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43 VOL. 22, N. o 1 — JANEIRO/JUNHO 2004 Planeamento de serviços de saúde Maria Adelaide Brissos é directora de Serviços de Planeamento e Apoio Técnico da Administração Regional de Saúde do Alentejo, mestra em Sociologia e assistente no Instituto Superior de Serviço Social de Beja. Submetido à apreciação: 8 de Abril de 2003. Aceite para publicação: 3 de Dezembro de 2003. O planeamento no contexto da imprevisibilidade: algumas reflexões relativas ao sector da saúde MARIA ADELAIDE BRISSOS As previsões feitas no planeamento tradicional, com base na quantificação, carecem de substituição por uma visão prospectiva que valorize os parâmetros qualitativos, com recurso à metodologia dos cenários, a qual, entre outras características, deve descrever a evolução do sistema estu- dado, tendo em conta as evoluções mais prováveis das variáveis-chave a partir de jogos de hipóteses do compor- tamento dos actores. O planeamento deve equacionar o contexto em que se actua, os múltiplos interesses e as relações de poder, de influência ou de conflitualidade entre os vários actores sociais. Ao nível do sistema de saúde, o processo de planea- mento deve basear-se numa estrutura descentralizada que valorize as soluções adequadas a cada território e a aceita- ção de uma abordagem diferente numa óptica de mercado; deve assumir a forma de um processo de negociação, pers- pectivado num contexto de mudança, o que facilita a obtenção dos objectivos e aumenta a capacidade de apren- dizagem e de inovação dos actores. Importa reforçar a ideia da interligação entre os centros de saúde, hospitais e cuidados continuados, quer ao nível do sector público, quer social, os quais, no espaço onde actuam, possam encarar a saúde com uma abordagem mais alargada, associada directamente à qualidade de vida, em que sejam valorizadas, além das dimensões tradicio- nais, também a relacional, cultural, ambiental e espiritual. A saúde deve, desta forma, ser vista como vector de desen- volvimento, o que pressupõe que a mesma seja parte inte- grante de uma estratégia de intervenção multisectorial, com projectos que tenham características de sustentabili- dade. Num processo de desenvolvimento, os projectos a conside- rar devem proporcionar uma análise integrada das neces- sidades da população, com novas perspectivas de acção, uma concentração de esforços e melhor aproveitamento dos recursos, fomentando sinergias e a promoção da capa- cidade, motivação e autonomia da comunidade. Uma resposta de qualidade que dê satisfação às necessidades pressupõe também que os recursos humanos sejam consi- derados o capital mais importante no seio de uma organi- zação, pelo que os profissionais devem ser possuidores de um bom nível de informação, adequada às funções, forma- ção contínua e empowerment. A actuação integrada só pode ser desenvolvida em parce- ria, onde se envolvam não só os serviços estatais, mas outros da sociedade civil, de forma a contribuir para o desenvolvimento humano, do qual a saúde faz parte inte- grante. 1. Introdução O conhecimento do processo de planeamento, ou seja, as várias etapas que o caracterizam, é matéria que não suscita polémica e está acessível em qual- quer manual para satisfazer a curiosidade daquele

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Planeamento de serviços de saúde

Maria Adelaide Brissos é directora de Serviços de Planeamento eApoio Técnico da Administração Regional de Saúde do Alentejo,mestra em Sociologia e assistente no Instituto Superior de ServiçoSocial de Beja.

Submetido à apreciação: 8 de Abril de 2003.Aceite para publicação: 3 de Dezembro de 2003.

O planeamento no contextoda imprevisibilidade: algumas reflexõesrelativas ao sector da saúde

MARIA ADELAIDE BRISSOS

As previsões feitas no planeamento tradicional, com basena quantificação, carecem de substituição por uma visãoprospectiva que valorize os parâmetros qualitativos, comrecurso à metodologia dos cenários, a qual, entre outrascaracterísticas, deve descrever a evolução do sistema estu-dado, tendo em conta as evoluções mais prováveis dasvariáveis-chave a partir de jogos de hipóteses do compor-tamento dos actores.O planeamento deve equacionar o contexto em que seactua, os múltiplos interesses e as relações de poder, deinfluência ou de conflitualidade entre os vários actoressociais. Ao nível do sistema de saúde, o processo de planea-mento deve basear-se numa estrutura descentralizada quevalorize as soluções adequadas a cada território e a aceita-ção de uma abordagem diferente numa óptica de mercado;deve assumir a forma de um processo de negociação, pers-pectivado num contexto de mudança, o que facilita aobtenção dos objectivos e aumenta a capacidade de apren-dizagem e de inovação dos actores.Importa reforçar a ideia da interligação entre os centros desaúde, hospitais e cuidados continuados, quer ao nível dosector público, quer social, os quais, no espaço ondeactuam, possam encarar a saúde com uma abordagem

mais alargada, associada directamente à qualidade de vida,em que sejam valorizadas, além das dimensões tradicio-nais, também a relacional, cultural, ambiental e espiritual.A saúde deve, desta forma, ser vista como vector de desen-volvimento, o que pressupõe que a mesma seja parte inte-grante de uma estratégia de intervenção multisectorial,com projectos que tenham características de sustentabili-dade.Num processo de desenvolvimento, os projectos a conside-rar devem proporcionar uma análise integrada das neces-sidades da população, com novas perspectivas de acção,uma concentração de esforços e melhor aproveitamentodos recursos, fomentando sinergias e a promoção da capa-cidade, motivação e autonomia da comunidade. Umaresposta de qualidade que dê satisfação às necessidadespressupõe também que os recursos humanos sejam consi-derados o capital mais importante no seio de uma organi-zação, pelo que os profissionais devem ser possuidores deum bom nível de informação, adequada às funções, forma-ção contínua e empowerment.A actuação integrada só pode ser desenvolvida em parce-ria, onde se envolvam não só os serviços estatais, masoutros da sociedade civil, de forma a contribuir para odesenvolvimento humano, do qual a saúde faz parte inte-grante.

1. Introdução

O conhecimento do processo de planeamento, ouseja, as várias etapas que o caracterizam, é matériaque não suscita polémica e está acessível em qual-quer manual para satisfazer a curiosidade daquele

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que careça de dominar minimamente este assunto.Esta facilidade aparente de aprendizagem dos váriospassos e técnicas a utilizar para participar em tra-balhos de planeamento não é, no entanto, garanteda eficácia das acções a serem desenvolvidas.A demonstrá-lo está o insucesso de vários planos,quer nacionais, quer regionais, de âmbito geral ousectorial.A avaliação desses resultados carece de uma refle-xão, pois os mesmos evidenciam falta de adequaçãodos instrumentos utilizados, que garanta o cumpri-mento dos objectivos propostos, uma vez que o pla-neamento não é um fim a atingir, mas tão-somenteum meio para tomar um caminho que nos permitaalcançar um estádio diferente, quantitativa e qualita-tivamente, considerado desejável.Desde há muito que para o sector da saúde têm sidoelaborados planos visando uma melhoria no estadode saúde da população, expressa através de indicado-res, numa primeira fase, de mortalidade e de morbi-lidade e, posteriormente, também mediante indicado-res que sejam demonstrativos de qualidade de vida,avaliada através de aspectos relacionados com a ali-mentação, hábitos de vida saudáveis ou meioambiente. Quer nos refiramos a planos emanados apartir do nível central, ou desenvolvidos a partir deuma região específica, a metodologia seguida carece,no actual contexto, de uma reflexão, uma vez que osinstrumentos usuais não foram reavaliados face aosrecentes desenvolvimentos registados na abordagemdas organizações ou face às próprias característicasda sociedade pós-industrial.O presente trabalho surge, assim, tendo como objec-tivo a apresentação de algumas características que oprocesso de planeamento na saúde deve assumir noactual contexto da sociedade e do próprio sector,também este alvo de mutações no presente, querderivadas do próprio conceito de saúde, hoje muitomais abrangente e com fronteiras esbatidas entre asegurança social, desporto ou lazer, quer das própriasalterações estruturais e organizacionais em curso nosector.Na primeira parte do trabalho dá-se uma visão dasdiferentes abordagens do processo até ao presente,quer de uma forma geral, quer especificamente nasaúde, bem como da sua ineficácia. A segunda partedo trabalho pretende estabelecer uma ligação entreo mundo actual e as características que deve assu-mir o planeamento contemporâneo e a terceira parterelaciona o planeamento com o processo de desen-volvimento. Por último, nas considerações finaisrealçam-se os principais aspectos mencionados aolongo do trabalho, referindo-se em especial a novaabordagem que urge introduzir no planeamento dasaúde.

2. Planeamento tradicional: crise e alternativas

A revolução industrial, através de uma transformaçãoprofunda dos métodos de trabalho, proporcionou umaumento da produtividade que suscitou o apareci-mento de uma nova sociedade, que conheceu umprocesso de crescimento económico acelerado, oqual, no entanto, não considerou os aspectos relativosao bem-estar e qualidade de vida. A crise económicados anos 30 e a segunda guerra mundial determina-ram a necessidade de reorganizar a economia e sur-giu uma tendência para uma acção organizada paraobtenção de determinados objectivos, o que impli-cava um planeamento sistemático por parte doEstado. As primeiras experiências de planeamentosurgiram na Rússia, com uma forte conotação ideoló-gica, mas outras experiências se seguiram nos paísesocidentais, nomeadamente em França, demonstrandoque o processo de planeamento é aplicável a qual-quer tipo de sociedade. Por outro lado, os países emvias de desenvolvimento, alguns ex-colónias querecentemente tinham adquirido a sua independência,desejavam seguir o modelo de crescimento econó-mico ocorrido nos países ocidentais e planeavam paraalcançarem também a sua independência económica.O planeamento, enquanto instrumento de política,visa actuar ao nível dos factores que determinam umamelhoria na qualidade de vida, que na época queantecede a pós-industrial assentava sobretudo no fac-tor económico. Posteriormente, a influência do pro-cesso de planeamento faz-se sentir na programaçãoda construção de infra-estruturas urbanas e sociais,como suporte do processo de industrialização(Guerra, 2000).Em Portugal, nos anos 60, Manuela Silva dá expres-são ao desenvolvimento social e põe em causa odesenvolvimento baseado exclusivamente no vectoreconómico. É neste contexto que o planeamento dossectores sociais começa a emergir. A nível nacional,a estruturação orgânica do planeamento surgiu em1968, quando foi constituída a tutela ministerial nestecampo, integrada na Presidência do Conselho deMinistros, através de um subsecretário de Estado doPlaneamento.As preocupações de índole social, designadamenteno sector da saúde, surgem pela primeira vez incluí-das no Plano Intercalar de Fomento (1965-1967). NoIII Plano de Fomento (1968-1973) elege-se, pela pri-meira vez, a correcção dos desequilíbrios regionaiscomo uma das finalidades do Plano e ficam afectos àsaúde 20% da verba global. No IV Plano de Fomentoé apresentado um diagnóstico exaustivo do sector dasaúde, mas este Plano não foi executado. Seguiram--se os planos de médio prazo (1977-1980 e 1979--1984), os quais não passaram da fase de elaboração.

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Até aos finais da década de 70, a organização doplaneamento a nível geral enfermou de alguns defei-tos, dos quais se salientam a falta de participação ede descentralização, bem como uma insuficiente inte-gração sistematizadora (Brissos, 1996).Como características gerais, e sem levantar polémica,o processo de planeamento é tido como um processoque, tomando por base o que se quer atingir, deter-mina o percurso a seguir com os meios que se podemutilizar. É um processo permanente, contínuo e dinâ-mico, que implica reprogramação adequada aosimprevistos que vão surgindo, está voltado para ofuturo e para a acção, procurando racionalizar recur-sos com menores custos e com uma relação de cau-salidade entre a acção tomada e os resultados deter-minados. O processo de planeamento foi e continuaa ser importante independentemente das característi-cas da sociedade. Na verdade, uma actuação intersec-torial, ao nível das causas dos problemas, que estabe-leça prioridades com base nos pressupostos de que osrecursos são escassos e devem ser utilizados deforma equitativa exige planeamento, mas a sua utili-dade depende da adequação da metodologia e doenfoque dado à relação entre planeadores e gestores.No entanto, para Duran (1989), o planeamento dasaúde não chegou a identificar-se com o poder dedecisão e nunca foi devidamente utilizado como ins-trumento de gestão. As metodologias seguidas atéhoje não são consensuais face aos resultados alcança-dos e, por isso, merecem uma referência para melhorpodermos compreender a situação actual e apontarcaminhos alternativos adequados ao contexto organi-zacional em que as acções se vão desenvolver e àsociedade em geralAs metodologias tradicionais têm primado por umprocesso centralizado, sem transferência para o nívellocal de algumas decisões, no âmbito das orientaçõesdo nível central. No sector da saúde, foi só a partir de1978 que, com base nas estruturas distritais, foi dina-mizada uma nova fase do planeamento, com a defi-nição de circuitos funcionais para elaboração dosplanos aos vários níveis e a articulação com sectoresque condicionam o estado de saúde. A metodologiaadoptada, estimulada pela OMS (Organização Mun-dial de Saúde) sob a designação de country healthprogram, recebeu em Portugal o nome de «planea-mento integrado de saúde» e foi utilizada na elabora-ção dos Planos de Trás-os-Montes, Viana do Castelo,Alentejo e Castelo Branco. Esta metodologia assentaem três princípios fundamentais:

• Visão multissectorial dos problemas da região,tendo em conta que o nível de saúde é condicio-nado por factores que frequentemente transcen-dem o círculo de actuação dos serviços;

• Processo participado, envolvendo profissionais desaúde e outros, autarquias e responsáveis locaisdos serviços e de instituições representativas dapopulação;

• Quadro regional, isto é, uma unidade geográficacom características próprias, problemas específi-cos, carências e necessidades e com um conjuntode serviços, organismos e instituições com áreasde actuação sensivelmente semelhantes e cujaacção é susceptível de ser conjugada e articuladadentro daquele espaço.

Embora esta metodologia pressuponha uma análisemultissectorial, a mesma só é utilizada para conheceros factores condicionantes do estado de saúde. Naprogramação procurou-se uma actuação integrada dasaúde com os outros sectores sociais — segurançasocial, educação, desporto —, o que só parcialmentefoi conseguido. Entre os factores explicativos dobaixo grau de execução de projectos ligados a outrossectores, pode destacar-se a prevalência de uma visãosectorializada dos problemas, em detrimento de umavisão integrada. Uma avaliação feita ao Plano deSaúde do Alentejo veio demonstrar que, dos projec-tos não executados, qualquer que fosse o organismoresponsável, se podiam apontar, como factor explica-tivo comum, as dificuldades em alterar rotinas eintroduzir acções que requeriam inovação, mudançana organização dos serviços ou cooperação comoutros sectores.Embora os planos atrás referidos sejam experiênciasque assumem algumas características de um processodescentralizado, com discussão local dos problemas,o processo não garantiu o comprometimento inter-sectorial dos vários actores para execução do Plano,o que não criou as condições para conseguir a reso-lução ou redução dos problemas de saúde específicosda região. Encontramos aqui traços da abordagemtradicional do planeamento, que pode ser analisadamediante três teorias: clássica, naturalista e crítica.A abordagem clássica baseia-se essencialmente naselecção de métodos e técnicas que permitam alcan-çar os resultados desejáveis, não valorizando o con-texto em que ocorrem as acções. A abordagem natu-ralista tem como pontos-chaves o juízo, contexto evalores, visando essencialmente emitir juízos acercada acção a tomar em situações concretas, secundari-zando a aplicação de princípios teóricos. Para estaabordagem, o «bom» planeamento consiste em fazero que é possível, tendo em conta os obstáculos, e oque é desejável, com base nos valores e crenças.A abordagem crítica defende que os programas sãolargamente determinados por forças estruturais,nomeadamente ideologias dominantes e interessessócio-culturais e políticos das instituições. Segundo

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Cervero e Wilson (1994), qualquer destas teorias nãofoi capaz de produzir uma abordagem para oplaneador num mundo socialmente estruturado, noqual há que ter em conta o contexto onde se actua,encarando o processo de planeamento como inte-grante da actividade social, em que são negociadosmúltiplos interesses, sendo o conhecimento e as rela-ções de poder fundamentais.Baseados nestas teorias, os programas têm emergidoda aplicação das várias etapas do processo, menos-prezando o contexto em que os mesmos vão ser apli-cados, nomeadamente as inter-relações entre indiví-duos e instituições, bem como as relações de poder,de influência ou de conflitualidade entre os váriosactores sociais, individuais ou colectivos, envolvidos.No caso concreto da saúde, em que se confrontaminteresses dos utentes com interesses profissionaistão diversos e com interesses organizacionais, o pro-cesso de planeamento não pode deixar de assumir aforma de um processo de negociação, em que asdimensões ética, política e estrutural devem estarpresentes e ser perspectivadas num contexto demudança, quer da sociedade em geral, quer especifi-camente no próprio sistema de saúde.A aplicação de outra metodologia em meados dosanos 90 – o planeamento estratégico — é uma tenta-tiva de conseguir melhores resultados, porque seequacionam as potencialidades e fraquezas do sis-tema, enquadradas num determinado contexto.Como exemplo ilustrativo podemos apontar a Estra-tégia Regional de Saúde para o Alentejo, elaboradaem 1997, segundo o modelo de Bryson (Anexo 1),que tem por base o estudo do ambiente interno, atra-vés da análise dos mandatos, missões e valores daorganização, e do ambiente externo, mediante oconhecimento das forças/tendências dos utentes e dosparceiros. Este modelo foi complementado com o deBackoff (Anexo 2), que contribuiu para o estudo dasituação corrente e definição de perspectivas de situa-ção futura. Pretendem-se alcançar resultados relati-vos a ganhos em saúde, traduzidos em menores taxasde mortalidade, de morbilidade e de melhor acompa-nhamento dos grupos de risco (acrescentar anos àvida e vida aos anos), o que implica a actuação deoutros sectores que em parceria com o sector dasaúde desenvolvam acções que permitam alcançar osresultados explicitados. Planeia-se para alcançar osresultados desejáveis para o sector da saúde e o tra-balho em parceria é visto dentro desta óptica, o queé insuficiente. Não é seguido um modelo que privile-gie uma visão sistémica em que a saúde surja comoparte integrante de um processo mais abrangente dedesenvolvimento.Rihardson e Richardson (1992) apontam um con-junto de oito problemas críticos de planeamento com

que se defrontam as organizações que procuramsucesso estratégico num mundo dinâmico, instável ehostil, problemas que preferiria considerar comodesafios e que podemos enumerar, com algumasadaptações, para o sector da saúde:

• Como identificar e lidar com pessoas que têm umpapel importante na organização?

• Como prever o futuro a longo prazo e decidirsobre serviços, desenvolvimento do sistema ououtras alterações organizacionais, incluindo asque se destinam a valorizar a competitividade?

• Como planear aquilo que antecipadamente se pre-veja que possa correr mal no processo de planea-mento-base?

• Como «gerir sonhos» de novas estruturas organi-zacionais ou criação de novos serviços em funçãoda realidade operacional?

• Como procurar maior redução de custos e conci-liá-la com oportunidades de utilização da capaci-dade técnica instalada e fazer as mudanças reque-ridas para melhorar a produtividade?

• Como lidar com as diferentes identidades cultu-rais dos diversos actores do sistema de saúde demodo que se adaptem e se ajustem às circunstân-cias em mudança e onde todos procurem conti-nuamente melhorar as suas contribuições para aeficiência e satisfação dos utentes?

• Como proporcionar condições para a inovação,com vista a intensificar e depois controlar a capa-cidade da organização para mudar efectivamenteos seus serviços e processos de trabalho?

• Como retirar o máximo partido das oportunidadessurgidas de forma inesperada e responder deforma positiva ao seu impacto?

Trata-se de questões a que o planeamento tradicionalnão pode dar resposta e por isso mesmo devem serexploradas outras metodologias adequadas à socie-dade contemporânea.

3. Visões sobre o planeamentonum contexto de mudança

O centralismo do planeamento tradicional, condu-zindo a uma uniformidade de acções, descurando osaspectos sócio-culturais, as necessidades específicas,as características dos destinatários e as condições deimplementação dos projectos, não se adequa à socie-dade actual, caracterizada pela flexibilidade, assentena informação e na estimulação de necessidades, naprocura de identidades e de diferenças.Nos anos 70 assiste-se ao declínio do planeamentoracional, centralizado, que esquece as dimensões

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ética, política e estrutural, e surge o planeamentoestratégico. Nos anos 80, Michael Porter reforça acorrente racionalista, procurando mostrar a importân-cia da análise das forças do meio competitivo, atravésde estratégias de domínio por meio dos custos e dadiferenciação, mas, segundo Godet (1993), foramesquecidos os aspectos humanos, financeiros e orga-nizacionais, nomeadamente a identidade e os valoresda organização. Daqui nasce a ideia da «gestão docaos», explicitada no livro com o mesmo nome(Stacey, 1994). Para este autor, os planos quantitati-vos pormenorizados devem ser substituídos por pla-nos flexíveis e qualitativos que privilegiem relatóriosde missão com análise qualitativa e explícita quantoao que se pretende atingir.Numa sociedade em que os novos poderes se ocul-tam nas relações de violência, riqueza e conheci-mento (Toffler, 1992), este último deve assumir ascaracterísticas de previsão e, acima de tudo, prospec-tivo. Para Godet (1993), a mudança na sociedadepós-industrial pode ser acelerada e dominada pelaprevisão e pelo planeamento. O planeamento actualresponde a necessidades relacionadas com a gestãode conflitos e, consequentemente, a formas de coesãosocial, económica ou cultural (Guerra, 2000).O planeamento e a gestão descentralizados são hojetemas importantes no seio dos países da OCDE. Paraalém da descentralização, há a destacar actualmenteas seguintes características do planeamento: caráctermultidisciplinar e participado; clara definição dasfunções e responsabilidades de cada nível de inter-venção; bom suporte de informação; articulaçãoentre a gestão e o planeamento; visão estratégica eflexibilidade.Defensores da descentralização, tais como Hurley etal. (1994), argumentam que atribuir maior autoridadeà tomada de decisão a nível local melhora a eficiên-cia técnica e distributiva em que opera o sistema desaúde. Segundo os mesmos autores, a informaçãodeve ser integrada com vista a:

• Obter eficácia e eficiência das intervenções ecaminhos alternativas para a organização de ser-viços;

• Conhecimento das necessidades, valores e prefe-rências da população;

• Conhecimento das circunstâncias locais que afec-tam a prestação de cuidados de saúde nas regiões.

Uma estrutura descentralizada que disponha destesdados tem condições para desenvolver uma acçãoque aumente a capacidade de aprendizagem e de ino-vação dos actores. Os serviços públicos, no âmbitoda política social, registam hoje outro tipo de rela-ções entre os vários níveis de intervenção e o mer-

cado. Há uma tendência para o abandono de umaabordagem burocrática, assente num planeamentocentralizado para soluções uniformes, e a aceitaçãode uma abordagem de prestação de serviços numcontexto de mudança, numa óptica de mercado, des-centralizado, muitas vezes através de privatização,processo que pode facilitar a obtenção dos objectivospropostos.O processo de planeamento pode passar por quatronós: iniciativas, diagnóstico, estratégias e planos decontratualização. Destes, o diagnóstico, estratégias eplanos de contratualização merecem-nos algumasreferências.O diagnóstico, enquadrado num processo de planea-mento com as características acima referidas, deveassentar nos seguintes princípios: ter em conta osaspectos sócio-políticos para conhecimento dainfluência, capacidade de inovação ou capacidade debloqueio das forças sociais; discussão com os repre-sentantes da população da análise efectuada à situa-ção existente, seus antecedentes, perspectivas e pro-blemas daí resultantes; carácter não definitivo dodocumento, tendo em conta as constantes mutações;elaboração de projectos que se adaptem a alteraçõesque ocorram. O diagnóstico deve proporcionar umconhecimento das forças e fraquezas do ambienteinterno e das ameaças e oportunidades do ambienteexterno.Uma estratégia pode ser entendida como um con-junto de procedimentos a adoptar, com consistênciainterna e que represente, acima de tudo, uma atitudeface a um futuro possível, devendo resultar de umaacção colectiva em que os diversos actores aprendamconjuntamente. As previsões feitas no planeamentotradicional, com base em quantificação, a partir deprojecções da tendência dos fenómenos, carecem desubstituição por uma visão prospectiva que valorizetambém os parâmetros qualitativos. O quadro dapágina seguinte demonstra a diferença entre previsãoe prospectiva.«A prospectiva é uma investigação de futuros possí-veis, prévios à elaboração de estratégias ou de polí-ticas, tendo em conta a acção presente» (Poquet,1987, citado por Sá, 1990).Segundo Sá (1990), a análise prospectiva tem funda-mentalmente dois objectivos:

• Por um lado, imaginar (e, sempre que possível,controlar por processos científicos) o que vaiacontecer de uma forma durável num domíniodeterminado; esse trabalho de imaginação tem aver com a capacidade de diminuir a incerteza econseguir encontrar fenómenos dificilmente pre-visíveis, como a ruptura, a mudança, a transfor-mação e a descontinuidade;

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• Por outro lado, ser um instrumento que ajude àtomada de decisão, estando intimamente ligada auma atitude política de «agir».

A análise prospectiva está ligada à metodologia doscenários, conceito que pode ser definido como um«conjunto formado pela descrição de uma situaçãofutura e do encaminhamento dos acontecimentos quepermitam passar da situação de origem à situaçãofutura» (Bluet e Zemor, 1970, citados por Godet,1993). Um cenário, segundo Godet (1993), tem osseguintes objectivos:

• Revelar os pontos a estudar com prioridade (variá-veis-chave), relacionando, por meio de uma análiseexplicativa global a mais exaustiva possível, asvariáveis que caracterizam o sistema estudado;

• Determinar, nomeadamente a partir das variáveis--chave, os actores fundamentais, as suas estraté-gias, os meios de que dispõem para fazerem vin-gar os respectivos projectos;

• Descrever a evolução do sistema estudado, tendoem conta as evoluções mais prováveis das variá-veis-chave e a partir de jogos de hipóteses sobreo comportamento dos actores.

Ainda o mesmo autor faz a distinção entre cenáriospossíveis (o que se pode imaginar), cenários realizá-veis (o que é possível concretizar, tendo em conta oscondicionalismos) e cenários desejáveis (só parcial-mente possíveis)A análise prospectiva, baseada no método dos cená-rios, conduz à definição de estratégias e sua opção,conforme Figura 1, que se apresenta a seguir.

Figura 1Da prospectiva ao planeamento estratégico

Quadro IComparação entre previsão e prospectiva

Causa de erros de previsão Características da prospectiva

Visão Parcelar: «tudo igual em toda a parte» Global: «nada igual em parte nenhuma»Variáveis Quantitativas, objectivas e conhecidas Qualitativas, quantificáveis ou não subjectivas, conhe-

cidas ou ocultasRelações Estáticas, estruturas constantes Dinâmicas, estruturas evolutivasExplicação O passado explica o futuro O futuro, razão de ser do presenteFuturo Único e certo Múltiplo e incertoMétodo Modelos deterministas e quantitativos Análise intencional. Modelos qualitativosAtitude face ao futuro Passiva e reactiva Pré-activa e pró-activa

Fonte: Godet (1993).

Método dos cenários

Modelos de previsões

Processo de planeamento estratégico

Construção da base

Elaboração de cenários

Estabelecimento deprevisões

Definição de estratégias

Escolha das opçõesestratégicas

Fonte: Godet (1993).

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Na escolha das opções estratégicas há que conhecerbem as convergências e divergências entre os actores,as quais variam de objectivo para objectivo. Só como conhecimento destes aspectos e as suas relações depoder é possível hierarquizar objectivos e ver quaisas tácticas possíveis, entendidas estas como decisõescontingentes e antialeatórias, que permitem alcançarum objectivo.A contratualização tem vindo a assumir particularimportância, nomeadamente no sector da saúde,visando ganhos de eficiência, tendo em conta a capa-cidade instalada nas instituições de saúde.Sem pôr em causa as grandes orientações que devememanar do poder central, visando atingir os grandesobjectivos da política nacional, através de um esforçodinâmico voltado para os problemas, o planeamentoao nível regional ou local deve ser encarado essen-cialmente como prática social, o que implica nego-ciação entre os vários actores sociais envolvidos.Esta negociação deve visar alcançar um acordoquanto à aceitação de objectivos comuns (Guerra,2000). Os conceitos de poder e interesses e a relaçãoentre os mesmos são fundamentais para se precisar oprocesso de negociação, bem como definir os contex-tos sociais em que os planeadores actuam. ParaCervero e Wilson (1994), o poder é entendido comoa capacidade para actuar; as relações de poder exis-tem em todas as relações humanas e definem o quecada um é capaz de fazer numa determinada situaçãodo processo de planeamento. Ainda segundo os mes-mos autores, os interesses são predisposições queenvolvem fins, valores, desejos, expectativas e outrasorientações que conduzem a pessoa a actuar numa ounoutra direcção.Devendo o processo de planeamento realizar-se atodos os níveis e de uma forma descentralizada, pode-mos referir que, no caso do sector da saúde, este pro-cesso de negociação deve ser desenvolvido desde onível base da entrada no sistema — o centro de saúde.Mas as mudanças em curso, preparadoras de umareforma profunda do sistema, levam-nos a fazer umareferência à interligação entre centros de saúde, hospi-tais, cuidados continuados, quer ao nível do sectorpúblico, quer do sector social de uma determinadacomunidade, ao nível sub-regional, privilegiando aagregação de concelhos ou de freguesias, e onde osserviços de uma forma interligada e integrada, atravésde um processo de negociação entre os diferentes inte-resses dos diversos actores envolvidos, têm de encon-trar as respostas para a satisfação das necessidades daspopulações, melhorando o acesso e adequando as res-postas com rapidez e qualidade. Desta forma, o terri-tório deve constituir um espaço comum de planea-mento e coordenação de estratégias entre todos osactores sociais envolvidos no espaço em que operam.

As mudanças em curso obrigam a uma especial aten-ção à actuação a desenvolver no seio das organiza-ções de saúde. Crozier e Friedberg (1977) estudam oequilíbrio da organização, realçando as relações depoder e de conduta estratégicas. Estes autoresreconhecem o comportamento activo e racional dosactores sociais, condicionado pelas oportunidadesque a organização lhe oferece, e apresentam osseguintes princípios de acção estratégica:

• Os homens não aceitam ser tratados como meiosao serviço dos fins da organização; cada um temos seus fins e objectivos próprios;

• Há liberdade e autonomia do actor ao nível dainterpretação do papel inicial;

• As estratégias dos actores são racionais, comracionalidade limitada e contingente, condicio-nada pela prática quotidiana.

Para compreender a mudança, e continuando a referiros mesmos autores atrás citados, a análise devebasear-se em três conceitos fundamentais: poder,incerteza e sistema de acção. Pelo primeiro entendemos autores a capacidade de utilizar os recursos face àsresistências, o que implica uma relação de reciproci-dade e de negociação. A incerteza é entendida nocontexto do jogo dos actores, que, embora tendo emconta as regras da organização, cada actor procuraque o outro não conheça o seu jogo. O sistema deacção respeita as alianças entre os actores para fun-cionamento da organização.Crozier (1989) refere que se assiste ao nascimento deuma nova lógica organizacional, que contempla qua-tro elementos essenciais:

• Capacidade de inovar;• Primazia da qualidade face à quantidade;• Importância dos recursos humanos;• Primazia do investimento imaterial face ao material.

As organizações de saúde, num contexto demudança, devem encarar o desafio que se lhes depa-ra, concebendo-se como entidades aprendentes, gera-doras de competências colectivas, em que é atribuídaigual importância ao desenvolvimento dos recursoshumanos e da própria organização. A formação,como investimento imaterial, deve integrar as estraté-gias a implementar e ser encarada como o reforço dosaber-fazer, visando mais competitividade e inovaçãoface aos parceiros, quer públicos, quer privados, e,por outro lado, o desenvolvimento de novas compe-tências, visando maior flexibilidade e adaptabilidadea novas e diferentes situações.Por outro lado, as características do meio envolventede uma organização devem determinar o tipo de

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Planeamento de serviços de saúde

estratégia a elaborar. Assim, em envolventes em quepredomina a incerteza ou a instabilidade, a estratégiadeve emergir de processos de aprendizagem organi-zacional.

4. O planeamento como instrumentopara o desenvolvimento

As estratégias de saúde que têm sido seguidas nãotêm privilegiado uma visão integradora e sistémica, aúnica que pode integrar um processo de desenvolvi-mento. Esta situação, aliás, tem sido identificadatambém noutros países. Dearden (1985), citado porGiraldes (1997), afirma que, se nos colocarmos numaperspectiva visando diminuir as desigualdades desaúde, é muito provável que um aumento da despesaem habitação, educação, segurança social e criaçãode novos empregos tenha um maior impacto nas par-celas da população mais pobres do que teria umaumento na despesa em serviços de saúde. Umestudo elaborado por Bruto da Costa et al. (1985),citado por Giraldes (1997), refere que o fenómeno dapobreza se situa sempre num determinado contextopolítico, económico e social e é a resultante de variá-veis que relevam de cada um destes domínios. Osautores concluem que uma política coordenada decombate à pobreza deverá ser articulada com políti-cas específicas que abordem o emprego, a educaçãoe valorização dos recursos humanos, os salários, pro-dutividade e preços, a dotação de capital, redistribui-ção de rendimentos, segurança social, urbanização eequipamentos colectivos. Todas estas políticas devemcontemplar uma forte participação social, tendo pre-sente que nenhuma destas políticas parcelares éisolável de uma política geral de regulação e dedesenvolvimento.A saúde não pode deixar de integrar uma intervençãomultissectorial através de estratégias que dêem ori-gem a projectos com sustentabilidade, definida estacomo a capacidade de o projecto continuar a propor-cionar benefícios num prolongado período de tempo,com as seguintes características:

• Capacidade de produzir benefícios que possamperdurar;

• Criar capacidades para que, mesmo na ausênciado projecto, possam perdurar os seus efeitos;

• Criar dinâmica para outro tipo de iniciativas;• Permitir o desenvolvimento global, inovador e

irreversível de modo autónomo, tendo em contaos recursos existentes.

Neste enquadramento, a análise custo-benefícioadoptada na concepção tradicional não parece ser

suficiente e apropriada para a saúde, porque somenteconsidera os custos dos projectos de desenvolvi-mento e os benefícios da população em termosmonetários, sendo preferível a análise custo-efectivi-dade, em que os custos são expressos em termosmonetários, mas os resultados ou consequências dedeterminado procedimento, quando aplicados na prá-tica, são expressos em unidades físicas. Medidas deefectividade na saúde são, por exemplo, o número devidas poupadas, o número de anos de vida ganhos, onúmero de dias livres de dor ou os sintomas ou com-plicações evitados.À visão tradicional deve contrapor-se uma visão dedesenvolvimento integrado, o que pressupõe, logo àpartida, uma identificação dos projectos, previsão eavaliação dos impactos das diferentes acções, o quedeve ser feito de forma descentralizada, ao nível deuma região, potenciando os recursos endógenos eprocurando, assim, efeitos de sinergia. É de salientara importância de redes de projectos locais e/ou regio-nais que reagrupem os actores sociais, que actuam aonível do território, atribuindo-lhes poder de decisão(Mozzicafredo, 2003).Vaz (1991) enumera um conjunto de dez questões, asquais considera que devem ser colocadas antes daexecução de um projecto, com vista à sua avaliaçãosocial, enquanto integrantes de um processo dedesenvolvimento. Dessas, seleccionámos as maisrelevantes para o caso em análise:

• Que objectivos sociais específicos visa atingir oprojecto?

• Quais os grupos sociais afectados pelo projectovoluntariamente ou não e em que grau?

• Quais são os interesses e os sistemas de valoresdos grupos identificados e quais serão as suasatitudes prováveis em torno do projecto?

• Que medidas interessam tomar para estimular aparticipação da população?

• Que tipos de conflitos são susceptíveis de seremprovocados pelas alterações advindas do pro-jecto?

• Como potenciar as vantagens sociais possíveispela aplicação do projecto (recurso a programasde formação, melhoria das comunicações ououtras)?

• O que extrair da análise posterior à aplicação doprojecto no que respeita aos impactos provocados?

Os projectos integrados num processo de desenvolvi-mento devem, segundo Cristóvão et al. (1997), pro-porcionar as seguintes oportunidades:

• Análise integrada das necessidades da populaçãocom novas perspectivas de acção;

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Planeamento de serviços de saúde

• Concentração de esforços e melhor aproveita-mento dos recursos, fomentando sinergias;

• Promoção da capacidade, motivações e autono-mia da comunidade.

Esta experiência pode ser particularmente rica aonível da base do sistema de saúde — o centro desaúde — que, possuindo como órgão consultivo umacomissão que tem representantes da autarquia e deoutras instituições locais, reúne condições para ela-borar projectos que resultem das necessidades e pro-blemas da população, identificados em conjunto e àpartida com condições de exequibilidade, com menordispêndio de recursos e de tempo, numa época emque a capacidade de rapidez na resposta é um factordiscricionário entre o desenvolvimento e o nãodesenvolvimento.A participação, desde há muito referida nos manuaisde planeamento, mas nem sempre tão abrangentecomo seria necessário, surge hoje em dia como umrequisito fundamental em todas as fases do planea-mento, na medida em que é através da participaçãoque a população pode identificar os seus problemas ea partir daí a afectação dos recursos. Criam-se, assim,condições para um desenvolvimento participativo ehumano, com reforço da competência, informação,educação, formação e cidadania, em que os recursoshumanos se assumem como o principal componente.«O principal factor de competitividade e de excelên-cia é o factor humano e organizacional» (Godet,1993).Sendo os recursos humanos reconhecidos na socie-dade actual como o capital mais importante no seiode uma organização, devem as instituições de saúdeestar dotadas de profissionais qualificados, o quepassa por um bom nível de informação, adequada àsfunções, formação contínua e empowerment. Pareceestar aqui uma chave para o sucesso das instituiçõesde saúde, que devem estar voltadas para o meioenvolvente, atentas às necessidades da população, deforma a assegurarem uma resposta de qualidade,através de uma actuação integrada. A integração dasacções entre os diversos sectores é um dado a tercomo indispensável, através da elaboração de projec-tos estruturantes que possam ter impacto e caracterís-ticas de sustentabilidade. A actuação integrada sópode ser desenvolvida em parceria, onde se envolvamnão só os serviços estatais, mas outros da sociedadecivil, todos contribuindo para o desenvolvimentohumano, do qual a saúde faz parte integrante.Se bem que o nível de saúde seja satisfatório nonosso país e tenha vindo a evoluir positivamente, asnovas formas de doença emergentes ou os novos ris-cos, derivados de comportamentos e de estilos de vidadiferentes, carecem de especial atenção. A degrada-

ção ambiental, a exclusão social, as diferenças deoportunidade e de satisfação das necessidades entresexos e grupos sociais ou entre regiões e intra--regiões, o isolamento físico e social e suas conse-quências, são alguns exemplos que podem ser apon-tados como justificativos da articulação integrada dosvários actores sociais. Esta articulação integrada devebasear-se num planeamento feito com as pessoas edirigido às pessoas, para satisfação de necessidades,algumas das quais assumem características diferentese carecem de novas respostas. Como exemplo, pode-mos referir os serviços de proximidade, tais como oapoio domiciliário, ou outras acções, nomeadamenteno campo da promoção da saúde, actividades quedevem ser desenvolvidas em parceria efectiva entre osector da saúde e demais parceiros locais.A programação com vista à distribuição de recursosé uma etapa importante do processo de planeamento,a qual deve basear-se nas necessidades, cujo exercí-cio não passa só por um exercício técnico, mas tam-bém pela dimensão valorativa. Para Pampalon(1996), o conceito de necessidade pode ser entendidocomo a disparidade ou diferença entre um estadoóptimo, definido de forma normativa, e a situaçãoreal ou actual. Ainda para este autor, a equidade, quedeve corresponder a uma distribuição de recursos, deacordo com as características sociais e de saúde dapopulação, só será conseguida quando a populaçãode cada região beneficiar de recursos que correspon-dam às suas características sociais e de saúde ounecessidades. A alocação de recursos com base nasnecessidades, e que vise corrigir assimetrias, é queterá enquadramento num processo de desenvolvi-mento.As estruturas regionais ou locais, nomeadamente asautarquias, assumem, no que respeita à alocação derecursos, uma crescente importância, enquanto par-ceiros da saúde que actuam num território específico,do qual bem conhecem as potencialidades e riscos ouassimetrias existentes, bem como as expectativas doscidadãos, carecendo, no entanto, para um desem-penho mais eficaz, de uma mais clara definição decompetências, o que passa pela descentralizaçãode poderes.

5. Considerações finais

Os problemas com que se debate a sociedade actual,e concretamente o sector da saúde, são de naturezade tal forma diversificada e complexa que a sua reso-lução carece de novos instrumentos, adequados aresponderem a necessidades nem sempre expressas,mas que devem ser consideradas através de análisesestratégicas e prospectivas.

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Planeamento de serviços de saúde

A incidência de novas doenças, como a SIDA ou atoxicodependência, ou de factores de risco, como ostress ou o isolamento a que estão muitas vezes sujei-tos os mais idosos, implica a valorização do diálogoe concertação entre os diversos actores. Tambémsituações como a degradação ambiental, a exclusãosocial, as desigualdades entre grupos sociais, génerosou territórios, carecem da intervenção da saúde, emarticulação com os restantes sectores.O planeamento deve desenvolver-se de forma perfei-tamente contextualizada, em que o planeador deveestar consciente dos jogos de poder e de interesses aonível do ambiente interno e externo do sistema desaúde para poder negociar e encontrar as melhoressoluções face aos cenários esboçados.O planeamento feito na saúde e para a saúde, mesmorecorrendo a novas metodologias – planeamentoestratégico —, jamais será um instrumento suficientepara uma mudança qualitativa ao nível de um deter-minado território. Importa definir, em parceria, quaisos projectos prioritários com características de sus-tentabilidade que promovam a equidade e sejamdesenvolvidos de forma participada. Esta participa-ção não deve ser vista só ao nível dos actores sociaisrepresentados nas várias estruturas, quer de gestão,quer ao nível dos órgãos consultivos (comissões con-sultivas dos centros de saúde ou hospitais), mas tam-bém ao nível dos parceiros, com vista a uma concer-tação de base territorial em que cada actor tenha oseu papel definido. Podemos agrupar os parceiros emtrês blocos: Estado, representado por outros sectores,como segurança social e emprego, a educação ouautarquias locais; mercado, representado pelo sectorprivado da saúde; sociedade civil, representada pelasONG (organizações não governamentais) ou outrasassociações e IPSS (instituições privadas de solida-riedade social), nomeadamente misericórdias. Sónestas condições o planeamento pode contribuir paraum desenvolvimento participativo e integrado.A resposta a estes novos desafios não pode serencontrada nas estruturas actualmente existentes aonível das regiões de saúde, estruturas desconcentra-das. Todo o processo carece de estruturas descentra-lizadas, que ao nível do território podem compreen-der as soluções alternativas e decidir de forma rápida,com base nas orientações de um plano nacional, mascomplementadas com as propostas de cada região, asquais devem contemplar as actividades dos váriossectores de forma integrada. Trata-se, afinal, de umanova concepção organizacional, as organizaçõesaprendentes, que compreendem e respondem anecessidades latentes.Os recursos endógenos de uma determinada regiãode saúde devem ser um dos vectores a atribuir parti-cular relevo, nomeadamente os recursos humanos.

Por isso, qualquer estratégia deve integrar o processoformativo, que deve proporcionar o desenvolvimentodas capacidades dos vários actores.O planeamento tende a assumir, na era da imprevisi-bilidade, um papel-chave com vista ao desenvolvi-mento de um território, desde que enquadrado nocontexto específico, onde há sempre interesses e rela-ções de poder que são mutáveis, obrigando a umaflexibilidade de negociação por parte do planeador, oqual não está também isento de integrar no processoos seus próprios interesses e aqueles que lhe sãoimpostos pelas normas e relações de poder inerentesao contexto em que opera.

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Summary

PLANNING IN A CONTEXT OF IMPREVISIBILITY:SOME CONSIDERATIONS RELATED TO THE HEALTHCARE SECTOR

Traditional planning forecasts based on parameter quantifica-tion must be substituted by a prospective opinion that uses thescenario method to examine parameters of quality. Amongother characteristics, the latter describes the development ofthe system under study by taking into account the most likelyevolution of the key variables by playing with hypotheticalbehaviours of the actors.Planning must weigh the context in which one is acting, themultiple interests and the relationships of power, influence orconflict that may exist between the several social actors. At thehealth care system level, the planning process must be basedon a decentralised structure that appraises suitable solutions foreach territory and the acceptability, from a market viewpoint,of different approaches; there must be a form of give and take,within a context of change, so as to make it easier to attainone’s objectives and increase the actors’ ability to learn andinnovate.One must stress the notion of the close relationship that bindshealth care centres, hospitals and continuous care, both at thepublic sector level and at the community level, as these healthcare providers, in the space in which they act, have a more all-embracing approach to health, where wellbeing is directlyassociated to an individual’s quality of life and where, in ad-dition to traditional aspects, they also examine the relational,cultural, environmental and spiritual dimensions of the issues.Accordingly, health care must be seen as a vector of develop-ment, by which one presumes that it is an integral part of astrategy for multisectorial intervention, with projects that arelikely to be sustainable.Within a development process, projects under considerationmust produce an integrated analysis of the needs of the popu-lation, new courses of action, congregate efforts and make bestuse of the resources, inspire synergies and promote the com-munity’s proficiency, motivation and independence. A qualityresponse that meets the needs also presumes that humanresources are the most important capital within the heart of anorganization; the staff must possess a goodly amount of infor-mation that is appropriate to their position, engage in continu-ous learning and be empowered.Integrated action can only be successful if it is a partnershipinvolving both public services and others provided by the civilsociety, particularly if it intends to contribute to human devel-opment of which health is an integral part.

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Planeamento de serviços de saúde

Anexo 1Modelo de Backoff

Metáfora do campo de tensão

Situação corrente

• Quem somos?• Quem são os utentes?• O que fazemos?• Como somos vistos por

aqueles que são impor-tante para nós?

• Que personalidade temosactualmente como organi-zação?

Forças

Fraquezas

Oportunidades++++++++++

Ameaças

Situações futuras

• O que faremos?• Quais deverão ser os nos-

sos utentes?• O que devemos fazer?• Como queremos ser vis-

tos?• Qual a imagem que pen-

samos ser importante paranós?

• Que personalidade tere-mos?

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Planeamento de serviços de saúde

Anexo 2Modelo de Bryson

Concorrentes/parceirosUtentes

Ambiente externoEnvolvente-cenários

OportunidadesAmeaças

Mandatos

Problemas estratégicos Descriçãoda organização

Missões/valores

ForçasFraquezas internas

Ambiente interno

Formulaçãoestratégica

Implementação

Forças/tendências

• Políticas• Económicas• Sociais• Tecnológicas

Acordo inicial(plano

para planear)

Estratégias

• Alternativas práticas• Barreiras• Propostas de fundo• Acções• Programa de trabalho

Recursos

• Humanos• Económicos• Informação• Competência

Estratégia actual

• Global• Funcional ou• departamental

Performance

• Resultados• História

Acç

ões

Res

ulta

dos