2009 Discursos Fotograficos - Estrategias de Producao de Sentidos

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    Estratgias de produo de sentidos:uma reflexo sobre a comicidadee a metfora na ilustrao fotogrfica

    Ana Carolina Lima Santos

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    Resumo:O presente trabalho tenta conceber os modos de produode sentidos da foto-ilustrao, dando especial ateno comicidadee metfora. As ideias de um efeito cmico e de um carter metafricodessas imagens so trabalhadas a fim de serem entendidas numadupla funo: de um lado, estabelecendo uma relao de cumplicidadecom o leitor e, de outro, servindo enquanto operador cognitivo.

    Assim, elas funcionam para um fim retrico, pois se configuramcomo procedimentos para a construo de uma mensagem que visa

    guiar o leitor na interpretao dos assuntos noticiados.

    Palavras-chave:foto-ilustrao; comicidade; metfora; jornalismode revista.

    Abstract: This paper attempts to design the forms through whichphoto-illustrations are able to make sense, with special attention tocomedy and metaphor. The ideas of a comic effect and a metaphoricalcharacter of these images are worked in order to understand them ina dual role: on one hand, establishing a relationship of complicitywith the reader and, on the other, serving as a cognitive operator.Thus, they work for a rhetorical purpose, because they are configuredas procedures for the construction of a message that is aimed at

    guiding the reader in interpreting the issues reported.

    Key-words: photo-illustration; comedy, metaphor; magazinejournalism.

    Ana Carolina Lima Santos *

    Estratgias de produo de sentidos:uma reflexo sobre a comicidade

    e a metfora na ilustrao fotogrficaStrategies for production of meaning:

    a reflection on the comic and metaphor in photographic illustration

    *Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da Universidade Federal

    de Minas Gerais. Mestre em Comunicao e Cultura Contemporneas pela Universidade Federalda Bahia. Graduada em Comunicao Social Bacharel em Jornalismo pela Universidade Federalde Sergipe. E-mail: [email protected].

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    Introduo

    A ilustrao fotogrfica um tipo de fotografia comumenteencontrado na imprensa, que no se configura como um recorte doreal, sendo, ao contrrio, produzido em estdio e/ou posteriormentemontado e manipulado para acompanhar as matrias jornalsticas.(SOUSA, 2004).

    Efetivamente, por no ser uma simples implicao existencial deuma realidade exterior e nem buscar um ajustamento com essa dimensofactual, a foto-ilustrao no pode ser pensada a partir das balizas deuma experincia de mundo emprestada, de carter apresentativo edescritivo como normalmente se conceitua as fotografias jornalsticas.Para alm da apresentao ou da descrio, a ilustrao fotogrfica melhor explicada quando concebida como a materializao visual deum conceito por meio do qual o tema noticiado se torna compreensvelsegundo uma posio ou ponto de vista defendido na reportagem queacompanha.

    Assim, ao ser posicionada em uma determinada matria jornalstica,a foto-ilustrao funciona como um modo de ilustrar visualmente aquiloque exposto no texto; esclarecendo, elucidando ou comentando asideias desenvolvidas verbalmente. [...] Chamamo-las ilustrativas poratender os requisitos fundamentais dessa funo: auxiliar a melhorcompreenso de um objeto, idia ou conceito estabelecido de antemo.1

    (BAEZA, 2001, p.166). A ilustrao fotogrfica serve, pois, a umafinalidade explicativa, por vezes analtica ou opinativa que, em conjuntocom o texto, funciona como uma interpretao ou argumentao acercado real.

    Nesse sentido, a foto-ilustrao estabelece com o regime dainformao uma relao diferente daquela tradicionalmente instituda pelofotojornalismo: ela est menos ligada a uma funo informacional deapresentao dos acontecimentos do que a uma possibilidade de explic-

    1 Traduo livre da autora.

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    los, sedimentando anlises, juzos e opinies acerca dos fatos noticiados,fazendo da imagem apenas um meio para criar uma nova realidade que,ficcional2, se refere ao mundo real na medida em que serve como

    exemplificao de um determinado conceito que ajuda a elucid-la.Dessa forma, entendida como fico e como manipulvel, a

    ilustrao fotogrfica no mais fundamenta a sua credibilidade na noode ser uma representao fiel do mundo. Ao contrrio, os indivduosacreditam nela ao passo em que parece fazer sentido, isto , ao passo emque a informao que municia for condizente com a compreenso queestes sujeitos tm do mundo (KELLY; NACE apudSOUSA, 2000) e

    que, nesse caso, posta diante dos olhos.Para isso, a ilustrao fotogrfica normalmente construda a partir

    de estratgias que a permitam estabelecer uma relao de cumplicidadeou simpatia com o leitor, a partir da qual a foto-ilustrao se autoriza afalar com o seu pblico. Essa cumplicidade que lhe atribuda repercuteuma caracterstica do jornalismo levado a cabo pelas revistas deinformao; mdia a qual se associa esse tipo fotogrfico. Em tais veculos,

    o lao que se estabelece com os leitores da ordem de uma partilha deidentidades3, no sentido de que a revista se dirige a um pblico que julga

    pertencer ao seu grupo e compartilhar das mesmas vises de mundo.(SCALZO, 2004).

    No caso da foto-ilustrao, para serem verdadeiramente aceitospelo receptor, os sentidos por ela veiculados precisam de alguma formaecoar uma viso de mundo possvel do leitor, reafirmando-a. Em tal sentido,

    essa imagem funciona melhor se h, a priori, o estabelecimento de umvnculo entre emissor-receptor.

    2 Por ficcional, refere-se aqui s fotografias que se distanciam do isso-foi barthesiano, ou seja,que no se apresentam como sendo o real no estado passado (BARTHES, 1998, p.124).3 Embora a produo e a aceitao de sentidos estejam, nesse caso, dependentes de um vnculode identidades; jornalisticamente, essa relao justificada com a noo de contrato deleitura, segundo o qual o jornalista pode garantir a adeso de seus interlocutores ao tipo de jogocomunicativo que prope. Nesse sentido, talvez mais importante do que compartilhar identidadesseja constituir uma compatibilidade entre as intencionalidades do comunicador e os

    reconhecimentos de tais intenes da parte do receptor. exatamente a partir dos paralelosestabelecidos entre esses dois polos que os sentidos da comunicao podem ser construdos elegitimados. (MOTTA, 2003).

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    exatamente a tal funo que serve duas importantes estratgias, acomicidade e da metfora; aqui como estratgias de aproximao com oleitor: em um caso, instalando um tom de gracejo e, no outro, de

    familiaridade.Dessa maneira, a comicidade e a metfora colaboram para uma

    aceitao dos sentidos transmitidos a partir da ilustrao fotogrfica namedida em que estabelece uma aproximao entre emissor e receptor. ,

    portanto, um procedimento tcito semelhante quele j identificado porMarcia Benetti no que diz respeito ao emprego da ironia como estratgiadiscursiva da revista Veja (inclusive no que diz respeito a fotografias). A

    autora chama ateno para o fato de que a ironia enquanto recursojornalstico abalizada, em termos de recepo, em um processo dereconhecimento e compartilhamento de saberes.

    A fora da ironia est sempre na construo de um campo decumplicidade entre os sujeitos. No caso do jornalismo, entre

    jornalista e leitor. A lgica intersubjetiva que se estabelece colocaestes dois sujeitos em estado de mtuo reconhecimento. De formaaqui bastante redutora, seria algo como somos semelhantes. Eu,

    jornalista, me expresso de um modo determinado e voc, leitor, capaz de me compreender; nem todos seriam capazes de mecompreender, mas voc meu parceiro. Eu, leitor, tenho as mesmasreferncias de mundo que voc, jornalista; nem todos utilizam osmesmos mapas de significado, mas ns utilizamos os mesmosmapas e por isso somos parceiros. (BENETTI, 2007, p.6-7).

    Bem como no caso da ironia, a foto-ilustrao depende dessacumplicidade para funcionar como representao. Sem ela, a imagem correo risco no apenas de ser incompreendida, mas, alm disso, de serreconhecida como uma linguagem no autorizada transmisso deinformaes jornalisticamente pertinentes. Nesse sentido, a cumplicidadese torna essencial; do contrrio, as extrapolaes analticas e opinativascorrem o risco de serem consideradas como excedentes da atividade

    jornalstica, uma vez que no respaldada pelo ideal, ainda que ilusrio, deobjetividade jornalstica.

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    Assim, atravs dessas estratgias da comicidade e da metforacomo uma forma de aproximao e de uma decorrente cumplicidade como leitor que a ilustrao fotogrfica capaz de viabilizar ideias e conceitos

    que podem ser tomados como evidentes e verdadeiros e, emconsequncia, vlidos como recursos utilizveis no mbito jornalstico.

    Entretanto, para alm desse papel, a comicidade e a metforadas ilustraes fotogrficas devem ser percebidas como modos deconstruo de sentidos que possibilitam instaurar ou figurar

    plasticamente as ideias que so arquitetadas na foto-ilustrao, semprecom objetivos retricos.

    O efeito cmico

    Um dos traos recorrentes enquanto estratgia de produo desentido da foto-ilustrao diz respeito ao teor humorstico que emergecom essas imagens. possvel perceber que a maior parte das ilustraesfotogrficas busca, seno o riso, uma certa graa sentimento cmico

    por excelncia. (GOMES, 2004). O riso, o sorriso, o divertimento soentendidos, pois, como manifestaes possveis de um efeito cmico que

    parece ser pretendido por essas fotografias.De um modo geral, os fenmenos humorsticos dessa natureza foram

    (e ainda so) objetos de estudos de inmeros psiclogos, linguistas,filsofos, estetas e crticos de arte. Por conta disso, essa temtica marcada

    por uma heterogeneidade de aportes conceituais chamados em causa paraa sua compreenso. Dentre as teorias que surgem nesse contexto, umadelas parece ser mais apropriada ao caso da ilustrao fotogrfica: a teoriada incongruncia4.

    4 A teoria da hostilidade (o humor como zombaria) e a teoria da libertao (humor como formade escape) tambm podem ser teis ao entendimento da comicidade prpria foto-ilustrao

    tanto que o vis de zombaria ser discutido em seguida. Entretanto, para uma aproximaoinicial, a teoria da incongruncia funciona melhor, posto que busca apontar a essncia do fenmenoe no suas causas ou efeitos, como fazem, respectivamente, as teorias da hostilidade e da libertao.

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    Aristteles, James Beattie, Immanuel Kant, Arthur Schopenhauer,Henri Bergson e Paul McGhee so alguns dos autores que, a despeito dasdiferenas que os separam, contriburam de alguma forma para o

    desenvolvimento dessa teoria. A ideia da existncia de contrastes entreum sentido esperado e o sentido efetivamente encontrado (um sentidoincongruente e aparentemente deslocado) o elemento que une essestericos em torno da teoria da incongruncia. (ERMIDA, 2002).

    Nesse sentido, segundo tal concepo, o humor se d quandoelementos dspares so coordenados de tal forma que resultam no emuma desorganizao ou incoerncia completas, mas, sim, num efeito de

    surpresa.Quando achamos graa a algo que ouvimos ou observamos,

    porque a sbita percepo de uma incongruncia nos obriga arefazer uma interpretao inicial errada e chegar a um sentidosurpreendente que no supusramos partida. Da que a noode jogo seja freqentemente associada a este processo de contnuorecomeo. (ERMIDA, 2002, p.X).

    Ao analisar pequenas historietas cmicas, Violette Morin apontaexatamente a conjuno de elementos aparentemente inconciliveis como

    principal estratgia da construo do humor. Conforme o exame por elaefetuado, o humor sempre deflagrado a partir de um disjuntor, isto , deum elemento polissmico concreto sobre o qual a histria tropea e sevolta para seguir um novo rumo, subvertendo o percurso de leitura,anulando as expectativas anteriormente levantadas e dando a ela

    inesperadas direes. (MORIN, 1973).Pensando a foto-ilustrao nesses termos, o humor nela observado

    quase sempre passa pela combinao, numa mesma imagem, de elementosdspares. Com isso, leva-se a cabo uma contradio de expectativas quefaz com que a sua interpretao oscile entre os sentidos possveis e osentido real, somente a partir do qual se dissolve a inconsistncia darepresentao que percebida no primeiro momento.

    Para alm desse mecanismo macroestrutural que permite inventariaro cmico como gnero textual, o humor grfico, no qual se insere a

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    ilustrao fotogrfica, se baseia em modos especficos. Existem, pois,algumas caractersticas comuns s diferentes formas de humor grfico,como a exagerao, a justaposio no usual e as relaes irnicas. Alm

    delas, a graa visual pode ser alcanada por meio da repetio, da distoroe de outras espcies de transformao e interferncia da imagem.(HELLER, 2002).

    Longe de serem exclusivos a esse tipo, tais recursos configuram-seto somente como ferramentas passveis de construir plasticamente umainteno humorstica mesmo porque esses recursos tambm podem seraplicados ao design srio. Nessa perspectiva, o que vai determinar

    efetivamente a comicidade o mecanismo macroestrutural da incongrunciaou do paradoxo.

    Assim, embora no dialoguem diretamente com as conjecturas deMorin, essas ideias aproximam-se delas: as categorias pensadas pelaautora encontram paralelos nessas estratgias de humor grfico. Isso

    porque, ao fazer uso de tais mecanismos, que a imagem consegue chegara um sentido de incoerncia ou incongruncia que permite a bifurcao

    interpretativa idealizada por Morin.

    Figura 1 - Montagem da revista VejaFotografia: Pedro Rubens, Randall Scott e Nancy KarzermanFonte: Veja de 5 de julho de 2006, p.60-61

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    o caso da ilustrao fotogrfica Os santos do capitalismo(Figura 1). Nela se v, dispostos lado a lado, dois homens, devidamenteidentificados como sendo Bill Gates e Warren Buffett, importantes

    empresrios norte-americanos. No entanto, embora tenha como elementobsico de constituio fotografias dos dois indivduos, a imagem construda por meio de uma montagem.

    Em primeiro lugar, os rostos esto dispostos sobre corpos queprovavelmente no pertencem a esses homens. Eles, incorporando umsistema de gestualidade principalmente a partir do posicionamento dasmos, ligam prontamente a imagem a esquemas de representaes

    religiosas. Alm disso, as aurolas acima das cabeas e o feixe de luz queemana dos troncos reafirmam essa associao. A interpretao dailustrao fotogrfica vincula-se, ento, a hbitos perceptivos decorrentedo modo que figuras santificadas so tradicionalmente representadas. Comisso, Gates e Buffett so tomados como santos.

    Contudo, ao contrrio do que se pode fazer crer num primeiroolhar, o sentido da imagem tropea em um disjuntor. Ao invs do

    corao, smbolo do amor e da espiritualidade, o que deles emana luz um cifro, sinal utilizado para expressar dinheiro e riqueza normalmente pouco associados a valores cristos. Assim, atravs dosentido de ambiguidade que causado pela combinao de elementosdspares, um novo significado toma forma. Insinuando o inverso doque aparenta a princpio, isto , de que eles no so exatamente santos,um certo efeito humorstico se instaura pela justaposio no usual e

    pela relao irnica da derivada.A mesma contradio perpassa tambm os elementos verbais.No ttulo, associando duas palavras supostamente incompatveis, brinca-se com a incongruncia entre santidade e capitalismo.Entretanto, parece encerrar-se a o tom irnico da matria. O subttulo(A doao do investidor Warren Buffett fundao de Bill Gates omaior exemplo de como o capitalismo americano consegue no s

    gerar riquezas astronmicas, como tambm devolv-las de formasolidria e produtiva sociedade) j desprovido dele.

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    Nesse sentido, possvel notar que, embora continue insistindona combinao de elementos dspares, o texto no se baseia no humor.Isso porque, ao contrrio do que acontece na imagem, ele no

    estabelece o elemento fantasioso ou ldico tido como pr-requisitopara o efeito cmico somente a partir do qual se possibilita apercepo da incongruncia como algo impossvel e, portanto, dotadode graa. (MCGHEE apudERMIDA, 2008).

    Assim sendo, o texto liga-se a essa foto-ilustrao muito maispara explicar e resolver a prpria inconsistncia anteriormentecolocada. Dessa maneira, restabelecendo o nexo da representao,

    supera-se o efeito cmico ento criado, transmutando-o em meiocujo fim a stira. A comicidade passa, portanto, a servir ao objetivode apontar, criticar e censurar os defeitos, erros e vcios dedeterminado carter ou situao.

    Essa dimenso de arma a que serve o humor j tinha sidoconcebida, pelo menos, desde Vladimir Propp. Em Comicidade eriso, ao abalizar a zombaria como o nico aspecto permanentemente

    ligado esfera do cmico, o autor afirma que o riso (considerado porele a correlao imediata comicidade) se d quando da manifestaode defeitos antes imperceptveis. Nesse sentido, desvelando umafragilidade ou inconsistncia do fenmeno representado atravs dohumor, chama-se ateno para a existncia desses aspectos negativos,a partir das quais se cria ou refora a reao de condenao, deinadmissibilidade, de no compactuao (PROPP, 1992, p.211) com

    aquilo que exposto. exatamente essa a dinmica de funcionamento da caricatura:tomando e dimensionando defeitos sutis, ela amplia-os a ponto de torn-los visveis e, portanto, julgveis por todos. Por meio do exagero deum detalhe especfico que nela toma propores gigantescas, apagandoos demais elementos constitutivos do que posto caricaturizao,distorce-se deliberadamente a imagem de pessoas e circunstncias.

    No entanto, essa exagerao s toma um vis humorstico ao fazerparecer que o excesso levado a cabo no o objetivo, mas apenas

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    A foto-ilustrao tem como elemento bsico de constituio umafotografia de Jos Dirceu. Contudo, a imagem no se apresenta do mesmo

    modo como foi originalmente fotografada. Submetida a manipulaesdigitais, a partir das quais algumas de suas propriedades so deformadas,a imagem revestida por uma mscara. Embora no se perca todas ascaractersticas apreendidas pela fotografia original, uma nova configurao dada: o rosto do poltico apresenta-se agora revestido por uma texturadesumanizada que remete a um pedao de madeira, no qual um galho sesobressai no lugar do seu nariz.

    Essa reconfigurao parece ter sido intencionalmente construda paraacionar no receptor uma bagagem cultural que associa a representaodo ex-ministro fabula do Pinquio. Publicado originalmente em 1883

    pelo italiano Carlo Lorenzini, sob o pseudnimo de Carlo Collodi, talnarrativa alegrica descreve as aventuras de um boneco de madeira quequeria ser um garoto de verdade. Na histria original, o boneco, sem

    preocupar-se com o que certo ou errado, mas apenas procurando sua

    satisfao imediata, se envolve em inmeras confuses. Para sair-se delas,ele mente. Toda vez que mente, seu nariz cresce um pouco.

    Figura 2 - Montagem da revista VejaFotografia: Dida Sampaio

    Fonte: Veja de 10 de agosto de 2005, p.70-71

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    Retratando Dirceu com um nariz de madeira crescido, tal qual oPinquio, a ilustrao fotogrfica induz a uma interpretao que pressupeque o deputado, para estar assim, deve ter contado muitas mentiras. Dessa

    maneira, a representao no sugere a literalidade de que ele seja umboneco de madeira, mas aproxima-o do tipo de atitude que caracteriza oboneco da fbula. O efeito alcanado diz respeito atribuio ao polticoda falta de compromisso com qualquer princpio, da ausncia de dever emoral e da inexistncia de tica que o boneco da fbula conota.

    Alm disso, outros elementos da fotografia funcionam para o mesmofim. O olhar furtivo, a sobrancelha arqueada e o sorriso malicioso do a

    ele um ar de leviandade que acaba por reforar o sentido da aproximaoentre o carter de Dirceu e o de Pinquio. A coerncia entre o efeitocomparativo e essas unidades visuais da imagem faz com que a ilustraofotogrfica obtenha um resultado que se apresenta integrado e harmonioso.

    Se a informao arquitetada visualmente refere-se a umainterpretao que atribui a Dirceu determinados predicativos, o texto verbaltambm trabalha no intento de atingir resultados semelhantes, reforando

    a ideia transmitida pela foto-ilustrao e sendo por ela reforado. Oprimeiro elemento de destaque do registro verbal o ttulo, que cumpre opapel de explicitar o assunto da matria. Dirceu, o ex-mestre dosdisfarces comunica, de antemo, a noo de que a reportagem trata dealgum fato capaz de desmascarar o deputado. O subttulo especifica: Ex-ministro depe [no Conselho de tica da Cmara], tenta enrolar osdeputados [em relao s denncias que o envolvem], mas v suas mentiras

    cair por terra em tempo recorde.Nesse sentido, o texto exerce uma funo de ancoragem em relao imagem. Na medida em que oferece informaes que explicam, demaneira resumida, o motivo de tal poltico estar sendo assim representado,ele a justifica e a valida. As expresses mestre dos disfarces, tentaenrolar e suas mentiras so centrais para esse entendimento. Outrottulo, do box que ocupa a parte inferior das duas pginas da matria,

    cumpre a mesma funo, de modo mais direto: O deputado Pinquio: asdeclaraes do ex-ministro Jos Dirceu, feitas no depoimento dado na

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    tera-feira passada ao Conselho de tica da Cmara dos Deputados,no se sustentaram por mais do que algumas horas. A identificao deDirceu como um deputado Pinquio fixa de vez o significado visualmente

    construdo.No decorrer da matria, dado suporte a esse sentido. Mais

    do que isso, ele parece tentar despertar valores morais e ideolgicosdo receptor. Promovendo a assimilao do poltico atravs de suasmentiras e envolvendo a premissa de que faltar verdade errado deacordo com os padres ticos vigentes, a informao arquitetada,visualmente e verbalmente, refere-se a uma interpretao dos fatos

    que coloca Dirceu na posio de um contador de lorotas que deve serpor isso recriminado.

    Assim, o resultado de tal foto-ilustrao parece basear-se notanto no fato de a imagem assemelhar-se a Dirceu ou ser uma fotografiaefetiva do deputado, mas, sim, na evocao de uma predisposio aencontrar equivalncias que assegurem a coerncia do significadotransmitido pela representao: reage-se a foto-ilustrao como se

    ela fosse uma figurao do verdadeiro carter do retratado. Nesseponto, a distoro da imagem torna-se real. Ao mostrar um indivduoapropriadamente caricaturado, a ilustrao fotogrfica transforma-oaos olhos do receptor, que passa a v-lo a partir das caractersticas aele atribudas como na boa caricatura. (KRIS; GOMBRICH, 1938).

    Isso se d tambm no que concerne s foto-ilustraes em que,ao invs de satirizar um indivduo em especfico, toma-se uma situao

    como alvo das crticas e censuras, como Asecond life do petismo(Figura 3).Embora seja considerada uma ilustrao fotogrfica, essa imagem

    faz uso subsidirio da fotografia, servindo apenas para dar rosto spersonagens que nela aparecem, os polticos Jos Dirceu, Ciro Gomes,Lula e Jos Genuno. Com exceo dos semblantes desses sujeitos, arepresentao baseia-se, primordialmente, em um desenho, no qual eles

    aparecem sobrepostos a corpos desenhados que preenchem um cenrioirreal.

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    Nele, tem-se uma construo arquitetnica e quatro sujeitos,organizados numa composio que no respeita quaisquer princpios de

    realismo: os planos surgem sob ngulos distintos, falta perspectiva aosindivduos, as cabeas aparecem desproporcionais aos corpos e as pessoasassumem disposies impossveis. Cria-se, portanto, uma ambientaosurreal que, to cheia de disjuntores, se afasta da representao figurativa

    para estabelecer-se como uma pardia da realidade.No topo da imagem, outro elemento aparece sutilmente, mas de

    modo a direcionar a leitura. Trata-se de uma lista azul que culturalmente

    identificada como a barra de ttulo tpica a programas de computador.Todas essas unidades visuais, assim construdas, levam o receptor aassociar a representao a uma realidade virtual, que serve como chave

    para a interpretao da pardia que se executa por meio dela. O seusignificado se faz completo por meio dos textos que a acompanham.

    O ttulo da matria soluciona em poucas palavras o entendimentoda foto-ilustrao. Asecond life do petismo categrico ao fixar seu

    sentido: o Partido dos Trabalhadores est vivendo um momento, digamos,Second Life, aquela brincadeira da internet em que as pessoas criam para

    Figura 3 - Montagem da revista VejaFotografia: Agliberto Lima, Paulo Liebert, Ricardo Stuckert e Ed Ferreira

    Fonte: Veja de 12 de setembro de 2007, p.70-71

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    si mesmas avatares com as qualidades que elas no possuem na vidareal, como diz o texto da reportagem.

    O significado visualmente modelado, de uma realidade virtual,

    confirmado. O subttulo vai alm e explicita a justificativa de talafirmao ao expor que pelas idias delirantes e pela tese de que omensalo no existiu que o congresso do PT parece coisa do mundovirtual. O mesmo papel exerce a legenda da imagem: Numa realidadeapenas virtual, o PT quer reestatizar empresas privadas, acabar como Senado e implantar o socialismo sustentvel. Na real, o objeto ter mais poder.

    Na matria, esse sentido no apenas confirmado, mas tambmmelhor posicionado. Se a representao, a princpio, parece pr-secomo uma pardia da realidade, a reportagem deixa claro que,efetivamente, a realidade tem sido parodiada pelo prprio governo. Otexto e a imagem, integrados, funcionam para transmitir esse julgamentode que o PT reinventa a realidade, numa conotao claramenteirnica, satrica. Nesse ponto, igualmente, a distoro da imagem torna-

    se real.Esse aspecto ltimo de stira um dado constante nas foto-

    ilustraes de efeito cmico parecendo confirmar, no que diz respeitoa essas imagens, o juzo de Propp segundo o qual a zombaria onico elemento permanentemente ligado ao humor. A ilustraofotogrfica toma, ento, os ares de comentrios sociais velados pelaironia ou explicitamente opinativos pela stira e pelo sarcasmo.

    (FONSECA, 1999, p.13). A exagerao, a justaposio no usual eas relaes irnicas, empregadas de modo fantasioso ou ldico em umsentido de incongruncia, so os principais recursos utilizados. a

    partir deles, ao expressar contedos analticos e opinativos atravs doapontamento satrico, que a foto-ilustrao parece exigir daqueles quea tomam para leitura um julgamento de crtica ou censura, reforandosua dimenso de arma.

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    O carter metafrico

    Entre as estratgias das quais a ilustrao fotogrfica faz, ometaforismo outra que se destaca. Faz-se necessrio, pois, partir para oentendimento do que seja metfora e de como ela opera nesses casosespecficos. No se pretende, com isso, esgotar as definies de metfora

    objeto de estudos de uma longa tradio filosfica e lingustica.Entretanto, preciso tecer algumas consideraes sobre ela para auxiliarno entendimento do carter metafrico da foto-ilustrao.

    De acordo com uma das primeiras definies dadas ao termo,metfora toda e qualquer aplicao do nome de uma coisa outra,

    podendo ocorrer entre gneros, espcies ou por simples analogia5.(ARISTTELES, 2004). Nessa acepo, percebida como uma espciede refinamento atravs da substituio de uma palavra usual por uma maisincomum, ela serve a fins decorativos, com vista a efeitos poticos e/ouretricos.

    Posteriormente, alguns autores comearam a conceber o recursometafrico para alm dessa finalidade, apreendendo-o tambm como umfenmeno cognitivo a partir do qual possvel gerar uma melhorcompreenso da realidade. Isso se faz possvel na medida em que a ideiade metfora enquanto substituio nominal superada pela noo deinterao. Por metfora denomina-se a co-relao estabelecida entre duascoisas (ou sistemas) em que a segunda projeta sobre a primeira uma sriede caractersticas e implicaes associadas que funciona como mediadorade uma analogia ou correspondncia estrutural que se faz possvel entreelas. (BLACK, 1993).

    5 Essa definio engloba nos limites da metfora outras figuras retricas, a exemplo da sindoquee metonmia (entendidas como espcies de metforas). As definies que se seguiram a essa, noentanto, costumam explicar cada uma dessas figuras separadamente. Embora as trs sejamcaracterizadas como substituio de um termo por outro, a relao estabelecida entre os termos

    diferenciada em cada caso: na metfora, a relao se d por analogia; na sindoque, porextenso (parte pelo todo, espcie pelo gnero, singular pelo plural etc.); e na metonmia, porcontiguidade (causa pelo efeito, continente pelo contedo etc.).

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    Em tal sentido, ao associar propriedades de um sistema ao outro,a essncia da metfora compreender e experenciar um tipo de coisaem termos de outro.6 (LAKOFF; JOHNSON, 1980, p.5). Passa-

    se, pois, a idealizar a metfora como uma forma de estruturao doconhecimento de uma coisa em funo do de outra: ao transferir

    propriedades de uma para a outra, permite-se a compreenso daprimeira atravs do que se sabe sobre a segunda, estabelecendo-a apartir de uma nova maneira de interpretao.

    Segundo essa perspectiva, o metaforismo no se realiza apenasno nvel nominal, como se props primordialmente. A teoria da metfora

    conceitual, proposta com George Lakoff e Mark Johnson, avana nosentido de afirmar que a metfora , por definio, a compreenso deum domnio conceitual atravs de outro, mais familiar ou acessvel.Assim sendo, a base do recurso metafrico se situa fundamentalmenteao nvel conceitual, sendo a projeo de caractersticas de um nome

    para outro apenas uma das manifestaes possveis desses conceitosmetafricos.

    Abre-se, assim, a possibilidade de conceber a existncia demetforas visuais como expresso de um conceito metafrico quesubjaz e ganha forma na representao.

    A definio da metfora visual em termos de um conceitosubjacente consistente com os princpios fundamentais da teoriaconceitual da metfora, que o paradigma corrente nesse campode estudos. Tal definio cognitiva me parece ser uma boa base

    na qual possvel comear a entender a natureza da metforavisual. Ela no apenas amplia consideravelmente o escopo doque pode ser considerado metfora visual, possibilitando explorar-se as vrias formas que ela pode assumir nos gneros visuais,como tambm torna mais fcil o estabelecimento de comparaesentre as formas verbais e visuais de expressar o mesmo conceitometafrico.7 (EL REFAIE, 2003, p.81).

    6 Traduo livre da autora.7 Traduo livre da autora.

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    Pensando as foto-ilustraes por essa perspectiva, percebe-se arecorrncia desse recurso. Por exemplo, as relaes institudas entre osempresrios e santos (Figura 1), entre o poltico e Pinquio (Figura 2) e

    entre a realidade e um jogo virtual (Figura 3) funcionam como paralelo deum conceito metafrico subentendo, a partir do qual possvel projetaratributos de um sistema ao outro, predicando os primeiros com ascaractersticas normalmente conferidas aos segundos indicandoassociaes a partir das quais possvel fazer compreensvel o argumentoque est sendo estabelecido.

    Para tanto, a metfora funciona sempre por meio da comparao

    entre sistemas distintos que se assemelham em algum aspecto. atravsda explicitao dessa semelhana, ao fazer analogia entre as qualidadesdos sistemas relacionados, que esse conceito metafrico se manifesta. o que acontece em O grande Natal de Lula (Figura 4).

    Figura 4 - Montagem da revista VejaFotografia: Stock Photos e Alan Marques

    Fonte: Veja de 1 de dezembro de 2004, p.40-41

    Essa ilustrao fotogrfica consiste, obviamente, numa montagem.

    Atravs da combinao de fotografias diferentes, obtm-se uma imagemimprovvel ou inusitada, na qual o presidente do pas visto usando trajes

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    de Papai Noel, num tren puxado por uma rena. Entretanto, percebidacomo montagem, a foto-ilustrao no tenta enganar ou fazer crer naquiloque no : o surgimento de sentidos que vo alm do que disposto na

    representao justifica o seu emprego.Assim, o verdadeiro sentido dessa ilustrao fotogrfica s pode

    ser captado quando, ao fazer uma leitura imediata da mensagem, constata-se uma impertinncia em seu contedo. Se nenhuma significao pertinenteadvm da literalidade do que percebido na imagem, o receptor levadoa recus-la em favor de uma apreenso figurativa. Parte-se, ento, paraum trabalho interpretativo que consiste em inferir um cdigo que torne a

    fotografia aceitvel, dissolvendo a falsidade ou a falta de sentido que podelhe ser conferido ao primeiro olhar como acontece na interpretao dasdiferentes manifestaes da metfora.

    Realiza-se um apaixonante vaivm hermenutico: pressupe-seum cdigo, que verificado na comparao, saboreandoantecipadamente suas transformaes metafricas; parte-se dacomparao para inferir um cdigo que a torne aceitvel [...].

    Analisando melhor este processo por tentativa e erro percebemosque estamos diante de mltiplos movimentos inferenciais: hiptese(ou abduo), induo, deduo. (ECO, 1991, p.162).

    A partir desse processo dedutivo, estabelece-se uma analogia oucorrespondncia estrutural entre Lula e Papai Noel. O sentido evocadonessa foto-ilustrao passa, pois, por um entendimento metafrico quetransfere propriedades de uma coisa outra. Papai Noel, personagem

    associada benevolncia, generosidade e ao altrusmo, empresta aopresidente tais caractersticas que lhes so prprias.

    Auxiliada pelos elementos verbais de maior destaque na pgina(O grande Natal de Lula, ttulo da matria, e Os indicadoreseconmicos de 2004, ttulo do box que a acompanha), a imagemconstri visualmente um significado que refora a anlise apresentada

    pelo texto: os bons ndices econmicos, que faz o Brasil prosperar,

    permitem a Lula posar neste Natal como um Papai Noel com o sacode presentes cheios de bondades.

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    Dessa forma, ao representar Lula assim, associando-o a Papai Noel,possibilita-se a compreenso da situao econmica por meio de termosque so mais familiares ao receptor, relacionados ideia de Natal. Nessa

    ocorrncia, o sentido que quer ser dado representao passa pelaconfigurao de um fato ou acontecimento de modos a serem maisfacilmente apreendidos atravs da comparao verbal e visual.

    O mesmo acontece em Referendo da fumaa (Figura 5), ilustraofotogrfica na qual um homem aparece apontando para si mesmo umaarma que formada a partir do seu prprio dedo.

    Figura 5 - Montagem revista VejaFotografia: Paulo Vitale

    Fonte: Veja de 5 de outubro de 2005, p.76-77

    No centro da fotografia e sem outros elementos que concorram emateno, a mo do sujeito se firma como unidade visual principal. A posioem que ela fotografada, com o punho fechado, polegar para cima e oindicador como se mirasse um alvo, no fortuita. Culturalmente codificadocomo sendo a representao de um revlver, esse gesto reveste-se de

    uma dimenso convencional, funcionando como smbolo de uma arma.Porm, a constituio da mo como arma no para por a. Transmutado

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    atravs da mesclagem de imagens, o dedo indicador efetivamentesubstitudo pelo cano de um revlver.

    Assim, a foto-ilustrao estabelece seu primeiro significado: tem-

    se, ento, que o indivduo aponta para si mesmo uma arma que , naverdade, o seu prprio dedo. A imagem, assim construda, expressa um

    pensamento metafrico que ganha forma na representao, equivalentevisual da metfora a mo do homem uma arma.

    A interpretao dessa metfora no para por a, posto que ailustrao fotogrfica evoca outros elementos para completar seu sentido.O fundo da composio, por exemplo, destaca-se como elemento icnico

    importante. Em amarelo, ele desperta um repertrio cultural que associaessa cor a valores como de ateno e cautela, imprimindo um estado dealerta representao. Visualmente, constri-se um sentimento de perigo,

    ponto comum entre os componentes da imagem que se convertem emexpectativa para a resoluo da metfora da mo-revlver.

    O rosto do homem, que aparece como alvo, um dessescomponentes. A testa franzida, a sobrancelha e os olhos apertados, a

    boca entreaberta e os dentes cerrados estampam nele uma fisionomiatranstornada, um ar de perturbao e desespero. Olhando para a mo-revlver, ele exibe-a como explicao para o seu transtorno, como se asua expresso fisionmica fosse uma consequncia da percepo de quesua prpria mo foi convertida numa arma da qual agora ele mesmo vtima. Uma segunda metfora toma forma: o cidado vtima.

    A partir dessas duas analogias ou correspondncias estruturais

    estabelecidas, h a projeo dos campos semnticos associados a armae a vtima, segundos sistemas da metfora, que permitem entender osprimeiros de acordo com eles principalmente, da noo de perigo.

    Entretanto, por si ss, essas metforas no arrematam o significadoda foto-ilustrao. Os elementos verbais complementam-no. O ttulo damatria, disposto logo no topo da composio, ajuda na contextualizaoda imagem ao colig-la a um assunto ento em pauta, o referendo sobre o

    comrcio de armas de fogo. O subttulo 7 razes para votar no naconsulta que pretende desarmar a populao e fortalecer o contrabando

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    de armas e o arsenal dos bandidos vai alm. Ele no apenas confirma ottulo na referncia ao fato do qual trata, como demarca o posicionamentoque a revista assume. Sabe-se, assim, que a reportagem sustenta uma

    opinio contrria proposta de proibio da comercializao de armas.Nesse ponto, o significado da fotografia se completa. Ao coligar-se

    ao texto, que a ancora, ela implicitamente comunica a ideia de que estnas mos do cidado decidir o resultado e as consequncias do referendo. interessante notar que o dedo transmutado, o indicador, exatamenteaquele usado para apertar o sim ou o no da urna eletrnica. Se ele

    pode ser uma arma, a reportagem aconselha as pessoas a us-la ao seu

    favor. Ao cidado compete o poder de votar contra, de maneira a impedirque aquilo que metaforicamente demonstrado na foto se concretize, isto, que ele se torne vtima de si mesmo. A imagem funciona como umaespcie de alerta a dizer cuidado, a maior vtima voc.

    Todos esses significados que surgem a partir de tal ilustraofotogrfica so possveis pelos conceitos metafricos nela literalizados8,que ajuda a explicar a votao atravs de noes agregadas com as ideias

    de arma e vtima. No se trata, portanto, de uma apresentao oudescrio neutra do assunto noticiado, mas reflete uma opinio sobre ele.H, portanto, o estabelecimento de uma determinada percepo ideolgicada realidade que se retrata. Ao entrar em contato com a foto-ilustrao, oespectador igualmente a compreende e a experiencia assim.

    Consideraes finaisComo aqui delineadas, a comicidade e a metfora so estratgias

    de construo de sentidos da ilustrao fotogrfica mobilizadas a fim de,por um lado, estabelecer uma relao de cumplicidade ou simpatia com o

    8

    Ainda que a relao mo-arma e cidado-vtima possa ser pensada enquanto contiguidade,tipificando uma metonmia, essa imagem classificada como metafrica em funo da ideia deum conceito metafrico subjacente, que explica uma coisa em termos de outra.

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    seu pblico e, por outro, contribuir com a fico em seu papel de operadorcognitivo. Nesses casos, elas funcionam para um fim retrico: configuram-se como procedimentos para a construo de uma mensagem que visa

    guiar o leitor na interpretao dos assuntos noticiados, de acordo com oque sugerido no texto.

    Assim, a foto-ilustrao acaba funcionando como um auxlio visualpara melhor expressar determinadas ideias e pontos de vista por elesdefendidos. Conectada ao texto, complementando o discurso verbal esendo por ele complementada, ela capaz de tornar mais compreensvele convincente aquilo que se comunica.

    nesse ponto que a ilustrao fotogrfica se delineia como imagemde uso jornalstico. Na condio de ilustrao, mais do que simplesmenteexercer um papel de mero coadjuvante, ornamento ou enfeite do textoverbal, esse tipo de fotografia ajuda a construir um conceito quemetaforicamente explica o que est sendo esclarecido pela reportagem;afirmando-se, ento, como forma expressiva com caractersticas econtribuies especficas para a atividade jornalstica, em especial para o

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