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P E R D I D O S N A S E R R A Aventura Texto de: JULIO CARRARA Escrita em 2004

20. perdidos na serra

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Aventura

Texto de:

JULIO CARRARA

Escrita em 2004

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PERSONAGENS:

ALAN

MARÍLIA

GABRIEL

LILIANE

FRED

ANA TELMA

VELHA

CENÁRIO: O prólogo se passa na Serra do Mar. Nas cenas seguintes, na Mata

Atlântica. Muitas árvores. O ambiente é sombrio e misterioso.

NOTA: Perdidos na Serra é a sequência de Conto de Verão. Para compreender

melhor o universo, sugiro a leitura das duas obras.

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PRÓLOGO

(Ouve-se no escuro ruídos de porcos. Luz sobe em resistência. Alan, Marília, Liliane,

Gabriel e Fred estão indecisos se entram ou não no veículo.)

VOZ DO MOTORISTA

Como é que é? Vão ou não aceitar a carona?

ALAN

E agora, galera?

MARÍLIA

Nós temos outra saída?

ALAN

Acho que não.

LILIANE

Ai, eu não tenho estômago pra ir com esses porcos nojentos.

FRED

O meu estômago tá revirando com esse cheiro horrível de lavagem.

Acho que vou vomitar...

MARÍLIA

Ah gente, deixa de frescura.

GABRIEL

Mas a gente não precisa ir com eles. É só rebocar o carro no caminhão e

a gente vai dentro dele, só curtindo...

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ALAN

Boa idéia. Vamos vazar...

(Enquanto discutem, Ana Telma aparece e entra no porta-malas do Fiat, sem ninguém

perceber. Alan pega uma corda e com a ajuda de Gabriel, rebocam o carro no caminhão,

enquanto os outros entram no veículo. O caminhão segue viagem, enquanto a galera

canta uma música qualquer. O clima é agradável. De repente, Gabriel para de cantar e

fica atento nas manobras do caminhoneiro.)

GABRIEL

Gente, esse cara tá correndo muito.

(Buzinas. O caminhoneiro tenta frear, em vão. Uma forte neblina cega os jovens.)

FRED

(Gritando.) Ai, vai bater. (Começa a rezar.) Ave Maria, cheia de graça...

(O caminhoneiro perde a direção e bate. Um forte estrondo é ouvido no áudio,

enquanto a corda que rebocava o carro arrebenta e o veículo cai na ribanceira. Todos

gritam apavorados. A única visão que o público tem é da forte neblina que encobre todo

o espaço cênico. Black-out.)

CENA 1

(Luz sobe em resistência revelando a Mata Atlântica. Alan, Marília, Fred, Gabriel e

Liliane estão caídos no chão, gemendo. Se recompõe aos poucos. Gabriel se levanta e

observa os outros.)

GABRIEL

Ai... Puta pancada... Tá tudo bem com vocês, galera? Liliane?

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LILIANE

(Suspirando.) Tô bem, só um pouco tonta.

GABRIEL

Alan, Marília, Fred?

ALAN

Eu tô legal...

MARÍLIA

Eu também.

GABRIEL

(Caminha até Fred.) Fred? (O rapaz não se move.) Fred? (Pausa.) O Fred

morreu!

(Todos se levantam, sacodem a poeira, tiram as folhas secas do corpo e caminham até

ele, apavorados.)

ALAN

(Coloca a mão sobre o coração do rapaz, em seguida em sua boca para ver se ele

respira.) Ele não morreu, não. Só desmaiou... (Tenta reanimá-lo.) Fred! Fred!

FRED

(Em transe.) ...rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte,

amém... (Abre os olhos e sai do transe.) Que bom que vocês me acompanharam.

Eu achei que fosse morrer sozinho.

GABRIEL

Cala a boca, idiota.

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FRED

Eu sempre achei que o céu fosse todo branco e não verde, cheio de

árvores... Aqui não é o purgatório, é? Não tenho a mínima idéia de como ele

seja. Eu não devia ter pulado essa parte quando li A Divina Comédia pra escola.

GABRIEL

Você não morreu idiota. Isso aqui é a Serra do Mar, não o purgatório,

besta...

FRED

(Levanta-se e fica feliz.) Eu não morri... eu não morri... (Pula de alegria.) Eu

tô vivo... eu tô vivo... Todos nós estamos vivos...

LILIANE

E perdidos.

MARÍLIA

Eu tô com medo.

ALAN

Fica calma. A gente só precisa bolar um jeito de sair daqui o mais rápido

possível...

GABRIEL

Você conhece essa trilha?

ALAN

Não. (Caminha um pouco.) E sair daqui não vai ser nada fácil.

MARÍLIA

(Chorando.) Eu quero sair daqui... Eu quero minha casa.

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ALAN

(Grita ao ver o Fiat destroçado.) Não... Não pode ser...

LILIANE

O que foi?

ALAN

Meu carro virou sanfona.

MARÍLIA

Demorou. Foi tarde! Esse lixo só trouxe azar pra gente.

GABRIEL

Não fique triste, cara. Pense que a gente poderia estar dentro dele,

presos nas ferragens...

LILIANE

E o caminhão de porcos?

ALAN

Nem sinal dele.

LILIANE

E agora, o que a gente faz?

GABRIEL

Acho melhor a gente armar as barracas. Vai que apareça algum bicho...

Melhor prevenir do que virar jantar de alguma fera.

(Pegam as barracas e começam a montá-las. Enquanto realizam essa tarefa, ouve-se um

ruído estranho. Parece um animal ferido. Pausa tensa.)

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MARÍLIA

Vocês ouviram?

(Novo ruído.)

GABRIEL

Acho que é algum bicho...

LILIANE

Parece estar machucado.

(Fred se aproxima e vê algo no chão coberto por folhas. Muito curioso, tira as folhas

que cobrem o suposto animal.)

FRED

(Aos prantos.) Nããããããooooo!

TODOS

O que foi?

(Percebe-se que o suposto bicho é Ana Telma.)

FRED

Eu devo ter mijado na cruz... O que fiz para merecer isso?

ANA TELMA

(Gemendo.) Ai, benzinho. Acho que torci meu pé. Me ajuda aqui...

(Fred fica sem ação.)

GABRIEL

Vai Fred, seja cavalheiro com sua mulher...

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FRED

Vão pro inferno... Eu só vou ajudar ela porque não gosto de ver

ninguém sofrendo... Eu estaria sendo desumano com ela.

LILIANE

Ah, Fred, assume logo, vai. Vocês formam um casal bem bonito.

GABRIEL

(Cochichando.) Eu já vi gente feia, mas igual à ela, nunca.

ALAN

Ela parece ter nascido ao avesso, coitada!

LILIANE

Mas pro Fred tá muito bom...

FRED

(Para Ana Telma.) Você tá bem?

ANA TELMA

Acho que sim. Só de ter você do meu lado já me sinto bem... Me abraça?

(Fred resiste. Os outros começam a zoar com ele, exceto Marília.)

TODOS (MENOS MARÍLIA)

(Batendo palmas.) Abraça, abraça, abraça...

FRED

(Para eles.) Eu odeio vocês.

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GABRIEL

Vai Fred, não precisa ficar com vergonha, chega junto. Você não vai

fazer uma desfeita dessas...

FRED

Só porque você tá com essa gostosona da Liliane acha que pode tirar

uma da minha cara?

GABRIEL

Mas essa aí também é gostosona. O que estraga é a cara. É só botar uma

máscara nela que resolve o problema.

LILIANE

O que importa é o conteúdo, não a forma.

MARÍLIA

Olha quem fala em conteúdo. Logo você Liliane, que não tem nenhum...

LILIANE

O que você quer dizer com isso?

MARÍLIA

Isso mesmo que você ouviu.

LILIANE

Olha aqui, garota, eu não vou permitir que você fique me tirando... Quer

partir pra briga?

MARÍLIA

(Enfrenta-a.) É pra já!

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GABRIEL

(Separando as duas.) Oh, gente... Paz...

LILIANE

Foi ela quem começou. Eu estava quietinha no meu canto.

MARÍLIA

Mas tava caçoando da infeliz...

FRED

(Berrando.) Chega!!!!! Eu tô cansado de vocês... Não sei por que fiz a

cagada de vir pra essa droga de viagem. Eu só me fodi o tempo inteiro. Perdi o

casbaço com esse ser de outro planeta que agora não para de me perseguir...

Pode existir alguém mais desgraçado do que eu? Eu quero ir embora. (Sai

correndo.) Nunca mais quero ver nenhum de vocês outra vez...

OS DOIS

Fred, volta aqui. (Saem.)

ANA TELMA

Tchutchuco... Não me deixa.

(Gabriel e Alan vão atrás dele. Marília, Liliane e Ana Telma em cena. Marília fica

indiferente com Liliane.)

LILIANE

(Tenta uma reconciliação.) Marília...

MARÍLIA

Não vem, não, Liliane. Não quero saber de conversa.

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LILIANE

Foi mal. Desculpa.

MARÍLIA

Não é pra mim que você tem que pedir desculpa. É pra ela! (Para Ana

Telma.) Olha, peço desculpas em nome do grupo. Não sei como você pode

aguentar tanta gozação e ficar calada. Por quê?

ANA TELMA

Eu já me acostumei.

MARÍLIA

E sua família?

ANA TELMA

Minha mãe me deixou logo que eu nasci. Meu pai era um estivador do

porto de Santos, e na primeira oportunidade entrou clandestinamente num

navio e foi sei lá pra onde, me deixando sozinha lá no porto.... Eu só queria um

pouco de amor, entendem?...Poder amar alguém e ser correspondida... E

quando conheci meu Tchutchuco, achei que ele seria o homem da minha vida.

Mas ele vive fugindo de mim! Sabe o que é pior? Eu nunca vou fazer parte de

nenhuma turma...

MARÍLIA

Não fique assim... Quero que saiba que eu serei sua amiga, e não vou me

importar com que os outros pensem ou deixem de pensar a seu respeito.

LILIANE

(Emocionada.) Desculpa, tá?

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MARÍLIA

(Impaciente.) Não vem com essa, Liliane. Você arrebenta com a menina e

acha que pedir desculpa resolve?

LILIANE

Eu não fiz por mal. Foi só uma brincadeira.

MARÍLIA

Brincadeira de mau gosto...

LILIANE

Por que você tá implicando só comigo. Todo mundo tava zoando com

ela. Inclusive o Alan.

MARÍLIA

Porque são uns idiotas.

LILIANE

Eu não devia ter vindo com vocês. Eu e o Gabriel poderíamos ter

pegado um ônibus em São Vicente. E agora estamos aqui, perdidos nessa

Serra, onde não há uma alma pra ajudar a gente e eu vou ter que aguentar

desaforo? Maldita a hora eu que fiz as pazes com você...

MARÍLIA

Faço as minhas as suas palavras...

ANA TELMA

(Acalma os ânimos.) Ei, sem estresse... Vamos parar de brigar? Quem

deveria estar chateada era eu, e, no entanto, tô aqui de boa. (Silêncio mortal.)

Marília, me dá o seu dedinho. (Marília dá o dedo mínimo para ela.) Liliane, me dá

o seu. (Liliane faz o mesmo. Ana Telma junta os dedos mínimos das duas.) Agora

vocês vão ficar de bem... As crianças não fazem assim? Brigam, brigam e cinco

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minutos depois não fazem as pazes? (Pausa.) De agora em diante não quero

ver vocês discutindo, até porque não sabemos até quando vamos ficar aqui.

Precisamos buscar uma solução pra sairmos dessa enrascada. Combinado?

(As três se olham por um tempo.)

MARÍLIA e LILIANE

Combinado. (Abraçam-se.)

(Ana Telma sorri mostrando a banguela.)

MARÍLIA

Olha, vamos fazer de tudo para que o Fred se apaixone por você.

ANA TELMA

(Preocupada.) Ai, ai, ai. Onde será que ele se meteu?

LILIANE

Pode ficar tranquila. O Alan e o Gabriel seguiram ele.

MARÍLIA

Espero que não tenham se perdido.

(Nesse momento aparece Gabriel e Alan segurando Fred, que se esperneia.)

FRED

Vocês não podem me obrigar a fazer o que eu não quero. Me solte, eu

quero ir embora.

ALAN

Acorda, cara. A gente tá sem saída...

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FRED

Me solta... Me solta... Estúpidos.

GABRIEL

(Para Alan.) Deixa comigo. (Segura Fred pelos ombros com as duas mãos e

chacoalha-o com força, como se exorcizasse um demônio. Fala brandindo, olhando para

seus olhos.) Fica quieto, fica quieto... Cale a boca, cala a boca... Obedece,

obedece... (Em seguida dá três tapas na cara do rapaz, que fica parado e calmo.) Tá

mais calmo?

FRED

(Tranquilíssimo.) Agora tô...

ANA TELMA

(Abraça o amado.) Meu amor, que bom que você voltou... São e salvo...

(Fred se desvencilha dela.)

ALAN

Gente, precisamos pensar numa forma de sair daqui. Já tá anoitecendo,

o frio tá aumentando e não temos água nem comida.

GABRIEL

Mas e o frango com a farofa?

FRED

Já era.

GABRIEL

Mas não sobrou nem uma coxinha, nem uma asinha?

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FRED

Nada...

GABRIEL

Danou-se. Tamo fritos

ALAN

Não tamo, não. Agora precisamos fazer o teste de sobrevivência.

Amanhã, logo cedo vamos explorar a Mata e procurar comida. Deve ter várias

árvores frutíferas por aqui. E também vamos caçar algum animal pra gente se

alimentar...

FRED

Só espero não ter que comer lesma nem olho de cabra.

TODOS

Cala a boca, Fred!

MARÍLIA

Precisamos encontrar alguma cachoeira... Sem água não dá pra ficar...

Eu tô louca por um banho.

ALAN

Pois é. Mas vamos nos recolher, porque amanhã vamos ter um longo dia

pela frente.

FRED

E como vamos dormir se só tem duas barracas?

MARÍLIA

Dorme três em cada barraca... O Fred, a Tchutchuca e o Gabriel numa e

eu, o Alan e a Liliane em outra.

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FRED

Eu dormir com ela? (Aponta Ana Telma.) Nunca! Prefiro ficar no porta-

malas do carro que ainda tá inteiro... É mais seguro. Quero preservar o meu

pintinho... Vamos fazer como em São Vicente: o Alan e a Marília numa

barraca, o Gabriel e a Liliane em outra e eu substituo o saco de dormir pelo

porta-malas do carro.

ANA TELMA

Mas e eu?

FRED

Você fica em pé com os braços abertos como um espantalho, que é o que

você é....

MARÍLIA

(Repreende Fred.) Fred?

FRED

É isso mesmo... (Vai em direção ao carro.) Bem, vou pros meus aposentos.

Boa noite. (Sai.)

MARÍLIA

Como é mesmo seu nome?

ANA TELMA

Ana Telma.

MARÍLIA

Vem, Ana Telma, você dorme na barraca com a gente.

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ALAN

(Cochicha para Marília.) Não faz isso, amor. Eu não sei o que eu faço se

acordo de noite e dou de cara com esse bicho dentro da barraca.

MARÍLIA

Cala a boca...

ANA TELMA

Eu não quero atrapalhar vocês...

MARÍLIA

Não vai atrapalhar em nada...

ALAN

(Tenta se safar.) Eu tenho chulé, ronco e peido pra caramba....

ANA TELMA

Não tem problema... Eu também...

GABRIEL

(Zomba o amigo.) Ih, fodeu, Alan! Vem Liliane!

(Gabriel e Liliane entram na barraca e Marília, Ana Telma e Alan caminham para a

outra. Alan é o último a entrar. Gabriel, na abertura de sua barraca, satiriza o amigo.)

GABRIEL

Cuidado, Alan. Essa baranga pode fazer com você o que fez com o Fred

lá em São Vicente... É melhor colocar o cinto de castidade... Dorme bem! E

cuidado com o bicho!

(Entra na barraca gargalhando. Alan, desolado, entra na barraca. A noite cai. Black-

out.)

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CENA 2

(Luz volta devagar. Amanhece. Ouvem-se ruídos de pássaros. Ana Telma sai da

barraca, faz uns alongamentos nada convencionais e caminha até o porta-malas do

carro com uma grande dose de sensualidade. Abre o porta-malas. Fred está chupando o

dedo e tudo leva a crer que está tendo um sonho erótico. A garota, delicadamente, o

acorda.)

ANA TELMA

Bom dia, Tchutchuco.

FRED

(Sonâmbulo, abraça Ana Telma, que deita com ele.) Vem cá, meu amor. Me

beija. Quero sentir esses seus lábios carnudos e esse seu hálito de cereja. (Ana

Telma beija Fred, que acorda e ao olhar a garota, tem um sobressalto.) O que é isso?

Sai daqui, sai... (Sai do porta-malas.)

ANA TELMA

Foi você quem me puxou, delícia... Eu só fiz o que você pediu... E como

você beija bem! Meus lábios estão formigando... Tô toda arrepiada. Agora vai

ter que dar conta do recado.

FRED

(Tem uma ideia.) Eu... eu jogo em outro time.

ANA TELMA

O quê?

FRED

Eu gosto do que você gosta. Dou ré no quiabo.

ANA TELMA

Como?

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FRED

Eu sou gay.

ANA TELMA

Conta outra. Ontem você não era.

FRED

Mas hoje sou. Hoje eu resolver sair do armário. Meu negócio é bofe,

racha uó. E se você tentar qualquer coisa comigo de novo eu não respondo por

mim. Eu tiro meu sapato e lhe bato com o salto na testa. (Pega uma flor do chão e

coloca atrás da orelha e solta a franga.) Eu sou gay...O mundo é gay... (Grita.) Ai,

eu tô looooooouca!

ANA TELMA

Não me decepciona, amor meu. Não faz isso comigo.

FRED

E vamos deixar de conversa e acordar os outros. Temos que sair atrás de

comida e de água, Meu estômago tá nas costas. E se você tentar qualquer coisa

comigo... (Põe o dedo indicador na boca e em seguida toca na testa da garota.) Eu te

afogo!

(Ana Telma fica sem reação. Fred tira um apito da boca e começa a apitá-lo.)

FRED

Vamos acordar! Ao trabalho, pessoal!

(Alan, Marília, Gabriel e Liliane saem das barracas, mal-humorados.)

GABRIEL

Pô Fred. Você é um mala!

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FRED

Como vai, meu gatão? (Beija Gabriel e caminha para Alan, anasalando a voz.)

E aí bofe, dormiu bem? Ai, eu fico louca quando vejo esses seus olhos e esses

seus cachinhos. É super fashion... (Beija Alan.)

ALAN

O que é isso, Fred? Virou boiola?

FRED

Pois é. Saí do armário... Fiquei louca!!!

(Ana Telma chora num canto.)

ANA TELMA

Nada dá certo pra mim...

GABRIEL

(Sacando.) Ah, saquei... (Ri.) Boa jogada, Fred.

ALAN

Bem gente, ao trabalho.

LILIANE

Vamos formar dois grupos de três e vasculhar a mata.

ALAN

Acho perigoso dividir o grupo. A gente não sabe o que pode encontrar

pela frente. Vamos ficar todos juntos. É mais seguro.

MARÍLIA

Eu também acho.

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GABRIEL

Vou pegar o facão.

MARÍLIA

Aproveita e pega também as garrafas plásticas pra gente encher de

água. (Gabriel sai.)

FRED

(Tira um estilingue do bolso.) Eu vou armado com esse estilingue.

LILIANE

Por quê?

FRED

Pra matar algum animal selvagem que queira nos atacar.

TODOS

Cala a boca, Fred.

(Gabriel volta com o facão e diversas garrafas de 2 litros de refrigerantes, vazias.)

GABRIEL

Pronto... tá tudo aqui.

ALAN

(Pega uma bússola.) Essa bússola nos servirá de guia. Bem, ao trabalho!!!

(Saem.)

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CENA 3

(O palco fica vazio por alguns instantes. Música. Entra em cena uma velha misteriosa.

Seu rosto é coberto por rugas, longos cabelos desgrenhados brancos. Parece que esse

cabelo nunca viu uma tesoura. É uma figura quase pré-histórica. Seu andar se

assemelha com os dos macacos. A velha vasculha os objetos de cena, sem emitir

nenhum som. Não encontra nada do que procura e vai se sentar em posição de “iogue”,

num canto afastado do palco, lembrando a postura de um dos macacos orientais: o que

não fala. Permanece assim por muito tempo.)

CENA 4

(Os jovens aparecem todos sujos e suados, carregando nas mãos as vasilhas de

refrigerantes cheias de água, cachos de bananas e algumas achas de lenha. Alan traz

nas mãos algum animal morto embrulhado numa folha de bananeira. Colocam tudo no

centro. Alan acende uma fogueirinha e põe o animal para assar.)

MARÍLIA

Ufa!

FRED

(Pega duas bananas, descasca e come uma seguida da outra.) Essa banana tá

deliciosa. Acho que vou comer o cacho inteiro.

ALAN

Nem pensar. Depois vai ficar peidando aí... A gente vai dividir tudo em

partes iguais. Todo mundo vai comer a mesma quantidade que o outro.

FRED

Tá certo. Fico aliviado de saber que não vou precisar comer lesma nem

olho de cabra.

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ANA TELMA

(Começa a sentir enjoo.) Ai... Eu tô enjoada.

LILIANE

É por causa da fome. Aguente um pouco...

ANA TELMA

Tá tudo girando... Acho que vou desmaiar. (Desmaia.)

ALAN

(Corre socorrer a menina.) Ana Telma! Ana Telma!

ANA TELMA

(recobra os sentidos) Ai...

MARÍLIA

Tá melhor? Come uma banana... (Ana Telma come a banana)

ANA TELMA

Tô. Obrigada.

MARÍLIA

Você tá tremendo...

LILIANE

Ela tá muito fraca!

FRED

(Sem se importar.) Ai, deixa essa amapô trash pra lá.

ALAN

Pô Fred seja mais humano...

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ANA TELMA

Deixa Alan. Não quero ver ninguém mais brigando por mim. Eu

preciso descansar um pouco. Posso ficar lá na sua barraca, Marília?

MARÍLIA

Claro. Vem que eu te ajudo! (Leva Ana Telma até a barraca e volta para o

grupo.) Tô preocupada com ela. Ela tá muito fraca!

ALAN

Vem comer, Marília.

(Alan divide a caça em partes iguais e entrega um pedaço a cada um e separa o de Ana

Telma. Comem.)

GABRIEL

Mas você hein, Fred?

FRED

O que é que tem?

GABRIEL

Ficar fingindo que é boiola só pra escapar dela.

FRED

E eu tive escolha? Cara, essa menina é tarada. Se der moleza ela ataca.

Por pouco não fui violentado por ela de novo. Ainda bem que acordei a tempo

de escapar.

ALAN

Fred, numa boa, vocês usaram camisinha?

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FRED

E de que jeito? Ela pulou em cima de mim feito louca. Achei que fosse

quebrar o meu pinto. Ainda bem que tive ejaculação precoce. Foi uma transa

de coelho... E eu espero que ela não tenha nenhuma doença venérea. Só faltava

eu pegar verruga, igual a que teve o meu amigo Gustavo.

MARÍLIA

Esses enjoos dela pode ser um aviso...

FRED

Como?

GABRIEL

Já parou pra pensar que você possa ter engravidado a Ana Telma, Fred?

(Fred engasga, tosse e cospe um pedaço de carne.)

FRED

Deus não seria tão cruel comigo.

ALAN

É uma hipótese.

FRED

Não, não, não!!!

(Fred começa a correr desesperado pela mata. Pega uma pedra e atira longe. A pedra

atinge os pés da velha que grita de dor.)

VELHA

AAAAAAAAAAAAAAAAAiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!

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(Ela tenta tapar a boca, mas a dor é mais intensa. O grito ecoa pela mata.)

MARÍLIA

O que foi isso?

(Todos caminham na direção do barulho e se espantam ao ver a velha.)

GABRIEL

Meu Deus. Não bastava uma. Agora temos duas criaturas bizarras no

mesmo ambiente?

VELHA

AAAAAAAAAAAAAAiiiiiiiiiiiii!!!! (Revoltada, para Fred.) Desgraçado,

você me fez quebrar o meu voto de silêncio!

FRED

Como?

VELHA

Há mais de vinte anos eu tô calada, sem emitir nenhum som, nenhum

ruído e agora você me acerta essa pedra nos pés? AAAAAAAAiiiiiiiiiiiiiiii!

(Começa a se empolgar ao se ouvir). Eu estou falando, falando, falando... Há mais

de vinte anos eu mantive as palavras dentro de mim e agora sinto um desejo

louco de libertá-las. O mameluco melancólico meditava e a megera

megalocéfala macabra e maquiavélica mastigava mostarda na maloca

miasmática migalhas minguadas de moagem mitigavam míseras meninas

moleques magricelas mergulhavam no mucurro murmurando como uma

matinada de macacos três pratos de trigo para três tigres um tigre dois tigres

três tigres como quiabo cru como quiabo cru como quiabo cru como quiabo

cru o peito do pé do padre Pedro é preto quando eu estou aqui eu vivo esse

momento lindo olhando pra você e as mesmas emoções sentindo eu vi na tv

uma atriz fazendo amor ela olhava o ator como eu olho você com cara de

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quem está no céu é proibido fumar diz o aviso que eu li vai lacraia vai lacraia

tô mandando um beijinho pra filhinha e pra vovó só não posso esquecer da

minha éguinha pocotó pocotó pocotó pocotó pocotó quando a luz dos olhos

teus e a luz dos olhos meus resolvem se encontrar ai que bom que isso é meu

Deus que frio que me dá o encontro desse olhar entardeceu ai que vontade de

brincar de pega-pega de macaca de comer goiaba de trepar no muro se a ran

becucanie ninqüencos se a ran becucanie niqüencos mudos nascemos mudos

um dia estaremos mas nesse intervalo nos dedicamos a falar fala-se tanto que

sem nos darmos conta passamos a maior parte do tempo falando fala-se pelos

ouvidos e pelos cotovelos.

(Todos ficam boquiabertos e não suportando mais, berram em uníssono.)

TODOS

Cala a boca!

VELHA

Não. Vocês me fizeram quebrar o meu voto de silêncio, invadiram a

minha mata e agora querem que eu fique quieta? (Volta a falar

compulsivamente.) Boi touro rã macaco arara rinoceronte cachorro gato galinha

pato porco hipopótamo rato tava a velha em seu lugar veio uma mosca lhe

fazer mal a mosca na velha e a velha a fiar tava a mosca em seu lugar veio a

aranha lhe fazer mal a aranha na mosca a mosca na velha e a velha a fiar tava a

aranha em seu lugar veio um rato lhe fazer mal o rato na aranha a aranha na

mosca a mosca na velha e a velha a fiar... (Continua cantando, mais baixo.)

MARÍLIA

Pelo amor de Deus, Alan, amordace a boca dessa velha. Ela não vai

parar de falar pelos próximos 50 anos.

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ALAN

(Pega uma mordaça e põe na boca da velha que continua cantando “A velha a

fiar”.) É fala recolhida, ela precisa liberar.

LILIANE

Haja saco!

GABRIEL

E tudo por sua culpa, Fred.

FRED

Minha culpa? Agora eu sou o culpado de tudo? Não tenho culpa se esse

ser pré-histórico fez voto de silêncio... Eu tô preocupado comigo e com o meu

futuro... Deus, não me castigue. Oh, Pai, porque me abandonaste? Já sofri o

bastante. Poderei suportar mais ainda?

MARÍLIA

É demais pra minha cabeça.

(Ouve-se o ruído de um helicóptero sobrevoando a região. Os jovens olham para cima e

começam a acenar para o alto, berrando. O helicóptero desaparece, deixando os jovens

frustrados.)

LILIANE

Droga! Era bom demais pra ser verdade!

ALAN

Eles podem estar procurando a gente. Com certeza já souberam do

acidente. O que nos resta é esperar pelo resgate.

(Sentam-se todos, suspirando. A velha continua cantando, mesmo amordaçada. Eles

tapam os ouvidos e fecham os olhos.)

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CENA 5

(Todos continuam na mesma posição da cena anterior. A velha vai parando de cantar e

fica em silêncio. Está ofegante.)

LILIANE

Até que enfim! Não sei como os pulmões dela puderam suportar tanto!

ALAN

Será que ela pode nos mostrar a saída?

GABRIEL

É possível! Afinal ela vive aqui.

ALAN

Eu vou tirar a mordaça dela. (Faz o que diz. Todos caminham até ela.) Ei

senhora, poderia nos mostrar o caminho que leva à estrada?

VELHA

Poder eu posso. (Todos se alegram.) Mas da minha boca não ouvirão

nada! (Todos se entristecem.) Nem uma frase, nem uma palavra, nem uma

sílaba, nem uma letra!

FRED

Mas por quê?

VELHA

Porque você, seu idiota, me fez quebrar o meu juramento!

FRED

Eu? Eu ia adivinhar que você tava lá, camuflada, parecendo uma sapa

velha no tronco da árvore?

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MARÍLIA

Peraí... Que juramento?

VELHA

Eu prometi que nunca mais iria abrir a minha boca, que ia ficar

enterrada o resto da minha vida aqui nesta mata, por um crime que cometi.

GABRIEL

E que crime cometeu?

VELHA

O pior crime que alguém pode cometer... Eu sou um monstro... (Começa

a chorar.)

FRED

Ah, é mesmo.

TODOS

Cala a boca, Fred!

LILIANE

E que crime foi esse?

VELHA

(Soluçando.) Durante vinte e dois anos estou com a consciência pesada...

Nunca mais dormi desde aquele maldito dia... pareço estar com cem anos...

FRED

Duzentos no mínimo...

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MARÍLIA

Desabafe com a gente... Isso vai te fazer bem...

VELHA

Ela era pequena... tinha acabado de nascer... uma criança frágil... Minha

família não aceitava a minha gravidez, e eram contra o meu casamento. Meu

marido era pobre. Trabalhava como estivador no porto de Santos. E logo que a

criança nasceu eu abandonei a criança e fugi de tudo e de todos. Não podia

voltar pra casa, não tinha condições de criar o bebê. Deixei ela lá no hospital...

era uma menininha... Fugi de lá, deixando pra trás o meu passado, o meu

marido e minha filha. Eu queria morrer. Mas como isso não aconteceu, fiz um

juramento: eu iria ficar calada até o fim dos meus dias... Vim pra cá, fiz minha

cabaninha e vivi durante esses anos todos comendo raízes e frutas... (Altera-se.)

E no momento em que estava em êxtase, limpando meu espírito da podridão,

me vem esse desgraçado (Para Fred.) e me acerta uma pedra nos pés?

(Escutam silenciosamente o relato da velha. Marília e Liliane começam a juntar as

peças do quebra cabeças.)

MARÍLIA

Você está pensando o que eu estou pensando, Liliane?

LILIANE

Sim.

AS DUAS

(Num rompante.) A gente sabe onde tá sua filha!

MENINOS

O quê?

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VELHA

Como?

MARÍLIA

Sua filha tá bem próxima da senhora. O que ela nos contou bate com

tudo o que a senhora disse. Ela foi abandonada logo que nasceu e seu pai era

um estivador do porto de Santos. Tudo se encaixa perfeitamente.

ALAN

Mas de quem você está falando, Marília?

MARÍLIA

Da Ana Telma.

GABRIEL

(Surpreso.) A Ana Telma?

LILIANE

Olhando bem, vocês são bem parecidas...

VELHA

E onde ela tá?

MARÍLIA

Na barraca descansando... Ela não tava passando bem...

GABRIEL

Gravidez é assim mesmo.

VELHA

O quê? Minha filha, grávida?

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GABRIEL

Pois é.

FRED

Não pode ser... não pode ser...

LILIANE

É só uma suposição...

GABRIEL

E esse aqui é o pai da criança... Seu genro.

VELHA

(Para Fred.) Que Deus o abençoe. Eu quero que você seja muito feliz com

minha filha...

GABRIEL

Aí Fred. Já ganhou a bênção da sogrinha... agora é tarde...

FRED

Eu te odeio!

MARÍLIA

Eu vou chamar a Ana Telma... (Caminha até a barraca.) Eu tenho uma

surpresa pra você, Ana Telma.

ANA TELMA

(Saindo da barraca.) O que é?

MARÍLIA

Vem aqui...

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(Coloca Ana Telma de frente para a velha. Ambas se olham. Parecem estar na frente de

um espelho. São idênticas.)

VELHA

(Estendendo os braços.) Filhinha!!!

ANA TELMA

(Idem.) Mamãe!!!

(Música cinematográfica. As duas correm em câmera lenta, se abraçam afetuosamente

e choram.)

VELHA

Como eu sonhei com esse momento...

ANA TELMA

Eu também...

(Tempo.)

GABRIEL

(Quebra o gelo.) Tá bom... Isso aqui não é o Programa do Gugu!

ALAN

Bem, agora que resolvemos o problema da senhora, precisamos ir

embora. Agora a senhora vai nos mostrar a saída?

VELHA

Com uma condição...

ALAN

Qual?

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VELHA

(Para Fred.) Que eu vá morar com você e com minha filha.

FRED

Mas a gente nem tá junto... Era tudo brincadeira deles, dona. Esse lance

de gravidez não é verdade!

VELHA

É verdade, sim. Coração de mãe não se engana. Minha filha tá grávida,

sim.

FRED

(Apavorado, tenta sair.) Eu quero sair daqui...

VELHA

Vai sair daqui direto pra Igreja. Desonrou minha filha, agora vai assumir

o que fez... vai se casar com ela e vai criar o filho de vocês... Eu só mostro o

caminho de volta se você fizer isso.

FRED

Prefiro a morte. Ou melhor: vou também fazer um juramento. A partir

de agora farei um voto de silêncio e ficarei mudo e enclausurado nesta mata

até o fim dos meus dias.

(Fica na mesma posição da velha. A velha o agarra e coloca-o de frente com Ana

Telma.)

VELHA

Deixa de fita. Vou fazer o casamento simbólico de vocês (Age como

padre.) Ana Telma, aceita... (Não sabe o nome do rapaz e pede auxílio a Gabriel.)

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GABRIEL

Frederico...

FRED

Eu te mato!

VELHA

... Frederico como seu legítimo esposo?

ANA TELMA

(Sorri.) Aceito.

VELHA

Frederico, aceita Ana Telma como sua legítima esposa? (Silêncio mortal.

A velha repete a pergunta mais duas vezes.) Diz: aceito.

FRED

Não tem outra alternativa?

VELHA

Não...

FRED

(À contragosto) Tá. Fazer o que. Aceito, né?...

VELHA

Eu vos declaro marido e mulher... Podem se beijar. (Fred não se move.

Ana Telma fica movimentando a boca. A velha repete a pergunta mais duas vezes.)

Beija logo!

(Ambos se beijam. Fred tenta escapar, mas Ana Telma prolonga o beijo.)

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ALAN

Agora a senhora pode nos mostrar o caminho?

VELHA

Agora sim. Venham comigo...

(Os jovens desmontam as barracas, colocam as mochilas nas costas e seguem a velha.

Alan olha tristemente para os destroços do carro. Marília o abraça afetuosamente e o

beija apaixonadamente. Liliane e Gabriel fazem o mesmo. Ana Telma para não ficar por

baixo, força Fred a beijá-la. Seguem a velha até saírem de cena. Black-out.)

CENA 6

(Estrada. Todos aparecem, exceto a velha. Estão desanimados.)

MARÍLIA

Vai começar tudo outra vez pela terceira vez...

ALAN

Só que desta vez, não temos mais o carro...

GABRIEL

Pois é. Vamos ter que pedir mais uma carona!

FRED

Na ida fomos com caminhão de galinhas. Na tentativa de volta com um

caminhão de porcos e agora, vamos como?

(Relinchar de cavalo. entra a velha sentada numa charrete.)

VELHA

Foi tudo o que consegui...

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ALAN

Vamos nessa, galera!

(Os jovens sobem na charrete. O cavalo sai em disparada e o que se ouve além do seu

trotar, são os ruídos de latinhas presas por um fio na charrete, comuns em carros de

recém-casados. Black-out final.)

FIM

Agosto/2004