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    O CURSO DE GEOGRAFIA FSICA DE IMMANUEL KANT (1724-1804): UMA CONTRIBUIO PARA A HISTRIA E A

    EPISTEMOLOGIA DA CINCIA GEOGRFICA

    ALEXANDRE DOMINGUES RIBAS

    Doutorando em GeografiaUniversidade Estadual de Campinas

    ANTONIO CARLOS VITTE

    Professor do Departamento de Geografia

    Universidade Estadual de Campinas

    As idias cosmolgicas, o Curso de Geografia Fsica e seusrespectivos lugares no itinerrio da filosofia kantiana: trsproposiesprimaciais

    Quedam em completa claudicaoaqueles que imputam ao itinerrio

    da filosofia kantiana uma uniformidade ou uma invariabilidade.Renunciando, em absoluto, a qualquer pretenso de pr em dvida ainflexvel preocupao de Immanuel Kant com o cartersistemtico de suafilosofia (ou, ento, de desconfiar da conformidade imanente a estaltima), assentimo-nos assegurar que poucos nobres espritosdemonstraram se confrontados com o filsofo de Knigsberg tamanhagenialidade e intrepidez em reinventar-se a si mesmo, isto , emrevolucionar suas prprias idias, alargando-as, re-significando-as eaprofundando-as. tomando como pujana a plasticidade, a amplido e a

    fertilidade do mago crtico que as abalizam.H, desse modo perdoe-nos o provvel uso imprprio do conceito1

    rugosidades (isto , marcas amoldadas pela coexistncia e/ou sucessode ocasies de continuidades-descontinuidades; interrupes-

    Endereo eletrnico dos autores Alexandre Ribas:[email protected] e AntonioCarlos Vitte:[email protected]. Esse provvel uso imprprio, de certo modo, no nos preocupa! Como assevera Schiller

    (1989), o entendimento, vezes sem conta, reduz o mundo a uma aparncia fugaz e, paraassim trat-lo, tem que fix-lo aos grilhes da regra, que descarnar seu belo corpo emconceitos e conservar seu esprito vivo numa precria carcaa verbal!

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    ininterrupes; rupturas-manutenes-revolues; saltos tericos lineares-refluxo afontes anteriores) no decurso de realizao da filosofia kantiana.Por essa razo, incidiria em malogro a aspirao de encaixilhar o itinerriointelectual de Kant em uma taxonomia, pois que a complexidade de seusistema crtico extrapola a toda e qualquer improfcua vontadeclassificatria2.

    Atingimos, assim, a primeira proposio primacial dessa nossaexposio: a realizao da filosofia kantiana manifesta-se, em seuitinerrio, como um processo no-uniforme, no-invarivel e,conseqentemente, assinalado por rugosidades, apesar (ou, talvez,justamente por causa) de seu carter sistemtico.

    Adentrando nos temas do sistema filosfico kantiano, encontramos

    junto a tantos outros desassossegos que afligiam essa mente impar umafirme outorga de Kant s idias de ordem propriamente cosmolgica.Desse modo, a problemtica cosmolgica (ou seja, a questo em tornoda metafsica do mundo)fez assiduamente - companhia ao nosso filsofono decurso da realizao de sua empresa intelectual e, entre outras coisas,ogovernou a acossar o arranjode umsistema cosmolgico.

    Essa pretensoem edificar um sistema cosmolgico revela-se, pelaprimeira vez de forma sistematizada, em sua obra Histria Geral daNatureza e Teoria do Cu, publicada em 17553. O interesse inicial de Kant

    pelas idias cosmolgicasparece ter sido despertado pelo largo e intensodebate filosfico que se iou em torno da metafsica do mundo (de modoespecial, pela altercao gerida, sobretudo por Leibniz e Wolff diantedo processo de laicizao da investigao cosmolgicae, por conseguinte,

    2. Para validar tal idia, salientamos, por exemplo, a relaofilosfica de Kantcom G. W.Leibniz (1646-1717). No h dvidas que Kant por vezes, via Christian Wolff (1679-1754) fez de Leibniz sua principal fonte inspiradora nos seusprimeiros escritos (em suadenominada fase pr-crtica). O mesmo Leibniz parece na Dissertao de 1770 e,sobretudo, na Crtica da Razo Pura (1781) e nos Princpios Metafsicos da Cincia da

    Natureza (1786) lanado aos escombros quando da adeso de Kant a Isaac Newton(1642-1727) e sua metodologia. No obstante, eis que na Crtica da Faculdade do Juzo(1790), o velho Leibniz ressurge como fundamento em Kant para uma abordagemdinmica da natureza em oposio tese da imutabilidade da natureza de basenewtoniana.3. Nessa obra, Kant se prope, essencialmente, a descobrir [...] o sistema (dasSystematische) que rene os grandes membros da criao em toda a extenso dainfinidade (KANT, 1984:65, traduo nossa) e a fazer derivar[...] das leis mecnicas, aformao dos prprios corpos celestes e a origem de seus movimentos do primeiro estadoda natureza [...] (KANT, 1984:65, traduo nossa).

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    do mecanicismo cartesiano e da filosofia naturalde Newton) e, tambm,pela ocorrncia, em 1755, do Terremoto de Lisboa4 (que fez fervilharem solo europeu - a contenda a respeito da ordem e da finalidade danatureza).

    Todavia, intrujam-se aqueles que abreviam o interessede Kant pelasidias cosmolgicas ao seu escrito de 17555. Na verdade, o motivocosmolgico persistena extenso de todo o itinerrio filosficokantiano(CLAVIER, 1997). Para autenticar essa afirmativa basta grifarmos que jem 1747, em sua obra Pensamento sobre a verdadeira estimao dasforas vivas6, Kant trata, mesmo que indiretamente, do objetocosmolgico. Em sua clebre Dissertao de 1770, nosso filsofo re-significa aproblemtica cosmolgica, transmudando o sentido do conceitode mundo. Em 1781, sua sublime Crtica da Razo Pura praticamente

    desautoriza a razo cosmolgica, sepultando-a ao lado das fantasiosaspretenses da metafsica clssica7. Contudo, o motivo cosmolgico

    4. Esse episdioabalou, profundamente, a mentalidadeeuropia da poca. A conjectura domelhor dos mundos possveis, que exaltava o otimismo sado da filosofia de Leibniz,

    parecia ruir com a prpria cidade de Lisboa e Voltaire em seu Cndido ou o Otimismo ironicamente, proclamou sua falncia. A natureza tem um fim? Ela possui uma ordem?Ser o homem apenas o produto casual e temporrio de uma natureza cega e sem

    propsito, to-somente um espectador irrelevante de seus feitos, um intruso em seus

    domnios (BURTT, 1983)? Cabe algum lugar ao homem na teleologia csmica?Indagaes como estas viraram lugar-comum entre os pensadores europeus da poca eKant no escapoua elas! Alm disso, esse acontecimento, entre outros aspectos,explica aadeso de Kant s lies de Geografia Fsica, que ele passara a oferecer, emKnigsberg, a partir de 1756.5 Estamos, obviamente, nos remetendo obra Histria Geral da Natureza e Teoria doCu.6 Nessa obra, segundo Clavier (1997), instigadopela questo Que preciso para fazerum mundo? questoesta, inclusive, que atravessatodo seu empreendimentointelectual

    Kant constri os conceitos de espao, de lugare de extenso, a partir da matria e domovimento.7 Na Crtica da Razo Pura, Kant afirma que abranger o mundo enquanto uma totalidadeabsoluta em si no passa de uma ambio nula da metafsica. Tal cobia seriaengravidada de uma contradio da razo especulativa consigo mesma, quando esta ousaexceder os limites da experincia. Se no podemos conhecer um objeto como coisa em si,mas apenas um objeto cuja intuio correspondente ao conceito pode nos ser dada,

    portanto, como fenmeno (objeto da intuio sensvel), logo, pretender apreender a alma,Deus e o mundo (como totalidade absoluta) um ato sem prstimo, pois esses objetos nopodem nos ser dados numa intuio. Essa contradio da razo consigo mesma,denunciada por Kant pelo mecanismo da Antinomia, neutraliza, consequentemente,

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    ressurge e se revoluciona na Terceira Crtica de 1790, mediante a idia desistema, de organicismo da natureza, de juzo esttico e de juzoteleolgico8.

    Assentimo-nos, assim, ostentar a segunda proposio primacial

    dessa nossa exposio: h uma declarada persistncia do motivocosmolgico em toda a extenso da filosofia kantiana. E mais: otratamento outorgado por Kant, em suas principais obras, s idiascosmolgicas esparge re-significaes; variaes; liames; continuidades-descontinuidades; interrupes-ininterrupes; rupturas-permanncias. Eessa exasperada re-significao das idias cosmolgicas em Kant espelha,indiscutivelmente, a no-uniformidade e as rugosidades imanentes suafilosofia.

    As duasprimeiras

    proposies primaciais at aqui oferecidasexprimem uma afinidade ingnita entre si: a) a filosofia kantiana (mesmosendo sistemtica) est longe de ser uniforme em seu decurso; aocontrrio, ela manifesta-se em notrias rugosidades; b ) o motivocosmolgico persiste em toda a extenso desta filosofia e, espelhando suacompleio, tambm se realiza de modo no-uniforme.

    H um verdadeiro deslocamento de sentido do conceito de mundo aolongo do decurso das idias cosmolgicas de Kant (CLAVIER, 1997).Esse continuado inclinar de Kant sobre o conceito de mundo e,

    quaisquer produes cosmolgicas. Desse modo, em sua Primeira Crtica, Kant declara[...] fora de uso os conceitos metafsicos relativos ao mundo (CLAVIER, 1997:7,traduo nossa) e, com isso, ele [...] mandou os conceitos cosmolgicos ao cemitrio dashipteses metafsicas (CLAVIER, 1997:8, traduo nossa).8 Apesar de enviar, em suaPrimeira Crtica, as produes cosmolgicas ao cemitrio dashipteses metafsicas, Kant mantm uma abalizada persistncia em seu projetocosmolgico. Clavier (1997), afirma que, j no Apndice dialtica transcendental, Kantreconhece que a razo terica pode encontrar um bom uso nas idias cosmolgicas, ao

    propor [...] ao entendimento um fio diretor no exame da natureza (p. 10, traduonossa). A razo pode, com as idias cosmolgicas, detectar uma lei de unidade

    sistemtica de todos os fenmenos. Portanto, Kant no abandona, em momento algum deseu itinerrio filosfico, o interesse pela unidade do todo do mundo. Tanto que a

    fora das Antinomias no abortou sua persistncia pela razo cosmolgica (CLAVIER,1997). Isso se revela, por exemplo, em 1785, quando ele publica seu ensaio Sobre osvulces da lua, onde conserva a hiptese cosmognica da Teoria do Cu. E, em suaTerceira Crtica, Kantassume, claramente, que o [...] idealismo transcendental interditaa cosmologia racional como parte da metafsica: mas ele no suprime a perspectivacosmolgica na investigao em Cincia da natureza (CLAVIER, 1997:11, traduonossa).

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    conseqentemente, sobre a possibilidade (ou no) de uma metafsica domundo, declara incontestavelmente o seu resoluto comprometimentocom a construo metafsica da superfcie da Terra. Portanto, no foi poruma mera casualidade que Kant dedicou-se, tenazmente, GeografiaFsica, ministrando-a, na forma de Curso, por quase quatro dcadas nacidade de Knigsberg. Assim como tambm no foi uma puerileventualidade o fato de ele ter autorizado no rematar de sua vida apublicao de algumas notas deste seu Curso, em 1802.

    Desse modo, mais do que um Curso ministrado para atender to-somente a uma obrigao profissional ou financeira ou, ento, paraexperimentar (e manifestar) seu gnio universal e enciclopdico, aGeografia Fsica ininterruptamente se mostrou, a Kant, como umconhecimento provido de uma desmedida significao metafsica, j que

    ela lhe sugeria a prpria possibilidade de empiricizao de sua filosofia.Conseqentemente, seria um profundo desacerto desprender os estudosgeogrficos de Kant dos contedos e das intenes de seu sistemafilosfico.

    Encontramo-nos, ento, ante a terceira proposio primacial queesteia essa nossa exposio: a Geografia Fsica(curso professorado porKant durante quase quatro dcadas e que, em 1802, foi editado por Th.Rink na forma de livro) espelha (no sentido de ser um produto) as re-

    significaes experimentadas pelas idias cosmolgicas no trajeto darealizao da filosofia transcendental kantiana. Ao mesmo tempo, aGeografia Fsica, atua como uma espcie de fora geratriz destas re-significaes sofridas pela cosmologia kantiana quando denuncia, aosolhos do filsofo de Knigsberg, a empiricidade (e a heterogeneidade) domundo e o obriga a formular uma nova imagem de natureza. Essa novaimagem que suplanta a submisso da natureza simetria totalizante daRazo e redimensiona mediante a aplicao do juzo reflexivo comocomponente de sua apreenso e de sua representao aparece nas

    pginas de sua sublime Crtica da Faculdade do Juzo,publicada em 1790.Eis, de tal modo, as trs proposies primaciais enlaadas

    ternamente: a) no devemos sucumbir ao equvoco de conferir filosofiakantiana um itinerrio uniforme. Essa altiva filosofia apesar de seuinabalvel desejo de sistema e da conformidade a ela pertencente realiza-se, em seu transcurso, mediante rugosidades; b) do mesmo modo,no podemos cair na claudicao de abreviar a problemticacosmolgica kantiana ao seu escrito de 1755. O motivo cosmolgico

    persiste na extenso de todo empreendimento intelectual de Kant. Por semostrar pertinaz ao longo de toda a superfcie da filosofia kantiana, esse

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    motivo cosmolgico acaba por espelhar as rugosidades ingnitas a estafilosofia; c) o Curso de Geografia Fsica ministrado por Kant por quasequarenta anos no pode ser dissociado do contedo e do alcance dasduas proposies anteriores. O interesse de Kant pela Geografia semprefoi eminentemente metafsico, filosfico. Ela, a Geografia Fsica, tantoum produto como, tambm, uma pea impulsionadora dessa no-uniformidade imanente filosofia e ao motivo cosmolgico kantianos. AGeografia Fsica instiga nosso filsofo a redimensionar seu conceito demundo e a buscar apreender a multiplicidade da natureza para alm dasimetria totalizante da Razo. A Geografia Fsica, por fim, compe aexperincia esttica que sustenta a nova imagem de natureza aclamadapor Kant em sua Crtica da Faculdade do Juzo, datada de 1790.

    A Geografia Fsica de Kant: notas sobre sua transmutao deCurso em Livro

    O que teria levado Kant considerado, por muitos, como sendo omodelo mpar do filsofo9 - a auferir autoridade Geografia Fsica, aponto de oferecer um Curso dirigido a esta disciplina? J asseguramos,anteriormente, que desprender os estudos geogrficos de Kant de suasintenes filosficas no passa de um ato sem prstimo. O interesse de

    Kant pela Geografia Fsica jamais esteve cingido a uma mera atividadeprofessoral ou a um simples hbito enciclopdico; ao contrrio, ele semprefoi fundamentalmente filosfico, compondo seu intento metafsico ecosmolgico.

    Kant ofereceu Cursos de Geografia Fsica por quase quarenta anos,em Knigsberg. Todavia, ele jamais escreveu uma obra designadamentedirecionada a esta disciplina. Na verdade, Kant elaborava alguns manuaisque eram empregados nas suas aulas de Geografia Fsica. Ele era assduoleitor de narrativas de viagens, de relatos de expedies cientficas, dejornais, revistas, etc. Ou seja, Kant inegavelmente possua um cabedalexpressivo de informaes geogrficas (geodsicas, corogrficas, etc.)sobre diversos pases. Algumas notas destes manuais elaborados por Kantforam publicadas, em 1802, por um de seus antigos alunos, Thomas Rink.Possivelmente, tais notas que foram encontradas em dois cadernos exprimem contedos e concepes expostas por Kant, em seu Curso, j nafase mais derradeira de sua vida.

    9. De Quincey (1989), por exemplo, assevera no existir um nico escritor filosfico que possapretender aproximar-se de Kant na extenso ou na profundidade da influncia exercida sobre asmentes dos homens.

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    Aquilatamos ser proeminente (e, ao mesmo tempo, indispensvel)ostentar uma exposio mais meticulosa desse processo de transmudaoda Geografia Fsica de Kant de Curso em Livro, principalmente parapodermos situ-la no bojo da dilatada e infatigvel atividade professoraldeste eminente e egrgio filsofo.

    No outono de 1740, no dia de So Miguel, aps freqentar por oitoanos o Collegium Fridericianum, Kant foi conduzido Universidade deKnigsberg, onde seguiu os cursos de filosofia, que abarcavam afilosofiapropriamente dita e as cincias (PASCAL, 1996; DE QUINCEY, 1989).

    Em 1747, com o falecimento de seu pai, Kant v-se obrigado aabandonar a Universidade, antes mesmo de ter adquirido todos os seusgraus acadmicos. A partir de ento, para ganhar a vida, ele passa a

    desempenhar a funo depreceptorde famlias ricastanto de Knigsbergcomo de seus arrabaldes. Ele exerceu o cargo de preceptor por,aproximadamente, nove anos (PASCAL, 1996).

    Kant, prximo dos seus 30 anos, j havia se decidido pelo trabalhona Universidade. Seguindo a tal ambio, em 12 de junho de 1755 eleobteve o apetecido ttulo de licenciado junto Faculdade de Filosofia deKnigsberg e, desde ento, passou a estar habilitadoa abrir um curso livre(BOROWSKI, 1993).

    Impetrada a habilitaopara oferecer cursos livres, Kant encetousuas lies de Lgica (seguindo a Meier), de Metafsica (seguindo,primeiramente, a Baumeister e, posteriormente, a Baumgarten), de Fsica(seguindo a Eberhard) e de Matemtica (seguindo a Wolff) (BOROWSKI,1993). Em seguida, ps-se a instruir conferncias sobre Direito Natural,sobre Moral, sobre Teologia Natural e, mais tarde, sobre Antropologia esobre Geografia Fsica (BOROWSKI, 1993).

    Kant desempenhou a funo de Docente Livre por quatorze anos,sendo seus cursos financiados pelos prprios alunos (PASCAL, 1996).Kant tentou elevar-se ao cargo de catedrtico em 1756 e ainda em 1758,mas no auferiu xito. Em 1767, foi-lhe oferecida a ctedra de Potica,mas ele prontamente recusou. Aceitou, no entanto, em 1767, o posto deinspetor na Biblioteca Real, mas abdicou do mesmo em 1772, em razo daamplido de suas outras atividades, que o impedia de dedicar-se cominteireza referida funo(BOROWSKI, 1993).

    Em 1770, com sua clebreDissertao sobre a forma e os princpiosdo mundo sensvel e do mundo inteligvel, Kant foi designado para a

    ctedra de matemtica, que pouco depois ele permutaria pela de lgica e

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    metafsica. Com isso, ele conseguira, finalmente, o posto de professortitularou ordinrio.

    Mesmo aps ter se estabelecido como docente titular daUniversidade de Knigsberg, Kant prosseguiu exercendo o ofcio de

    professor por conta prpria (isto , de maneira autnoma) at 1793. Naverdade, para sermos mais exatos, ele manteve suas lies pblicas at,aproximadamente, o ano de 1797. Aos seus cursos privados, Kantrenunciou em 1793, porque suas foras j estavam escassaspara oferec-los com probidade. Aos que procuravam por seus cursos, a partir destadata, Kant indicava os professores Prschke, Gensichen e o licenciadoJesche (BOROWSKI, 1993).

    Desse modo, at o interromper de sua vitalidade, ou seja, at o

    definhar de sua eficcia, Kant continuou, ininterruptamente, a ministrarseus cursos. E, para o sobressalto de muitos, no era filosofia que eleensinava primordialmente. Kant ofertou ao longo de sua atividadeacadmica (estreada em 1755/56 e rematada em 1796/97) aproximadamente, 267 ciclos de cursos, sendo que, destes, 54 foramdedicados lgica e metafsica (20,2%); 49 geografia fsica (18,4%);46 tica (17,2%); 28 antropologia (10,5%); 24 fsica terica (8,9%);20 s matemticas (7,5%); 16 ao direito (6%); 12 enciclopdia dascincias filosficas (4,5%); 11 pedagogia (4,1%); 4 mecnica (1,6%); 2

    mineralogia (0,7%) e 1 teologia (0,4%).Notamos que a Geografia Fsica foi, ao longo da atividade

    acadmica de Kant, a segunda disciplina mais lecionada, exatamentedepois da lgica e da metafsica. Isentando a inegvel e irrefragvelimportncia quantitativa desta cincia no total dos cursos por eleadministrados, Kant foi, ainda, [...] o primeiro filsofo a introduzir estadisciplina Universidade antes mesmo que a primeira cadeira deGeografia fosse criada por Karl Ritter, em Berlim, em 1820 (COHEN-HALIMI, 1999:11, traduo nossa).

    Isso no significa, em hiptese alguma, que antes de Kant estadisciplina no fosse ensinada em territrio europeu. No entanto, nenhumfilsofo havia se interessado pela geografia como Kant [...] a ponto deensinar e de redigir um manual a este fim (COHEN-HALIMI, 1999:11,traduo nossa).

    No havia, de fato, nenhum manual que pudesse servir-lhe comoreferncia e:

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    [...] por isso ele redigiu a Geografia Fsica, e este fato tantomais notvel que na poca, ele era estritamente proibido de

    professar um curso em seu prprio nome, cada professordevia se conformar a um manual oficialmente reconhecido. Aexceo da Geografia Fsica fez assim o objeto de um decreto

    de von Zedlitz, de 16 de outubro de 1778, pelo qual Kant eraautorizado a ensinar esta disciplina segundo suas notas,conforme as suas notas ou ainda segundo as suas prpriasnotas (COHEN-HALIMI, 1999:11, traduo nossa).

    Esse manuscrito,elaborado por Kant e empregado como referncias suas aulas de Geografia Fsica, acrescido por notas tomadas por seusestudantes durante os cursos, apareceu s tardiamente, em 1802, sendo quesua edio ficou sob o encargo de Thomas Rink, um antigo aluno

    especialmente selecionado por Kant para a publicao do que viria a setornar um livro.

    O cartertardio de sua publicao permite-nos entender a razo queleva Cohen-Halimi (1999) a concluir que [...] de fato, o Curso deGeografia Fsica acompanha por assim dizer clandestinamente todo opercurso filosfico de Kant [...] (p. 10, traduo nossa). Destarte, apesardeste mistifrio entre o manuscrito de Kant e as notas adicionadas por seusalunos-ouvintes, algumas pesquisas filolgicas (como a de E. Adickes)

    [...] permitem ter o Curso de Geografia como uma obra kantiana autntica[...] (COHEN-HALIMI, 1999:9, traduo nossa). Isso porque seucontedo espelha um curso concebido e professorado por Kant e, por maisque esta seja uma obra reconstituda a partir do acrscimo de notastomadas por estudantes, ela considerada como parte integrante daherana intelectual kantiana.

    A Geografia e a Geografia Fsica em Kant: apontamentos conceituais

    O livro Geografia Fsica10 iniciado com uma Introduo Descrio fsica da Terra. Trata-se, este, de um momento em que Kant entre outros assuntos prende sua ateno em exibir uma definio degeografia (fsica).

    Kant, primeiramente, define a geografia (fsica) como sendo umapropedutica do conhecimento do mundo. E o mundo, para ele, significa atotalidade (o solo sobre o qual nossos conhecimentos so adquiridos e

    10 Essa obra se encontra no tomo IX da edio das obras de Kant realizada pela Academiade Cincias da Prssia (1902), Berlim, Walter de Gruyter, 1968 (KANT, 1999).

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    aplicados) que, por sua vez, a condiosine qua nonpara a representaodo homem e da natureza enquanto umsistema.

    O desejo de sistema submete, para Kant, os estudos geogrficos.Desse modo, em sua acepo, o escopo arquitetnico subjuga o

    conhecimento do mundo. essa pretenso arquitetnica (sistmica) quefunda esta cincia, fazendo-a tratar o mltiplo como sendo derivado dotodo. por essa razo que ele define ageografia (fsica) como sendo umadescrio da Terra inteira, ou, o conhecimento do mundo (KANT, 1999).

    importante grifar que, para Kant, a geografia (fsica)seria a nicacincia apta a descrevera superfcie da Terra em sua totalidade, isto , adescrevere representara natureza enquanto umsistema. Desse modo, Kantafirma ser ageografia (fsica)uma descrio raciocinada de tudo o que

    visvel superfcie terrestre. Para ele, portanto, a geografia (fsica) noseria uma mera descrio, mas uma descrio associada [...] s causasimediatas dos efeitos da superfcie que ela descreve (MARCUZZI,1999:45, traduo nossa). Por isso, ageografia (fsica) seria um inventrioraciocinado dos quadros do mundo, ou ento, uma descrio raciocinadada superfcie da Terra.

    Kant tambm se preocupa, nesse cometimento conceitual, em [...]designar a todos os conhecimentos o lugar que lhe prprio (1999:68,traduo nossa). E, no que tange ao ordenamento dos conhecimentos

    empricos, estes s podem ser alocadosseja sob conceitos, seja segundo otempo e o espao onde os encontramos realmente (KANT, 1999). Adiviso dos conhecimentos segundo conceitos, Kant denomina de diviso(classificao) lgica; j a diviso que feita segundo o tempo e o espao,ele designa de diviso (classificao) fsica. Pela primeira, diz ele, [...]obtemos umsistema da natureza [...] como por exemplo [...] o de Linneu,pela segunda [...] uma descrio geogrfica da natureza (KANT, 1999:67e 68, traduo nossa).

    A classificao fsica (que se ope classificao lgica) sedemonstraria para Kant segundo o tempo (histria) esegundo o espao(geografia). Dessa maneira, tanto a histria como a geografia seriamconhecimentos histricos; porm, a primeira seria uma narrao e asegunda uma descrio (KANT, 1999). Nesses termos, a geografiabuscaria, portanto, descrevero lugar das coisas sobre a superfcie da Terra,propondo uma diviso fsica dos fenmenos distribudos sobre a Terra eno uma diviso lgica no sentido de Linneu (que pretendia,essencialmente, classificar as coisas mediante suas semelhanas ou

    dessemelhanas). A descrio geogrfica, deste modo, espelharia o teatro

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    da natureza, a [...] Terra em si mesma e as regies onde se achamrealmente as coisas [...] (1999:69, traduo nossa).

    Contudo, surge, nesse momento, uma indagao relevante: qual oatributo que no comparece na classificao lgica e que, ao mesmo

    tempo, concede especificidade classificao fsica? Diz o filsofo deKnigsberg: o espao que negligenciado na classificao lgica e este atributo que fornecea especificidade(e a fertilidade) da classificaofsica. Desse modo, para Kant, o espao outorga classificao fsica oatributo de fazer ver os contedos da empiricidade do mundo e danatureza.

    justamente essa espacialidade da superfcie da Terra, ou seja, essaempiricidade distribuda (e ordenada) espacialmente, que uma mera

    diviso conceitual no consegue alcanar e representar. Essa qualidadeatinente classificao fsica nos aclara, assim acreditamos, as razes queencaminharam Kant geografia. Esta disciplina lhe concedia apossibilidade de representar o mundo como um sistema, ou ento, derepresentar a natureza teleologicamente organizada.

    Aps desunira geografia das classificaes lgicas (distinguindo adiviso lgica da diviso fsica), Kant busca discrimin-la da histria(demonstrando a diferena entre uma diviso fsica segundo o tempo e umadiviso fsica segundo o espao). E o elemento discriminante primordial,

    mais uma vez, o espao; eleque especificao estudogeogrfico face aoexame histrico. Seguindo a esta acepo, Kant assevera que [...] ahistria como a geografia podem ser chamadas todas duas uma descrio,com esta diferena [...] que a primeira uma descrio segundo o tempo ea segunda uma descrio segundo o espao [...] (1999:69, traduonossa).

    Nesse mbito, para Kant, tanto a histria como a geografia [...]alargam pois o campo de nossos conhecimentos do ponto de vista do

    tempo e do espao (1999:69, traduo nossa). Entretanto, a histria [...]diz respeito aos eventos que so desenrolados uns aps os outros do pontode vista do tempo [...] (KANT, 1999:69, traduo nossa), ao passo que ageografia [...] diz respeito aos fenmenos que se produzem ao mesmotempo do ponto de vista do espao [...] (p. 70, traduo nossa). Todavia,de acordo com os objetos que ela trata, ageografia, na concepo de Kant,toma diferentes nomes: geografia fsica, geografia matemtica, geografiapoltica, geografia moral, geografia teolgica, geografia literria ougeografia de mercado.

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    Apoiando-se em tais assertivas, Kant chega sua ilao principal:[...] A histria uma narrativa enquanto que a geografia uma descrio.Por conseguinte, ns podemos bem ter uma descrio da natureza mas nouma histria da natureza (Kant, 1999:70, traduo nossa). E nossofilsofo emenda: A geografia e a histria preenchem a totalidade (IX, 163)do campo de nossos conhecimentos: a geografia, o do espao, e a histria,o do tempo (KANT, 1999:72, traduo nossa).

    Eis, ento, ageografia desprendida da histria e, conseqentemente,da histria natural, sobretudo, da de Buffon. E o responsvel por estaemancipao, o espao, quepermitiu a separao da geografia dossistemas lgicos, como o de Linneu, que visava a classificao danatureza, segundo uma ordem fundamentada na teologia natural. O prprioKant assevera que: pois somente do ponto de vista do espao e do

    tempo que a histria (Historie) difere da geografia (1999:70, traduonossa).

    Essa descoberta da natureza na superfcie da Terra, exige uma novalgica, uma nova linguagem, novos smbolos e, enfim, uma nova metforapara a natureza e seus processos. H uma des-teleoligizao da naturezapelos estudos cientficos. Esse o momento em que ocorre a emancipaoda geografia fsica moderna. Segundo Bttner (1975):

    Kant joints the debate by making clear with inexorable poingnancy

    (in doing so he goes decisively further than his teacher Wolff) thatgeography can help neither to prove the existence of God nor furnishproof against his existence (as the advocates of the French Enlightenmentespecially tried to do). Geography is theologically neutral (BTTNER,1975:239).

    Nesse sentido, para Kant, a geografia apresentava-se como umacincia dotada de uma fecundidade nica pois, por ser discriminada dadiviso lgica, ela se revelavaem condies de representar a empiricidade

    realda superfcie da Terra (ou os quadros do mundo); ao passo que, por serdesunida da histria naturalde Buffon, essa cincia mostrava-se capaz deespelharasistematicidade da natureza organizada (ou seja, sua teleologia).E encostado nessas consideraes que Kant se sente vontade paralanar sua concepo mais lmpida (e exata) de geografia: ela umadescrio segundo o espao (KANT, 1999).

    Geografia Fsica, Cosmologia e Esttica em Kant: consideraes

    finais

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    Incontestavelmente, o que concebemos porgeografia moderna (e,logo, cientfica) um corpo de saberes resultante deproblemas filosficos.Essa assertiva aparentemente to prosaica pode conduzir-nos aconseqncias deveras ressaltantes, caso nos coloquemos a perscrutar agnese epistemolgica da cincia geogrfica.

    A histria da cincia geogrfica, vezes sem conta, -nos narradacomo uma sucesso unidimensional de biografias de algumas ilustrespersonalidades. Se nos perdermos ocasionalmente nestes sedutoresfragmentos biogrficos, acabamos por deslembrarmos que a geografiamoderna (e cientfica) insurge em meio a um projeto de explicao domundo. Ou seja, ela nasce de um pacto para se explicar e construir omundo.

    E, dentro deste pacto, a geografia concede Modernidade umprojeto de construo da superfcie da Terra, isto , ela empiriciza ainveno do mundo, via inveno do que a superfcie da Terra. Logo,permitindo essa construo metafsica da superfcie da Terra, ou seja,concedendo um atributo cientfico validao do emprico daModernidade, a geografia moderna (e cientfica) declara-se como umaderivao direta deproblemas eminentemente filosficos, ou, ento, comoproduto de umprojeto da Razo humana.

    Nessa peregrinao da geografia pela Modernidade, Bernhard

    Varenius (1621-1650) exercera a tarefa de tentar formatar, numalinguagem geogrfica, a fsica de Ren Descartes (1596-1650). Kant quefoi um leitor atento dos escritos de Varenius parece entregar-se a umprocedimento similar; entretanto, ao invs da fsica cartesiana, ele buscageografizara fsica de Isaac Newton (1642-1727). Newton, alis, foi quemoficializou a noo de espao, fazendo de seu carter absoluto osustentculo da imutabilidade da natureza, mediante sua lei da inrcia(NEWTON, 2008).

    Newton foi, inegavelmente, um modelo a Kant durante boa parte desua laborao intelectual. Sua Crtica da Razo Pura (1781), por exemplo,exala newtonianismo, ao fazer da metodologia empregada pelo filsofoingls um verdadeiro cnone da Razo. Kant chega, por vezes, a ser maisnewtoniano que o prprio Newton!

    No por acaso, julgando a pertinncia das crticas dirigidas porLeibniz (via Clarke) a Newton acusando o newtonianismo de no possuiruma fundamentao metafsica Kant escreveu seus Princpios

    Metafsicos da Cincia da Natureza em 1786 (KANT, 1990) justamentepara balizar, filosfica e metafisicamente a fsica de Newton.

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    Mais do que nunca, Kant, nessa sublime obra, assume onewtonianismo como uma metodologia e, com sua sagacidade impar,praticamente autoriza a existncia de uma cincia da natureza. A Crticada Razo Pura (KANT, 1982)e os Princpios Metafsicos da Cincia daNatureza (KANT, 1990) so essencialmente newtonianos, estandoestritamente sustentados na matemtica e na geometria de Newton.

    Kant, assim, chega em meados de 1780 com um aporte newtonianoslido e inabalvel. Sua concepo de espao, em linhas gerais, alinhava-se com o espao absoluto newtoniano. Kant apenas transfere o resguardode sua universalidade num a priori dasensibilidade. Sua idia de naturezaescorava-se na tese da imutabilidade da natureza de base newtoniana,cimentada pela lei da inrcia. A natureza, assim concebida, ficava numestado de subservincia ao universalismo do entendimento.

    Chegamos a um ponto em que tudo parecia resolvido a Kant! Pois,segundo o prprio filsofo de Knigsberg, a reflexo racional se exerceem dois domnios: o terico e o prtico-moral. Em suas duas primeirasCrticas, Kant havia lanado de modo bastante radical novosfundamentos da experincia, quer de um ponto de vista estritamenteterico, quer do ponto de vista da teoria moral. Definindo os limites emque o saber terico ou o prtico podem e devem se desenvolver, oprogramacrtico kantiano parecia ter chegado ao fim (MARQUES, 1998).

    Eis, ento, que o velho Kant, j no anoitecer de sua vida, ousarevolucionar sua prpria filosofia e decide publicar sua Crtica daFaculdade do Juzo, no ano de 1790 (KANT, 1985). No teriam, j, asCrticas precedentes tratado do uso prtico e terico da razo? Por que,ento, uma Terceira Crtica? O que teria ficado em aberto em suas outrasCrticas?

    Kant formulou a Terceira Crtica em razo de algumas lacunasporele sentidas. Lacunas estas no simplesmente deixadas por alguma

    incompletude imanente s Crticas anteriores, mas ingnitas completude(e s necessidades) de um sistema do qual elas faziam parte. E quemdespertou nosso sublime filsofo para o reconhecimento de tais lacunas foia natureza (MARQUES, 1998).

    Essa re-significao derramada na Terceira Crtica coincide como momento em que Kant passa a questionar o paradigma geomtrico-matemtico newtoniano. O prprio Kant reconhece que, na Crtica daRazo Pura, ele abordou a natureza to-somente a partir do que o

    entendimento prescrevia a priori como lei para ela, isto , enquanto umcomplexo de fenmenos (cuja forma dada igualmente a priori). A

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    natureza parecia esvada frente a esse poder simtrico da Razo todo-poderosa!

    Dessa maneira, como j asseveramos antes, as noes de espao e denatureza, defendidas por Kant at 1790, espelhavam a tese da

    imutabilidade da natureza, austeramente amparada na lei da inrcia deNewton. Mas como esse espao a priori (universal) e essa natureza(imutvel) poderiam se enlaar com o emprico, com a multiplicidadefenomnica? Se a natureza universal, por que ela se manifesta enquantomultiplicidade? Como pode ser diferente o que universal?

    A Crtica da Faculdade do Juzo (KANT, 1995)busca responder atais indagaes. E, para levar a efeito tal empresa, o velho Kant vairegressar a Leibniz e sua concepo dinmica de natureza. Ele vai

    retomar, do mesmo Leibniz, a idia de espao como coexistncia entreseres/entes, rompendo com sua universalidade e necessidade apriorstica.Do mesmo modo, ele regressa a Plato e retoma deste o conceito de forma.Como resultado dessa revoluo, ele formula a noo dejuzo.

    E a noo dejuzo vem justamente tentar aproximar os domnios danatureza e da liberdade; e issoleva em Kant a um interesse renovadopela prpria natureza. Desse modo, na Crtica do Juzo, Kant buscarestaurar a imagem da natureza resultante da Crtica da Razo Pura. SuaTerceira Crtica vem, precisamente, exibir um novo modelo de

    inteligibilidade da natureza.Essa nova imagem de natureza fabricada em meio s

    preocupaes de Kant em redefinir a prpria relao entre o particulare ouniversal. Para apreender a particularidade do particulare para produziruma representao da natureza em sua materialidade fenomnica, Kantlana mo das noes de conformidade a fins,juzo reflexivo,juzo estticoe juzo teleolgico. Eis uma sensvel fenda aberta em direo representao daplasticidade da natureza.

    A noo de conformidade-a-fins vai exercer forte influncia em J.W.Goethe (1749-1832), sobretudo em sua noo de morfologia; e e mAlexander von Humboldt (1769-1859), especialmente em sua idia deconexo entre os diferentes elementos da natureza. Kant, portanto, indiscutivelmente uma fonte de onde desguam os pilares para aedificao epistemolgica da geografia em sua conotao moderna(VITTE,2008; SILVEIRA, 2008).

    Kant, naspginas de sua Crtica do Juzo, concede o primeiropasso

    em direo possibilidade de encontrar o universalnosingularmediante aexperincia esttica. Kant, na verdade, inventa a esttica moderna!

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    Schiller (1759-1805) que produz uma verdadeira reconstruo dafilosofia kantiana leva ao extremo o uso da experincia esttica,especialmente com sua noo de impulso ldico. Goethe, nos vos desua genialidade, concebe a cincia como um modo de experenciar o belo.Humboldt amigo de Schiller e de Goethe escreve seus Quadros daNatureza (HUMBOLDT, 1953) justamente como tentativa de fazercincia como uma experincia esttica. Entretanto, ele vai alm e funda arepresentao da espacialidade da natureza.

    Nesse cenrio aqui singelamente desenhado, resta-nos uma ltimaindagao: o que teria despertado Kant para a heterogeneidade e aempiricidade da natureza? O que teria chamado sua ateno para asformas diversas da natureza, para suas particularidades e para suasconformidades a fins? O que o teria empurrado a formular um novo

    modelo de inteligibilidade da natureza?Longe de se apegar a uma nica causapara esse despertar, ou, ento,

    para essa verdadeira revoluo operada por Kant no findar de seuempreendimento filosfico, no hesitamos em afianar que seu Curso deGeografia Fsica serviu como uma dasforas geratrizespara to profcuae sublime reinveno!

    O CURSO DE GEOGRAFIA FSICA DE IMMANUEL KANT (1724-1804): UMA CONTRIBUIO PARA A HISTRIA E AEPISTEMOLOGIA DA CINCIA GEOGRFICA

    Resumo: H um relativo depauperamento no tocante ao nossoconhecimento a respeito da relao entre a filosofia kantiana e aconstituio da geografia moderna e, conseqentemente, cientfica. Estarelao, quando abordada, o - vezes sem conta - de modo oblquo outangencial, isto , ela resta quase que exclusivamente confinada ao ato denoticiar que Kant ofereceu, por aproximadamente quatro dcadas, cursosde Geografia Fsica em Knigsberg, ou que ele foi o primeiro filsofo ainserir esta disciplina na Universidade, antes mesmo da criao da ctedrade Geografia em Berlim, em 1820, por Karl Ritter. No ultrapassar a puerildivulgao deste ato em si mesma s nos faz jogar uma cortina sobre aausncia de um discernimento maior acerca do tributo de Kant fundamentao epistmica da geografia moderna e cientfica. Abrir umafrincha nesta cortina denota, necessariamente, elucidar o papele o lugardo Curso de Geografia Fsica no corpus da filosofia transcendental

    kantiana. Assim sendo, partimos da conjectura de que a Geografia Fsicacontinuamente se mostrou, a Kant, como um conhecimentoportador de um

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    desmedido sentido filosfico, j que ela lhe denotava a prpriapossibilidade de empiricizao de sua filosofia. Logo, a Geografia Fsicaseria, para Kant, o embasamento emprico de suas reflexes filosficas,pois ela lhe comunicava a empiricidade da inveno do mundo; ela lheoutorgava a construo metafsica da superfcie da Terra. Destarte, damesma maneira que a Geografia, em sua superfcie geral, conferiu umaespcie de atributo cientfico validao do emprico da Modernidade(desde os idos do sculo XVI), a Geografia Fsica apresentou-se como osustentculo emprico da reflexo filosfica kantiana acerca da metafsicada natureza e da metafsicado mundo.

    Palavras-chave:Histria e Epistemologia da Geografia,Geografia Fsica,Cosmologia, Filosofia Transcendental Kantiana, Natureza.

    THE COURSE OF PHYSICAL GEOGRAPHY OF IMMANUEL KANT(1724-1804) : CONTRIBUTION FOR THE GEOGRAPHICALSCIENCE HISTORY AND EPISTEMOLOGY

    Abstract: There is a relative weakness about our knowledge concerningKant philosophy and the constitution of modern geography and,consequently, scientific geography. That relation, whenever studied,happens several times in an oblique ortangentialway, what means thatit lies almost exclusively confined in the actof notifying that Kant offered,for approximately four decades, Physical Geography courses in

    Konigsberg, or that he was the first philosopher teaching the subject at anyCollege, even before the creation of Geography chair in Berlin, in 1820, byKarl Ritter. Not overcoming the early spread of that actitself only made usthrow a curtain over the absence of a major understanding about Kantstribute to epistemic justification of modern and scientific geography. Toopen a breach in this curtain indicates, necessarily, to lighten the role andplace of Physical Geography Course inside Kantian transcendentalphilosophy. So, we began from the conjecture thatPhysical Geography hasalways shown, by Kant, as a knowledge carrier of an unmeasuredphilosophic sense, once it showed the possibility of empiricization of hisphilosophy. Therefore, a Physical Geography would be, for Kant, theempirics basis of his philosophic thoughts, because it communicates theempiria of the world invention; it has made him to build metaphysically theEarths surface. In the same way, Geography, in its general surface, hasgiven a particular tribute to the empiric validation of Modernity (since the16th century),Physical Geography introduced itself as an empiric basis toKantian philosophical reflection about natures metaphysics and the

    world metaphysics as well.

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    Keywords:History and Epistemology of Geography, Physical Geography,Cosmology, Kantian Transcendental Philosophy, Nature.

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