficiente para gerir e pensar um sistema jurídico inserido num ambiente tão repleto de possibilidades comunicativas e tão repleto de informações (complexidade, amentando desmesuradamente os riscos de desapontamento (contingência).

E, ainda, após toda a abordagem realizada onde a divulgação de

fatos se depara com uma sociedade globalizada na era comunicação de massa, há de se pensar que prerrogativas inerentes as raízes da personalidade devem atingir formas que se encaixem na legitimação de direitos na contemporaneidade. É nesse sentido que se considera o direito ao esquecimento um novo direito da personalidade, e mais, um reflexo de uma comunidade global que, ao reinventar a forma de comunicação, há de reinventar também formas de se proteger contra os malefícios da mesma.

14.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De todo o exposto, o que se conclui em primeira mão, no tocante a

uma perspectiva jurídico-social, é que a sociedade demandou ao mundo jurídico o desafio de acompanhar sua ferramenta mais desafiadora: a comunicação. Ao passo em que as tecnologias foram se desenvolvendo e o

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O direito ao esquecimento... // 245

meio de pensar e gerir a liberdade de expressão e a necessidade de informação da sociedade contemporânea, muitos parâmetros jurídicos passaram a ser maleados com mais facilidade.

É nessa perspectiva que se coloca em cheque os princípios que respaldam a liberdade de expressão que agora se depara com uma ampliação de suas consequências. Dentro desse contexto, um novo fenômeno jurídico passou a vigorar nas teses internacionais: o direito de esquecer.

Em terras brasileiras, o direito ao esquecimento vem sendo incorporado no discurso jurídico aos poucos, mas já galga espaços significativos com respaldo do Superior Tribunal de Justiça. Assim, o direito ao esquecimento é uma realidade jurídica que vem sendo legitimada na jurisprudência.

O que se apresenta de novo é a íntima ligação desse direito com fatores como a dignidade da pessoa humana e os direitos da personalidade. Nessa linha, o Enunciado 531 do Conselho da Justiça Federal firma ser o direito ao esquecimento uma raiz dos direitos da personalidade.

Essa questão, quando analisada junto aos pronunciamentos do ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Tóffoli sobre o tema, possibilita o entendimento de que o direito ao esquecimento pode ser visto como um novo direito da personalidade, no qual a ligação com a dignidade da pessoa humana é irrefutável. Assim, ao passo em que a sociedade se desenvolve enquanto tecnologia, se transforma também enquanto Direito, estando este frente à uma sociedade globalizada.

14.5 REFERÊNCIAS IV JORNADA DE DIREITO CIVIL DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL (CJF). Jornada de

Direito Civil aprova 46 Enunciados, 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-abr-15/enunciados-aprovados-vi-jornada-direito-civil-serao-guia-justica>. Acesso em: 21 set. 2015.

______. STJ aplica o Direito ao esquecimento pela primeira vez. Associação dos magistrados mineiros. Disponível em: <http://amagis.jusbrasil.com.br/noticias/100548144/stj-aplica-direito-ao-esquecimento-pela-primeira-vez>. Acesso em: 19 set. 2015.

BÉLGICA. Peter C. vs. NV RTL-TVI and the Belgian State, represented by the Minister of Justice, nr. AR 93/4069/A. Court of First Instance of Brussels (20th Chamber), Bruxelas, 20 Sept. 2001.

CARVALHO; Ivan Lira de; DANTAS, Rafhael Levino. Direito ao esquecimento: delineamentos a partir de um estudo comparativo de leading cases das jurisprudências alemã e brasileira. In: CONPEDI/UNINOVE (Org.). MACHADO, Ednilson Donisete; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Coords.). Direitos fundamentais e democracia I. Florianópolis: FUNJAB, 2013.

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática: atualizada pela Emenda Constitucional n. 45/2004 e pelas Leis n. 11.417/2006 e 12.063/2009. 2. ed. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014.

JÄÄSKINEN, Niilo. Conclusões do Advogado Geral da União Europeia. Apresentada em 25 de junho de 2013. Processo C131/12. Disponível em: Acesso em: <http://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2014-07/cp140107pt.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2013.

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246 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

LIMA, Erik Noleta Kirk Palma. Direito ao esquecimento: discussão europeia e sua repercussão no Brasil. In: Revista de Informação Legislativa. Ano 50, n. 199, jul/set. 2013.

ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Exclusão Social. In: Revista Interesse Público. Ano 1. n. 4. São Paulo: Notadez, 2006.

SIERRA, Joana de Souza. Um estudo de caso: o direito ao esquecimento contra a liberdade de imprensa. Monografia submetida à Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. João dos Passos Martins Neto, Florianópolis, 2013.

SCHWAB, Jürgen. Cinquenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Trad. Leonardo Martins. Montevideo. Konrad Adenauer Stiftung, 2006.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 1.334.097. Relator Ministro Luiz Felipe Salomão. Data do julgamento: 15 de agosto de 2013. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=282657>. Acesso em: 21 set. 2015.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF julgará caso que envolve direito ao esquecimento. 2015. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=282657. Acesso em 21 de setembro de 2015.

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O DIREITO DE PERSONALIDADE NO AMBIENTE DO TRABALHO: O RECONHECIMENTO DE NOVOS DIREITOS E DEVERES AOS SUJEITOS

EMPREGADO E EMPREGADOR

Marco Antônio César Villatore* Martinho Martins Botelho**

15.1 INTRODUÇÃO

Analisam-se neste estudo, as crises econômicas e a evolução do

direito direcionado à personalidade da pessoa humana, bem como as consequências implícitas que acarretam o dano moral no ambiente de trabalho.

Efetua-se uma análise dos questionamentos em relação à proteção da personalidade da pessoa humana e o dano moral, que conforme poderá se verificar referidos conceitos, “personalidade” e “moral” tiveram diversas conotações no decorrer da história da humanidade, e para tanto se efetua uma abordagem transdisciplinar dos conceitos abordados. Inicia-se pela verificação filosófica do tema e se apresentam algumas poucas opiniões de filósofos que estudaram o assunto com profundidade e que, de alguma forma, fazem refletir os seus pensamentos na atual fase histórica do direito. Em seguida se efetua uma abordagem pelos fundamentos axiológicos do direito, com complementação do Direito Constitucional, base de todas as normas no Estado de Direito, e ao final a avaliação breve, mas objetiva em relação ao Direito Material do Trabalho, abordando os casos mais comuns e que de alguma forma ferem de forma clara e objetiva os direitos de personalidade, e se conclui verificando quais os principais reflexos do dano moral no ambiente do trabalho e suas repercussões.

* Pós-Doutor em Direito Econômico pela Università degli studi di Roma II, “Tor Vergata”. Doutor

em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Università degli studi di Roma I, “La Sapienza”, revalidado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito do Trabalho pela PUCSP. Professor Titular do Programa de Pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUCPR). Professor Adjunto II do Curso de Graduação em Direito da UFSC. Professor do Centro Universitário Internacional UNINTER de Curitiba/PR. Coordenador do Núcleo de Estudos Avançados de Direito do Trabalho e Socioeconômico (NEATES) da PUCPR. Advogado. E-mail: [email protected] ** Doutor em Integração da América Latina no Programa de Integração da América Latina

(PROLAM) pela Universidade de São Paulo (USP). Doutorando em Teoria Econômica pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor das Faculdades Santa Cruz em Curitiba, Paraná. Advogado e economista.

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248 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

15.2 CRISE ECONÔMICA

15.2.1 Crise na economia mundial Conforme com os textos bíblicos, “[...] e as vacas magras devoraram

as sete vacas gordas” (Gênesis 41:1), Faraó, do Egito, sonhou com sete “vacas gordas” e sete “vacas magras”. José, posteriormente, interpretou o sonho. Ele aconselhou Faraó a guardar um quinto da produção durante sete anos de abundância a fim de garantir alimentos durante sete anos de escassez.

Possivelmente, esta é a primeira indicação de que ciclos de negócios não é um conceito novo. As medidas recomendadas por José também reconheciam três elementos importantes para a administração econômica: precaução contra os riscos da produção; necessidade de poupança para se proteger contra flutuações econômicas e o papel do governo para intervir na economia1.

Já se explicou que [...] toda a história do capitalismo é permeada por crises econômicas. Apenas no século XX e início do XXI é possível enumerar uma série de episódios no âmbito mundial sendo absolutamente inviável elencar todos os eventos registrados ao redor do globo terrestre em esferas regionais. Conclusão: crises econômicas são indissociáveis do sistema capitalista (VILLATORE; BOSKOVIC, 2010, p. 51-52).

O conselho de José à Faraó, no entanto, como descreve o texto no

seu início, em regra, não deve ser seguido por todas as pessoas, uma vez que estão inseridas em um mundo capitalista, e se todos decidissem poupar parte de sua produção, como sugere José, tal fato, por si só, já seria suficiente para desencadear uma espécie de crise para alguns setores econômicos, tendo em vista que os gastos com despesas de uns, geram receitas para outros, o que se traduz na lógica das relações comerciais.

15.2.1.1 Principais crises econômicas mundiais: reflexos no Brasil

As ações de Wall Street, em 1929, começaram a acumular

sucessivas e violentas quedas, o que ficou conhecida como “crash”. Até 1932, as ações no mercado americano perderam 90% de seu valor e um terço da população estava desempregada, sendo a maior crise financeira da história dos EUA e até hoje economistas teorizam a respeito das reais causas da quebra da bolsa. O maior efeito sobre o Brasil foi a queda do preço do café, então um dos principais produtos de exportação do País.

Algumas décadas depois, com a Guerra do YomKippur, em 1973, a Organização dos Países Árabes Exportadores de Petróleo decide cancelar a exportação de petróleo para países que apoiaram Israel no conflito com o

1 Ver mais em: <http//eumed.net/cursecon/ecolat>.

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O direito da personalidade no ambiente do trabalho... // 249

Egito e a Síria. Como resultado, os preços do produto disparam e atingem o valor de US$ 12 o barril em 1974, quatro vezes maior do que no ano anterior. Para o Brasil, o efeito mais notável foi a desaceleração do crescimento iniciado com o chamado “milagre econômico”: de 9% para 4,6% em 1978.

Posteriormente, em 1979, ocorreu a segunda crise do petróleo. Em meio à Revolução Iraniana, Ayatollah Khomeini assume o poder do país e passa a controlar a produção de petróleo, causando uma segunda disparada nos preços do produto - potencializada pelos temores de racionamento energético nos EUA. O valor do barril chegou perto dos US$ 40, o pico da década. No Brasil, houve aumento no custo dos combustíveis e racionamento. A dívida do País aumentou com os crescentes custos da importação do petróleo. Além disso, o aumento dos juros nos EUA contribuiu para elevar ainda mais a dívida.

Em 1982, o México entra em uma crise que culmina com a surpreendente moratória do governo mexicano em agosto daquele ano. Mais de 40 países recorreram ao FMI, incluindo o Brasil, que viu a retração de seu PIB em 5% e a inflação ultrapassar os 200%.

A “queda histórica” ocorreu em 19 de outubro de 1987, quando o índice Down Jones sofre a maior queda de sua história em um único dia: 22,6%. A combinação de temores com os empréstimos bancários, a desaceleração da economia e a desvalorização da moeda americana injetou pânico nos mercados americanos e o temor se alastrou pela Europa e pelo Japão. O Brasil quebrou novamente, suspendendo o pagamento da dívida. Na prática, foi a primeira crise que demonstrou o potencial de rápido contágio do pânico num mercado financeiro globalizado.

A crise da Ásia, ocorrida em 1997, deu-se por um rápido processo de fuga de capitais e desvalorização cambial entre os chamados Tigres Asiáticos: Tailândia, Malásia, Coreia do Sul, Hong Kong, Indonésia e Filipinas. O ocorrido espalhou medo nos mercados internacionais, em grande parte pela surpresa de ver mercados supostamente sólidos e confiáveis sucumbirem a uma crise financeira. O mercado dos emergentes foi afetado pela primeira vez, mas no Brasil não houve maior consequência.

No ano seguinte à crise asiática, em 1998, o preço dos “commodities” caiu em todo mundo e a Rússia, cuja economia depende largamente da exportação de commodities como gás natural e petróleo, declarou calote de sua dívida externa privada de curto prazo.

Após ter passado quase sem sentir os efeitos da crise da Ásia, o Brasil foi afetado, enfrentando forte fuga de investimentos em dólares. O governo reagiu elevando a taxa de juros, que chegou ao pico de 45% no início de 1999, e desvalorizando o Real, que até então mantinha a paridade com o dólar.

No dia 11 de Setembro de 2001, deu-se a semana mais violenta na história das bolsas dos EUA, por qualquer indicador financeiro. A queda de 1370 pontos no índice Dow Jones foi uma das piores do século, com os investidores perdendo mais de 8 trilhões de dólares, ou 10% do valor total do

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250 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

mercado de ações. Uma recessão moderada atingiu os Estados Unidos, e surgiram as primeiras advertências sobre os riscos no mercado imobiliário.

Para encerrar a lista, em 2008, o mundo presenciou a crise imobiliária americana, que afetou o mercado financeiro nos EUA e arrastou os negócios no mundo, tendo origem nas hipotecas americanas.

15.2.2 A crise mundial de 2008/2009 e o seu impacto no mercado brasileiro

O Brasil também sofreu consequências da crise de 2008/2009, cujos

reflexos se observaram pela expressiva queda de 3,4% do PIB (Produto Interno Bruto), no terceiro trimestre de 2008. Entretanto, juntamente com outras economias emergentes especialmente Rússia, China e Índia, o nosso País demonstrou capacidade mais rápida de recuperação econômica, tendo seu mercado interno comprovado força individual e ampla capacidade de responder à redução da demanda global, sob a liderança de Estados Unidos, Europa e Japão.

Agravado com a alta do dólar e do Euro, houve uma série de dispensas de empregados na sociedade brasileira, fato que gerou também muitas situações de ofensas a direitos de personalidade aos empregados, tanto aqueles dispensados, quanto os que precariamente se mantiveram em seus empregos.

15.3 DIREITO DE PERSONALIDADE

Antes de entrar na parte prática, convém explicar que a

personalidade leva ao raciocínio da existência da pessoa e aquilo que é inerente à mesma, o seu caráter, suas ideias, seu conteúdo ético e moral, a forma com que se inter-relaciona com o meio em que vive “habita”, enfim o seu caráter social, que faz ecoar e que transmite a toda a sociedade.

Conforme Washington de Barros Monteiro (1982, p. 55) a palavra “persona”, tem sua origem na linguagem teatral da antiguidade romana, e que significava máscara, que tinha por objetivo dar eco às palavras dos atores. Portanto “persona” queria afirmar máscara, que fazia ressoar a voz da pessoa.

Entretanto, assim como a sociedade evolui, quer seja a passos curtos ou largos, o direito como conjunto de normas que regem a vida em comunidade o meio social em que está inserido o indivíduo (homem ou mulher), também procura se adequar aos tempos e aos contextos de sua época, haja vista que alguns conceitos como a ética, a moral, a personalidade, são tratados de forma diferente de acordo com a sociedade e período de evolução histórica de determinada cultura.

No século III a. C., em seus estudos, Aristóteles (2000, p. 166-167) definia a personalidade como decorrente da coragem, justiça e virtude, sendo que esta última definia de forma absoluta o modo de vida da pessoa, seria ele “senhor” ou “servo”, “dominador” ou “dominado”, e assim estaria definida

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a sua ética e moral, que assim descreve: “o dirigente então deve ter a virtude ética por inteiro; pois sua tarefa é liderar e a razão lidera. E os outros membros devem ter o montante apropriado a cada um. Assim, é evidente que cada classe mencionada deve ter virtude ética”.

Continuando no campo filosófico, para Kant2 (2005, p. 79), a personalidade está diretamente ligada à educação, a certeza e a clareza de conhecimentos e “[...] a moral é já por si mesma uma prática no sentido objetivo, enquanto totalidade de leis que ordenam incondicionalmente, de acordo com as quais devemos agir”.

Para Nietzsche3, em seu escrito “Para a Genealogia da Moral”, de 1887, a personalidade está ligada à moral, e conforme esclarece Antonio Edmilson Paschoal (2003, p. 49) em seu estudo o filósofo alemão (Nietzsche) define a personalidade como resultante de

[...] ação de forças que tornaram possível o processo de moralização do homem, admitindo, por princípio, que tais forças não podem ser desconsideradas quando se entende o homem como um animal ainda não acabado, e sim um feixe de sempre novas possibilidades que precisa de tais forças para seguir em sua aventura.

Com a Declaração Universal de 1948, conforme explica Gilmar

Ferreira Mendes (2008, p. 254), ganha impulso a tendência de universalização da proteção aos direitos dos homens, ou seja, os direitos fundamentais que antigamente tinham como objetivo proteger (uma classe, um grupo social) o exercício de um direito político ou social, um melhoramento das condições de vida ou de trabalho, passaram a proteger o próprio homem.

Os estudos demonstram que os direitos de personalidade, que eram apenas objeto de estudo filosófico, atualmente se enquadram em direitos fundamentais de terceira geração, isto baseado na ordem histórico cronológica do desenvolvimento do direito constitucional, ou seja:

a) direitos de primeira geração: estão incluídas as liberdades públicas e os direitos e garantias individuais clássicas (direitos civis e políticos), que surgiram a partir da Magna Carta, conforme Alexandre de Moraes (2002, p. 39). Conforme esclarece Gustavo Filipe Barbosa Garcia (2009, p. 55), “[...] assim, nas Declarações de Direito do século XVIII, ganham destaque os direitos de “liberdade”, no sentido de que o Estado deve abster-se de interferir na conduta dos indivíduos”;

b) de segunda geração: correspondem aos direitos econômicos, sociais e culturais, envolvendo uma prestação positiva do Estado, de acordo com Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2005, p. 49-50), como o direito ao trabalho, à educação, à saúde, direitos trabalhistas e previdenciários, bem como os econômicos e culturais garantidores da liberdade das nações e das normas internacional de convivência, surgiram no início do século XX, conforme Themistocles Brandão Cavalcanti (1966, p. 202); e

2 Immanuel Kant – filósofo prussiano – 1724 – 1804. 3 Friedrich Nietzsche – filósofo alemão – 1844 – 1900.

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c) de terceira geração: também denominados direitos de solidariedade ou fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, ao progresso, a paz, a autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos, de acordo com Leda Pereira Mota e Celso Spitzcovski (2000, p. 316-317).

Aliás, conforme esclarece Alexandre de Moraes (2002, p. 56), efetuando a análise da questão através de uma filtragem constitucional4, conforme Paulo Ricardo Schier (1999, p. 67), a personalidade está inserida dentro da soma de elementos que se traduzem nos direitos humanos fundamentais, ou seja, é o

[...] conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.

Esclarece Orlando Gomes (2000, p. 148), que “[...] sob a

denominação de direitos de personalidade, compreendem-se direitos considerados essenciais a pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina, a fim de resguardar a sua dignidade”.

Assim, diante de um dos principais pressupostos norteadores dos direitos humanos a proteção à integridade física e moral, foi albergada pelo disposto no Inciso X do artigo 5°, da Constituição de 1988, que assim dispõe: “[...] são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Portanto de acordo com Luis Roberto Barroso (2008, p. 37-38) “[...] o princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo”.

O que nos leva à constatação de que a proteção à “integridade física ou moral”, está diretamente ligada à personalidade, à vida e à dignidade da pessoa humana, consequentemente desdobrando-se no que diz respeito às condições mínimas de sobrevivência, e neste sentido deve ser incluído o direito ao trabalho remunerado, habitação, saúde, alimentação, educação, lazer, conforme estipula o artigo 6º da Constituição de 1988, enfim os direitos e garantias fundamentais, são parte integrante da composição da dignidade humana.

15.4 CONCEITO DE BEM EXTRAPATRIMONIAL

Assim, conforme o já exposto, verifica-se que o ordenamento jurídico

pátrio tutela a integridade moral, ao garantir a indenização por dano moral, razão pela qual deve-se levar em consideração o que é efetivamente o bem extrapatrimonial denominado “moral”.

4 Filtragem constitucional – “a ideia de realização da normatividade e imperatividade do direito através da perspectiva dos valores constitucionais”.

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Em um caráter ético-filosófico, a moral está direcionada aos

costumes e aos valores de caráter do indivíduo e do meio em que está inserido, devendo cumprir as normas sejam elas do costume ou jurídicas que a consciência da coletividade impõe.

Para Gustav Radbruch (2004, p. 66), trata-se de uma força imperativa:

Só a moral pode fundamentar a força obrigatória do direito. Dos preceitos jurídicos enquanto imperativos, manifestações de vontade, pode derivar-se talvez um dever (Müssen), mas jamais um dever ser (Sollen). Pode-se falar somente de normas jurídicas, de dever ser jurídico, de validade jurídica e de deveres jurídicos quando o imperativo jurídico for abastecido pela própria consciência com a força de obrigação moral.

Ainda abrangendo o caráter filosófico, para Jürgen Habermas (2010,

p. 47) “[...] ordens morais são construções frágeis, que, de uma só vez, protegem o corpo de lesões corporais e a pessoa de lesões internas ou simbólicas” e mais justifica a análise através de uma filtragem constitucional ao afirmar que “princípios morais, de origem jus-racional, são, hoje, parte integrante do direito positivo. Por esta razão, a interpretação constitucional, assume uma forma, cada vez mais, jus-filosófica”, conforme o mesmo Jürgen Habermas (1992, p. 39).

Neste sentido, das ordens morais decorrerem as normas morais, assim esclarecendo Luiz Fernando Coelho (2003, p. 225) que referidas ordens

[...] estão estreitamente relacionadas com as jurídicas, pois ambas têm por objeto os atos humanos, muito embora o aspecto interno ou externo prevaleça ora em umas, oura em outras, já que ao direito não deixa de interessar a formação da vontade individual, assim como à moral interessa também a prática exterior das ações humanas.

Diante deste sentido de relação que há entre ordens morais e normas

morais, deve ser acrescentada a informação de que a distinção entre direito e moral quase nem sempre é fácil de estabelecer, haja vista que conforme assevera Washington de Barros Monteiro (1982, p. 3),

[...] ambos têm ponto de contato e pontos de dessemelhança; têm eles uma comum base ética, uma idêntica origem, a consciência social. Ambos constituem normas de comportamento. Não é só: o direito e a moral regulam atos de seres livres, os homens tendo um e outra por fim o bem-estar do indivíduo e da sociedade.

Este procedimento decorre de que o homem na vida em sociedade

está igualmente adstrito à observância de normas de procedimento que não somente jurídicas, como a gratidão, a cortesia, a urbanidade, a educação, entre outras. Nas palavras de Vanessa Iacomini (2009, p. 26),

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O ser humano tem uma identificação, uma essência representada de forma diferente com o passar dos tempos, mas que sempre está focada nas raízes animal-racional e corpo-alma. A realidade é que o homem sempre é envolvido de sentimentos e ações humanas que acabam por demonstrar seu próprio senso moral, ou como alguns doutrinadores preferem dizer, sua consciência moral, considerando-se que, em diversas situações, o homem deve decidir sobre situações, e de forma clara acaba por utilizar-se de seu senso em união às características do tempo e do espaço sobre o como e por que decidir em um sentido particular, dirige-se ao bom ou ao mau, ou seja, distingue entre bem e mal.

Assim, se pode inferir que bens extrapatrimoniais são aqueles que

estão adstritos à esfera subjetiva da pessoa e da sociedade em que está inserido, decorrente de “ordens morais” ou seja, são aqueles que:

a) envolvem os aspectos mais íntimos da personalidade humana, como a intimidade e a consideração pessoal;

b) resultam de própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua, seja este meio profissional ou somente social, e refletem a reputação ou a consideração social;

c) estão diretamente ligadas à personalidade da pessoa e que levam a análise do sentimento mais íntimo tais como a sua espiritualidade, a liberdade, dignidade, respeitabilidade, a honra, conforme Adriano de Cupis (1961, p. 111), e a personalidade moral.

Verifica-se desta forma, que a ideia de moral está vinculada à personalidade, à ética da pessoa humana, ao procedimento e atitudes que estão de acordo com o direito, aos bons costumes, a honestidade e a justiça.

Porém, a ideia ética de moral normalmente não se aplica ao Direito, conforme explica Mauro Vasni Paroski (2006, p. 45):

Essa compreensão, entretanto, não é apropriada para que seja entendido o dano de ordem moral. Na acepção que interessa o Direito, o dano moral se reveste de conseqüências jurídicas, que nem sempre vêm acompanhadas de conteúdo ético. Muitas vezes as infrações às regras éticas não têm repercussão no âmbito do Direito. Determinada conduta ofensiva pode não ser moralmente reprovável pela sociedade, mas, ainda assim, ser lesiva a bens imateriais do ofendido. Logo, moral é o adjetivo que define o dano causado a bens imateriais, insuscetíveis de apreciação econômica, não se confundindo com a conduta de quem praticou a ofensa, se está ou não, em harmonia com aquilo que a sociedade concebe como sendo preceitos morais. Este aspecto é irrelevante para o estudo do dano e seus efeitos.

Diante desta breve exposição quanto à definição do que seria “bem

extrapatrimonial”, deve-se efetuar a análise dos reflexos em relação ao “dano extrapatrimonial”, aqui denominado dano moral.

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15.5 O DANO MORAL (EXTRAPATRIMONIAL)

Conforme o exposto, definindo-se o que é “bem extrapatrimonial”,

Zeno Simm (2008, p. 180) afirma que “[...] dano extrapatrimonial (ou dano moral em sentido amplo) é toda a violação a bem extrapatrimonial, ou seja, que não há uma concreta diminuição de patrimônio (pelo menos daquele avaliável economicamente)”, e complementa alegando que, “[...] seguindo essa linha, os autores em geral ligam o dano moral à transgressão dos chamados direitos de personalidade”.

Dano Moral, para Gislene A. Sanches (1997, p. 32) é a ofensa a bens de caráter moral já estava implicitamente contida no conceito de dano, mas devido à resistência da doutrina até certo ponto e, principalmente, da jurisprudência, foi preciso adjetivar o substantivo dano para que adquirisse um conceito inequívoco.

Para Mauricio Godinho Delgado (2010, p. 582), “[...] dano moral corresponde a toda dor psicológica ou física injustamente provocada em uma pessoa humana”.

Já José Affonso Dallegrave Neto (2007, p. 151), faz a seguinte distinção:

[...] quando o dano repercute sobre o patrimônio da vítima, entendido como aquele suscetível de aferição em dinheiro, denominar-se-á dano patrimonial. Ao revés, quando a implicação do dano violar direito geral de personalidade, atingindo interesse sem expressão econômica, dir-se-á, então, dano extrapatrimonial.

Francisco Ferreira Jorge Neto e Jouberto de Quadros Pessoa

Cavalcante (2008, p. 805), assim conceituam o dano moral ou dano extrapatrimonial como sendo aquele que “[...] se opõe ao dano material, não afetando os bens patrimoniais propriamente ditos, mas atingindo os bens de ordem moral, de foro íntimo da pessoa, como a honra, a liberdade, a intimidade e a imagem”.

Mauro Vasni Paroski (2006, p. 46), o define o dano moral, em sentido amplo, como sendo “[...] a lesão provocada por ato antijurídico de outrem, sem a concordância do lesado, a interesses ou bens imateriais deste, tutelados pelo Direito, ensejando compensação pecuniária”.

José de Aguiar Dias (1995, p. 730), declara como certo que o dano moral

[...] não é o dinheiro nem coisa comercialmente reduzida a dinheiro, mas a dor, o espanto, a emoção, a vergonha, a injúria física ou moral, em geral uma dolorosa sensação experimentada pela pessoa, atribuindo à palavra dor o mais largo significado.

Uma das mais abrangentes definições de dano moral é apresentada

por Yussef Said Cahali (2005, p. 22),

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[...] como a privação ou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz, a tranqüilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade individual, a integridade física, a honra e os demais sagrados afetos”; classificando-se, desse modo, em dano que afeta a “parte social do patrimônio moral” (honra, reputação, etc.) e dano que molesta a “parte afetiva do patrimônio moral” (dor, tristeza, saudade, etc.); dano moral que provoca direta ou diretamente dano patrimonial (cicatriz deformante etc.) e dano moral puro (dor, tristeza, etc.).

Assim, mesmo diante de algumas poucas definições de “dano moral”,

pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que se trata de uma violação a direitos da personalidade adstritos a direitos fundamentais consagrados na Constituição pátria pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

Aliás, a Constituição de 1988, que tem como princípio fundamental a preservação da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República, não só protege “[...] o direito à vida, mas pretende assegurar o direito de viver com dignidade”, conforme assevera Sebastião Geraldo de Oliveira (2010, p. 266), tanto é que Carta Magna expressamente admite o cabimento da indenização decorrente do “dano moral” ou “dano extrapatrimonial” como queiram, ao dispor nos incisos V e X, do artigo 5º, que:

[...] V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (BRASIL, 1988, web).

Desta forma, positivou-se o direito à indenização, que se propaga

para outros ramos do Direito, inclusive o Direito do Trabalho. Também o Código Civil de 2002, acolheu expressamente o dano

moral quando estabeleceu no artigo 186: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, e de forma implícita nos artigos 953 e 954 do “CODEX”.

Portanto, conforme afirma Alice Monteiro de Barros (2006, p. 634), essa propagação aos demais ramos “[...] procede em geral, quando se atenta contra princípios axiológicos do Direito (igualdade e liberdade) e/ou contra os direitos de personalidade”.

Diante destes aspectos até então abordados, passa-se a análise do dano moral no ambiente de trabalho.

15.6 O DANO MORAL NO AMBIENTE DE TRABALHO

Faz-se aqui uma brevíssima abordagem dos casos mais comuns de

dano moral no ambiente de trabalho, mais especificamente os que afetam de forma efetiva e objetiva o direito de personalidade do indivíduo.

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Porém, já de plano justificando a delimitação do tema, pois conforme

assevera Mauro Vasni Paroski (2006, p. 103), “[...] o contrato de trabalho é uma fonte quase inesgotável de exemplos de situações que geram danos extrapatrimoniais, passíveis de reparação através da indenização compensatória, não sendo prudente e nem exato pretender confeccionar um rol exaustivo nesse sentido [...]”.

Mesmo por que o dano moral, não só ocorre na fase contratual, mas também existem ocorrências nas fases pré-contratual e pós-contratual, conforme leciona Alice Monteiro de Barros (2006, p. 637), “[...] o dano moral geralmente ocorre na fase pré-contratual e contratual, podendo neste último caso, provocar ou não a resolução do pacto. O dano moral poderá ocorrer também na fase pós-contratual”.

Luciano Augusto de Toledo Coelho5 demonstra o seguinte:

A responsabilidade civil pré-contratual é questão controvertida na doutrina e de ocorrência ainda incipiente da jurisprudência pátria, máxime a trabalhista. Aborda-se o recrudescimento da necessidade de ampliação da responsabilidade ante os avanços tecnológicos e a globalização que afetaram o direito e o Direito do Trabalho. Sob o prisma do direito fundamental ao trabalho e da situação de sujeição do candidato a emprego, retoma-se o tema da obrigação complexa, da mitigação da vontade e da autonomia negocial, questionando-se a inserção da categoria do contrato de trabalho como negócio jurídico. Sob o prisma do princípio da boa-fé em seu aspecto limitador de direito e criador de deveres colaterais, como os de informação e de sigilo, fundamenta-se uma teoria da responsabilidade pré-contratual em direito do trabalho, a qual visa a tutelar o interesse negativo e relativizar o conceito de culpa como essencial para a responsabilidade pré-contratual. Finalmente, propõe-se a possibilidade da tutela específica no interesse positivo do trabalhador, superando-se o dogma de que a obrigatoriedade em contratar feriria princípios de liberdade contratual (COELHO, 2008, web).

Entretanto, conforme o enunciado do tópico se restringirá a análise

específica a apenas alguns casos direcionados diretamente ao “ambiente de trabalho”, local em que se presume ocorre por longo tempo a permanência do empregado para desenvolver as atividades laborais, e a verificação geral direcionado a outros casos que se apresentam, não com tanta frequência, mas não deixam de ter a sua importância nos reflexos de violação aos direitos de personalidade.

15.6.1 Acosso psíquico

Sem, contudo apresentar uma graduação, para indicar qual seria a

atitude mais mórbida e danosa ao empregado, mesmo porque está-se

5 COELHO, Luciano Augusto de Toledo. Responsabilidade civil pré-contratual em direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2008, resumo no site http://www.ltr.com.br/web/index.htm, acessado em 20.09.2015.

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tratando de “dano extrapatrimonial”, alçado de grande subjetividade, inicia-se a análise pelo acosso psíquico.

De acordo com Sérgio Fernando de Melo (2010, p. 566), acosso psíquico, também conhecido como assédio moral, mobbing, acosso moral, síndrome de burnout, gaslight, bullying, ijime, spillover, trote, harassment, whistleblower, terror psicológico, assédio psicológico, é utilizado para designar o mesmo fato e ora para traduzir situações distintas. Quando utilizados em relação ao ambiente de trabalho, o são para retratar “[...] condutas verticais (seja de sentido ascendente ou descendente), horizontais ou conjugando ambas, que através de uma lógica perversa e de maneira reiterada” (MELO, 2010, p. 569).

Já Zeno Simm (2008, p. 86) afirma que o acosso psíquico, diante de sua amplitude pode ser praticado não só pelo empregador mas como pelos seus prepostos, chefe ou subordinados, de forma individual ou em grupo, e ainda mais por diversas formas e modalidades, como por: assédio, aquela “insistência oportuna, junto de alguém, com perguntas, propostas, pretensões, etc.”, aplicando o terrorismo psicológico, através de perseguições insistentes, e de propostas não só de cunho moral mas podendo também ser de cunho sexual, causando opressão ao assediado com atitudes de maltrato ou exigências fora de um nível razoável de conduta e normalidade, ou seja prática que tem como objetivo desqualificar a vítima mediante tratamento vexatório, com o fim de desestabilizá-la e atingir o foro mais íntimo da pessoa a sua honra, a sua alma, violando a dignidade da pessoa humana do empregado, bem como seus direitos de personalidade, seus direitos fundamentais.

Como ensina Francisco Gonzáles Navarro (2002, p. 28), o acosso psíquico, ou pelo termo que utiliza o assédio moral

[...] constitui um atentado contra a alma do acossado, o que não impede que possa afetar também, embora sempre por via de conseqüência ou derivação, de forma alguma por modo direto ou substancial, a dignidade do homem, a sua liberdade e outros valores, interesses ou bens da personalidade que devam ser protegidos pelo Direito. Tradução nossa

Como observa Mauro Vasni Paroski (2006, p. 109), o acosso

psíquico, que também deixe-se claro, não é um problema exclusivamente do ambiente de trabalho haja vista que pode ocorrer em outros ambientes, sem sombra de dúvidas gera grande desconforto para aquele que está sofrendo, pois se trata de ações muito mais agravantes no ambiente laboral, em razão de que aquele que pratica os atos nocivos sabe o dano que está causando, pois coloca como moeda de troca em relação a estas atitudes perniciosas a manutenção da relação de emprego, a continuidade do meio de subsistência do trabalhador que normalmente não tem outra fonte de renda, levando-o a quase uma situação de servidão, pois a situação faz gerar

[...] um clima de intranquilidade, hostilidade e até mesmo agressividade, que, por sua vez, não raro, leva ao sofrimento e ao constrangimento, além de

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produzir graves efeitos psicossomáticos, na pessoa da vítima, influenciando negativamente sua vida pessoal, familiar e social.

Para Marie-France Hirigoyen (2001, p. 65), o assédio moral, ou

mobbing, é todo comportamento abusivo (gesto, palavra e atitude) que ameaça, por sua repetição, a integridade física ou psíquica de uma PESSOA, degradando o ambiente de trabalho; são microagressões, pouco graves se tomadas isoladamente, mas que, por serem sistemáticas, tornam-se destrutivas.

15.6.2 Acidente do trabalho

Além da Constituição, pelo artigo 7º, inciso XXII, estabelecer que são

direitos de todos os trabalhadores “[...] a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”, também existem outras normas infraconstitucionais, como as insertas nos artigos 157, 158 e seus incisos, da Consolidação das Leis do Trabalho, determinando que tanto cabe às empresas cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho, como aos empregados observar e cumprir as instruções.

Aliás conforme, informa Mauro Vasni Paroski (2006, p. 129), Imensa a quantidade de normas expedidas pelo Ministério do Trabalho, em especial as chamadas NR (Normas Regulamentadoras), totalizando vinte e seis (26), aprovadas pela Portaria 3.214, de 08.06.1978, regulando as matérias de sua competência, entre elas as pertinentes à segurança, higiene e medicina do trabalho, contemplando as disposições dizentes à proteção do trabalhador nos locais de prestação de serviços e prevenção contra os riscos de acidentes de trabalho.

Porém conforme assevera Sebastião Geraldo de Oliveira (2007, p.

207), O certo é que o ato ilícito – como é o caso do acidente do trabalho por culpa ou dolo do empregador – pode provocar danos materiais e danos morais, ou seja danos patrimoniais e extrapatrimoniais. E ninguém nega os acidentes do trabalho e as doenças ocupacionais que geram morte ou invalidez repercutem inevitavelmente no equilíbrio psicológico, no bem-estar ou na qualidade de vida da vítima e/ou de sua família. Com frequência o evento acidente representa o desmonte traumático de um projeto de vida, a “prisão” compulsória numa cadeira de rodas, o isolamento da vida em sociedade ou o desamparo da orfandade.

Portanto, o acidente do trabalho, pode deixar um aleijão, uma

deformidade estética no acidentado de forma a afetar as atividades que desenvolvia e aquelas que nunca mais poderá desenvolver, causando-lhe de forma substancial impactos na sua vida social abalando o seu equilíbrio

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psicológico, e a sua personalidade posto que muitas das vezes terá de conviver com as sequelas para o resto de seus dias de vida.

Mas e se do acidente causar a morte, o dano extrapatrimonial então será de um rigor, um agravamento ainda maior, posto que o bem maior, “o direito a vida”, princípio fundamental do Estado protegido através do artigo 5º, da Carta Magna fora violado, e com isto todos os direitos de personalidade, haja vista que estes são inerentes à pessoa e fazem parte da dignidade da pessoa humana. Assim, razão não há para que os herdeiros do falecido deixem de perceber a indenização por dano moral, tanto em relação ao falecido como em relação a eles mesmos que também sofreram na intimidade pela perda de um ente querido.

15.6.3 Imputação caluniosa, injúria e difamação

A imputação caluniosa, a injúria e a difamação, são atos lesivos que

efetivamente vão de encontro a um bem extrapatrimonial que está diretamente ligado à personalidade do indivíduo a “honra”, tanto é que este bem, que se funda na dignidade da pessoa é inerente ao indivíduo, podendo, de acordo com Alice Monteiro de Barros (2006, p. 624-625), ser conceituada em seus aspectos objetivo e subjetivo da seguinte forma:

O primeiro consiste na valoração de nossa personalidade feita pelos membros da sociedade; é a boa reputação que compreende a estima política, profissional artística, e comercial, literária e de outros âmbitos da respeitabilidade. O segundo aspecto (honra subjetiva) é o sentimento de dignidade da própria pessoa. É a auto-estima. A honra subjetiva se identifica, portanto, com o sentimento que a pessoa tem de sua própria dignidade.

A honra se reveste de tal importância que, nas palavras de Mauri

Vasni Paroski (2006, p. 135), “[...] ocupa posição de destaque no cenário jurídico nacional, como pode ser observado do art. 5º., inc. X, da Constituição, ao assegurar a sua inviolabilidade e o direito de indenização em caso de violação da garantia fundamental” e complementa ao asseverar “[...] além de merecer tratamento em disposições específicas no novo Código Civil, que em seu art. 9536 manda o ofensor indenizar a injúria, a difamação e a calúnia, reparando o dano que resultar à vítima”.

Como não poderia deixar de ser no Direito do Trabalho, também se reveste de normas que visam à proteção da honra: a) em relação ao empregado no artigo 483, letra “e”, da CLT, concedendo-lhe o direito a considerar rescindido indiretamente o contrato de trabalho bem como pleitear a indenização devida, quando “praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama”; b) em relação a outras pessoas e ao empregador no artigo 482, letras “j” e “k”, que assim dispõem:

6 Código Civil de 2002. art. 953. A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido.

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j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;

Portanto, evidente que qualquer ato lesivo praticado seja pelo

empregador ou pelo empregado, que tenham conotações de violação à honra, por injúria, calúnia ou difamação, revestem-se de lesão direta a direito de personalidade.

15.6.4 Outros casos lesivos que resultam dano extrapatrimonial

Existem outros casos de ações lesivas, praticadas no ambiente de

trabalho, que podem resultar em dano a bem extrapatrimonial, tais como: a) a revista íntima, quando executada sem as cautelas necessárias, violando a intimidade do indivíduo; b) restrição ao uso de banheiro, com violação ao direito de intimidade da pessoa; c) a discriminação no ambiente de trabalho, quando um empregado é preterido, de forma grosseira, em relação aos demais para determinada tarefa ou mesmo promoções e vantagens, ou mesmo submetendo-o a situações vexatórias perante os demais companheiros de trabalho; d) submissão do empregado a exames de investigação de doenças tais como “vírus HIV”, “Hepatite B”, “gripe suína”, etc.; e) transferências abusivas, com o intuito de desvirtuar, impedir ou fraudar preceitos legais; f) quando o empregador pratica atos que extrapolam o jus variandi.

Conforme se pode verificar, e confirmando o expresso no início deste tópico a relação de trabalho “[...] é uma fonte quase inesgotável de exemplos de situações que geram danos extrapatrimoniais”, sendo que estas práticas que se não evitadas no ambiente de trabalho (não significa que não devam ser evitadas em outros ambientes) levam sem sombra de dúvidas ao resultado danoso de cunho moral que deve “[...] ser indenizado pelo empregador justamente por ter descumprido o dever contratual trabalhista”, conforme Filipe Barbosa Garcia (2009, p. 63), que por sua vez de uma forma ou outra levam à violação de algum dos direitos de personalidade.

15.7 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, REFORMA TRABALHISTA, PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO E EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS TRABALHADORES

A transformação do mercado de trabalho deve ser marcada pelo

desenvolvimento sustentável, ou seja, considerando em conjunto os aspectos econômico e social. Esta é a perspectiva abordada por Bresser Pereira (1980, p. 21):

[...] desenvolvimento é um processo de transformação econômica e social, através do qual o crescimento do padrão de vida da população tende a tornar-

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262 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

se automático e autônomo. Trata-se de um processo social global, em que as estruturas econômicas, políticas e sociais de um país sofrem contínuas e profundas transformações... Se o desenvolvimento econômico não trouxer consigo modificações de caráter social e político, se o desenvolvimento político não for a um tempo o resultado e causa de transformações econômicas, será porque de fato não tivemos desenvolvimento.

Se não houver melhoria na condição social da população,

destacando-se o papel do mercado de trabalho, não se pode falar em desenvolvimento, mas, no máximo, em crescimento econômico, fator que não é suficiente para caracterizar a sustentabilidade, conforme Celso Furtado (2004, p. 484):

[...] o crescimento econômico, tal qual o conhecemos, vem se fundando na preservação de privilégios das elites que satisfazem seu afã de modernização; já o desenvolvimento se caracteriza pelo seu projeto social subjacente. Dispor de recursos para investir está longe de ser condição suficiente para preparar um melhor futuro para a massa da população. Mas quando o projeto social prioriza a efetiva melhoria das condições de vida dessa população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento.

Enquanto não houver uma possibilidade ampla e direta da maioria da

população em participar e se beneficiar do processo de expansão econômica, através da “[...] criação de oportunidades sociais básicas para a equidade e justiça social”, pois esta “[...] contribui diretamente para a expansão das capacidades humanas e de qualidade de vida”, não se poderá raciocinar em desenvolvimento efetivo, de acordo com Amartya Sen (2010, p. 190-191).

Conforme Fernando Hoffmann (2003, p. 214), para fundamentar o desenvolvimento sustentável, principalmente no seu aspecto social, deve-se utilizar do princípio da proteção, o qual servirá de orientação para defender a inaplicabilidade da flexibilização e, mais ainda, da desregulamentação dos direitos de proteção ao trabalhador, evitando a precarização do trabalho humano:

Há que ser interpretado o princípio protetor, então, como cumpridor de relevante função no Direito do Trabalho brasileiro, uma vez que reafirmando o nobre ideal da dignidade humana, não admite que a interpretação e a solução de conflitos de regras jurídicas, qualquer que seja a sua natureza, preste-se à precarização do trabalho humano e à diminuição do patrimônio do trabalhador hipossuficiente.

Importante mencionar que qualquer transformação, no mercado de

trabalho, principalmente quando o intuito é alavancar a economia, deve se dar de forma equilibrada, protegendo o trabalhador, tanto quanto à manutenção de seu emprego e das vagas de trabalho, como das suas relações de trabalho, de acordo com Ana Lúcia Sabadell (2008, p. 107-108):

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O direito da personalidade no ambiente do trabalho... // 263

[...] o direito pode adotar posições de reconhecimento, de anulação, de canalização ou de transformação de suas tendências. No primeiro caso (reconhecimento), o direito reconhece através de suas normas a nova realidade social, declarando a sua legitimidade e, ás vezes, criando instrumentos jurídicos que consolidam a mudança. No segundo caso (anulação), o sistema jurídico opõe-se a mudança, ignorando-a ou mesmo aplicando sanções contra determinadas inovações. No terceiro caso (canalização), o direito tenta limitar o impacto de uma mudança ou alterar os seus efeitos, através de reformas que satisfazem parcialmente as reivindicações sociais. No último caso (transformação), o direito assume um papel particularmente ativo: tenta provocar uma mudança na realidade social por meio de reformas graduais e lentas (transição) ou mesmo radicais e rápidas (revolução).

É preciso entender as mutações ocorridas na sociedade para

escolher o melhor caminho a seguir, indicado por Arion Sayão Romita (2009, p. 225) que as alterações mais relevantes foram a globalização da economia e a revolução científica e tecnológica, surgindo agora a empresa de terceiro tipo:

[...] que atua no âmbito de uma economia mundializada, dentro de sistemas industriais cada vez mais complexos e interligados, sob a influência de tecnologias cada vez mais sofisticadas que causam a desestabilização dos antigos equilíbrios, ameaçam os mercados cativos e geram desempregos.

O princípio da proteção é orientador do ordenamento jurídico

trabalhista brasileiro e, portanto, deve ser analisado tanto no ambiente legislativo quanto judicial, e, neste último, cabe ao julgador a sensibilidade de analisar as transformações sociais e de decidir de forma equilibrada, aliando a proteção do trabalhador e as demais formas de desenvolvimento de acordo com Lídia Reis de Almeida Prado (2008, p. 103):

Esse julgador sensível, - em sintonia com o sofrimento, alegria e anseio da sociedade para a qual trabalha -, faz-me lembrar de um hexagrama que entre os chineses é sinônimo de paz e que é formado por três linhas inteiras sobre três interrompidas: simboliza o masculino que sustenta o feminino, o animus e a anima. Assim, esse símbolo da convivência do Yin e do Yang reflete um milenar sistema filosófico-religioso, que reconhece tanto as diferenças de gênero, como a respectiva coexistência. Essas configurações arquetípicas podem transmitir a todos, juízes ou não, alento para empreender um esforço interno, que objetiva o diálogo e a conciliação de opostos. E todo o esforço será pouco, porque, como vimos, é extremamente árduo para a consciência – a qual muitas vezes desliza para um padrão de comando (patriarcal) ou de prazer (matriarcal) -, permanecer no estado de alteridade.

Para Leonardo de Gênova (2009, p. 29), o princípio da proteção pode

ser aplicado pela regra in dubio pro operario, da norma mais favorável ou da condição mais benéfica, tendo como conceito ser:

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264 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

(...) basilar, a raiz, a viga mestre, o núcleo do direito do trabalho, sendo que o fundamento da proteção está ligado diretamente com a sua própria existência, pois sem ela não haveria razão de ter uma ciência própria, consolidando normas, doutrinas e jurisprudências próprias.

Já para Mauricio Godinho Delgado (2004, p. 82), o princípio da

proteção não possui aplicação indiscriminada, principalmente quando confrontado com princípios exteriores ao Direito do Trabalho, como os da proporcionalidade, razoabilidade e do não enriquecimento sem causa, sendo tal princípio “[...] uma teia de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia – o obreiro – visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho”.

Deve-se citar, ainda, o posicionamento de Paulo Ricardo Schier (1999, p. 131), que destaca os princípios como fundamento da ordem jurídica justa, sendo que o julgador no caso concreto obterá a justiça através da relação de ponderação dos princípios, rompendo

[...] com a interpretação e aplicação formalista e positivista do Direito, pois o problema de realização da ordem jurídica deixa de tomar um exclusivo comprometimento com as questões de validade e vigência e passa a assumir, mediante a ponderação, a dimensão da relação de justo/injusto do caso concreto.

Leonardo de Gênova (2009, p. 54) também explica que é exatamente

em razão da aplicação do princípio da proteção, explicitado e demonstrado anteriormente, que não se pode aceitar a ideia de flexibilização ou desregulamentação do Direito do Trabalho, pois tais medidas não significam “[...] aumento de empregos e segurança jurídica nas negociações coletivas, pelo contrário, aumentará o trabalho precário e enfraquecimento dos sindicatos”.

Vale citar o entendimento do mesmo autor (2009, p. 53), correlacionando o princípio da proteção com o sistema econômico:

[...] o princípio da proteção tem como um dos fundamentos a dignidade do trabalhador; dessa forma, é justificável o seu valor. Por outro lado, a flexibilização que degrada o direito do empregado não possui valor-fonte de dignidade humana, pelo contrário, é um mecanismo econômico (fenômeno) criado por um sistema político-econômico (liberalismo), sendo que esse mesmo sistema influenciou o surgimento do direito do trabalho para coibir os seus abusos.

Qualquer que seja a transformação ocorrida no mercado de trabalho,

seja pela desregulamentação, flexibilização ou reforma trabalhista, deve preservar a eficácia dos direitos fundamentais dos trabalhadores, ou seja, o foco deve ser sempre o ser humano e a sua dignidade.

Resta interessante citar que a Constituição francesa, de 1973, ao tratar dos direitos fundamentais, elencou a felicidade comum, e, por consequência, o bem-estar dos cidadãos como direito fundamental, e, com

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O direito da personalidade no ambiente do trabalho... // 265

certeza, isso somente será possível com a preservação da dignidade do ser humano, principalmente, através da criação e da manutenção de postos de trabalho sustentáveis, ou seja, em que o homem possa extrair o sustento para si e para a sua família de forma digna, com a preservação de seus direitos fundamentais.

Júlio Ricardo de Paula Amaral (2007, p. 51) explica que é certo que deve haver uma ponderação, um equilíbrio entre os direitos fundamentais do trabalhador e a necessidade de uma reforma trabalhista, mesmo porque tais direitos não são absolutos e “[...] podem sofrer limitações, mas isso somente pode ocorrer desde que haja uma justificativa plausível para o estabelecimento das respectivas restrições, e, ainda, somente depois de uma ponderação entre os direitos eventualmente conflitantes”.

O fato é que em qualquer transformação pensada para o mercado de trabalho sempre haverá, de um lado, direitos do empregado, e, de outro, bens do empregador, ambos constitucionalmente garantidos, sempre ressaltando não se poder falar apenas em empregado, muito menos tratá-lo como mercadoria, como mais um número em meio a lucros e prejuízos, sendo preciso entender que o trabalhador deve ser analisado como um cidadão, detentor de um meio social, com família e dignidade, e tudo deve ser considerado em qualquer mudança, conforme o mesmo autor (2007, p. 80-85).

Ingo Wolfgang Sarlet (2012, p. 101) afirma que no fundo, todos os direitos fundamentais são de certa forma relacionados com o princípio da dignidade da pessoa humana, mesmo que indiretamente e com intensidades diferenciadas; por fim, “[...] em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa”.

Clayton Reis (2009, p. 698) explica que “[...] as relações interpessoais que se operam nos contratos de trabalho, devem ser pautadas por princípios de respeito e consideração, bem como, de socialidade assegurado pela norma constitucional”.

Em razão do exposto, extrai-se que qualquer que seja a reforma trabalhista pensada para determinada sociedade, deve ela ser construída com base no princípio da proteção e no desenvolvimento sustentável, não se admitindo mais que sejam considerados apenas o desenvolvimento econômico, em detrimento das suas demais formas.

15.8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, se constata que as crises econômicas possuem

uma relação muito grande com a prática de alguns empregadores no desrespeito aos direitos de personalidade de seus empregados.

A reparação do dano extrapatrimonial é, de certa forma, recente dentro da ciência do direito pátrio, consequência da evolução da sociedade, mormente após a ocorrência da Segunda Guerra Mundial, seja pela Declaração Universal em 1948, que com suas normas provocou uma nova visão do homem dentro da sociedade, ou seja, pelo fenômeno globalização

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266 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

que trouxe novo sentido à questão da economia e a relação entre o indivíduo e a sociedade (do viver em comunidade), fato é que referidos fenômenos sociais fizeram ocorrer verdadeiro avanço nas ciências da filosofia, da psiquiatria, da sociologia, da biologia e também na própria ciência do direito, principalmente no Direito Constitucional.

A evolução do Direito Constitucional trouxe a lume os direitos fundamentais de terceira geração, denominados direitos de solidariedade ou fraternidade, que fazem caminhar de forma harmoniosa os direitos humanos com os direitos de personalidade, e estes têm como princípios o reconhecimento de que a pessoa tem um valor em si mesmo, tem dignidade, tem sentimentos, corpo e alma que formam um bem extrapatrimonial que não é mensurável economicamente, mas quando violado deve ser indenizado.

Os supracitados princípios se irradiam para os demais ramos do direito, inclusive o do trabalho e que devem estar presentes no contrato de trabalho, com o objetivo de preservar a dignidade da pessoa humana do empregado, bem como de seus direitos da personalidade seus direitos fundamentais.

Sempre haverá um conflito incessante entre a necessidade do alcance cada vez maior de lucros, imposto pelo sistema capitalista, e a necessidade de preservação dos direitos fundamentais dos verdadeiros trabalhadores-cidadãos, fator que incentivará mudanças constantes para a própria manutenção do sistema, que, na sua própria evolução, deverá sempre colocar como ponto chave a existência do ser humano com dignidade.

Importante se ter em mente que o Direito Fundamental do empregado pode e deve existir sempre em harmonia com os Poderes do empregador, mas nenhum lucro deste será motivo para se retirar direitos ou aviltar a figura daquele, devendo o empregador pensar se gostaria, caso estivesse no lugar de seu trabalhador, de ter uma pressão desnecessária com o intuito da produtividade desmesurada.

15.9 REFERÊNCIAS

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= XVI =

O SER HUMANO ENQUANTO SUJEITO DE DIREITO E SUA DIGNIDADE COMO VETOR DO RECONHECIMENTO DOS NOVOS DIREITOS DA

PERSONALIDADE

Diogo Basilio Vailatti* Fernando Peres**

Marcelo Benacchio*** 16.1 INTRODUÇÃO

A previsão do ser humano como sujeito de direitos, além da garantia

desses direitos, também impede o retrocesso para um modelo social e jurídico no qual alguns seres humanos possam ser alijados total, ou parcialmente, de seus direitos da personalidade.

Neste início de milênio, a intensificação da sociedade da informação e da globalização torna evidente, em algumas situações, o descompasso entre a previsão legislativa (como processo de produção da norma jurídica) e o Direito enquanto obra do bom e do justo.

Se ficarmos presos à dogmática legalista positivista não estaremos a serviço da humanidade, de outra parte, uma abertura excessiva realizada por pessoas sem conhecimento jurídico filosófico amplo – os jurisprudentes – pode resultar em resultados igualmente indesejáveis e, até mesmo, enfraquecer o modelo protetivo existente, o qual representa a evolução de séculos das sociedades humanas.

No estudo que segue, optou-se por verificar se a dignidade da pessoa humana poderia ser o vetor valorativo do reconhecimento e aplicação tanto dos direitos da personalidade já existentes quanto dos ainda em processo de reconhecimento.

Nessa perspectiva, a investigação é iniciada pela compreensão do sujeito de direito desde o pensamento político-jurídico iluminista. Assim, examinou-se o momento no qual havia coincidência entre a lei e o direito, ou seja, somente o corpo legislativo por meio da lei poderia atribuir condição de sujeito de direito.

Seguiu-se pela insuficiência desse pensamento consoante exame de fatos históricos de opressão dos homens, após tratamos dos aspectos dos

* Mestrando em Direito pela Universidade Nove de Julho. Bolsista e pesquisador Capes.

Advogado. ** Mestrando em Direito pela Universidade Nove de Julho. Especialista em Direito do Trabalho

pela Universidade de São Paulo. Advogado. *** Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica. Professor permanente do mestrado

em Direito da Universidade Nove de Julho. Juiz de direito.

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270 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

direitos do homem (aspecto mais amplo que inclui os direitos da personalidade) e sua íntima ligação com a noção de sujeito de direito.

Tratar-se-á ainda da definição do sujeito de direito iluminado pela dignidade da pessoa humana, portanto, sua condição de titular de direitos depende da dignidade humana e não, simplesmente, da lei, o que afasta o processo de reconhecimento e aplicação dos direitos da personalidade da condição de uma exegese pura do sistema jurídico, nos moldes anteriormente traçados pela Escola da Exegese.

Após analisar tais diretrizes, enquanto valor próprio do ser humano sujeito de direitos, verificar-se-á como a dignidade da pessoa humana pode levar ao reconhecimento de novos direitos da personalidade. No caso, para fins exemplificativos, do efervescente processo que viveu-se, escolheu-se por pinçar-se o direito ao esquecimento, o qual não está expressamente previsto na Constituição Federal tampouco no Código Civil, para verificar o processo em questão.

Objetivando realizar tal investigação, o presente trabalho valeu-se de uma pesquisa revisional e bibliográfica para, através do método dedutivo, alcançar elementos mínimos para responder o questionamento levantado.

16.2 A RACIONALIZAÇÃO ILUMINISTA E A COMPREENSÃO DO SUJEITO DE DIREITO: QUAIS AS BASES PARA O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE?

No período anterior à fase moderna – a Idade Média – o Direito

encerrava uma ordem transcendente ao poder estabelecido, assim, o soberano não tinha poderes para criar ou modificar a ordem jurídica, tão só seguia os desígnios de Deus.

Em razão da existência de uma ordem material pressuposta e emanada do poder divino não havia necessidade da formulação legislativa, a lei era coincidente ao costume e, portanto, não tinha por fonte um ato voluntário no sentido atual.

No período moderno o homem procede à quebra com a ordenação de origem teleológica e metafísica fundado em sua autonomia e racionalidade. Desse modo, o homem moderno-iluminista afirma sua liberdade perante o mundo, rompendo com a obediência a leis extrínsecas que não eram de sua autoria e às quais se subordinara durante a idade média. O ser humano, racional, teria a responsabilidade pelos destinos da história (MELGARE, 2003, p. 19).

O homem iluminista permeado pelas ideias de liberdade vai conceber a criação do Direito por ele próprio em conformidade à inspiração racional (direito natural) ou voluntariamente elaborado (direito positivo), por meio da separação entre indivíduo e sociedade, é o tempo do individualismo jurídico.

Significativa a respeito são as primeiras palavras de Jean-Jacques Rousseau (2008, p. 17) na obra Do Contrato Social:

O homem nasceu livre e, no entanto, em toda parte, está sob ferros. Embora se creia senhor dos outros, não deixa de ser mais escravo que eles. Como

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O ser humano... // 271

se faz essa modificação? Ignoro-o. O que pode torná-la legítima? Creio poder resolver essa questão. Se eu não considerasse senão a força e o efeito que dela deriva, diria: Enquanto um povo é forçado a obedecer e obedece, faz bem; assim que puder sacudir o jugo, faz melhor ainda, pois, recobrando a liberdade pelo mesmo direito que dele a arrebatou, ou ele procura retomá-la, ou não se importa que lha suprimam. Mas a ordem social é um direito sagrado, que serve de base a todos os outros. Entretanto, este direito não vem apenas da natureza; baseia-se, pois, nas convenções. Trata-se de saber quais são essas convenções. Antes de chegar a isso, devo estabelecer o que acabo de adiantar.

O homem clama por sua liberdade, as amarras do pensamento

irracional e teocêntrico da idade média são abandonadas, somente caberia vinculação pela vontade, a qual é utilizada para fundar a criação do Estado (teorias contratualistas), não há mais espaço para a continuidade da ordem feudal e eclesiástica anterior, agora o ser humano é responsável por suas escolhas e caminhos sendo sujeito da própria existência.

O direito natural antes ditado por Deus, ora é alicerçado na razão humana. Na afirmação de Narciso Leandro Xavier Baez (2012, p. 39) “liberalismo decorre da passagem do direito natural objetivo, que era concebido anteriormente como norma divina e superior, para o direito natural subjetivo, que passava a ser uma faculdade inerente e inalienável do ser humano”.

A necessidade de criação de um ordenamento legislativo conforme a materialização da liberdade e autonomia permitirá a concepção da criação do poder político, cujo órgão legitimado à função de legislar (Poder Legislativo), fez surgir o positivismo em sua vertente moderna.

Norberto Bobbio (1995, p. 22) trata da distinção do direito natural e positivo nesse período (séculos XVII e XVIII) da seguinte forma: “[...] o direito natural é aquele de que obtemos conhecimento através da razão, de vez que esta deriva da natureza das coisas; o direito positivo é aquele que vimos a conhecer através de uma declaração de vontade do legislador”.

O movimento de valorização do ser humano, iniciado no renascimento, recebe valor científico por meio da compreensão racional moderno-iluminista da liberdade humana.

Para ser breve, a sequência de pensamentos filosóficos a exemplo de Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant, vão repercutir na criação científica liberal racional da absoluta coincidência entre a lei e o Direito, ou melhor, na redução do Direito à lei.

É fundada uma nova ordem política-jurídica com proeminência do Poder Legislativo dotado do poder de criar o Direito de forma abstrata e geral, o Poder Judiciário é limitado à função de pronunciar os ditames da lei, somente a interpretação autêntica é correta; firma-se a célebre assertiva de Montesquieu – “ o juiz é a boca que pronuncia as sentenças da lei”.

É importante observar que os sujeitos de direito somente tem essa condição em razão da concessão da lei. Em afronta ao ser humano,

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inspiração inicial desse ideário, não há distinção entre a pessoa física e jurídica, pois, as pessoas, enquanto sujeitos de direitos, seriam meras abstrações legais e, portanto, portadoras da mesma natureza jurídica. Hans Kelsen (1991, p. 87) é categórico ao referir que a pessoa física não é um indivíduo, mas a unidade personificada das normas jurídicas, tampouco uma realidade natural, mas uma construção jurídica criada pela ciência do Direito. Por fim, conclui neste sentido, que a chamada pessoa física é uma pessoa jurídica.

Gustav Radbruch (1997, p. 262) sintetiza esse pensamento da seguinte forma:

A verdade é que a igualdade perante a lei e a igual capacidade jurídica dos homens, que constituem a essência da ideia de “pessoa”, não são alguma coisa que resida necessariamente neles, nem nas associações que eles podem formar, mas sim alguma coisa que lhes é atribuída pela ordem jurídica. Ninguém é “pessoa” por natureza ou nascimento, originariamente. Bastaria já a existência da escravidão para o demonstrar. Ser “pessoa” é apenas o resultado dum acto de personificação que só a ordem jurídica pode praticar. Tanto as pessoas “singulares” como as “colectivas” ou “jurídicas” são, de facto, mera criação da lei. São rigorosamente tão “jurídicas” umas como outras. E portanto não é admissível a discussão sobre a natureza artificial ou fictícia de quaisquer delas.

Para doutrina positivista, há prevalência de uma fonte do direito, a

lei, sobre quaisquer outras (BOBBIO, 1995, p. 161), enfim, tudo é concessão racional da lei, enquanto voz da razão.

Diante disso, não basta condição humana para o reconhecimento dos direitos, o que inclui o direito à personalidade, foco do presente trabalho. Seguindo esta linha, é preciso o reconhecimento legislativo para a definição do sujeito de direito e suas titularidades. Com o positivismo o Direito ganha em certeza em vez de ganhar em justiça (MORANGE, 2004, p. 23).

O formalismo positivista é criticado por António Pedro Barbas Homem (2005, p. 44) da seguinte forma:

A época contemporânea produziu um direito impecável na sua apresentação formal, mas despojado de alma. O estilo seco e sem adjectivos e a linguagem fria e impessoal das leis denuncia uma ciência do direito que procura a perfeição dogmática, mas tantas vezes esquecendo que o direito existe para disciplinar a economia e a sociedade de modo justo, organizando direitos e interesses – e não para responder a problemas teóricos.

Noutra quadra, Willis Santiago Guerra Filho (2009, p. 43) menciona a

superação do positivismo estatuído por Kelsen conforme segue: O modelo de ciência jurídica proposto por Kelsen encontra-se atualmente superado não só pelo envolver natural dos paradigmas científicos, hoje distanciados do positivismo de outrora, i. e., por um fato intelectual, mas também por motivos histórico-sociais, já que a “teoria pura”, em suas linhas gerais, foi desenvolvida tendo como parâmetro o Direito nas sociedades

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europeias pré-Segunda Guerra Mundial – antes, portanto, de encerrado o ciclo histórico da modernidade e principiado o que já se convencionou chamar “pós-modernidade”. Nesse descompasso histórico podem-se talvez identificar elementos para a explicação da permanência do prestígio da doutrina Kelseniana em países como o nosso, em grande parte ainda em vias de completar sua “modernização”.

Essa compreensão legalista por meio da construção de uma ordem

legal, ancorada na positividade, apesar da aparente racionalidade, permitiu o distanciamento da lei frente ao Direito em virtude da tomada do poder legislativo por grupos políticos redundando em situações nefastas de opressão ao ser humano.

Muitos dos regimes totalitários do século XX utilizaram do paradigma positivista para objetivos flagrantemente opostos aos interesses do ser humano, da democracia e da liberdade.

O exemplo de maior impacto e constantemente lembrado – para nunca mais ocorrer – é a Alemanha Nazista durante a Segunda Grande Guerra Mundial ao excluir seres humanos da titularidade de direitos básicos (vida, liberdade e propriedade) ao realizar o Holocausto por meio da negação da humanidade com o extermínio de seres humanos os quais não eram possuidores da condição jurídica de titular de direitos. Ricardo Sayeg e Wagner Balera (2011, p. 91-92) comentam o aspecto normativo e a cronologia das atrocidades ocorridas da seguinte forma:

Em 13 de setembro de 1935, Adolf Hitler promulga as chamadas Leis de Nuremberg para a proteção do sangue e da honra alemã; em 14 de novembro, é publicado o primeiro decreto da Lei Nacional de Cidadania, determinando a definição do termo “judeu” e a condição de Mischling, isto é, de sangue impuro: por essa norma, a origem ariana converte-se em condição indispensável para nomeações oficiais e proíbe-se o matrimônio entre judeus e os Mischlinge. Na primavera de 1937, os empresários judeus perdem suas empresas sem qualquer justificação legal; e, aos 12 de julho, Reinhard Heydrich, conhecido como o “carrasco”, dá ordem secreta de custódia aos profanadores da raça ariana, mesmo após terem eles cumprido pena criminal, levando-os para manicômios e institutos do gênero; em 26 de março de 1938 é publicado o decreto referente à declaração obrigatória de todos os bens de propriedade de judeus de valor superior a 5 mil marcos; aos 14 de julho é publicado o terceiro decreto da Lei de Cidadania do Reich, que determinava a inscrição em registro público de todas as empresas de propriedade de judeus; aos 17 de agosto é publicado o segundo decreto da Lei de Troca de Nomes de Família e Apelidos, determinando aos judeus a adição obrigatória dos prenomes Sara e Israel; no último bimestre de 1938, com a imposição de uma multa solidária e coletiva contra eles de 125 milhões de marcos, foram publicados decretos referentes à eliminação deste últimos da economia alemã, bem como a ordem de arianização de todas as empresas judias e o confisco de todos os bens de propriedade de judeus; nos dias 9 e 10 de novembro são encarcerados mais de 20 mil judeus, e no dia 15 as crianças judias são expulsas das escolas; em 1940, os judeus passam a ser deportados; em 7 de março de 1941 é dada a ordem de

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trabalhos forçados aos judeus alemães; em 31 de julho, Hermann Göring, fundador da Gestapo e fomentador dos campos de concentração, encarrega Heydrich da evacuação de todos os judeus europeus nos territórios ocupados pela Alemanha; a 1º de setembro, são determinadas novas limitações à liberdade de locomoção e a todos os judeus a obrigação de usar costurada na roupa uma estrela de Davi amarela; em 17 de setembro começa a deportação geral dos judeus alemães; a 24 de abril de 1942, os judeus são proibidos de usar transportes públicos; em junho inicia-se o extermínio maciço de judeus em Auschwitz, por meio de gases; em 18 de setembro ocorre uma drástica redução nas rações de comida para os judeus; em 30 de setembro, Hitler declara publicamente que a Segunda Grande Guerra terá como resultado a aniquilação de todos os judeus europeus.

Essa situação, concessão da situação jurídica por ato do

ordenamento jurídico, comprovou a inviabilidade desse modelo (positivismo) para noção do sujeito de direito dada possibilidade de sua manipulação pelo poder político incrustado nas casas legislativas com sua missão exclusiva, única, de construir o Direito. Não é possível aprisionar o jurídico na legalidade positivada, assim fosse, seria contraditório mencionar qualquer direito (natural, humano, moral) que não a lei posta.

Eduardo Vera-Cruz Pinto (2010, p. 185-186) trata da diversidade entre lei e Direito nos seguintes termos:

Não se pode dar o nome de Direito a qualquer normação da sociedade através da lei do Estado. Mesmo em democracia política e em Estado regido pela Constituição, os discursos políticos das maiorias que se constituem circunstancialmente nos parlamentos, enunciados sob a forma de normas legais publicadas no Diário da República, não são por si só, regras de Direito.

O Direito inicia o seu percurso histórico em Roma: através de modos específicos (jurídicos) de criar regras de Direito assentes no labor criativo de pessoas com auctoritas, saber assente na experiência e socialmente reconhecido, que eram adoptadas pela comunidade; regras que eram praticadas em ambiente de separação e equilíbrio de poderes, efectivada pelas magistraturas, e aplicadas por um processo que envolvia o pretor; o iudex e o advocatus visando a justiça do caso concreto.

É o que basta para inexorável conclusão do Direito não ser à lei em

seu sentido positivista1. Assim, superando-se o modelo hermético positivista, abre-se campo fecundo de discussões para que novos direitos, os quais

1 No âmbito do Direito Constitucional Luís Roberto Barroso, após tratar do declínio do positivismo, propõe estar em curso um novo marco filosófico, o pós-positivismo pela aproximação do jusnaturalismo e do positivismo, são seus ensinamentos: O marco filosófico do novo direito constitucional é o pós-positivismo. O debate acerca de sua caracterização situa-se na confluência das duas grandes correntes de pensamento que oferecem paradigmas opostos para o Direito: o jusnaturalismo e o positivismo. Opostos, mas, por vezes, singularmente complementares. A quadra atual é assinalada pela superação – ou, talvez, sublimação – dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de ideias, agrupadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo (Curso de direito constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 247).

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ainda não estão expressamente inseridos no sistema jurídico positivo, sejam reconhecidos e aplicados.

No campo dos direitos da personalidade, foco do presente estudo, previstos no ordenamento jurídico pátrio dos artigos 11 ao 21 no Código Civil de 2002 e no artigo 5º, “caput”, IV, V, VI, IX, X e XII da Constituição Federal de 1988, tal concepção é de primordial utilidade para que se perceba que os dispositivos ali mencionados são meramente exemplificativos, de forma que não se crie um modelo estanque que não acompanhe as evoluções sociais que clamam por novos direitos da personalidade de maneira dinâmica.

Contudo, ao afastar-se de uma rigidez excessiva que pode ser causada pelo modelo positivista, necessário faz-se lançar diretrizes para que o processo de hermenêutica jurídico não se transforme em uma estrutura sem bases filosóficas e científicas quaisquer. Desta forma, traçadas estas premissas, no item adiante o trabalho lançar-se-á na análise da condição humana para definição do sujeito de direito e como tais ideias moldam os direitos da personalidade.

16.3 A CONDIÇÃO HUMANA PARA DEFINIÇÃO DO SUJEITO DE DIREITO: A DIGNIDADE COMO MATRIZ DO DIREITO

Apesar da existência de vários registros históricos acerca da proteção

dos direitos do homem a partir do século VIII a. C.2, é relativamente recente a noção do reconhecimento dos seres humanos como categoria geral (COMPARATO, 2008, p. 12).

Os documentos ingleses consistentes na Magna Carta, outorgada, em 1.215, pelo Rei João Sem-Terra da Inglaterra, a Petition of Rights de 1.628, o Habeas Corpus Act de 1.679 e a Bill of Rights de 1.689, considerados antecedentes das declarações positivas de direitos, embora envolvessem limitação do poder estatal não encerravam substancialmente declarações de direitos por não se destinarem ao homem comum e sim a estamentos sociais específicos (Nobreza, Clero); estruturalmente são contratos feudais escritos voltados a obrigações concretas e não ao reconhecimento de direitos gerais (FACHIN, 2009, p. 40-41).

A partir da escola de direito natural e do pensamento iluminista houve profundas mudanças na compreensão dos direitos ocasionando modificações estruturais em favor da individualidade de cada ser humano.

Até então a teoria tradicional, guiada pelo pensamento de Aristóteles, concebia o homem como um animal político que nascia na família, sob a autoridade paterna, e depois aperfeiçoava sua natureza em um grupo maior – a polis. Essa concepção orgânica da sociedade objetivava a conservação do todo e preexistia ao indivíduo, antes a sociedade, depois o indivíduo.

2 Para exame da evolução do pensamento religioso e filosófico, no período referido, acerca da diferenciação do ser humano perante os demais seres e, desse modo, possuidor de alguns direitos inerentes e inalienáveis, consulte Baez, Narciso Leandro Xavier, “A expansão multicultural dos direitos humanos fundamentais e a formação de uma consciência universal”.

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Conforme ressalta Norberto Bobbio (1992, p. 117) havia necessidade de inversão dessa perspectiva, ou seja, caberia conceber uma hipótese racional, em desconsideração à origem histórica das sociedades humanas que considerasse o indivíduo

[...] em si mesmo, fora de qualquer vínculo social e (com maior razão) político, num estado, como o estado de natureza, no qual não se constitui ainda nenhum poder superior aos indivíduos e não existem leis positivas que imponham esta ou aquela ação, sendo portanto um estado de liberdade e igualdade perfeitas, ainda que hipotéticas.

Na compreensão anterior à modernidade, o ser humano nascia

preso a vínculos familiares e sociais inserido em uma hierarquia preexistente, destarte, não nascia livre e tampouco igual aos outros seres humanos. Portanto, coube aos pensadores iluministas formularem um modelo teórico apto a garantir a liberdade e igualdade dos homens desde o nascimento, para tanto, criaram a hipótese de um estado originário, no qual não havia sociedade nem Estado, governado por leis naturais emanadas da razão.

Doravante, alicerçado num aspecto ideal e contrário à história de formação das sociedades, estava estabelecido o princípio dos homens nascerem livres e iguais, permitindo a concepção individualista de sociedade, primeiro o indivíduo (sem Estado e sociedade), depois a sociedade e o Estado por uma opção racional e autônoma do indivíduo.

Com isso, o ser humano, portador de uma situação única – a dignidade humana – passa a titular de direitos inatos concedidos meramente pela condição humana sem a necessidade de seu reconhecimento por uma ordem jurídica anterior.

A dignidade humana é uma categoria axiológica aberta de difícil conceituação em razão da pluralidade e diversidade de valores existentes nas sociedades democráticas contemporâneas, estando em constante processo de construção e desenvolvimento. Como assevera Ingo Wolfgang Sarlet (2009, p. 37), mencionando também os problemas de espaços e culturas para avaliação da afronta de determinada conduta à dignidade humana, dignidade humana é:

[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

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O settecento é um período muito importante para afirmação dos

direitos humanos3 no ocidente, porquanto o pensamento iluminista fundado na escola de direitos naturais individuais, inatos e iguais para todos os homens acompanhados da ideia de soberania popular, permitiu aos filósofos iluministas o reestudo da sociedade pela aplicação prática na vida civil das teorias desenvolvidas, transformando a sociedade pelo poder político e o Direito. Guiados pela razão, motivo essencial da antropologia humanista, ocorre a mudança do curso da história da humanidade com aversão à superstição, privilégios e estruturas de poder que imobilizavam o indivíduo conforme seu nascimento; nada disso deveria permanecer (FACCHI, 2007, p. 43-48).

Esse contexto social e filosófico permitiu o surgimento das primeiras Cartas de Direitos, ou seja, as Declarações Americana e Francesa. Interessante observar que, apesar do nascimento da ideia de direitos humanos na Inglaterra, não foi nesse país que surgiram as Declarações de Direitos com vocação universalista. Comentando essa questão Isabel Cabrita (2011, p. 122-123) destaca:

Como se disse, Locke foi na Inglaterra um ponto de chegada mas para outros países foi um ponto partida. Com isto pretendemos salientar que o pensamento de Locke sobre o Estado e o Direito teve uma enorme influência nas colónias inglesas da América do Norte e em França. Além da filosofia de Locke, a própria experiência jurídico-política britânica teve um papel fundamental nas revoluções liberais do século XVIII. A Inglaterra foi até cerca de meados do século XVIII “o principal condutor do espírito europeu”. A ideia de que os homens nascem livres e iguais em direitos e que o Estado, criado através de um contrato social, tem como fim proteger esses direitos, foi acolhida e, nalguns casos, desenvolvida por diversos filósofos e políticos no século XVIII (v.g. Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Thomas Paine, Thomas Jefferson, James Madison, Jean Joseph Mounier, Conde de Mirabeau, etc.) e acabou por desaguar nas Revoluções norte-americana e francesa.

As Cartas Americanas são as primeiras manifestações históricas do

constitucionalismo moderno, ou seja, a corrente de pensamento que considera a Constituição como elemento essencial de um Estado de Direito; assim a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia em 1776 e, meses depois,

3 Importante aqui ressalvar que direitos humanos, direitos fundamentais e direitos da personalidade são três espécies de direitos do homem. Enquanto direitos humanos é expressão utilizada para designar os direitos do homem no plano internacional, os direitos fundamentais e da personalidade costumam compreender tais direitos no plano nacional. Enquanto este é utilizado para tratar de relações predominantemente entre particulares, aquele geralmente é usado para tratar de relações entre particulares e Estado. Contudo, em que pese tais diferenciações, atualmente, quando se trata da possibilidade da aplicação horizontal dos direitos fundamentais, tais separações tendem cada vez mais em relativizar-se (SCHREIBER, 2011, p. 13-14).

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a Declaração de Independência, seguidas das declarações de outros estados até a Constituição dos Estados Unidos da America de 1787.

Na França, a Revolução Francesa é um evento histórico que sanciona a abolição dos direitos feudais e o fim de uma organização social, econômica e política existente por séculos, cuja repercussão irradia-se para muito além do território francês e ainda hoje tem influência em todo mundo.

As Declarações Americana e Francesa são marcadas pelo binômio liberdade-individualismo (FACHIN, 2009, p. 42) e, desse modo, tiveram aptidão para tornar inseparável o conceito de democracia e de direitos do homem, pois, sem a concepção individualista da sociedade não é possível justificar a democracia em virtude do pressuposto do indivíduo, todos os indivíduos, detêm uma parte da soberania (BOBBIO, 1992, p. 101).

Tais documentos setecentistas iniciam pela compreensão do indivíduo isolado, livre e igual a todos os outros, a somatória da decisão racional de união desses indivíduos forma a sociedade sem a perda da liberdade e igualdade.

Após as declarações o fenômeno da constitucionalização no século XIX determinou a inclusão de direitos humanos (juntamente com os direitos da personalidade) nas cartas constitucionais em conformidade às particularidades de cada Estado. Com isso, há maior concreção em razão da positivação, todavia há perda do caráter universal em razão dos direitos somente valem internamente aos Estados que os reconhecem.

E é justamente do processo de positivação perpetrado em questão que se pode extrair o ideário responsável pela futura codificação preambular dos direitos da personalidade, os quais demonstram um cunho do binômio liberdade-individualismo supracitado.

Muito embora existissem elementos mínimos já presentes no Código de Hamurabi e no Direito Romano (AMARAL, 2000, p. 250), embeberando-se de tudo o aqui traçado da visão liberal presente nas Cartas de Direitos, o Código austríaco de 1810 pode ser apontado como precursor na codificação dos direitos da personalidade, uma vez que apontava pela existência de direitos inatos para todos fundados pela única razão do homem considerar-se pessoa (BITTAR, 2001, p. 32).

Para além do aqui já explanado, Cleide Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão (2006, p. 250-251) sintetiza em relação ao processo acima apontado de surgimento e expansão dos direitos da personalidade:

[...] Na Áustria e na Suíça a ideia do direito geral de personalidade criou raízes legislativas. Nos países anglo-saxônicos os tipos de situação se tornaram cada vez mais amplos em defesa do direito de personalidade. Nos países de economia socialista, após relutância e reserva, ganhou consistência a ideia do direito geral de personalidade. Também assim o right of privacy do direito norte-americano, sobremaneira alargado, desde Samuel Warren e Louis Brandeis125, em seu marcante estudo de 1890, tanto quanto as actions inglesas. Na França e na Itália, o positivismo legal deu preferência à especialização dos direitos de personalidade e repudiou a ideia de um genérico direito de personalidade. Em Portugal, também são visíveis os

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novos sinais dos tempos. O Código Civil de 1966, no número 1 do artigo 70, dispõe que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”, sustentando a existência de um direito geral de personalidade.

Contudo, necessário frisar que o processo de evolução dos direitos

do homem e, portanto, da personalidade, não estacionou com o liberalismo e no processo anteriormente narrado. A formação das classes operárias em decorrência da revolução industrial e as pressões para as melhoras de sua condição por meio de direitos ligados ao trabalho, organização sindical e seguridade social redundaram na origem de novos direitos: os sociais (FACCHI, 2007, p. 107-110).

A ideologia individualista dos direitos do homem no século XIX sofre um processo de erosão e impugnação em decorrência das lutas sociais. Estes movimentos reivindicativos evidenciaram a necessidade de ser acrescida uma nova ordem de direitos, ou seja, os direitos econômicos, sociais e culturais, os quais foram paulatinamente conquistados4 sob os auspícios políticos e jurídicos na passagem do Estado Liberal de Direito para o Estado Social de Direito (LUÑO, 2005, p. 578).

A intensificação do desenvolvimento técnico/industrial do século XIX foi aprofundada no século XX com a evolução do conhecimento humano repercutindo na agregação à técnica, dominada pelo homem há séculos, pela tecnologia, cujo controle é imperfeito, nessa perspectiva, houve o surgimento de novas fontes de energia, técnicas de produção e, principalmente, o início da era digital; esse conjunto de inovações repercutiu em intensa mudança na organização social.

A racionalidade e o império do progresso tecnológico não impediram os registros no século XX de intensas violações dos direitos humanos, os regimes totalitários, tentativa do extermínio de raças, o lançamento de duas bombas atômicas nas cidades de Hiroshima e Nagazaki, duas Guerras Mundiais com cerca de 60 milhões de pessoas mortas na Segunda Guerra Mundial, representaram atrocidades à humanidade que estarreceram a comunidade internacional.

No final da Segunda Guerra Mundial, nas palavras de Fábio Konder Comparato (2008, p. 214). “[...] as consciências se abriram, enfim, para o fato de que a sobrevivência da humanidade exigia a colaboração de todos os povos, na reorganização das relações internacionais com base no respeito incondicional à dignidade humana”.

Nesse contexto político-histórico, é criada em 26 de junho de 1945, em São Francisco (EUA), a Organização das Nações Unidas – ONU –

4 A expressão – “conquistado” – é empregada no sentido de ressaltar o fato dos direitos humanos não serem outorgados pacificamente, mas por luta árdua. Essa situação é nominada por Vladmir Oliveira da Silveira e Maria Mendez Rocasolano (2010, p. 184 e ss.) de Teoria da dinamogenesis como fonte dos direitos humanos.

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objetivando promover a paz entre as nações, a proscrição da guerra de agressão5 e o respeito aos direitos do homem.

Diante disso, um dos atos iniciais da Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 10 de dezembro de 1948, em Paris, foi proclamar a Declaração de Direitos do Homem, pela aprovação unânime de quarenta e oito Estados, com oito abstenções, porquanto “[...] os líderes mundiais acreditavam que para promover a paz era imprescindível proteger ao mesmo tempo os direitos do homem” (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010, p. 152). Sem respeito aos direitos humanos não é possível convivência pacífica entre as nações.

A Declaração de 1948 encerra uma ética universal representativa do consenso de valores universais a serem seguidos pelos Estados, delineando uma “[...] ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana” (PIOVESAN, 2009, p.140).

Antes mesmo da adoção da Declaração de 1948, os Estados convencionaram a necessidade substancial da tradução dos princípios gerais em instrumentos juridicamente vinculantes. A estratégia utilizada foi a edição de uma Declaração geral compreensiva do conjunto dos direitos humanos – A Declaração de 1948, permanecendo na esfera regional, cujo grau de relativa homogeneidade política, ideológica e política facilitariam sua confecção, documentos atinentes a áreas específicas em concreção aos princípios gerais declarados (CASSESE, 2008, p. 41)6.

Neste sentido, a Declaração Universal pode ser visualizada como o principal documento reconhecedor dos direitos da personalidade no plano internacional. Ao proclamar um extenso rol de direitos, dentre os quais incluíam tanto o reconhecimento quanto proteção da personalidade, tal legislação foi influenciadora de diversos textos jurídicos mundo afora, dentre os quais podemos citar o próprio Código Civil brasileiro de 2002 e a Constituição Federal de 1988.

Assim, percebe-se que os próprios direitos da personalidade estão inseridos no processo de expansão dos direitos humanos em questão. Enquanto espécie do gênero direitos do homem, tais direitos eram carregados de um valor puramente libertário na primeira geração dos direitos humanos.

Com o surgimento da segunda geração, ou seja, dos direitos sociais, inicia-se um processo de maior embate entre direitos individuais e de

5 A guerra, doravante, passa a ser um ilícito. Conforme Gabriela Mezzanotti (2007, p. 37): A proibição da ameaça ou uso da força pelos Estados como ferramenta legalmente positivada no âmbito do Direito internacional, exceto nos casos de legítima defesa individual ou coletiva (art. 51 da Carta), significou renúncia expressa pelos membros da ONU da clássica dicotomia antes verificada no Direito Internacional costumeiro entre os direitos de guerra e de paz. Agora o recurso à guerra – ou mais especificadamente à força ou sua ameaça – é ilícito, diversamente do que ambiguamente antes estivera previsto no Pacto da Liga das Nações acerca das limitações ao recurso à guerra. 6 Nessa linha, no século XX há uma profusão de tratados sobre direitos humanos. Destacam-se o Pacto Internacional dos Direitos Civil e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 19666, não obstante as convenções sobre genocídio (1948), discriminação racial (1965), discriminação contra a mulher (1979), eliminação da tortura (1984), direitos da criança (1989) e trabalhadores imigrantes (1990)

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determinados grupos, o que acaba por modificar o alcance e interpretação dos direitos da personalidade.

Já com o surgimento dos direitos difusos na terceira geração, bem como em função das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, os direitos da personalidade começaram a ser revistos sob um novo prisma, qual seja: dignidade da pessoa humana.

Desta forma, traçado tal panorama, o próximo capítulo irá ater-se à análise da dignidade da pessoa humana como motriz dos direitos da personalidade, inclusive verificando como um novo direito da personalidade (direito ao esquecimento) vem surgindo em função de novas realidades sociais existentes.

16.4 A NECESSIDADE DA CONSIDERAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA APLICAÇÃO DO DIREITO E SUA FUNÇÃO COMO VETOR VALORATIVO DA CRIAÇÃO E APLICAÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Dentro do panorama traçado na parte anterior do presente trabalho,

percebe-se que os direitos da personalidade e direitos fundamentais, da mesma forma que os direitos humanos, são fundados na dignidade da pessoa humana, ou seja, o homem enquanto um fim em si mesmo7.

Assim sendo, a dignidade da pessoa humana é o elemento comum entre os direitos da personalidade e o ser humano. Na compreensão de Carlos Ayres Brito (2010, p. 27):

[...] o princípio da dignidade da pessoa humana decola do pressuposto de que todo ser humano é um microcosmo. Um universo em si mesmo. Um ser absolutamente único, na medida em que, se é parte de um todo, é também um todo à parte; isto é, se todo pessoal natural é parte de algo (o corpo social), é ao mesmo tempo um algo à parte.

Pois bem, com base em tal concepção de interligação entre

dignidade, direitos da personalidade e ser humano, ao analisarmos os direitos da personalidade previstos tanto no texto da Constituição Federal de 1988 quanto no Código Civil de 2002 imagine-se a hipótese da exposição de determinada pessoa de forma perpétua na internet, seria possível utilizar-se do direito ao esquecimento8 para encerrar com essa forma de exibição apesar de inexistência normativa sobre o tema?

7 Essa afirmação é de Immanuel Kant (2007, p. 70-77) sendo referida em diversas oportunidades pelo filósofo a exemplo das seguintes: Mas o homem não é uma coisa; não é portanto um objeto que possa ser usado simplesmente como um meio, mas pelo contrário deve ser considerado sempre em todas as suas ações como um fim em si mesmo. (...) No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. 8 Direito ao esquecimento deve ser entendido como aquele que impossibilita que determinada pessoa responda por determinado ato/ação de forma perpétua.

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Na ordem de ideias aqui traçadas, sempre haverá de se reconhecer a titularidade de direitos ao ser humano em virtude da condição de dignidade que lhe é ínsita, mesmo na ausência de previsão normativa sobre o tema em questão, uma vez que o Direito é instrumento de busca pela justiça, e não simplesmente uma busca pela certeza.

Eduardo Vera-Cruz Pinto (2010, p. 35) afirma que “[...] o Direito-ius é uma adquirido humano, logo universal. Não desta ou daquela cultura, religião ou civilização, mas da pessoa humana. Não está ligado às éticas civil e política dominantes, positivas nas constituições”.

Assim, o direito é maior que a lei, ainda que dela se utilize (lei) para ordenar a convivência das pessoas em comunidade, nela não se esgota. Esgotar o direito ao ordenamento jurídico seria retornar ao positivismo jurídico e, neste sentido, pactuar com que novas atrocidades sejam cometidas sob o prisma do Direito.

Somente pelo Direito criado e aplicado por jurisprudentes sob o fio condutor da filosofia, história e da ética será viável restaurar a normalidade humana das regras jurídicas, impedindo e afastando o totalitarismo das visões únicas, rígidas, artificiais, apenas com o cuidadoso exame da condição humana dos destinatários do Direito será possível a busca do justo. Por essa concepção o Homem-pessoa é o sujeito-actor – como protagonista principal – secundarizando o político, o social e o religioso (VERA-CRUZ PINTO, 2010, p. 36).

É neste contexto social, econômico e político que os direitos da personalidade (enquanto espécie dos direitos do homem) devem ser utilizados para estabelecer o ser humano como razão central do jurídico, assegurando-lhe sua dignidade em qualquer situação, seja para interpretar a normatização existente ou, até mesmo, criar o Direito com base nas diretrizes que melhor assegurem à dignidade da pessoa humana.

O ser humano não é um ente abstrato, mas concreto, vivo e destinatário da proteção jurídica. Nesse sentido são as ideias de A. Santos Justo (2011, p. 319), conforme o seguinte extrato que segue:

Com efeito, superado o positivismo jurídico, procura-se recuperar a distinção entre ius e lex; reconhece-se que o direito é um fenómeno cultural histórico (pertence ao mundo criado pelo homem, que é um ser histórico) e, por isso, concede-se uma atenção especial à dimensão concreta do direito, ou seja, à sua reconstrutiva concretização; considera-se o sistema jurídico dinâmico e aberto a novos princípios; apela-se à razão contra a irracionalidade; enfim, afirma-se que a ciência jurídica tem uma índole prática, quer porque auxilia a jurisprudência na resolução dos casos concretos, quer porque descobre novos problemas e sugere as relações jurídicas adequadas, quer porque ajuda o legislador na preparação da legislação.

Aliás, as próprias características que são próprias dos direitos da

personalidade, quais sejam: absolutos, generabilidade, não-taxatividade e indisponibilidade, apenas acentuam o seu reconhecimento e aplicação para além do positivismo jurídico (SOUSA, 1995).

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O ser humano... // 283

Assim, denota-se que o direito ao esquecimento até poderá ser

reconhecido no caso concreto dependendo das peculiaridades envolvidas9. Os eventuais malefícios causados por uma exposição eterna demonstram pela necessidade do reconhecimento e aplicação do direito ao esquecimento apesar da inexistência de previsão legislativa para tanto. Contudo, não há como imaginar-se que tal direito seja aplicado de forma indiscriminada em toda e qualquer situação10, como pontua Anderson Schreiber (2011, p. 171-172):

Cumpre registrar que o direito ao esquecimento não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou de reescrever a História (ainda que se trate tão somente da sua própria história). O que o direito ao esquecimento assegura é a possibilidade de se discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados. E não raro o exercício do direito de esquecimento impõe ponderação com o exercício de outros direitos, como a liberdade de informação, sendo certo que a ponderação nem sempre se resolverá em favor do direito ao esquecimento. O caso concreto deve ser analisado em suas peculiaridades, sopesando-se a utilidade informativa na continuada divulgação da notícia com os riscos trazidos pela recordação do fato à pessoa envolvida. Como em outros conflitos já analisados, não há aqui solução simples. Impõe-se, ao contrário, delicado balanceamento entre os interesses em jogo.

Logo, a complexidade da sociedade atual e a situação, destacada por

Gustavo Zagrebelsky (1992, p. 45), acerca do ordenamento jurídico como um problema em razão da pluralidade de interesses que abarca, sendo a lei manifestação de um instrumento de competição e confronto social, somente pode ser resolvida pela atuação do jurisprudente em observação do ser humano como valor e sujeito de direito.

16.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreensão do sujeito de direito é seguramente um dos institutos

mais importantes do Direito em razão de especificar o titular da atribuição de direitos e deveres, enfim, a pessoa em torno da qual há a fixação das regras de comportamento na sua relação com os demais sujeitos de direito.

Assim, em rompimento com momentos históricos anteriores e desde a compreensão filosófica artificial do nascimento de todos os homens como seres livres e iguais, a compreensão político-jurídica do pensamento racional iluminista, de forma ideal, propugnou pela coincidência entre a lei e o direito.

9 Apenas para título de exemplificação, podem-se analisar dois julgados nos quais se admitiu o direito ao esquecimento pelo Superior Tribunal de Justiça: Chacina da Candelária e Aída Curi. 10 Como um contraponto, o Supremo Tribunal Federal acabou, dentro do processo de sopesamento em questão, permitindo que imagens eróticas da apresentadora Maria da Graça Xuxa Meneghel, em sua participação no filme “Amor estranho amor” continuassem sendo veiculadas no site buscas “google”.

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284 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Pelo legalismo positivista foi possível separar a pessoa reconhecida pelo direito do ser humano. A tomada das casas legislativas por grupos que titulavam interesses contrários à condição humana permitiu a opressão das pessoas pela lei. O lamentável extermínio de seres humanos tornou clara a impossibilidade do positivismo, como pensamento hegemônico, para fundar o Direito. Há absoluta inadequação da doutrina positivista tradicional na atualidade.

Inseridos neste novo contexto, os direitos da personalidade (enquanto espécie dos direitos dos homens) sofreram forte influência de todo esse processo histórico narrado, de forma que ficou claro que apenas o positivismo jurídico não basta para efetivar os direitos da personalidade. Assim, ausente previsão normativa específica, a dignidade da pessoa humana deverá ser utilizada como vetor para o reconhecimento dos novos direitos da personalidade para além do texto legal.

Aliás, ao final da exposição, para exemplificar o processo narrado, percebeu-se como a dignidade da pessoa humana vem sendo utilizada para reconhecer o direito ao esquecimento, o qual não está previsto na Constituição Federal de 1988 tampouco no Código Civil de 2002, mas que é essencial na modernidade em virtude dos eventuais malefícios que podem ser causados por eventual exposição perpétua realizada na internet.

16.6 REFERÊNCIAS

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= XVII =

POR UMA JUSTIÇA QUE RESGUARDE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Caroline Christine Mesquita* Daniela Menengoti Ribeiro**

Roberson Neri Costa*** 17.1 INTRODUÇÃO

A imensa diversidade de paradigmas na história do pensamento

humano é uma evidência de que os mesmos são obras de verdadeiros inventores de mundos sociais possíveis, e não o resultado de uma imediata e inequívoca observação do mundo. Cada paradigma é um modelo para a formulação de teorias, as quais não se referem simplesmente àquilo que aparece, mas contêm proposições sobre o que deveria existir. Assim, a reflexão filosófica ao pretender descrever, reproduzir, imitar a realidade empírica, fertiliza a percepção dessa realidade com proposições ou antecipações que, uma vez incorporadas à vida social, passam a constituir a própria realidade.

Ao longo do tempo, tais ponderações têm sido produtora de formas de comportamento e organização social, uma vez que muitos de seus pressupostos e conceitos têm sido incorporados ao mundo das instituições, moldando a representação comum e ordinária do mundo, pois foi através do diálogo com este lastro filosófico que ela se constituiu e consolidou como tradição intelectual. Logo, a origem de cada Estado, de cada sociedade, tomada individualmente, apesar dos problemas que possui constituem uma enorme fonte de sabedoria.

Nesse sentido, denota-se que, o presente trabalho fundou-se na pesquisa científica, e se desenvolveu a partir do método investigativo da

* Mestranda do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar. Bolsista da CAPES. Especialista em direito previdenciário e direito do trabalho pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania. Advogada. Endereço eletrônico: <[email protected]>. ** Professora do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar. Doutora em Direito-Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) com período de pesquisa (doutorado sanduíche) na Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne, França. Mestre em Direito-Relações Internacionais, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com período de pesquisa no Mestrado em Integrazione Europea da Università Degli Studi Padova, Itália. Endereço eletrônico: <[email protected]>. *** Advogado inscrito na OAB/PR. Possui graduação em Ciência Política pela Faculdade Internacional de Curitiba, graduação em Direito pela PUC-PR, especialização em História e Humanidades (UEM), especialização em Direito do Trabalho e Previdenciário (IDCC), Mestre em Direitos da Personalidade (CESUMAR), professor do curso de Direito da Faculdade Maringá, da Escola de Direito da PUC-PR e da Unicesumar. Coordenador da Escola Superior de Advocacia - Subseção de Maringá - PR. Endereço eletrônico: <[email protected]>.

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288 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

pesquisa bibliográfica, documental e jurisprudencial. Para tanto, foi utilizado uma abordagem dialética com procedimentos comparativos, históricos, funcionais e estruturais, no sentido possibilitar aos operadores do direito e demais integrantes da sociedade a compreensão sobre o modelo ativista que o Poder Judiciário vem tomando, para combater as falácias e mazelas dos outros dois Poderes.

17.2 OS SISTEMAS JURÍDICOS: CIVIL LAW E COMMON LAW

Dá-se o nome de common law ao sistema jurídico que foi elaborado

na Inglaterra a partir do século XII pelas decisões das jurisdições reais. Todavia,

[...] em seus primórdios foi um direito dos bárbaros, um direito consuetudinário por excelência. A língua e a cultura dos povos bárbaros dificultaram a fusão com o povo romano, que ocupava as ilhas britânicas, os recém chegados representavam uma parcela ínfima da população mas dotada de grande força bélica, eram povos instáveis, efêmeros, que desconheciam a estrutura de um estado, o que levou à formação de diversos agrupamentos sem um sistema de direito unificador, como se percebia na heptarquia anglo-saxônica, fazendo valer unicamente a tradição dominantes em cada região, o que por alguns é chamado de personalidade das leis, ou seja, o sujeito se submete às leis de seus pais pela força da tradição (AQUINO; LOPES; FRANCO, 2003, p. 423).

Manteve-se e desenvolveu-se até aos dias atuais, ao se impor em

países como Estados Unidos, Canadá e Austrália. A expressão common law é utilizada desde o século XIII para designar o direito comum da Inglaterra, por oposição aos costumes locais, próprios de cada região; chamaram-lhe, aliás, durante vários séculos comume ley (lei comum), porque os juristas ingleses continuaram a servir-se do francês, o law French, até ao século XVIII.

O sentido de common law é, pois, muito diferente do sentido da expressão “direito comum”, ius commune, utilizada no continente para designar, sobretudo a partir do século XVI, o direito erudito, elaborado com base no direito romano e servindo de direito supletivo às leis e costumes de cada país. O common law é, pois, um judge-made-law, um direito jurisprudencial, elaborado pelos juízes reais e mantido graças à autoridade reconhecida aos precedentes judiciários (GILISSEN, 1995, p. 88).

Na Common Law, o Direito é criado e aperfeiçoado pelos tribunais e operadores do Direito, em um motu continuo et proprio, mediante a consideração das decisões tomadas pelos tribunais em casos anteriores, para a aplicação em novos casos que se apresentam ao judiciário; sendo que, caso inexista um precedente a ser considerado, os magistrados detêm a prerrogativa e autonomia de estabelecer um precedente, criando, desta forma, uma interpretatividade sobre o Direito, declarando-o. É, todavia, errôneo considerar que na Common Law inexistem leis positivadas e codificadas, o que ocorre é que elas não constituem o ‘ponto único’ a ser

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considerado, sendo que há o que pode ser chamado de maior mobilidade interpretativa, onde as regras são adaptadas aos fatos expostos e às razões alcançadas pelos operadores do Direito e pelas partes, mediante o debate, o discurso e as teses elaboradas por advogados, promotores, jurisconsultos e magistrados (GONÇALVES; CASTRO, 2015).

Neste sentido, Amílcar de Castro (1968, p. 40) complementa

denotando que o “[...] legislador faz leis, mas lei não é Direito; lei é norma geral, impessoal, enquanto o Direito é necessariamente pessoal, particular: feito pelo juiz, sob medida [...]”. Assim, “[...] ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerando a respectiva formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática pura, encontrando o indispensável para formalizá-la” (BRASIL, 2015).

No tocante, sublinha-se, ainda que: É preciso compreender que o caso decidido, isto é, o precedente, é quase universalmente tratado como apenas um ponto de partida. Diz­se que o caso decidido estabelece um princípio, e ele é na verdade um principium, um começo, na verdadeira acepção etimológica da palavra. Um princípio é uma suposição que não põe obstáculo a maiores indagações. Como ponto de partida, o juiz no sistema do common law afirma a pertinência de um princípio extraído do precedente considerado pertinente. Ele, depois, trata de aplicá-lo moldando e adaptando aquele princípio de forma a alcançar a realidade da decisão do caso concreto que tem diante de si (RE, 1990, p. 285).

No diapasão, Vitor Galvão Fraga (2015) aponta, o que vincula em um

precedente é seu princípio, que por ser uma cláusula geral torna incerta as decisões, pois varia de juiz para juiz, mas o importante a destacar é que a justificação da aplicação de um precedente depende dela; não sendo assim um processo mecânico, mas um processo que exige grande perspicácia e habilidade argumentativa do juiz, que assimila e interpreta a lei no caso concreto.

Portanto, o common law cria precedentes, com força obrigatória para casos futuros, contudo este não é uma regra abstrata que não se amolda, perfeitamente, aos fatos que lhe deram origem. Muito pelo contrário, o precedente está intimamente ligado aos fatos que lhe deram origem, razão pela qual, o conhecimento das razões da decisão são imprescindíveis, visto que caso a nova lide fática, circunstancial não corresponda ao precedente, este pode sofrer cancelamento, mesmo sendo vinculativo.

Por sua vez, o sistema jurídico do civil law caracteriza-se pelo fato de as leis serem a pedra toque da igualdade e da liberdade, posto que objetivava proibir o juiz de lançar interpretação sobre a letra da lei. Ao magistrado, cabe apenas proceder à subsunção da norma, solucionando, assim, os litígios, sem que haja uma necessidade premente de se estender ou restringir o alcance da lei, e sem que exista a ausência ou conflito de normas.

Deste modo, ao se manter o juiz atado ao escrito na lei, se obteria a segurança jurídica, sendo este um elemento indispensável às decisões judiciais. Tal segurança seria originária na própria lei que mitiga a capacidade

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interpretativa do juiz, de modo que este não favorecesse a um dos litigantes e prejudicasse o outro.

Nota-se ai, um ideal de fraternidade – um dos ideais apregoados pela Revolução Francesa – posto que a norma jurídico positivada também não favorece a um dos contendores em detrimento do outro, por ser isonômica e equânime, sendo igual para ambos, independentemente do pólo em que se encontram na lide, e da condição social que detêm. Assim, o sistema da Civil Law, não apenas idealizou de forma fantasiosa que o magistrado apenas atuaria a vontade da norma, como presumiu que o cidadão seria detentor de segurança jurídica e previsibilidade no tocante às relações sociais, originárias na segurança de ter o juiz togado como mero aplicador subserviente das leis positivadas e codificadas (GONÇALVES; CASTRO, 2015).

Assim, a positivação das normas como forma de impedir abusos, é

pontuada por Menelick de Carvalho Netto (2004, p. 55-57), como freios que impedem o Estado de cometer abusos, ante o positivismo jurídico, garante, ainda, a certeza nas relações sociais através da compatibilização dos interesses privados de cada um com o interesse de todos. Desse modo, Tereza Arruda Alvim Wambier (WAMBIER, 2012, p. 32), aponta que no sistema common law:

O juiz decide, a grosso modo, de acordo com a lei (= de acordo com regras conhecidas) e, se a lei comporta infinitas formas de interpretação, consubstanciando-se, cada uma delas, em pauta de conduta diferentes para cada indivíduo, o próprio sentido e razão de ser do princípio da legalidade foram comprometidos. Então, a legalidade só tem sentido prático se concretizada à luz do princípio da isonomia.

É, portanto, errôneo, entender o direito como uma ordem, um sistema

fechado de regras, de programas condicionais, que tem por função estabilizar expectativas de comportamento temporal, social e materialmente generalizadas, determinando os limites e ao mesmo tempo garantindo a esfera privada de cada indivíduo.

Precipuamente, Hobbes apontando que o direito não é expressão da razão mas uma manifestação da vontade do soberano. Sendo, este resolvido, apenas na construção de uma pacto, no qual cria-se um Estado pela reunião das forças da coletividade, o qual se encarrega de manter a paz e proteger seus cidadãos. Logo é o soberano - controlador do Estado - que decide sobre a justiça e os rumos do direito. Na sequência, Montesquieu apresenta que não há nada mais perigoso, a concentração de todos os poderes nas mãos de um só. Então, para evitar abusos deve o poder ser dividido em: legislativo, executivo e judiciário. Ponderando, ainda, que não se tem margem para uma universalidade das jurisprudência, ante a condicionante das leis se adaptarem com às sociedades que a regem (PERELMAN, 2000, p. 100-156).

Nesses casos, a concretização da norma deve tomar em conta as necessidades de direito material reveladas no caso, mas a sua instituição se

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Por uma justiça... // 291

funda no direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. O legislador atua porque é ciente de que a jurisdição não pode dar conta das variadas situações concretas sem a outorga de maior poder e mobilidade, ficando o autor incumbido da identificação das necessidades concretas para modelar a ação processual e o juiz investido do poder-dever de, mediante argumentação própria e expressa na fundamentação da sua decisão, preencher os conceitos jurídicos indeterminados ou individualizar a técnica processual capaz de lhe permitir a efetiva tutela do direito material (MARINONI, 2009, p. 54).

Eis que, existe uma crítica quanto à segurança jurídica, que se vê,

para alguns, prejudicada: Em ambos os casos há insegurança jurídica. Há insegurança quando o Poder Judiciário tem grande discricionariedade para decidir e dar significado ao conteúdo moral dos direitos fundamentais, assim como quando se imiscui em decisões políticas. Da mesma forma, decisões contrastantes de um mesmo Tribunal ou de Tribunais inferiores em relação aos Tribunais superiores também causam insegurança jurídica e instabilidade social. Neste momento de decodificação do direito e supremacia dos direitos humanos, não se tem mais segurança jurídica no texto escrito; na verdade, talvez essa segurança nunca tenha existido e nunca venha a existir (BARBOZA, 2011, p. 16).

Frente ao exposto, observa-se que as diferenças existentes,

sobretudo as que pertencem à observância aos precedentes, não configuram um desvirtuar, mas podem ser encaradas sob um prisma de aprimoramento do sistema jurídico do common law, o qual é uma perspectiva de solução para o problema brasileiro da efetivação dos direitos fundamentais, desde que não de alento ao relativismo, em um ativismo judiciário desmedido e ilegal.

17.3 A CONCRETIZAÇÃO JUDICIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: ATIVISMO COMO DEVER DE JUSTIÇA

A jurisdição é a função que consiste, primordialmente, em resolver os

conflitos que a ela sejam apresentados pelas pessoas, em lugar dos interessados, por meio da aplicação de uma solução prevista pelo sistema jurídico. É solução do sistema, aquela prevista pela função normatizadora do Direito, que, por sua vez, consistente em regular a apropriação dos bens da vida pelas pessoas, mediante o uso de um sistema de comandos coativos ou sancionatórios, de sorte que seja possível alcançar soluções compatíveis com a necessidade de manutenção da paz social, fim único da sentença (GRINOVER; WATANABE; LAGRASTA NETO, 2008, p. 56).

A atividade jurisdicional, hoje, é reconhecida como uma das funções do poder estatal (as outras são a administrativa e a legislativa) incumbida de dar àquela parcela de conflitos de interesses - a ela submetidos - a solução que para tal tenha sido engendrada no âmbito do sistema jurídico. O conhecimento de jurisdição exige, como dado prévio, que se trace, ainda que com muita brevidade, um esboço histórico (COSTA, 2013, p. 116).

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292 // O reconhecimento dos novos direitos da personalidade

Com o desenvolvimento da noção de Estado e, consequentemente, com o nascimento das primeiras ideias a respeito daquilo que seria, mais tarde, o Estado de Direito, é que a tarefa de solucionar os conflitos entre as pessoas foi admitida como função do Estado. Primeiramente, função atribuída ao soberano, de quem emanava todo o direito e, mais tarde, numa fase mais desenvolvida, mediante o concurso dos organismos do Poder Judiciário, dotados de independência estrutural diante dos demais órgãos de gestão das atividades estatais. Essas fases não ocorreram de forma marcadamente distinta, de modo que se possa enxergá-las absolutamente separadas umas das outras. Não houve marcos divisórios nítidos, precisos, entre essas diferentes fases, correspondentes a distintos modos de solução de conflitos admitidos pelas diversas sociedades ocidentais. A história mostra que, em quase todos os momentos, esses diferentes sistemas conviveram uns com os outros, ora com a predominância de um, ora com a do outro (GRINOVER; WATANABE; LAGRASTA NETO, 2008, p. 86-87).

Nesse sentido, vale denotar as ponderações de Hans Kelsen (1999, p. 102-103) sobre o ordenamento jurídico e seus objetivos:

A função da ordem jurídica designada como atribuição de um poder ou competência (Ermächtigung) refere-se somente à conduta humana. Só a conduta de um indivíduo é que é pela ordem jurídica autorizada. Num sentido muito amplo, uma certa conduta de um determinado indivíduo é autorizada pelo ordenamento jurídico não só quando se atribui dessa forma ao indivíduo um poder jurídico, isto é, a capacidade de produzir normas jurídicas, mas, de um modo inteiramente geral, quando a conduta do indivíduo é tornada pressuposto direto ou indireto da conseqüência jurídica, isto é, do ato coercitivo posto como devido (como devendo-ser), ou essa conduta é a própria conduta que representa o ato de coerção.

No prelúdio do fim, há que se frisar que há casos, no multifacetado

conjunto de interesses que coexistem na vida da sociedade, em que o simples comando legal não é suficiente para eliminar a presença do conflito, isto é, da incidência de interesses simultâneos e excludentes, sobre o mesmo bem. Esse estado de conflituosidade rompe a paz social e requer uma solução. Assim, a moderna noção de Estado de Direito consagrou a ideia de divisão das funções atribuídas ao Estado. Tais funções legislativa, administrativa e jurisdicional estão voltadas ao alcance dos fins do próprio Estado e são dispostas, na organização da estrutura do Estado, de modo a garantir o necessário equilíbrio no exercício do poder estatal (COSTA, 2013, p. 118).

A jurisdição, portanto, como atividade estatal destinada à solução dos conflitos, está garantida pela Constituição e nesta é que se encontram os princípios em respeito, com os quais o legislador ordinário deve regular toda a atividade judicial. Muitas vezes, esta pode inovar em matéria jurídica, estabelecendo normas que não contidas estritamente na lei, mas são resultantes de uma construção obtida graças à conexão de dispositivos, até então considerados separadamente, ou, ao contrário, mediante a separação

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de preceitos, por largo tempo, unidos entre si. Nessas oportunidades, o juiz compõe, para o caso concreto, uma norma que vem completar o sistema objetivo do Direito (SILVA, 1991, p. 38).

Mais acentuadamente é ainda a produção normativa da jurisprudência nos casos em que ao juiz cabe decidir por equidade, aplicando a norma que estabeleceria se fosse legislador, tal como se lia no tão decantado art. 114 do revogado Código de Processo Civil de 1939. A nosso ver, o juiz constitui norma para o caso concreto toda vez que houver lacuna na lei, assim como nos casos em que lhe couber julgar por equidade (NADER, 2009, p. 168).

Criando ou não direito novo, com base nas normas vigentes, o certo

é que a jurisdição é uma das forças determinantes da experiência jurídica se os precedentes jurisprudenciais1 não exercem, nos países de tradição romanística, o papel por eles desempenhado na experiência do common law, mas nem por isso é secundária a sua importância. Pode se dizer que o seu alcance aumenta dia a dia, como decorrência da pletora legislativa e pela necessidade de ajustar normas as necessidades do organismo social, para que com isso, o cidadão possa ter não só uma norma meramente formal, como também uma concretude dos dispositivos vigentes, dando-lhe um mínimo de dignidade humana (COSTA, 2013, p. 119).

Assim como o poder não pode ser exercido apesar da dignidade humana, em verdade, todos os demais princípios e valores que orientam a criação dos direitos nacional e internacional curvam-se ante esta identidade comum ou este minimum dos povos (BITTAR, 2011, p.112).

Como subprincípio máximo do estado democrático de direito, a dignidade humana serve de fundamento hermenêutico para os outros princípios ou lacunas do jus. Portanto, não foi impensada a sua positivação na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Vale lembrar que ele está intrínseco em todas as leis2 infraconstitucionais [...] (ZENNI, 2012, p. 56).

É trivial ressaltar, por essa razão, a importância de tal princípio

constitucional. Por certo que a última instância de determinação do conteúdo da norma constitucional e, por extensão, de qualquer outro texto normativo, é do tribunal, do juiz, dos agentes jurídicos3, pois são eles que eliminam a

1 Adota-se aqui o sentido estrito da palavra jurisprudência, ou seja, o entendimento de um Tribunal firmado em sucessivas decisões sobre casos e relações jurídicas similares. Tais decisões são conhecidas, após sua publicação. A jurisprudência será pacífica, portanto, quando uniforme e repetida em tais relações. Logo, é a repetição uniforme e constante de uma decisão sempre no mesmo sentido. (BRASIL. Supremo tribunal federal. Disponível em: < http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verGlossario.php?sigla=portalStfGlossario_pt_br&indice=J&verbete=196268>. Acesso em: 19 jun. 2015). 2 Segundo Rizzatto Nunes é um princípio vivo, real, pleno e está em sempre em vigor, devendo ser levado em consideração em toda e qualquer situação. (NUNES, Rizzatto. Manual de filosofia do direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 394). 3 Pois como frisa Ana Paula de Barcellos, são eles que por vocação e treinamento, normalmente estão preparados para realizar a justiça do caso concreto. (BARCELLOS, Ana Paula.

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plausibilidade jurídica do conflito ao decidi-lo de forma terminal. Como o sistema jurídico é aparentemente constituído de textos, instituições, técnicas hermenêuticas4 e funcionários, a questão de relacionar a decisão do caso concreto com a norma genética previamente fixada é, sem dúvida, das mais importantes para a teoria do direito moderno (ADEODATO, 2010, p. 224-225).

Contudo, no Brasil, o judiciário deixou de ser um departamento técnico-especializado e se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros poderes (legislativo e executivo). No Supremo Tribunal Federal, uma geração de novos ministros já não deve seu título de investidura ao regime militar. Pelo contrário, o ambiente democrático reavivou a cidadania, dando maior nível de informação e de consciência de direitos a amplos segmentos da população, que passaram a buscar a proteção de seus interesses perante juízes e tribunais (BARROSO, 2015).

Engendra-se a tal processo a judicialização da política, que vem a ser

a entrega de conflitos de larga repercussão política ou social a órgãos do Poder Judiciário, e não mais as instâncias políticas tradicionais, como o Congresso Nacional e o Poder Executivo, em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, os legisladores ordinários e a administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial, outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional adotado (BARROSO, 2015).

Todavia, entre as mais diversas causas relativas à catalisação desse fenômeno global, sem dúvida, a principal, no caso do Brasil, vem a ser a do seu sistema de controle de constitucionalidade, visto que este por ser um híbrido dos sistemas norte-americano do common law e europeu do civil law, ganha uma abrangência sem igual sobre este controle. Leva com isso discussões de largo alcance político e moral a serem tratadas no âmbito judiciário, posto que a judicialização não decorre da vontade do judiciário, mas sim do constituinte (MENDES, 2005, p. 146). Respalda tal lógica o direito

Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Revista de Direito do Estado. n. 3. sul/set. 2006. p. 34 ). 4 De origem grega, a Hermenêutica (hermeneuein) é tida como filosofia da interpretação, associada ao deus grego Hermes, que traduzia tudo o que a mente humana não compreendesse, sendo chamado de “deus-intérprete”. Possui alguns significados diferentes de acordo com o tempo, passando de “compreender o significado do mundo” e chegando “ é a teoria científica da arte de interpretar”. No campo jurídico, ela é usada para a interpretação fidedigna da idéia do autor para que seja adequada a norma ao fato ocorrido e assim proporcione uma responsável aplicação do Direito. Tendo em vista que a Hermenêutica Jurídica em lato sensu divide-se em interpretação, integração e aplicação do Direito. (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 1-2).

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constitucional de propositura amplo, previsto no artigo 1035, pelo qual inúmeros órgãos, bem como entidades públicas e privadas podem ajuizar ações diretas na suprema corte brasileira. Nesse cenário, quase qualquer questão política ou moralmente relevante pode ser alçada ao Supremo Tribunal Federal (COSTA, 2013, p. 121).

Nesse contexto, faz-se imperioso explanar, sucintamente, sobre como seu deu a fusão de tais controles de constitucionalidade (europeu e norte-americano), que veio a culminar no controle de constitucionalidade vigente no Brasil.

[...] desde o início da República, adota-se entre nós a fórmula americana de controle de constitucionalidade incidental e difuso, pelo qual qualquer juiz ou tribunal pode deixar de aplicar uma lei, em um caso concreto que lhe tenha sido submetido, caso a considere inconstitucional. Por outro lado, trouxemos do modelo europeu o controle por ação direta, que permite que determinadas matérias sejam levadas em tese e imediatamente ao Supremo Tribunal Federal (BARROSO, 2015).

Dessa modo, na análise de Antoine Garapon (1999, p. 26-27), [...] o juiz surge, então, como um recurso contra a implosão das sociedades democráticas que não conseguem administrar de outra forma a complexidade e a diversificação que elas mesmas geraram. O sujeito, privado das referências que lhe dão uma identidade e que estruturam sua personalidade, procura no contato com a justiça uma muralha contra o desabamento interior. Em face da decomposição do político, é então ao juiz que se recorre para a salvação.

Passa a ser missão do jurista, mais que o sociólogo e o político, que

vêm tomando os fenômenos como objeto de investigação, traduzir a natureza das coisas para o campo da normatividade, o fundamento de validade do direito, essa lei que habita o ser de cada um, exortando o humano à autonomia e responsabilidade, no espaço social, por exigência ontológica,

5 Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. § 1º - O Procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal. § 2º - Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias. § 3º - Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 21 jun. 2015).

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conferindo-lhe adjetivo de pessoa digna, sendo este o cerne da justiça almejada.

17.4 JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO, ANÁLISE PONTUAL

Segundo Luiz Eduardo Motta, a judicialização da vida pública

comprova o deslocamento do sentido do termo justiça, passando a denotar para a sociedade uma ação coletiva justa, imparcial e transparente na argumentação, principalmente. O juiz proporciona à democracia imagens capazes de dar corpo a uma nova ética de deliberação coletiva. O que explica em por que o Estado se desfez de algumas de suas prerrogativas sobre instâncias quase jurisdicionais, como o são as autoridades administrativas independentes. A justiça passa, portanto a se encarnada no espaço público neutro, o direito, a referência da ação política, e o juiz, o espírito público desinteressado (MOTTA, 2015).

A judicialização, que de fato já se instalou e exala dos poros da sociedade brasileira, por não decorrer de uma opção ideológica, filosófica ou metodológica da Corte, mas, de um clamor do próprio povo brasileiro, deve continuar atuando. Em outros termos, e apesar dos opositores6, o Supremo Tribunal Federal necessita continuar agindo para fazer cumprir os preceitos máximos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, visto ser constitucionalmente seu papel: guardião da mesma. Logo, é a dignidade da pessoa humana pilar de toda estrutura constitucional brasileira vigente. Eis que, por ser garantida por um princípio constitucional, torna-se absoluta, plena, não podendo sofrer arranhões nem ser vítima de argumentos que a coloquem frente a um relativismo (COSTA, 2013, p. 122-123).

O judiciário brasileiro recentemente tem exibido, em determinadas circunstâncias, uma posição claramente ativista. Sob esta situação, faz-se mister expor que o ativismo judicial, muito embora seja parecido em diversos aspectos com a judicialização, chegando ao ponto de ser tido para alguns estudiosos7 como sinônimos, estes se diferem já em suas origens, pois suas causas imediatas não são as mesmas. É com passe nesta fundamentação que Luís Roberto Barroso (2015) preceitua:

6 Na passagem, vale citar Bruce Ackerman, citado por Manoel Messias Peixinho, o qual tem posição moderada em relação ao ativismo judicial, visto que para Ackerman o Poder judiciário é apenas mais um órgão institucional que faz parte da teoria geral da política dualista. Quando há violação à Constituição, os juízes devem invalidar os atos normativos inconstitucionais e apresentá-los como realmente são: meros substitutos do povo em si. Somente o povo pode modificar a Constituição e os juízes devem impedir que o Congresso proceda a alterações básicas indevidamente. (PEIXINHO, Manoel Messias. O princípio da separação dos poderes, a judicialização da política e direitos fundamentais. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/07_252.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2015). 7 Jamile B. Mata diz é um exemplo desta corrente, ao apregoar que o ativismo judicial e a judicialização da política são sinônimos, pois, ambos relacionam-se à concretização pelo juiz dos princípios previstos abstratamente na Constituição e, portanto, ao alargamento da discricionariedade judicial. (DIZ, Jamile B. Mata; SILVEIRA, Gláucio Inácio da. O ativismo judicial no direito comparado. Porto Alegre: Revista da AJURIS, 1999. p. 168).

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A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. [...] Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.

Outro autor que segue a mesma linha é Alexandre Garrido da Silva

(1996, p. 56-57), ao retrata que O ativismo judicial é percebido como uma atitude, decisão ou comportamento dos magistrados no sentido de revisar temas e questões – prima facie – de competência de outros poderes. A judicialização da política, mais ampla e estrutural, cuidaria de metacondições jurídicas, políticas e institucionais que favoreceriam a transferência decisória do eixo Poder Legislativo – Poder Executivo para o Poder Judiciário.

Assim, a ideia de ativismo judicial8 está associada a uma participação

mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. Dessa forma, a postura ativista é manifestada,

[...] por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas (BARROSO, 2015).

Já no Brasil, o supramencionado fenômeno do ativismo é pautado,

assim como na judicialização, nos valores e formalidades positivados pela Constituição da República. Desta forma, é apresentada como origem ou fundamento do ativismo judicial a redemocratização brasileira. Dessa maneira, atualmente, não é difícil colher exemplos da aplicabilidade do

8 O oposto do ativismo é a autocontenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. Por essa linha, juízes e tribunais (i) evitam aplicar diretamente a Constituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinário; (ii) utilizam critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos; e (iii) abstêm-se de interferir na definição das políticas públicas. Até o advento da Constituição de 1988, essa era a inequívoca linha de atuação do Judiciário no Brasil. A principal diferença metodológica entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, sem contudo invadir o campo da criação livre do Direito. A autocontenção, por sua vez, restringe o espaço de incidência da Constituição em favor das instâncias tipicamente políticas. (BARROSO, Luís Roberto. Judicialização e ativismo judicial. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro. n. 13, p. 71-91, jan/mar. 2009).

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ativismo brasileiro, sendo o mais notório, o da distribuição de medicamentos e determinação de terapias mediante decisão judicial. Neste contexto, Alexandre Garrido da Silva e José Ribas Vieira (1996, p. 57) asseveram que:

[...] o ativismo judicial constitui uma espécie de atitude ou comportamento dos juízes no sentido de participar na elaboração de políticas que poderiam ser deixadas ao arbítrio de outras instituições mais ou menos habilitadas [...] e, por vezes, substituir decisões políticas deles derivadas por aquelas derivadas de outras instituições.

Neste diapasão, o ativismo judicial expressa [...] uma postura do intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição, potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do legislador ordinário. Trata-se de um mecanismo para contornar, bypassar o processo político majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de produzir consenso. Os riscos da judicialização e, sobretudo, do ativismo envolvem a legitimidade democrática, a politização da justiça e a falta de capacidade institucional do Judiciário para decidir determinadas matérias (BARROSO, 2009, p. 71-91).

Desta forma, apesar de ser justificado o ativismo judicial pelo próprio

texto constitucional, como repositório axiológico na interpretação de normas infraconstitucionais, deve ser comedida e cautelosa, pois somente assim a referida decisão não exorbitará o campo de atuação do Judiciário adentrando no âmbito do poder legislativo. Isso se afirma em razão de que a possível interferência do poder judiciário na seara normativa pode violar o princípio democrático que fundamenta a República brasileira. O que contraria, portanto, a Constituição ao desconsiderar sua determinação disposta em seu artigo segundo, que impõe a manutenção da independência e harmonia entre os poderes instituídos (NEGRELLY, 2015).

Os resultados obtidos com o ativismo judicial são positivos, um vez que o judiciário está atendendo a demandas da sociedade que não puderam ser satisfeitas pelo parlamento, revelando as dificuldades enfrentadas pelo poder legislativo no atual quadro histórico, e a necessidade da reforma para reaproximar a classe política da sociedade civil. Luís Roberto Barroso (2015), por isso, adverte que

[...] as decisões ativistas devem ser eventuais, em momentos históricos determinados. Mas não há democracia sólida sem atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem Congresso atuante e investido de credibilidade. Um exemplo de como a agenda do país deslocou-se do Legislativo para o Judiciário: as audiências públicas e o julgamento acerca das pesquisas com células-tronco embrionárias, pelo Supremo Tribunal Federal, tiveram muito mais visibilidade e debate público do que o processo legislativo que resultou na elaboração da lei.

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Os riscos para a legitimidade democrática, em razão dos membros

do poder judiciário não serem eleitos, se intensificam na medida em que juízes e tribunais se atenham à aplicação da Constituição e das leis. Não atuam eles por vontade política própria, mas como representantes indiretos da vontade popular. Entretanto, “diante de cláusulas constitucionais abertas, vagas ou fluidas – como dignidade da pessoa humana, eficiência ou impacto ambiental –, o poder criativo do intérprete judicial se expande a um nível quase normativo” (BARROSO, 2015).

Deve-se, no entanto, atentar para Os riscos da politização da justiça, sobretudo da justiça constitucional, não podem ser totalmente eliminados. A Constituição é, precisamente, o documento que transforma o poder constituinte em poder constituído, isto é, Política em Direito. Essa interface entre dois mundos dá à interpretação constitucional uma inexorável dimensão política. Nada obstante isso, ela constitui uma tarefa jurídica. Sujeita-se, assim, aos cânones de racionalidade, objetividade e motivação das decisões judiciais, devendo reverência à dogmática jurídica, aos princípios de interpretação e aos precedentes. Uma corte constitucional não deve ser cega ou indiferente às conseqüências políticas de suas decisões, inclusive para impedir resultados injustos ou danosos ao bem comum ou aos direitos fundamentais. Mas somente pode agir dentro das possibilidades e dos limites abertos pelo ordenamento jurídico (BARROSO, 2009, p. 92-93).

Assim, o Judiciário deverá verificar se em relação à matéria tratada

um outro poder, órgão ou entidade não teria melhor qualificação para decidir. Em se tratando destes casos, em regra, a posição do Judiciário deverá ser a de deferência para com as valorações feitas pela instância especializada, desde que possuam razoabilidade e tenham observado o procedimento adequado. Naturalmente, se houver um direito fundamental sendo vulnerado, ou ocorrer clara afronta a alguma outra norma constitucional, o quadro se modifica (NEGRELLY, 2015).

Logo, sendo o judiciário o legítimo guardião da Constituição deve, então, fazê-la valer, em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusive em face dos outros poderes. Posto que, “Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder” (MONTESQUIEU, 2005, p. 200).

Assim, a liberdade política pode-se encontrar apenas num governo onde o poder seja moderado, moderação esta que depende de certa distribuição de força, que resulte da razão e não do acaso. Tendo em mente a constituição da Inglaterra, o pensador francês, Montesquieu, tentou harmonizar a visão democrática de representação política com o ideal de limitação do poder do Estado, afirmando que esse resultado é conseguido primordialmente por meio da construção de diversas salvaguardas institucionais no sistema político, ou seja, a atribuição das três funções do Estado a órgãos diferentes, equilibrando os poderes desse Estado pela

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tripartição em Poder Legislativo, Poder Judiciário e Poder Executivo (FREIRE et al, 2009, p. 139).

Desse modo, como aduz José Afonso da Silva (2009, p. 108), aos três poderes atribui-se uma função distinta:

A função legislativa consiste na edição de regras gerais, abstratas, impessoais e inovadoras da ordem jurídica, denominadas leis. A função executiva resolve os problemas concretos e individualizados, de acordo com as leis; não se limita à simples execução das leis, como às vezes se diz; comporta prerrogativas, e nela entram todos os atos e fatos jurídicos que não tenham caráter geral e impessoal; por isso, é cabível dizer que a função executiva se distingue em função de governo, com atribuições políticas, co-legislativas e de decisão, e função administrativa, com suas três missões básicas: intervenção, fomento e serviço público. A função jurisdicional tem por objeto aplicar o direito aos casos concretos a fim de dirimir conflitos de interesse.

Eventual atuação contra majoritária, nas hipóteses elencadas acima,

será dada a favor, e não contra a democracia. Nas demais situações, o Judiciário e, notadamente, o Supremo Tribunal Federal deverão acatar escolhas legítimas feitas pelo legislador, ser deferentes para com o exercício razoável de discricionariedade técnica pelo administrador, bem como disseminar uma cultura de respeito aos precedentes, o que contribui para a integridade, segurança jurídica, isonomia e eficiência do sistema. Posto que, o ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da solução e não, do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado, pois em dose excessiva, há risco de se morrer da cura.

17.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estado deve estar além dessas diferenças sociais, das

desigualdades ideológicas, individualistas, partidárias, sectaristas, devendo-se ponderar e equilibrar estes desvãos do caminho social. Para, então, poder se dizer que há um Estado justo. A pluralidade de políticas, acompanhada de uma representatividade proporcional na formação do poder, das normas e das decisões é o que trata das peculiaridades com justiça. Sabe-se que o consenso jamais é alcançado, mas não é esse o fim de nenhuma política, salvo das que possuam pretensões utópicas.

Não obstante as distinções, o equilíbrio surge da interação entre tendências diferentes, ou mesmo da representação da vontade da minoria em meio a uma maioria predominante. Quer-se afirmar que a participação em si é que é o importante, ou seja, que a possibilidade de possuir um espaço público para o debate, um lócus, um veículo de prolatar, de opinar, de discutir, o qual é essencial, de modo tal que é nisso que reside à possibilidade de construção de um ordenamento jurídico plural, equilibrado, e não tendencioso. Aí está o gérmen do Estado Democrático de Direito.

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Não se trata, pois, de desenvolver um puro alento ao relativismo, mas

construir uma visão que possibilita a demonstração e a fundamentação de uma forma de expressão do mais profundo respeito às particularidades de cada ser humano. Por isso, do ponto de vista político, o reconhecimento do pluralismo institui e possibilita a inclusão do cidadão no corpo social. Tudo isso, respeitados os limites da legalidade, da cidadania, da solidariedade, da justiça social e da dignidade da pessoa humana.

Assim, a atividade jurisdicional destinada à solução dos conflitos, está garantida pela Constituição e nesta é que se encontram os princípios em respeito, aos quais o legislador ordinário deve regular toda a atividade judicial. Muitas vezes, esta pode inovar em matéria jurídica, estabelecendo normas que não se contêm estritamente na lei, mas resultam de uma construção obtida graças à conexão de dispositivos, até então considerados separadamente, ou, ao contrário, mediante a separação de preceitos por largo tempo unidos entre si. Nessas oportunidades, o juiz compõe, para o caso concreto, uma norma que vem completar o sistema objetivo do Direito, para dar ao pleito um mínimo respaldo às garantias constitucionais.

Criando ou não Direito novo, com base nas normas vigentes, o certo é que a jurisdição é uma das forças determinantes da experiência jurídica. Se os precedentes jurisprudenciais não exercem, nos países de tradição romanística, o papel por eles desempenhado na experiência do common law, nem por isso é secundária a sua importância. Pode se disser que o seu alcance aumenta dia a dia, como decorrência da pletora legislativa e pela necessidade de ajustar às normas legais as necessidades do organismo social, para com isso o cidadão poder ter não só uma norma meramente formal, e sim uma concretude dos dispositivos vigentes, dando-lhe um mínimo de dignidade humana.

Conclui-se, portanto, que o presente trabalho se justificou ante a necessidade da Constituição da República Federativa do Brasil se torne mais efetiva e não apenas letra morta ou mera excludente para artificiosos e manipuladores políticos. Logo, é preciso utilizar melhor os instrumentos jurídicos que garantem a sua eficácia, como lutar para que o Supremo Tribunal Federal comunique ao Congresso Nacional a omissão inconstitucional para que ele, exercitando sua competência, faça a lei indispensável ao exercício do direito constitucionalmente assegurado aos cidadãos. Se o Congresso Nacional não fizer a lei em certo prazo que se estabeleceria na decisão, o órgão judiciário máximo brasileiro poderia dispor a respeito do direito, no caso concreto. Desse modo, denota-se para o verdadeiro papel que o sujeito social, que conhece os seus deveres e compreende os seus direitos, para que possa haver a participação de cada um na construção de um mundo justo e mais organizado, que realmente resguarde a dignidade humana.

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17.6 REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

AQUINO, Rubim Santos Leão; LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos; FRANCO, Denize Azevedo. História das sociedades. 3. ed. Rio de Janeiro: Novo Milênio, 2003.

BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Stare decisis, integridade e segurança jurídica: reflexões críticas a partir da 2011 aproximação dos sistemas de common law e civil law. Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2011.

BARCELLOS, Ana Paula. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Revista de Direito do Estado. n. 3. sul/set. 2006.

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização e ativismo judicial. In: Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro. n. 13, p. 71-91, jan/mar. 2009.

______. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: <http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf>. Acesso em: 18 jun. 2015.

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de ética jurídica: ética geral e profissional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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= XVIII =

RECONHECIMENTO DO DIREITO AO ESQUECIMENTO COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL

Bruno Martins Moutinho*

18.1 INTRODUÇÃO

O esquecimento é uma necessidade tão vital para o ser humano

quanto a lembrança, permitindo selecionar as informações recebidas constantemente, preservando as que são significativas e descartando as demais, para Iván Izquierdo (IZQUIERDO, 2010, p. 20), “[...] o aspecto mais notável da memória é o esquecimento, há mais esquecimento do que memória”.

Na história da humanidade, o esquecimento tem sido a regra e a lembrança exceção, não existe uma contradição entre lembrar e esquecer, pois ambos fazem parte do mesmo processo. Para Mayer-Schönberger (MAYER-SCHÖNBERGER, 2009, p.15): “O esquecimento não é apenas um comportamento individual, mas também um comportamento de toda uma sociedade”.

Nesse sentido, a sociedade aceita que os indivíduos evoluam com o tempo, aprendendo com experiências passadas e ajustando seus novos comportamentos. Com o esquecimento, a sociedade oferece uma segunda chance ao indivíduo, como por exemplo, pela prescrição de crimes ou pela eliminação dos fatos criminosos de seus registros depois de um determinado tempo.

Nesse contexto, surge a ideia de um direito ao esquecimento, nascido a partir do direito à privacidade, tendo como base os mesmos fundamentos. É a ideia de que o ser humano “[...] pode mudar e melhorar, acreditando que o mesmo não deva ser reduzido ao seu passado” (TERWANGNE, 2012, p. 53). Tal direito tem como premissa que ninguém poderá estar sujeito à submissão de pena perpétua por um fato que ocorreu em seu passado.

Constitui uma proteção do indivíduo em face do esquecimento de informações, consiste na faculdade que uma pessoa tem em não ser incomodada por atos ou fatos do passado que não tenham legítimo interesse público. “Trata-se do reconhecimento jurídico que a proteção da vida pretérita pertence ao seu patrimônio moral” (ELIAS, 2003, p. 132).

* Professor da Universidade da Amazônia e Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil; Bacharel

em Direito Mestrando em Direitos Fundamentais pela Universidade da Amazônia; Tecnólogo em Processamento de Dados pelo Centro de Ensino Superior do Pará; Especialista em Direito da Tecnologia da Informação pela Universidade Gama Filho e Mestre em Computação pela Universidade de São Paulo. Email: [email protected].

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Tal direito teve origem na esfera criminal1, mas com a expansão da

internet, existe a necessidade de se definir uma nova dimensão do mesmo. A Internet trouxe consigo a reivindicação de direitos que não figuram expressamente na legislação brasileira, isso porque a mesma mudou radicalmente o equilíbrio entre a necessidade de divulgação de informação pessoais e os vários aspectos da privacidade. Um desses aspectos é o chamado direito ao esquecimento, que defende a capacidade de um indivíduo apagar informações sobre si mesmo e desse modo preservar sua privacidade.

Portanto, até recentemente, lembrar era um pouco mais difícil do que esquecer, e tal fato ajudou os seres humanos a evitar uma questão fundamental: saber se de fato é desejável lembrar de tudo. No entanto, por causa da internet, esta situação mudou. O esquecimento tornou-se a exceção e a memória regra. Nesse sentido, “[...] podemos perder um direito fundamental: a capacidade humana para viver e agir firmemente no presente” (MAYER-SCHÖNBERGER, 2009, p.16).

Na internet, as tecnologias digitais combinadas para captura, publicação, armazenamento, replicação, busca e disseminação de informações, criaram uma incapacidade de esquecer, criando uma verdadeira memória perfeita. Além disso, as informações podem ser facilmente disponibilizadas através dos sítios de busca, sendo que os mesmos não foram feitos para esquecer2, já que seu principal objetivo é sempre aumentar a quantidade de informação disponível, tornando-se muito difícil que um usuário consiga apagar informações a seu respeito, a tendência é que a informação disponibilizada fique eternamente disponível e acessível.

Nesse sentido, uma pessoa, no direito brasileiro, possui um direito ao esquecimento? Com base no ordenamento jurídico brasileiro, será que tal direito é realmente fundamental, uma vez que tal direito não está enunciado expressamente no texto constitucional? É certo que esse tema envolve uma série de indagações, mas atualmente ainda são raras as decisões que enfrentaram o assunto3, razão pela qual ainda não se encontra uma orientação definitiva na jurisprudência (SCHREIBER, 2011, p. 164-165).

Nesse contexto, o objetivo do presente artigo é um estudo sobre o reconhecimento do direito ao esquecimento como um direito fundamental com base na cláusula de abertura material dos direitos e garantias fundamentais, consagrada no art. 5º, § 2º, da Constituição. Tendo como base a noção de fundamentalidade material de um direito é possível o

1 No direito penal esse direito é mais fácil de ser visualizado e existe há tempos. Por exemplo, um sujeito comete um crime, é julgado, condenado e cumpre sua pena. Nesse caso, o mesmo estaria justificado perante a sociedade? Após o cumprimento integral da pena, informações sobre a sua condenação poderiam ser apagadas dos arquivos, sejam eles digitais ou não? 2 O objetivo do serviço Gmail do Google é "livre de armazenamento de forma que você nunca mais vai precisar excluir outra mensagem." Na mesma linha o Yahoo! Mail “oferece contas de email aos seus usuários com espaço de armazenamento ilimitado” 3 A título de exemplo: TJERJ, 5ª C.C., Ag. Inst. nº 0051483-50.2012.8.19.0000, Rel. Des. Antonio Saldanha Palheiro, publicado em 25.10.2012; TRF-4ª Região, 4ª T, Ap. Civ., 2003.70.00.058151-6/PR, Rel. Des. Fed. Marga Inge Barth Tessler, j. em 06.05.2009.

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reconhecimento, no ordenamento jurídico pátrio, de direitos fundamentais não escritos no texto constitucional.

Para atingir esse objetivo o restante do artigo está dividido em quatro seções, a primeira seção discute os contornos do direito ao esquecimento, a segunda seção apresenta como um novo direito pode ser reconhecido como direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro, a terceira seção trata do reconhecimento do direito ao esquecimento como um direito fundamental implícito com base nos critérios apresentados na segunda seção, e finalmente, a quarta e última seção apresenta as conclusões do trabalho. 18.2 DIREITO AO ESQUECIMENTO

O direito ao esquecimento é definido por René Ariel Dotti (DOTTI,

1980, p. 23) como sendo “[...] a faculdade da pessoa não ser molestada por atos ou fatos do passado que não tenham legítimo interesse público”. Tal direito surgiu na Alemanha recht auf vergessen e está diretamente ligado aos fatos ocorridos durante as Guerras Mundiais e foi evoluindo à medida que os tribunais pelo mundo reconheciam a sua existência, como por exemplo: Estados Unidos4 (DOTTI, 1980, p. 92) e França (RALLO, 2011).

É o direito que uma pessoa possui de não permitir que um fato, ainda que verídico, ocorrido no passado, seja exposto ao público em geral, causando-lhe sofrimento ou transtornos. Ou seja, os atos que praticaram no passado distante não podem ecoar para sempre, como se fossem punições eternas. Para Artemi Rallo (RALLO, 2011), tal direito inclui “[...] o cancelamento de um dado pessoal que foi obtido legitimamente para que seja retirado quando se esgotar a finalidade para a qual foi obtido”. Vale ressaltar que quando um dado pessoal foi obtido de maneira ilegítima, não se deve falar em direito ao esquecimento e sim na divulgação indevida da informação, seja por acesso indevido, calúnia, etc.

Em suma, o direito ao esquecimento é o direito que o indivíduo tem de que um fato fique no passado e que não seja relembrado eternamente. Equivale a tornar realidade o poder de qualquer indivíduo dispor sobre a informação da qual é titular. Nesse contexto, a tese do direito ao esquecimento ganha força no Brasil. O Superior Tribunal de Justiça julgou dois recursos especiais que tratam do direito ao esquecimento: o caso da Chacina da Candelária (REsp 1.334.097) e o caso de Aída Curi (REsp 1.335.153), em que este direito foi levado em consideração. Ambos os julgados inauguraram o debate, no STJ, em torno do conflito entre direito ao esquecimento e a liberdade de informar, o qual já vem sendo enfrentado em

4 Em 1931, o Tribunal de Apelação da Califórnia, no caso Melvin x Reid, reconheceu a existência de um direito à intimidade da vida passada em favor de Gabrielle Darley, uma ex-prostituta que no passado fora acusada de homicídio, porém absolvida em 1918, e desde então levava uma vida digna e honrada e merecendo a admiração e o bom conceito das pessoas conhecidas. Em 1925, um produtor de cinema fez um filme baseado na biografia daquela mulher, com destaque para as suas características sensuais e para o processo criminal a que respondera. Da análise do caso, o tribunal condenou o produtor a pagar uma indenização como forma de reparação, alegando a existência de um direito ao esquecimento da sua vida passada.

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Cortes inferiores5, na doutrina brasileira (SCHREIBER, 2011, p. 164/165) (COSTA, 2013, p. 192) e nas Jornadas de Direito Civil (Enunciados 4046 e 5317).

O direito ao esquecimento tem três vertentes (TERWANGNE, 2012, p. 55): aspectos criminais; proteção de dados pessoais e direito ao esquecimento na internet. A primeira vertente está relacionada aos aspectos criminais, é sua vertente clássica que inicialmente estava ligada apenas aos registros criminais. Os institutos da reabilitação criminal, art. 93 do Código Penal8 e o art. 748 do Código de Processo Penal9, além do previsto no art. 202 da Lei de Execução Penal10, são os fundamentos dessa vertente do direito ao esquecimento, a partir do momento que versam sobre o dever de manter sigilo de quaisquer informações que digam respeito ao processo ou à condenação do apenado.

A segunda vertente do direito ao esquecimento é a proteção de dados pessoais, nesse contexto, a proteção se expande, sendo aplicável ao tratamento de quaisquer dados pessoais, não apenas ao registro criminal. Nessa vertente, os dados pessoais devem ser interpretados de maneira ampla, significando quaisquer informações relativas ao indivíduo. Nesse sentido, o indivíduo deve ter o controle sobre seus próprios dados pessoais, de modo a concretizar o direito à privacidade protegido constitucionalmente.

A terceira vertente é o direito ao esquecimento na internet, uma vez que nela existe um potencial infinito de acumulação de dados pessoais, além da facilidade de acesso, portanto, nossas palavras e ações podem ser julgadas não só por nossos pares no presente, mas também por qualquer pessoa no futuro.

Para Cécile de Terwangne (TERWANGNE, 2012, p. 54): “A infalibilidade da memória da internet contrasta com os limites da memória humana”. Graças ao seu propósito eterno, a internet preserva os erros do passado. A internet tem a capacidade de reunir todos os dados em um só lugar, fazendo referências e cruzamento de dados, que ficam rapidamente acessíveis e permanentemente gravados. Ou seja, um erro que um indivíduo

5 A título de exemplo: TJERJ, 5ª C.C., Ag. Inst. nº 0051483-50.2012.8.19.0000, Rel. Des. Antonio Saldanha Palheiro, publ. em 25.10.2012; TRF-4ª Região, 4ª T, Ap. Civ., 2003.70.00.058151-6/PR, Rel. Des. Fed. Marga Inge Barth Tessler, j. em 06.05.2009. 6 Enunciado 404: A tutela da privacidade da pessoa humana compreende os controles espacial, contextual e temporal dos próprios dados, sendo necessário seu expresso consentimento para tratamento de informações que versem especialmente o estado de saúde, a condição sexual, a origem racial ou étnica, as convicções religiosas, filosóficas e políticas. 7 Enunciado 531: A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. 8 Art. 93 - A reabilitação alcança quaisquer penas aplicadas em sentença definitiva, assegurando ao condenado o sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação. 9 Art. 748. A condenação ou condenações anteriores não serão mencionadas na folha de antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros do juízo, salvo quando requisitadas por juiz criminal. 10 Art. 202. Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei.

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cometeu em seu passado, ou uma informação verdadeira que um indivíduo não queira mais que esteja associada ao seu nome, pode nunca mais sair desses bancos de dados e consequentemente essa informação pode estar disponível pela internet, podendo ser livremente consultada por qualquer pessoa.

O que se deve compreender é que está acontecendo uma mudança de paradigma, pois anteriormente, a privacidade era a regra e a publicidade exceção, agora com a internet o público é a regra e a privacidade exceção. A dificuldade do esquecimento na internet se deve as características da mesma: memória infinita e eterna; eficiência dos sítios de busca; e possibilidade de cruzamento de informações.

Isso aconteceu principalmente por causa das redes sociais e sítios de busca, que tem como principal objetivo a busca, armazenamento e publicidade das informações, ou seja, tais sistemas não foram feitos para esquecer. O principal objetivo desses sistemas é sempre aumentar a quantidade de informação disponível, dessa forma, torna-se muito difícil que um usuário consiga apagar informações a seu respeito, portanto, a tendência é que a informação disponibilizada fique eternamente disponível e acessível11.

Nesse ambiente, o conceito de vida privada como algo precioso, parece estar sofrendo uma deformação progressiva, na moderna sociedade de massas, a existência da intimidade, privacidade, contemplação e interiorização vêm sendo posta em xeque, numa escala de assédio crescente, sem que reações proporcionais possam ser notada (COSTA JÚNIOR, 2007, p. 16-17).

Nesse contexto, tal instituto vem ganhando contornos mais fortes em razão da facilidade de circulação e de manutenção de informação pela internet, capaz de proporcionar superexposição de boatos, fatos e notícias a qualquer momento, mesmo que decorrido muito tempo desde os atos que lhes deram origem, especialmente nas redes sociais (SOLOVE, 2007). Ele em sido abordado na defesa dos cidadãos diante de invasões de privacidade pelas mídias sociais, blogs, provedores de conteúdo ou buscadores de informações.

Portanto, quais as consequências dessas características para a privacidade do indivíduo? Se a pessoa divulga algo na rede, teria ela o direito de suprimir após certo período? Quanto tempo uma informação pode ou deve ficar disponível? Que informação pode ser excluída? Se o mesmo tivesse a preocupação de que qualquer informação a seu respeito seria eternamente lembrada, o mesmo ainda seria capaz de expressar os seus pontos de vista sobre assuntos triviais, compartilhar experiências pessoais ou fazer

11 Por exemplo, as redes sociais não fornecem opções reais de controle, ou quando oferecem são obscuras e pouco claras, em algumas redes sociais não é simples você excluir seus dados, o que acontece é que as informações não são suprimidas, elas ficam apenas inacessíveis, ou seja, o usuário não publica mais nenhuma informação, mas as redes sociais se recusam a apagar as anteriormente cadastradas, porque tais informações ainda são úteis, minimizando aos seus usuários controle sobre suas próprias informações (RIVEROLA, 2015).

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comentários políticos? Será que a memória perfeita tem um efeito inibidor que pode alterar o comportamento individual, uma vez que todas as atividades passadas, transgressões ou não, estarão sempre presentes?

Em resumo, o direito ao esquecimento dispõe que nenhum indivíduo que não goze da condição de personalidade pública, nem seja objeto de um fato de relevância pública, deve permitir que seus dados pessoais circulem na rede. Nesse caso, se o mesmo considerar que tais dados estão infringindo a sua dignidade pessoal, o mesmo deve dispor de mecanismos para solicitar o cancelamento dos dados, seja em sítios de busca, redes sociais ou registros de acessos. 18.3 RECONHECIMENTO DE UM DIREITO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Para o reconhecimento do direito ao esquecimento como um direito

fundamental, é importante analisar como um direito é considerado fundamental. Para isso, deve existir uma justificação da fundamentalidade do mesmo. Portanto, o principal objetivo dessa seção é discutir como um direito pode ser definido como fundamental.

Nesse sentido, a fundamentalidade tem como consequência a atribuição de determinadas características que são peculiares aos direitos fundamentais e que fazem toda a diferença quando da sua proteção e concretização. Para Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Jr. (ARAÚJO e NUNES JÚNIOR, 1998. p. 64), existe um regime jurídico de proteção especial outorgado pela Constituição baseado em dois aspectos. O primeiro é o princípio da aplicabilidade imediata, disposto no art. 5º, §1º da Constituição12. E o segundo aspecto é que os mesmos são considerados como cláusulas pétreas, de acordo com o art. 60 §4º, inciso IV13.

Sendo assim, é necessário se definir critérios rígidos com o máximo de cautela para que seja preservada a efetiva relevância e prestígio destas reivindicações e que efetivamente correspondam a valores fundamentais consensualmente reconhecidos no âmbito de determinada sociedade ou mesmo no plano universal (SARLET, 2012, p. 62).

Vale ressaltar a advertência de Perez Luño (LUÑO, 1991, p. 210), que aduz que o reconhecimento ilimitado e irrefletido de novos direitos fundamentais, vem junto com o risco da degradação dos mesmos, colocando em risco seu status jurídico e científico, bem como levando ao desprestígio da sua própria fundamentalidade.

No mesmo sentido segue Otero (OTERO, 2001, p. 155), afirmando que é preciso muita cautela na enunciação dos direitos fundamentais por parte da doutrina, pois, há o sério risco de alargar indiscriminadamente o rol dos mesmos e, com isso, banalizá-los, fato que conduziria a uma redução e

12 § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 13 Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV - os direitos e garantias individuais.

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mesmo ao descrédito de sua fundamentalidade, pois, onde tudo é fundamental, nada é fundamental. Nas palavras de Otero:

No limite, sabendo-se que não há uma elasticidade ilimitada de direitos fundamentais, um alargamento artificial de novos direitos fundamentais, especialmente através da “promoção” constitucional de realidades dotadas de uma diferente natureza ou da qualificação legal como tais por força do princípio da não-tipicidade, provocará uma diluição da ‘fundamentalidade’ e cada direito, restringindo a operatividade daqueles que são verdadeiramente fundamentais e, ao mesmo tempo, ampliando a esfera daqueles que carecem de tal ‘fundamentalidade’ (OTERO, 2001, p. 155).

Portanto, buscando evitar o que o autor chama de alargamento

artificial dos direitos fundamentais é que se devem buscar critérios rígidos para a definição de novos direitos fundamentais, a restante dessa seção busca definir tais critérios, iniciando com a possibilidade constitucional de se considerar novos direitos como fundamentais. 18.3.1 A cláusula de abertura material dos direitos fundamentais na constituição brasileira

O rol de direitos e garantias fundamentais definidos no Título II da

Constituição, embora extenso, não é exaustivo. Nesse sentido, a Constituição em seu art. 5º, § 2º dispõe que: “[...] os direitos expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Tal dispositivo é conhecido como cláusula de abertura constitucional a novos direitos fundamentais ou cláusula da não tipicidade.

Tal cláusula se mostra ampla, com diversas possibilidades de tratamento, o que por si só demonstra a sua complexidade e importância (EMERIQUE, 2011, p. 12). O sentido imediato da cláusula é de reconhecer a existência de direitos fundamentais além do catálogo constitucional. Para Luis Roberto Barroso (BARROSO, 2015, p. 76): “[...] o aumento do rol dos direitos fundamentais é um fenômeno decorrente do neoconstitucionalismo, seja pelo reconhecimento da existência de direitos fundamentais arrolados por toda a Constituição”, seja pela ampliação hermenêutica ou de direitos, decorrentes do pós-positivismo14.

Portanto, tem se entendido, que não é necessária uma mudança no texto constitucional para a proteção de um bem tutelável como direito fundamental. O que ocorre é um acréscimo declarativo, desde que determinado direito seja considerado como materialmente fundamental, que

14 Como exemplo, o Princípio da Anterioridade foi reconhecido como direito fundamental pelo STF ao analisar o art. 2°, § 3°, da Emenda Constitucional n. 3, de 17-03-1993, que desconsiderou o principio da anterioridade tributária anual do IPMF, o STF entendeu que tal medida seria uma “violação à garantia individual do contribuinte”. (STF, ADI n. 939-7, rel. Min. Sydney Sanches, j. 15-12-1993)

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por seu conteúdo e substância, pertencem ao corpo fundamental da Constituição de um Estado (SARLET, 2012, p. 78).

Nesse sentido, é importante ressaltar que a fundamentalidade pode se revelar de duas formas: a primeira chamada de formal, onde o que importa é a posição normativa, ou seja, tal direito tem que estar na Constituição; a segunda é conhecida como fundamentalidade material, nesse caso o que importa é o conteúdo do direito.

Para Robert Alexy (ALEXY, 2008, p. 325), os direitos fundamentais são materialmente fundamentais porque com eles se tomam decisões sobre a estrutura normativa básica do Estado e da sociedade. No mesmo sentido segue Jorge Miranda (MIRANDA, 1998, p. 121), ao afirmar que tais direitos são resultantes da concepção dominante de constituição e da ideia do direito, que dificilmente tornariam totalmente distanciados de um respeito pela dignidade do homem concreto.

Para J. J. Gomes Canotilho (CANOTILHO, 1998, p. 369), ao falar da abertura da constituição a outros direitos, afirma que a norma abrange, “[...] para além das positivações concretas, todas as possibilidades de ‘direitos’ que se propõem no horizonte da ação humana”, ou seja, direitos materialmente fundamentais. Na mesma linha de raciocínio segue Lilian Emerique (EMERIQUE, 2011, p.11), quando afirma que “[...] somente com a justificação da fundamentalidade material de um direito é que se pode afirmar com segurança que um novo direito reconhecido é um direito fundamental”.

Portanto, pela concepção da fundamentalidade material, os direitos que, apesar de se encontrarem fora do catálogo dos direitos fundamentais, mas que por seu conteúdo e importância puderem ser a estes equiparados, também serão considerados direitos fundamentais. Nesse sentido, é importante tratar das possíveis espécies de direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro com base na cláusula de abertura.

Para José Afonso da Silva (SILVA, 2008, p.112), os direitos fundamentais são classificados em: expressos, implícitos e decorrentes. Os expressos são aqueles explicitamente enunciados na Constituição ou nos tratados internacionais subscritos pelo Brasil. Os direitos implícitos seriam aqueles subentendidos dos direitos expressos. Por último, os decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição.

Flávia Piovesan (PIOVESAN, 2013, p. 78) insere outro parâmetro nessa classificação, para a autora os direitos fundamentais decorrentes dos tratados internacionais subscritos pelo Brasil não devem ser equiparados aos direitos explicitamente enunciados na Constituição.

Nesse sentido, a autora propõe outra classificação: (i) direitos expressos na Constituição; (ii) direitos expressos em tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil seja parte; e, (iii) direitos implícitos, aqueles subentendidos nas regras de garantias, bem como os direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição. Para a autora, os direitos implícitos estão subentendidos, mas não de modo claro, formando um universo de direitos vago, impreciso, elástico e subjetivo,

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enquanto que os direitos expressos na Constituição e em tratados internacionais formariam um universo de direitos claro e preciso.

Ingo Sarlet (SARLET, 2012, p. 97) apresenta uma classificação mais completa, que será utilizada como base nesse trabalho, para o autor, os direitos fundamentais são divididos em dois grandes grupos: (a) escritos ou expressamente positivados e (b) não escritos. O primeiro grupo é dividido em duas categorias: (a.1) os direitos previstos no catálogo constitucional; e, (a.2) os direitos fundamentais constantes dos tratados internacionais.

Para segundo grupo, é imprescindível que os mesmos sejam materialmente fundamentais, se subdividindo em duas categorias: (b.1) os direitos fundamentais implícitos; e (b.2) os direitos decorrentes, é importante ressaltar que além da fundamentalidade material, tais direitos também são dotados de fundamentalidade formal.

Para o autor, os direitos implícitos abrangem os de direitos fundamentais escritos fora do catálogo (estejam ou não expressos na Constituição) são entendidos como direitos que resultam da redefinição do campo de incidência dos direitos fundamentais específicos já expressamente enumerados no catálogo constitucional, ou da dedução deles.

Por sua vez, os direitos decorrentes são aqueles que podem ser deduzidos através de ato interpretativo com base nos direitos constantes do catálogo, bem como no regime e nos princípios fundamentais adotados pela nossa Constituição. Ainda segundo o autor, os direitos decorrentes possibilitam a dedução de novos direitos fundamentais (no sentido de não expressa ou implicitamente previstos), com base no regime e nos princípios da Constituição, mediante o recurso da hermenêutica, cuidando-se da redefinição do campo de incidência de determinado direito fundamental já expressamente positivado.

Vale ressaltar que quanto à terminologia, Ingo Sarlet (SARLET, 2012, p. 99) entende que a denominação ‘direitos não escritos’ ou ‘direitos não expressos’ constitui, em verdade, o gênero, que alberga, como espécies, os direitos implícitos e os direitos decorrentes. Para o presente trabalho, contudo, não será adotada a diferença terminológica acima reportada, entendendo-se como sinônimos os conceitos de direitos implícitos, decorrentes e não escritos.

Nesse contexto, deve-se buscar um tratamento adequado ao problema de reconhecimento de novos direitos fundamentais com base na cláusula de abertura, principalmente em saber como podem ser corretamente identificados outros direitos fundamentais. Se surgem situações novas nas quais passam a ser exigidos direitos até então não reconhecidos, é preciso examinar os critérios que tornam possível seu reconhecimento, de acordo com a Constituição. 18.3.2 Critérios para reconhecimento da fundamentalidade de um direito

O art. 5º, §2º da Constituição, ao consagrar a cláusula de abertura

material dos direitos e garantias fundamentais, possibilitou o reconhecimento

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de direitos não escritos, ratificando a ideia de que os direitos fundamentais não são apenas aqueles expressamente outorgados por normas constitucionais, mas também outros direitos quem têm sua fundamentalidade justificada.

Dessa forma, atribuir a um novo direito o título de fundamental não passa necessariamente pela alteração formal da Constituição, pode-se “[...] resultar de uma ampliação hermenêutica, pois o próprio texto Constitucional permitiu fazê-lo, porém, o mesmo não indicou qualquer critério para sua definição” (PARDO, 2005, p. 145).

Nesse sentido, se um direito não se encontra expressamente enumerado no catálogo constitucional, sua identificação somente pode ser feita mediante uma fundamentação correta de sua fundamentalidade. Sendo justificada a sua identificação quando se demonstra que ela é uma exigência do próprio sistema de direitos fundamentais, quando coerentemente reconstruído em face das circunstâncias de um caso problemático (PARDO, 2007, p. 62).

Portanto, nesse momento o que a importa é saber quais normas do sistema constitucional brasileiro são normas de direito fundamental. Com efeito, os direitos fundamentais são sempre manifestados por meio de normas morais ou jurídicas (ALEXY, 2008, p. 47). Quando se está frente a um sistema constitucional como o brasileiro, os direitos fundamentais são garantidos por normas constitucionais, por normas jurídicas plenamente válidas, tais normas são válidas porque outorgam direitos fundamentais. O objetivo da presente seção é determinar critérios para fundamentar o reconhecimento de um novo direito como fundamental, seja o mesmo implícito ou decorrente.

No entender de Ingo Sarlet (SARLET, 2012, p. 101) a fundamentalidade define um “[...] conteúdo básico e mínimo aos direitos, aquém do qual não se toleram contenções, nesse sentido, sempre que uma posição jurídica estiver relacionada e embasada na dignidade da pessoa humana deverá ser considerada uma norma de direito fundamental”. Ainda segundo o autor, os ditames da dignidade da pessoa humana constituem o valor unificador de todos os direitos fundamentais, tendo a função de reconhecer os direitos fundamentais implícitos, revelando, desse modo, uma íntima relação com o art. 5º. §2º (SARLET, 2012, p. 95).

No mesmo sentido, Ricardo Soares (SOARES, 2010, p. 136) afirma que a dignidade da pessoa humana “[...] figura como um princípio ético-jurídico capaz de orientar, através de uma interpretação teleológica da Constituição, o reconhecimento de direitos fundamentais implícitos”.

Embora a dignidade da pessoa humana seja um critério importante para a definição da fundamentalidade material de um direito, acredito que tal critério é insuficiente, correndo o risco do reconhecimento ilimitado e irrefletido de novos direitos fundamentais, como advertiu Perez Luño (LUÑO, 1991, p. 210). Portanto, deve-se continuar a busca por critérios mais específicos para justificar a fundamentalidade de um direito.

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George Marmelstein (MARMELSTEIN, 2008, p. 191) entende que “[...] além da dignidade da pessoa humana, também são direitos fundamentais implícitos os que tenham vinculação com a limitação de poder”. Claiz dos Santos (SANTOS, 2010, p. 12) amplia tal conceituação, segundo a autora para que um direito implícito seja considerado um direito fundamental, faz-se necessária a observância de alguns requisitos, a saber: a) vinculação com a dignidade da pessoa humana ou com a limitação de poder; b) origem no regime democrático e nos princípios contidos no Título I da Constituição; e c) equivalência aos direitos fundamentais elencados no Título II da Constituição, através dos critérios de relevância e substância.

O primeiro dos critérios apresentados pela autora já tinha sido definido por George Marmelstein e não merece maiores considerações. O segundo é ter como base o regime democrático, além de observar os fundamentos, objetivos e princípios fundamentais elencados na Constituição, tanto em nível interno quanto internacional.

Nesse sentido, a fundamentalidade material dos direitos fundamentais tem a ver exatamente com a importância e legitimidade do seu conteúdo. Portanto, a fundamentalidade material diz respeito aos objetos de regulação das normas jurídicas fundamentais; por meio delas, são tomadas as decisões sobre a estrutura normativa básica do Estado e da sociedade (PARDO, 2007, p. 34).

O terceiro critério, é que a autora considera indispensável que os novos direitos guardem sintonia com os direitos fundamentais do catálogo, já que os mesmos correspondem ao esforço do legislador constituinte originário de detalhar os sentidos das liberdades, formulando normas explícitas de direitos fundamentais específicos.

Nesse sentido, devem ser observados os critérios de relevância e substância. O critério da relevância está baseado na efetiva importância que aquele direito deve ter para a comunidade em determinado momento histórico, sendo que referido critério relaciona-se com a dimensão axiológica dos direitos fundamentais, ou seja, com a expressão valorativa consensualmente reconhecia no meio social (SANTOS, 2010, p. 10).

Para David Pardo (PARDO, 2007, p. 121) os critérios de relevância e substância são próprios do tema da interpretação constitucional. Tomando como base a experiência constitucional norte-americana, o autor afirma que a fonte de novos direitos fundamentais é a própria constituição, compreendida na sua tensão entre constituição formal e constituição material. Portanto, o reconhecimento de novos direitos fundamentais acontece quando se está frente a um caso problemático que se apresenta singularmente difícil e que, dessa forma, obriga a retomada de discursos de justificação, quando coerentemente reconstruído em face das circunstâncias do caso concreto, nos quais juízos de natureza moral desempenham um papel importante.

Nesse caso, como já tratado anteriormente, os direitos fundamentais implicam a existência de normas jurídicas válidas que os outorgam. Se tais normas puderem ser compreendidas como princípios, então os direitos

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fundamentais também poderão ser considerados princípios (PARDO, 2007, p. 245).

Portanto, um novo direito fundamental surge do esquema básico de princípios constitucionais, dele sendo uma exigência. Daí porque, inclusive, cada novo direito tem de coexistir com os demais, sem quebra de unidade. Dessa forma, a questão é sobre o que diz a Constituição como um todo, sendo necessário estudar o procedimento de interpretação e aplicação dos direitos fundamentais, na tentativa de encontrar um critério de ordem geral mediante o qual podem ser justificados e aplicados direitos não expressos na Constituição.

Para David Pardo (PARDO, 2007, p 255), a teoria dos princípios fornece um critério geral para a justificação e aplicação dos direitos não escritos, pois permite a tomada de uma decisão baseada na ordem jurídica vigente e de acordo com regras e princípios legítimos. Na medida em que oferece critérios para justificar a fundamentalidade de certas pretensões normativas.

Nesse sentido, esse trabalho vai se utilizar da teoria dos princípios de Robert Alexy (ALEXY, 2008, p.114) para justificar a fundamentalidade de um direito, tal teoria sustenta a tese de que princípios e regras são normas com base no argumento de que ambos expressam um dever ser. Para o autor, a diferença entre os dois não é de grau, mas, uma diferença qualitativa. A novidade da teoria localiza-se no conceito de princípio: uma norma que ordena que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas. Os princípios constituem o que Alexy (ALEXY, 2008, p.121) denomina “mandados – ou mandamentos – de otimização”, podendo se referir tanto a permissão quanto a proibição.

Para Alexy, os princípios “foram incorporados à constituição e, assim, ao direito positivo”. Na interpretação do direito constitucional positivo, portanto, os juízos morais desempenham um papel importante, notadamente em face da exigência de fundamentar-se uma resposta normativamente correta para um caso especialmente problemático. É que a pretensão de correção da resposta manifesta, em outro nível, a própria pretensão de legitimidade da ordem jurídica:

[...] A pretensão à legitimidade da ordem jurídica implica decisões, as quais não podem limitar-se a concordar com o tratamento de casos semelhantes no passado e com o sistema jurídico vigente, pois devem ser fundamentadas racionalmente, a fim de que possam ser aceitas como decisões racionais pelos membros do direito. Os julgamentos dos juízes, que decidem um caso atual, levando em conta também o horizonte de um futuro presente, pretende validade à luz de regras e princípios legítimos (ALEXY, 2008, p.112).

Na verdade, o próprio conceito de princípios leva à adoção de um

procedimento de aplicação dos direitos no qual a justificação se processa por meio de um jogo de prós e contras. Na medida em que as normas de direito fundamental são aplicáveis apenas prima facie, o jogo permite o controle dos

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argumentos levantados no discurso de aplicação e a identificação da norma que aplicada ao caso o resolve corretamente.

Ronald Dworkin (DWORKIN, 2002, p.115) propôs uma teoria do direito baseada em princípios, que serve para enfrentar e defender a tese de uma resposta correta para os casos difíceis. Os princípios são definidos como standards que devem ser observados por se constituírem numa exigência da justiça, equidade ou alguma outra dimensão da moralidade, estando sua aplicação vinculada ao critério da importância ou peso relativo de cada um, na hipótese de conflito.

Com base no disposto acima, pode o direito ao esquecimento, mesmo não previsto textualmente, ser considerado integrante da Constituição em virtude de sua fundamentalidade? Sendo, portanto, considerado como um direito fundamental? Estando sujeito ao regime próprio dos direitos fundamentais? A próxima seção tem como objetivo responder tais perguntas com base nos critérios propostos na presente seção. 18.4 RECONHECIMENTO DO DIREITO AO ESQUECIMENTO COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL

A Constituição não inclui, no título reservado aos direitos e garantias

fundamentais, dispositivos que tratam expressamente do direito ao esquecimento. Isso não significa que tal direito não possua uma dimensão de proteção individual incontestável, o que acaba por lhe caracterizar como um direito individual fundamental.

Para isso, é necessário mostrar que o mesmo se encaixa nos requisitos apresentados na seção anterior, ou seja: a) vinculação com a dignidade da pessoa humana ou com a limitação de poder; b) origem no regime democrático e nos princípios contidos no Título I da Constituição; e c) equivalência a outros direitos fundamentais. Além de tratar de possíveis conflitos com outros direitos fundamentais. 18.4.1 Vinculação com a dignidade da pessoa humana

Nessa seção serão tratados os dois primeiros requisitos para se

considerar um novo direito como fundamental: vinculação com a dignidade da pessoa humana e origem no regime democrático e nos princípios contidos no Título I da Constituição. Com relação aos princípios é clara a relação com a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, inciso II), portanto cabe analisar a vinculação com a dignidade da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana, concretizada no art. 1º, inciso III, cujo valor ético intrínseco impede qualquer forma de degradação, aviltamento ou coisificação da condição humana, além de ser o núcleo essencial de todos os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, é um princípio norteador do direito ao esquecimento.

Seria digno forçar uma pessoa a conviver com os erros do seu passado? Ou uma família com os erros dos seus antepassados? Essa é a

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ideia do direito ao esquecimento, justifica-se na expectativa de que todo ser humano tem a capacidade de mudar e melhorar, que uma vez pago o que era devido, a sociedade deve oferecer possibilidade de reabilitação, podendo começar uma nova vida sem ter que suportar o peso de seus erros passados, tal face do direito ao esquecimento “[...] revela sua maior nobreza, afirmando-se, na verdade, como um direito à esperança”15.

Atualmente, por mais insignificante que seja um fato, sob o ponto de vista social ou jornalístico, ele pode ser recuperado rapidamente através dos sites de busca na internet. E a informação volta a provocar na vítima angústia, dor, sofrimento, mágoa, de modo reiterado, continuado e, portanto, muito mais grave.

Fatos praticados na juventude, e até já esquecidos, podem ser resgatados, vindo a causar novos danos atuais, e até mais ruinosos, além daqueles já causados em época passada. Sendo assim, as informações veiculadas na internet, em regra, são eternizadas na mesma sem nenhuma regulamentação ou limitação, em alguns casos se tornam grave ameaça a dignidade da pessoa humana. Portanto, o indivíduo não pode ser tratado como “coisa”, ou seja, deve ter o direito de controlar as informações a seu respeito, um poder de determinar o uso dos seus dados pessoais.

Como bem observa Paulo José da Costa Júnior (COSTA JÚNIOR, 2007, p. 18), hoje se aceita, com surpreendente passividade, que o nosso passado e o nosso presente, os aspectos personalíssimos de nossa vida, até mesmo sejam objeto de investigação e todas as informações arquivadas e livremente comercializadas. Na Era da Informação, onde a velocidade de propagação das notícias torna praticamente impossível seu controle, os danos causados por uma ofensa podem ser irreversíveis:

É até possível que, com algumas ordens judiciais, as fotos sejam retiradas dos grandes sites e do Google. Os cacos maiores da xícara são facilmente encontrados no chão. A questão são os peque nos fragmentos que se misturam ao leite e estão por toda parte, as informações encontram-se não só espalhadas em pequenos sites e blogs, mas também nos computadores de inúmeros internautas que as viram e resolveram salvar uma cópia para acessá-las eventualmente no futuro. Em suma: tornaram-se públicas (VIANA, 2012).

Portanto, os abusos devem ser controlados o quanto antes, porém,

como visto anteriormente nem sempre é simples excluir informações, isso acontece porque o modelo de negócios da internet funciona dessa forma, não existe serviço gratuito, “[...] quando um serviço na internet é dito gratuito, no fundo o serviço coleta informações pessoais como forma de pagamento,

15 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n. 1.334.097- RJ. Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, 28 maio 2013. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/? componente=ITA&sequencial=1239004&num_registro=201201449107&data=20130910&formato=PDF>. Acesso em: 20 ago 2015.

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portanto não tem interesse na exclusão de tal informação, uma vez que com isso o serviço diminui o valor” (GROSSMANN, 2014).

Nesse sentido, é imprescindível a existência de mecanismos de esquecimento na internet, com o objetivo de cancelar dados pessoais ou impedir a manutenção dos mesmos, tais mecanismos devem ser fornecidos prioritariamente pelas empresas privadas em que as informações estão disponíveis nos seus bancos de dados, como por exemplo, Google, Facebook, etc. O grande problema é poucas empresas fornecem mecanismos para esquecimento16, ou os mecanismos não são efetivos17, dessa forma, o indivíduo tem que buscar no poder judiciário o esquecimento das informações1819, já que, mesmo com as medidas cautelares, o procedimento tende a ser mais lento do que os fornecidos pelas empresas.

Portanto, com o direito ao esquecimento evita que o indivíduo se transforme em um simples objeto de informações, na medida em que lhe atribui um poder positivo de dispor sobre as suas informações pessoais. Sendo assim, tal direito é derivado de um fundamento maior: a dignidade da pessoa humana, se fortalecendo como medida de proteção da privacidade, evitando que uma informação seja eterna, e que as mesmas possam gerar danos morais e psicológicos constantes aos envolvidos. 18.4.2 Equivalência a outros direitos fundamentais

O direito ao esquecimento é o direito que o indivíduo tem de que um

fato fique no passado e que não seja relembrado eternamente, ou seja, o indivíduo deve ter o poder de dispor sobre a informação da qual é titular. Portanto, para a efetividade do direito ora tratado, deve-se responder a seguinte pergunta: um indivíduo deve ter o controle sobre a informação que é disponibilizada a seu respeito?

A questão defendida é que ninguém é obrigado a conviver para sempre com erros passados, havendo uma clara relação entre o direito ao esquecimento e o direito à privacidade, mas, não existe consenso sobre sua

16 “Quem quiser que o motor de busca da Google deixe de mostrar links para conteúdos "inadequados, irrelevantes ou excessivos" sobre a sua pessoa, já pode preencher um formulário e ficar à espera de uma decisão da empresa norte-americana. Se a resposta for negativa, há sempre a hipótese de se recorrer aos tribunais” (MARTINS, 2014). 17 Por exemplo, o atual mecanismo de exclusão de fotos do Facebook demora até 45 dias para remover totalmente a foto e existem casos em que uma foto removida há mais de três anos continua disponível na rede social (MORENO, 2012). 18 Por isso, quando se fala em direito ao esquecimento na internet é praticamente impossível que se retire da internet todas as páginas onde se encontram as informações, é mais simples e prático impedir a realização de buscas nos sítios especializados. Por exemplo, o jogador de futebol Diego Maradona entrou na Justiça procurando impedir que o Google e o Yahoo retornassem em suas buscas informações antigas suas, com o argumento que as notícias antigas não mais poderiam ser vinculadas, ou seja, o que eles querem é as informações passadas sejam esquecidas, não devendo mais estar associadas aos seus respectivos nomes. (ATHENIENSE, 2008). 19 Mario Costeja um espanhol aparecia como inadimplente nos resultados de busca do Google, exigiu que o sítio de busca apagasse a informação. O Tribunal Europeu atendia a seu pedido o obrigou que o Google retirasse seu nome dos resultados das buscas (CALVAR, 2014).

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proteção e quais os limites de seu exercício. Justamente em face desta relação é que se poderia defender a proteção constitucional ao esquecimento.

A Constituição declara invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X). Portanto, definiu expressamente tais valores como direitos individuais. Vale ressaltar que a o direito a intimidade é quase sempre considerado como sinônimo de direito a privacidade (SILVA, 2008, p. 206)20, mas a constituição faz uma diferença entre intimidade, vida privada e honra e imagem, quando a maioria da doutrina considera os dois últimos como extensão do primeiro, nesse trabalho vamos utilizar a conceituação de José Afonso da Silva que utiliza a expressão direito a privacidade num sentido genérico e amplo, de forma a abarcar todas as manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade (SILVA, 2008, p. 206).

Ao falar de privacidade, Celso Bastos e Ives Gandra Martins (BASTOS e MARTINS, 1989, p.63) afirmam que a mesma é “[...] a faculdade que tem cada indivíduo de obstar a intromissão de estranhos em sua vida privada, assim como de impedir-lhes o acesso a informações sobre a sua privacidade”. No mesmo sentido segue Tatiana Vieira (VIEIRA, 2007, p.26), para a autora o direito à privacidade é um “[...] direito subjetivo de toda pessoa, não apenas de constranger os outros a respeitarem sua esfera privada, mas também de controlar suas informações de caráter pessoal, sejam estas sensíveis ou não”.

Dessa forma, está claro pelos conceitos apresentados acima, que a privacidade inclui o controle dos seus dados pessoais, ou seja, um indivíduo pode controlar a informação que é disponibilizada a seu respeito. Sendo assim, o controle deve ter como fundamento a decisão de cada pessoa a respeito da utilização de suas próprias informações, preservando a sua autodeterminação.

Portanto, a privacidade deve ser encarada numa dupla perspectiva: subjetiva e objetiva (MELO, 2007, p.64). A dimensão subjetiva se manifesta através de atos negativos, sendo que os seus titulares gozam de posições jurídicas perante o Estado e particulares, a fim de se defenderem dos abusos quanto à utilização da informação pessoal, estando este direito ligado à proteção intencional e efetiva da disponibilidade de um bem ou de um espaço de autodeterminação individual.

Por sua vez, a dimensão objetiva constitui um direito a ações positivas, de guardar sigilo, de manter reserva e de não divulgar dados confidenciais dos quais se tenha acesso. Em complemento, Marcelo Pereira (PEREIRA, 2004, p.140) afirma que: “o poder das pessoas de controlar suas informações pessoais, as quais, ainda que não formem parte da vida privada das mesmas, possam revelar aspectos de sua personalidade”.

20 Para o autor “direito à privacidade é uma terminologia do direito anglo-americano (right of privacy), enquanto que no direito dos povos latinos é empregado o termo direito a intimidade”.

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Sendo assim, o indivíduo pode requerer o esquecimento das informações a seu respeito. Ou seja, o indivíduo deve ter o direito de controlar até onde vai a penumbra que deseja que paire sobre as informações pessoais, construindo-se como um poder de determinar o uso dos seus dados pessoais, evitando que o indivíduo se transforme em um simples objeto de informações, ferindo a sua dignidade como tratado anteriormente.

Dessa forma, a necessidade de proteger os dados pessoais faz com que a tutela da privacidade ganhe um novo eixo de controle das informações pessoais, o que para Gilberto Jabur (JABUR, 2000, p. 254) se apresenta como um “[...] atributo da privacidade, a faculdade de se excluir do conhecimento de terceiros as informações que o titular quer preservar para si próprio”.

Respondida a pergunta que um indivíduo pode ter o controle sobre a informação que é disponibilizada a seu respeito. Surgem novas perguntas: o indivíduo pode ter o controle de toda e qualquer informação a seu respeito? O direito ao esquecimento ganha contornos polêmicos quando se pondera com outros direitos consagrados como o direito de informar. Um indivíduo pode obrigar a retirada de uma notícia verdadeira, sob o argumento de que ocorreu há muitos anos e de que os envolvidos não querem que ela volte à tona? Tal fato não seria uma forma de censura? Não estaríamos atribuindo prazo prescricional à história? O tempo seria capaz de transformar uma notícia histórica lícita em ilícita? Aqui, surge uma colisão de princípios em do direito ao esquecimento e o direito de informar, tal conflito vai ser tratado em mais detalhes na próxima seção. 18.4.3 Colisão com outros princípios

A ideia da colisão entre o direito ao esquecimento e o direito de

informar21, é que, como tratado na seção anterior, um indivíduo deve ter o direito de controlar as suas informações, tal direito pode ser considerado como “[...] um conjunto de ações, comportamentos, preferências, opiniões e comportamentos pessoais sobre os quais o interessado deseja manter um controle exclusivo” (RODOTÀ, 2008, p.102), porém, tal controle não deve ser total, ou seja, não deve compreender um direito absoluto ou irrestrito sobre todos os seus dados, já que, outros indivíduos tem o direito de informar, que contrasta com o controle total das informações.

As oposições entre normas são chamadas de colisão de princípios e conflito de regras, tendo em comum o fato de que “[...] duas normas, aplicadas independentemente, conduzem a resultados incompatíveis, ou seja, a dois juízos contraditórios de dever ser jurídico” (ALEXY, 2008, p. 87). Para Alexy,

21 Nesse ponto, vale a pena ressaltar a diferença entre a liberdade de expressão e o direito de informar ou liberdade de informar. Para José Afonso da Silva (SILVA, 2008, p. 214-215) a liberdade de expressão deriva de atos próprios, já a liberdade de informar pode derivar de atos ou fatos relacionados a terceiros, o ato de informar (normalmente) é para apenas divulgar, e a liberdade de expressão se relaciona a opiniões. O direito ao esquecimento deve estar ligado a fatos e não a opiniões, portanto falaremos do conflito entre o direito ao esquecimento e o direito de informar.

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a solução de uma colisão de princípios ocorre na medida em que, tendo em conta as circunstâncias do caso, se estabelece entre os princípios uma relação de precedência condicionada. A determinação desta relação consiste em que “tomando em conta o caso, se indicam as condições sob as quais um princípio precede ao outro. Sob outras circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada inversamente” (ALEXY, 2008, p. 92).

Portanto, a relação de precedência condicionada tratada por Alexy seria o controle da informação, tal controle sempre existiu, e permanece em tempos democráticos. Não há direito absoluto, então por que a direito de informar haveria de ser? Nesse sentido a própria Constituição em seu art. 220, dispõe que: “[...] a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”, porém, cuida de explicitar alguns princípios norteadores dessa liberdade, como a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (art. 220, § 1º).

Nesse contexto, a discussão quanto ao direito ora tratado envolve um conflito aparente entre a liberdade de informar e atributos individuais da pessoa humana, como a intimidade, privacidade, honra e a imagem. Dessa forma, a liberdade de informar pode ser limitada em razão da privacidade de um indivíduo. Nesse sentido vale a advertência de José Afonso da Silva:

15.4 Liberdade de informação jornalística – É nesta que se centra a liberdade de informação, que assume características modernas, superadoras da velha liberdade de imprensa. Nela se concentra a liberdade de informar, e é nela ou através dela que se realiza o direito coletivo à informação, isto é, a liberdade de ser informado. Por isso, é que a ordem jurídica que lhe confere um regime específico que lhe garanta a atuação e lhe coíba os abusos (SILVA, 2008, p. 215) (grifos do autor).

Para se coibir os abusos, é fundamental que o indivíduo tenha

controle da informação que foi disponibilizada de forma voluntária ou involuntária, vale ressaltar que essas informações podem ser tanto informações públicas quanto privadas, mas o interesse dessa informação não pode ser público, deve ser principalmente privado, assim, o direito ao esquecimento deve ser garantido com base na ausência de interesse público.

Com essa solução, o equilíbrio entre os direitos individuais não é injusto pra nenhum dos lados. Há quem tenha o interesse e o direito de relembrar, mas há também quem tenha o interesse em se fazer esquecido. O que vai legitimar a lembrança dos fatos é o seu interesse público, que deverão ser analisados caso a caso, sem que se possa falar em censura.

Nesse sentido, a definição do interesse público deve ser feita caso a caso, não existe ainda nenhum parâmetro para sua configuração, analisando algumas decisões no Brasil, percebe-se que o interesse público está ligado basicamente a historicidade dos fatos22.

22 Supremo Tribunal Federal, Mandado de Segurança n. 23.669-DF (medida liminar), Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 17.04.2000, p. 04.

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Fatos históricos não podem ser esquecidos, o conhecimento da história é muito importante para não se cometer os mesmos erros do passado, sendo assim, não se pode privar a sociedade do conhecimento da sua própria história pelo argumento de que tal conhecimento fere o direito a privacidade de alguns indivíduos, nesse caso é mais importante o interesse público da coletividade de conhecer a sua própria história.

No Brasil, o assunto já chegou as Cortes Superiores, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou dois recursos especiais: o caso da Chacina da Candelária (REsp 1.334.097) e o caso de Aída Curi (REsp 1.335.153). Onde foi analisado, basicamente, o conflito entre direito ao esquecimento e o direito de informar. O interessante é que num caso o STJ considerou o direito ao esquecimento com base na ausência do interesse público e no outro negou o direito ao esquecimento por considerar que a informação que se desejava esquecer tinha interesse público, mas não estabeleceu nenhum parâmetro para considerar uma informação como de interesse público.

Em relação REsp 1.334.09723, a Quarta Turma do STJ reconheceu o direito ao esquecimento, entendendo que a ponderação entre a liberdade de informar e a proteção da vida privada deveria privilegiar o direito ao esquecimento como vertente do direito a privacidade:

Com efeito, penso que a historicidade do crime não deve constituir óbice em si intransponível ao reconhecimento de direitos como o vindicado nos presentes autos. Na verdade, a permissão ampla e irrestrita a que um crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo – a pretexto da historicidade do fato –, pode significar permissão de um segundo abuso à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro já fora cometido no passado24.

No caso em tela, segundo o STJ, a doutrina não vacila em dar

prevalência, em regra, ao direito ao esquecimento, ressalvando-se, a hipótese de crimes genuinamente históricos, quando a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável.

Porém, no REsp 1.335.15325, também julgado pela Quarta Turma do STJ, a turma não reconheceu o direito a indenização alegando que nesse

23 O caso trata de um homem inocentado da acusação de envolvimento na chacina da Candelária e posteriormente retratado pelo programa Linha Direta, da TV Globo, anos depois de absolvido de todas as acusações, condenando a emissora ao pagamento de uma indenização no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). O fundamento da decisão foi que o réu condenado ou absolvido pela prática de um crime tem o direito de ser esquecido. 24 Recurso especial n. 1.334.097- RJ. Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Grifos do autor. 25 Os irmãos vivos de Aida Curi ajuizaram ação objetivando reparação de danos materiais e morais decorrentes de ato praticado pela TV Globo Ltda. Aida Curi foi vítima de homicídio ocorrido em 1958, que ficou nacionalmente conhecido, os autores buscaram a indenização pelo ilícito que apontavam haver sido cometido pela transmissora, configurado na reabertura de antigas feridas pela veiculação do programa Linha Direta-Justiça, o qual tratou novamente da vida, morte e do pós-morte de sua irmã. No mérito da causa, os autores alegaram o direito ao esquecimento acerca da tragédia familiar pela qual passaram na década de cinquenta do século passado, direito esse que foi violentado pela emissora ré, por ocasião da veiculação da

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caso o direito de informar deve prevalecer sobre o direito de esquecer, alegando o fato do crime ter sido histórico, sendo o mesmo considerado como de interesse público.

Porém, tal decisão não estabeleceu nenhum parâmetro para se considerar um caso como de interesse público, um caso ocorrido na década de 50 ainda tem a atualidade necessária para o direito de informar? A vítima não era uma pessoa conhecida na época, ficou conhecida apenas pelo crime, não era uma personalidade pública, se tornando conhecida apenas depois da sua morte.

Nessas circunstâncias, eternizar uma informação desprovida de interesse público histórico, viola a dignidade e respeito da vítima, nesse sentido vale a ressalva de Rodrigo Ienaco (IENNACO, 2012. p. 178): “Não pode, pois, a justiça, tratá-la como expedientes que renovem a lesão ou inaugurem novos prejuízos (materiais ou psicológicos)”. Portanto, a família da vítima do crime deveria estar no esquecimento, na perspectiva do fato delituoso, podendo desfrutar da liberdade de não mais reviver memórias tristes, evitando com isso prejuízos psicológicos.

A vítima tem o direito de querer esquecer o caso, caso contrário a lembrança do mesmo pode deixar o esquecimento cada vez mais difícil, por exemplo, depois da apresentação do programa surgiram mais de 470.000 links a respeito do caso26. Fazendo com que a sociedade lembre um assunto que estava esquecido.

Um aspecto importante tratado nas decisões foi o tempo de divulgação das informações, qual o tempo necessário para que uma informação perca o interesse público? Nesse sentido, as mesmas limitações que existem para informar, devem existir para o tempo que tais informações serão divulgadas. Para Daniel Bucar (BUCAR, 2013), o direito ao esquecimento incorpora uma expressão do controle temporal de dados. Como já tratado por François Ost, que afirma a existência de um “direito a um esquecimento programado”:

Em outras hipóteses, ainda, o direito ao esquecimento, consagrado pela jurisprudência, surge mais claramente como uma das múltiplas facetas do direito a respeito da vida privada. Uma vez que, personagem pública ou não, fomos lançados diante da cena e colocados sob os projetores da atualidade – muitas vezes, é preciso dizer, uma atualidade penal –, temos o direito, depois de determinado tempo, de sermos deixados em paz e a recair no esquecimento e no anonimato, do qual jamais queríamos ter saído (OST, 2005, p. 160-161).

Sendo assim, o conflito entre direito ao esquecimento e o direito de

informar deve levar em consideração o interesse público do fato a ser esquecido. A definição do que seria interesse público relacionado ao direito

reportagem não autorizada da morte da irmã dos autores, pedindo indenização por conta da dor de reviver o passado. 26 Recurso especial n. 1.335.153- RJ. Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Voto da Ministra Maria Isabel Galotti.

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de informar ainda carece de parâmetros, o único parâmetro definido na jurisprudência é o fato histórico, que deve ser analisado caso a caso, verificando se a história foi contada de maneira mais próxima possível da realidade e se a mesma foi contada de maneira a preservar a privacidade dos envolvidos, ou seja, relatar apenas aqueles que são imprescindíveis para o fato histórico.

18.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, o direito ao esquecimento é o direito que o indivíduo tem

de que um fato fique no passado e que não seja relembrado eternamente. Equivale a tornar realidade o poder de qualquer indivíduo dispor sobre toda a informação da qual é titular. Tal direito tem três vertentes: aspectos criminais; proteção de dados e direito ao esquecimento na internet.

Tal direito não está expresso na Constituição como um direito fundamental, isso não significa que tal direito não possua uma dimensão de proteção individual incontestável, o que acaba por lhe caracterizar como um direito individual fundamental. Com base na cláusula de abertura constitucional a novos direitos fundamentais foi mostrado nesse trabalho que o mesmo é materialmente constitucional. Nesse sentido, foi mostrado que o mesmo se encaixa nos requisitos para o reconhecimento de um novo direito fundamental: a) vinculação com a dignidade da pessoa humana ou com a limitação de poder; b) origem no regime democrático e nos princípios contidos no Título I; e c) equivalência a outros direitos fundamentais.

O importante aqui é reter o fato de que a fundamentação do direito ao esquecimento tem como base o argumento de que há uma provisão constitucional expressa protegendo a privacidade do indivíduo. Existe uma dimensão da privacidade, isto é, a autonomia individual, a capacidade para escolher, para tomar decisões, em manter o controle sobre diferentes aspectos da privacidade. Um desses aspectos é o direito ao esquecimento, que não é absoluto, devendo sempre ser ponderado juntamente com o direito de informar, tendo como pano de fundo dessa ponderação o interesse público.

Por mais que se queira controlar o direito à memória da sociedade, não se consegue parar a tecnologia, sendo assim, a mudança do equilíbrio entre a o esquecimento e a privacidade provocada pela internet é definitivo, dessa forma, é importante se ter mecanismos para que essa mudança leve em consideração o direito individual da privacidade e da proteção de dados pessoais, especialmente em relação ao esquecimento, porém, na ausência de mecanismos de esquecimento, quando um indivíduo quer ver seu direito reconhecido invariavelmente deve recorrer ao Poder Judiciário, que embora reconheça o direito ao esquecimento em algumas decisões, o entendimento ainda não é pacifico, tendo inclusive sido proferidas algumas decisões em sentido contrário, por isso, é fundamental uma interferência legislativa para que tal direito seja reconhecido pelos juízes e tribunais.

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