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2 Parte I – As bases do pensamento moderno: críticas aos pilares e pressupostos da modernidade A modernidade parece surgir no período que vai do século XVI aos fins do século XVIII 1 , havendo quem identifique sua emergência apenas no século XVII 2 . É a partir do século XIX, contudo, que o paradigma sócio-cultural da modernidade, convergindo com o desenvolvimento do capitalismo como modo de produção dominante, avança de forma decisiva no campo jurídico e político 3 . De todo modo, no campo recortado do jurídico-político, a modernidade parece reconhecer na escola jusnaturalista do século XVII um importante marco para a fundação do Direito e do Estado modernos. A necessidade de se criar um novo fundamento para o Estado, uma nova forma de legitimação do poder, por conta da decadência da ordem hierarquizada, das reformas protestantes, das conquistas continentais, propiciaram à razão o papel de protagonista. A racionalidade da modernidade possibilitava a simplificação do conhecimento: a produção de verdades únicas, científicas; um único Deus; um centro único de produção normativa; uma razão única. A ideia do Estado como produto da vontade racional é um aspecto central das teorias contratualistas do poder que se formularam no bojo da modernidade. Nesse sentido, foi possível formular um sistema de direito natural, a-histórico, preexistente ao Estado, que serviria de ponto de referência do direito positivo. Assim, o direito natural racional moderno se organiza conforme a lógica e é compreensível racionalmente. Com Hobbes (1588-1679) 4 , partindo-se de 1 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. 5ª Ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 49. 2 “(...) O que é a modernidade? Como uma primeira aproximação, digamos simplesmente o seguinte: ‘modernidade’ refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. (...)” GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. 2ª Reimpressão. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: Unesp, 1991, p. 11. 3 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 139. 4 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2006.

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Parte I – As bases do pensamento moderno: críticas aos pilares e pressupostos da modernidade

A modernidade parece surgir no período que vai do século XVI aos fins do

século XVIII1, havendo quem identifique sua emergência apenas no século XVII2.

É a partir do século XIX, contudo, que o paradigma sócio-cultural da

modernidade, convergindo com o desenvolvimento do capitalismo como modo de

produção dominante, avança de forma decisiva no campo jurídico e político3.

De todo modo, no campo recortado do jurídico-político, a modernidade

parece reconhecer na escola jusnaturalista do século XVII um importante marco

para a fundação do Direito e do Estado modernos. A necessidade de se criar um

novo fundamento para o Estado, uma nova forma de legitimação do poder, por

conta da decadência da ordem hierarquizada, das reformas protestantes, das

conquistas continentais, propiciaram à razão o papel de protagonista. A

racionalidade da modernidade possibilitava a simplificação do conhecimento: a

produção de verdades únicas, científicas; um único Deus; um centro único de

produção normativa; uma razão única.

A ideia do Estado como produto da vontade racional é um aspecto central

das teorias contratualistas do poder que se formularam no bojo da modernidade.

Nesse sentido, foi possível formular um sistema de direito natural, a-histórico,

preexistente ao Estado, que serviria de ponto de referência do direito positivo.

Assim, o direito natural racional moderno se organiza conforme a lógica e é

compreensível racionalmente. Com Hobbes (1588-1679)4, partindo-se de

1 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da

experiência. 5ª Ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 49. 2 “(...) O que é a modernidade? Como uma primeira aproximação, digamos simplesmente o

seguinte: ‘modernidade’ refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram

na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em

sua influência. (...)” GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. 2ª Reimpressão. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: Unesp, 1991, p. 11. 3 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 139. 4 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2006.

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princípios regentes da natureza humana, constrói-se, dedutivamente, um sistema

de direitos. Os fundamentos da moral, da política e do direito podem, então, ser

obtidos por meio de uma ciência demonstrativa.

O êxito do paradigma moderno pode ser em parte atribuído às sedutoras

promessas de (1) dominação da natureza, (2) paz perpétua, e (3) sociedade justa e

livre.5

Se o ser humano for capaz de compreender a natureza, e assim controlá-

la, dominá-la, poderá dela desfrutar em favor da comunidade. Tal atitude, todavia,

conduziu a civilização a uma relação inexoravelmente predatória com a natureza

que, nos dias de hoje, está a demandar do ser humano uma nova postura.

A ideia de racionalizar cientificamente o comércio, as decisões e as

instituições, levou-nos à obtusa crença na paz perpétua. O que ocorreu, todavia,

foi a caminhada em direção oposta, a considerar que o desenvolvimento

tecnológico da guerra, fruto de descobertas científicas, alcançou o patamar

irracional de eliminação da própria humanidade.6

O sonho de uma sociedade mais justa e livre, confiante no postulado da

riqueza decorrente da ciência convertida em força produtiva, desfez-se ante a

constatação da exploração dos países periféricos pelos centrais.

Para viabilizar e concretizar seu ambicioso projeto de racionalização da

vida coletiva e individual, a modernidade teve de assentar-se em bases sólidas.

Boaventura de Sousa Santos trabalha com a noção segundo a qual a modernidade

assentaria em dois pilares fundamentais: regulação e emancipação7.

5 Sobre as promessas, cf. SANTOS, Boaventura de Sousa, A Crítica da Razão Indolente, p. 56. 6Antes da Guerra Fria, contudo: “Com o lançamento das bombas atômicas sobre a população civil

de Hiroxima (Sic) e Nagasáki (Sic), já não era possível sustentar a fé na intrínseca neutralidade

moral da Ciência, para não se falar em seus ilimitados poderes de progresso benéfico” TARNAS, Richard. A Epopéia do Pensamento Ocidental: para compreender as ideias que moldaram nossa visão de mundo. Tradução: Beatriz Sidou. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 390. 7 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 50.

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2.1

Pilar da regulação

O primeiro pilar teria o papel de regular a vida social segundo o princípio

do Estado (Thomas Hobbes), o princípio do mercado (John Locke e Adam Smith),

e o princípio da comunidade (J.J. Rousseau). Em verdade, Hobbes, Locke e

Rousseau, que são reputados os pais fundadores do pensamento político moderno,

relacionam e estruturam os princípios regulatórios em suas teorias contratualistas

do poder, sendo certo que cada autor privilegia um em detrimento dos outros

dois.8

O princípio do Estado se traduz “na obrigação política vertical entre

cidadãos e Estado”.9 Para Hobbes, a passagem do estado de natureza para o

estado civil/político, pela via do contrato social, representaria o fim do estado

natural de guerra de todos contra todos – no qual as liberdades são infinitas,

porém conflitantes – em favor do estado social de paz e segurança garantido pelo

Estado/Leviatã – no qual as liberdades são finitas, porém não-conflitantes.10 Os

cidadãos cedem seu direito de governarem-se a si mesmos, com a condição do

Estado soberano absoluto proporcionar-lhes paz e segurança. Dessa forma, “o

poder soberano impõe a paz civil e a paz civil mantém o poder soberano” 11

.

O princípio do mercado se traduz “na obrigação política horizontal

individualista e antagônica entre os parceiros de mercado” 12. Para Locke (1632-

1704), o objetivo fundamental da constituição de um estado civil/político/social,

com a conseqüente submissão ao governo, é a preservação da propriedade. O

conceito de propriedade para o autor inglês13 é extensivo, abrangendo tanto bens

materiais quanto imateriais, tais como corpo e liberdade individual, muito embora

8 SANTOS, Boaventura de Sousa, A Crítica da Razão Indolente, p. 132. 9 Ibid., p. 50. 10 Ibid., p. 133. 11 CHÂTELET, François et. al. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas. A Filosofia do Mundo Novo: Séculos XVI e XVII. Vol. 3. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974, p. 130. 12 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 50. 13 Ibid., p. 135.

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tenda a limitar-se à propriedade material se pensarmos em termos do

desenvolvimento da economia, bem como do próprio capitalismo. Nesse sentido,

destaca Boaventura que:

“o trabalho como fonte de propriedade; a propriedade potencialmente ilimitada e legítima, apesar da desigualdade, se ‘adquirida segundo as leis da natureza’; o Estado legitimado principalmente pela segurança que pode conferir às relações de propriedade (...) está na origem das modernas relações de mercado tal como foram universalizadas pelo capitalismo.” 14

O princípio da comunidade se traduz “na obrigação política horizontal

solidária entre membros da comunidade e entre associações” 15. Para Rousseau

(1712-1778), o poder atribuído ao Estado por meio do contrato social deve

reproduzir-se no corpo político que o criou16. Assim, ao contrário de Hobbes, para

quem o Estado é soberano absoluto, em Rousseau, temos a figura de um Estado

cuja soberania é precária, pois “a soberania da comunidade é inalienável” 17.

Enquanto em Hobbes, na passagem do estado de natureza ao estado

civil/político/social, o ser humano adquire o status de súdito, em Rousseau, o ser

humano adquire o status de membro da comunidade. O pacto sobre o qual trata

Rousseau é um pacto de associação, que enseja um corpo moral e coletivo18, e

não um pacto de submissão, como pretendia Hobbes.

2.2

Pilar da emancipação

O segundo pilar desempenharia a função de emancipar os indivíduos de

acordo com as três lógicas de racionalidade identificadas por Max Weber, ou seja,

a racionalidade estético-expressiva das artes e literatura, a racionalidade

cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia, e a racionalidade moral-prática

14 SANTOS, Boaventura de Sousa, A Crítica da Razão Indolente, p. 136. 15 Ibid., p. 50. 16 Ibid., p. 133. 17 (Grifo nosso) Ibid., p. 132 e ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. In: Os Pensadores. São Paulo: Victor Civita, 1973, p. 49 e 50. 18 CHÂTELET, François et. al. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas. O Iluminismo: o século XVIII. Vol. 4. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974, p. 179.

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da Ética e do Direito.19 Em outros termos, a emancipação moderna quer libertar e

desenvolver a vida coletiva e individual segundo o conhecimento artístico-

literário, científico-tecnológico e ético-jurídico.

Nesse particular, convém assinalar que Habermas, defensor da

modernidade como um projeto inacabado20, não se distancia do pilar da

emancipação ao tratar de sua estruturação da racionalidade. Para o autor alemão, é

preciso abandonar o modelo de racionalidade kantiano que, pela via da razão

prática, informa o ser humano em seu agir: a racionalidade prática é razão voltada

ao como devo agir. É necessário abraçar um novo modelo de racionalidade, a

denominada racionalidade comunicativa, na qual a razão é ação voltada ao

entendimento.

Trata-se da ação comunicativa21, a qual se divide em (1) ação cognitiva,

(2) ação prático-moral e (3) ação dramatúrgica. O ser humano é sujeito capaz de

linguagem e entendimento e, como tal, pode debater acerca: (1) da pretensão de

verdade de algo referente ao mundo objetivo; (2) da pretensão de correção ou

justiça de algo referente ao mundo social comum; e (3) da pretensão de

autenticidade ou sinceridade de algo referente ao mundo subjetivo próprio.22

Traçando um paralelo entre as racionalidades da emancipação moderna e

as dimensões da ação na racionalidade comunicativa de Habermas, temos que: a

ação cognitiva equivale à racionalidade cognitivo-instrumental, própria da ciência,

e tendo por objeto fatos (mundo objetivo); a ação prático-moral equivale à

racionalidade moral-prática, própria do direito e da ética, e tendo por objeto

normas (mundo social comum); e, a ação dramatúrgica equivale à racionalidade

estético-expressiva, própria das artes, e tendo por objeto sentimentos (mundo

subjetivo próprio).

19 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 50. 20 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Tradução: Luiz Sérgio Repa, Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 1. 21 “Chamo comunicativas as interações nas quais as pessoas envolvidas se põem de acordo para

coordenar seus planos de ação, o acordo em cada caso medindo-se pelo reconhecimento

intersubjetivo das pretensões de validez”. Id. Consciencia moral e agir comunicativo. Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 79. 22 Ibid., p. 79.

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Paralelamente aos pilares, é possível e necessário identificar os

pressupostos fundamentais da modernidade, isto é, abordar aquilo que o

pensamento moderno supõe como a realidade, o conhecimento e o ser humano,

abordar, portanto, seus pressupostos ontológicos, epistemológicos e

antropológicos.

2.3

Pressuposto ontológico: todo real é racional

O pressuposto ontológico da modernidade atende à concepção racionalista

segundo a qual todo real é racional. Assim, o real obedeceria a uma ordem lógica

causal compreensível pelo homem racional. Em outras palavras, o real seria

dotado de uma “‘essência’ redutível à razão lógica e apreensível pela razão

humana (...)”.23

O que está a presidir o ser, portanto, é a idéia de causalidade.

A natureza seria, por excelência, uma máquina causal cujos movimentos

são apreensíveis pela razão, o que possibilitaria ao ser humano descrevê-la

segundo leis inteligíveis construídas com base no principio da causalidade. A

concepção maquínica e causalista da natureza pressupõe ordem e estabilidade do

mundo, engendrando a representação de um real simples e homogêneo. Como

bem assinala Boaventura:

“Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina cujas operações se podem determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via da sua decomposição nos elementos que o constituem. Esta ideia do mundo-máquina é de tal modo

poderosa que vai transformar-se na grande hipótese universal da época

moderna.”24

23 PLASTINO, Carlos Alberto. Sentido e complexidade. In: Carlos Alberto Plastino; Benilton Bezerra Jr. (Org.). Corpo, afeto e linguagem: a questão do sentido hoje. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2001, p. 44. No mesmo sentido, PLASTINO, Carlos Alberto. O primado da afetividade: A crítica freudiana ao paradigma moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 23. 24 (Grifo nosso) SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 64.

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Uma prova eloqüente da influência de tal pressuposto no pensamento

jurídico moderno pode ser encontrada na obra de Hans Kelsen (1881-1973),

considerado em Teoria do Direito o primeiro autor a explicitar a empreitada de

tornar o Direito uma Ciência. Em sua mais célebre obra, Teoria Pura do Direito

(1934), o autor parte da concepção de natureza como máquina causal para definir

a conduta humana como determinada pela causalidade:

“A natureza é, segundo uma das muitas definições deste objeto, uma determinada ordem das coisas ou um sistema de elementos que estão ligados uns com os outros como causa e efeito, ou seja, portanto, segundo um princípio que designamos por causalidade. (...) Se há uma ciência social que é diferente da ciência natural, ela deve descrever seu objeto segundo um princípio diferente do da causalidade. Como objeto de uma tal ciência que é diferente da ciência natural a sociedade é uma ordem normativa de conduta humana. Mas não há uma razão

suficiente para não conceber a conduta humana também como elemento da natureza, isto é, como determinada pelo princípio da causalidade, ou seja, para a não explicar, como os fatos da natureza, como causa e efeito”.25

2.4

Pressuposto epistemológico: monopólio do conhecimento científico

O pressuposto epistemológico da modernidade está intrinsecamente ligado

ao ontológico. Como vimos, se todo real é racional, então ele pode ser conhecido

pelo homem. Nesses termos, se o real é o objeto a ser conhecido e o ser humano é

o sujeito racional de tal conhecimento, certo é que o paradigma moderno forjou

uma forma específica de conhecimento, de modo a separar sujeito cognoscente

neutro de um lado e objeto cognoscível de outro.

A partir da separação entre ser humano e natureza, sujeito e objeto, o

pensamento da modernidade pôde passar a identificar o “conhecimento verdadeiro

do real”,26 excluindo-se assim as formas de conhecer que se não pautavam por

aqueles critérios. A esse respeito, Morin destaca que o fundamento do

conhecimento “era a experiência, a observação e a razão, isto é, o procedimento

25 (Grifo nosso) KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 85. 26 PLASTINO, Carlos Alberto. O primado da afetividade: A crítica freudiana ao paradigma moderno, p. 23.

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empírico-racional”27, de tal forma que a pertinência de um conhecimento

dependeria da observância das ideias poderosas da separação, da ordem e da

razão.

Daí ser possível afirmar que “o investimento epistemológico da ciência

moderna na distinção entre sujeito e objeto é uma das suas mais genuínas

características.”28 A ciência moderna tem por referência o pensamento cartesiano

segundo o qual o mundo é um mundo de pura substancialidade geométrica29

(pressuposto ontológico). Para conhecer esse mundo, que é composto por

pensamentos obscuros e confusos, é preciso separar, decompor o pensamento para

torná-lo claro e distinto30. A realidade é complicada, com o que a mente não pode

compreendê-la totalmente; logo, é necessário reduzir sua complexidade à

simplicidade.31

Para reduzir a complexidade do real à simplicidade, bem assim para que a

essência do real torne-se plenamente conhecível pelo ser humano, a ciência

moderna se baseia, portanto, no princípio da redução e no princípio da separação.

Como quis o próprio Descartes (1596-1650), reduzir para conhecer e separar para

conhecer.32 O que não puder ser quantificável é irrelevante para ciência.33

A separabilidade viabiliza a fundação dos dualismos básicos da

modernidade. E em tema de epistemologia, como já podemos perceber, o

conhecimento é a dualidade sujeito e objeto.34 A correlação sujeito cognoscente e

objeto conhecido produz o conhecimento pertinente do mundo moderno. A

separação sujeito e objeto deve ser tal que não permita a fusão, deve ser separação

completa; do contrário, “se se fundissem, se deixassem de ser dois, não haveria

27 MORIN, Edgar. Por uma Reforma do Pensamento. In: PENA-VEGA, Alfredo e NASCIMENTO, Elimar (Organizadores). O Pensar Complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Garamond, p. 22. 28 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 82. 29 MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos de Filosofia: lições preliminares. Tradução: Guillermo de La Cruz Coronado. São Paulo: Mestre Jou, 1964, p. 172. 30 MORENTE, Manuel Garcia. Op. Cit., p. 168-169. 31 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 63. 32 MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução: Eloá Jacobina. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 87. 33 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 63. 34 MORENTE, Manuel Garcia. Op. Cit., p. 143.

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conhecimento.”35 Destacado do objeto que quer conhecer, o sujeito passa a não

fazer parte do objeto que interroga e, ao mesmo tempo, pode interrogá-lo de um

ponto de vista externo e imparcial.36

Ao estabelecer o conhecimento como produto da correlação sujeito/objeto,

seguindo o procedimento empírico-racional (experiência + observação + razão), o

pressuposto epistemológico da modernidade exclui do domínio do conhecimento

pertinente outras formas de apreensão do real, outros saberes nos quais possam

intervir processos, ações e ideias que destoem da racionalidade cognitivo-

instrumental.37 Está feito: eis o monopólio do conhecimento científico. Tudo o

que não puder com ele ser identificado não será reputado conhecimento

pertinente, como é o caso dos estudos humanísticos no domínio da História,

Filosofia, Literatura, Direito. Não é à toa que essas ciências denominadas sociais

passaram a abraçar, a partir do século XIX, o modelo de racionalidade que preside

o conhecimento científico.38

2.5

Pressuposto antropológico: ser humano como consciência racional

O pressuposto antropológico da modernidade reduziu o ser humano à sua

consciência racional. Seguindo os dualismos próprios da modernidade – ser

humano/natureza, natureza/cultura, sujeito/objeto – o homem pôde ser

identificado como um corpo máquina conduzido por uma consciência racional,

com o que se inaugurou um novo dualismo: corpo/psiquismo.

Estudos históricos registram que foi Descartes quem introduziu o termo

consciência no idioma francês.39 Para o filósofo, a concepção de ser se encerra na

máxima “je suis une chose qui pense, je suis une substance pensante”.40 O ser

humano é uma coisa que pensa, uma substância pensante; o eu pensante é

35 Ibid. 36 PLASTINO, Carlos Alberto. Sentido e complexidade, p. 46. 37 Ibid, p. 47. 38 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 60-61. 39 CHÂTELET, François et. al. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas. A Filosofia do Mundo Novo: Séculos XVI e XVII. Vol. 3. P. 97 40 MORENTE, Manuel Garcia. Op. Cit., p. 167.

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consciência continente, isto é, que contém, que é capaz de apreender a realidade,

conhecê-la.

Além disso, “(...) o homem é mecanismo em tudo aquilo que não é

pensamento puro, como qualquer animal, como qualquer aparelho.” 41 O ser

humano fica então definido por mecanismo e racionalidade, ele é máquina e

razão: é um corpo máquina cavalgado por uma consciência racional.

Sendo assim entendido o ser humano, não há motivo para compreender a

dimensão sentimental de maneira diversa, isto é, aquilo que para Descartes não é

pensamento puro, como as paixões e emoções, também é pensamento (embora

obscuro e confuso) e, como tal, submete-se à lógica organizativa do real

apreensível pela consciência. Nesse sentido, bem registra Morente:

“Na sua teoria das paixões propõe Descartes simplesmente ao homem que estude isto que chamamos paixões, isto que chamamos emoções, e verá que se reduzem a ideias confusas e obscuras; e uma vez que haja visto que se reduzem a ideias confusas e obscuras desaparecerá a paixão e poderá o homem viver sem paixões, que estorvam e incomodam a vida”.42

Concebendo os sentimentos, paixões e emoções como pensamento e, de

outra parte, recorrendo aos princípios da redução e separação, resultará possível

conhecer esse aspecto do real que, não sendo diferente dos demais, é também

apreensível pela razão humana. Pelo pressuposto antropológico da modernidade, o

ser humano se constitui pela razão; razão que tudo explica e que tudo pode.

Embora o paradigma da modernidade se revele consistente em suas bases,

não há como deixar de perceber a crise na qual ele parece mergulhar

profundamente. A bem da verdade, ele parece estar imerso em um processo de

superação e de obsolescência: 43 superação porque cumpriu algumas de suas

promessas, mas excedeu-se; obsolescência porque já não mais poderá cumprir

outras, é deficitário. Os tempos de hoje colhem os excessos e déficits da

modernidade.

41 Ibid., p. 172. 42 Ibid., p. 173. 43 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 49.

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A promessa de dominação da natureza vem sendo cumprida,

indubitavelmente, mas com custos sociais, humanos e ecológicos que não podem

ser negados, tampouco medidos. O excesso está mais do que evidente, bastando

observar a exploração desmesurada dos recursos naturais, a catástrofe ecológica, a

perene ameaça nuclear, a destruição da camada de ozônio, a emergência da

biotecnologia e da engenharia genética.44

Vemos no caso particular da biotecnologia e da engenharia genética um

bom exemplo da característica moderna de aumento da capacidade de ação sem

capacidade de previsão. A ciência e a tecnologia expandem nossa capacidade de

ação em passo diferente de nossa capacidade de previsão. Tal assimetria é tanto

um déficit quanto um excesso da modernidade: “a capacidade de ação é

excessiva relativamente à capacidade de previsão das conseqüências do acto em

si ou, pelo contrário, a capacidade de prever as conseqüências é deficitária

relativamente à capacidade de as produzir”.45 No caso da biotecnologia e

engenharia genética, o debate científico obviamente não acompanha o debate ético

que lhe deve ser correspondente. Paralelamente, do ponto de vista jurídico, o que

assistimos no Brasil é a criminalização da prática da engenharia genética, bem

como da realização da clonagem humana.46

Quanto às promessas de paz perpétua e sociedade justa e livre, estamos

obviamente diante de uma impossibilidade total de cumprimento. O déficit

relativo à essas promessas é evidenciado por um mundo contemporâneo que,

embora tenha racionalizado as instituições e o comércio, não se revela imune, por

exemplo, à prática da tortura e a crises econômico-financeiras de escala mundial.

O déficit está ainda na constatação da divisão cruel entre países centrais e

periféricos que, mantendo uma relação de exploração permeada,

fundamentalmente, por interesses econômicos, produz quadros desesperadores

como: 3,3 bilhões de pessoas sob o risco da malária, metade da população do

44 Ibid., p. 56. 45 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 58 (Grifo nosso). 46 Lei Nº 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005 (Lei de Biossegurança): “Art. 25. Praticar

engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano: Pena –

reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa; e Art. 26. Realizar clonagem humana: Pena –

reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”

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planeta, concentrado principalmente na África47; e tráfico internacional de

mulheres, sendo os países periféricos a origem e os centrais o destino.

A bem da verdade, ao invés da ciência moderna erradicar riscos, violências

e ignorâncias, antes identificadas com a antiguidade, acabou por recriá-los de

modo hipermoderno.48 A modernidade quis racionalizar a vida coletiva e

individual, regulando a sociedade e emancipando o indivíduo, mas está a tornar o

mundo social um risco49 produzindo um grande número de indivíduos

deprimidos, panicados e toxicômanos50 – muito em razão da configuração da

sociedade em sociedade do espetáculo51 e pautada por uma cultura do

narcisismo52

2.6

A redução da regulação moderna ao princípio do mercado

Muito embora o pilar da regulação pretendesse o controle da vida coletiva

e individual por meio da harmonização dos três princípios, o que sucedeu foi a

prevalência do principio do mercado sobre o do Estado e o da comunidade.

Prevalecer, nesse contexto, quer significar redução, isto é, a modernidade, à

medida que passou a convergir com o desenvolvimento do capitalismo como

modo dominante de produção, delegou o controle da vida coletiva e individual ao

principio do mercado.

Nesse sentido, esclarece Boaventura:

“Desde a primeira vaga industrial – com a expansão das cidades comerciais e o aparecimento de novas cidades industriais no capitalismo liberal – até ao espetacular desenvolvimento dos mercados mundiais – com o aparecimento de

47 Dados disponíveis no site da Organização Mundial da Saúde: http://www.who.int/research/en/. Acesso: 17 de maio de 2009. 48 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 58. 49 Cf. BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia uma nueva modernidad. Trad.: Jorge Navarro, Daniel Jiménez e M.ª Rosa Borrás. Barcelona: Paidós, 2006. 50 BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 244-245. 51 Cf. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad.: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 52 LASCH, C. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1988.

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sistemas de produção de dimensão mundial, a industrialização do Terceiro Mundo e a emergência de uma ideologia mundial de consumismo no actual período do ‘capitalismo desorganizado’ –, o pilar da regulação sofreu um

desenvolvimento desequilibrado, orientado para o mercado.” 53

O autor português divide o desenvolvimento do capitalismo em três

períodos54: capitalismo liberal; capitalismo organizado; e, por fim, capitalismo

desorganizado. O primeiro refere-se ao período coberto por todo século XIX. O

segundo tem inicio nos fins do século XIX e chega ao ápice de seu

desenvolvimento no período entre a primeira e segunda guerras mundiais, bem

como nas duas décadas do pós-guerra. O terceiro inicia-se nos fins da década de

60 e permanece em curso.

Embora a relação entre os três princípios da regulação seja distinta em

cada período do capitalismo – como no caso de uma maior harmonia entre

princípio do Estado e do mercado no período do capitalismo organizado (segundo

período) nos países centrais, sob a forma do Estado-Providência55 –, certo é que a

lógica do mercado tem sido a grande marca do controle da vida coletiva e

individual da modernidade.

O princípio da comunidade foi, segundo a teoria política liberal, reduzido

às definições de cidadania e democracia representativa.56 A obrigação política

horizontal solidária entre membros da comunidade foi esvaziada em suas

dimensões criativas e potentes de participação e solidariedade, em nome do

interesse econômico e individualismo característicos do hegemônico regulador

mercado.

O princípio do Estado também foi, paulatinamente, perdendo sua força de

protagonista. O capitalismo como modo dominante de produção, ao ser forjado

pela ideologia e prática do liberalismo e, após, pela do neoliberalismo,

representaram o abatimento do Estado no seu protagonismo no sistema mundial.

O princípio do mercado, fundado na noção de propriedade de Locke e na “mão

53 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 57 (Grifo nosso). 54 Ibid., p. 139 e, pormenorizadamente, p. 139-154. 55 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit cf. nota da p. 56-57 e, adiante, p. 156-157. 56 Ibid., p. 75.

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invisível” harmonizante do desenvolvimento social de Adam Smith (1723-

1790)57, ao reduzir o papel do Estado, produz conseqüências distintas desde que

se trate de países centrais, semiperiféricos e periféricos do mundo.58

Convém registrar que, em termos de redução da regulação moderna ao

principio do mercado, podemos fazer uma aproximação com o que Habermas

denomina a colonização do mundo da vida.59 Trata-se de um fenômeno

característico das sociedades de capitalismo tardio (capitalismo desorganizado)

pelo qual o mercado (sistema econômico) e a burocracia (sistema administrativo)

colonizam o mundo da vida, isto é, a esfera da vida privada e a esfera da opinião

pública, passando assim a regulá-las.

A regulação moderna e, bem assim, o controle da vida coletiva e

individual, está reduzido ao mercado e à coisificação que ele produz no mundo.

2.7

A redução da emancipação moderna à racionalidade cognitivo-instrumental

Da mesma forma que o pilar da regulação pretendia harmonizar os três

princípios, o pilar da emancipação aspirava harmonizar as três racionalidades para

desenvolver a vida coletiva e individual. Todavia, o que sucedeu foi a prevalência

da racionalidade cognitivo-instrumental sobre a moral-prática e a estético-

expressiva. Aqui, assim como no pilar da regulação, houve a redução da

57 CHÂTELET, François et. al. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas. A Filosofia e a História: de 1780 a 1880. Vol. 5. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974, p. 135. 58 “A relativa perda de protagonismo do Estado, sendo embora um fenômeno generalizado, tem

implicações muito diferente conforme se trate de Estados do centro, da semiperiferia ou da

periferia do sistema mundial. Num contexto de crescente desigualdade entre o Norte e o Sul, os

Estados periféricos e semiperiféricos estão a ficar cada vez mais limitados – como vítimas ou

como parceiros – ao cumprimento das determinações do capital financeiro e industrial

transnacional, determinações, por sua vez, estabelecidas pelas organizações internacionais

controladas pelos Estados centrais. Essas determinações, frequentemente, apresentadas em

combinações estranhas de liberalismo econômico e de proteção dos direitos humanos, abalam a

tal ponto a já de si frágil componente social do Estado, que esses países assumem a ideia de crise

do Estado-Providência sem nunca terem usufruído verdadeiramente deste.” SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 155. 59 Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa: critica de la razon funcionalista. Tomo II. Versión castellana de Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Taurus, [1987/1988/2003], p. 454-457.

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emancipação em favor de uma racionalidade. A modernidade conferiu à razão

científica o papel de emancipar a vida coletiva e individual, menosprezando,

inclusive, o estatuto de validade do conhecimento produzido pela razão das artes e

da literatura e pela razão da ética e do direito.

A predominância da razão científica está umbilicalmente ligada à força do

pressuposto epistemológico da modernidade. É a partir da revolução científica do

século XVI que o modelo cognitivo-instrumental passa a dominar as ciências

naturais e, posteriormente, no século XIX, mas já com sinais no século XVIII,

estende-se às ciências sociais60. Como vimos, tal racionalidade rejeita as formas

de conhecimento que não sigam seus critérios, daí porque outras disciplinas

passaram a abraçar tais critérios: para também produzir conhecimento pertinente,

válido, verdadeiro.

Se fora possível descobrir as leis da natureza, seria da mesma forma

possível descobrir as leis da sociedade.61 Nesse contexto, ciência e direito

passaram a ter uma relação de cooperação e circulação de sentido que, orientada

pela ciência, conduziu ao quadro de afirmações normativas como afirmações

cientificas e afirmações científicas como afirmações normativas.

Sobre a questão, destaco a lúcida observação de Boaventura:

“Esta ideia de criar uma ordem social onde as determinações do direito sejam resultado das descobertas científicas sobre o comportamento social, é preponderante no pensamento social dos séculos XVIII e XIX, de Montesquieu a Saint-Simon, de Bentham a Comte, de Beccaria a Lombroso.” 62

A emancipação moderna e, bem assim, o desenvolvimento da vida coletiva

e individual, está reduzida à ciência e à simplificação que ela produz no mundo.

Se, por um lado, fatores sociais estão a demonstrar a crise dos pilares da

modernidade, por outro, fatores teóricos estão a demonstrar a crise de seus

pressupostos.

60 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 60. 61 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit. p. 65. 62 Ibid., p. 54.

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2.8

Nem todo real é racional

Do ponto de vista ontológico, a assertiva segundo a qual todo real é

racional foi fulminada pelos avanços no interior da própria ciência.

A visão cartesiano-newtoniana de mundo foi, paulatinamente, se

esboroando diante dos avanços incríveis na Física. As descobertas de Einstein

(1879-1955), com suas teorias especiais e gerais sobre a relatividade, bem como a

formulação da mecânica quântica de Bohr (1885-1962) e Heisenberg (1901-

1976), jogaram por terra parte das certezas científicas, expondo os estreitos

limites da física clássica. Nesse sentido, afirma o próprio Heisenberg:

“(...) a teoria quântica descoberta por Planck, (...) levantou uma série de questões muito gerais, concernentes não só a problemas estritamente físicos, como também relacionados ao método das ciências naturais exatas e à natureza da matéria. Tais questões levaram o físico a reconsiderar os problemas filosóficos que pareciam estar resolvidos no estreito quadro da física clássica.” 63

Com a física quântica, propriamente desenvolvida por Bohr e Heisenberg,

foi possível afirmar o fim do império da causalidade. Nem todos os aspectos do

real submetem-se à lógica do princípio da causalidade; a natureza não é uma

máquina causal regida por leis deterministas. Com a palavra, novamente,

Heisenberg:

“Mas não podemos, e é aí que a lei causal falha, explicar por que um determinado átomo se desintegra num dado momento, e não no seguinte, ou o que o faz emitir um elétron exatamente numa certa direção e não noutra. Estamos convencidos, por muitas razões, de que essa causa não existe.” 64

Sem uma causa para explicar o fenômeno microfísico, nascem os

princípios da incerteza e indeterminação. O real da certeza e determinação é agora

também o real da incerteza e da indeterminação.

63 HEISENBERG, Werner, et. al. Problemas da Física Moderna. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 10. 64 HEISENBERG, Werner. A Parte e o Todo. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 141.

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Outras condições teóricas contribuíram decisivamente para desmistificar o

real racional. Como bem destaca Morin, quando Boltzmann (1844-1906)

enunciou o segundo princípio da termodinâmica, o mundo da ordem passou

também a ser mundo da desordem.65 De todo modo, certo é que, ao final da

terceira década do século XX, a maioria das certezas científicas existentes até

então estavam condenadas:

“os átomos como blocos sólidos, indestrutíveis e separados da construção da Natureza, o espaço e o tempo como absolutos independentes, a causalidade estritamente mecanicista de todos os fenômenos, a possibilidade da observação objetiva da natureza.” 66

Paralelamente, a obra de Freud (1856-1939) e a emergência da psicanálise

significaram a descoberta de processos específicos relativos à inconsciência, que

puderam conduzir à afirmação de que nem todo o real é racional.67

O inconsciente e sua existência já haviam sido colocados antes de Freud,

pelo que “não é na afirmação dessa existência que consiste na radical novidade

do empreendimento freudiano, mas na originalidade do processo através do qual

o inconsciente e seu específico modo de funcionamento foram descobertos e

apreendidos.”68 De acordo com essa perspectiva, revela-se o grande impacto

epistemológico dos estudos freudianos. Entretanto, a afirmação per se da

existência de uma realidade psíquica, cujo caráter é puramente inconsciente,

solapa a ideia de um real essencialmente racional e, mais do que isso, consciente.

Nesses termos, o inconsciente seria a dimensão não racional do real, o que

não significa dizer, em absoluto, que não seria apreensível pela razão em alguma

medida. De todo modo, se o real não é todo racional, também não é todo simples e

todo homogêneo. Abre-se espaço, portanto, para identificar o ser, o real, com o

complexo, e também para identificá-lo com o heterogêneo.

65 MORIN, Edgar. Por uma Reforma do Pensamento, p. 23. 66 TARNAS, Richard. A Epopéia do Pensamento Ocidental: para compreender as ideias que

moldaram nossa visão de mundo, p. 382. 67 PLASTINO, Carlos Alberto. O primado da afetividade: A crítica freudiana ao paradigma

moderno, p. 15. 68 Ibid.

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2.9

Limites do conhecimento científico

Do ponto de vista epistemológico, as transformações na ciência

mencionadas anteriormente também repercutiram de maneira fundamental no

campo do conhecimento.

Assim é que, no campo da Física, as investigações e descobertas de Max

Planck (1858-1947) engendraram questionamentos epistemológicos profundos na

comunidade científica: “(...) até onde é possível objetivar as nossas observações

da natureza – ou a nossa experiência sensorial geral – ou seja, determinar, a

partir de fenômenos observados, um processo objetivo independente do

observador.”69

Nesse contexto, passou-se a questionar de modo contundente a

ideia do sujeito cognoscente neutro e, mais ainda, o estatuto de verdade das

afirmações científicas.

O sujeito cognoscente não é de modo algum separável do objeto

conhecido. “Heisenberg e Bohr demonstraram que não é possível observar ou

medir um objeto sem interferir nele, sem o alterar, e a tal ponto que o objeto que

sai de um processo de medição não é o mesmo que lá entrou.” 70 Sendo assim, o

conhecimento será sempre tradução e construção, e não simples reflexo do real,

de forma que o risco de erro existirá sempre, afastando a certeza científica.71

Não sendo possível a separação sujeito/objeto, isto é, intervindo o sujeito

no objeto que quer conhecer, a ciência tem que aceitar que o conhecimento

produzido em seu interior é provisório e relativo, e não eterno e absoluto. A

separabilidade revela-se, como condição e princípio do conhecimento,

insustentável, tornando insustentável também seus dualismos: sujeito/objeto, todo

o conhecimento é autoconhecimento72; natureza/cultura, toda natureza é cultura73;

69 Questionamento formulado por Heisenberg a propósito das conseqüências da descoberta de Planck. HEISENBERG, Werner, et. al. Problemas da Física Moderna. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 10. 70 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 69. 71 MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, p. 59. 72 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 81. 73 Ibid., p. 85.

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ciências naturais/ciências sociais, todas as ciências são ciências sociais.74 Os

dualismos hão de ser suplantados em prol do modelo de continuidade.

De outra parte, a emergência da psicanálise possibilitou a “afirmação de

formas de apreensão inconsciente”75, isto é, viabilizou outra forma de apreensão

do real, uma forma que não obedece aos estreitos critérios de apreensão pelo

conhecimento científico.

Freud foi capaz de produzir um saber distinto do saber científico, um saber

que, embora não tenha se fundado no procedimento empírico-racional, pôde ser

reputado conhecimento pertinente. A experiência clínica em si vai constituir essa

distinta forma de saber. Nesse sentido:

“Desse modo, atribuindo a esta experiência – concebida como uma relação intersubjetiva caracterizada pela resistência e a transferência – a preeminência na hierarquia epistemológica da psicanálise, Freud rompeu os estreitos limites de um paradigma no interior do qual o inconsciente não poderia ter sido pensado.” 76

Diante desse quadro, certo é que a psicanálise possibilita um conhecimento

distinto do científico, apontando mais uma vez um limite da ciência. O monopólio

do conhecimento científico pertinente deve desmoronar diante das constatações

dos limites do próprio conhecimento científico.77

2.10

Historicidade e Afetividade

Do ponto de vista antropológico, seguindo as contribuições da psicanálise,

evidenciou-se o equívoco da concepção do ser humano que o identifica como um

corpo máquina cavalgado por uma consciência racional: o ser humano não é só

razão, é também afeto; constitui-se por mais que racionalidade, constitui-se por

74 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 89. 75 PLASTINO, Carlos Alberto. O primado da afetividade: A crítica freudiana ao paradigma

moderno p. 15. 76 Ibid., p. 16. 77 “A maior contribuição de conhecimento do século XX foi o conhecimento dos limites do

conhecimento.” MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, p. 55.

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afetividade e historicidade. Não há como sustentar os dualismos próprios da

modernidade que apartam corpo/psique78, razão/paixão, natureza/cultura.

Afirmar que o ser humano não é racional é diferente de afirmar que é um

ser dotado de razão. Se o ser humano fosse racional, seria só consciência, como

quis Descartes, porém o ser humano não é só consciência, é também

inconsciência, como vimos.

O pensamento da modernidade quis crer em um ser humano a-histórico,

em um sujeito que pré-existe à sociedade, que, sendo puro mecanismo, é também

regido por leis deterministas, como a natureza. Mas ocorre que ele não é isso, nós

não somos isso, somos história:

“O pensamento humano, longe de ser algo que em eternidade e fora do tempo subsista sempre igual a si mesmo, funcionando nas mesmas condições e capaz das mesmas proezas, está radical e essencialmente condicionado pelo tempo e pela História. O pensamento humano não produz qualquer coisa em qualquer momento e em qualquer lugar, mas nasce, surge numa mente concreta, num homem de carne e osso, num indivíduo, o qual vive numa época determinada e pensa num lugar determinado; e este pensamento vem condicionado essencialmente por todo o passado que pressiona sobre a mente na qual se está destilando.” 79

Além do ser humano constituir-se pela história, constitui-se também pelo

afeto. Para Freud, a passagem do homem para a sociedade não se deve a um

contrato, deve-se à afetividade. Não requer o uso da razão, trata-se de um

movimento afetivo que se impõe na existência humana, pois é da ordem do

psiquismo originário. O ser humano tem a necessidade de se relacionar com o

outro, e o faz com base em relações de afeto.

Embora Descartes tenha proposto, como vimos, estudar as paixões para,

conhecendo-as, possibilitar ao homem viver sem elas, isso já não é possível, visto

que são constitutivas do ser humano. Não obstante, podemos observar um

movimento, identificado pelo paradigma das neurociências, que pretende 78 Sobre o conceito de psicossoma, o tema do inconsciente originário indissociável do corpo e, bem assim, a impertinência do dualismo corpo/psique cf. PLASTINO, Carlos Alberto. Winnicott:

A Fidelidade da Heterodoxia, p. 206. In: BEZERRA JR, B.; ORTEGA, F. (Orgs.) Winnicott e seus interlocutores. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2007. 79 MORENTE, Manuel Garcia. Op. Cit., p. 132.

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“construir uma leitura do psiquismo de base inteiramente biológica” 80 e, por

onde, genuinamente científica. Isso representaria mais um esforço da ciência de

reduzir, simplificar, e objetivar as particularidades do psiquismo e da

subjetividade, segundo o conhecimento científico da economia bioquímica dos

neurotransmissores.81

Nesse particular, o tempo nos dirá se a ciência (neurociência) conseguirá

explicar os afetos, sentimentos, paixões, de acordo com fórmulas químicas e

matemáticas. Se isso ocorrer, será mais uma prova da redução da emancipação

moderna à racionalidade cognitivo-instrumental que, explicando o que é a paixão,

subtrairá da racionalidade estético-expressiva das artes e literatura todo seu

sedutor potencial emancipatório da vida coletiva e individual.

80 BIRMAN, Joel. Op. Cit., p. 181. 81 Ibid., p. 182.

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