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  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    INSTITUTO DE LETRAS

    DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERRIA E LITERATURAS

    PS-GRADUAO EM LITERATURA

    O HOMEM EXTRAORDINRIO DE FIDOR DOSTOIVSKI E O HOMEM

    REVOLTADO DE ALBERT CAMUS

    Ludmilla Carvalho Fonseca

    Orientador: Dr. Henryk Siewierski

    BRASLIA

    2010

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    LUDMILLA CARVALHO FONSECA

    O HOMEM EXTRAORDINRIO DE FIDOR DOSTOIVSKI E O HOMEM

    REVOLTADO DE ALBERT CAMUS

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Literatura da Universidade de Braslia (UnB), para a obteno de ttulo de mestre em Literatura. rea de concentrao: Literatura e outras reas do conhecimento. Orientador: Prof. Dr. Henryk Siewierski.

    BRASLIA

    2010

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    LUDMILLA CARVALHO FONSECA

    O HOMEM EXTRAORDINRIO DE FIDOR DOSTOIVSKI E O HOMEM

    REVOLTADO DE ALBERT CAMUS

    BRASLIA DF, 2010

    Dissertao defendida em ___13___ de ________abril________ de 2010, pela

    Banca Examinadora constituda pelos professores:

    Banca Examinadora

    __________________________________________________

    Prof. Dr. Henryk Siewierski

    Presidente da Banca

    __________________________________________________

    Prof. Dr. Joo Vianney Cavalcanti Nuto

    __________________________________________________

    Profa. Dra. Luciana Eleonora de Freitas Calado Depagne

    __________________________________________________

    Profa. Dra. Cristina Stevens

    Suplente

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    AGRADECIMENTOS

    Em especial, ao professor e orientador desta dissertao, Dr. Henryk

    Siewierski, pela enorme contribuio, dedicao e confiana.

    Ao professor Joo Vianney Cavalcanti Nuto pelo apoio conferido ao longo das

    aulas do mestrado e por ter aceitado fazer parte da banca.

    professora Luciana Eleonora de Freitas Calado Depagne por ter aceitado

    participar da banca.

    Aos meus pais e ao meu companheiro pelo apoio dado ao longo dos anos que

    me dediquei aos meus estudos.

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    Mergulhar nessa certeza sem fundo, sentir-se suficientemente alheio sua prpria vida

    para acrescent-la e percorr-la sem a miopia do amante, a est o princpio de uma libertao.

    Camus, 2006, p. 71.

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    SUMRIO

    INTRODUO p. 10

    CAPTULO 01: EM BUSCA DA CONSTRUO DO ALM-HOMEM:

    A INFLUNCIA DE STIRNER EM DOSTOIVSKI E EM CAMUS

    p. 13

    1.1 Por que a procura de um novo homem? p. 13

    1.2 Do nico de Stirner ao revoltado de Camus p. 17

    1.2.1 A perspectiva subjetiva de Stirner p. 21

    1.2.2 A composio dos prottipos de Rasklnikov p. 33

    1.2.3 bermensch de Nietzsche e a crtica ao homem racional p. 38

    1.2.4 A materializao da revolta em Camus p. 43

    CAPTULO 02: O HOMEM EXTRAORDINRIO DE DOSTOIVSKI p. 50

    2.1 Breve reflexo sobre a Rssia de Dostoievski p. 51

    2.1.1 O contexto scio-econmico e poltico da Rssia czarista no sculo XIX p. 52

    2.1.2 Os movimentos anti-czaristas p. 58

    2.2 O romance social dostoievskiano p. 62

    2.2.1 A contraposio do dialogismo em Dostoivski ao monologismo

    ideolgico

    p. 65

    2.2.2 O contexto histrico de Crime e Castigo p. 68

    2.3 A teoria de Rasklnikov: o homem ordinrio e o homem extraordinrio p. 78

    CAPTULO 03: O HOMEM REVOLTADO DE CAMUS p. 83

    3.1 A Arglia colonial vivida por Camus p. 86

    3.1.1 O contexto scio-econmico e poltico da Arglia de Camus p. 90

    3.2 O envolvimento artstico e intelectual de Camus p. 96

    3.2.1 A ruptura de Camus com o pensamento de sua poca p. 102

    3.3 A revolta no romance camusiano p. 107

    3.4 O absurdo e a revolta da personagem Meursault p. 110

    CONSIDERAES FINAIS p. 118

    REFERNCIAS p. 120

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Ilustrao 01 Quadro sobre a influncia de Stirner em Dostoievski e Camus p. 22

    Ilustrao 02 Mapa - Evoluo Histrica do Imprio Russo p. 54

    Ilustrao 03 Quadro Contexto histrico e scio-poltico da Rssia no sculo

    XIX

    p. 58

    Ilustrao 04 Quadro sobre Monologismo ideolgico X Dialogismo em

    Dostoievski

    p. 71

    Ilustrao 05 Mapa Localizao da Frana e da Arglia / Pases

    desenvolvidos e subdesenvolvidos

    p. 87

    Ilustrao 06 Quadro Contexto histrico e scio-poltico da Arglia nos

    sculos XIX e XX

    p. 93

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    RESUMO

    Esta pesquisa tem como finalidade abordar a relao entre os romances Crime e Castigo (2001), de Fidor Dostoivski (1821 1881), A Morte Feliz (1997) e O Estrangeiro (1982), de Albert Camus (1913 1960). Pretende-se mostrar a influncia do homem extraordinrio sobre o homem revoltado. A pesquisa prope investigar o comportamento das personagens protagonistas; associar as abordagens filosficas que permeiam o discurso de Dostoivski e de Camus; compreender o conceito de homem extraordinrio e de homem revoltado. O mtodo consiste em uma reviso bibliogrfica apropriada ao tema e na anlise dos romances em questo. Os resultados apontam para a semelhana entre o homem extraordinrio em Dostoivski e o homem revoltado em Camus. Pode-se concluir que a semelhana entre ambos se d na temtica do crime e, principalmente, pelas caractersticas das personagens protagonistas dos romances estudados. Rasklnikov, de Crime e Castigo; Patrice Mersault, de A Morte Feliz; e Meursault, de O Estrangeiro so indivduos singulares. Eles buscam cada um ao seu modo e ao seu tempo exaurir a sua vontade em uma perspectiva de superao dos valores anteriormente consolidados pela estrutura social. Esse movimento de busca da transmutao dos valores encontra, na ao de revolta, possibilidades de se construir um novo homem, sendo este um alm-homem. Palavras-chave: Homem extraordinrio. Homem revoltado. Alm-homem.

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  • 9

    ABSTRACT

    This inquiry aims the relationship between the novels Crime and Punishment, by Fidor Dostoivski, The Happy Death and The Stranger, by Albert Camus. Intends to show the influence of the extraordinary man on insurgent man. This work intends to investigate the behavior of the characters protagonists; associate philosophical approaches that permeate the discourse of Dostoivski and Camus; understand the concept of extraordinary man and insurgent man. The method consists of a literature review appropriate to the subject and analysis of the novels in question. The results point to the similarity between the extraordinary man in Dostoivski and insurgent man in Camus. Can conclude that the similarity between the two takes on the theme of crime and, especially, the characteristics of the characters protagonists of the novels studied. Rasklnikov, by Crime and Punishment; Patrice Mersault, by The Happy Death, and Meursault, by The Stranger are unique individuals. They seek - each in his own way and his time - his desire to exhaust from the perspective of those values previously consolidated by the social structure. This motion of search of the transmutation of values found, in the act of revolt, the possibilities of building a new man, which is a beyond-man.

    Key-Words: Extraordinary man. Insurgent man. Beyond-man.

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  • 10

    INTRODUO

    A base terica que Dostoivski (1821 1881) e Camus (1913 1960)

    buscaram para elaborar suas construes literrias, com relao ao homem extraordinrio e

    ao homem revoltado, respectivamente, tem como fundamento a perspectiva singular de

    indivduo defendida por Stirner (1805 1855).

    importante considerar que os temas extraordinrio e revoltado esto

    intimamente ligados. As personagens de Dostoivski e de Camus, que portam consigo

    essa auto-afirmao (extraordinrio e revoltado), tm a perspectiva de construo do

    alm-homem como o elemento que as tornam ainda mais comuns uma outra.

    Esta pesquisa tem como finalidade abordar a relao entre os romances Crime

    e Castigo (2001), de Fidor Dostoievski, A Morte Feliz (1997) e O Estrangeiro (1982,

    2007), de Albert Camus. Pretende-se mostrar a influncia do conceito de homem

    extraordinrio no romance de Camus exercida por Dostoivski, estabelecendo uma

    comparao entre os trs romances acima, abordando: as perspectivas literrias e

    filosficas dos dois autores nas obras em questo; a temtica do crime nos trs romances;

    e a caracterizao das personagens Rasklnikov (protagonista de Crime e Castigo), Patrice

    Mersault (protagonista de A Morte Feliz) e Meursault1 (protagonista de O Estrangeiro),

    estabelecendo uma relao entre o conceito de homem extraordinrio (de Dostoivski) e o

    conceito de homem revoltado (de Camus).

    Pretende-se enfocar tambm a relao que existe entre o romance Crime e

    Castigo, de Dostoievski, e alguns aspectos da filosofia niilista russa, e a relao existente

    1 Segundo Pinto, em prefcio de O primeiro homem (CAMUS, 2005), a personagem Meursault de O estrangeiro uma reformulao de Patrice Mersault de A morte feliz. Este tem carter autobiogrfico e Camus no tinha a inteno de public-lo. O autor escreveu o romance O estrangeiro reformulando a Morte feliz e dando-lhe um carter ficcional.

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  • 11

    entre a teoria filosfica discutida por Camus em O Homem Revoltado e em O Mito de

    Ssifo e os seus romances A Morte Feliz e O Estrangeiro.

    Para o desenvolvimento desta pesquisa, tem-se como subsdio metodolgico,

    para anlise dos romances em questo, a crtica temtica, a qual prope que o estilo no

    uma questo de tcnica, e sim de viso. De acordo com as ideias de Bergez et al. (1997, p.

    99), o tema fornece ento um elemento comum de significao ou de inspirao, que

    permite comparar, a partir de um mesmo ndice, obras de autores diferentes.

    Baseado nas ideias de Montaigne, Jean Starobinski (apud BERGEZ et al.,

    1997, p. 104), relacionando-se aos escritores, prope que o ser no se separa da

    conscincia, dizendo que a conscincia , porque se mostra. Entretanto, no pode se

    mostrar sem fazer surgir um mundo no qual ela est indissoluvelmente interessada.

    Diante disso, o trabalho se enquadra na crtica temtica, pois tanto Dostoivski quanto

    Camus no separam o seu ser da sua conscincia enquanto criadores. Os autores em

    questo encontram na arte o suporte da sua existncia.

    O trabalho est dividido em trs captulos. No primeiro captulo, intitulado Em

    busca da construo do alm-homem: a influncia de Stirner em Dostoivski e em Camus,

    ser discutida a base filosfica que Dostoievski e Camus utilizaram para elaborar os temas

    homem extraordinrio e homem revoltado. No segundo captulo, denominado O homem

    extraordinrio de Dostoievski, ser feita uma abordagem sobre a vida do autor, o contexto

    histrico em que viveu, e a importncia deste contexto na elaborao das suas obras. Ser

    dado maior destaque ao conceito de homem extraordinrio discutido pelo protagonista

    Rasklnikov, em Crime e Castigo. No terceiro e ltimo captulo, intitulado O homem

    revoltado de Camus, tambm ser desenvolvida uma abordagem sobre a vida do autor, o

    contexto histrico em que viveu, e a importncia deste contexto na elaborao das suas

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  • 12

    obras. Ser dada maior nfase no conceito de homem revoltado presente tanto nos ensaios

    quanto nos romances e peas de Camus.

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  • 13

    CAPTULO 01: EM BUSCA DA CONSTRUO DO ALM-HOMEM: A

    INFLUNCIA DE STIRNER EM DOSTOIVSKI E EM CAMUS

    A radicalidade do esprito moderno est na demolio de todo fundamento, cujo emblema mais forte o da morte de Deus, que afirma o primado do humano, a verdade de nossas certezas provisrias, nossa positividade negativa. O que seria, ento, o avesso do moderno? Seria talvez a morte do homem (no no sentido foucaultiano, mas no sentido jansenista), o primado de um Deus ressurrecto, a verdade indiferente de nossas certezas teolgicas.

    PINTO (2004, p. 275).

    O homem extraordinrio e o homem revoltado tm o mesmo propsito de ao:

    exaurir a sua vontade em uma perspectiva de superao dos valores anteriormente

    consolidados pela estrutura social. Esse movimento de busca da transmutao dos valores

    encontra, na ao de revolta, possibilidades de se construir um novo homem, sendo este

    um alm-homem.

    1.1 Por que a procura de um novo homem?

    Afirmar a necessidade de um novo homem significa dizer que o homem atual

    est se esfacelando. No se tem a pretenso de adentrar nesse conflituoso assunto de morte

    do homem, pois ele j foi discutido de forma excessiva, marcado por acirrados debates.

    A questo que se busca discutir no essa. A procura de um novo homem,

    nesse caso, est pautada em demonstrar as razes que Dostoivski e Camus apresentavam

    para evocar a crise do homem moderno.

    Os dois escritores, cada um ao seu modo, respeitando os eventos de seu tempo,

    trataram dos assuntos que evocavam novas compreenses de homem. A diferena que

    Dostoivski apresentou a busca do novo homem, nos seus romances, a partir da discusso

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  • 14

    sobre a morte de Deus (assunto fortemente difundido no final do sculo XIX)2, enquanto

    que Camus, em decorrncia de ter partido para sua elaborao literria aps o debate

    terico sobre a morte de Deus, concentrou suas criaes literrias na crise do homem,

    devido aos valores morais da sociedade. Nesse perodo, houve a substituio da posio

    reguladora e moralizante que Deus anteriormente exercia, pela posio humanista.

    Para as personagens de Dostoivski, baseadas na condio de que Deus

    morreu, abre-se um outro mundo de possibilidades de ao insurgente do sujeito. Desse

    ponto, ele escolhe ser ordinrio ou extraordinrio. No caso das personagens de Camus,

    com o estranhamento e a negao dos valores da sociedade considerada tradicional que o

    sujeito se assume como revoltado. A revolta a fonte de superao do absurdo da

    existncia. Com relao ao tema da morte de Deus, Pinto (2004) discute a importncia de

    Dostoivski como divulgador desse assunto nas suas obras literrias.

    Presente em diferentes autores de diferentes pocas, o tema da morte de Deus pode ter diferentes conotaes [...]. Mas h tambm uma conotao que corresponde a um espectro mais amplo: aqueles autores que desconfiando dos poderes do conhecimento para atingir as essncias e recusando-se a substituir o saber inessencial da filosofia e da cincia pela verdade esttica depositam a ltima esperana de transcendncia numa autoridade divina cuja morte, quando se anuncia, s pode ser contemplada com um frmito de pavor metafsico. O sentimento de solido perante um cu vazio e as paisagens abandonadas pela graa, a devoo a cosmologias imaginrias, a construo de catedrais invisveis, o sofrimento sem remisso e o gozo sem porvir, as contries da razo, o apego desesperado a um corpo que apodrece, a corrupo moral de um mundo sem salvao, o impulso irresistvel em direo a um absoluto no qual no se cr so sentimentos que esto no cerne de um certo tipo de literatura em que as aventuras da forma sempre traem as meditaes da moral e em que,

    2 A partir da segunda metade do sculo XIX at o seu final, a filosofia ocidental se dedicou em discutir temas teolgicos e o atesmo. Feuerbach, buscando romper com o pensamento espiritualista de Hegel, props, no final da primeira metade do sculo XIX, a inverso do Deus-homem pelo Homem-Deus, quebrando certos paradigmas sobre a sacralidade divina, dando ao homem um carter mais material. Max Stirner, em 1845, j apresentava concepes sobre a necessidade de superao de Deus, porm alertou sobre o perigo do homem criar um homem divino, abordagem que vinha se fundamentando no sculo XVIII, com o Humanismo e o Iluninismo. Marx e Engels, na primeira fase intelectual, quando eles ainda se dedicavam ao hegelianismo de esquerda, sob forte influncia do materialismo de Feuerbach, propunham a inexistncia de Deus e a necessidade de sua superao metafsica pela lgica materialista histrica. Porm, principalmente no final do sculo XIX, Nietzsche foi o terico que mais se dedicou a debater sobre a morte e a superao de Deus. Toda sua obra marcada pelo debate atesta e teolgico, principalmente nos livros: Humano Demasiado HumanoAurora, A Gaia Cincia, Assim Falou Zaratustra, Para Alm de Bem e Mal, Para a Genealogia da Moral e O Anticristo, alm de Vontade de Potncia, obra que no conseguiu concluir.

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    inversamente, as aflies espirituais se desencadeiam a partir do contexto ficcional que as encena. no mbito dessa aflio existencial que nasce a representao literria da morte de Deus como uma espcie de emblema de uma determinada condio moral e de uma determinada estrutura epistemolgica do homem diante do mundo. Os autores que mais explicitamente formularam esse tema foram Nietzsche [...] e Dostoivski (PINTO, 2004, p. 263 e 264).

    Anteriormente a Dostoivski, Nietzsche e Camus, acontecimentos sociais

    foram decisivos para que eles e outros pudessem colocar em evidncia o tema da superao

    do homem. Quando as sociedades e os indivduos buscaram desconstruir os valores

    cultivados pela sociedade medieval, principalmente referindo-se concepo desta, e pela

    sociedade absolutista, no que se refere s estruturas sociais fortemente hierarquizadas pela

    desigualdade social, houve uma quebra dessas representaes centralizantes. A partir desse

    momento, nasceu a ideia de um novo homem: o humanista tomou o lugar do homem

    medieval. Segundo Pinto (2004), a busca pelo alm-homem desenvolve-se pelo prprio

    homem, e no pela perspectiva metafsica.

    Seja como for, estes casos paroxsticos de crise da metafsica ou de tentativa de superao da metafsica apontam para um projeto claro: a preservao ou instituio da autonomia do humano e de suas esferas morais e existenciais. Divinizar a poesia ou dessacralizar Deus, reivindicar o direito humano de substituir Deus, mesmo que ao preo da submisso a uma natureza corrompida e destrutiva (Sade), ou ao preo de uma refundao poltica violenta do mito de Prometeu (caso dos niilistas russos) todas essas propostas estticoliterrias oscilam entre o reles e o sublime, mas h nelas uma fidelidade ao humano, a fidelidade a um alm do homem formulado pelo prprio homem (Nietzsche) ou a fidelidade a um homem que est a, com sua face abjeta e contraditria. (PINTO, 2004, p. 267)

    Esse movimento de transio teve consequncias revolucionrias na

    compreenso de povo, poder, nao, sociedade, igualdade, liberdade, progresso, cincia

    etc. Deus morre e cede lugar ao homem-deus. Aps o homem ter quebrado as prises

    divinas, ele no conseguiu evitar novas prises, margeado pelas estruturas sociais, polticas

    e econmicas.

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    Mostrando a influncia de Stirner no pensamento de Foucault, Newman (2005,

    p. 111) discute a crtica desses dois autores ao legado de Kant com relao ao conceito de

    liberdade. Com o enfraquecimento das questes destas, o pensamento moderno de Kant e

    de outros autores da sua poca fortaleceu a perspectiva humanista, baseando-se no

    iluminismo e no liberalismo para construir um novo homem.

    A liberdade clssica permite somente uma certa forma de subjetividade, ao intensificar a dominao sobre o indivduo subordinado a estes critrios morais e racionais. Enfim, o discurso de liberdade est baseado em uma forma especfica de subjetividade o homem autnomo e racional do iluminismo e do liberalismo. Como mostram Foucault e Stirner, esta forma de liberdade s se faz possvel por meio da dominao e excluso de outros modos de subjetividade que no se encaixam neste modelo racional. [...] Stirner e Foucault no rejeitam a idia de liberdade. Ao contrrio, eles interrogam os limites do projeto iluminista de liberdade, de modo a expandi-lo para inventar novas formas de liberdade e autonomia que vo alm das restries do imperativo categrico.

    A ruptura com o pensamento teocntrico possibilitou uma abertura de novas

    investigaes sobre a condio humana, que teve seu momento de efervescncia durante a

    segunda metade do sculo XIX. A descrena em Deus, consequentemente, proporcionou a

    descrena no prprio homem, que tinha seus valores regidos pela perspectiva desta. A

    partir desse momento, abrem-se novos caminhos para a busca de um novo homem, que se

    posiciona contrrio ao homem anteriormente concebido.

    A contestao da existncia divina, associada crtica ao homem religioso,

    tornou-se presente em uma vasta tradio da filosofia e da literatura, estendendo-se de

    Sade at os ps-estruturalistas do final do sculo XX. Mas em meados do sculo XIX,

    com Stirner, que uma das mais incisivas crticas ao desmo e s consequncias da morte de

    Deus na existncia do indivduo se materializam. A partir desse ponto, invivel debater o

    tema da morte de Deus desvinculado da necessidade de superao do homem, em busca de

    um alm-homem.

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  • 17

    A busca de construo do alm-homem se manifesta de diferentes formas ao

    longo dessa tradio difundida no sculo XIX, mas o que tem em comum as diferentes

    interpretaes do tema a incansvel busca pela contestao dos valores morais e a crtica

    ao homem despersonalizado. Para melhor visualizar a busca do alm-homem na literatura

    de Dostoivski e de Camus, sero discutidas, frente, as influncias filosficas que esses

    autores sofreram para construir seus romances.

    1.2 Do nico de Stirner ao revoltado de Camus

    Antes de adentrar na temtica que visa comparar Dostoivski e Camus, faz-se

    necessrio recorrer brevemente gnese fundamentadora do conceito de alm-homem, seja

    na concepo de homem extraordinrio ou de homem revoltado, discutido por estes

    autores.

    Primeiramente, vale ressaltar que a concepo de um homem nico, superior,

    extraordinrio ou revoltado serve-se de uma metfora que clareia o posicionamento

    contrrio aos dogmas ocidentais cristos.

    Segundo defende Miranda (2004), Max Stirner o passageiro clandestino da

    histria, pois sua influncia deixou marcas direta e indireta em vrios autores e artistas.

    Para citar os principais: Nietzsche; Nietchiev; terroristas niilistas; anarquistas; ps-

    estruturalistas como, por exemplo, Deleuze, Guatarri, e Derrida; existencialistas e

    fenomenologistas como Heidegger, Buber, Sartre e Camus; com menos intensidade em

    Foucault; e com grande influncia em Duchamp. Conforme destaca Newman (2005, p.

    101), o que Stirner e Foucault tm mais em comum refere-se aos conceitos de liberdade, de

    poder e de autonomia individual.

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  • 18

    Max Stirner e Michel Foucault so dois pensadores que raramente so analisados juntos. No entanto, j foi sugerido que o to ignorado Stirner pudesse ser visto como o precursor do pensamento ps-estruturalista contemporneo. De fato, h muitos extraordinrios paralelos entre a crtica de Stirner sobre o humanismo iluminista, a racionalidade universal e as identidades essenciais, e as crticas similares realizadas por pensadores como Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, e outros. [...] Contudo, tanto Foucault quanto Stirner colocaram em questo tais categorias universais, racionais e morais, centrais para o pensamento iluminista. Eles insistem que categorias absolutas da moralidade e racionalidade sancionam diversas formas de dominao e excluso, e negam a diferena no indivduo.

    A tese defendida por Stirner (2004) em seu nico livro fez com que ele no

    fosse visto com bons olhos pelos liberais, pelos humanistas e at pelos radicais socialistas.

    Alm disso, este autor portava um discurso dilapidador, com afirmaes que negavam a

    racionalidade e incitavam o crime, a revolta, o desenvolvimento subjetivo do indivduo, o

    hedonismo e a liberdade a qualquer custo. A sntese da sua proposta filosfica era o nico

    como sendo homem superior, acima de tudo e de todos.

    Em 1845, ano de publicao de O nico e a sua Propriedade, Stirner j tratava

    filosoficamente do crime com perspiccia. Argumenta que a sociedade ocidental, o Estado,

    a famlia e a igreja tornam o homem enclausurado e subjugado s suas condies

    castradoras, retirando-lhe sua principal condio singular: a sua prpria vontade. Para que

    o nico se aproprie da sua condio existencial, ele deve jogar por terra os dogmas das

    instituies, difundidos pela moral religiosa e o Estado autoritrio. Para chegar a essa

    noo, Stirner (2004) tece um comentrio acerca do egosmo do prprio Deus, pelo qual

    mostra que esse esprito nada mais do que um esprito apropriador e egosta. [...] Deus

    s se preocupa com o que seu, s se ocupa de si mesmo, s pensa em si e s se v a si e

    ai de tudo aquilo que no caia nas suas graas! Ele no serve nenhuma instncia superior e

    s a si se satisfaz (STIRNER, 2004, p. 9). Com a mesma dimenso, acusa a humanidade

    de egosta e discute que se o Estado comete um crime, ele faz justia, mas se o nico faz o

    mesmo, ele criminoso.

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  • 19

    Nesse momento, o autor argumenta a tese fundamental de sua obra. Para que o

    nico, o indivduo singular seja a si prprio, ele mesmo na sua construo pessoal, deve

    romper com as instituies autoritrias atravs da revolta3, e a sntese desta ao a

    cometida do crime.

    Segundo Jos Bragana de Miranda (2004), Dostoivski se surpreendeu com o

    niilismo apresentado por Stirner, chegando ao ponto de elaborar Crime e Castigo (2001),

    onde Rasklnikov a personificao do nico de Stirner. Para Miranda, Dostoivski leu

    mal Stirner. Apresentou coerentemente a proposta do crime como um ato de insurgncia

    contra a estagnao da sociedade, porm no avanou na linearidade filosfica stirneriana,

    pois Rasklnikov sofre a duras penas a consequncia do crime, e retrai. Miranda (2004)

    refora ainda a discusso sobre a influncia de Stirner em Dostoievski atravs da obra

    Memrias do Subsolo (DOSTOIVSKI, 1992, p. 71), na qual a voz presente no

    subterrneo a voz de Stirner, carregada por suas cidas palavras, demarcando o estilo

    stirneriano.

    Pois bem, um homem autntico, normal, como o sonhou a prpria me carinhosa, a natureza, ao cri-lo amorosamente sobre a terra. Invejo um homem desses at o extremo da minha blis. Ele estpido, concordo, mas talvez o homem normal deva mesmo ser estpido, sabeis? Talvez isto seja at muito bonito. Estou tanto mais convencido desta suspeita, por assim dizer, que se tomarmos, por exemplo, a anttese do homem normal, isto , o homem de conscincia hipertrofiada, o homem sado, naturalmente, no do seio da natureza, mas de uma retorta [...], o que se verifica, ento, que este homem de retorta a tal ponto chega a ceder terreno para a sua anttese que a si mesmo se considera, com toda a sua conscincia hipertrofiada, um camundongo e no um homem.

    Em Os Irmos Karamazov, Dostoivski (2008) aponta mais uma releitura de

    Stirner quando afirma, atravs da personagem Ivan Karamazov, se Deus morreu eu posso

    tudo. Assertiva esta que concebe a condio desta como um entrave para que o homem

    3 Stirner diferencia revolta de revoluo, negando a segunda por no criar uma condio de ruptura fundamental com as instituies opressivas. Mais frente ser mostrada essa influncia em A. Camus (2003b).

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  • 20

    extraordinrio se liberte. Ao contrrio do que se afirma, Nietzsche no foi o primeiro a

    suscitar a morte de Deus em A Gaia Cincia. Neste texto, ele diz:

    De fato, ns filsofos e espritos livres sentimo-nos, notcia de que o velho Deus est morto, como que iluminados pelos raios de uma nova aurora; nosso corao transborda de gratido, assombro, pressentimento, expectativa eis que enfim o horizonte nos aparece livre outra vez, posto mesmo que no esteja claro, enfim podemos lanar outra vez ao largo nossos navios, navegar a todo perigo, toda ousadia do conhecedor outra vez permitida, o mar, nosso mar, est outra vez aberto, talvez nunca dantes houve tanto mar aberto (NIETZSCHE, 1983, p. 212).

    Anteriormente, Stirner (2004), em 1845, aponta o esfacelamento de Deus e dos

    valores cristos. Afirma que a suposio de um homem alm-deus deveria ser vista com

    cuidado, tema que Nietzsche utiliza com profundidade.

    No incio da Idade Moderna est o homem-deus. Na sua fase final desaparecer apenas o deus do homem-deus? E pode o homem-deus morrer realmente se apenas morrer o deus nele? No se pensou nesta questo, e julgou-se que um processo tinha chegado ao fim quando a obra das Luzes, a superao de Deus, foi levada a uma vitria final nos nossos dias. No se reparou que o homem tinha matado o deus para se tornar o nico deus nas alturas. O alm fora de ns, alis, foi varrido, e com isso consumou-se a grande tarefa das Luzes. Mas o alm em ns tornou-se um novo cu e apela para ns no sentido de novo assalto aos cus: o deus teve de dar lugar, no a ns, mas... ao homem. Como podeis vs crer que o homem-deus morreu, se no morreu ainda nele, para alm do deus, tambm o homem? (STIRNER, 2004, p. 125).

    Essa concepo de estruturao de um indivduo alm-homem, ou seja, que

    personifica em extraordinrio, super-homem, ou em estrangeiro advm da contribuio

    dO nico e a sua Propriedade. Em sntese, Dostoivski bebeu na fonte de Stirner.

    Nietzsche se baseou em Dostoivski e, de forma indireta, em Stirner. E Camus, faz uma

    releitura dos trs autores.

    Em O Homem Revoltado, Camus (2003b) faz uma reflexo das vrias faces do

    niilismo; ressalta o romance Pais e Filhos, de Turguniev (1971), como o precursor do

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  • 21

    tema; apresenta Stirner como o filsofo da revolta; e discute as vrias modalidades de

    crime, anunciando o crime embasado no absurdo da existncia.

    Todavia, o ponto de maior aproximao entre O Homem Revoltado e O nico

    e a sua Propriedade quando Camus discute a diferenciao entre revolta e revoluo.

    Ambos autores concordam que a revoluo leva ao niilismo de Estado e que somente a

    insurgncia ou a revolta sustentaria a concepo de homem singular ou revoltado.

    Na literatura, Camus ressalta o tema do crime, sob influncia de Stirner e de

    Dostoivski, e o comportamento do homem revoltado, embasado nos citados autores e na

    perspectiva de super-homem, defendida por Nietzsche. No romance O Estrangeiro (1982,

    2007), o protagonista Meursault executado devido acusao de desumano, tendo como

    motivo o assassinato de um rabe.

    J em Estado de Stio, Camus (1982b) novamente retoma um tema de Stirner: o

    esprito. Uma sociedade assolada por uma ideia destruidora que culmina no estado de

    stio da mesma e que s se resolve quando o protagonista Diogo descobre que o que lhes

    oprime no passa de um esprito fantasmagrico.

    Com a finalidade de sintetizar a ideia discutida anteriormente, foi elaborado o

    esquema a seguir:

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  • 22

    Ilustrao 01: Quadro sobre a influncia de Stirner em Dostoievski e Camus.

    Tentou-se mostrar que o indivduo que transmuta os valores supera o niilismo

    passivo. Este indivduo tem sua gnese no passageiro clandestino da histria, que no

    subsolo da filosofia exerceu influncias e estabeleceu criaes a partir de sua crtica, mas

    que no foi reconhecido com a devida ateno. Vale ressaltar que o nico de Stirner no

    o mesmo extraordinrio Rasklnikov, nem o super-homem Zaratustra, e muito menos o

    estrangeiro Meursault, mas que se sintetizam em um mesmo homem: aquele que afirma

    sua vontade e que se supera.

    1.2.1 A perspectiva subjetiva de Stirner

    Trata-se de criar um corpo sem rgos ali onde as intensidades passem e faam com que no haja mais nem eu nem o outro, isto no em nome de uma generalidade mais alta, de uma maior extenso, mas em virtude de singularidades que no podem mais ser consideradas pessoais, intensidades que no se pode mais chamar de extensivas. O campo de imanncia no interior ao eu; mas tambm no vem de um eu exterior ou de um no-eu. Ele antes como o Fora

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  • 23

    absoluto que no conhece mais os Eu, porque o interior e o exterior fazem igualmente parte da imanncia na qual eles se fundiram.

    Deleuze e Guattari (1996, p. 18).

    Na epgrafe acima, nota-se o quanto a singularidade est vinculada lgica

    dialtica do interior e exterior. A individualidade, marcada pelo trao subjetivo, difere-se,

    nesse caso, da individualidade genrica, ou seja, uma individualidade desubjetivada. Para

    Deleuze e Guattari (1996), necessrio tirar do Eu seu contedo metafsico, como era

    comum ser classificado pelos filsofos alemes, como Kant, Fichte e Hegel. Stirner, ao

    contrapor Hegel no que diz respeito ao Estado, defende que este uma opresso ao

    indivduo e que se apresenta como uma fora abstrata. E Hegel (1980) via no Estado o

    esprito mximo da exatido das foras coletivas.

    Stirner (2004, p. 146) tambm categrico no que se refere ao debate de Fichte

    sobre o indivduo.

    Quando Fichte diz: O Eu tudo, isso parece estar perfeitamente em harmonia com as minhas teses. Mas o eu no tudo, destri tudo, e s o eu que progressivamente se dissolve, o eu que nunca , o eu... finito, verdadeiramente eu. Fichte fala do eu absoluto, mas eu falo de mim, do eu transitrio.

    Segundo Daz (2002, p. 25), Stirner nega a posio terica do Eu que Fichte

    defende quando o mesmo o relaciona a uma dimenso excessivamente romntica,

    csmica, abstrata, alheia ao ego concreto de carne e osso [...]. Daz (2002, p. 29) defende

    que Stirner nega Fichte, pois este

    [...] brinda aos romnticos seu inequvoco apoio para o reconhecimento e homenagem imaginao como potncia potica ou recreativa que no s nos reconcilia com a realidade, mas que tambm abre, por sua vez, um caminho que vai alm de toda a limitao, de forma que dilata constantemente fronteiras para a liberdade irrestrita, para a absoluta autodeterminao do Eu.

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  • 24

    A crtica individualidade genrica e individualidade espiritualista, ligada ao

    idealismo alemo, busca discutir a subjetividade desvinculada da rigidez dos conceitos

    exterior e interior. O Eu puro e fechado reformulado pelo Eu desnudado, que parte de si

    para o mundo, vinculado ao carter singular da sua personalidade, e que se relaciona com a

    multiplicidade exterior. O Eu criativo no se estrutura em metarrelatos, e no busca

    construir cadeias interiores e exteriores. Ele busca a multiplicidade, sustentada na

    subjetividade e na objetividade da sua existncia material.

    Essa concepo de individualidade tem como base terica as discusses

    realizadas por Stirner (2004). Ao desenvolver uma crtica ao idealismo alemo, antes

    mesmo de Marx e Engels4, segundo defende Souza (1993), Stirner (2004) propem que a

    filosofia da sua poca estava mergulhada em proposies abstratas, classificadas como

    espritos. Nesse sentido, o indivduo devia ser compreendido fora dessa dimenso

    espectral, a partir de uma condio existencial, ou seja, o Eu o que ele consegue

    conceber, devido seus interesses subjetivos. A partir do momento em que v a luz do

    mundo, um ser humano busca encontrar-se e conquistar-se a si prprio no meio da

    confuso em que, com tudo o que h nesse mundo, se v lanado sem orientao

    (STIRNER, 2004, p. 15).

    Para Stirner (2004, p. 31), o principal motivo da imaterialidade do carter

    subjetivo o que ele chama de esprito. Este faz com que o homem veja o mundo por uma

    4 Essa posio restritiva de Stirner ao conceito de esprito nasce da sua crtica s concepes tericas herdadas de Hegel. Segundo Souza (1993), Stirner foi o primeiro a desenvolver uma concisa crtica s posies de esprito absoluto de Hegel e aos seus seguidores neo-hegelianos. Antes mesmo de Marx e Engels, ele j dava caminhos para o materialismo, e isso gerou um certo desconforto em Marx. Em A Ideologia Alem, Marx e Engels invertem o discurso de Stirner, acusando-o de idealista, concepo negada por vrios autores, dentre eles, Arvon (1954). Segundo Souza (1993, p. 185 e 186), o prestgio de Marx e a morte de Stirner, antes de conhecer sua crtica para poder respond-la, pois Marx escondeu os escritos e s publicou-os depois da morte de Stirner, contriburam para difundir esse equvoco criado por Marx. A ideia to generalizada de que Stirner um idealista ingnuo que simplesmente quer mudar o mundo pela crtica das ideias e iluses est entre uma distoro absurda e uma simplificao exagerada [por parte de Marx].

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  • 25

    tica fantstica, e o torna um possesso por ideias abstratas, transformando o sujeito em um

    corpo sedento por abstraes.

    Mas, onde que ele vai buscar este mundo espiritual? Onde, seno a si prprio? Tem de se revelar, e as palavras que pronuncia, as revelaes em que se desvela, so o seu mundo. Do mesmo modo que um visionrio vive apenas nas construes fantsticas que ele prprio cria e a tem o seu mundo, do mesmo modo que um louco gera o seu prprio mundo de sonho, sem o qual ele no seria louco, assim tambm o esprito tem de criar o seu mundo de fantasmas, no sendo espritos se os no criar.

    Quando se desvincula essa condio espectral do indivduo, parte-se para um

    entendimento de sujeito integrado ao mundo que o rodeia. Mas o que torna esse indivduo

    singular a sua capacidade de criao, e no sua capacidade de concepo irracional e

    imaterial, ou seu entendimento idealista. O sujeito stirneriano usa a ao existencial como

    elemento da sua construo pessoal. A partir do que Stirner classifica de apropriao, o

    indivduo se torna prprio, ou como denominado: nico. O processo de apropriao tem

    como base fundamental a associao dos nicos e a ao da revolta (temas que sero

    abordados com mais perspiccia ao longo deste trabalho).

    importante destacar que a construo singular do nico tarefa dele prprio,

    e no tem sustentao em concepes estruturantes e imateriais, como a famlia, Deus, a

    moral, direito etc. Outro trao marcante da subjetividade defendida por Stirner a

    singularidade do nico. As classificaes e generalizaes a ele se tornam insuficientes.

    [...] no h conceito que sirva para me dar expresso, nada do que me apresentam como minha essncia me esgota; so apenas nomes. Eu sou proprietrio do meu poder, e sou-o ao reconhecer-me como nico. No nico, o prprio proprietrio regressa ao nada criador de onde proveio. Todo o ser superior acima de mim, seja ele Deus ou o homem, enfraquece o sentimento da minha unicidade e empalidece apenas diante do Sol desta conscincia. Se a minha causa for a causa de mim, o nico, ela assentar no seu criador mortal e perecvel, que a si prprio se consome (STIRNER, 2004, p. 286).

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  • 26

    Essa posio subjetiva de Stirner gerou influncias nos autores que o sucedeu,

    tanto de forma direta quanto indireta. Este autor abriu novas possibilidades de

    entendimento do carter subjetivo. Pode-se afirmar que a partir de Stirner seguiu-se uma

    nova tradio na filosofia ocidental contempornea no que diz respeito aos temas

    relacionados busca de um novo homem (alm-homem) e da superao de Deus e dos

    metarrelatos5. O diferencial de Stirner que quando seus contemporneos, como

    Feuerbach, Bauer, Marx e Engels, buscavam uma sada filosfica para a crise do homem

    moderno, partindo do pressuposto atesta, Stirner j realizava uma crtica ao resultado da

    substituio de Deus pelo homem, assertiva realizada por Feuerbach (1988).

    Quando Stirner (2004, p. 148) afirma que os nossos ateus so pessoas

    devotas, ele mostra que o pensamento filosfico da sua poca estava tomado por ideias

    possessas, doentias e religiosas. Para ele, estava havendo somente uma substituio da

    compreenso de Deus pelo homem, mantendo a mesma concepo desta. Trata com ironia

    desse assunto dizendo que [...] quando Feuerbach destri a morada divina do esprito e o

    obriga a mudar-se de armas e bagagens c para baixo, ns, a sua morada terrena, vamos

    ficar muito superlotados (STIRNER, 2004, p. 35). Stirner (2004, p. 45) acusa Feuerbach

    de trocar o predicado pelo sujeito, e manter a mesma relao de devoo religiosa.

    Assim, Feuerbach diz-nos que se virarmos simplesmente do avesso a filosofia especulativa, isto , se fizermos do predicado sujeito, e desse sujeito objeto e princpio, chegamos verdade nua, pura, autntica. Mas com isso perdemos o ponto de vista estritamente religioso, perdemos o Deus que, deste ponto de vista, o sujeito; mas, em compensao, obtemos a outra parte do ponto de vista religioso, a moral. Deixamos, por exemplo, de dizer Deus o amor, e dizemos o amor divino. Se colocarmos ainda no lugar do predicado divino o seu

    5 Com relao ao termo metarrelato, buscou-se utilizar a conceituao defendida por Lyotard (1988), que prope que ele se dividia em dispositivo especulativo (Idealismo alemo, Hegel), dispositivo de emancipao (Iluminismo, Kant, Marx) e dispositivo corrosivo (Nietzsche). Este ltimo classificado por Lyotard (1988, p. 69) como o princpio de deslegitimao. Na sociedade e na cultura contempornea, sociedade ps-industrial, cultura ps-moderna, a questo da legitimao do saber coloca-se em outros termos. O grande relato perdeu sua credibilidade, seja qual for o modo de unificao que lhe conferido: relato especulativo, relato da emancipao. Dessa forma, o autor defende que preciso [...] resgatar os germes de deslegitimao e de niilismo que eram inerentes aos grandes relatos do sculo XIX [...].

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  • 27

    sinnimo sagrado, as coisas voltam exatamente ao ponto de onde partiram. O amor ser ento o que h de bom no homem, o seu lado divino, aquilo que o honra, a sua verdadeira humanidade. [...] Agora diremos: o divino o que h de mais verdadeiramente humano!

    A partir dessa crtica, Stirner (2004, p. 141) afirma que a religio humana

    apenas a ltima metamorfose da religio crist. O prprio Marx foi surpreendido com essa

    crtica ao seu maior influenciador da teoria materialista (Feuerbach), fazendo com que ele

    buscasse novos rumos na sua teoria, amadurecendo o materialismo histrico e dialtico no

    plano econmico e social, distanciando-o da perspectiva filosfica. Conforme discute

    Souza (1993, p. 75), a crtica contundente de Stirner a Feuerbach e ao homem, na

    ocasio em que foi feita, pegou sem dvida Marx desprevenido. Ainda em 1844, Marx

    estimava que o autor dA Essncia do Cristianismo derrotara radicalmente a velha filosofia

    e fundara o verdadeiro materialismo e a cincia do real. Conforme defende Souza

    (1993), Marx buscava, sob influncia de Hegel e Feuerbach, a construo de um novo

    homem, o homem genrico ou social, o que quer dizer que ele constitui natural e

    realmente um ser universal, e muito mais do que o simples indivduo.

    Diferente de Marx (2004), Stirner afirma que o homem genrico seria uma

    opresso ao homem singular, fazendo com que a possesso do Estado, ou de uma causa

    universal no alcanasse a autonomia do indivduo, pois seus desejos e aes no

    corresponderiam a de um todo geral. Sua crtica, muito presente, influenciou decisivamente

    as personagens de Dostoivski (especificamente Rasklnikov) e de Camus

    (especificamente Meursault), pois tm como trao marcante a singularidade e a ao de

    revolta. A crtica stirneriana tambm muito atual, pois nega as tentativas de eliminao

    do indivduo, a condio mecanicista e desenvolvimentista da sociedade, e prope, em

    contrapartida, a sua condio criativa de ser diferente. Essa atualidade na teoria do nico se

    manifesta nas interpretaes filosficas de Nietzsche, na fenomenologia e no

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  • 28

    existencialismo de Husserl, Heidegger e Sartre, e no ps-estruturalismo de Foucault,

    Deleuze e Guatarri, entre outros, conforme j foi destacado anteriormente.

    Com a proposta de buscar o alm-homem, Stirner mostra que pode ser

    arriscado transform-lo em um novo Deus (atitude tomada por Nietzsche, mesmo depois

    de Stirner ter anunciado esse risco anteriormente). O que diferencia sua teoria da de

    Nietzsche a materializao do nico. A singularidade do nico adquirida atravs da

    ao da revolta, defende Stirner (2004, p. 129).

    A liberdade vive apenas no reino dos sonhos! Pelo contrrio, a singularidade-do-prrprio toda a minha essncia e a minha existncia, sou eu mesmo. Eu sou livre de tudo aquilo que me desembaracei, e proprietrio daquilo que tenho em meu poder, ou de que sou senhor. Meu prprio (mein eigen), sou-o em cada momento e em todas as circunstncias, desde que saiba ter-me e no me entregar aos outros. Eu no posso verdadeiramente querer ser livre, porque isso no coisa que eu possa fazer ou criar: s posso desej-lo e... aspirar a isso, porque se trata de um ideal, de um fantasma. Os grilhes da realidade deixam a cada momento marcas profundas na minha carne. Mas eu continuo a ser meu.

    Por sua vez, essa concepo de liberdade e de insurgncia apresentada por

    Stirner fez com que ele fosse considerado o precursor do anarquismo individualista

    (ARMAND, BARRU, FREITAG, 2003) e o incentivador do niilismo e do anarquismo

    terrorista (MIRANDA, 2004). Suas teses tambm deram base ao existencialismo

    (ARVON, 1954) e ao ps-estruturalismo (NEWMAN, 2005).

    O nico e a sua Propriedade, de Stirner, teve fundamental importncia para

    sua poca e para as geraes futuras. Porm, o autor dessa obra to marcante no sculo

    XIX no teve seu reconhecimento merecido, devido acidez das palavras escritas naquele

    momento, que possivelmente no foram decodificadas com clareza e digeridas pelos

    conservadores e tambm pelos radicais. A crtica de Marx (1974) sua obra tambm foi

    um dos motivos do esquecimento da obra e do autor, e sua morte precoce, aos 49 anos, na

    misria, tambm correspondeu ao desaparecimento do mesmo. Para Miranda (2004), esse

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  • 29

    passageiro clandestino da histria, mesmo marginalizado e, s vezes, negligenciado, foi

    redescoberto ainda no sculo XIX, no seu final, pelo poeta anarquista John H. Mackay

    (2006), que escreveu sua primeira e mais completa biografia. Ele foi o responsvel por

    classific-lo de anarquista individualista, traduzindo parte da sua obra, trechos de cunho

    libertrio, e divulgando para os anarquistas.

    Para Arvon (1954, p. 1), a obra capital de Stirner tem como fundamental

    contribuio a sua negao despersonalizao do indivduo, promovendo uma srie de

    influncias nas geraes posteriores.

    L`unique et sa proprit est une raction brutale contre cette tentative gnrale de dpersonnalisation. Max Stirner fait ressurgir le Moi original, singulier, irrversible. Partant de la force de rupture que possde tout individu, il clbre l`irrductible exigence du Moi qui se situe en dehors et au-dessus de toutes les valeurs considres comme universelles. Un cri s`eleve de son livre toutes les servitudes imposes l`individu, cri qui retentit profondment dans la conscience de ss contemporains.6

    Arvon (1954, p. 7) afirma que a vida de Stirner foi marcada por um paradoxo,

    pois h uma contradio aparentemente irredutvel entre sua vida e sua doutrina.

    Comment concevoir, en effet, quun homme qui s`abandonne au gr des vnements, sans

    dfense et sans raction devant la vie puisse exalter la revolte totale?7 No livro de Stirner

    est explcita uma projeo da sua vida, mas uma projeo inversa. Vie lamentable,

    faillite totale: chec familial, chec universitaire, dchance sociale et, en dpit d`une

    gloire phmre, dchance littraire.8 Ao mesmo tempo que Stirner negava o

    6 O nico e sua propriedade uma reao brutal contra esta tentativa geral de despersonalizao. Max Stirner fez ressurgir o Eu original, singular, irreversvel. Portador da fora de ruptura que possui todo o indivduo, ele celebra a irredutvel exigncia do Eu que se situa fora e acima de todos os valores considerados universais. Um grito livre se eleva contra todas as servides impostas ao indivduo, grito que ressoava profundamente na conscincia de seus contemporneos. 7 Como conceber, com efeito, que um homem que se abandona vontade dos acontecimentos, sem defesa e sem reao diante da vida pode exaltar a revolta total? 8 Vida lamentvel, falncia total: fracasso familiar, fracasso universitrio, decadncia social e, apesar de uma glria efmera, decadncia literria.

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  • 30

    aprisionamento do indivduo, foi sufocado, em sua vida particular, pelas condies

    materiais da sociedade, da economia e do Estado.

    Max Stirner era pseudnimo de Johann Caspar Schmidt9. Nasceu em 26 de

    outubro de 1806, na cidade de Bayreuth, na Alemanha (Prssia). Sua famlia era de

    artesos, praticantes do protestantismo. Stirner perdeu seu pai um ano depois de seu

    nascimento (ARVON, 1954, p. 7).

    De 1818 a 1826, Stirner estudou no liceu clssico de Bayreuth e obteve, no

    exame final, uma excelente nota geral. De 1826 a 1835, nas Universidades de Berlim e de

    Erlangen, estudou filosofia, filologia e teologia, e teve por mestres Hegel, Feuerbach,

    Lachmann e Trendelenburg (ARMAND, BARRU, FREITAG, 2003).

    Em junho de 1834, em Berlim, as provas escritas do exame, em cinco

    disciplinas, evidenciam lacunas, mas a dissertao de Stirner sobre As leis da escola

    julgada favorvel. Em abril de 1835, as provas orais so claramente insuficientes e Stirner

    obtm apenas a Facultas docendi limitada, que no abre a porta do ensino pblico

    (BARRU, 2001, p. 33). Devido ao comportamento introvertido de Stirner, ele no foi

    aprovado para lecionar nas universidades pblicas, tendo que se satisfazer com o ensino

    particular. Esse fato deixou-o decepcionado, pois teve que se submeter a trabalhar em uma

    escola de moas conservadoras.

    Antes da publicao dO nico e a sua Propriedade, em 184510, Stirner

    publicou uma srie de artigos, dentre os mais marcantes: Arte e Religio; Sobre as

    Trombetas do Juzo Final; O Falso Princpio da Nossa Educao; Ensaio Provisrio sobre

    o Estado Fundado no Amor; Os Mistrios de Paris, de Eugne Sue. Depois dO nico e a

    9 Miranda (2004) informa que Stirner utilizou outros pseudnimos, como: Max Schmidt; M. St.; E. G. Edwards. Nunca utilizava seu verdadeiro nome. E Max Stirner refere-se sua ampla cabea (Stirn em Alemo). A proliferao de pseudnimos estava ligada frrea censura existente na primeira metade do sculo XIX e ao fato dele trabalhar em uma escola conservadora de moas. 10 Embora o livro de Stirner tivesse sido publicado no ano de 1844, aparece, na primeira edio, o ano de 1845.

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  • 31

    sua Propriedade, Stirner traduziu algumas obras para compor a renda, devido s

    dificuldades financeiras, respondeu aos crticos da sua obra capital e escreveu sua ltima

    obra: Histria da Reao, em 1852 (ARVON, 1954).

    Com uma vida marcada por fortes decepes, tanto amorosas como financeiras

    e profissionais, Stirner morreu em 26 de junho de 1856, em consequncia de uma infeco

    causada pela picada de uma mosca charbonneuse (ARMAND, 2003). Pouco antes de sua

    morte, Stirner foi preso duas vezes devido s dvidas causadas por sua vida em total

    misria. Ele no era mais visto, no frequentava ningum, fugia de seus antigos amigos.

    Vivia com os parcos e incertos recursos conseguidos no dia-a-dia (ARMAND, 2003, p.

    83).

    Alm da conturbada existncia, Stirner obteve fugaz reconhecimento. Com a

    publicao dO nico e a sua Propriedade, surpreendeu seus contemporneos devido s

    suas crticas corrosivas. Pouco tempo depois, foi esquecido de forma radical. Alm da

    obra, sua vida foi esquecida. No se encontra quase nada sobre sua vida particular, no

    existe nenhuma foto do autor, s um desenho feito por Engels anos depois de sua morte.

    Sobre sua personalidade, Armand (2003, p. 79) diz existir muito pouca informao.

    Somente que tinha um sorriso irnico, olhar sonhador e penetrante [...].

    [...] Nada de suas alegrias, nada de suas dores, nada dos detalhes de sua vida cotidiana. A bem da verdade no conheceram Stirner, em seu crculo de amizades, nem amigos ntimos, nem inimigos encarniados. Seu carter no parece t-lo conduzido nem a amar, nem a odiar apaixonadamente. Simples, correto, sbrio, quase sem necessidades, sem gostos particulares, salvo uma predileo pelo charuto e cerveja, era essa a imagem, segundo Mackay, que as pessoas que lhe foram prximas formavam dele. Forte e concentrado em si.

    Por outro lado, sua contribuio terica inegvel. Apesar de se intitular de

    nico e pregar essa construo pessoal nos indivduos, Stirner foi, aos olhos de vrios

    tericos, o precursor de vrias abordagens tericas. considerado o fundador do

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  • 32

    Anarquismo individualista, conforme destaca Passeti (2003, p. 9), pois foi o primeiro a

    acusar a opresso do Estado, da famlia e da religio contra o indivduo singular. Stirner

    a revolta contra o pensamento, o corpo domesticado. a ecloso da criana, inveno de

    vida constante e guerreira, na luta pelo objeto, e nada mais.

    A sua posio contrria ao homem genrico, universal e homogneo

    materializada no artigo O Falso Princpio da nossa Educao, publicado em 1842. Para

    Stirner (2001, p. 81), a misria da nossa educao [...] reside em grande parte no fato de

    que o Saber no se sublimou para tornar-se Vontade, realizao de si, prtica pura. [...]

    Cortaram-lhes magnificamente as asas: agora sua vez de cortar as dos outros! Foram

    adestrados, sua vez de adestrar! Atravs dessa concepo sobre a educao, Stirner

    tambm considerado um dos precursores da pedagogia libertria.

    Uma outra classificao conferida a Stirner a de formador da base filosfica

    existencialista. Segundo Arvon (1954), antes mesmo de Kierkegaard e de Nietzsche,

    Stirner j havia escrito sobre temas que posteriormente norteariam o existencialismo, que

    teve fora na primeira metade do sculo XX, na Frana. Sartre (2007), em O Ser e o Nada,

    deixa evidente a influncia de Stirner (2004), e Camus (2003b) discute, em O Homem

    Revoltado, um dos temas stirnerianos mais marcantes: a revolta.

    notria a forte influncia de Stirner em Camus. Alm do tema da revolta, que

    este compartilha com Stirner, h ainda o fato de Camus construir uma personagem

    singular, similar s ideias de Stirner. Do mesmo modo aconteceu anteriormente com

    Dostoivski, que recebeu forte influncia de Stirner, baseado no tema do crime, da

    insurgncia e da singularidade para compor Rasklnikov. No menos importante,

    Dostoivski insere ideias do nico em Os Irmos Karamazov, O idiota11 e em Memrias

    11 No romance em questo, o protagonista foi construdo por Dostoivski sob a influncia de Nichaev, niilista terrorista russo que julgava ser adepto de Max Stirner. Dostoivski mostra o crescimento do movimento dos jovens niilistas que baseavam seus atos de revolta, dentre vrias teorias, na obra de Stirner.

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  • 33

    do Subsolo, onde o narrador utiliza expresses stirnerianas. Diante da perspectiva subjetiva

    de Stirner, julga-se necessrio conhecer a sua influncia na construo das personagens

    Rasklnikov, de Dostoivski, e Meursault, de Camus.

    1.2.2 A composio dos prottipos de Rasklnikov

    Neste item, objetiva-se discutir a influncia exercida pelas ideias dO nico e a

    sua Propriedade, de Max Stirner, sobre a composio da imagem das ideias do heri

    Rasklnikov, de Crime e Castigo, de Fidor Dostoivski.

    Devido influncia deste filsofo sobre o contexto literrio de Crime e

    Castigo, faz-se necessrio abordar a influncia de Max Stirner sobre a composio dos

    prottipos das ideias de Rasklnikov12.

    O que se prope neste momento uma breve discusso do contedo das ideias

    do heri Rasklnikov que, segundo Bakhtin (2005, p. 89), os prottipos das ideias deste

    heri foram as idias de Marx Stirner13, expostas no tratado O nico e sua

    Particularidade, e as idias de Napoleo III, desenvolvidas por ele no livro A Histria de

    Jlio Csar [...].

    Ao tratar da relao entre as ideias do autor e as ideias do heri, Bakhtin (1997,

    p. 30) defende que impossvel qualquer correspondncia teoricamente fundamentada

    entre um heri e um autor, pois a relao de natureza diferente.

    Enquanto dominante artstico na construo da imagem da personagem, a autoconscincia j se basta por si mesma para decompor a unidade monolgica do mundo artstico, desde que a personagem seja realmente representada e no expressa enquanto autoconscincia, ou melhor, no se funda com o autor nem se

    12 O nome Rasklnikov foi criado por Dostoivski a partir da palavra "raskol", ou seja, "diviso, separao, ruptura". 13 Encontra-se Marx Stirner, mas a forma correta Max Stirner. E a traduo do livro deste autor encontrado em portugus O nico e a sua Propriedade, e no O nico e sua Particularidade.

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  • 34

    torne veculo para a sua voz, desde que conseqentemente, os acentos da autoconscincia da personagem estejam realmente objetificados e a prpria obra estabelea a distncia entre a personagem e o autor. Se no estiver cortado o cordo umbilical que une a personagem ao seu criador, ento no estaremos diante de uma obra de arte mas de um documento pessoal (BAKHTIN, 2005, p. 50 e 51).

    Por sua vez, Camus (2006, p. 115 e 116) defende que h uma relao intrnseca

    entre filosofia e literatura, entre o universo do autor e sua manifestao artstica.

    O pensamento abstrato obtm por fim seu suporte de carne. E, ao mesmo tempo, os jogos romanescos do corpo e das paixes se ordenam um pouco mais, seguindo as exigncias de uma viso do mundo. No se contam mais histrias, cria-se seu universo. Os grandes romancistas so romancistas filsofos, ou seja, o contrrio de escritores com teses. Vejam Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Dostoivski, Proust, Malraux, Kafka, para citar s alguns.

    Camus (2003b, p. 302) defende que;

    O mundo romanesco no mais que a correo deste nosso mundo, segundo o destino profundo do homem. Pois trata-se efetivamente do mesmo mundo. O sofrimento o mesmo, a mentira e o amor, os mesmos. Os heris falam a nossa linguagem, tm as nossas fraquezas e as nossas foras. Seu universo no mais belo nem mais edificante que o nosso.

    Dostoivski introduziu nos seus romances temas contemporneos sua poca.

    E, influenciado por Turguniev (1971), desenvolveu em um de seus romances (Crime e

    Castigo) uma personagem com caractersticas semelhantes s dos niilistas russos do sculo

    XIX. Segundo Camus (2003b, p. 194),

    O niilismo dos anos de 1860 comeou, aparentemente, pela negao mais radical possvel, rejeitando qualquer ao que no fosse puramente egosta. Sabe-se que o prprio termo niilismo foi inventado por Turguniev no romance Pais e Filhos, cujo heri, Bazrov, era o retrato fiel desse tipo de homem.

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  • 35

    Em um trecho do referido romance, h um dilogo entre as personagens

    Arcdio, Pviel Pietrvitch e Nicolau Pietrvitch, no qual este ltimo pergunta quem

    Bazrov.

    - Ele niilista repetiu Arcdio. - Niilista disse Nicolau Pietrvitch vem do latim, nihil, e significa nada, segundo eu sei. Quer dizer que essa palavra se refere ao homem que... em nada cr ou nada reconhece? - Pode dizer: o homem que nada respeita explicou Pviel Pietrvitch, voltando novamente sua ateno para a manteiga. - Aquele que examina tudo do ponto de vista crtico sugeriu Arcdio. (TURGUNIEV, 1971, p. 32).

    Como j foi dito, Dostoivski se utilizou das ideias de Napoleo e Stirner para

    compor as imagens das ideias de Rasklnikov. O heri se assemelha com a ideia do

    egosmo racional do imperador e do direito de matar defendido por ele. Segundo defende

    Frank (1992, p. 143 e 144),

    Napoleo, como a encarnao do poder absoluto, implacvel, desptico, h muito freqentava a imaginao russa, e Dostoivski estava familiarizado com as vrias fontes literrias, inclusive seu querido Pchkin, onde a imagem de Napoleo usada como smbolo de uma vontade de poder no controlada por consideraes morais de qualquer tipo.

    Porm, o comportamento moral de Rasklnikov no estava somente baseado

    nas ideias de Napoleo, mas tambm na necessidade de contestar a condio de homem

    ordinrio, na busca de se tornar um extraordinrio, da a influncia da singularidade do

    nico de Stirner. Rocha (1970, p. 39) expe que a prtica do crime tida, em Crime e

    Castigo, como mecanismo para que o homem do subsolo se defina. Saindo da taberna,

    alguns se lanam ao. Rasklnikov matar a velha usurria para saber se um homem

    extraordinrio, um Napoleo, ou apenas um homem de rebanho. Rocha (1970, p. 39)

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  • 36

    refora que nas obras de Dostoivski o homem um ser que por essncia, se pe

    problemas: vive de idias.

    Todavia, em O nico e a sua Propriedade que se tem a possibilidade de

    encontrar uma farta fonte das ideias que trazem ao homem a noo de singularidade,

    unicidade, vigor e transio do sujeito sem singularidade para o sujeito nico, o qual

    concebido atravs da ao do prprio indivduo, no se submetendo aos valores morais e

    aos dogmas autoritrios da sociedade, mas sua prpria vontade de mudana e

    transformao.

    Pode-se estabelecer uma relao entre o discurso de Stirner e o de

    Rasklnikov. Miranda (2004, p. 300) defende que Stirner exerce forte influncia sobre o

    comportamento de Rasklnikov. Nas Memrias do Subterrneo, a voz do annimo

    professor a voz de Stirner, que submergira no Subterrneo, para reaparecer luz do dia

    nas frases de Rasklnikov ou de Ivan Karamazov.

    O comportamento de Rasklnikov, caracterizado pela ironia, astcia, e,

    principalmente, pela forma egosta e particular de se relacionar com as pessoas, encontrada

    em vrios trechos do livro, o mesmo comportamento e atitude defendidos pelo filsofo

    Stirner. Alm do mais, o individualismo, a cometida do crime, a vontade de poder e o fato

    de se sentir superior, singular e autoconsciente fazem parte da filosofia desenvolvida em

    seu tratado, do mesmo modo que Rasklnikov desenvolve no seu artigo uma tese,

    dividindo os homens em ordinrios e extraordinrios. Para exemplificar o que foi

    discutido, seguem-se alguns trechos do romance Crime e Castigo e do tratado O nico e a

    sua Propriedade:

    Ou renunciar totalmente vida! gritou de repente com furor , aceitar docilmente o destino como ele , de uma vez por todas, e sufocar tudo em mim, abrindo mo de qualquer direito de agir, viver e amar!

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  • 37

    No, a vida me dada uma vez, e ela nunca mais voltar: e no quero esperar a felicidade geral. E eu mesmo quero viver, do contrrio o melhor seria no viver. (DOSTOIVSKI, 2001, p. 61 e 284).

    No tenho nada contra a liberdade, mas desejo que tenhas mais do que liberdade; o que tu precisas, no apenas de te libertar do que no queres, mas tambm de ter aquilo que queres, ser, no apenas homem livre, mas tambm eu-proprietrio (Eigner). (STIRNER, 2004, p. 127).

    Trs j seriam muito, e isso para que cada um sentisse mais segurana no outro do que em si mesmo! [...] Cada um fica dependendo do outro a vida inteira! Ora, seria melhor estrangular-se! (DOSTOIVSKI, 2001, p. 176).

    Como podereis vs ser verdadeiramente nicos enquanto existir entre vs um lao social que seja? Se vos ligais, no podeis existir de forma independente, se um lao vos une, s a dois sereis alguma coisa, e os vossos doze fazem uma dzia, os vossos milhares um povo, os vossos milhes a humanidade. (STIRNER, 2004, p. 110).

    s na minha idia central que eu acredito. Ela consiste precisamente em que os indivduos, por lei da natureza, dividem-se geralmente em duas categorias: uma inferior (a dos ordinrios), isto , por assim dizer, o material que serve unicamente para criar seus semelhantes; e propriamente os indivduos, ou seja, os dotados de dom ou talento para dizer em seu meio a palavra nova. (DOSTOIVSKI, 2001, p. 269).

    Eu sou proprietrio do meu poder, e sou-o ao reconhecer-me como nico. No nico, o prprio proprietrio regressa ao nada criador de onde proveio. Todo ser superior acima de mim, seja ele Deus ou o homem, enfraquece o sentimento da minha unicidade e empalidece apenas diante do Sol desta conscincia. (STIRNER, 2004, p. 286).

    Formam a segunda categoria todos os que infringem a lei, os destruidores ou inclinados a isso, a julgar por suas capacidades. [...] Mas se um deles, para realizar sua idia, precisar passar por cima ainda que seja de um cadver, de sangue, a meu ver ele pode se permitir [...]. (DOSTOIVSKI, 2001, p. 270).

    Eu, porm, autorizo-me a mim prprio a matar se no proibir a mim prprio o homicdio, se no recear o assassinato como injustia. Desde sempre o egosta se afirmou pelo crime e se riu do sagrado: a rotura com o sagrado (ou melhor, do sagrado) pode generalizar-se. (STIRNER, 2004, p. 151 e 191).

    Vale ressaltar que os fragmentos acima citados no esgotam as semelhanas

    entre o nico de Stirner e o extraordinrio de Rasklnikov. Pois o primeiro elaborou um

    tratado filosfico, e o segundo um elemento que faz parte do todo romanesco. Sendo

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  • 38

    assim, a forma como a filosofia tratada em O nico e a sua Propriedade e em Crime

    Castigo so diferentes, j que no romance, a filosofia um objeto esttico. No tratado

    filosfico, as ideias so debatidas de forma direta sobre um determinado tema. E no

    romance, as ideias so apresentadas, de forma geral, implicitamente, demandando certa

    ateno do leitor para que identifique-as ao longo do enredo.

    1.2.3 bermensch de Nietzsche e a crtica ao homem racional

    Pensava vagamente em me suprimir, para aniquilar pelo menos uma dessas existncias suprfluas. Mas at mesmo minha morte teria sido demais. Demais, meu cadver, meu sangue sobre aquelas pedras, entre aquelas plantas ao fundo daquele jardim risonho. E a carne corroda teria sido demais na terra que a recebesse, e meus ossos, finalmente, limpos, descarnados, asseados e imaculados como dentes, tambm teriam sido demais: eu era demais para a eternidade.

    Sartre (2002, p. 190).

    Antes de mostrar a relao entre Stirner e a construo das personagens de

    Camus, em especial a de Meursault, ser discutida brevemente a contribuio da teoria

    stirneriana para o pensamento de Nietzsche, principalmente no que se refere aos temas

    relacionados ao bermensch (super-homem), sua posio enquanto sujeito singular, aos

    temas relacionados crtica da razo, e ao atesmo.

    Para o desenvolvimento deste trabalho, utiliza-se uma organizao linear,

    buscando discutir as ideias que partem de Stirner, perpassam por Dostoivski, Nietzsche,

    at chegarem a Camus.

    Partiu-se da base filosfica originria, que causou uma ruptura no pensamento

    ocidental, abrindo novos caminhos na filosofia que se baseia na singularidade e

    irracionalidade, ou seja, o legado de Stirner. Em seguida, mostrou-se sua contribuio para

    a composio literria de Dostoivski, que representou considervel expoente na forma do

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  • 39

    que Nietzsche interpretou como a morte de Deus. Mesmo que no tenham provas da

    influncia que Nietzsche sofreu de Stirner, seus temas se coadunam. Ento, novamente

    afirma-se que de Stirner a Camus, passando por Dostoivski e Nietzsche, existe uma ponte

    de pensamento fortemente edificada.

    Todas as pesquisas sobre o pensamento de Nietzsche e Stirner apontam para a

    falta de provas da influncia do ltimo sobre o primeiro. Conforme mostra Miranda

    (2004), h autores que sinalizam que Nietzsche no leu Stirner, mas fez leituras de autores

    que por ele foram influenciados. H estudos que apontam que Nietzsche foi um plagiador

    de Stirner, e temendo essa comparao futura, tentou esconder provas, tendo como

    exemplo a inexistncia do livro O nico e a sua Propriedade na sua biblioteca pessoal

    (MIRANDA, 2004). Por outro lado, o autor de Assim Falava Zaratustra afirmou a um

    aluno que havia lido os filsofos neo-hegelianos, considerando este perodo da filosofia

    ocidental o mais espetacular, desejando ter participado deste momento.14 Sobre esta

    polmica, existem autores que afirmam que Nietzsche no tem influncia de Stirner, que

    somente alguns temas so compatveis, e que Nietzsche voltou-se mais a uma compreenso

    subjetiva, at mesmo mtica da realidade, enquanto Stirner interpretou a realidade de forma

    mais material ou direta. O que no pode ser negligenciado a forte proximidade de temas

    que os dois autores discutem, mesmo sabendo das suas diferenas tericas.

    Uma contribuio fundamental de Nietzsche se d no campo da crtica moral

    religiosa e sua relao hierrquica entre a superioridade do sagrado e a inferioridade das

    vontades humanas. Para Nietzsche, a exaltao da vontade manifestada na busca de exaurir

    os desejos, destruindo valores antes forjados e buscando novas competncias individuais,

    promovia a transmutao dos valores. A fluidez e a transitoriedade eram elementos

    14 Nietzsche nasceu em 1844, ano de publicao dO nico e a sua Propriedade, de Stirner, e faleceu em 1900. No perodo que Stirner publicou este livro, foi o perodo de maior efervescncia do movimento dos neo-hegelianos.

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  • 40

    fundamentais para a busca de um alm-homem ou super-homem. Nesta lgica, Nietzsche e

    Stirner discutem os mesmos temas.

    Schopenhauer influenciou de forma marcante o pensamento nietzschiano,

    sendo classificado por ele como o grande educador. Porm, o autor de O Mundo como

    Vontade de Representao defendia que as vontades humanas eram o bero de todo o

    sofrimento e aprisionamento, tendo como fonte o princpio de individuao. Portanto,

    Schopenhauer (S/D, p. 175) pregava a negao de todas as vontades como atitude de sanar

    ou diminuir o sofrimento. Para ele, quanto mais elevado o ser, mais sofre. Afirmava,

    sobre forte influncia da filosofia milenar oriental, que a vida asctica era a sada para a

    superao da dor. Este autor considerado o precursor do pessimismo moderno na

    filosofia, influenciando decisivamente Nietzsche e outros autores na interpretao das

    vrias conceituaes de niilismo.

    Por sua vez, Nietzsche (S/D, p. 231) pregava a inverso da teoria

    schopenhaueriana. No lugar de negar a vontade, era fundamental afirm-la, tendo como

    pano de fundo um alm-homem, que deixou para trs todos os valores fragilizados com o

    culto da racionalidade humana. Zaratustra informa sobre a importncia do super-homem

    para a dissoluo das fraquezas humanas advindas da moral crist. Compreendeis esta

    palavra, meus irmos? Assustai-vos: apodera-se-vos do corao a vertigem? Abre-se aqui

    para vs o abismo? Ladra-vos o co do inferno? Homens superiores! Deus morreu: agora

    ns queremos que viva o Super-homem.

    Na cano de embriaguez de Zaratustra, Nietzsche (S/D, p. 258) mostra a fora

    da alegria em contraposio dor. atravs de uma posio niilista ativa que Nietzsche

    conclama a superao dos homens doentios, amargurados e fragilizados.

    Que no h de querer a alegria! mais sedenta, mais cordial, mais terrvel, mais secreta que toda a dor; quer-se a si mesma, morde-se a si mesma, agita-se nela a

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  • 41

    vontade da anilha; quer amor, quer dio, nada na abundncia, d, arroja para longe de si, suplica que a aceitem, agradece a quem a recebe, quereria ser odiada; to rica que tem sede de dor, de inferno, de dio, de vergonha, do mundo, porque este mundo, ah, j o conheceis. Homem, excita o crebro! Que diz a profunda meia-noite? Tenho dormido, tenho dormido! De um profundo sono despertei: O mundo profundo, mais profundo do que o dia pensava. Profundo a sua dor e a alegria mais profunda que o sofrimento! A dor diz: Passa! Mas toda a alegria quer eternidade, quer profunda eternidade!

    De forma semelhante ao nico de Stirner e ao extraordinrio de Dostoivski, o

    super-homem de Nietzsche via como entrave para o desenvolvimento do sujeito o temor, a

    fraqueza, o ressentimento religioso, o ato de se posicionar como rebanho. Era necessrio se

    reconhecer como diferente. Estruturas universalizantes colocava-se como a runa do alm-

    homem. E a fonte de toda essa construo amesquinhadora do indivduo se pautava na

    moral religiosa e na submisso racionalidade coletiva. Nietzsche (1977, p. 45 46)

    mostra como decorre a resistncia do cristianismo para com a autonomia do indivduo.

    O cristianismo quer tornar-se senhor de animais ferozes; o meio de o conseguir torn-los doentes; o enfraquecimento a receita crist para a domesticao, para a civilizao [...], o cristianismo ainda no encontra essa civilizao: cria-a se for necessrio.

    Dostoivski e Nietzsche se baseiam, de um modo geral, na mesma perspectiva

    de compreenso dos indivduos. Os dois os tratam com um teor aristocrtico, considerando

    a diviso entre homens ordinrios e extraordinrios. Os ltimos so capazes de se

    superarem, so a forma inacabada de alm-homens. a partir desses autores que outros

    escritores margeiam a possibilidade de transmutao de valores, ou a negao do homem

    racional domesticado pela moral. nesse ponto que Stirner se diferencia de Dostoivski e

    de Nietzsche, pois o autor do nico defende que todos j so nicos por natureza, s resta

    cometerem a revolta, apropriarem do que lhes oprime, destrurem fantasmas interiores e

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  • 42

    exteriores que lhes assombram e que foram construdos voluntariamente para sua

    neutralizao. Stirner parte de uma base material para discutir a busca do alm-homem, que

    o prprio homem, mas de atitude autnoma. Stirner alerta para o perigo de se construir,

    antes mesmo de Dostoivski e de Nietzsche, novos fantasmas interiores, novos homens-

    deus.

    Mas o que une esses trs autores a crtica neutralizao do indivduo pela

    massa, a crtica da drenagem da vitalidade pessoal pelas foras sociais, econmicas e

    polticas, a luta contra a morte da autonomia (ou do alm-homem) pela engrenagem

    coletiva, baseada na sufocante e incansvel busca pelo desenvolvimento econmico,

    fundado na razo mecanicista. Dessa forma, Nietzsche (1983, p. 94) acusa a busca

    incessante pela razo como a causadora da frieza do mundo, tornando-o sem vida e sem

    vontade e paixo.

    [...] o constante e laborioso processo da cincia, por fim comemora seu triunfo mximo em uma histria gentica do pensar, esse processo cujo resultado talvez pudesse desembocar nesta proposio: aquilo que agora denominamos mundo o resultado de uma multido de erros e fantasias, que surgiram pouco a pouco no desenvolvimento total do ser orgnico, cresceram entrelaados e agora nos so legados como tesouro acumulado do passado inteiro como tesouro: pois o valor de nossa humanidade repousa nele. [...] Talvez reconheamos ento que a coisa em si digna de uma homrica gargalhada: ela parecia tanto, e mesmo tudo, e, propriamente, vazia, ou seja, vazia de significao.

    Alm do tema da razo, outra abordagem comum que Nietzsche coaduna com

    Stirner baseia-se na fora da religio na sujeio do indivduo. Segundo Nietzsche (1977,

    p. 106), o homem religioso, tal como a Igreja o quer, um decadente tpico [...]; o

    mundo interior dum homem religioso assemelha-se ao mundo interior dum homem

    sobrecarregado e esgotado, a ponto de nos fazer confundir os dois.

    O parasitismo, nica prtica da Igreja, bebendo, com o seu ideal de anemia e de santidade, o sangue, o amor, a esperana da vida; o alm, negao de toda a

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  • 43

    realidade; a Cruz, sinal de adeso para a conspirao mais subterrnea que jamais existiu conspirao contra a sade, a beleza, a rectido, a bravura, o esprito, a beleza de alma, contra a prpria vida... (NIETZSCHE, 1977, p. 137 138).

    O indivduo nauseado citado no incio do item, na epgrafe, reclama da sua

    existncia suprflua. O nico, o extraordinrio e o super-homem alertavam (cada um a seu

    modo) para tal situao na qual o sujeito estava inserido. No lugar desta situao,

    propunham a busca pela superao dos antigos valores humanos, a busca pelo alm-

    homem.

    Sobre essa base interpretativa da subjetividade humana, Camus tambm

    almejou a superao do homem enclausurado, massificado, tomado pelo absurdo. O

    diferencial de Camus que esse homem estrangeiro no seu prprio mundo. O

    estrangeiro a sntese da singularidade, a linha de fuga das padronizaes, e s atravs

    da revolta que ele materializa sua unicidade.

    1.2.4 A materializao da revolta em Camus

    Em decorrncia do discurso desenvolvido por Stirner, marcado por bravatas

    extremistas e dotado de certa acidez, este autor no recebeu certa considerao pelos

    autores que o sucedeu. Encontram-se poucas anlises e referncias tericas sobre sua obra,

    no que se refere ao valor da sua contribuio. Segundo Miranda (2004), somente Arvon

    (1954), no sculo XX, tratou com certa considerao da produo intelectual de Stirner,

    referindo-se a ele como o fomentador do existencialismo. Ainda conforme Miranda (2004),

    Derrida (1993) foi o primeiro filsofo a tratar de forma sistemtica, dando considervel

    respeito aos objetivos tericos de Stirner, ou seja, discutindo-o devidamente como filsofo.

    Antes desse momento, Camus (2003b, p. 85 - 86), ao discorrer sobre o homem revoltado,

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  • 44

    aborda a importncia de Stirner como um dos maiores tericos da revolta, sendo ele o

    responsvel por uma das mais radicais posies afirmativas da insurgncia.

    Assim, sobre os escombros do mundo, o riso desolado do indivduo-rei ilustra a vitria ltima do esprito de revolta. Mas, neste extremo, nada mais possvel, a no ser a morte ou a ressurreio. Stirner e, com ele, todos os revoltosos niilistas correm para os confins, bbados de destruio. Depois, quando se descobre o deserto, preciso aprender a subsistir nele.

    Segundo Camus (2003b, p. 84), a partir de Stirner fundamenta-se uma nova

    tradio no sculo XIX de interpretar as manifestaes insurgentes, como sendo um ato

    poltico de transformao das estruturas autoritrias do Estado. Com Stirner, o movimento

    de negao que anima a revolta submerge irresistivelmente todas as afirmaes. Expulsa

    tambm os sucedneos do divino dos quais a conscincia moral est carregada.

    Para construir uma genealogia do homem revoltado, Camus (2003b) buscou

    distintos momentos e autores que basearam nesta manifestao social ou individual. O

    autor partiu da antiguidade, passando pela idade moderna (destacando a importncia de

    Sade), passando pela efervescncia revoltosa do sculo XIX, chegando ao sculo XX, onde

    ele produz um novo cogito de Descartes: Eu me revolto, logo existimos (CAMUS,

    2003b, p. 35).

    No momento em que Camus (2003b) aborda o sculo XIX, ele destaca a

    importncia de Pisarev, Bakunin e Nichaiev, denominando-os de os trs possessos, como

    sendo importantes nomes incentivadores ou provocadores da revolta. Estes trs possessos

    por revolta buscaram em Stirner a base de fundamentao de seus niilismos, pois partiram

    da reivindicao de Stirner [segundo o qual] ressurge com a rejeio de toda histria e a

    deciso de forjar o futuro, no mais em funo do esprito histrico, mas em funo do

    indivduo-rei (CAMUS, 2003b, p. 183).

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  • 45

    Camus (2003b, p. 86) no deixa de lado a fundamental contribuio de

    Nietzsche para o entendimento do ser subjetivo, destruidor de valores atravs do niilismo

    ativo. Com Nietzsche, o niilismo torna-se pela primeira vez consciente. Mas em

    Dostoivski que Camus (2003b, p. 51) demonstra onde se encontra a fonte literria da

    revolta, atravs das personagens Rasklnikov e Ivan Karamazov.

    At Dostoivski e Nietzsche, a revolta s se dirige a uma divindade cruel e caprichosa, a divindade que prefere, sem motivo convincente, o sacrifcio de Abel ao de Caim e que por isso provoca o primeiro assassinato. Dostoivski, na imaginao, e Nietzsche, de fato, ampliaro desmesuradamente o campo de atuao do pensamento revoltado e iro pedir uma prestao de contas ao prprio deus de amor.

    Por outro lado, segundo defende Camus (2003b), a base filosfica da revolta

    encontra-se em Stirner (2004). Este autor discorre acerca da importante distino entre

    revolta e revoluo. Para Camus (2003b), quando Stirner faz esta distino, ele abre novas

    possibilidades, agora mais flexveis, de discutir a insurgncia. Sob forte influncia dO

    nico e a sua Propriedade, Camus (2003b) enriquece o conceito de revolta (escrevendo

    um livro estritamente sobre o tema), dando maior nfase a este assunto at ento

    considerado por tericos como manifestaes isoladas, sem pretenses polticas.

    Para Stirner (2004) e Camus (2003b), a revolta tem conotao de transmutao

    de valores, sendo o meio mais importante de emancipao do indivduo. Para o ltimo

    autor, a revolta est vinculada fortemente arte, e atravs dela abre-se novas possibilidades

    de superao do niilismo. A revolta, at ento, tinha a religio como o principal problema a

    ser combatido. A partir de Camus, a revolta dedicou-se mais especificamente ao combate

    das questes que aflige o ser humano.

    No romance O Estrangeiro, Camus (2007) aborda os dois temas centrais de sua

    produo intelectual: o absurdo e a revolta. Esta destacada atravs de sua perspectiva

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    mais originria (herdada de Stirner), destacando o comportamento individual da

    personagem Meursault e os conflitos que advm da sua atitude singular, restringida pela

    condio massificada da sociedade. Em A Peste, Camus (2003a) retoma o tema da revolta,

    com maior amplitude, mostrando como a ao criativa de indivduos que prezam a

    autonomia e a liberdade individual produz uma revolta coletiva, que possibilita aos sujeitos

    tomarem conscincia coletiva desvinculada da conscincia massificada, dando

    possibilidades aos mesmos de superarem situaes limite. Diante dessa condio, o cogito

    camusiano, eu me revolto, logo existimos, experimentado atravs do romance.

    Para Camus (2006), a superao do absurdo est vinculada estritamente ao

    da revolta. Mas esta revolta deve ser decodificada pelos indivduos, para se tornar uma

    condio existencial constante na atitude dos sujeitos. Diante desta lgica de pensamento,

    Meursault a personagem chave que anuncia a perspectiva da revolta, por isto ela a

    materializao da revolta.

    Como j foi destacado, Stirner (2004) buscou distinguir a revolta da revoluo,

    e ao fazer esta distino, o autor props a ao do nico como sendo a forma de se praticar

    a revolta. Segundo o citado autor, a revoluo d caminhos de mudanas estruturais que,

    no jogo de articulao poltica e social, retornaria novamente aos estgios de estabilizao

    do poder centralizante, ferindo o prprio princpio da revoluo que desestabilizar

    estruturas autoritrias reinantes. Dessa forma, a revoluo daria falsa iluso de mudana

    radical, substitui